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Uma
entidade maligna, controlada por magia.
Neste texto buscamos identificar a verdadeira natureza do enigmático deus Sete. Muito se tem escrito sobre esse deus,
mas, a nosso ver, a maioria dos egiptólogos ainda não atinou sobre sua verdadeira essência e aparência.
Introdução
As divindades dessa antiga religião eram em geral simbolizadas por animais que
povoavam o ecossistema da região nilótica e o da circunjacência desértica, herança de longa
tradição totêmica. Os desertos e os povos estrangeiros com os quais o Egito mantinha
fronteiras também eram vistos como agentes do Caos, outra perigosa ameaça, portanto, à
vida do país como um todo.
Sete (Seth, stH), Setekh (stx) ou Sutekh (swtx), entre outras variações nominais
adotadas ao longo do tempo, era o deus dos desertos, da rebeldia, da violência, das
tempestades e das terras estrangeiras. No mito osiríaco, criado em sua forma básica
durante o século XXIV AEC, ou mesmo antes, Sete era retratado de maneira negativa,
usurpador do trono do Egito, assassino do irmão Osíris (wsir) e perseguidor do sobrinho
Hórus (Hrw) (TE VELDE, p.27 a 80). Na verdade, Sete já seria conhecido desde tempos
remotos, sendo a ele associada a imagem de um jumento (aA) selvagem (equus africanus),
animal originário das regiões desérticas do Sudão e da Somália.
O jumento selvagem era tão mal visto e temido pelos ancestrais dos egípcios,
que sua figuração em pinturas rupestres localizadas no Deserto Oriental (c. 3800 AEC) –
numa área delimitada pelo rio Nilo, a oeste, e pelo mar Vermelho, a leste, e entre Wâdi al-
Hammâmât, ao norte (antiquíssima trilha que conectava o Egito às minas de ouro do
deserto e ao porto situado às margens do mar Vermelho) e Wâdi Shait, ao sul – vinha
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frequentemente acrescida de um apêndice, feito com traço reto e curto, cravado na parte
posterior da cabeça do animal, traço interpretado por estudiosos como sendo flecha ou
dardo, elemento contundente adicionado pelos artistas primitivos à imagem do jumento na
tentativa de anular por meio de um ato mágico simpático a malignidade que poderia advir
das representações desse tipo de alimária (HUYGE, 2009) (fig. 1).
A razão desses grafitos é tema de intensos debates entre os especialistas. “São-
lhes atribuídos valores variados, que se relacionam com atos culturais ou religiosos, práticas
mágicas ou funerárias, talvez totêmicas ou xamânicas ( VANDENBEUSCH,2020, p.52 e 53; trad. do
Autor).
por se tratar de um deus poderoso e atemorizante, sua real aparência não podia ser
abertamente revelada. Suas feições características teriam sido então modificadas com a
intenção de atenuar ou suprimir a perniciosidade potencial emanada de sua imagem, com
o objetivo de ser exercido um controle mágico sobre o deus, direcionando o seu poder divino
em prol da estabilidade do Universo e da concórdia entre os habitantes do Egito. Daí a
maioria dos pesquisadores, entre eles o arqueólogo Herman te Velde (1932-2019) no seu
Seth, god of confusion (1967, p.13-26), declararem que o “misterioso” animal setiano, chamado
sha (SA), nunca existiu na natureza ou que a imagem bimórfica (corpo humano com cabeça
animal) do deus correspondente resultava de uma intrincada combinação quimérica de
detalhes anatômicos provenientes de diferentes espécies, até mesmo algumas bem
exóticas, de animais que povoavam o continente africano.
Conforme Philip J. Turner, em sua tese denominada Set – a misrepresented god
in the ancient Egypt an pantheon? (2012, p.23), citando Alexander Scharff (1892-1950), o
animal de Sete sob a forma asinina já existia no período amretiano, também chamado
Nagada I (c.3900-3600 AEC). Da arte rupestre, o jumento passou a ser representado, ao lado
de outros animais selvagens, em vários tipos de artefatos rituais, notadamente em pentes
de marfim, tal como o exemplar que hoje está depositado no Museu Metropolitano de Arte
de Nova York (MET), EUA, cuja descrição feita pela instituição afirma que o animal que o
decora é um “animal selvagem não identificado”, mas que reproduz com certeza a figura
simplificada de um jumento, cujas longas orelhas pontudas em pé se acham danificadas
(fig. 2), animal em tudo semelhante ao do pente da mesma época pertencente ao museu de
Manchester, Reino Unido, ilustrado no trabalho de Turner (p.27, fig.4).
A função desses pentes encontrados em sepultamentos pré-dinásticos ainda
não está bem esclarecida, mas suspeita-se de uma função religiosa e mágica, de provável
natureza apotropaica. Além dos pentes de marfim, a figura do jumento ocorre no período
Nagada em outros itens de suposta função cerimonial: em relevos nas ditas paletas de
cosméticos, a Paleta Líbia (fig. 3), por exemplo, e em cabos entalhados de facas rituais. No
exemplar n. EA 68512, pertencente ao Museu Britânico, de Londres, por exemplo, dois
asnos foram identificados pela egiptóloga Marie Vandenbeusch (2020, p.47, fig.11), peças em
que a presença do jumento parece estar sempre conectada à imagem perniciosa do deserto,
região temida pelos antigos egípcios por ser vista como uma fonte contínua de malignidade.
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Conforme relata Turner (p.28), durante o período Nagada III (3300 a 2900 AEC),
três centros egípcios se destacavam. No Alto Egito, Nubt foi ultrapassada em importância
por Hieracômpolis, originalmente denominada Nekhen (nHn), a cidade do falcão, referente
a uma deidade mais tarde assimilada ao deus Hórus. Das ruínas desse assentamento
proveio a danificada cabeça da maça cerimonial do rei Escorpião II (Serket, srqt), da época
protodinástica, também chamada Dinastia 0 (c. 3200 AEC), encontrada por James E. Quibell
(1867-1935) e Frederick W. Green (1869-1949) durante a temporada de escavação de 1897-
1898.
Nessa bola de pedra, hoje no acervo do Ashmolean Museum, há entalhes
figurando alguns estandartes territoriais coroados por representações de deuses locais. De
acordo com Turner (p.28), citando a arqueóloga francesa Béatrix Midant-Reynes, autora do
livro Préhistoire de l'Égypte. Des premiers hommes aux premiers pharaons (1992), esses
estandartes representariam tribos sulistas conquistadas pelo rei Escorpião. Turner ( p.28)
considera essa explicação assaz relevante, porque existem na maça dois estandartes com a
provável figura do deus Sete em seu aspecto zoomórfico.
A divindade, também identificada pelo arqueólogo Te Velde no seu Seth, god of
confusion (p.8), mostra-se no objeto, em nossa opinião, ainda sob a silhueta conservadora
de um asno, desprovido de certos aspectos setianos que aparecem na escultura encontrada
na tumba 721, datada de Nagada II, à qual já nos reportamos, embora nem todos os
egiptólogos talvez tenham se apercebido desse fato: atarracado, corpulento, com focinho
largo e rombudo voltado para baixo. Porém, trata-se de um animal asinino magicamente
docilizado, conforme o sortilégio presente nos petróglifos neolíticos. Suas orelhas
mostram-se direitas e cortadas horizontalmente nas pontas, enquanto a cauda pendente
típica do jumento está substituída por uma seta cravada em seu lombo, não de modo
vertical como será futuramente, mas em posição oblíqua. A extremidade da arma deixa
evidente ser a ponta posterior de uma flecha, bifurcada e providas de penas (fig. 5).
Em nosso modo de ver, esta imagem é importantíssima, porque formalmente
estabelece a transição entre o jumento selvagem com o pescoço cravado com dardo ou
seta, gravado nas pedras do Deserto Oriental (fig.1), e o animal setiano plenamente
integrado ao panteão egípcio. Ou seja, a terrível deidade do deserto já se encontrava
naquela altura domada por recursos mágicos que se aperfeiçoariam e perdurariam nos
milênios posteriores. Enquanto a peça da tumba 721, por lhe faltarem justamente os
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troncudo” (trad. do Autor). Descrições essas muito próximas uma da outra e muito
dessemelhantes da figura por nós conhecida como sha: “um animal parecido com um
gracioso canino, com um focinho [fino] curvado para baixo do Antigo, Médio e Novo
Império” (Taylor, p.2.; trad. do Autor). A essa descrição básica, poderíamos acrescentar o fato
de que habitualmente o animal ainda apresentava uma estranha cauda aprumada e
retilínea, provida de extremidade em forma de forquilha (Gardiner E 20 e E 21), aparência
que disfarçava a velha seta cravada na garupa do asno visto na antiga maça cerimonial do
rei Escorpião (fig. 6).
Constatamos assim que as restrições mágicas de origem neolítica impostas à
imagem dos jumentos passaram a ser aplicadas ao aspecto zoomórfico do deus Sete e ao
próprio deus em sua forma bimórfica, no intuito de impedir que sua representação liberasse
possíveis emissões de perniciosidade (fig.7).
Por se tratar de uma das divindades principais da religião egípcia, chefe do
panteão cultuado na cidade de Nubt – segundo Turner (p.24), citando a arqueóloga alemã
Elise Jenny Baumgärtel (1892-1975), autora do livro The Cultures of Prehistoric Egypt (1955) –
, e partícipe da enéade (psDt) adorada em Heliópolis (aiwnw), Sete não podia certamente
ser neutralizado do mesmo modo como era feita a desativação mágica dos jumentos do
período neolítico ou do animal sha durante o período dinástico. A condição divina de Sete
decerto impedia que sua imagem bimórfica fosse ameaçada por uma simbólica arma
disfarçada como se fazia com sua forma animal. Afinal, Sete era uma das deidades egípcias
de maior grandeza, em honra do qual se construíam templos e se constituíam sacerdócios,
e que ao longo do tempo adquiriu um significativo séquito de adoradores, entre eles, como
já dito, os soberanos hicsos e os faraós raméssidas, além dos membros da colônia semita
que existiu no lado oriental do delta durante o Médio e o Novo Império.
As alterações físicas então introduzidas em sua aparência não poderiam ser,
porém, inteiramente fortuitas e descaracterizadoras, pois senão estaria sendo criada a
imagem de um novo deus, ao invés de ser exercido o domínio sobrenatural sobre uma
divindade conhecida que, para o bem ou para o mal, ocupava um lugar de relevância dentro
do panteão egípcio. A solução era, portanto, introduzir modificações a tal ponto dosadas
que permitissem ao deus continuar sendo reconhecido e dignificado como tal, não apenas
pelos sacerdotes, mas também por seus devotos.
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O animal setiano
variações tanto nas proporções das diferentes partes do corpo de sha, quanto nas feições
do deus quando este assumia a modalidade bimórfica, como minuciosamente destrinçou
Taylor em sua retromencionada tese de doutorado.
Quanto à cauda, adquiriu ela no decurso de séculos aspectos sucessivos. O mais
significativo é aquele que deu ao apêndice pós-anal de sha a forma de uma seta, com
terminação bifurcada e provida de penas (fig. 11), depois simplificada em simples
bifurcação. Essa opção formal aludia diretamente ao expediente mágico adotado milhares
de anos antes nos petróglifos do Deserto Oriental do Egito, na Rocha dos Abutres, em El
Kab, por exemplo (fig. 1), pois ao ferir a imagem teriomórfica do deus com um instrumento
contundente de caráter mágico, a divindade rebelde ficava imediatamente subjugada à
ordem cósmica de Maat (mAat).
Ao que tudo indica, os escribas nunca se esqueceram do significado da cauda
mágica inserida na figura do animal sha. Taylor (p. 85), por exemplo, reparou que durante o
1º Período Intermediário (2181–2055 AEC) em textos escritos em hierático, lançados tanto em
papiro quanto em outros objetos, quando era empregado o determinativo do deus Sete
sentado (Gardiner C7), vinha ele acompanhado de cauda, o que não era habitual. O
estudioso não explica o porquê da ocorrência, mas nos parece claro que a cauda ajuntada
ao determinativo tinha a intenção de reforçar magicamente a sua neutralização.
Esses recursos mágicos para conter o poder maligno de entes considerados
perigosos ou de mau agouro eram muito frequentes nas religiões da Antiguidade. No Egito
mesmo, podemos evocar à guisa de ilustração, entre outros exemplos, o escorpião, animal-
símbolo da deusa Sélkis ou Serket (srqt), cuja aparição no panteão egípcio remonta ao final
do Antigo Império (c.2700-2200 AEC), animal que, ao ser representado sobre a cabeça da
deusa, também sofreu mutação em parte de sua estrutura física. Perdeu as pernas e a cauda
peçonhenta, de modo a ficar desativada a periculosidade do aracnídeo (Gardiner L7) (fig.
12).
Séculos antes, no tempo do rei Escorpião, o animal que definia o nome do
soberano ainda era retratado de maneira realista, pois assim aparece na cabeça da maça
cerimonial pertencente a esse rei, porém, a partir do Antigo Império, o aracnídeo foi
submetido à influência da magia, como também se observa em um dos relevos
provenientes da câmara sul do complexo funerário do rei Djoser (Dsr-r) (séc. XXVIII-séc.
XXVII AEC). Ao lado do rei, há um cetro was personificado que ostenta um escorpião sem
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pernas e com o corpo muito disforme, cujas pinças estavam imobilizadas por meio de
presilhas, representando o símbolo de Serket (fig. 13), a deusa protetora dos faraós no
tempo das pirâmides. O corpo corrompido do animal não buscava reproduzir nenhuma
forma existente na natureza, deixando claro que a deformação tinha caráter mágico, tal
como acontecia com as alterações setianas. Revelando assim uma atitude muito diferente
da que sucedia com os animais fantásticos de índole benéfica que também povoavam a
imaginação egípcia, tal como, o serpopardo e o leogrifo com cabeça de falcão (falcogrifo,
seria a denominação mais precisa), por exemplo, esses, sim, compostos com partes de
outros animais existentes na natureza e cuja origem remontava à cultura desenvolvida na
Mesopotâmia, no caso do serpopardo, e na região iraniana, no caso do falcogrifo. Além desse
recurso, havia outro muito utilizado: o mutilamento deliberado de certos hieróglifos que
reproduziam figuras tidas como perigosas ou nocivas.
Huyge argumenta (p.301) que do Médio Império em diante o jumento no Egito
foi "erradamente" identificado com o animal setiano e que o deus, "uma criatura puramente
imaginária ou um animal híbrido" (trad.do Autor), passou a ser regularmente representado
com a cabeça de jumento. Baseou-se para fundamentar tal asserção na convicção de
inúmeros egiptólogos que, por infelicidade, não souberam reconhecer de maneira
adequada na figura do deus Sete e do animal sha, dominados por meio da magia (i.e., com
a aparência cuidadosamente alterada), o velho jumento das pinturas neolíticas, ao contrário
do que estamos tentando fazer aqui.
No Médio Império eram usados também os chamados marfins mágicos, em
formato de meia-lua, em que se veem, por vezes, gravadas cabeças de jumentos, entre
outros desenhos. Alguns especialistas preferem reconhecer cabeças de lebres em algumas
dessas ilustrações. Mas, de fato, o exemplar existente no MET de Nova York, o do Louvre,
de Paris, e o do Museu Britânico, de Londres (VANDENBEUSCH, p. 167, figs. 70 e 71; p. 168, fig. 73),
a nós, não deixam dúvidas de que se trata do deus Sete sob a forma de jumento. Além de
demônios que atacam prisioneiros indefesos, esses marfins de função apotropaica trazem
outros seres fantásticos, como serpopardos e leogrifos, animais agressivos, mas benignos,
que se investiam contra as feras do deserto, ao lado de leões e outros felinos, nas antigas
paletas cerimoniais do período pré-dinástico (ver a Paleta dos Dois Cães, do Ashmolean
Museum, por exemplo) (fig. 14). As imagens desses marfins apresentam um clima de
violência e tortura que admitimos ser bem setiano, e a presença do deus Sete nesses
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talismãs não deveria causar nenhuma estranheza, afinal tinha, entre outros epítetos citados
nos encantamentos existentes nos interiores das pirâmides, o de “grande em magia [Ur-
hekau; wr-HkAw] de Ombos [i.e.,Nubt] “ (ALLEN, p. 39 e 40) (fig. 14 a).
A retomada da figura do jumento, que seria em nossa visão a aparência
verdadeira de Sete, é ilustrada por Taylor em sua tese (p.68 e 69) com algumas imagens de
inscrições hieráticas pintadas em sarcófagos da 12ª dinastia (1991- 1802 AEC), em que o
deus em sua forma zoomórfica (Gardiner E 21) ostenta a cabeça de asno, acoplada ao
tradicional corpo de canídeo, em que se transformara o animal sha. A razão dessa ousada
recuperação imagética não saberíamos por ora esclarecer, embora esteja provavelmente
ligada a uma sectária devoção ao deus desenvolvida na região de Assiut, de onde são
provenientes os caixões mortuários em que se usavam os hieróglifos setianos com cabeça
de jumento (VANDENBLEUSCH, p.166). Taylor também reparou em certas particularidades no
uso da imagem de Sete nos caixões dessa proveniência ( TAYLOR, p. 64,65,71). Embora
retratado com sua autêntica cabeça, nessas inscrições Sete não passa impune. As orelhas
em algumas ocasiões cortadas, o corpo de canídeo e o realce dado à cauda do animal,
extremamente alongada e às vezes notavelmente encurvada, chamam a atenção, deixando
claro que sha embora ostentando sua verdadeira aparência, continuava sob o estrito
domínio da magia que o tornava inofensivo. A esse respeito, Taylor nota, como já havia feito
Te Velde, que essas representações são algo ”geralmente associado a representações do
Período Tardio” (p.70) (fig. 15).
Acerca do animal sha representado nos ataúdes estudados por Taylor (p. 48 e 49),
o autor faz uma observação que atrai nosso interesse. Ele comenta a notável variação
havida em relação à forma adotada do animal sha nessas inscrições. Em certos
encantamentos, o animal setiano aparecia neutralizado por meio de uma faca na cabeça.
Em dois caixões, porém, no texto do encantamento 50, em que Sete ameaçava Osíris, o
animal deitado sobre o ventre (Gardiner E 21) aparecia sem cauda. Sobre isso, Taylor
levanta a possibilidade de o escriba ter considerado que, ao remover a cauda ereta do
animal, "um símbolo da agressão de Sete", segundo vários autores citados por Taylor, o
escriba tornava o animal inofensivo dentro do encantamento.
Essa ocorrência não deixa de ser curiosa, porque, como vimos, a cauda em forma
de seta ou bifurcada era um dos mais notáveis sinais da magia religiosa que controlava Sete
e não a marca da agressividade de Sete, e remover a cauda desse animal não era o mesmo
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que remover as pernas e o aguilhão de um escorpião. Neste último caso, o aracnídeo ficava
inteiramente desativado, sem poder deslocar-se e sem veneno. No caso de sha, ao
contrário, a seta era um dos sinais de que o animal estava controlado por magia sacerdotal,
e se o escriba a removia, é porque devia saber que a cauda representava uma arma, uma
flecha disfarçada. E talvez tenha agido assim para deixar Sete desprovido de agressividade,
mas ciente de que ao fazer isso ainda restavam outras marcas que garantiam o controle
mágico sobre o animal sha, como o corpo de canídeo, as orelhas cortadas e retas e o focinho
fino e curvo.
O uso do animal setiano como hieróglifo determinativo não deixa de ser um
indicador de que a perversidade do jumento do Neolítico continuava latente no animal sha.
Os hieróglifos que o representavam (Gardiner E 20 e E 21) eram comumente usados como
determinativo em palavras relativas ao Caos ou de sentido negativo, ligadas à ideia de
sofrimento, violência e perturbação, tais como: doença, raiva, tempestade, pesadelo,
confusão etc. Nesse caso, o determinativo estaria sendo usado para enfatizar “a violência,
o poder e o terror da palavra ou da ideia” (TAYLOR, p.53).
No Médio Império, tornou-se também comum na escrita da palavra aA
(jumento) a substituição inversa: o determinativo referente a esse animal (Gardiner E7)
começou a ser trocado pelo determinativo do animal sha (Gardiner E 20 ou E 21), sobretudo
em textos funerários, religiosos e mágico-medicais, conforme esclarece a egiptológa do
Museu Britânico Marie Vandenbeusch, em seu livro Sur les pas de l'âne dans la religion
égyptienne, publicado no ano de 2020 em Academia.edu (p.140). Procedimento gráfico que,
aos nossos olhos, confirma a identidade havida entre o jumento, o animal sha e o próprio
Sete, três criaturas que compartilhavam da mesma natureza asinina.
Em diversas passagens dos Textos das Pirâmides (do início do séc. XXV a 2055
AEC), dos Textos dos Sarcófagos (c. 2100 AEC) e do Livro dos Mortos (c.1550-c. 50 AEC), são
os jumentos taxados de criaturas maliciosas, verdadeiros epítomes do mal, e explicitamente
considerados como seres que punham em perigo a segurança da sagrada barca solar
noturna, chamada Mesektet (msktt), ao cruzarem com ela no inframundo, quando esta
rumava em direção ao amanhecer (HUYGE, p. 301).
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Em sentido oposto, nesses mesmos Textos das Pirâmides, Sete, que não
deixava de ser um jumento, era mencionado como um dos passageiros da barca de Rá. De
acordo com o Livro dos dois Caminhos (datado do Médio Império), o deus ocupava um lugar
na proa, ao lado de Hórus e Ísis (Aset; Ast). Não lhe era, porém, reservada uma tarefa
específica na embarcação solar (AWADALLAH, 2019, p.10). Ao contrário do que aconteceu no
Novo Império (c.1550–1070), quando a Sete foi conferido um comportamento
aparentemente contraditório, pois, embora eterno desafiador de Maat, a ele foi atribuído
um ato de expressiva grandeza heroica, ao ficar responsável por evitar que, no mundo dos
mortos (dwAt), a cada noite, o deus Rá (ra), instalado em sua barca, fosse mortalmente
atacado por Apófis (aApp), a monstruosa serpente agente do Caos, que todas as noites
renascia para tentar eliminar o maior deus solar dos egípcios (TE VELDE,1967, p. 81 a 99). Esse
novo papel divino atribuído a Sete, que recebeu o título de “grande em força na barca dos
milhões [de anos]” (HART, p.145), teria sido bastante promovido durante a dinastia
raméssida (c.1292-c.1077), especialmente por Ramsés II (ra-msi-su) (reinado entre 1279 e
1213 AEC), por razões políticas e religiosas (GAD,2021, p.46).
Entretanto, mesmo suprimindo Apófis a cada noite e se tornando a cada noite o
salvador de Rá, Sete, o deus rebelde, por dispor de um passado que o desabonava, não
contava com as condições necessárias e suficientes para receber a total confiança dos
deuses, dos vivos ou das almas dos mortos. O encantamento 175 dos Livros dos Mortos (Ru
nu peret-em-heru; rw.nw.prt.m.Hrw), cujo nome original traduzido seria algo como
Manifestação para a luz do dia, revela o temor que a alma de Sete inspirava nos ocupantes
da barca do deus-sol. A alma (ba; bA) de um morto que se dirigia para o Além como
passageira da barca solar ao perguntar a Atum se a alma de Sete também seria conduzida
ao Oeste (Iment, imnt, o mundo dos mortos) recebeu como resposta que ele, Atum, a tinha
colocado sob guarda para que Osíris não a temesse (TURNER, p.104 e 233).
Esse encantamento, que não sabemos quando foi acrescido à coleção para uso
dos mortos, deixa entender que de fato Sete não seria o deus ambíguo, com ações
contraditórias, ora violentas ora magnânimas, tão comumente descrito. Não seria o deus
temido por sua malevolência, mas que, quando necessário, sabia agir com generosidade e
heroísmo em caso de perigo, em prol da manutenção do equilíbrio cósmico de Maat, ao
salvar a barca de Rá e ao destruir o grande agente do Caos. Em nossa opinião, não é essa a
chave interpretativa correta para a compreensão das atitudes de Sete.
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A interpretação que propomos aqui é que, ao salvar o deus solar e sua barca, o
deus rebelde não teria agido por decisão própria, mas coagido pela magia religiosa que o
dominava por meio da alteração de sua aparência. Era a magia que impedia o lado mau do
deus de se manifestar, colocando-o a serviço do benigno deus-sol, que o tinha acolhido e
convidado a segui-lo em sua barca, após a derrota de Sete perante Hórus, conforme o mito
do conflito entre os dois deuses (TE VELDE,1967, p.108). Por ter em si uma natureza
intrinsicamente malévola, de todos conhecida, não adiantava praticar o supremo bem de
promover a salvação de Rá e, por conseguinte, de todo o Universo, pois tal gesto, mesmo
de dimensão grandiosa, não era suficiente para suprimir o horror que Sete causava em
todos, tanto humanos quanto deuses.
A propósito do que afirmamos acima, chamamos a atenção para uma passagem
de Taylor (p.17) em que esse autor discorre sobre a discussão que Eugenio Cruz-Uribe (Stx aA
pHty Seth, God of Power and Might ,2009) estabeleceu a respeito da sugestão de Gay Robins (The
Mas nem sempre foi assim, muitas tumbas, templos e templos mortuários
trazem imagens de Sete em sua tradicional aparência bimórfica, assim como há nesses
locais nomes e palavras escritas em hieróglifos acompanhados de determinativos setianos.
Para confirmar isso, bastar consultar o riquíssimo levantamento iconográfico anexado no
fim da tese de Taylor (p.562 e ss.). Havia, porém, momentos em que maiores precauções
foram adotadas. No caso da tumba de Seti I, por exemplo, havia uma imagem do deus Sete
representada sob forma antropomórfica, à qual nos referimos páginas atrás. Chamada
”divisor do submundo”, a divindade tomava aqui uma coloração ctônica, mas havia outra
imagem de Sete como “suas duas faces”, neste caso, a deidade reunia a essência dos deuses
Sete e Hórus, também chamados em alguns encantamentos, depois da reconciliação, os
dois senhores ou referidos como irmãos (TAYLOR, p.36). A representação da divindade era
bicéfala. Nessa situação, a cabeça de Sete tradicional era consentida, porque o deus de duas
faces resultava numa manifestação equilibrada e benigna, graças à presença compensadora
da cabeça do deus-falcão (fig. 16).
E o que estava por trás disso tudo era, sem dúvida, o temor que a deidade em
sua aparência animal magicamente disfarçada infundia até mesmo entre seus seguidores.
Podemos deduzir, portanto, que Sete só era uma deidade inteiramente confiável e
benevolente, em apenas duas situações: quando se apresentava sob a forma inteiramente
humana, ou sob a aparência do Sete de duas faces (também chamado Antewy, ao qual
retornaremos adiante), por estar, no segundo caso, o lado negro setiano contrabalançado
com a face benfazeja do deus Hórus. Mais à frente, veremos que, em templos e santuários
localizados em oásis, surgiria a imagem do deus Sete com uma única cabeça de falcão. Uma
vez suprimida cabeça setiana, durante a fase persecutória que o deus sofreu durante a era
tardia e a ptolomaica, devemos deduzir que a divindade se transformava, por conseguinte,
em entidade essencialmente benévola*.
* Apesar das meticulosas precauções mágicas tomadas na tumba e no templo funerário de Seti I, notamos, pelo levantamento
iconográfico elaborado por Taylor para a sua tese, que na tumba desse faraó (K17), em sua capela situada em Kanais e em seu próprio
templo mortuário abundavam as imagens de Sete, tanto bimórficas como em forma de determinativos setianos. Isso parece demonstrar
que as prevenções com a influência negativa de Sete teriam ocorrido mais tarde, provocadas talvez por desvelos religiosos adotados
posteriormente, que passaram a evitar a imagem do deus sobretudo em ambientes dedicados a Osíris, deus por ele assassinado. A nova
atitude em relação a Sete, durante a dinastia raméssida, no entanto, não implicou na eliminação das imagens divinas executadas
anteriormente.
Turner ressalta que foi no período da 19ª dinastia que Sete provavelmente se
mostrou mais popular. Como os faraós raméssidas se haviam originado do delta do Nilo,
numa família de tradição militar, eles adoravam Sete como um deus familiar e por causa
disso quiseram honrá-lo não apenas em sua região de origem, mas em todo o Egito,
tornando-o o protetor dos novos soberanos.
Admiravam sua força e desejavam ser a ele comparados quando foram chamados
para liderar seus exércitos contra os invasores estrangeiros, embora inversamente
ao mesmo tempo pudessem reconhecer Sete como sendo o deus do panteão egípcio
que representava esses mesmos estrangeiros. Este aparente conflito na posição de
Sete também pode ser reconhecido no fato de que, enquanto o papiro Chester
Beatty [I], que descrevia o conflito entre Hórus e Sete, datava desse período, Sete
era na mesma época frequentemente descrito num sentido negativo nos
encantamentos do Livro dos Mortos, podendo, porém, ser descrito nesses mesmos
encantamentos como uma força positiva, por exemplo, quando ele defendia a barca
solar de Rá contra a cobra Apófis.
Este lado mais positivo do caráter do deus também se refletia em seu nome, sendo
incorporado não só aos dos faraós, mas também aos da população em geral,
indicando que ele não era apenas um deus do Estado egípcio, mas que as pessoas
comuns também o adoravam como um deus local ou deus pessoal.
(TURNER, p.109; trad. do Autor).
A situação honrosa de Sete propagada pela 19ª e pela 20ª dinastia (1292-c.1077
AEC) contudo não perduraria, pois todos os autores por nós consultados concordam que a
proscrição do deus Sete se iniciou no Egito a partir do Terceiro Período Intermediário
(c.1077-c.664). Aos poucos, o orgulhoso país imperialista que fora o Egito durante o Novo
Império perde força política e econômica e mergulha na submissão a outros povos.
Também nessa mesma etapa, a situação do deus Sete começa a mudar. Por ser
deus da violência, era considerado um deus da guerra e visto como um protetor da terra do
Egito, mas com o país sofrendo invasões e sendo governado por estrangeiros, os poderes
protetores de Sete decerto começaram a ser questionados. A nova visão sobre o deus,
porém, não era unânime. Como deus do deserto, Sete continuou a ser adorado em oásis e
em distantes localidades. Aí a fé no deus não decaiu. Pelo contrário, a imagem negativa do
deus foi depurada e um novo Sete surgiu.
Exemplo disso ocorreu durante a 25ª dinastia (744-656 AEC), também chamada
dinastia núbia, no reinado do rei cuxita Piye ou Piankhi (piy ou p-ankh-i-i), morto em 714,
18
numa estela erigida no templo de Sete (então chamado Sutekh) situado no oásis Dâkhla,
peça hoje chamada a Pequena Estela de Dâkhla, exibida atualmente no Ashmolean Museum.
Na placa de pedra, danificada no alto, do lado esquerdo, vê-se o deus Sete de pé diante de
uma mesa de oferendas, sob nova aparência, com a cabeça de falcão coroada com um disco
solar e com o was na mão esquerda. Na frente da imagem há a inscrição: ”Enunciado por
Sutekh, grande em força, filho de Nut” (TURNER, p.114) (fig. 17).
Nos lugares em que em estelas anteriores era usado um dos hieróglifos
determinativos com a figura do animal sha para grafar o nome do deus Sete, na estela acima
citada o seu uso foi evitado. O que parece indicar uma mudança de atitude em relação a
Sete, observa Turner (p.114). Enquanto isso, no vale do Nilo a menção a esse deus tende a
declinar.
Ousaríamos afirmar que na pequena estela de Dâkhla surpreendemos o início da
heroicização de Sete, ocorrida nos oásis do Egito. Sua imagem mudara inteiramente, não
era mais o perigoso deus jumento, magicamente dominado de antes, pois agora estava
transmutado em deus falcão.
Supomos que a nova imagem de Sete tenha sido herdeira de uma deidade
chamada Antewy, criada, ou adaptada, a partir do mito da disputa de Sete e Hórus, que
terminava com a reconciliação de ambos os deuses (TE VELDE, 1967, p.63 a 73). Uma vez
reconciliados, formaram uma parceria divina, unindo as qualidades antagônicas de ex-
inimigos. Frequentavam, por exemplo, o sema-tawy (zmA-tAwi) (o emblema da reunião dos
dois Egitos) no tempo da 12ª dinastia (c.1938–c.1756), durante o reinado (c.1971–c.1926
AEC) de Sesóstris I (z-n-wsrt), em que Hórus representava o Baixo Egito e Sete, o Alto Egito,
ambos ocupando o lugar do duplo deus Hapi (Hapy) (fig. 18), ou apareciam coroando e
protegendo conjuntamente o faraó Ramsés III (ra-msi-su) (fig. 19). Hórus, em seu papel de
bom governante, racional e competente, e Sete, no de agressivo guerreiro, defensor do país
contra os estrangeiros, ambas qualidades altamente necessárias ao ocupante do trono do
Egito.
Antewy, também identificado como Sete (TAYLOR, p.115), era considerado a
fusão desses dois deuses de naturezas contrárias e complementares, Hórus e Sete, tendo
por epíteto “suas duas faces”, apresentando-se sob a forma bimórfica, com a cabeça de
cada um dos dois deuses sobre os ombros, uma ao lado da outra, embora olhando em
direções opostas (fig. 16). A aparência de Sete como deus falcão, contudo, não era nova,
19
pois já se revelara num detalhe do traje faraônico de Tutmósis III (DHwti-msiw) (reinado
1479-1425AEC) representado em relevo do templo funerário (meados do séc. XV AEC) da
rainha Hatshepsut, em Deir el-Bahari, conforme podemos confirmar pelo levantamento
iconográfico existente na tese de Taylor (p.585, figs. 3.6.41 e 3.6.42).
Na fase de desprestígio de Sete, a aparência tradicional desse deus tendeu a ser
omitida, passando a figura divina de cabeça dupla, imaginamos, a ser representada apenas
com a cabeça de falcão, ficando assim a divindade desprovida do lado violento e escuro de
Sete, ou sendo canalizada toda a agressividade desse deus contra o monstro Apófis e outras
forças do mal.
E é assim que o vemos em belo relevo posicionado na sala hipóstila N do templo
de Hibis (Hebet, Hb), dedicado a Amon e localizado em Kharga, um dos sete oásis do Deserto
Ocidental. Edifício construído no VI século AEC, no tempo do faraó Psamético II (psmtk)
(reinado 585-589 AEC), reformado e ampliado durante o período persa, ao que parece sob
o reinado de Dario I (522-486 AEC) e de Dario II (423-c.405 AEC), e terminado sob Nectanebo
I (nxt- nb.f) (c.369-361 AEC) e Nectanebo II (nxt-Hr-Hbyt) (358-340 AEC), durante a 30ª
dinastia (TAYLOR, p.133).
Embora bastante danificado, o relevo em questão, datado do período
ptolomaico – de acordo com a análise técnica e estilística, a obra teria substituído outra mais
antiga por meio da reesculturação do relevo –, mostra-nos Sete sob a forma gloriosa de um
deus com cabeça de falcão, com amplas asas desdobradas, deixando ver por trás de seu
corpo humano uma parte do corpo e a cauda de um falcão. Ao ser retratado no ato de cravar
a lança na serpente Apófis (figs. 20 a e 20 b), contando com o auxílio de um leão, igualava-
se ao Hórus de Mesen (mnsn), atual Edfu (outro nome dessa cidade era Behedet, bHd.t), em
cujo templo, também proveniente do período ptolomaico (237-57 AEC), o deus solar com
uma lança transpassa o próprio Sete, sob a imagem vilanizada de um hipopótamo (fig. 21).
Se no deserto, a figura paladina de Sete atinge uma dignidade nunca dantes
alcançada, pois com um gesto impetuoso golpeia o monstro do Caos e salva Rá e, assim, o
Universo inteiro, no vale do Nilo, ao contrário, Sete será reduzido a vítima de um rápido
processo de demonização.
Provavelmente, foi a intensificação do culto osiríaco que deve ter dado início ao
processo de desqualificação de Sete, por tê-lo transformado em assassino de Osíris. No
entanto, esse processo passou por altos e baixos durante as várias fases do Egito Antigo,
20
conforme descreveu Taylor (p.338,390 e 393). Mas o que parece ter muito contribuído para o
rebaixamento final de Sete, levando-o ao nível de um demônio desprezível, foi a triste
história política do Egito, desenrolada desde antes do Período Saíta (664-525 AEC).
Depois da dinastia líbia (880-734 AEC), da dinastia núbia (744-656 AEC), da
invasão assíria (673-665 AEC) e da ocupação persa (525-330), Sete, sem dúvida, deve ter sido
encarado pelos egípcios como um vil traidor, que, como deus dos estrangeiros, beneficiava
os invasores inimigos, ao invés de proteger o Egito.
Como deus das terras estrangeiras, fora reverenciado por hicsos e por uma
colônia de sírios e cananeus estabelecida no leste do delta durante o Médio e o Novo
Império – período em que foi identificado com Baal Hadad e em que chegaram a ser
atribuídas a ele como consortes, além de sua própria esposa Néftis (Nebet-Het, nbt-Hwt),
duas deusas irmãs de origem semita, Anat e Astarte, também adoradas no delta nessa
época (ANAT; ASTARTE. Ancient Egyptian Religion World History Encyclopedia).
Agora, sua influência levantava suspeitas, ia longe o tempo em que protegia o
rei durante suas conquistas asiáticas, como o fizera com Peribsen* (pr-jb-sn), por exemplo,
que reinou em tempo incerto durante a 2ª dinastia (c.2890-c.2686 AEC). Soberano que
trazia no serekh**, não o seu nome de Hórus, mas o seu nome de Sete, tendo a figura de
sha como timbre, no lugar do falcão solar (TAYLOR, p.128) (fig. 22).
* De acordo com especulações, o faraó Peribsen seria originário da área do vale do Nilo entre Gebelin e Rifeh, a terra do deus Sete.
Rebelou-se e tomou o trono do Egito em nome do deus rebelde (Taylor, p.10). Isso é deduzido, ao que parece, a partir de selos de argila
com “ a mais antiga frase completa escrita em hieróglifos” achados na tumba desse rei. A frase dá entender que, graças a Sete, Peribsen
reuniu o Egito após tomar o poder.
* * Serekh era um tipo de cartela retangular em cuja parte inferior estava representada aquilo que se deduz ser a fachada de um primitivo
palácio real egípcio. Na parte superior, destinada à inscrição, vinha gravado o nome de Hórus do faraó. Desde o início, essa cartela tinha
por timbre o falcão do deus Hórus, mas o faraó Peribsen, como adorador de Sete, mandou inscrever no serekh o seu nome de Sete, tendo
como timbre o animal sha.
Turner também chama a atenção para o violento saque a Tebas (Wast; wAs.t) –
antiga capital egípcia que abrigava o mais importante templo do Egito, o riquíssimo templo
de Carnaque (Ipet-sut; ipt-swt), dedicado a Amon-Rá (imn-ra) –, ação perpetrada pelos
assírios em 663 AEC, apontada como responsável pelo intenso choque emocional que,
seguramente, deve ter acometido o povo egípcio.
Ele assim sintetiza a situação:
Infelizmente, seguindo as invasões assírias e até certo ponto as invasões persas no
Egito, as coisas estrangeiras passaram a ser vistas sob uma nova luz desfavorável.
A boa vontade anteriormente autoconfiante demonstrada pelos egípcios para com
os estrangeiros e coisas estrangeiras foram transformadas em ódio (Te Velde, 1967:
21
139). Os egípcios enfrentaram uma situação em que o país escolhido (tA mri) poderia
ser ocupado e saqueado por estrangeiros, e não surpreendentemente, este pavor e
descontentamento foram descarregados sobre Sete, que era o deus tradicional dos
estrangeiros.
(Turner, p.156; trad. do Autor)
pois os encantamentos que faziam referência à pessoa do deus ou foram reformulados para
que ele não fosse mencionado ou foram simplesmente suprimidos (TAYLOR, p. 79 e 80). Seu
nome e efígie também passaram a ser apagados de muitas inscrições antigas, desde os
túmulos até os grandes templos, como é o caso do de Carnaque e de Medinet Habu, como
Taylor o demonstrou. E o mesmo aconteceu em inscrições efetuadas em monumentos
independentes, como é o caso da pedra Shabaqa, da 25ª dinastia (744-656 AEC), estela
proveniente do templo de Ptah (ptH) em Mênfis (Men-nefer; mn-nfr), em que a figura de sha,
que aparecia na sétima linha, foi apagada (TAYLOR, p.615, fig. 3.8.1), fato que remonta
aparentemente ao tempo de Psamético II (reinado: 595–589 AEC) ou de Psamético III
(psmtk) (reinado: 525 AEC), faraós nativos pertencentes à 26ª dinastia, que substituiu a
dinastia núbia (Shabaka Stone. WIKIPEDIA en.).
Ao longo do período ptolomaico e do romano, Sete aparecia como jumento, ou
era figurado sob a forma de outros animais a ele relacionados, igualmente tidos como
revoltantes, tais como, hipopótamo, crocodilo, tartaruga e porco, entre outros.
E nas cerimônias religiosas desenvolvidas em templos faraônicos importantes,
como no templo de Edfu (construído entre 237 e 57 AEC), dedicado ao inimigo Hórus, e no
de Dendera (erguido entre 57 AEC e c.37 EC), antiga Iunet (jwn.t), destinado à deusa Hator
(Hwt-Hr), esposa de Hórus – templo em que havia também no terraço da cobertura uma
capela consagrada a Osíris, divino sogro da deusa a quem era dedicado o templo (TAYLOR,
p.14) –, Sete, nos relevos, sob a imagem de um jumento, começou a ser afrontado por rituais
hostis, em que era expresso todo o sentimento de ódio e repulsa pelo antigo deus, seja por
meio de rituais mágicos de destruição, de natureza simbólica, seja por meio de imagens de
23
* Na verdade, o último templo pagão a ser fechado no Egito foi o construído durante o período ptolomaico na ilha de File (pA-jw-rq),
dedicado à deusa Ísis. Fato ocorrido em 537 EC.
aparência mágica do deus. Não deixa, porém, de ser curioso o fato de que, enquanto em
algumas partes do templo de Dendera, Sete sob a forma de um jumento amarrado ou em
forma bimórfica com cabeça de jumento sofria as humilhações devidas a um demônio
destestável, em outra parte do mesmo edifício, quatro versões do mesmo deus, sob títulos
devocionais diferentes, permaneciam honradas sob a forma antropomorfizada e com seu
nome grafado sem determinativos setianos, numa prova de que quando o deus era
representado sob a forma integralmente humana e sem a presença de hieróglifos
relacionados ao animal sha, as imagens tornavam-no suficientemente merecedor de ser
venerado como um verdadeiro deus.
A passagem da adoração de Sete para a sua demonização, portanto, não foi
nem absoluta, nem isenta de aparentes contradições. Pois em Edfu, também ocorria o
mesmo: ao mesmo tempo que era execrado como representante do Caos, era adorado
como salvador de Rá. Essa duplicidade de papéis antagônicos decorria tanto da natureza
maligna do deus que o ligava ao Caos, quanto do antigo controle mágico exercido sobre ele
que o obrigava a desempenhar um ato heroico de grande bravura.
Num relevo do templo de Edfu, localizado na câmara R, Sete apresenta-se
duplicado, ainda com sua forma bimórfica tradicional, a enfrentar a serpente Apófis. Num
canto o deus agarra o monstro pelo pescoço, enquanto em outro o mesmo deus apoiado
no corpo da serpente empunha a faca para ataca-la (TAYLOR, p.211, fig. 9.102). Nesse painel,
Sete, sob a aparência tradicional controlada pela magia, era exaltado como o vencedor do
Caos, sendo identificado nas inscrições não por seu nome divino, que naquela altura estava
proibido de ser escrito (e certamente pronunciado) nos grandes templos do vale do Nilo,
mas pelo epíteto de “touro vermelho”, enquanto no relevo da história do triunfo de Hórus,
gravado num dos muros externos que protegem o templo, Sete, sem ser identificado,
aparece na condição de um minúsculo hipopótamo sendo arpoado pelo deus solar vencedor
(TAYLOR, p.207, fig.9.94).
Ademais, em outras partes desse edifício sagrado o deus ou era reduzido a um
animal sha (Gardiner E21) agredido com faca, ou a um animal setiano com cabeça de
jumento e cauda, quase sempre, bifurcada, sob golpes de faca ou arpão (TAYLOR, ilustrações
da p. 617 a 622).
As imagens de Sete sob a forma de um canídeo deitado sobre o ventre com uma
cabeça de jumento eram provavelmente inspiradas naquelas datadas da 12ª dinastia, em
25
que o deus revelava sua verdadeira face num corpo de animal controlado por magia. Mas a
forma de um asno inteiro em idêntica postura, tendo quase sempre uma faca ou um arpão
enterrado no lombo ou na cabeça começaram a se tornar frequentes. Essas representações
estão presentes tanto em Edfu (TAYLOR, ilustrações da p.217 a 222), em Dendera (TAYLOR,
ilustrações da p.622 a 624), como no templo de Ísis da ilha de File (TAYLOR, ilustrações das p.620 ,624
e 625), construção erguida entre o séc. III AEC e o séc. II EC, e transferida, entre 1972 e 1980,
Plutarco, em sua obra aqui já citada, faz menção a rituais de destruição com
bolos decorados com a efígie de jumentos amarrados com uma corda (PLUTARCH, 1936, 363
a), e com o lançamento de animais vivos do alto de penhascos na cidade egípcia de Coptos,
antiga Gebtu, executados pela população local para exorcizar as forças do Caos ou para
apaziguar o espírito de Tífon, i.e. Sete (PLUTARCH,363 f), mas esse autor nada nos diz a
respeito dos sacrifícios cruentos realizados no interior dos templos.
Sabe-se que o Livro da Vitória sobre Sete, criado no século IV AEC e escrito em
hierático, é constituído de rituais mágicos de aniquilamento da figura do deus Sete, desde
então identificado como o responsável por todos os males do Egito. Um desses rituais tinha
por objetivo “causar a queda de Sete e seus seguidores”, e deveria ser cumprido todos os
dias em todos os templos de Osíris. Consistia o ritual em confeccionar uma figura de Sete,
feita de cera vermelha, com aparência provavelmente bimórfica, com cabeça de jumento,
tendo no peito escrito “Sete, o abominável” ou “Sete, o fraco” segundo Vandenbeusch
(p.213). Além disso, deveria ser desenhada com tinta fresca a figura do deus numa folha nova
de papiro ou confeccionar uma figura do deus em madeira de acácia ou madeira hema
(HmA). A figura de Sete deveria então ser amarrada com um tendão de vaca vermelha e
sofrer uma série de maus-tratos, como fortes pisadas, golpes de lança, cortes com faca e
finalmente tudo seria atirado ao fogo, sendo isso executado entre cusparadas e maldições
(The book of victory over Seth. ANCIENT THE EGIPTIAN TEXTES,1.3). Mas as cerimônias sacrificiais de
fato efetuadas nos templos faraônicos do período ptolomaico e posterior são-nos
praticamente desconhecidas.
A egiptóloga Marie Vandenbeusch conseguiu obter alguma informação a
respeito desse assunto em sua tese de doutorado, e o resultado de sua pesquisa pode ser
conferida nos próximos parágrafos (p. 221 a 223; traduzido e adaptado pelo Autor):
Segundo a autora, o objetivo básico dos sacrifícios cruentos realizados pelas
religiões da Antiguidade era fornecer alimento aos deuses, sob a forma de oferenda ou de
fumo produzido pela queima do que era servido sobre o altar. No Egito ptolomaico e
romano, as carnes oferecidas aos deuses podiam provir de sacrifícios de animais associados
a Sete. O sacrifício do asno, e também do touro, do órix, do crocodilo, do hipopótamo, da
tartaruga e da serpente se revestia de um caráter apotropaico já que todos esses animais se
identificavam com as forças do Caos e, por conseguinte, com Sete..
27
deve ser excluída a possibilidade dessa etapa servir igualmente para cozer as carnes do
animal, a seguir parcialmente servida aos participantes da cerimônia.
Certo animal, como o touro, podia facilmente se integrar na alimentação do
deus, dos sacerdotes e dos demais participantes. Mas o que acontecia com os animais como
o asno que não eram provavelmente consumidos de maneira habitual?
É difícil aceitar que, diante da possibilidade de escolha de outros animais
sacrificiais que poderiam ser oferecidos ao deus, tenha sido preferida para consumo a carne
de jumento.
Poucas fontes indicam o lugar em que era realizado o sacrifício do animal. Há
razões para crer que ele fosse abatido fora do templo, mas entre as muralhas sagradas. Isto
é confirmado por uma inscrição da 2ª capela osiríaca (lado este) do templo de Dendera, que
indica que o sacrifício se desenvolvia na entrada da sala pura (wbt), localizada no pátio do
templo. Este lugar, que designa o ponto em que eram produzidas as oferendas e todos os
elementos que seriam postos em contato com o deus, era o ideal para as preparações das
oferendas de jumento, como a carne, além de outras oferendas
Por outro lado, pode-se perguntar sobre a frequência desses rituais. Nada indica
que os sacrifícios apotropaicos deste tipo tenham sido efetuados com regularidade. O fato
de o asno – tal como outros animais maléficos – não ser geralmente consumido pelos
participantes, talvez não encorajasse o seu sacrifício cotidiano.
O touro, constando como outro representante de Sete, poderia ter sido
privilegiado nesse caso, talvez ao substituir o asno em certos sacrifícios, como sugere uma
cena de Dendera. Aí se vê um rei a transpassar um jumento, com o gesto similar às outras
cenas de massacre do animal. Entretanto, na cena de corte do animal sacrificado que segue
imediatamente, constata-se que é um touro que jaz amarrado, com cabeça decepada e cuja
carne é oferecida a Osíris, como confirmam tanto o texto hieroglífico como as imagens do
relevo (VANDENBEUSCH, p. 211, fig.96; p. 223, p. 393, doc. 12.26).
Quanto aos sacrifícios de asnos no antigo templo de Hatshepsut em Deir el-
Bahari, o assunto é mais complexo, e, após diferentes fases de restruturação, o templo
esteve em função desde o fim da época ptolomaica até uma data indefinida da época
romana.
Dentre os grafitti do fim do século III e começo do IV da EC existentes nas
paredes do templo, destacam-se certas inscrições realizadas por membros da corporação
29
* A esse respeito ver ROSSEL & outros,2008. No estudo elaborado sobre a domesticação do jumento no Egito Antigo, chegou-se à
conclusão de que o antigo jumento domesticado egípcio era mais parecido em suas características físicas com o jumento selvagem da
Núbia, embora tivesse também algumas semelhanças com o jumento selvagem da Somália, ao contrário do que acontece atualmente
com jumento domesticado.
** Segundo o historiador grego Plutarco, em Peri Isidos kai Osiridos ou De Iside et Osiride,22, os egípcios achavam que Tífon, nome dado
a Sete pelos gregos, tinha pele vermelha. Muitos justificam essa cor de Sete pelo fato de os desertos egípcios, sob a proteção da deidade,
serem compostos de areia dessa cor, mas os jumentos da Núbia também tinham um tom tendente a essa mesma cor. No templo de Edfu,
segundo a egiptóloga Vandenbeusch, conforme um texto mural sobre um dos combates de Hórus e Sete, este se transforma ao ver outro
deus num asno vermelho (p.203).
aos pedidos dos devotos. Pedidos esses que incluíam desejos de sucesso em litígios,
proteção para parentes mortos na Outra Vida e melhoria no estado de virilidade de seus
adoradores (MAYDANA, 2022). Campos de atuação em que o deus operava com muita eficácia
e desenvoltura, conforme vimos acima. Pois, litígios eram uma especialidade para um deus
que vivia a criar conflitos. Proteção na Outra Vida era outra atividade em que ele tinha
grande destaque, já que, todas as noites, no Além, salvava da morte o grande deus-sol Rá.
Quanto à melhoria da virilidade dos seguidores, isso era fácil de conceder dada sua
sexualidade escancarada e desabrida de jumento.
Na obra de Plutarco (46 - antes de 119 EC) intitulada Peri Isidos kai Osiridos,
colhemos passagens em que o historiador traça um paralelo entre Tífon (i.e., Sete) e o
jumento. No início do período romano, como vimos, esse animal, odiado e desprezado pelos
egípcios, era habitualmente sacrificado por causa da aversão que naquela altura os egípcios
sentiam pelo antigo deus. Seguem abaixo dois trechos que confirmam que Sete
compartilhava com o asno certas características comuns, relativas ao som que faziam, à
estupidez, à lascívia e à cor vermelha que apresentavam, cor que demonstra que os animais
perseguidos pelos egípcios eram semelhantes aos espécimes provenientes da Núbia, que
tinham pelo tirante a esse matiz:
O povo de Busíris e Licópolis não usa trombetas, porque elas fazem um som de
jumento; e juntos eles consideram o jumento como um animal impuro dominado por
algum poder superior, por causa de sua semelhança com Tífon [i.e.,Sete].
(PLUTARCH,362 f.; trad. do Autor)
Eles pensam [os egípcios], como já foi dito, que o asno colhe as
consequências de sua semelhança [com Sete] por causa de sua estupidez e
de seu comportamento lascivo, tanto quanto por causa de sua cor.
(PLUTARCH, 363 c., trad. do Autor)
O was era de fato uma estilização do animal sha, a forma teriomórfica do deus.
Nesse cetro, a cabeça de animal aparece no alto com o focinho fino voltado para baixo e
com as orelhas pontudas bastante inclinadas para trás, indicando que o jumento estilizado
que era sha mostrava-se enraivecido e prestes a escoicear mortalmente o inimigo.
Enquanto a extremidade inferior do cetro apresentava a bifurcação com certeza referente
à ponta dupla da cauda, que lhe havia sido conferida por uma precaução de índole mágico-
religiosa.
Geralmente qualificado de bordão, bastão ou cajado, o was deve ter sua suposta
serventia de apoio questionada, na medida em que a ponta inferior forqueada não
permitiria ser firmada diretamente sobre o piso por não garantir a necessária estabilidade,
o que poria em risco não apenas a integridade física do objeto como também a de quem
pretendesse utilizá-lo como um adjutório para andar. O was era para ser portado como
cetro, simplesmente. A propósito, nos relevos e outras representações em que aparece
representado, a ponta bifurcada do was jamais toca o chão, confirmando que o bastão ou
cetro era um talismã e não um mero apoio (fig. 26)
Os mais antigos exemplares de was eram certamente confeccionados de
madeira, pois ainda existem espécimes feitos com esse material, mas é comum também se
encontrarem peças depositadas em tumbas ou em ruínas de templos moldadas em faiança,
material bastante frágil, indicativo de que estavam sendo usadas na verdade como amuleto
(fig. 27).
O was é habitualmente interpretado pelos egiptólogos como símbolo de força,
poder, autoridade e domínio, sendo muitas vezes atribuído a esses conceitos um valor
eminentemente secular, mas levando-se em consideração a natureza divina de Sete e as
deformações impostas a sua aparência por razões mágicas, inclinamo-nos a interpretar a
palavra was não apenas como domínio, mas como domínio sobre as forças maléficas. Desse
modo, o was seria um objeto portador de poderes mágicos destinado ao combate das forças
destrutivas do Caos, forças a serem reprimidas graças a Sete magicamente neutralizado.
Significado que daria sentido ao fato de todo deus egípcio portá-lo, já que os deuses tinham
como missão primordial zelar pela eterna manutenção da harmonia (MaAt) do Universo
criado pelo deus Atum (tm), de acordo com a cosmogonia de Heliópolis (Iunu, iwnw). Até
mesmo o próprio Sete magicamente controlado portava o was, como qualquer outro deus.
33
É essa interpretação do cetro was que nos faz entender porque era esse deus,
eterno desafiador de Maat, que assumia a defesa de Rá em sua navegação noturna através
do submundo e porque era ele o escolhido para destruir a cada noite a terrível serpente
Apófis, existente desde antes da Criação e grande ameaça ao Universo organizado.
Embora encarnasse forças violentas e desagregadoras, Sete, submetido à
força da magia, e em total oposição à sua verdadeira natureza, era levado a assumir a função
de grande salvador do cosmos ao livrar a benigna figura solar do deus Ra do ataque de
Apófis, contra a qual Sete dirigia toda a violência que lhe era característica. Desempenho
altamente dignificante, divulgado no texto funerário chamado Amduat (jmj dwAt) –
originalmente chamado O tratado da câmara oculta e traduzido por O que há no submundo
–, texto conhecido pelos egiptólogos em sua mais antiga versão datada do tempo da rainha
Hatshepsut, encontrado gravado em paredes de tumbas reais e de altos dignitários do Novo
Império.
O was demonstrava sua mais absoluta relevância ao participar de dois
conjuntos de signos de alto valor apotropaico habitualmente constituídos ou por um ankh,
ou por um djet (Dd) (amuleto interpretado como Estabilidade, Durabilidade e Permanência),
que, uma vez personificados, providos de braços e firmados sobre uma cesta neb (nb)
(Gardiner V30), traziam em cada mão um cetro was, sendo frequentemente vistos esses
conjuntos em templos e tumbas egípcias, representados em afrescos, relevos e mesmo em
decoração de móveis funerários (figs. 28a a 29).
Os signos assim reunidos adquiriam especial destaque, graças ao fato de se
apoiarem numa cesta neb, que, enquanto hieróglifo, comportava, entre outros sentidos, a
ideia de totalidade e integralidade, conferindo desse modo relevância ou potência reforçada
aos amuletos por ela suportad0s.
Esses arranjos talismânicos despertam o interesse porque nos fazem ver que,
para os egípcios, a vida comum, a Vida Eterna e a estabilidade deste e do Outro Mundo
(governado por Osíris, dono da coluna vertebral estilizada que era o pilar djet) exigiam
constante e cotidiana luta contra o Caos, sendo tanto a Vida quanto o Cosmos totalmente
dependentes da eficácia do cetro apotropaico was na defesa sobrenatural contra as forças
maléficas. Forças que nunca desistiriam de tentar reverter tudo quanto existia para o estado
geral desordenado e indiferenciado do Caos original, reino de Nun (nwn), o deus das
34
primevas águas abissais. Eterno e encarniçado combate travado entre a Criação divina e o
total aniquilamento que, em resumo, traduzia a essência mais íntima da religião egípcia.
Tão grande era a importância do cetro was que, de acordo com determinados
relevos egípcios, exemplares desses amuletos atuavam como sustentáculos da abóbada
celeste (Gardiner N1, pt), demonstrando que ele tinha como máxima função ser o supremo
garantidor cósmico contra as forças caóticas que insistiam em querer derrubar o
firmamento e assim devastar todas as realidades existentes e imaginadas (fig. 30).
CONCLUSÃO
se deixarem levar mais pela intuição. Pois não basta ler nas linhas, às vezes é necessário
saber ler nas entrelinhas.
* * *
36
ILUSTRAÇÕES
Fig. 2 - Exemplares de pentes de marfim datados dos períodos Nagada I (3900 -3650 AEC) e Naqada II
(3650-3300 AEC). Trazem no alto das peças perfil entalhado de animais selvagens, em geral habitantes
do deserto. Aqui vemos um jumento, à esquerda, um avestruz, ao alto, uma girafa, à direita, e embaixo,
no centro, um antílope com chifres em espiral. Animais que representavam, provavelmente, as forças
negativas advindas dos desertos, segundo a mentalidade egípcia. Acervo do Museu Metropolitano de
Arte de Nova York, EUA.
Fonte:<https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/>
38
Fig. 3 - Paleta Líbia.Peça datada do período Nagada III, também chamado período
protodinástico ou Dinastia 0 (3.300 AEC-c. 2.900 AEC). Peça encontrada em Abidos,
Egito. Nela dizem que estava escrito o nome do rei Escorpião. Acervo Museu Egípcio do
Cairo, Egito. Foto de Zeinab Mohamed, 2016.
No fragmento distinguem-se três ordens de animais provavelmente já domesticados. Bovinos, jumentos e
ovelhas de espécie já extinta, com os característicos chifres horizontais e retorcidos, incorporados pelos
egípcios em seus símbolos religiosos.Abaixo, árvores reconhecidas como oliveiras.
Fonte:< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Libyan_Palette.jpg>
39
Fig. 5 - Esboço de um dos dois estandartes que trazem como insígnia o animal de Sete
representados na cabeça da maça cerimonial do rei Escorpião, segundo Whitehouse H.
Ancient Egypt and Nubia. Oxford: Ashmolean Museum, University of Oxford, 2009,
p.22. Ilustração colhida na tese de doutorado de Philip John Turner.
Aqui o animal sha aparece com um aspecto transacional. O corpo ainda se mostra muito próximo do corpo do
jumento: forte, embora com o ventre recolhido. As orelhas estão direitas e cortadas em ângulo reto com as
do animal sha e o rabo tem forma de flecha com o corte na ponta para o encaixe da corda do arco e penas
laterais. O focinho, porém, ainda se conserva trombudo, como o do jumento.
Fonte da imagem: TURNER, Philip John. Seth – a misrepresentated god in the ancient egyptian pantheon? A thesis submitted to the
University of Manchester for the degree of Doctor of Philosophy in the Faculty of Life Sciences, 2012.
Fonte:<https://www.research.manchester.ac.uk/portal/files/54524292/FULL_TEXT.PDF>
41
Fig.6 - Três exemplos de hieróglifos setianos colhidos na web: Gardiner C7, E 20 e E 21.
O animal sha adquiriu uma forma estável, embora os detalhes sempre variem: corpo de
galgo, focinho curvo e afilado e orelhas direitas, de um modelo geométrico bastante
antinatural. A cauda é reta, sua terminação tem em geral feitio de seta, constituindo a
arma mágica que desativava a energia negativa do animal e exercia domínio sobre ele.
1- O hieróglifo com a imagem do deus Sete sentado com o cajado heqa (hKA) às mãos, C 7, é
proveniente de um cartucho com o nome do faraó Seti II, exposto no Museu a Céu Aberto de Karnak,
19ª dinastia.
2- O hieróglifo do animal sha sentado, E20, provém de um bloco do lintel do complexo da pirâmide de
Amenemés I em El Lisht. Acervo do Museu Egípcio, do Cairo, Egito, 12ª dinastia. (A imagem colhida
na web estava invertida)
3- O hieróglifo com o animal sha deitado sobre o ventre data da 18ª dinastia e também está exposto
no Museu a Céu Aberto de Karnak.
Fontes: < https://www.bbc.co.uk/history/ancient/egyptians/gods_gallery_06.shtml>
<https://author.today/post/12844>
<https://br.pinterest.com/pin/489133209519520945/?mt=login>
42
Fig. 7 - Vemos acima dois trechos de afrescos vistos em tumbas (n.15 e n. 17,
respectivamente), localizadas em Beni Hasan, Egito, datadas do Médio Império,
retratando caçadores acompanhados de animais fantásticos. Imagens colhidas na tese
de doutorado de Ian R. Taylor.
Analisando as duas cenas de caçada, o autor identifica sha como um animal ligado ao deserto, o que é correto,
mas interpreta que por ser originário do deserto o animal setiano talvez esteja aqui a exercer uma má
influência sobre os caçadores. Essa é uma interpretação, a nosso ver, equivocada. O sha, sob o efeito da
magia,evidenciada pela presença de sua cauda em forma de seta, estaria a exercer uma influência positiva no
ato da caçada. E outra prova disso é que está em companhia do falcogrifo e do serpopardo, duas entidades
agressivas, mas benéficas, que apareciam em arte egípcia desde as paletas pré-dinásticas, atacando os
animais do deserto, símbolos do Caos (a esse respeito, ver a Paleta dos Dois Cães, acervo do Ashmolean
Museum, fig.14). Esse era justamente o objetivo da magia simpática exercida sobre o sha e o deus Sete,
transformar a divindade ligada às forças do Caos em entidade benfeitora do rei e do povo egípcio.
Aliás, não havia sentido em registrar cenas de significado negativo em túmulos egípcios. A intenção da
decoração murária nas tumbas era representar fatos positivos da vida do morto para que esses se
reproduzissem eternamente no Além.
Há contudo uma observação a ser feita: embora sha apareça aqui de modo muito positivo, o animal guardava
em si uma potencialidade altamente prejudicial, o que resultava em sua imagem ser usada como hieróglifos
determinativos de palavras de sentido negativo, como veremos ao longo deste texto.
Fonte:<https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/7714/1/Taylor17PhD.pdf>
43
Fig.11 - Terminação de duas antigas setas egípcias feitas de junco com um corte no final,
para o encaixe da corda do arco, e com penas inseridas para, uma vez arremessada, dar
estabilidade ao voo da flecha. Acervo do Museu Egípcio, do Cairo, Egito. Foto retirada
da tese de Ian R. Taylor.
À cauda do animal sha foram dadas várias formas ao longo do tempo, sempre em formato de arma, conforme
demonstrou Taylor em sua tese. A forma da arma às vezes era explícita, às vezes dissimulada, mas o resultado
era sempre o mesmo, o animal ficava sob o domínio da magia e tinha seu comportamento controlado.
Fonte da imagem: TAYLOR, Ian Robert. Deconstructing the iconography of Seth. A Thesis submitted to the University of Birmingham for
the degree of Doctor of Philosophy, U.K., 2016.
Fonte:<https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/7714/1/Taylor17PhD.pdf>
47
Fig. 14- Imagens do anverso e do verso da Paleta dos dois Cães. Esculpida em siltito (c.
3300-3100 AEC). Acervo do Ashmolean Museum, Oxford, Reino Unido.
O tema decorativo apotropaico desse objeto cerimonial é a luta da Criação contra as forças do Caos,
representadas pelos animais que viviam no deserto (bovídeos,cervídeos, caprinos, ovinos e até uma girafa,
que aqui se acha fora de seu habitat). Investindo contra os representantes do mal estão os animais
predadores, leões, leopardos e cães de caça. No anverso, veem-se dois animais fantásticos, os serpopardos,
atacando um bovídeo ou cervídeo. Na parte do verso, vemos outro animal fantástico, o leogrifo, com cabeça
de falcão e asas em forma de “pente”, dada a maneira canhestra com que foram desenhadas. Uma figura que
aparece embaixo, à esquerda, bípede com cauda longa e orelhas compridas, em pé, a tocar uma espécie de
instrumento de sopro, tem sido interpretada como uma forma bimórfica de Sete. Ele toca, porque estaria
regozijante de ver a batalha entre o Universo criado e o Caos. Aqui, ele parece estar do lado da Criação .
Fonte:< https://www.getdailyart.com/22129/two-dog-palette>
50
Fig. 14 a - Dois exemplares de marfins mágicos com figuras setianas, datados do Médio
Império. O exemplar superior provém do Museu do Louvre, Paris, e o inferior, do Museu
Britânico, Londres. Imagens colhidas na tese de doutorado de Marie Vandenbeusch, p.
167 e 168.
Muito populares durante o Médio Império, os marfins mágicos traziam gravadas várias
figuras fantásticas, entre elas, figuras setianas, embora haja quem as veja como figuras
leporinas. A esses marfins em forma de meia-lua era atribuído o poder de afastar influências
maléficas. Neles se veem diferentes criaturas míticas de índole protetora. No exemplar do
Louvre, há, por exemplo, um serpopardo e um falcogrifo, animais fantásticos de natureza
agressiva, mas de índole protetora. Veem-se também demônios, entre os quais a deusa
Taueret (tA-wrt), um hipopótamo sobre duas patas com um crocodilo às costas, a atacar um
prisioneiro de guerra (entendido como inimigo do Egito). Há ainda olhos de Hórus e deus
Bes (bs), entidades de reconhecido valor apotropaico, e figura com cabeça de asno, que
relacionamos com Sete.
No exemplar inferior, do Museu Britânico, podemos observar um falcogrifo, a deusa
Taueret, o perfil do animal sha, com orelhas de asno, dentro de um hieróglifo hut (Hwt),
Gardiner O6, que Vandenbeusch diz tratar-se, neste caso, de um encapsulamento mágico
contra as forças negativas do animal setiano, hipótese bastante plausível, em nossa opinião.
Nesse exemplar vemos ainda na ponta esquerda do artefato, uma cara de jumento vista de
frente, com longas orelhas hachuradas, que lembram o tratamento dado às orelhas de sha
nos cetros was (ver fig. 27 b).
Fonte:< https://www.academia.edu/43197033/Sur_les_pas_de_l%C3%A2ne_dans_la_religion_%C3%A9gyptienne>
51
Fonte da image: TAYLOR, Ian Robert. Deconstructing the iconography of Seth. A Thesis submitted to the
University of Birmingham for the degree of Doctor of Philosophy, U.K., 2016.
Fonte:<https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/7714/1/Taylor17PhD.pdf>
52
Fig. 17 - Imagem da Pequena Estela de Dâkhla, datada do séc. VIII AEC, do tempo do
faraó Piye (piy), 25ª dinastia ou dinastia núbia. Acervo do Ashmolean
Museum,Universidade de Oxford, Reino Unido.
Aqui o deus Sete, então com o epíteto de “Sutekh [swtx], grande em força“, aparece sob a forma de Hórus,
seu antigo inimigo, e com o disco solar no alto da cabeça. Iconografia talvez surgida a partir do deus Antawy,
divindade que reunia os dois deuses antagônicos.
Fonte da imagem: JANSSEN,Jac.J.The Smaller Dâkhla Stela (Ashmolean Museum No. 1894. 107 b).The Journal of Egyptian
Archaeology,Sage Publications Inc.,v. 54, aug. 1968, pp. 165-172.
Fonte:< https://www.jstor.org/stable/3855921?read-now=1&seq=6 >
54
Fig. 19 - Hórus e Sete, como aliados, coroam e concedem proteção ao faraó Ramsés III.
Grupo escultórico de granito, datado da 20ª dinastia, e proveniente de Medinet Habu.
Acervo do Museu Egípcio, do Cairo, Egito. Foto do museu.
Fonte:< http://www.globalegyptianmuseum.org/detail.aspx?id=14750>
56
Fig. 20 a - Relevo de Sete no templo de Hibis (Hebet, Hb), situado no Deserto da Líbia, datado
do período ptolomaico, sob a forma de um Hórus cingido com as coroas do Alto e do Baixo
Egito, alado, a transpassar Apófis com uma lança. De um deus jumento que despertava a
desconfiança em todos, Sete passa a incorporar a imagem positiva de um deus Hórus,
transformação ocorrida nos templos e santuários localizados nos oásis egípcios. Foto extraída
da Wikipedia, de autoria de Roland Unger, 2008.
Fonte:< https://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:HibisSeth.jpg>
57
Fig. 21 - Hórus como rei do Egito, abatendo Sete sob a forma de um hipopótamo, com
a ajuda de sua mãe, a deusa Ísis. Relevo do templo de Edfu, Egito, datado do período
ptolomaico. O relevo sofreu séria depredação promovida pelos cristãos. Foto extraída
da Wikipedia, de autoria de Remi, 2009.
Enquanto Sete era heroicizado nos templos e santuários dos oásis e outras pequenas localidades, os grandes
templos da época Edfu, Dendera e File demonizavam o deus, representando-o por meio de animais tidos
como maléficos e sob a forma de um jumento submetido a tortura e morte.
Fonte:< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Edfu47.JPG>
59
Fig. 23 - Deusa Serket fundida em liga de cobre, datada do Período Tardio. Peça do
acervo do Departamento das Antiguidades Egípcias, Museu do Louvre, Paris. A deusa é
retratada aqui sob a modalidade bimórfica, com o corpo de escorpião, e busto, braços e
cabeça de forma humana. Notar que a parte aracnídea não apresenta nenhuma
alteração de natureza mágica, o que parece revelar que os egípcios de então já não
confiavam na eficiência dos antigos métodos de neutralização das imagens
preocupantes.
Fonte:< https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010006182>
61
Fig. 25 – O deus Sete reproduzido quatro vezes sob forma antropomórfica, com
invocações diferentes, gravação em lintel de uma das câmaras do templo de Dendera,
época ptolomaica. Foto de autoria de Ian R. Taylor, colhida na tese de doutorado desse
autor.
Fonte da imagem: TAYLOR, Ian Robert. Deconstructing the iconography of Seth. A Thesis submitted to the University of Birmingham for
the degree of Doctor of Philosophy, U.K., 2016.
Fonte:<https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/7714/1/Taylor17PhD.pdf>
63
Fig.27 a - Cetro was de faiança azul encontrado em 1895 no templo de Sete, em Nubt,
oferecido pelo faraó Amenófis II (imn-n-Htp), da 18ª dinastia.Trata-se de uma oferenda
monumental, pois o comprimento da peça restaurada é de c. 2, 15 m. Acervo do Museu
Vitória e Alberto, Londres, Reino Unido. Foto extraída da Wikipedia, de autoria de
Soutekh67, 2014.
O amuleto foi concebido numa versão personificada, sendo a ele acrescentados braços, hoje fraturados na
altura dos cotovelos. Devia portar um outro amuleto, talvez um ankh.
Fonte:< https://ru.wikipedia.org/wiki/%D0%A3%D0%B0%D1%81>
65
Fig.28a - Parede do templo funerário de Ramsés III em Medinet Habu (19ª dinastia),
apresentando-se coberta de alto a baixo com os nomes de nascimento (Ramessu Heka
Iunu) e de trono (User Maat Rá, meri Amon) do faraó, intercalados com o conjunto de
amuletos formado por um ankh personificado, ostentando um cetro was em cada mão,
acomodados sobre uma cesta neb (nb) (Gardiner V30) , cuja função era nesse caso, ao
que parece, potencializar a magia apotropaica. Esse conjunto significava que o símbolo
da Vida Eterna esconjurava as forças do mal, para que o rei, incorporado a Osíris (ver o
símbolo do deus sobre os cartuchos reais), pudesse gozar uma vida de um milhão de
anos no além-túmulo.
Fonte: <https://ask-aladdin.com/temples-of-egypt/medinet-habu/>
67
Fig. 28b- Osíris-Nepra (ou Nepri) é o resultado da fusão do deus do grão do trigo com
Osíris, o deus da fecundidade vegetal e da Morte e Ressureição. Do corpo mumificado
de Osíris brotam colmos erectos do cereal, representando o renascimento do deus da
agricultura na Outra Vida. Sob seu corpo, vê-se uma sequência feita de ankhs e cetros
was. Do amuleto ankh emana a Vida Eterna*, enquanto os cetros was mantêm à
distância as forças negativas do Caos. Desenho de um relevo que se encontra no templo
de File, hoje instalado na ilha de Algikia (entre o séc. III AEC e o séc. II EC). Sem outras
referências.
* A respeito do hieróglifo ankh, leiam um pequeno texto em continuação ao presente, por nós elaborado, denominado O
ideograma ankh (anx) como metonímia da Vida Eterna, em que nos esforçamos para explicar a sua significação vinculada à
Outra Vida.
Fonte:< https://www.sacred-texts.com/egy/efl/efl03.htm>
68
Fig. 30 - Relevo gravado num lintel. Representa alegoricamente o rei Sesóstris III (z-n-
wsrt), da 12ª dinastia, duplicado, usando a coroa do Baixo Egito (à esquerda) e a coroa
do Alto Egito (à direita) durante o festival Heb Sed. Acervo do Museu Egípcio, do Cairo,
Egito.
Conforme informa o site do museu, os festivais Sed eram jubileus celebrados depois que o governante ocupava
o trono por trinta anos e a cada três ou quatro anos depois de realizada essa cerimônia. Eram efetuados
principalmente para o rejuvenescimento da força e resistência do rei, enquanto ainda ocupava o trono,
celebrando o sucesso contínuo do soberano.
A cena vista acima desenrola-se sob o firmamento, representado pelo hieróglifo pt (Gardiner N1). Nas
extremidades laterais do relevo é possível distinguir dois cetros was que sustentam a abóboda celeste, numa
garantia mágico-profilática contra a influência negativa das ameaçadoras forças do Caos.
Fonte:< https://egypt-museum.com/relief-of-king-senusret-iii/>
70
AWADALLAH, Abdelhaleem. The crew of the sun bark before the first appearance of the Amduat. In: CZECH
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71
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40.
* * *
72
Nenhuma demonstração da descoberta de Gunn (aprovada por A. Erman em seu Agyptische [sic]
Grammatik3, 1911, p. viii) encontrou ainda o caminho da impressão: a evidência crucial na seguinte
argumentação foi fornecida pelo próprio Gunn. Há um objeto chamado anx exatamente parecido
com o símbolo e o hieróglifo para 'vida', que é frequentemente representado aos pares na
extremidade dos caixões do Médio Império. Esses caixões são cobertos com imagens de artigos
considerados necessários para a felicidade dos mortos na vida após a morte, e na maioria dos casos
é tomado o cuidado de colocar cada objeto em sua posição apropriada em relação ao corpo do
morto dentro do caixão; assim, são mostrados colares no nível do pescoço, cetros ao alcance da
mão, e assim por diante. A priori, portanto, deve-se concluir que o objeto estava conectado com os
pés – um ponto considerado definitivo devido ao fato de que um par desses objetos geralmente é
mostrado ao lado de um ou mais pares de sandálias, enquanto os outros artigos retratados
(tornozeleiras , tigelas para lavar, etc.) estão mais ou menos claramente conectados com os pés
(ver J. Oarstang, Burial Customs of Anc. Egypt, London, 1907, p. 6, p. 168; P. Lacau, Sarcophages
antérieurs au Nouvel Empire, Paris, 1904, nº 28034 [p. 90 f.]; H. Schäfer, Priestergräber, Leipzig,
1908, fig. 73 [p. 54], 83 [p. 69] e pl. 11) . Em várias ocasiões, as inscrições anexas descrevem o par
de objetos como 'os dois no chão sob seus pés' (cf. Garstang, loc. cit.; Lacau, ilustr. 158; a preposição
'sob' não deve ser forçada demais, mas pelo menos mostra que o axn fazia parte ou pertencia de
alguma forma às sandálias).
Se compararmos o objeto anx com a representação da sandália, veremos que os mesmos
elementos entram em ambos os objetos – o longo laço que passa ao redor do tornozelo, as tiras
que servem para amarrar esse laço às laterais da sandália e, possivelmente, uma espécie de laço
com nervuras ou fivela. É difícil harmonizar as representações em detalhes, mas, lembrando que o
signo é muito antigo, que os modos de fixar as sandálias no pés variavam muito, e que
possivelmente o signo retrate as tiras não como eram realmente usadas, mas dispostas de forma a
exibi-las da melhor maneira, dificilmente duvidaremos que os objetos mostrados nos caixões do
Médio Império sejam um par de tiras de sandálias sobressalente para ser utilizado caso o par
existente nas sandálias [usadas pelos mortos] precisasse ser substituído. A ilustração na página
anterior [figs. 4 e 4a] mostra vários exemplos de tiras de sandálias, tanto como um artigo de uso
quanto como um hieróglifo, juntamente com imagens de sandálias para comparação; o hieróglifo
é normalmente pintado de preto.
Não havendo conexão óbvia entre a ideia de vida e as tiras de uma sandália, deve-
se supor que a ideia de vida, não sendo ela própria suscetível de representação
pictórica, foi simbolizada por um objeto cujo nome coincide por acaso em som com
a palavra para 'vida' [axn] este procedimento é meramente o procedimento
chamado ‘transferência fonética’, extremamente comum em hieróglifos.
Havia também ao menos uma deusa criadora, Nit (nt), uma deusa muito antiga
dos tempos pré-dinásticos, mas essa versão ficou enfraquecida diante das demais, que
conferiam o protagonismo demiúrgico a divindades do sexo masculino. A partir dos mitos
acima referidos, que explicavam a origem do universo por intermédio de deidades
masculinas, podemos aferir o peso do patriarcado egípcio, na prevalência do sexo viril na
sociedade e na religião, e sua importância na criação e na procriação, o que vale dizer na
Vida (NAJOVITS, 2003, p.69). O poder gerador do homem era tão inabalável que no Antigo
Egito a mulher casada podia ser repudiada caso não conseguisse engravidar, sobretudo de
um descendente do sexo masculino.
Como é sabido, o homem de 30.000 ou 20.000 anos AEC desconhecia o seu papel
na reprodução humana. Daí os inúmeros pequenos ídolos femininos que essa época remota
nos legou, ídolos sem dúvida adorados pela parte masculina da população humana graças
à capacidade, até então vista como mágica, das mulheres entrarem em gestação sem que
os homens pudessem atinar com a causa. Mas erguido por volta de 11.400 anos atrás, na
Anatólia, o templo de Karahantepe (Turquia), há pouco escavado, parece provar que
naquela altura os homens do Neolítico pré-cerâmico já tinham plena consciência do real
valor do princípio masculino na procriação, simbolizado esse princípio nos pilares fálicos
erguidos ante a face obesa da Grande Deusa, esculpida quase a tutto tondo no ponto focal
da parede de fundo desse templo megalítico (fig.5).
Diante da questão aqui esboçada, constatamos que as tiras de uma sandália ou
qualquer outro objeto até agora aventado não têm valor algum. Perguntamo-nos então
qual seria a imagem de algo que melhor exprimiria a vida em toda a sua plenitude, até
mesmo a vida após a morte, do ponto de vista do mito cosmológico de Heliópolis, de Coptos
(Gebtu; gbtw), de Mênfis (Men-nefer; mn-nfr), de Heliópolis (Iunu, iwnw) e de Tebas (Wast;
wAst)?
O que nos ocorre é procurar um objeto que tivesse uma relação de proximidade
com a genitália masculina, num claro exemplo de metonímia visual. E o que nos vem à
mente é a cinta que os primitivos egípcios, em sua nudez, usavam em torno dos quadris,
atada na frente com um nó de alças duplas cujas pontas pendiam soltas, encobrindo
parcialmente os órgãos viris (fig.6). A serventia desse adereço, que ao que tudo indica
sucedeu ao uso do estojo peniano (fig.7), nada tinha a ver com pudor ou modéstia.
75
***
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ILUSTRAÇÕES
Fig. 3 - Amuleto ankh, proveniente do reino de Cuxe, c. 660 -550 AEC, cultura cuxita.
Acervo do Museu Britânico. Foto do museu.
Ankh feito de composição vitrificada verde. Com uma coluna de texto em ambos os lados da haste vertical,
que inclui a cartela do governante núbio Malonaqan (555 - 542 AEC).
Fonte:<https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA65274>
80
Fig. 4- Ilustração da entrada Life and Death (Egyptian) de autoria do egiptólogo Alan
Gardiner na Encyclopaedia of Religion and Ethics, v.8 (1915, p.20), mostrando tipos de
sandálias usadas no Antigo Império. A formalmente mais próxima do amuleto ankh
seria a de n. 6.
Fonte:< https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.56058/page/n41/mode/2up?view=theater>
81
Fig. 4a - Pormenor da Paleta de Narmer (nAr-mr), fundador da 1ª dinastia egípcia (c. 3100
AEC), apresentando um pajem a carregar as sandálias do rei. O calçado é bastante
diferente das sandálias egípcias usadas em épocas posteriores. Apresenta larga faixa
sobre o peito do pé e uma tira envolvendo o calcanhar, formando uma alça, além da tira
estreita que passa entre o hálux e o artelho vizinho, ligada perpendicularmente à faixa
do peito do pé. Corresponde ao modelo n. 6, visto na ilustração anterior, fig. 4. Acervo
do Museu Egípcio, do Cairo, Egito. Foto de Wikimedia Commons, autoria de Heagy1,
2019.
Fonte:< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Narmer_Palette_verso.jpg>
82
Fig. 6 - Chefe inimigo cativo, pronto para ser executado pelo rei. Pormenor da Paleta de
Narmer (nAr-mr), fundador da 1ª dinastia egípcia (c. 3100 AEC) Acervo do Museu
Egípcio, do Cairo, Egito. Foto de Wikimedia Commons, autoria de Heagy1, 2019.
O personagem proveniente do norte do Egito, região do delta, traz apenas uma faixa em torno da cintura,
com pontas pendentes escondendo a genitália. Talvez seja essa faixa a origem do hieróglifo ankh.
Fonte:< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Narmer_Palette_verso.jpg>
84
Fig.7a- Pente de marfim do rei Djet (Dt) (c. 2980 AEC), quarto monarca da 1ª dinastia,
exibindo, à direita, um ankh de forma primitiva, em que se veem, claramente, as duas
pontas pendentes, bem separadas, da faixa que os primitivos egípcios usavam em torno
da cintura. Mais tarde, no amuleto, as pontas inferiores se reuniram, ficando só uma
risca central no sentido vertical para evidenciar o fato de que eram duas. Com a
estilização do ankh, ocorrida mais tarde, essa risca desapareceu (ver fig. 1c)
Ladeando o serekh com o nome do rei, além do ankh, dois cetros was, para manter longe as forças do mal.
Fonte:<https://br.pinterest.com/pin/ivory-comb-of-king-djet-first-dynasty-the-decoration-expresses-the-relationship-between-
the-celestial-god-horus--501166264778688776/>
86
Fig. 8 - Amuleto Tyet (Tt), conhecido pelo nome de nó de Ísis (Ast), datado do Novo
Império (c. 1550 – 1352 AEC), feito de jaspe vermelho. Acervo do Museu do Brooklyn.
Foto do museu.
É inegável a semelhança entre o ankh e o tyet. Tinham, porém, significado diferente, um representava a vida,
sobretudo a Vida Eterna, o outro era símbolo da deusa Isis, frequentemente acompanhando o djet, a espinha
dorsal do deus Osíris.
Fonte:< https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/4130>
87
Fig. 9 – Dois relevos do antigo Egito, mostrando lutadores com varas de papiro, acima,
e pescador, abaixo, os três usando a simples tira de tecido, cujas pontas escondiam
parcialmente a genitália masculina. Sem maiores informações.
Fonte:< https://www.elbalad.news/3088927>
Fonte:< http://amigosdelantiguoegipto.com/?page_id=12476>
88
Fig.11- Relevo datado da 4ª dinastia (c. 2613- 2494 AEC), em que aparecem dois
caçadores de aves. Estão nus, apenas com uma cinta de tecido, cujas pontas pendentes
encobrem os genitais. O relevo acha-se hoje depositado na Gliptoteca Carlsberg, de
Copenhague, Dinamarca, e é proveniente da tumba de Nefer-maat (nfr-mAat), vizir e
filho mais velho do rei Seneferu (snfrw), tendo sido sepultado na mastaba 16 próxima
da pirâmide do pai em Meidun, Egito.
O relevo mostra dois homens aprisionando patos numa armadilha feita para essa finalidade. A inscrição revela
que os homens não eram caçadores comuns, mas "os cortesãos Seref-ka [srf-kA] e Wehem-ka [whm-kA] ",
conhecidos por outras imagens da mesma tumba como filhos de Nefer-maat (Nfr-mAat) e Itet (itt), portanto
netos do rei Seneferu. Isso prova que mesmos os egípcios da mais alta estirpe, dependendo da intensidade
da atividade física que pretendiam praticar, se desfaziam de seus saiotes e praticamente nus agiam com
liberdade.
Fonte:<https://www.almendron.com/artehistoria/arte/culturas/egyptian-art-in-age-of-the-pyramids/catalogue-fourth
90
Fig. 12-Dois relevos do Antigo Império (c. 2686 a 2181 AEC), o de cima com um camponês conduzindo um
boi e o de baixo com um pescador manejando um puçá.
O primeiro relevo representa um camponês que leva um boi ao sacrifício, oriundo da mastaba de Ptah-hotep (ptH-Htp) e
Akhti-hotep (Axti-Htp), Sacara, Egito, 5ª dinastia. Ele afasta as pontas da cinta para ficar mais à vontade.
O segundo retrata uma barca de papiro com pescadores, da mastaba do vizir Kagmeni (kAgmn), Sacara, Egito, 6ª dinastia.
O pescador que maneja o puçá desloca a faixa da cintura para altura das axilas e gira-a de modo a deixar as pontas
pendentes nas costas, e assim poder trabalhar com desembaraço.
Fonte:< https://philologist.livejournal.com/9895849.html>
Fonte:<https://www.researchgate.net/figure/Barca-de-papiro-en-la-mastaba-del-vizir-Mereruka-Saqqara-Egipto-VI-Dinastia-
faraon_fig1_307718044>
91
Fig. 13- Relevo com a imagem do deus Hapi (Hapy), carregando oferendas. Por se tratar
de um deus muito antigo, usa a arcaica faixa na cintura com as pontas pendentes a
esconder as partes íntimas. Como é um deus obeso, seu ventre proeminente e caído
desloca a parte frontal da faixa para baixo. Relevo do templo de Dendera (erguido entre
57 AEC e c.37 EC), Período Ptolomaico.
Fonte:< http://www.egyptsearch.com/forums/ultimatebb.cgi?ubb=get_topic&f=15&t=008459&p=3>
92
Fig.14- Crux ansata com pássaros e pavões, simulando, com os ramos que lhe nascem
aos pés, a Árvore da Vida. Procedente de um manuscrito copta da primeira metade dos
Livro dos Atos, Codex Glazier (séc. IV-V EC). Acervo do Museu e Biblioteca Morgan,
Nova York, EUA. Foto Wikimedia Commons,2015.
Fonte:<https://egytianstreets.com/2020/08/28/ccoptic-art-a-visual-tale-of- death-and-ressurrection/>
93
GARDINER, Alan. Life and Death (Egyptian). In: HASTINGS, James. Encyclopaedia of Religion and Ethics, v.8.
Edinburgh:T. & T. CLARK,1915.v.8 (Life and Death - MULLA). INTERNET ARCHIVE.
Fonte:< https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.56058/page/n5/mode/2up?view=theater>
Acesso março de 2022
GRANDE, María José López. Los amuletos y su función mágico-religiosa en el Antiguo Egipto. In: COSTA,
Benjamí e FERNÁNDEZ, Jordi H. (ed.). Magia y superstición en el mundo fenicio-púnico. Eivissa: Govern de les
Illes Balears, 2007.p.49-96. Academia.edu
Fonte:<https://www.academia.edu/37536035/Los_amuletos_y_su_funci%C3%B3n_m%C3%A1gico_religiosa_en_el_antiguo_Egipto_pd
f>
Acesso em maio de 2022.
HART, George. The Routledge Dictionary of Egyptian gods and goddesses, 2ª ed. London: Routledge,2005.
Academia.edu
Fonte:< https://www.academia.edu/3698677/_George_Hart_The_Routledge_Dictionary_of_Egyptian_Bookos_org_>
Acesso em maio de 2022
NAJOVITS, Simson R. Egypt, trunk of the tree. New York: Algora Pub, 2003.
Fonte:<https://archive.org/details/egypttrunkoftree0001najo/page/68/mode/2up>
Acesso março de 2022
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