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Ignacy Sachs: Os desafios da Rio+20

Article · December 2011


DOI: 10.18472/SustDeb.v2n2.2011.5825

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Gislaine Disconzi
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Os desafios da Rio+20

Prof. Ignacy Sachs1


Sustentabilidade
em Debate
1
École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS
(Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais) de Paris

Editado por
Maria Beatriz Maury e Gislaine Gisconzi

Introdução

“Desenvolvimento sustentável
não é ciência exata, mas arte”
Ignacy Sachs

A palestra Os desafios da Rio+20, proferida por Ignacy Sachs, foi apresentada no âmbito do
fórum “Quartas Sustentáveis”, no dia 8 de setembro de 2011, no Centro de Desenvolvimento Susten-
tável da Universidade de Brasília, Brasil. Às vésperas da Rio+20, a palestra do Prof. professor Sachs
precedeu o seminário internacional, também realizado pelo CDS, denominado Preparando a Rio+20,
propondo um mundo mais sustentável, no qual foram discutidas as implicações do evento que
avaliará os acontecimentos ocorridos nos 20 anos que se seguiram à Rio-92. A palestra foi introduzida
pelo Diretor do CDS, Prof. Saulo Rodrigues Filho.
A palestra do Prof. Sachs foi transcrita e editada a partir da gravação feita ao vivo. Muitos parti-
cipantes fizeram perguntas e observações, que foram aqui resumidas e incorporadas pelos editores de
Sustentabilidade em Debate. A palestra do Prof. Sachs e os temas debatidos foram reunidos e editados em
tópicos temáticos, para facilitar a leitura.

Apresentação

Saulo Rodrigues Filho - Boa tarde, boa noite. Sejam bem-vindos. Em nome da direção do Centro de
Desenvolvimento Sustentável, tenho hoje o prazer de introduzir uma palestra incomum, já que o Prof. Ignacy Sachs é a
referência das referências quando o tema é desenvolvimento e sustentabilidade. Quero agradecer-lhe pela gentileza de ter
aceito nosso convite.
O Prof. Sachs é socioeconomista, professor titular da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, onde
ele fundou o Centro Internacional de Pesquisas em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Chegou ao Brasil pela primeira

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Prof. Ignacy Sachs

vez como refugiado de guerra. Viajou no último navio a nhecer, com mais de dois séculos de atraso - an-
sair de Portugal antes da interdição bélica dos oceanos. tes tarde do que nunca –, que a Revolução Indus-
Fugitivo judeu de uma Polônia invadida pelos alemães trial fez com que o mundo entrasse em uma nova
nazistas, viveu com encantamento o amanhecer na Baía de era geológica, que está sendo chamado de “An-
Guanabara. Viveu 14 anos no Brasil e retorna constante- tropoceno. Há pouco tempo (16/5/2011), a re-
mente. Ele foi naturalizado francês e brasileiro de coração. vista The Economist, de Londres, publicou um arti-
Contribuiu muito para ciência e para civilização, go que tinha como título Welcome to the Anthropoce-
começando pela proposição do conceito de ecodesenvolvimento, ne – Bem vindos ao Antropoceno. Não sei se ele é bem-
que anos depois deu origem a uma das expressões mais vindo, ou não, mas, de qualquer maneira, se se
recorrentes e debatidas das últimas décadas: desenvolvi- fortalece a idéia de que entramos em uma nova
mento sustentável. Autor de mais de vinte livros sobre de- era geológica, marcada por uma influência cada
senvolvimento e meio ambiente, o Prof. Sachs trabalhou na vez maior da nossa espécie sobre o que está acon-
organização da primeira conferência da ONU sobre de- tecendo com a nave espacial Terra, os historiado-
senvolvimento e meio ambiente, realizada em Estocolmo, res futuros terão que mudar de costume. Em vez
Suécia, em 1972, na qual foi criado o Programa das Na- de falar da era antes de Cristo (a. C.) e depois de
ções Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA. Cristo (d. C.), valerá falar sobre antes da entrada
Foi conselheiro especial da Rio-92. Aliou à agenda no Antropoceno e depois da entrada no Antro-
do crescimento os valores da justiça social e do equilíbrio poceno. Isto é mencionado para enfatizar que es-
com o meio ambiente. Adepto do planejamento, renovou tamos entrando em uma época em que a nossa
esta ferramenta, despindo-a do autoritarismo tecnocrático responsabilidade é cada vez maior.
para vesti-la com o diálogo entre as vozes da cidadania Isso está bem na linha do livro do Hans Jo-
mediadas pela harmonização do poder público. nas sobre o Princípio da Responsabilidade, embora
Vinte anos depois, o Prof. Sachs tem agora mais não queira dizer que um dia seremos, “mestres da
um encontro marcado com a história do desenvolvimento natureza”, como pensava Descartes. Não somos
sustentável: em 2012 o Brasil sediará a Cúpula da Terra, “mestres da natureza” e nunca o seremos! Se de-
o mais importante fórum da ONU sobre agendas, com- pendesse de mim a Conferência de 2012 seria es-
promissos e diretrizes para reconciliar o desenvolvimento sencialmente uma conferência para definir um iti-
com o meio ambiente. O contexto da Cúpula Rio+20, nerário – road map – ou seja, colocar na mesa pla-
segundo ele, é bem mais favorável do que o da Rio 1992. nos nacionais de desenvolvimento que incluam
Ele vai nos explicar hoje porque pensa dessa forma. Temos conceitos que até hoje não entraram, na maioria
um grande prazer em recebê-lo e espero que vocês aprovei- dos casos, no planejamento. Os dois conceitos
tem essa rara oportunidade. Muito obrigado! mais importantes são: a pegada ecológica, pelo lado
ambiental, e as oportunidades de geração de tra-
O Mapa do itinerário
balho decente, pelo lado social.
É um prazer voltar aqui e discutir com vo- Em poucas palavras, essa é a minha propos-
cês os problemas que nos aguardam na volta da ta para a reunião Rio+20. Se conseguirmos andar
esquina. 2012 será um ano excepcional não só nessa direção, o que não me parece impossível,
porque vamos ter a Rio+20, mas porque até lá se vamos mudar de patamar de atuação. Será factível
espera que a Comissão Estratigráfica Nacional, que gerar em vários países do mundo estratégias am-
funciona em algum lugar na Inglaterra, vá reco- bientalmente sustentáveis e com um forte com-

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Os desafios da Rio+20

ponente social embutido, porque o mais impor- tinham um ábaco, não havia nem aquelas máqui-
tante desse debate é não permitir que o ambiental nas mais simples de cálculo. Então, planejávamos
e o social sejam dissociados. Precisamos trabalhar com o ábaco, por mais estranho que tenha pare-
com o tripé: objetivos éticos e sociais, condicio- cido, mas estamos deixando de planejar na era dos
nalidades ambientais e viabilidade econômica. computadores. Esse é um paradoxo que deve ser
superado, conquanto que não se pense que o pla-
Futuros alternativos
nejamento é um problema de técnica, porque o
Responsabilidade sim; mestres da natureza, que tivemos no passado foi predominantemente
com voluntarismo total, não. Eu me refiro às for- um planejamento autoritário.
mulações de um filósofo francês do século XVI, O que precisamos no presente e no futuro é
Pascal, que dizia que o homem é um cânhamo um planejamento democrático, que permita asso-
pensante. Ou seja, ele sabe se adaptar aos ventos, ciar quatro tipos de protagonistas: o Estado, a meu
mas é um ser pensante. Dentro dessa linha, colo- ver o estado desenvolvimentista; os empresários;
caria o seguinte comentário: somos capazes não os trabalhadores e a sociedade civil organizada. A
só de posturas reativas, mas, pelo fato de sermos partir desses quatro grupos de atores, nós temos
uma criatura pensante, nos é conferido o privilé- que repensar o planejamento e lhe dar a sua for-
gio, único entre todas as espécies vivas, de assu- ma moderna. Em paralelo, devemos tentar cons-
mir atitudes proativas e pensar futuros alternati- truir um Fundo Internacional de Desenvolvimento
vos. Entre os autores que trataram dessa capaci- Includente e Sustentável.
dade, Anatol Rapaport afirma que somos a única Há boas razões para voltar a planejar seria-
espécie que pode pensar futuros alternativos. As- mente e, portanto, rever fundamentalmente a fer-
sim, é fácil dar um passo para o planejamento, ramenta do planejador. Isso é uma tarefa para a
porque só o ser capaz de imaginar futuros alter- universidade, que deverá fazer um exame crítico e
nativos pode tentar escolher os futuros que me- severo, mais científico do que foram as experiên-
lhor lhe convém e pensar sobre o que devo fazer cias de planejamento no passado, por quais pro-
hoje para que a minha trajetória me leve na dire- blemas elas passaram, que contradições elas levan-
ção de um futuro determinado, e não de outros. taram, e como fazer para não voltar aos proble-
mas anteriores.
Aprender a planejar
Criação de um Fundo Internacional
O meu mestre Kalecki tinha essa belíssima e
de Desenvolvimento Includente e
extremamente breve definição do planejamento:
Sustentável
o planejamento é o pensamento por variantes.
Então, a primeira observação nas vésperas da Esse fundo seria financiado da seguinte ma-
Rio+20, é que temos de aprender a planejar. A neira: primeiro, cobrando dos países desenvolvi-
história do planejamento é um tanto curiosa, pois dos um antigo compromisso, nunca realizado, de
surge das necessidades de países prósperos enga- que destinem 1% de seu PIB a um fundo para
jados em guerras, numa época em que a ferra- ajudar o desenvolvimento dos países menos de-
menta de que dispunha o planejador era o ábaco. senvolvidos. A esse 1% eu acrescentaria as seguin-
Não estou exagerando, pois quando voltei do Bra- tes fontes potenciais de financiamento: segundo,
sil à Polônia, em 1954, em todas as lojas os caixas uma taxa (que também está sendo discutida há 30

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Prof. Ignacy Sachs

anos e que não foi para frente, o que tem sua mais seletivos, ou seja, fazer melhor uso dos po-
razão de ser), a Taxa Tobin, sobre as especula- tenciais dos produtos locais. Isso leva a um novo
ções financeiras, para frear um pouco a amplitu- tipo de planejamento que em nível local começa
de delas. Terceiro, um imposto sobre o carbono. por um inventário “do que dói”. Ou seja, é preci-
Se nós queremos caminhar de fato para uma eco- so listar os problemas, por um lado, e listar os
nomia de baixas emissões de carbono, então nada potenciais subutilizados, por outro, e descobrir o
mais razoável do que impor uma taxa sobre o car- que pode ser resolvido com a melhor utilização
bono. Pode ser uma taxa nacional, com um per- dos potenciais locais e o que precisa ser trazido de
centual que deverá depois ser recolhido ao fundo fora. Assim, ocorrerá uma melhor utilização dos
internacional. A quarta fonte de financiamento é potenciais locais.
uma que propus e coloquei em debate e que nun- Esse é o meu planejamento em nível local.
ca foi para frente. Seria a proposta de pedágios Depois eu vou combinar esses planos locais entre
sobre os oceanos e os ares. Na medida em que os si e ver o que precisa ser feito em níveis superio-
oceanos e os ares constituem um patrimônio co- res. Acho que nós temos condições para entrar
mum da humanidade, não há razão para que um em um novo paradigma de planejamento de de-
avião que atravesse esses ares ou um navio que senvolvimento includente e sustentável e de coo-
navegue por esses mares não pague uma taxa. É peração internacional, no qual a cooperação Sul-
um imposto extremamente simples de ser cobra- Sul passa ser um elemento extremamente impor-
do, porque seria uma sobretaxa sobre as passa- tante. Insisto sobre isso: é a América Latina que
gens de avião e uma sobretaxa sobre os fretes. vai conversar com a África e a Ásia, e não só olhar
Se houver boa vontade por parte dos países o que está acontecendo com os Estados Unidos e
das Nações Unidas de gerar esse fundo, que as na Europa. Por isso, eu penso que a Conferência
doações superem o 1% do PIB, que era o nosso Rio+20 representa um enorme desafio.
sonho há 40 anos, e cheguem a 2% do PIB mun-
Homo Ludens x Homo Faber
dial. Isso não deve ser impossível.
Temos espaço para avançar no futuro. Se
Planos Nacionais de
avançamos no nível da produtividade, vale a pena
Desenvolvimento
retomar ao modelo do economista holandês Jo-
Associado a esse fundo eu me esforçaria para han Huizinga, no livro Homo Ludens, escrito antes
fazer o necessário para que os planos nacionais, que da Segunda Guerra Mundial. Ele parte da idéia de
obviamente em uma primeira aproximação terão que cada um de nós tem duas faces, tal como o
muitas contradições, muitos embates, sejam redefi- Deus Janus: o Homo Faber, o homem que trabalha,
nidos e integrados para gerar sinergias positivas. e o Homo Ludens, aquele que brinca. Bom, se eu
Há uma série de temas que se abrem, como posso reduzir o tempo de trabalho necessário para
em uma caixa de Pandora, para o planejador, o produzir o que eu necessito, então vou ter mais
técnico e o cientista, a fim de construir um novo tempo para ser o Homo Ludens. Essa é uma pers-
paradigma de cooperação internacional, dentro pectiva extremamente instigante e que nos leva a
do qual o comércio internacional passa a ser mais propostas como a da Revolução do Tempo Escolhido,
seletivo. Não estou advogando pelas autarquias título do livro de Jacques Delors e de uma série de
locais. Estou dizendo apenas que temos que ser seus colaboradores.

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Os desafios da Rio+20

A título de ilustração, lembro de uma ima- oportunidade de fazer um debate muito sério
gem muito interessante, um concurso de pintura sobre energia. Nesse debate há três temas im-
na areia molhada pela maré. Nessa sociedade pri- portantes. Primeiro, temos que aprender a con-
mitiva, eles não precisavam passar o tempo todo sumir moderadamente a energia. Isso nos leva a
trabalhando e podiam se dar ao luxo de escolher outros temas, como por exemplo, a organização
aquele desenho que iria desaparecer na próxima espacial da economia. O princípio central é que,
maré alta. Ou seja, havia total desinteresse pelo na medida do possível, não se transporte bens a
material, em uma economia lúdico-artística. Não milhares de quilômetros, quando podemos pro-
lembro em que livro de antropologia li esta des- duzi-las mais perto. Ou seja, a sobriedade no uso
crição, mas ela vale como imagem. das energias fósseis é o primeiro ponto. O se-
Será que temos que nos concentrar unica- gundo ponto é a eficiência energética. Por exem-
mente nas atividades do Homo Faber? Ou pode- plo, não vamos andar com carros que consomem
mos pensar no longo prazo, aprendendo a mode- 20 litros para cada 100 km percorridos, se pu-
rar o nosso apetite? Respondo com uma pergun- dermos andar nos que consomem apenas cinco
ta: o quanto basta? Não precisamos ir aos extre- litros. Terceiro ponto: substituições. Vamos pen-
mos da simplicidade voluntária de Gandhi, que sar em energias renováveis que estão ao nosso
contrapõe os conceitos de necessidade – need - ao alcance, umas hoje, outras amanhã. Enfim, te-
de cobiça/ganância – greed, como concupiscên- mos tecnologias e um enorme elenco de solu-
cia. Ele dizia: ‘need, not greed’ - necessidades e não ções a buscar na energia eólica, solar, das marés
cobiça/ganância. e na bioenergia. Esse é um tema evidentemente
Podemos imaginar um futuro no qual o tem- fundamental em uma estratégia de desenvolvi-
po que as sociedades destinam para as atividades mento de longo prazo. Temos que avançar si-
do Homo Faber se reduz à medida em que cresce a multaneamente em dois caminhos: aprofundar a
nossa produtividade de trabalho, conquanto o revolução verde e a revolução azul.
nosso apetite seja auto-controlado, abrindo espa-
Revolução Verde e Revolução Azul
ço para o Homo Ludens. Esse livro do Huizinga
deve ser recolocado nesse debate. Aprofundar a revolução verde significa in-
Resumindo: não há razão para pessimismo, tensificar a produção de alimentos, Porém, isso
para o sentimento de que estamos irremediavel- não deve ser feito na linha da primeira fase da
mente condenados a uma catástrofe. Isso não sig- revolução verde, que era uma revolução aristocrá-
nifica que não devamos pensar muito seriamente tica - ela só funcionava onde se tinha capital para
sobre como mudar de rumo. Desse ponto de vis- comprar máquinas, ciência para produzir semen-
ta, a Rio+20 é uma boa ocasião para colocar o tes, e água para a irrigação. Essa revolução não
problema. atende às necessidades de toda a humanidade. Daí
a importância do pensamento do agrônomo indi-
Eficiência energética
ano Swaminathan, que advoga o que chama de
Temos propostas para avançar. Devemos Evergreen Revolution - a Revolução Sempre Verde.
levar em conta a nova fase da revolução azul, da Todo o pensamento deste eminente agrônomo e
revolução verde e dos paradigmas energéticos. atualmente Senador da República está voltado para
De qualquer maneira, não devemos perder a o pequeno agricultor e as suas pequenas possibi-

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Prof. Ignacy Sachs

lidades. Temos, então, a terceira geração da revolu- o boi pastando em um hectare de floresta desma-
ção verde, que utiliza a horticultura intensiva, no tada e vamos ver o que vale mais.
modelo das terras pretas do índio, usando um qui- Temos outros exemplos amazônicos que vi-
lograma de carvão vegetal por metro quadrado, para raram tema internacional, as “terras pretas de ín-
intensificar os processos bióticos que ocorrem no dio” da Amazônia, altamente férteis, pois os índi-
solo. Revolução verde sim, mas redefinida. os colocavam grandes quantidades de carvão ve-
getal nelas, não como adubo, mas sim como cata-
Piscicultura: contraponto à pecuária
lisador dos processos bióticos que ocorrem no
A revolução azul tem duas direções: uma da solo.
produção animal associada à piscicultura - com um Combinemos essa piscicultura com essa
futuro enorme pela frente e como contraponto a horticultura, coloquemos ainda uma arboricultu-
uma pecuária intensiva e desmatadora. A outra é a ra, como, por exemplo, a do o coco-anão, e vere-
de aproveitamento de algas como um elemento mos o que se pode produzir em meio hectare. Os
possível da solução energética. Acrescentaria, como números que recolhi devem dar para produzir fa-
um elemento extremamente importante, a interfa- cilmente dentro de um açude de 50x20 metros,
ce solo-água, na linha daquilo que historicamente ou seja, 1.000m², que pode ser um açude, um iga-
se chamou o modelo chinês dos diques e dos açu- rapé na Amazônia, ou um pedaço do Pantanal
des, ou seja, da exploração do enorme potencial de Matogrossense, ou mesmo uma parte do litoral
piscicultura associada à produção de algas para fins do Atlântico protegida por recifes e piscinas na-
energéticos dentro da água, articulando isso com turais.
uma horticultura intensiva ao redor dos açudes. As Posso fazer variações sobre o tema. O im-
sobras da matéria vegetal devem ser jogadas na água, portante é que em 1.000m² se possa produzir 10
porque os peixes selecionados devem ser vegetari- toneladas de peixe/ano. Isso significa produzir 50
anos. Há inúmeras variedades de peixes vegetaria- quilos de peixe para 200 pessoas/ano. Naquele
nos. Eles recebem as sobras do dique, isso como dique posso produzir a mesma quantidade de hor-
primeira aproximação. taliças para os mesmos 200 habitantes. Posso ter
Poderíamos sofisticar esse modelo, colocan- sistemas de produção de alimentos baseados na
do plataformas para criar porcos - é uma atitude ‘horti-pisci-arboricultura’ de uso extremamente
muito pouco simpática para com os suínos, por- intensivo do solo e do espelho d’água, o que me
que os obrigaria a viver em recintos muito restri- permite pensar em um “arquipélago” desses sis-
tos e fechados, mas em compensação aumentaria temas integrados, por um lado, e voltar ao pro-
a fertilização do açude. Podemos complicar à von- blema de proteção da floresta tropical, por outro,
tade este modelo, mas o essencial é que saibamos para não permitir que a floresta seja derrubada
dar a devida importância à produção da proteína para criar bois sob regime de pasto intensivo.
animal no meio aquático. O BNDES trabalha com Além disso, mesmo nas áreas em que a co-
estudos sobre piscicultura no contexto dos proje- bertura florestal for recomposta é possível pen-
tos energéticos para Amazônia. Esses estudos pre- sar no adensamento da floresta com espécies úteis.
veem mais de 100 toneladas de peixes por hectare Essa é uma proposta muito forte, que vem dos
de açude. É uma boa piscicultura combinada com estudos do Prof. Kageyama, da ESALQ. Se, por
uma excelente horticultura. Compare-se isso com ventura, cresce naturalmente uma castanha-do-

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Os desafios da Rio+20

pará em um hectare, tenho que testar empirica- mos resolver os nossos problemas energéticos
mente se posso colocar lá 3, 5 ou 10 castanhas- sem dar grande ênfase à energia nuclear.
do-pará no mesmo hectare, sem mexer com o Ao mesmo tempo, temos que nos preparar
resto da cobertura florestal. para o fim da energia do petróleo. Primeiro, por
É possível, portanto, adensar a floresta com que é um fim físico, ele está se esgotando; segun-
as espécies que me interessam. Então, esse tipo do, porque é de nosso interesse eliminar a depen-
de ‘horti-piscicultura’ intensiva, acompanhado do dência das energias fósseis. O problema fica um
adensamento das florestas, começa a ser uma pro- pouco mais complicado, pois dependerá de quanto
posta para o trópico úmido, mas que pode ser tempo temos para o aproveitamento da energia
transferida para as piscinas naturais no Nordeste, do petróleo. Obviamente, o pré-sal brasileiro vai
no semiárido e no litoral, e assim por diante. Es- ter de ser aproveitado, porque é muito difícil pas-
sas são possibilidades de definição de novas estra- sar ao lado de um enorme potencial de recursos
tégias de aproveitamento dos recursos renováveis sem tentar aproveitá-lo. Mas, acho que o pré-sal
em bases sustentáveis, gerando um número razo- deve ser aproveitado essencialmente com a cria-
ável de empregos, pois elas são intensivas em ção de um fundo de investimento em estratégias
empregos. de abandono gradual do petróleo.
Podemos tirar disso uma conclusão, não di- Tive esse tipo de discussão no Peru, em 1972,
rei definitiva, porque não fizemos isso, mas sim logo depois da Conferência de Estocolmo, pois
uma reação forte contra as teses catastróficas que me coube dirigir uma missão da CEPAL, do IL-
aparecem por aqui e acolá. Não estamos muito PES de Santiago do Chile, na Amazônia peruana.
longe de ter esgotado a nossa capacidade de apro- Os peruanos pensavam ter descoberto na Ama-
veitar em bases sustentáveis os recursos renová- zônia um grande jazida de petróleo. Dissemos a
veis do planeta. Dando ênfase aos recursos reno- eles: se esse petróleo realmente existe, ele vai du-
váveis, fica claro que, por si só, isso não resolve rar pouco tempo. Portanto, deve ser aproveitado
uma estratégia de desenvolvimento, mas pode para gerar recursos para financiar a saída do pe-
constituir um elemento importante. tróleo e na criação de alternativas, dentro de um
período de 10, 15 a 20 anos.
Fim da era do petróleo – a transição
Essa é minha maneira de pensar sobre o pré-
para novas matrizes energéticas.
sal. Temos recursos que podem ser aproveitados
Outro tema importante que deveríamos le- com as tecnologias de hoje, por mais difícil que
vantar nesse momento para preparação da Rio + seja o projeto, mas vamos discutir o que fazer com
20 seria o paradigma energético. O paradigma essa riqueza. Devemos criar um fundo de saída
energético nos leva a várias considerações. Primei- gradual do petróleo e da energia fóssil. Com apoio
ro, pessoalmente não sou um entusiasta da ener- nesses recursos, pensamos em uma estratégia de
gia nuclear. Por acaso estava na Filadélfia quando prazo maior.
aconteceu o acidente de Three Miles Island. O aci-
Aprendizes de feiticeiros e
dente não se transformou em um desastre, mas
geonautas
deu um susto muito grande. Depois tivemos Cher-
nobyl e agora tivemos Fukushima. Será que preci- Temos que aprender a funcionar como geo-
samos disso? Eu acho que não. Acho que pode- nautas, usando a expressão de Erik Orsenna, e

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Prof. Ignacy Sachs

não como aprendizes de feiticeiros. Lembram do Finalizo: o Brasil não só aparece como anfi-
filme Fantasia, de Walt Disney, no qual havia um trião da Rio + 20, mas recebe a reunião pela se-
episódio do pobre coitado que luta contra a água, gunda vez, depois de 20 anos. É raríssimo que esse
que o submerge de todos os lados? Não deve- tipo de reunião volte ao mesmo país. Considero o
mos nos comportar como aprendizes de feiti- Brasil como um “abre-alas” do bloco dos emer-
ceiros. Temos elementos em mãos para apren- gentes. Um segundo “abre-alas” é a Índia.
der a função de geonautas. Essa é a mensagem Tive a sorte de ter me diplomado no Brasil e
de 2012. de viver três anos depois na Índia. A gente sente
Confesso que não estou muito otimista. um choque ao chegar à Índia, choque esse maior
Acho que estamos vivendo um momento inter- do que o de viver 14 anos no Brasil. O choque, do
nacional bastante complexo pelo fato de a Euro- ponto de vista científico, foi extremamente sau-
pa não estar à altura dos desafios que a esperam. dável, porque ele permite mostrar ao mesmo tem-
Não soube gerar a solidariedade que seria neces- po o que há de bom e o que é diferente. É dessa
sária com outros países, como a Grécia, que é a análise comparativa que podem surgir soluções
vítima clara da situação atual. Os EUA estão com para uns e para outros. Só não digo que as solu-
a cabeça muito ocupada pela eleição de 2012. ções sejam as mesmas para todos. Eu apenas digo
Portanto, isso gera para os países emergen- que esse diálogo direto é extremamente impor-
tes a oportunidade de ousar e a condição de ocu- tante.
par esse vazio e de criar um diálogo realmente Aproveito para dizer que é também barato:
profundo. Brasil e Índia podem atuar como as duas o que custaria ter 100 bolsas/ano para brasileiros
locomotivas, as duas alas do bloco dos emergen- irem para as universidades indianas enquanto vo-
tes. Eu antecipo uma pergunta: e a China? Ela vai cês receberem aqui 100 indianos/ano? Nada, em
ceder à vontade de construir um G2, um acordo termos dos recursos de que estamos falando. Ago-
sino-americano para distribuir as cartas para os ra imaginem isso acontecendo por 10 anos segui-
demais? Esse é um cenário possível. A China está dos e vocês vão ter, de cada lado, 1.000 brasileiros
se pensando como um “super grande”, não como que entendem alguma coisa da Índia e 1.000 indi-
um grande. Bom, esse seria o cenário negativo. O anos que entendem alguma coisa do Brasil. De-
cenário positivo é que a China se sinta solidária pois nós os colocaríamos em times de dois para
com o bloco dos emergentes. trabalharem juntos, vamos dizer primeiro o Nor-
Não tenho elementos para saber o que está deste e Kerala e, assim por diante. Eu acho que
hoje na cabeça dos dirigentes chineses, mas, de geraríamos uma riqueza de conhecimento a partir
um modo geral, acho que o tempo que nos resta desse estudo comparativo e do diálogo entre ci-
até a Rio + 20 é escasso. Deveríamos ir consoli- entistas dos dois lados, o que nos levaria a novas
dando politicamente o bloco dos emergentes, para propostas de desenvolvimento includente e sus-
que saiamos da conferência com um programa tentável. Portanto, faço votos de que essa seja uma
claro de cooperação científica e técnica, por bio- das conseqüências da Rio + 20.
mas, com maiores recursos internacionais. É bom
que caminhemos para um diálogo sobre a floresta ***
tropical úmida com os países que a tem, sobre o
semi-árido e África, e assim por diante.

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Os desafios da Rio+20

Debate mente, vestir uma roupa escura, uma gravata tam-


bém não gritante e, lentamente, para não criar
pânico, dirigir-se ao cemitério mais próximo!
Rio-92 na contramão da história
Para haver decrescimento teria que
A Rio-92 aconteceu na contramão da histó-
haver uma ‘expropriação’ dos
ria, quando tudo levava a propor políticas com
grandes
forte implicação dos Estados. Só que a implosão
da União Soviética e uma imensa onda de neoli- A proposta de decrescimento - particular-
beralismo dominaram o debate. Obviamente, a mente a do economista francês Serge Latouche -
maior parte das recomendações não saiu do pa- em um mundo de desigualdades que conhecemos,
pel, porque não havia como sair do papel nessa que propõe estratégias de desigualdades antes de
situação política. Desse ponto de vista, estaremos haver reduzido as disparidades sociais, significa
em 2012 numa situação menos desfavorável, por- condenar a uma situação extremamente difícil
que a crise está aí e o argumento que circulou de- aqueles que estão na parte baixa da pirâmide soci-
pois de 1992 e foi tão badalado pela mídia foi o de al. Por isso, acho que não podemos tentar fazer
que os mercados sabem mais. É muito difícil de- um decrescimento sem antes atenuar o problema
fendê-lo neste momento. O mercado não sabe das disparidades sociais no mundo.
nada sobre o que vai acontecer, como vai aconte- Tampouco podemos pensar que o cresci-
cer, e como se proteger do que vai acontecer. mento material vai continuar de uma maneira in-
Portanto, eu diria que o clima em 2012 é mais pro- definida. Temos que fazer uma diferença muito
pício para propor uma série de políticas públicas forte entre o crescimento material e o crescimen-
para evitar o pior. Porém, como isso vai evoluir to não-material, tais como serviços sociais, cultu-
politicamente, não tenho elementos para avaliar ra etc. Portanto, quanto mais rapidamente cami-
de antemão. nharmos no sentido da justiça social, mais cedo
poderemos encarar o problema do decrescimen-
Otimismo Epistemológico
to material.
Há aquela velha piada: o pessimista é um Isto mostra quanto a questão ambiental é
otimista bem informado. Pessimismo e otimismo imbricada com a questão social. Não dá para se-
a respeito do quê? Da nossa capacidade de mudar pará-las. Aqui eu discuto meio ambiente e depois
as nossas posturas com relação a certas informa- discuto o problema social. Enfim, aceitar a idéia
ções que nos chegam? Neste caso, eu seria bas- de que, por razões ambientais, transitemos para o
tante pessimista. Temos muita dificuldade de nos decrescimento, significa que aquele que está em
organizar a partir de idéias novas. Todavia, as vi- cima não vai ganhar mais, mas aquele que está lá
sões catastróficas e pessimistas do mundo e que embaixo vai morrer de fome mesmo.
desabam sobre as nossas cabeças são exageradas, Prefiro a definição de sociedades do Ser, com
sobretudo perigosas, porque nos paralisam. Na a partilha equitativa do Ter. Uma vez que consiga
época que eu vivia em Varsóvia, em um momento uma partilha equitativa do ter, eu posso frear o
difícil, no bloqueio de Berlin, circulava a seguinte meu crescimento material e abrir espaço para o
piada: o que fazer em caso de um ataque nuclear? crescimento imaterial. É o Homo Ludens no lugar
A resposta era: sem entrar em pânico, pausada- do Homo Faber. Se não assegurarmos a todos um

Sustentabilidade em Debate - Brasília, v. 2, n. 2, p. 167-176, jul/dez 2011 175


Prof. Ignacy Sachs

nível de consumo imaterial razoável, é muito difí-


cil brincar com a proposta de decrescimento, a
menos que ela venha fortemente vinculada a uma
proposta de expropriação daqueles que têm o ex-
cedente. Porém, nos debates sobre o decrescimen-
to, não constatei propostas de expropriação dos
ricos. Não dá para discutir o decrescimento dessa
maneira.

A Rio + 20: situação favorável


devido à crise

É muito difícil saber como a Segunda Cú-


pula da Terra, a Rio +20, vai funcionar. Qual vai
ser o seu resultado dado o contexto internacio-
nal. Como já disse, esse contexto internacional é
contraditório. Por um lado, há um interesse forte
de vários países industrializados em não levar o
debate a suas últimas conseqüências, porque eles
têm outros temas prioritários nesse momento.
Porém, isso significa que há um espaço a ser ocu-
pado e muito vai depender da capacidade política
dos países emergentes constituírem nessa confe-
rência um bloco atuante. Seria muito bom que
houvesse uma aproximação do Brasil e da Índia
sobre certo número de temas e uma clara pro-
posta de cooperação.

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