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Artigo de Pesquisa
ISSN 2197-7994

Barreiras para a realização de oftalmoscopia direta por médicos de


família e comunidade
Barriers to performing direct ophthalmoscopy by primary care physicians
Barreras a la oftalmoscopia directa por médicos de familia y comunidade
Lucas Zanetti Milani1 , Santiago Pich2 , Marcos Krahe Edelweiss1

Escola de Saúde Pública de Florianópolis


1

Universidade Federal de Santa Catarina


2

RESUMO
A oftalmoscopia direta é um exame utilizado para diagnóstico e rastreamento de doenças da retina,
do disco óptico e do humor vítreo no contexto da atenção primária à saúde. Estudos demonstram
que é uma prática pouco utilizada regularmente por médicos de família e comunidade. O objetivo
deste estudo é identificar barreiras para a realização da oftalmoscopia por médicos da referida
especialidade. Este estudo utilizou metodologia qualitativa, baseada em entrevista semiestruturada
com médicos de família e comunidade e posterior análise temática. Demonstrou-se que as
barreiras para a realização de oftalmoscopia direta incluem dificuldade no manejo do oftalmoscópio
e na dilatação pupilar, pouco conhecimento da anatomia ocular, sentimento de insegurança na
realização e na interpretação de achados, percepção de que seria um exame mais bem realizado
por um especialista, falta de formação e experiência prática na graduação e na residência médica,
percepção de pouca utilidade ou resolutividade, dificuldade em adequar o ambiente para a
realização do exame, ausência de aparelho e colírios midriáticos nas unidades de saúde, aumento
no tempo de consulta, ausência de fluxos de encaminhamento mediante achados alterados,
presença de serviços de teleoftalmologia e ausência de treinamento da equipe multiprofissional.
Palavras-chave: Medicina de família e comunidade. Atenção primária à saúde. Oftalmoscopia.
Fundo de olho.

Autor correspondente:
Lucas Zanetti Milani
E-mail: lucasmilani1@gmail.com
Fonte de financiamento:
não se aplica
Parecer CEP:
CAAE 32360820.8.0000.5361
Procedência:
não encomendado.
Avaliação por pares:
externa.
Como citar: Milani LZ, Pich S, Edelweiss MK. Barreiras para a realização de oftalmoscopia direta por médicos de Recebido em: 03/03/2021.
família e comunidade. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2022;17(44):2970. https://doi.org/10.5712/rbmfc17(44)2970 Aprovado em: 23/11/2021.

Rev Bras Med Fam Comunidade. Rio de Janeiro, 2022 Jan-Dez; 17(44):2970 1
Barreiras para oftalmoscopia

ABSTRACT
Introduction: Direct ophthalmoscopy is an examination performed for the diagnosis and screening of diseases of the retina, optic disc, and
vitreous humor in the context of primary health care. Studies show that this practice is rarely used by primary care physicians. Objective: The aim
of this study is to identify barriers for primary care physicians to perform ophthalmoscopy. Methods: This study used a qualitative methodology
based on a semi-structured interview with primary care physicians with subsequent thematic analysis. Results: It was verified that barriers to
performing direct ophthalmoscopy include difficulty in handling the ophthalmoscope and pupil dilation, little knowledge of eye anatomy, feeling
of insecurity in performing and interpreting findings, perception that the examination would be better performed by a specialist, lack of training
and practical experience in undergraduate program and medical residency, perception of little use or resolution, difficulty in adjusting the room
environment for the examination, absence of equipment and mydriatics in health units, increase in consultation time, absence of referral flows
when facing altered findings, presence of teleophthalmology services and lack of training of the multidisciplinary team. Conclusions: Barriers
to performing ophthalmoscopy by primary care physicians include emotional, behavioral, cognitive, educational, and work-environment aspects.
Keywords: Family practice. Primary health care. Ophthalmoscopy. Fundus oculi.

RESUMEN
Introducción: La oftalmoscopia directa es un examen que se utiliza para el diagnóstico y rastreo de enfermedades de la retina, el disco óptico y
el humor vítreo en el contexto de la atención primaria de salud. Los estudios demuestran que es una práctica poco utilizada habitualmente por los
médicos de familia y comunidad. Objetivo: El objetivo de este estudio es identificar barreras del porqué los médicos de familia y comunidad no
realizan oftalmoscopias. Métodos: Esta investigación está basada en una entrevista semiestructurada com médicos de familia y comunidad con
posterior análisis temático. Resultados: Se ha demostrado que las barreras para realizar oftalmoscopia directa incluyen dificultad en el manejo
del oftalmoscopio y dilatación pupilar, poco conocimiento de la anatomía ocular, sensación de inseguridad en la realización e interpretación de
los hallazgos, percepción de que sería un mejor examen por parte de un especialista, falta de formación y experiencia práctica en licenciatura
y residencia médica, percepción de poco uso o resolución, dificultad para ajustar el ambiente para el examen, ausencia de aparatos y gotas
midriáticas en las unidades de salud, aumento del tiempo de consulta, ausencia de flujo derivación a hallazgos alterados, presencia de servicios
de teleoftalmología y falta de formación del equipo multidisciplinario. Conclusiones: Barreras para la oftalmoscopia directa por médicos de familia
y de la comunidad incluyen aspectos emocionales, conductuales, cognitivos, educativos y del entorno laboral.
Palabras-clave: Medicina familiar y comunitaria. Atención primaria de salud. Oftalmoscopía. Fondo de ojo.

INTRODUÇÃO

A oftalmoscopia, também chamada fundoscopia ou exame do fundo do olho, é parte do exame


físico ocular que utiliza um aparelho, o oftalmoscópio ou fundoscópio, para examinar o cristalino, a retina,
o disco óptico, a fóvea, a mácula, as artérias retinianas e as veias retinianas. Pode ser realizada de
maneira direta, com um oftalmoscópio manual, ou indireta, com uma lente manual sob a iluminação de
uma lanterna.1
A oftalmoscopia é utilizada para rastreamento e diagnóstico de patologias da retina, do disco óptico e
do humor vítreo. Por exemplo, é usada no rastreamento de retinopatia diabética em pacientes portadores
de diabetes tipo 1 ou tipo 2, na avaliação de pacientes com glaucoma, no rastreamento de catarata
congênita em recém-nascidos, na avaliação de pacientes com catarata, entre outros. Dessa forma, pode
ser realizada por médicos com formação generalista ou por especialistas em oftalmologia.1
A oftalmoscopia direta é considerada uma habilidade importante ou essencial para médicos de família
e comunidade (MFC). O Currículo Baseado em Competências para a Medicina de Família e Comunidade
cita como habilidade essencial o conhecimento da técnica de fundoscopia e como habilidade desejável a
realização de fundoscopia de modo geral e de fundoscopia voltada para o exame neurológico.2
Múltiplos estudos demonstraram que a oftalmoscopia direta não é realizada regularmente por MFC
e que muitos têm dificuldade com seu uso.3-9

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Um estudo do Brasil avaliou o uso de oftalmoscopia por médicos que participavam de um congresso
latino-americano de diabetes e demonstrou que 52% dos participantes apresentavam experiência na
realização de oftalmoscopia e que 21,4% realizavam oftalmoscopia em seus pacientes.10
Embora sua importância seja reconhecida, os MFC realizam infrequentemente a oftalmoscopia
direta na prática clínica. As razões para esse comportamento não foram abordadas por estudos brasileiros
sobre o assunto.
O objetivo desta pesquisa é identificar potenciais barreiras para a realização da oftalmoscopia
por MFC.

MÉTODOS

Este é um estudo de natureza exploratória, que utilizou uma metodologia qualitativa e foi realizado
em sete centros de saúde do município de Florianópolis.
Foram incluídos MFC que trabalham na prefeitura municipal de Florianópolis e que possuem
residência médica e/ou título de especialista em medicina de família e comunidade.
Foram excluídos MFC que tinham realizado residência médica ou especialização em oftalmologia.
Doze MFC foram convidados e todos aceitaram participar do estudo. Os participantes selecionados
formaram uma amostragem por conveniência, selecionada para que contivesse médicos que fazem
oftalmoscopia e que não fazem oftalmoscopia, objetivando a presença de várias visões do tema. A
identificação dos MFC foi realizada por contato telefônico ou por mensagem eletrônica, e todos foram
questionados a respeito da realização da oftalmoscopia e da frequência com que a realizavam.
As informações foram coletadas mediante entrevistas semiestruturadas individuais, que tinham
roteiro de perguntas abertas coerente com os objetivos do estudo (Tabela 1). As entrevistas foram
gravadas com auxílio de equipamento eletrônico (smartphone), ao vivo, no centro de saúde ou a distância

Tabela 1. Estrutura das entrevistas.


Apresentação do estudo, seus objetivos e seus métodos
Solicitação de preenchimento de termo de consentimento livre e esclarecido
Perguntas
1. O que você sabe sobre a oftalmoscopia?
2. Você possui um oftalmoscópio? Usa no dia a dia? Usa colírio midriático?
3. Em que situações do dia a dia da unidade de saúde você usa/usaria?
4. Qual sua experiência com o uso do oftalmoscópio?
5. O que é mais difícil no uso do oftalmoscópio?
6. Qual seu nível de segurança em realizar uma oftalmoscopia? E em interpretar os resultados?
7. Quais as dificuldades para realizar a oftalmoscopia no dia a dia da unidade de saúde?
8. Na sua opinião, qual a importância da oftalmoscopia no dia a dia da unidade de saúde?
9. Várias pesquisas demonstram que os médicos não oftalmologistas não realizam oftalmoscopia no dia a dia. Na sua
opinião, por que isso acontece?
10. Que tipo de treinamento você recebeu sobre este assunto (graduação, residência)?
11. Você teria interesse em fazer uma formação no assunto? Teria interesse em utilizar no dia a dia? Vê importância nisso?
12. Na sua opinião, quem deveria fazer a oftalmoscopia (médico de família, oftalmologista)?
13. Quais benefícios para o paciente você vê em realizar a oftalmoscopia na unidade de saúde? E quais malefícios?

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Barreiras para oftalmoscopia

por videochamada online. As entrevistas foram realizadas entre os meses de junho e agosto de 2020 por
um dos autores. Posteriormente, foram transcritas também pelo mesmo autor e submetidas à análise
temática dos conteúdos e à síntese integrativa dos resultados segundo a técnica de Bardin.11 O conteúdo
das entrevistas foi agrupado conforme as categorias: barreiras emocionais, barreiras comportamentais,
barreiras cognitivas, barreiras de ambiente de trabalho e barreiras de aprendizagem.
Um teste piloto com a participação de três MFC foi realizado previamente para eventuais correções
na formulação das perguntas. As informações coletadas no piloto não foram incluídas no estudo e os
médicos que participaram não faziam parte da amostra.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital Infantil
Joana de Gusmão/Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina (SES-SC) e todos os participantes
assinaram Termo de Consentimento Livre Esclarecido previamente à realização das entrevistas. Os dados
desta pesquisa não serão compartilhados com terceiros e nenhum paciente ou membro da comunidade
participou do planejamento ou da execução da pesquisa.

RESULTADOS

Doze MFC foram entrevistados no total. Deles, dois possuíam oftalmoscópio e apenas um
realizava oftalmoscopia cotidianamente. Nove dos participantes eram do sexo masculino (75%) e três
eram do sexo feminino (25%). Eles apresentavam de três a 21 anos de atuação na área de atenção
primária à saúde. Seis eram preceptores da residência em medicina de família e comunidade e um era
professor universitário.
Os participantes relataram várias situações em que realizariam o exame de fundo de olho.
Estas incluem queixas oftalmológicas (dor ocular, perda visual, corpo estranho ocular), neurológicas
(cefaleia, sintomas neurológicos focais) e sistêmicas (urgência hipertensiva, meningite). Como exame
de rastreamento, o exame do fundo de olho seria usado na avaliação de catarata congênita em recém-
nascidos e de retinopatia diabética e hipertensiva em hipertensos e/ou diabéticos.
O manejo do oftalmoscópio foi relatado como dificuldade por seis participantes. A habilidade de
manejar o aparelho com as duas mãos, de saber a indicação de uso das luzes verde e vermelha e achar
o foco e a distância ideal foram algumas dificuldades citadas. A indicação de dilatação pupilar e mesmo
a realização do exame sem midríase farmacológica também foram relatados como dificuldades. Além
disso, alguns participantes comentaram que necessitariam de maior conhecimento de anatomia ocular e
maior habilidade em discriminar as diferentes estruturas da retina, aspectos que julgaram essenciais para
a interpretação dos achados do exame.
“O mais difícil é a dilatação da pupila. [...] A ‘destria’ [sic] com as duas mãos, a dificuldade de fechar
um olho e olhar com o outro enquanto tem que trabalhar com mãos diferentes.” Participante 11.
A insegurança na realização do exame e na interpretação de seus achados foi citada como barreira
para sua realização. As causas dessa insegurança incluem a pouca experiência na realização do exame
no dia a dia e a percepção de que é um exame incomum de ser realizado no cotidiano e com baixa
prevalência de achados alterados. Além disso, foi relatada a percepção de que a avaliação do fundo de
olho feita por MFC não apresenta a mesma sensibilidade daquela realizada por médicos oftalmologistas.
Um participante relatou a impressão de que a avaliação de problemas oculares, em geral, deveria ser
exclusiva de um especialista em oftalmologia.
“Nariz, boca e olho são do especialista.” Participante 2.

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Quatro participantes relataram grande habilidade no uso do oftalmoscópio no cotidiano, desenvolvida


durante seu período de formação na graduação e na residência médica e ao longo de sua atuação
profissional em clínicas de pronto atendimento, unidades básicas de saúde ou hospitais. A oportunidade
de realizar o exame na prática durante estágios nas áreas de oftalmologia, neurologia, pediatria e clínica
médica durante a graduação, internato médico ou residência médica foi citada como importante para a
manutenção dessa prática ao longo da atuação profissional.
“Durante o estágio de oftalmologia, fiz mais de 120 exames de fundo de olho com a supervisão
de um professor. Aquilo foi mais que o suficiente para aprender a fazer o exame e ter confiança.”
Participante 5
Dois participantes afirmaram que o exame seria de pouca ou nenhuma importância no cotidiano,
pois têm a percepção de que traria pouca resolutividade ao caso ou não mudaria a conduta na maioria
das situações, valorizando outros sintomas ou sinais na avaliação do paciente. Entretanto, os demais
participantes disseram ser um exame importante na avaliação de casos agudos ou crônicos, uma vez que
facilitaria o acesso a consultas com oftalmologistas, realizaria a triagem de casos urgentes e aumentaria
o vínculo com o paciente, pois este sentiria que está sendo avaliado por completo.
“Eu faço a oftalmoscopia muitas vezes porque o paciente se sente examinado por completo, ele
comenta que o doutor examinou até o fundo do olho dele. [...] Posso até diagnosticar uma catarata,
mas não vejo que vá fazer tanta diferença no dia a dia. Melhor encaminhar para o oftalmologista”.
Participante 6.
Além disso, foi dito que, por se tratar de um exame operador-dependente, a qualidade da avaliação
poderia sofrer interferência, devendo-se optar por tecnologias mais evoluídas e sensíveis para realizar
a mesma avaliação, como a retinografia digital. Entretanto, todos afirmaram que MFC deveriam realizar
a oftalmoscopia como parte de sua atividade diária, assim como fazem outros especialistas focais ou
generalistas (oftalmologistas, cardiologistas, pediatras, neurologistas, endocrinologistas, entre outros).
“Como eu sabia que eu poderia encaminhar para o serviço de teleoftalmologia [...], eu acabei
deixando de aprender a usar o aparelho. Mas, agora que me mudei para uma cidade que não tem esse
serviço, sinto que seja importante aprender.” Participante 3
Todos os participantes relataram ter utilizado o aparelho pelo menos alguma vez ao longo de sua
formação, experiência esta restrita em geral ao período de graduação ou de residência médica. Seis
médicos relataram ter tido maior imersão na prática em razão de estágios em oftalmologia ou neurologia.
Outros, durante a residência médica, seguindo a orientação de seus preceptores ou por estudo individual
partindo de interesse próprio. Todavia, a maioria citou importante falta de treinamento durante sua
formação, fosse na graduação, fosse na residência. Reportou-se à predominância de abordagens teóricas
em favor de experiências práticas sob supervisão de professores ou preceptores. Mesmo assim, todos
os participantes, exceto um, relataram interesse em aprender mais sobre o assunto e em adicionar essa
habilidade a sua prática clínica após treinamento teórico-prático, sob supervisão.
“Não tem dificuldade de usar o oftalmoscópio em si. O negócio é você saber padrões, fazer o exame
várias vezes, pegar experiência das mínimas alterações.” Participante 12
Alguns aspectos relacionados ao ambiente da unidade de saúde foram mencionados como
barreiras à realização da oftalmoscopia indireta, incluindo dificuldade em escurecer a sala de
atendimento, ausência de oftalmoscópio e colírios midriáticos nas unidades de saúde e baixa qualidade
dos aparelhos quando disponíveis. O alto preço para aquisição do aparelho também foi citado como
obstáculo por dois participantes.

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Barreiras para oftalmoscopia

O aspecto tempo foi apontado como uma dificuldade por todos, exceto dois participantes. Entre os
aspectos, a necessidade de tempo extra na consulta para explicar ao paciente sobre o exame, realizar a
dilatação pupilar e realizar o procedimento foi indicada como dificuldade diante das demandas crescentes
e da pressão assistencial das unidades de saúde, podendo haver necessidade de agendamento prévio
para a realização do exame. Entretanto, dois participantes, com maior prática na técnica, não relataram o
fator tempo como dificuldade para o procedimento.
“Eu tenho que priorizar certas coisas por causa da grande demanda que nós temos na unidade. Por
causa disso que fui abandonando a oftalmoscopia com o tempo.” Participante 6
“O tempo em si não é uma barreira, porque o exame pode ser feito rapidamente em poucos minutos.”
Participante 11.
Além disso, aspectos relacionados à gestão de saúde também foram elencados. A ausência de
fluxos de encaminhamento mediante algum achado alterado, o fato de não haver cobrança por parte de
autoridades locais quanto à realização do exame. A presença de serviços de teleoftalmologia e triagem
oftalmológica também foi citada como barreira, visto que muitos MFC preferem que a avaliação seja feita
por um profissional com experiência na realização do exame. Ademais, a ausência de treinamento por
parte da equipe multiprofissional para auxiliar no procedimento também foi citada como barreira.
Os participantes listaram como potencial benefício aos pacientes a possibilidade de excluir doenças
graves, de evitar encaminhamentos desnecessários, de agilizar encaminhamentos necessários e de
aumentar o vínculo com o paciente. Como malefícios, declararam que a imperícia na realização do exame
poderia levar a resultados falso-positivos ou falso-negativos, além do que o exame poderia aumentar o
tempo de consulta e provocar fotofobia, náuseas ou desconforto ao paciente pela proximidade física com
o médico. O uso do colírio midriático foi mencionado como potencial malefício, haja vista a possibilidade
de provocar prejuízo visual temporário ou eventualmente induzir um glaucoma agudo.

DISCUSSÃO

Diferentes barreiras para a realização da oftalmoscopia direta foram reveladas. Aspectos cognitivos
e comportamentais incluíram dificuldade em manejar o aparelho, achar o foco ideal e realizar o exame
sem midríase farmacológica e também a falta de conhecimento da anatomia ocular.
Aspectos sentimentais também foram citados, como sentimentos de insegurança na realização e
na interpretação do exame, resultado de pouca experiência prática no cotidiano, e a impressão de que
seria um exame mais bem realizado por um especialista. Outros sentimentos foram revelados, como a
impressão de provocar danos em razão de falso-positivos e falso-negativos e baixa resolutividade, e a
ideia de que haveria tecnologias mais sensíveis, como a retinografia.
Alguns estudos demonstraram que a segurança na realização do exame de fato é baixa.12,13 Uma
pesquisa da Irlanda avaliou o conhecimento em oftalmologia e habilidades oftalmológicas entre MFC
irlandeses e demonstrou que 40% se sentem confiantes em identificar uma anormalidade do disco
óptico, 20% em monitorar pacientes com retinopatia diabética, 94% possuem um oftalmoscópio e 66%
sentem-se confiantes em usá-lo.14 Embora tenha trabalhado com uma população em que quase todos os
participantes possuíam o aparelho, a pesquisa corrobora os achados deste estudo ao demonstrar falta de
confiança na interpretação dos achados.
Alguns trabalhos demonstraram que a realização da oftalmoscopia direta por MFC parece apresentar
precisão semelhante à daquela realizada por optometristas ou médicos oftalmologistas.15,16 Isso vai de

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encontro aos relatos de alguns participantes, que afirmaram que a habilidade dos MFC seria inferior à
dos especialistas.
Um estudo sugere que a oftalmoscopia direta deva ser abandonada e substituída pela realização de
métodos mais tecnológicos, como a retinografia digital.17 Além disso, uma investigação realizada no Brasil
demonstrou a viabilidade de utilizar um retinógrafo portátil acoplado a um smartphone como recurso para o
rastreamento de retinopatia diabética na atenção primária, em associação a um serviço de telemedicina.18
Isso corrobora o relato de alguns participantes desta pesquisa quanto ao uso da telemedicina como
alternativa à oftalmoscopia direta.
Aspectos relacionados à formação, como falta de práticas supervisionadas durante a graduação
ou residência médica, foram elencados como barreiras. Um estudo britânico demonstrou que o ensino
de oftalmoscopia na graduação e na residência em medicina de família e comunidade é bastante
deficitário.19 Contudo, outros estudos mostraram que cursos rápidos podem contribuir na aquisição dessa
habilidade,20,21 ou ainda uma formação mais extensa.22
Aspectos organizacionais como dificuldade em escurecer o consultório, ausência de oftalmoscópio
e colírios midriáticos, alto preço para aquisição do aparelho, necessidade de maior tempo na consulta para
a realização do procedimento diante da preocupação com demandas crescentes e pressão assistencial
nas unidades também foram mencionados como barreiras. Um estudo da China avaliou a disponibilidade
de equipamentos em clínicas de atenção primária em várias regiões e revelou que 57% das clínicas não
possuíam oftalmoscópio.23
Aspectos assistenciais como ausência de fluxos de encaminhamento e de “cobrança” por parte
de autoridades locais, falta de treinamento da equipe para realizar o exame e presença de serviços de
triagem oftalmológica e telemedicina também foram citados.
Apenas um trabalho avaliou diretamente barreiras para a realização da oftalmoscopia direta. Nesse
estudo australiano, que utilizou metodologia quantitativa, foram consideradas barreiras para a realização
da oftalmoscopia o tempo necessário para sua realização, os pacientes não quererem ter suas pupilas
dilatadas para o exame, o medo de provocar um glaucoma agudo após a midríase, a falta de confiança em
detectar anormalidades e a ausência de midriáticos na clínica. Não foram considerados obstáculos não
saber o que fazer ao encontrar alterações, não haver reembolso do convênio ou não existir oftalmoscópio
na unidade.24 Em comparação, a presente pesquisa corrobora o tempo necessário para a realização
do exame, a falta de confiança em detectar anormalidades e a ausência de colírios midriáticos como
barreiras para a oftalmoscopia.

CONCLUSÕES

Este estudo demonstrou que dificuldade no manejo do oftalmoscópio e na dilatação pupilar, pouco
conhecimento da anatomia ocular, sentimento de insegurança na realização e na interpretação de achados
e percepção de que seria um exame mais bem realizado por um especialista atuam como barreiras
para a realização da oftalmoscopia direta no contexto da atenção primária à saúde. Além disso, falta de
formação e experiência prática na graduação e na residência médica, percepção de pouca utilidade ou
resolutividade do exame, dificuldade em adequar o ambiente para realização do exame, ausência de
aparelho e colírios midriáticos nas unidades de saúde também são fatores de influência. Ainda, aumento
no tempo de consulta, ausência de fluxos de encaminhamento perante achados alterados, presença de

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Barreiras para oftalmoscopia

serviços de teleoftalmologia e ausência de treinamento da equipe multiprofissional também foram citados


como barreiras para a realização de oftalmoscopia por MFC.
Os limites deste estudo são uma abordagem inicial e exploratória ao tema da oftalmoscopia direta
por MFC no Brasil e a pequena disponibilidade de profissionais com experiência de uso do oftalmoscópio
para participar da investigação. Todavia, os achados poderão contribuir para a construção do conhecimento
sobre o tema, e sobretudo sinalizar a necessidade de Educação Permanente para os MFC, a fim de
instrumentalizá-los para a prática de oftalmoscopia direta na atenção primária à saúde, haja vista a
relevância do procedimento no âmbito da saúde pública.

CONFLITO DE INTERESSES

Nada a declarar.

CONTRIBUIÇÕES DOS AUTORES

LZM: Administração do projeto, Conceituação, Curadoria de dados, Escrita – primeira redação,


Escrita – revisão e edição, Investigação, Metodologia, Obtenção de financiamento, Recursos, Software,
Validação, Visualização. SP: Administração do projeto, Análise formal, Conceituação, Escrita – revisão e
edição, Metodologia, Supervisão, Validação, Visualização. MKE: Administração do projeto, Análise formal,
Conceituação, Escrita – revisão e edição, Metodologia, Supervisão, Validação, Visualização.

REFERÊNCIAS
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