Você está na página 1de 93

O deus Sete dos antigos egípcios seria, afinal, um deus jumento.

Uma
entidade maligna, controlada por magia.
Neste texto buscamos identificar a verdadeira natureza do enigmático deus Sete. Muito se tem escrito sobre esse deus,
mas, a nosso ver, a maioria dos egiptólogos ainda não atinou sobre sua verdadeira essência e aparência.

arq. Eudes Campos

Os deuses criaram a magia para os homens,


para que a utilizem como arma contra as
adversidades.
Papiro Leningrado, 111, 6A 139-40 (c. 1560 AEC),
segundo Lichteim (1975, apud GRANDE, 2007,
p.51.)

Introdução

Ao longo de milhares de anos, os antigos egípcios construíram uma


representação mítica de sua visão de mundo a partir do conjunto das condições ambientais,
culturais, psicológicas e morais que envolviam as vidas dos habitantes do vale do Nilo. Os

egípcios concebiam o Universo e a história do país como algo estável e ciclicamente


ordenado. Qualquer mudança súbita nas condições do meio ambiente (avanço das areias
dos desertos sobre as áreas habitadas ou cultivadas, ou cheias excessivas ou minguadas do
rio Nilo) ou qualquer abalo na estrutura política ou social vigente eram interpretados como
desvios desestabilizadores, altamente perigosos para o equilíbrio do mundo, tanto em
escala material quanto imaterial. Desvios esses considerados resultantes da contínua
atuação das forças do Caos ((izft)), desejosas de destruir o Universo concebido pelos deuses
e revertê-lo à matéria informe pré-existente.
Uma das consequências desse modo de pensar, em termos de religiosidade, foi
buscar exorcizar as constantes ameaças do Caos com ritos e procedimentos mágicos,
permanentemente executados. Todos os templos e santuários eram magicamente
protegidos por ritos religiosos e inúmeras fórmulas e símbolos apotropaicos. No intuito de
alcançar a necessária pureza do ambiente religioso, era preciso manter afastadas as
influências nefastas produzidas pelo Caos.
As práticas mágicas eram essenciais à religião*, à medicina e até mesmo à vida
diária dos egípcios. Afinal, para eles toda forma de expressão dava origem a uma existência
2

concreta e objetiva: a palavra falada, a palavra escrita, a imagem, tanto bidimensional


quanto tridimensional, realizadas por meio de diferentes modalidades artísticas, não
consistiam em meras representações da realidade material ou imaterial, possuíam antes
uma qualidade substancial, dotada de poderes próprios, que quando negativos deveriam
ser convenientemente controlados por meio da magia (heka, HkAw), da magia simpática
desenvolvida pelos sacerdotes nos templos, expressa por meio das artes, da escrita e dos
rituais apotropaicos. Até mesmo a morte individual podia ser superada por meio de tais
métodos, deixando assim de representar uma trágica e radical descontinuidade na
trajetória da vida cotidiana.
* Sobre a relação entre magia e religião egípcia, veja- se, por exemplo, GRANDE (2007) e RIBEIRO (2018). Embora os autores não toquem
no tipo de magia que identificamos neste texto, magia de origem sacerdotal para impedir a manifestação da maldade inerente a
determinadas deidades, eles abordam a importância da magia na religião egípcia e na vida comum do povo durante o Antigo Egito.

As divindades dessa antiga religião eram em geral simbolizadas por animais que
povoavam o ecossistema da região nilótica e o da circunjacência desértica, herança de longa
tradição totêmica. Os desertos e os povos estrangeiros com os quais o Egito mantinha
fronteiras também eram vistos como agentes do Caos, outra perigosa ameaça, portanto, à
vida do país como um todo.
Sete (Seth, stH), Setekh (stx) ou Sutekh (swtx), entre outras variações nominais
adotadas ao longo do tempo, era o deus dos desertos, da rebeldia, da violência, das
tempestades e das terras estrangeiras. No mito osiríaco, criado em sua forma básica
durante o século XXIV AEC, ou mesmo antes, Sete era retratado de maneira negativa,
usurpador do trono do Egito, assassino do irmão Osíris (wsir) e perseguidor do sobrinho
Hórus (Hrw) (TE VELDE, p.27 a 80). Na verdade, Sete já seria conhecido desde tempos
remotos, sendo a ele associada a imagem de um jumento (aA) selvagem (equus africanus),
animal originário das regiões desérticas do Sudão e da Somália.

O jumento selvagem do Deserto Oriental

O jumento selvagem era tão mal visto e temido pelos ancestrais dos egípcios,
que sua figuração em pinturas rupestres localizadas no Deserto Oriental (c. 3800 AEC) –
numa área delimitada pelo rio Nilo, a oeste, e pelo mar Vermelho, a leste, e entre Wâdi al-
Hammâmât, ao norte (antiquíssima trilha que conectava o Egito às minas de ouro do
deserto e ao porto situado às margens do mar Vermelho) e Wâdi Shait, ao sul – vinha
3

frequentemente acrescida de um apêndice, feito com traço reto e curto, cravado na parte
posterior da cabeça do animal, traço interpretado por estudiosos como sendo flecha ou
dardo, elemento contundente adicionado pelos artistas primitivos à imagem do jumento na
tentativa de anular por meio de um ato mágico simpático a malignidade que poderia advir
das representações desse tipo de alimária (HUYGE, 2009) (fig. 1).
A razão desses grafitos é tema de intensos debates entre os especialistas. “São-
lhes atribuídos valores variados, que se relacionam com atos culturais ou religiosos, práticas
mágicas ou funerárias, talvez totêmicas ou xamânicas ( VANDENBEUSCH,2020, p.52 e 53; trad. do
Autor).

Embora domesticado desde eras remotas – e muito usado como besta de


carga (pouco como animal de tração e menos ainda como cavalgadura) até a introdução do
cavalo no Egito, ocorrida com a invasão dos hicsos (HqA-xAsw), povo semita originário de
Canaã, durante o Segundo Período Intermediário (1782-1570 AEC) –, o jumento nunca
deixou de ser visto com receio pelo antigo povo egípcio, que sempre o relacionou com o
Caos – da mesma maneira negativa com que eram vistos os demais animais que viviam nos
desertos –, sendo ora ritualmente caçado pelo faraó ora sacrificado em rituais apotropaicos,
conforme descobertas arqueológicas vêm demonstrando de modo reiterado (HUYGE, 2009).
Em papiros greco-egípcios, também chamados papiros mágicos gregos, datados entre 100
AEC e 400 EC, acontecia de o jumento ainda ser usado como animal ritual e sacrificial em
ritos de magia (LUCARELLI,2017), sendo dessa mesma forma tratados em três templos tardios
do período ptolomaico (330-30 AEC), situados em Edfu, Dendera e File como veremos no
final deste trabalho.
Podemos imaginar que o temor inspirado pelo jumento se tenha acentuado na
fase de sua domesticação, entre o final do 5º milênio e a 1ª metade do 4° milênio AEC
(ROSSEL & outros, 2008), em razão das características físicas e comportamentais do animal:
compleição vigorosa; grande resistência física diante das adversidades típicas das zonas
áridas onde vivia; implacável defensor de seu território; valente no enfrentamento dos
predadores; de voz poderosa, cujo zurro pode ser ouvido a quilômetros de distância; de
difícil treinamento, devido a seu caráter obstinado; detentor de forte mordedura e de um
golpe formidável, até mortal, aplicado com as pernas traseiras.
E o jumento não era apenas um animal atribuído ao deus Sete, mas o próprio
Sete teria sido desde o início um jumento. Neste texto, a hipótese que defendemos é que
4

por se tratar de um deus poderoso e atemorizante, sua real aparência não podia ser
abertamente revelada. Suas feições características teriam sido então modificadas com a
intenção de atenuar ou suprimir a perniciosidade potencial emanada de sua imagem, com
o objetivo de ser exercido um controle mágico sobre o deus, direcionando o seu poder divino
em prol da estabilidade do Universo e da concórdia entre os habitantes do Egito. Daí a
maioria dos pesquisadores, entre eles o arqueólogo Herman te Velde (1932-2019) no seu
Seth, god of confusion (1967, p.13-26), declararem que o “misterioso” animal setiano, chamado
sha (SA), nunca existiu na natureza ou que a imagem bimórfica (corpo humano com cabeça
animal) do deus correspondente resultava de uma intrincada combinação quimérica de
detalhes anatômicos provenientes de diferentes espécies, até mesmo algumas bem
exóticas, de animais que povoavam o continente africano.
Conforme Philip J. Turner, em sua tese denominada Set – a misrepresented god
in the ancient Egypt an pantheon? (2012, p.23), citando Alexander Scharff (1892-1950), o
animal de Sete sob a forma asinina já existia no período amretiano, também chamado
Nagada I (c.3900-3600 AEC). Da arte rupestre, o jumento passou a ser representado, ao lado
de outros animais selvagens, em vários tipos de artefatos rituais, notadamente em pentes
de marfim, tal como o exemplar que hoje está depositado no Museu Metropolitano de Arte
de Nova York (MET), EUA, cuja descrição feita pela instituição afirma que o animal que o
decora é um “animal selvagem não identificado”, mas que reproduz com certeza a figura
simplificada de um jumento, cujas longas orelhas pontudas em pé se acham danificadas
(fig. 2), animal em tudo semelhante ao do pente da mesma época pertencente ao museu de
Manchester, Reino Unido, ilustrado no trabalho de Turner (p.27, fig.4).
A função desses pentes encontrados em sepultamentos pré-dinásticos ainda
não está bem esclarecida, mas suspeita-se de uma função religiosa e mágica, de provável
natureza apotropaica. Além dos pentes de marfim, a figura do jumento ocorre no período
Nagada em outros itens de suposta função cerimonial: em relevos nas ditas paletas de
cosméticos, a Paleta Líbia (fig. 3), por exemplo, e em cabos entalhados de facas rituais. No
exemplar n. EA 68512, pertencente ao Museu Britânico, de Londres, por exemplo, dois
asnos foram identificados pela egiptóloga Marie Vandenbeusch (2020, p.47, fig.11), peças em
que a presença do jumento parece estar sempre conectada à imagem perniciosa do deserto,
região temida pelos antigos egípcios por ser vista como uma fonte contínua de malignidade.
5

Outro item importante, pertencente ao Ashmolean Museum, Oxford, Reino


Unido, é a figura tridimensional de um animal estendido em posição horizontal sobre o
ventre, provido de patas ao invés de cascos, encontrado na tumba 721 de Nagada (Nagada
II, c. 3450 AEC). Esculpido em calcário rosado (cor bem apropriada, já que o vermelho era a
cor de Sete), a ele faltam as orelhas e a cauda, extraviadas por serem elementos
independentes, simplesmente encaixados (fig. 4). Ian Robert Taylor em sua tese
Deconstructing the iconography of Seth propôs uma reconstituição hipotética, mas bastante
plausível, dessa peça (2016, p.155 e 156; figs. 9.3 e 9.4). Na escultura é possível adivinhar a
silhueta do animal setiano já transfigurado por motivos mágicos, pois não retrata um
jumento, mas um canídeo com o ventre recolhido e o focinho encurvado. Também no Petrie
Museum of Egyptian Archaeology, Londres, Reino Unido, havia um exemplar semelhante a
este, porém lamentavelmente perdido (PIZZATO, p. 32).
Taylor em sua tese menciona um trecho das Texto das Pirâmides em que o deus
Sete é chamado “aquele de Nubt” (p. 30 e 31), sendo Nubt (nbwt) a “cidade do ouro“, situada
no Alto Egito, depois conhecida por Ombos pelos gregos, assentamento de origem pré-
dinástica localizado à margem esquerda do Nilo, não muito longe de Wâdi al-Hammâmât,
vale situado no Deserto Oriental, em cujas paredes de pedras sobrevivem petróglifos
neolíticos com representações de jumentos selvagens. Nesse mesmo deserto achavam-se
estabelecidas as antigas minas auríferas que um dia haviam feito a prosperidade de Nubt.

Um deus jumento, controlado por magia

Sete era, portanto, uma divindade procedente do Deserto Oriental e tinha em


Nubt o seu centro de culto. O deus possuía decerto a princípio a forma de um jumento, de
espírito indisciplinado e incontido, sendo incorporados à sua personalidade aspectos
perigosos que os primitivos ancestrais dos egípcios descobriam nos animais originários do
deserto. Graças à sua natureza violenta e transgressora, foi definido por aquilo que em
inglês se chama um trickster god, um deus rebelde, que não obedece às regras divinas (TE
VELDE,1968, p.37 a 39). Uma deidade que personificava “o necessário e criativo elemento de
violência e desordem existente dentro do mundo organizado" (Set, deity. WIKIPEDIA en.; trad.
do Autor).
6

Conforme relata Turner (p.28), durante o período Nagada III (3300 a 2900 AEC),
três centros egípcios se destacavam. No Alto Egito, Nubt foi ultrapassada em importância
por Hieracômpolis, originalmente denominada Nekhen (nHn), a cidade do falcão, referente
a uma deidade mais tarde assimilada ao deus Hórus. Das ruínas desse assentamento
proveio a danificada cabeça da maça cerimonial do rei Escorpião II (Serket, srqt), da época
protodinástica, também chamada Dinastia 0 (c. 3200 AEC), encontrada por James E. Quibell
(1867-1935) e Frederick W. Green (1869-1949) durante a temporada de escavação de 1897-
1898.
Nessa bola de pedra, hoje no acervo do Ashmolean Museum, há entalhes
figurando alguns estandartes territoriais coroados por representações de deuses locais. De
acordo com Turner (p.28), citando a arqueóloga francesa Béatrix Midant-Reynes, autora do
livro Préhistoire de l'Égypte. Des premiers hommes aux premiers pharaons (1992), esses
estandartes representariam tribos sulistas conquistadas pelo rei Escorpião. Turner ( p.28)
considera essa explicação assaz relevante, porque existem na maça dois estandartes com a
provável figura do deus Sete em seu aspecto zoomórfico.
A divindade, também identificada pelo arqueólogo Te Velde no seu Seth, god of
confusion (p.8), mostra-se no objeto, em nossa opinião, ainda sob a silhueta conservadora
de um asno, desprovido de certos aspectos setianos que aparecem na escultura encontrada
na tumba 721, datada de Nagada II, à qual já nos reportamos, embora nem todos os
egiptólogos talvez tenham se apercebido desse fato: atarracado, corpulento, com focinho
largo e rombudo voltado para baixo. Porém, trata-se de um animal asinino magicamente
docilizado, conforme o sortilégio presente nos petróglifos neolíticos. Suas orelhas
mostram-se direitas e cortadas horizontalmente nas pontas, enquanto a cauda pendente
típica do jumento está substituída por uma seta cravada em seu lombo, não de modo
vertical como será futuramente, mas em posição oblíqua. A extremidade da arma deixa
evidente ser a ponta posterior de uma flecha, bifurcada e providas de penas (fig. 5).
Em nosso modo de ver, esta imagem é importantíssima, porque formalmente
estabelece a transição entre o jumento selvagem com o pescoço cravado com dardo ou
seta, gravado nas pedras do Deserto Oriental (fig.1), e o animal setiano plenamente
integrado ao panteão egípcio. Ou seja, a terrível deidade do deserto já se encontrava
naquela altura domada por recursos mágicos que se aperfeiçoariam e perdurariam nos
milênios posteriores. Enquanto a peça da tumba 721, por lhe faltarem justamente os
7

complementos caracterizadores, orelhas e cauda, fica sua completa configuração setiana


ainda no terreno das hipóteses.
Turner (p.28) vai ainda mais longe em suas conclusões. Acredita que esta cabeça
de maça retrate os primeiros passos em direção a um Egito unido. Escorpião, como rei de
uma tribo baseada em Hieracômpolis, provavelmente adorador de um deus falcão depois
assimilado a Hórus – o deus local Nequeni, “aquele de Nequém” (Nekheny; nxni), – teria
subjugado outras tribos sulistas, entre elas Nubt, em que se adorava Sete. Esta vitória teria
provocado a fuga de adoradores sobreviventes de Sete para o Baixo Egito, levando-os a se
transferir para a área nordeste do delta, onde Sete passaria a ter uma série de cidades a ele
associadas e onde seria adorado mais tarde pelos reis hicsos, que o confundiram com o deus
semita Baal Hadad (deus das tempestades), e pelos faraós raméssidas, cuja família de
militares era originária da região de Aváris (hut-waret; Hwt-wart), cidade que tinha Sete por
senhor (TAYLOR, p. 123).
Outra consequência dessa conquista histórica, segundo John Gwyn Griffiths
(1911-2004) em sua obra The conflict of Horus and Seth (1960, p.134), seria a origem do mito
que descreve as hostilidades entre Sete e Hórus (deus que no mito da disputa divina pelo
trono do Egito ora aparece como sobrinho, ora como irmão de Sete), mito cujos fragmentos
de texto mais antigos remontam ao Médio Império (c.2030 a 1650 AEC), mas ao qual já
faziam referência certos encantamentos dos Textos da Pirâmides (TAYLOR, p.10). Apesar de
engenhosa, a hipótese de Griffiths, no entanto, foi logo contestada por outros especialistas,
porque o conflito da Ordem (representada por Hórus) contra o Caos (encarnado por Sete)
deve ser reconhecido como formando a base da religião egípcia, cuja concepção
certamente remontava a época muito anterior às rivalidades existentes entre as duas
povoações pré-dinásticas do Alto Egito, Nubt e Nequém (Nekhen; nxn).
Em um trabalho datado de 2009, intitulado Detecting magic in rock art: The case
of the ancient Egyptian 'malignant ass', publicado em Academia.edu, Dirk Huyge (p. 295)
transcreve uma descrição do jumento visto nos petróglifos, feita por outro autor: “um
quadrúpede com cauda, um pescoço curto ereto, orelhas longas e eretas [...], um focinho
largo e rombudo ligeiramente curvado para baixo" (trad. do Autor). Também Taylor (p.2) dá
sua versão da mais primitiva imagem zoomórfica de Sete (referindo-se à imagem do animal
datada do período pré-dinastico) com palavras bastante semelhantes: “quadrúpede
rechonchudo, de pernas atarracadas, orelhas eretas com listras horizontais e focinho
8

troncudo” (trad. do Autor). Descrições essas muito próximas uma da outra e muito
dessemelhantes da figura por nós conhecida como sha: “um animal parecido com um
gracioso canino, com um focinho [fino] curvado para baixo do Antigo, Médio e Novo
Império” (Taylor, p.2.; trad. do Autor). A essa descrição básica, poderíamos acrescentar o fato
de que habitualmente o animal ainda apresentava uma estranha cauda aprumada e
retilínea, provida de extremidade em forma de forquilha (Gardiner E 20 e E 21), aparência
que disfarçava a velha seta cravada na garupa do asno visto na antiga maça cerimonial do
rei Escorpião (fig. 6).
Constatamos assim que as restrições mágicas de origem neolítica impostas à
imagem dos jumentos passaram a ser aplicadas ao aspecto zoomórfico do deus Sete e ao
próprio deus em sua forma bimórfica, no intuito de impedir que sua representação liberasse
possíveis emissões de perniciosidade (fig.7).
Por se tratar de uma das divindades principais da religião egípcia, chefe do
panteão cultuado na cidade de Nubt – segundo Turner (p.24), citando a arqueóloga alemã
Elise Jenny Baumgärtel (1892-1975), autora do livro The Cultures of Prehistoric Egypt (1955) –
, e partícipe da enéade (psDt) adorada em Heliópolis (aiwnw), Sete não podia certamente
ser neutralizado do mesmo modo como era feita a desativação mágica dos jumentos do
período neolítico ou do animal sha durante o período dinástico. A condição divina de Sete
decerto impedia que sua imagem bimórfica fosse ameaçada por uma simbólica arma
disfarçada como se fazia com sua forma animal. Afinal, Sete era uma das deidades egípcias
de maior grandeza, em honra do qual se construíam templos e se constituíam sacerdócios,
e que ao longo do tempo adquiriu um significativo séquito de adoradores, entre eles, como
já dito, os soberanos hicsos e os faraós raméssidas, além dos membros da colônia semita
que existiu no lado oriental do delta durante o Médio e o Novo Império.
As alterações físicas então introduzidas em sua aparência não poderiam ser,
porém, inteiramente fortuitas e descaracterizadoras, pois senão estaria sendo criada a
imagem de um novo deus, ao invés de ser exercido o domínio sobrenatural sobre uma
divindade conhecida que, para o bem ou para o mal, ocupava um lugar de relevância dentro
do panteão egípcio. A solução era, portanto, introduzir modificações a tal ponto dosadas
que permitissem ao deus continuar sendo reconhecido e dignificado como tal, não apenas
pelos sacerdotes, mas também por seus devotos.
9

Havia também a alternativa de apresentar o deus por meio de seu total


antropomorfização, ato a que por certo se recorreu raramente ou na intenção de se obter
maior segurança mágica contra a divindade, ou conferir maior dignidade a determinadas
manifestações de Sete, como se vê, por exemplo, no templo mortuário da rainha
Hatshepsut (HA.t-Sps. wt) (reinado de c.1479 a 1458 AEC) e na tumba do faraó Seti I (sty)
(reinado c.1292 a c.1277 AEC) .
Outro exemplo eloquente de antropomorfização neutralizante de Sete aparece
na estela de Taqayna, hoje no Rijksmuseum van Oudheden, em Leiden (Inv. AP.60), Países
Baixos, datada da 18ª dinastia (c.1550-c.1292 AEC), em que tanto o deus, chamado Nubty
(o de Nubt), epíteto de Set, como a serpente monstruosa do Caos chamada Apófis são
representados sob traços humanos. Sete está totalmente antropomorfizado, enquanto o
monstro exibe um enorme corpo de serpente, com cabeça e mãos humanas. Sem dúvida,
um expediente mágico de alto desempenho, promotor ao mesmo tempo da dignificação de
duas entidades entendidas como extremamente perigosas e da desativação das energias
negativas por elas emanadas (fig. 8).

O animal setiano

No caso do animal sha, o primeiro passo foi, decerto, transforma-lo de asinino


em canídeo, com o corpo tão esbelto quanto o do chacal Anúbis (inpw). Suas longas orelhas,
tais como na cabeça da figura bimórfica, mantidas eretas, tornaram-se inteiramente
direitas e cortadas nas pontas em ângulo reto, algo que já se via no tempo do rei Escorpião,
deixando claro que se tratava de orelhas estilizadas, não encontráveis na natureza, i.e. não
copiadas de nenhum outro animal vivo, embora por vezes quase comparáveis em
comprimento às representadas nos petróglifos neolíticos (comparar fig. 9 e fig. 1). O
focinho adquiriu um perfil afilado, elegante – chegando por vezes a assumir o formato de
um bico arqueado (fig. 10) –, mantendo-se assim preservado o encurvamento do perfil da
cabeça dos jumentos com o objetivo de favorecer o reconhecimento do animal
magicamente refreado.
Essa configuração física de Sete, seja em sua forma bimórfica seja em sua
configuração animal, no entanto, nunca chegou a ser estritamente codificada pelas
autoridades religiosas, ocorrendo, através do tempo e do espaço, um grande número de
10

variações tanto nas proporções das diferentes partes do corpo de sha, quanto nas feições
do deus quando este assumia a modalidade bimórfica, como minuciosamente destrinçou
Taylor em sua retromencionada tese de doutorado.
Quanto à cauda, adquiriu ela no decurso de séculos aspectos sucessivos. O mais
significativo é aquele que deu ao apêndice pós-anal de sha a forma de uma seta, com
terminação bifurcada e provida de penas (fig. 11), depois simplificada em simples
bifurcação. Essa opção formal aludia diretamente ao expediente mágico adotado milhares
de anos antes nos petróglifos do Deserto Oriental do Egito, na Rocha dos Abutres, em El
Kab, por exemplo (fig. 1), pois ao ferir a imagem teriomórfica do deus com um instrumento
contundente de caráter mágico, a divindade rebelde ficava imediatamente subjugada à
ordem cósmica de Maat (mAat).
Ao que tudo indica, os escribas nunca se esqueceram do significado da cauda
mágica inserida na figura do animal sha. Taylor (p. 85), por exemplo, reparou que durante o
1º Período Intermediário (2181–2055 AEC) em textos escritos em hierático, lançados tanto em
papiro quanto em outros objetos, quando era empregado o determinativo do deus Sete
sentado (Gardiner C7), vinha ele acompanhado de cauda, o que não era habitual. O
estudioso não explica o porquê da ocorrência, mas nos parece claro que a cauda ajuntada
ao determinativo tinha a intenção de reforçar magicamente a sua neutralização.
Esses recursos mágicos para conter o poder maligno de entes considerados
perigosos ou de mau agouro eram muito frequentes nas religiões da Antiguidade. No Egito
mesmo, podemos evocar à guisa de ilustração, entre outros exemplos, o escorpião, animal-
símbolo da deusa Sélkis ou Serket (srqt), cuja aparição no panteão egípcio remonta ao final
do Antigo Império (c.2700-2200 AEC), animal que, ao ser representado sobre a cabeça da
deusa, também sofreu mutação em parte de sua estrutura física. Perdeu as pernas e a cauda
peçonhenta, de modo a ficar desativada a periculosidade do aracnídeo (Gardiner L7) (fig.
12).
Séculos antes, no tempo do rei Escorpião, o animal que definia o nome do
soberano ainda era retratado de maneira realista, pois assim aparece na cabeça da maça
cerimonial pertencente a esse rei, porém, a partir do Antigo Império, o aracnídeo foi
submetido à influência da magia, como também se observa em um dos relevos
provenientes da câmara sul do complexo funerário do rei Djoser (Dsr-r) (séc. XXVIII-séc.
XXVII AEC). Ao lado do rei, há um cetro was personificado que ostenta um escorpião sem
11

pernas e com o corpo muito disforme, cujas pinças estavam imobilizadas por meio de
presilhas, representando o símbolo de Serket (fig. 13), a deusa protetora dos faraós no
tempo das pirâmides. O corpo corrompido do animal não buscava reproduzir nenhuma
forma existente na natureza, deixando claro que a deformação tinha caráter mágico, tal
como acontecia com as alterações setianas. Revelando assim uma atitude muito diferente
da que sucedia com os animais fantásticos de índole benéfica que também povoavam a
imaginação egípcia, tal como, o serpopardo e o leogrifo com cabeça de falcão (falcogrifo,
seria a denominação mais precisa), por exemplo, esses, sim, compostos com partes de
outros animais existentes na natureza e cuja origem remontava à cultura desenvolvida na
Mesopotâmia, no caso do serpopardo, e na região iraniana, no caso do falcogrifo. Além desse
recurso, havia outro muito utilizado: o mutilamento deliberado de certos hieróglifos que
reproduziam figuras tidas como perigosas ou nocivas.
Huyge argumenta (p.301) que do Médio Império em diante o jumento no Egito
foi "erradamente" identificado com o animal setiano e que o deus, "uma criatura puramente
imaginária ou um animal híbrido" (trad.do Autor), passou a ser regularmente representado
com a cabeça de jumento. Baseou-se para fundamentar tal asserção na convicção de
inúmeros egiptólogos que, por infelicidade, não souberam reconhecer de maneira
adequada na figura do deus Sete e do animal sha, dominados por meio da magia (i.e., com
a aparência cuidadosamente alterada), o velho jumento das pinturas neolíticas, ao contrário
do que estamos tentando fazer aqui.
No Médio Império eram usados também os chamados marfins mágicos, em
formato de meia-lua, em que se veem, por vezes, gravadas cabeças de jumentos, entre
outros desenhos. Alguns especialistas preferem reconhecer cabeças de lebres em algumas
dessas ilustrações. Mas, de fato, o exemplar existente no MET de Nova York, o do Louvre,
de Paris, e o do Museu Britânico, de Londres (VANDENBEUSCH, p. 167, figs. 70 e 71; p. 168, fig. 73),
a nós, não deixam dúvidas de que se trata do deus Sete sob a forma de jumento. Além de
demônios que atacam prisioneiros indefesos, esses marfins de função apotropaica trazem
outros seres fantásticos, como serpopardos e leogrifos, animais agressivos, mas benignos,
que se investiam contra as feras do deserto, ao lado de leões e outros felinos, nas antigas
paletas cerimoniais do período pré-dinástico (ver a Paleta dos Dois Cães, do Ashmolean
Museum, por exemplo) (fig. 14). As imagens desses marfins apresentam um clima de
violência e tortura que admitimos ser bem setiano, e a presença do deus Sete nesses
12

talismãs não deveria causar nenhuma estranheza, afinal tinha, entre outros epítetos citados
nos encantamentos existentes nos interiores das pirâmides, o de “grande em magia [Ur-
hekau; wr-HkAw] de Ombos [i.e.,Nubt] “ (ALLEN, p. 39 e 40) (fig. 14 a).
A retomada da figura do jumento, que seria em nossa visão a aparência
verdadeira de Sete, é ilustrada por Taylor em sua tese (p.68 e 69) com algumas imagens de
inscrições hieráticas pintadas em sarcófagos da 12ª dinastia (1991- 1802 AEC), em que o
deus em sua forma zoomórfica (Gardiner E 21) ostenta a cabeça de asno, acoplada ao
tradicional corpo de canídeo, em que se transformara o animal sha. A razão dessa ousada
recuperação imagética não saberíamos por ora esclarecer, embora esteja provavelmente
ligada a uma sectária devoção ao deus desenvolvida na região de Assiut, de onde são
provenientes os caixões mortuários em que se usavam os hieróglifos setianos com cabeça
de jumento (VANDENBLEUSCH, p.166). Taylor também reparou em certas particularidades no
uso da imagem de Sete nos caixões dessa proveniência ( TAYLOR, p. 64,65,71). Embora
retratado com sua autêntica cabeça, nessas inscrições Sete não passa impune. As orelhas
em algumas ocasiões cortadas, o corpo de canídeo e o realce dado à cauda do animal,
extremamente alongada e às vezes notavelmente encurvada, chamam a atenção, deixando
claro que sha embora ostentando sua verdadeira aparência, continuava sob o estrito
domínio da magia que o tornava inofensivo. A esse respeito, Taylor nota, como já havia feito
Te Velde, que essas representações são algo ”geralmente associado a representações do
Período Tardio” (p.70) (fig. 15).
Acerca do animal sha representado nos ataúdes estudados por Taylor (p. 48 e 49),
o autor faz uma observação que atrai nosso interesse. Ele comenta a notável variação
havida em relação à forma adotada do animal sha nessas inscrições. Em certos
encantamentos, o animal setiano aparecia neutralizado por meio de uma faca na cabeça.
Em dois caixões, porém, no texto do encantamento 50, em que Sete ameaçava Osíris, o
animal deitado sobre o ventre (Gardiner E 21) aparecia sem cauda. Sobre isso, Taylor
levanta a possibilidade de o escriba ter considerado que, ao remover a cauda ereta do
animal, "um símbolo da agressão de Sete", segundo vários autores citados por Taylor, o
escriba tornava o animal inofensivo dentro do encantamento.
Essa ocorrência não deixa de ser curiosa, porque, como vimos, a cauda em forma
de seta ou bifurcada era um dos mais notáveis sinais da magia religiosa que controlava Sete
e não a marca da agressividade de Sete, e remover a cauda desse animal não era o mesmo
13

que remover as pernas e o aguilhão de um escorpião. Neste último caso, o aracnídeo ficava
inteiramente desativado, sem poder deslocar-se e sem veneno. No caso de sha, ao
contrário, a seta era um dos sinais de que o animal estava controlado por magia sacerdotal,
e se o escriba a removia, é porque devia saber que a cauda representava uma arma, uma
flecha disfarçada. E talvez tenha agido assim para deixar Sete desprovido de agressividade,
mas ciente de que ao fazer isso ainda restavam outras marcas que garantiam o controle
mágico sobre o animal sha, como o corpo de canídeo, as orelhas cortadas e retas e o focinho
fino e curvo.
O uso do animal setiano como hieróglifo determinativo não deixa de ser um
indicador de que a perversidade do jumento do Neolítico continuava latente no animal sha.
Os hieróglifos que o representavam (Gardiner E 20 e E 21) eram comumente usados como
determinativo em palavras relativas ao Caos ou de sentido negativo, ligadas à ideia de
sofrimento, violência e perturbação, tais como: doença, raiva, tempestade, pesadelo,
confusão etc. Nesse caso, o determinativo estaria sendo usado para enfatizar “a violência,
o poder e o terror da palavra ou da ideia” (TAYLOR, p.53).
No Médio Império, tornou-se também comum na escrita da palavra aA
(jumento) a substituição inversa: o determinativo referente a esse animal (Gardiner E7)
começou a ser trocado pelo determinativo do animal sha (Gardiner E 20 ou E 21), sobretudo
em textos funerários, religiosos e mágico-medicais, conforme esclarece a egiptológa do
Museu Britânico Marie Vandenbeusch, em seu livro Sur les pas de l'âne dans la religion
égyptienne, publicado no ano de 2020 em Academia.edu (p.140). Procedimento gráfico que,
aos nossos olhos, confirma a identidade havida entre o jumento, o animal sha e o próprio
Sete, três criaturas que compartilhavam da mesma natureza asinina.

Sete como salvador de Rá

Em diversas passagens dos Textos das Pirâmides (do início do séc. XXV a 2055
AEC), dos Textos dos Sarcófagos (c. 2100 AEC) e do Livro dos Mortos (c.1550-c. 50 AEC), são
os jumentos taxados de criaturas maliciosas, verdadeiros epítomes do mal, e explicitamente
considerados como seres que punham em perigo a segurança da sagrada barca solar
noturna, chamada Mesektet (msktt), ao cruzarem com ela no inframundo, quando esta
rumava em direção ao amanhecer (HUYGE, p. 301).
14

Em sentido oposto, nesses mesmos Textos das Pirâmides, Sete, que não
deixava de ser um jumento, era mencionado como um dos passageiros da barca de Rá. De
acordo com o Livro dos dois Caminhos (datado do Médio Império), o deus ocupava um lugar
na proa, ao lado de Hórus e Ísis (Aset; Ast). Não lhe era, porém, reservada uma tarefa
específica na embarcação solar (AWADALLAH, 2019, p.10). Ao contrário do que aconteceu no
Novo Império (c.1550–1070), quando a Sete foi conferido um comportamento
aparentemente contraditório, pois, embora eterno desafiador de Maat, a ele foi atribuído
um ato de expressiva grandeza heroica, ao ficar responsável por evitar que, no mundo dos
mortos (dwAt), a cada noite, o deus Rá (ra), instalado em sua barca, fosse mortalmente
atacado por Apófis (aApp), a monstruosa serpente agente do Caos, que todas as noites
renascia para tentar eliminar o maior deus solar dos egípcios (TE VELDE,1967, p. 81 a 99). Esse
novo papel divino atribuído a Sete, que recebeu o título de “grande em força na barca dos
milhões [de anos]” (HART, p.145), teria sido bastante promovido durante a dinastia
raméssida (c.1292-c.1077), especialmente por Ramsés II (ra-msi-su) (reinado entre 1279 e
1213 AEC), por razões políticas e religiosas (GAD,2021, p.46).
Entretanto, mesmo suprimindo Apófis a cada noite e se tornando a cada noite o
salvador de Rá, Sete, o deus rebelde, por dispor de um passado que o desabonava, não
contava com as condições necessárias e suficientes para receber a total confiança dos
deuses, dos vivos ou das almas dos mortos. O encantamento 175 dos Livros dos Mortos (Ru
nu peret-em-heru; rw.nw.prt.m.Hrw), cujo nome original traduzido seria algo como
Manifestação para a luz do dia, revela o temor que a alma de Sete inspirava nos ocupantes
da barca do deus-sol. A alma (ba; bA) de um morto que se dirigia para o Além como
passageira da barca solar ao perguntar a Atum se a alma de Sete também seria conduzida
ao Oeste (Iment, imnt, o mundo dos mortos) recebeu como resposta que ele, Atum, a tinha
colocado sob guarda para que Osíris não a temesse (TURNER, p.104 e 233).
Esse encantamento, que não sabemos quando foi acrescido à coleção para uso
dos mortos, deixa entender que de fato Sete não seria o deus ambíguo, com ações
contraditórias, ora violentas ora magnânimas, tão comumente descrito. Não seria o deus
temido por sua malevolência, mas que, quando necessário, sabia agir com generosidade e
heroísmo em caso de perigo, em prol da manutenção do equilíbrio cósmico de Maat, ao
salvar a barca de Rá e ao destruir o grande agente do Caos. Em nossa opinião, não é essa a
chave interpretativa correta para a compreensão das atitudes de Sete.
15

A interpretação que propomos aqui é que, ao salvar o deus solar e sua barca, o
deus rebelde não teria agido por decisão própria, mas coagido pela magia religiosa que o
dominava por meio da alteração de sua aparência. Era a magia que impedia o lado mau do
deus de se manifestar, colocando-o a serviço do benigno deus-sol, que o tinha acolhido e
convidado a segui-lo em sua barca, após a derrota de Sete perante Hórus, conforme o mito
do conflito entre os dois deuses (TE VELDE,1967, p.108). Por ter em si uma natureza
intrinsicamente malévola, de todos conhecida, não adiantava praticar o supremo bem de
promover a salvação de Rá e, por conseguinte, de todo o Universo, pois tal gesto, mesmo
de dimensão grandiosa, não era suficiente para suprimir o horror que Sete causava em
todos, tanto humanos quanto deuses.
A propósito do que afirmamos acima, chamamos a atenção para uma passagem
de Taylor (p.17) em que esse autor discorre sobre a discussão que Eugenio Cruz-Uribe (Stx aA
pHty Seth, God of Power and Might ,2009) estabeleceu a respeito da sugestão de Gay Robins (The

Art of Ancient Egypt, 1997) relativa à substituição de Gardiner C7 (hieróglifo determinativo do


deus Sete sentado) por C83 (Unicode-1306D, hieróglifo determinativo de Osíris sentado) no
cartucho do faraó Seti I existente em sua tumba (KV17) e à substituição do mesmo Gardiner
C7 pelo hieróglifo Gardiner V39, nó de Ísis (Tyet, Tt) no nome desse faraó localizado em seu
templo funerário de Abidos (Abdju,AbDw). Robins aventou a possibilidade de que isto
acontecia devido ao fato de que a tumba e o templo não serem lugares apropriados para
receber a imagem de Sete. Cruz-Uribe admite que a substituição na tumba e no templo
ocorreram visando manter a ordem cósmica estável, mas discorda da sugestão de Robins
de que esta atitude indicaria o primeiro estágio de um aviltamento oficial de Sete. Ele
propõe que era improvável que os faraós da 19ª dinastia (c. 1292-1189 AEC) quisessem
aviltar Sete, uma deidade altamente favorecida por eles. Em vez disso, entende que a
substituição dos determinativos de deidades “era uma maneira de lidar com uma divindade
problemática como Sete” (trad. do Autor). Taylor considera a posição de Cruz-Uribe
inconclusiva, mas, de nossa parte, concordamos inteiramente com ela.
E nossa explicação para essas substituições terem ocorrido é o reconhecimento
da periculosidade de Sete. Sete era uma divindade malévola que só se tornava útil aos
propósitos dos defensores de Maat, desde que fossem tomadas precauções de caráter
mágico para evitar que os maus fluidos emanados das imagens setianas dessem sinais de
sua presença.
16

Mas nem sempre foi assim, muitas tumbas, templos e templos mortuários
trazem imagens de Sete em sua tradicional aparência bimórfica, assim como há nesses
locais nomes e palavras escritas em hieróglifos acompanhados de determinativos setianos.
Para confirmar isso, bastar consultar o riquíssimo levantamento iconográfico anexado no
fim da tese de Taylor (p.562 e ss.). Havia, porém, momentos em que maiores precauções
foram adotadas. No caso da tumba de Seti I, por exemplo, havia uma imagem do deus Sete
representada sob forma antropomórfica, à qual nos referimos páginas atrás. Chamada
”divisor do submundo”, a divindade tomava aqui uma coloração ctônica, mas havia outra
imagem de Sete como “suas duas faces”, neste caso, a deidade reunia a essência dos deuses
Sete e Hórus, também chamados em alguns encantamentos, depois da reconciliação, os
dois senhores ou referidos como irmãos (TAYLOR, p.36). A representação da divindade era
bicéfala. Nessa situação, a cabeça de Sete tradicional era consentida, porque o deus de duas
faces resultava numa manifestação equilibrada e benigna, graças à presença compensadora
da cabeça do deus-falcão (fig. 16).
E o que estava por trás disso tudo era, sem dúvida, o temor que a deidade em
sua aparência animal magicamente disfarçada infundia até mesmo entre seus seguidores.
Podemos deduzir, portanto, que Sete só era uma deidade inteiramente confiável e
benevolente, em apenas duas situações: quando se apresentava sob a forma inteiramente
humana, ou sob a aparência do Sete de duas faces (também chamado Antewy, ao qual
retornaremos adiante), por estar, no segundo caso, o lado negro setiano contrabalançado
com a face benfazeja do deus Hórus. Mais à frente, veremos que, em templos e santuários
localizados em oásis, surgiria a imagem do deus Sete com uma única cabeça de falcão. Uma
vez suprimida cabeça setiana, durante a fase persecutória que o deus sofreu durante a era
tardia e a ptolomaica, devemos deduzir que a divindade se transformava, por conseguinte,
em entidade essencialmente benévola*.
* Apesar das meticulosas precauções mágicas tomadas na tumba e no templo funerário de Seti I, notamos, pelo levantamento
iconográfico elaborado por Taylor para a sua tese, que na tumba desse faraó (K17), em sua capela situada em Kanais e em seu próprio
templo mortuário abundavam as imagens de Sete, tanto bimórficas como em forma de determinativos setianos. Isso parece demonstrar
que as prevenções com a influência negativa de Sete teriam ocorrido mais tarde, provocadas talvez por desvelos religiosos adotados
posteriormente, que passaram a evitar a imagem do deus sobretudo em ambientes dedicados a Osíris, deus por ele assassinado. A nova
atitude em relação a Sete, durante a dinastia raméssida, no entanto, não implicou na eliminação das imagens divinas executadas
anteriormente.

A decadência do Egito e o envilecimento de Sete


17

Turner ressalta que foi no período da 19ª dinastia que Sete provavelmente se
mostrou mais popular. Como os faraós raméssidas se haviam originado do delta do Nilo,
numa família de tradição militar, eles adoravam Sete como um deus familiar e por causa
disso quiseram honrá-lo não apenas em sua região de origem, mas em todo o Egito,
tornando-o o protetor dos novos soberanos.

Admiravam sua força e desejavam ser a ele comparados quando foram chamados
para liderar seus exércitos contra os invasores estrangeiros, embora inversamente
ao mesmo tempo pudessem reconhecer Sete como sendo o deus do panteão egípcio
que representava esses mesmos estrangeiros. Este aparente conflito na posição de
Sete também pode ser reconhecido no fato de que, enquanto o papiro Chester
Beatty [I], que descrevia o conflito entre Hórus e Sete, datava desse período, Sete
era na mesma época frequentemente descrito num sentido negativo nos
encantamentos do Livro dos Mortos, podendo, porém, ser descrito nesses mesmos
encantamentos como uma força positiva, por exemplo, quando ele defendia a barca
solar de Rá contra a cobra Apófis.
Este lado mais positivo do caráter do deus também se refletia em seu nome, sendo
incorporado não só aos dos faraós, mas também aos da população em geral,
indicando que ele não era apenas um deus do Estado egípcio, mas que as pessoas
comuns também o adoravam como um deus local ou deus pessoal.
(TURNER, p.109; trad. do Autor).

A situação honrosa de Sete propagada pela 19ª e pela 20ª dinastia (1292-c.1077
AEC) contudo não perduraria, pois todos os autores por nós consultados concordam que a
proscrição do deus Sete se iniciou no Egito a partir do Terceiro Período Intermediário
(c.1077-c.664). Aos poucos, o orgulhoso país imperialista que fora o Egito durante o Novo
Império perde força política e econômica e mergulha na submissão a outros povos.
Também nessa mesma etapa, a situação do deus Sete começa a mudar. Por ser
deus da violência, era considerado um deus da guerra e visto como um protetor da terra do
Egito, mas com o país sofrendo invasões e sendo governado por estrangeiros, os poderes
protetores de Sete decerto começaram a ser questionados. A nova visão sobre o deus,
porém, não era unânime. Como deus do deserto, Sete continuou a ser adorado em oásis e
em distantes localidades. Aí a fé no deus não decaiu. Pelo contrário, a imagem negativa do
deus foi depurada e um novo Sete surgiu.
Exemplo disso ocorreu durante a 25ª dinastia (744-656 AEC), também chamada
dinastia núbia, no reinado do rei cuxita Piye ou Piankhi (piy ou p-ankh-i-i), morto em 714,
18

numa estela erigida no templo de Sete (então chamado Sutekh) situado no oásis Dâkhla,
peça hoje chamada a Pequena Estela de Dâkhla, exibida atualmente no Ashmolean Museum.
Na placa de pedra, danificada no alto, do lado esquerdo, vê-se o deus Sete de pé diante de
uma mesa de oferendas, sob nova aparência, com a cabeça de falcão coroada com um disco
solar e com o was na mão esquerda. Na frente da imagem há a inscrição: ”Enunciado por
Sutekh, grande em força, filho de Nut” (TURNER, p.114) (fig. 17).
Nos lugares em que em estelas anteriores era usado um dos hieróglifos
determinativos com a figura do animal sha para grafar o nome do deus Sete, na estela acima
citada o seu uso foi evitado. O que parece indicar uma mudança de atitude em relação a
Sete, observa Turner (p.114). Enquanto isso, no vale do Nilo a menção a esse deus tende a
declinar.
Ousaríamos afirmar que na pequena estela de Dâkhla surpreendemos o início da
heroicização de Sete, ocorrida nos oásis do Egito. Sua imagem mudara inteiramente, não
era mais o perigoso deus jumento, magicamente dominado de antes, pois agora estava
transmutado em deus falcão.
Supomos que a nova imagem de Sete tenha sido herdeira de uma deidade
chamada Antewy, criada, ou adaptada, a partir do mito da disputa de Sete e Hórus, que
terminava com a reconciliação de ambos os deuses (TE VELDE, 1967, p.63 a 73). Uma vez
reconciliados, formaram uma parceria divina, unindo as qualidades antagônicas de ex-
inimigos. Frequentavam, por exemplo, o sema-tawy (zmA-tAwi) (o emblema da reunião dos
dois Egitos) no tempo da 12ª dinastia (c.1938–c.1756), durante o reinado (c.1971–c.1926
AEC) de Sesóstris I (z-n-wsrt), em que Hórus representava o Baixo Egito e Sete, o Alto Egito,
ambos ocupando o lugar do duplo deus Hapi (Hapy) (fig. 18), ou apareciam coroando e
protegendo conjuntamente o faraó Ramsés III (ra-msi-su) (fig. 19). Hórus, em seu papel de
bom governante, racional e competente, e Sete, no de agressivo guerreiro, defensor do país
contra os estrangeiros, ambas qualidades altamente necessárias ao ocupante do trono do
Egito.
Antewy, também identificado como Sete (TAYLOR, p.115), era considerado a
fusão desses dois deuses de naturezas contrárias e complementares, Hórus e Sete, tendo
por epíteto “suas duas faces”, apresentando-se sob a forma bimórfica, com a cabeça de
cada um dos dois deuses sobre os ombros, uma ao lado da outra, embora olhando em
direções opostas (fig. 16). A aparência de Sete como deus falcão, contudo, não era nova,
19

pois já se revelara num detalhe do traje faraônico de Tutmósis III (DHwti-msiw) (reinado
1479-1425AEC) representado em relevo do templo funerário (meados do séc. XV AEC) da
rainha Hatshepsut, em Deir el-Bahari, conforme podemos confirmar pelo levantamento
iconográfico existente na tese de Taylor (p.585, figs. 3.6.41 e 3.6.42).
Na fase de desprestígio de Sete, a aparência tradicional desse deus tendeu a ser
omitida, passando a figura divina de cabeça dupla, imaginamos, a ser representada apenas
com a cabeça de falcão, ficando assim a divindade desprovida do lado violento e escuro de
Sete, ou sendo canalizada toda a agressividade desse deus contra o monstro Apófis e outras
forças do mal.
E é assim que o vemos em belo relevo posicionado na sala hipóstila N do templo
de Hibis (Hebet, Hb), dedicado a Amon e localizado em Kharga, um dos sete oásis do Deserto
Ocidental. Edifício construído no VI século AEC, no tempo do faraó Psamético II (psmtk)
(reinado 585-589 AEC), reformado e ampliado durante o período persa, ao que parece sob
o reinado de Dario I (522-486 AEC) e de Dario II (423-c.405 AEC), e terminado sob Nectanebo
I (nxt- nb.f) (c.369-361 AEC) e Nectanebo II (nxt-Hr-Hbyt) (358-340 AEC), durante a 30ª
dinastia (TAYLOR, p.133).
Embora bastante danificado, o relevo em questão, datado do período
ptolomaico – de acordo com a análise técnica e estilística, a obra teria substituído outra mais
antiga por meio da reesculturação do relevo –, mostra-nos Sete sob a forma gloriosa de um
deus com cabeça de falcão, com amplas asas desdobradas, deixando ver por trás de seu
corpo humano uma parte do corpo e a cauda de um falcão. Ao ser retratado no ato de cravar
a lança na serpente Apófis (figs. 20 a e 20 b), contando com o auxílio de um leão, igualava-
se ao Hórus de Mesen (mnsn), atual Edfu (outro nome dessa cidade era Behedet, bHd.t), em
cujo templo, também proveniente do período ptolomaico (237-57 AEC), o deus solar com
uma lança transpassa o próprio Sete, sob a imagem vilanizada de um hipopótamo (fig. 21).
Se no deserto, a figura paladina de Sete atinge uma dignidade nunca dantes
alcançada, pois com um gesto impetuoso golpeia o monstro do Caos e salva Rá e, assim, o
Universo inteiro, no vale do Nilo, ao contrário, Sete será reduzido a vítima de um rápido
processo de demonização.
Provavelmente, foi a intensificação do culto osiríaco que deve ter dado início ao
processo de desqualificação de Sete, por tê-lo transformado em assassino de Osíris. No
entanto, esse processo passou por altos e baixos durante as várias fases do Egito Antigo,
20

conforme descreveu Taylor (p.338,390 e 393). Mas o que parece ter muito contribuído para o
rebaixamento final de Sete, levando-o ao nível de um demônio desprezível, foi a triste
história política do Egito, desenrolada desde antes do Período Saíta (664-525 AEC).
Depois da dinastia líbia (880-734 AEC), da dinastia núbia (744-656 AEC), da
invasão assíria (673-665 AEC) e da ocupação persa (525-330), Sete, sem dúvida, deve ter sido
encarado pelos egípcios como um vil traidor, que, como deus dos estrangeiros, beneficiava
os invasores inimigos, ao invés de proteger o Egito.
Como deus das terras estrangeiras, fora reverenciado por hicsos e por uma
colônia de sírios e cananeus estabelecida no leste do delta durante o Médio e o Novo
Império – período em que foi identificado com Baal Hadad e em que chegaram a ser
atribuídas a ele como consortes, além de sua própria esposa Néftis (Nebet-Het, nbt-Hwt),
duas deusas irmãs de origem semita, Anat e Astarte, também adoradas no delta nessa
época (ANAT; ASTARTE. Ancient Egyptian Religion World History Encyclopedia).
Agora, sua influência levantava suspeitas, ia longe o tempo em que protegia o
rei durante suas conquistas asiáticas, como o fizera com Peribsen* (pr-jb-sn), por exemplo,
que reinou em tempo incerto durante a 2ª dinastia (c.2890-c.2686 AEC). Soberano que
trazia no serekh**, não o seu nome de Hórus, mas o seu nome de Sete, tendo a figura de
sha como timbre, no lugar do falcão solar (TAYLOR, p.128) (fig. 22).

* De acordo com especulações, o faraó Peribsen seria originário da área do vale do Nilo entre Gebelin e Rifeh, a terra do deus Sete.
Rebelou-se e tomou o trono do Egito em nome do deus rebelde (Taylor, p.10). Isso é deduzido, ao que parece, a partir de selos de argila
com “ a mais antiga frase completa escrita em hieróglifos” achados na tumba desse rei. A frase dá entender que, graças a Sete, Peribsen
reuniu o Egito após tomar o poder.

* * Serekh era um tipo de cartela retangular em cuja parte inferior estava representada aquilo que se deduz ser a fachada de um primitivo
palácio real egípcio. Na parte superior, destinada à inscrição, vinha gravado o nome de Hórus do faraó. Desde o início, essa cartela tinha
por timbre o falcão do deus Hórus, mas o faraó Peribsen, como adorador de Sete, mandou inscrever no serekh o seu nome de Sete, tendo
como timbre o animal sha.

Turner também chama a atenção para o violento saque a Tebas (Wast; wAs.t) –
antiga capital egípcia que abrigava o mais importante templo do Egito, o riquíssimo templo
de Carnaque (Ipet-sut; ipt-swt), dedicado a Amon-Rá (imn-ra) –, ação perpetrada pelos
assírios em 663 AEC, apontada como responsável pelo intenso choque emocional que,
seguramente, deve ter acometido o povo egípcio.
Ele assim sintetiza a situação:
Infelizmente, seguindo as invasões assírias e até certo ponto as invasões persas no
Egito, as coisas estrangeiras passaram a ser vistas sob uma nova luz desfavorável.
A boa vontade anteriormente autoconfiante demonstrada pelos egípcios para com
os estrangeiros e coisas estrangeiras foram transformadas em ódio (Te Velde, 1967:
21

139). Os egípcios enfrentaram uma situação em que o país escolhido (tA mri) poderia
ser ocupado e saqueado por estrangeiros, e não surpreendentemente, este pavor e
descontentamento foram descarregados sobre Sete, que era o deus tradicional dos
estrangeiros.
(Turner, p.156; trad. do Autor)

As derrotas e ocupações estrangeiras sofridas pelo Egito a partir do Período


Tardio (664-332 AEC), também conhecido como Época Baixa, demonstraram que o deus,
cuja agressividade deveria ter sido dirigida para a proteção da terra em que era venerado,
passara a favorecer, aos olhos dos egípcios, os interesses dos inimigos, permitindo que se
instalassem sucessivamente dentro das fronteiras do país e consentindo que oprimissem o
povo que durante milênios o reverenciara (TAYLOR, p.205). Os egípcios tiveram então de
admitir que o deus rebelde não mais se vergava ante os velhos recursos mágicos
empregados para controla-lo. O método de alterar-lhe a aparência já não impedia que o
lado mais funesto do deus se manifestasse. Tornou-se então inútil, supomos, representa-lo
sob um aspecto que não era o verdadeiro. Diante disso, não havia mais razão de usar nem
os hieróglifos que traziam a imagem de sha, nem a tradicional forma bimórfica da
divindade, pois tais imagens se haviam tornado agourentas e danosas. A antiga forma
asinina, portanto, foi desde então recuperada por inteiro.
Afinal, é impossível pensar que os sacerdotes do Egito Antigo, ciosos guardiães
de antiquíssima tradição religiosa, e graças aos quais as velhas crenças se mantiveram em
grande parte imutáveis por quase de 3500 anos, e os antigos adoradores de Sete, tenham,
em algum momento, olvidado a verdadeira essência oculta do deus terrível. Ele era de fato
um jumento (embora pudesse se transformar em outros animais perigosos e ignóbeis), mas
durante milênios acreditou-se ser necessário que sua condição original permanecesse
dissimulada a fim de impedir que o lado maldoso e destrutivo do deus aflorasse.
E não foi só Sete que passou a ser representado em sua forma original, também
a deusa Serket, que tinha seu animal sagrado desprovido de pernas e de cauda peçonhenta
desde o Antigo Império, voltou a ser representada em sua forma bimórfica com o corpo
aracnídeo integral, numa confirmação de que certas práticas mágicas milenares
começaram a ser abandonadas na Época Baixa, porque certamente passaram a ser
consideradas desprovidas de eficácia (fig. 23).
22

Quando o Egito se viu em mãos dos estrangeiros, a fé em Sete certamente


começou a desmoronar. Nos oásis, contudo, o culto a Sete manteve-se sob uma forma
heroica de uma espécie de Hórus, adorado como o grande campeão da luta contra o Caos.
Enquanto no vale do Nilo, ressurgia a verdadeira imagem de Sete, despida da magia
controladora, ora tida como inoperante, para ser submetido a outros tipos mais radicais de
magia apotropaica.
Uma das medidas tomadas foi evitar toda menção ao nome do deus ou
substitui-lo por epítetos ou circunlóquios. Se excepcionalmente fosse necessário menciona-
lo, o nome deveria ser escrito de maneira fonética, sem determinativos setianos (TAYLOR,
p.82). O Livro dos Mortos, do período romano (30 AEC-391 EC), por exemplo, foi mais radical,

pois os encantamentos que faziam referência à pessoa do deus ou foram reformulados para
que ele não fosse mencionado ou foram simplesmente suprimidos (TAYLOR, p. 79 e 80). Seu
nome e efígie também passaram a ser apagados de muitas inscrições antigas, desde os
túmulos até os grandes templos, como é o caso do de Carnaque e de Medinet Habu, como
Taylor o demonstrou. E o mesmo aconteceu em inscrições efetuadas em monumentos
independentes, como é o caso da pedra Shabaqa, da 25ª dinastia (744-656 AEC), estela
proveniente do templo de Ptah (ptH) em Mênfis (Men-nefer; mn-nfr), em que a figura de sha,
que aparecia na sétima linha, foi apagada (TAYLOR, p.615, fig. 3.8.1), fato que remonta
aparentemente ao tempo de Psamético II (reinado: 595–589 AEC) ou de Psamético III
(psmtk) (reinado: 525 AEC), faraós nativos pertencentes à 26ª dinastia, que substituiu a
dinastia núbia (Shabaka Stone. WIKIPEDIA en.).
Ao longo do período ptolomaico e do romano, Sete aparecia como jumento, ou
era figurado sob a forma de outros animais a ele relacionados, igualmente tidos como
revoltantes, tais como, hipopótamo, crocodilo, tartaruga e porco, entre outros.
E nas cerimônias religiosas desenvolvidas em templos faraônicos importantes,
como no templo de Edfu (construído entre 237 e 57 AEC), dedicado ao inimigo Hórus, e no
de Dendera (erguido entre 57 AEC e c.37 EC), antiga Iunet (jwn.t), destinado à deusa Hator
(Hwt-Hr), esposa de Hórus – templo em que havia também no terraço da cobertura uma
capela consagrada a Osíris, divino sogro da deusa a quem era dedicado o templo (TAYLOR,
p.14) –, Sete, nos relevos, sob a imagem de um jumento, começou a ser afrontado por rituais
hostis, em que era expresso todo o sentimento de ódio e repulsa pelo antigo deus, seja por
meio de rituais mágicos de destruição, de natureza simbólica, seja por meio de imagens de
23

sacrifícios cruentos infligidos aos jumentos como se vê em relevo da primeira capela


osiriana do templo de Dendera fotografado por Vandenbleusch (p.211,fig.96). Nesse painel,
um jumento de tamanho minúsculo, deitado de costas e com patas amarradas (TAYLOR, p.
623, fig.3.9.58) estava sendo morto por um faraó que o atacava na cabeça com um arpão,
(VANDENBEUSCH, p. 223, fig.96).
Rebaixado à condição de pura entidade do mal, os templos de Sete foram
abandonados, resistindo somente alguns localizados em lugares remotos até o governo
imperial romano decidiu proibir todos os cultos pagãos em 391 CE, ano em que os templos
egípcios foram oficialmente fechados (Turner, p. 111)*.

* Na verdade, o último templo pagão a ser fechado no Egito foi o construído durante o período ptolomaico na ilha de File (pA-jw-rq),
dedicado à deusa Ísis. Fato ocorrido em 537 EC.

Sobre essa perseguição desencadeada contra o antigo deus, vemos Taylor


referir-se à tese da professora Alexandra von Lieven (Seth ist im Recht, Osiris ist im Unrecht!, 2006),
que apresenta sua proposta em duas partes, sendo a primeira a que nos interessa aqui. Na
primeira parte da proposta, a autora sustenta que, apesar da difamação de Sete durante o
Período Tardio e o Ptolomaico, teria ele continuado a ser adorado em todo o vale do Nilo na
forma de pequenos cultos locais. Em apoio a essa afirmação, a autora cita dois relevos
existentes dentro do templo ptolomaico de Hator em Dendera, com temática
aparentemente contraditória. Numa das capelas de Osíris em Dendera, Sete é retratado
como um demônio desprezível, em forma bimórfica com cabeça de asno, ajoelhado e
manietado, tal qual um prisioneiro de guerra, com o corpo espetado por três facas (fig. 24).
Enquanto nesse mesmo templo, na face externa do lintel da câmara E, se veem quatro
figuras divinas adoradas em locais distantes, sob a aparência antropomórfica, nomeadas
como Sete dos Oásis, Sete das Árvores, Sete Unu ou Unes e Sete de Sepermeru, a receber
oferendas de um faraó ptolomaico anônimo (fig.25). Neste lintel, porém, tal como nas
inscrições empregadas nos oásis do deserto ocidental, o determinativo do animal sha não
comparece. Em vez disso, o nome do deus está escrito em hieróglifos fonéticos,
acompanhado de um determinativo divino genérico, no caso, Gardiner R8 (neter; nTr)
(TAYLOR, p. 14).
A antropomorfização de Sete e a supressão do uso de determinativos setianos
foi a solução mágica encontrada para evitar a influência funesta transmitida pela tradicional
24

aparência mágica do deus. Não deixa, porém, de ser curioso o fato de que, enquanto em
algumas partes do templo de Dendera, Sete sob a forma de um jumento amarrado ou em
forma bimórfica com cabeça de jumento sofria as humilhações devidas a um demônio
destestável, em outra parte do mesmo edifício, quatro versões do mesmo deus, sob títulos
devocionais diferentes, permaneciam honradas sob a forma antropomorfizada e com seu
nome grafado sem determinativos setianos, numa prova de que quando o deus era
representado sob a forma integralmente humana e sem a presença de hieróglifos
relacionados ao animal sha, as imagens tornavam-no suficientemente merecedor de ser
venerado como um verdadeiro deus.
A passagem da adoração de Sete para a sua demonização, portanto, não foi
nem absoluta, nem isenta de aparentes contradições. Pois em Edfu, também ocorria o
mesmo: ao mesmo tempo que era execrado como representante do Caos, era adorado
como salvador de Rá. Essa duplicidade de papéis antagônicos decorria tanto da natureza
maligna do deus que o ligava ao Caos, quanto do antigo controle mágico exercido sobre ele
que o obrigava a desempenhar um ato heroico de grande bravura.
Num relevo do templo de Edfu, localizado na câmara R, Sete apresenta-se
duplicado, ainda com sua forma bimórfica tradicional, a enfrentar a serpente Apófis. Num
canto o deus agarra o monstro pelo pescoço, enquanto em outro o mesmo deus apoiado
no corpo da serpente empunha a faca para ataca-la (TAYLOR, p.211, fig. 9.102). Nesse painel,
Sete, sob a aparência tradicional controlada pela magia, era exaltado como o vencedor do
Caos, sendo identificado nas inscrições não por seu nome divino, que naquela altura estava
proibido de ser escrito (e certamente pronunciado) nos grandes templos do vale do Nilo,
mas pelo epíteto de “touro vermelho”, enquanto no relevo da história do triunfo de Hórus,
gravado num dos muros externos que protegem o templo, Sete, sem ser identificado,
aparece na condição de um minúsculo hipopótamo sendo arpoado pelo deus solar vencedor
(TAYLOR, p.207, fig.9.94).
Ademais, em outras partes desse edifício sagrado o deus ou era reduzido a um
animal sha (Gardiner E21) agredido com faca, ou a um animal setiano com cabeça de
jumento e cauda, quase sempre, bifurcada, sob golpes de faca ou arpão (TAYLOR, ilustrações
da p. 617 a 622).

As imagens de Sete sob a forma de um canídeo deitado sobre o ventre com uma
cabeça de jumento eram provavelmente inspiradas naquelas datadas da 12ª dinastia, em
25

que o deus revelava sua verdadeira face num corpo de animal controlado por magia. Mas a
forma de um asno inteiro em idêntica postura, tendo quase sempre uma faca ou um arpão
enterrado no lombo ou na cabeça começaram a se tornar frequentes. Essas representações
estão presentes tanto em Edfu (TAYLOR, ilustrações da p.217 a 222), em Dendera (TAYLOR,
ilustrações da p.622 a 624), como no templo de Ísis da ilha de File (TAYLOR, ilustrações das p.620 ,624

e 625), construção erguida entre o séc. III AEC e o séc. II EC, e transferida, entre 1972 e 1980,

para a ilha de Algikia.


Nesse último templo, há pontos em que são vistas figurações de Sete bimórfico
com cabeça de asno, ajoelhado e manietado, ferido por dois arpões nas costas, e de Sete,
igualmente bimórfico com cabeça de jumento, contido pelos deuses Hórus e Tote (Djeuti,
dHwtj), e ferido com facas e arpão (TAYLOR, p.209, fig. 9.99; p.623, figs. 3.9.71 e 3.9.72 ;figs. 3.9.74 e
3.9. 75).

Além disso, nos templos erguidos durante o Período Ptolomaico e Romano, o


deus Hórus não era o único a arpoar o odiado Sete. Também os chefes de Estado, faraós
ptolomaicos e imperadores romanos, na condição de faraós, passaram a fazê-lo segundo
um ritual estatal de exorcização do mal, sujeitando Sete sob a forma de tartaruga, como o
imperador Tito (Titos,Tytz), reinado de 79 a 81 EC, no templo de Quenum (Hnmw), em Esna
(Iunit, iwny.t), ou como o imperador Otão (Marcus Otho, mrqz-Awtnwz), reinado em 69 EC,
atacando Sete sob a forma de um minúsculo jumento no templo de Ísis, em Deir-el-Shelwit
(TAYLOR, p.208, fig.9.95).
A cena do jumento minúsculo sendo atacado por soberanos também ocorre no
templo de Hator, em Dendera, no de Hórus, em Edfu, e no templo de Ísis, em File. Em
Dendera, o faraó que fere Sete não é identificado; em Edfu, quem comete a agressão
profilática é Ptolomeu III (ptwAlmys), Euergetes, i.e. o Benfeitor, reinado de 246 a 221 AEC,
faraó que mandou erguer o templo de Hórus nessa cidade, e em File é o romano Augusto
(cujo nome pessoal escrito no cartucho era Kaisaros, forma grega de César, em egípcio
Kysrs), reinado de 27 AEC a 14 EC, quem elimina Sete como o representante do Caos
(TAYLOR, p.209, fig.9.98).
Os sacrifícios apotropaicos acima enumerados, testemunhados nos relevos dos
templos ptolomaicos, eram de natureza simbólica, sendo que ainda restam muitas dúvidas
acerca dos sacrifícios cruentos em que se empregavam jumentos de verdade, realizados
dentro de espaços sagrados.
26

Plutarco, em sua obra aqui já citada, faz menção a rituais de destruição com
bolos decorados com a efígie de jumentos amarrados com uma corda (PLUTARCH, 1936, 363
a), e com o lançamento de animais vivos do alto de penhascos na cidade egípcia de Coptos,
antiga Gebtu, executados pela população local para exorcizar as forças do Caos ou para
apaziguar o espírito de Tífon, i.e. Sete (PLUTARCH,363 f), mas esse autor nada nos diz a
respeito dos sacrifícios cruentos realizados no interior dos templos.
Sabe-se que o Livro da Vitória sobre Sete, criado no século IV AEC e escrito em
hierático, é constituído de rituais mágicos de aniquilamento da figura do deus Sete, desde
então identificado como o responsável por todos os males do Egito. Um desses rituais tinha
por objetivo “causar a queda de Sete e seus seguidores”, e deveria ser cumprido todos os
dias em todos os templos de Osíris. Consistia o ritual em confeccionar uma figura de Sete,
feita de cera vermelha, com aparência provavelmente bimórfica, com cabeça de jumento,
tendo no peito escrito “Sete, o abominável” ou “Sete, o fraco” segundo Vandenbeusch
(p.213). Além disso, deveria ser desenhada com tinta fresca a figura do deus numa folha nova
de papiro ou confeccionar uma figura do deus em madeira de acácia ou madeira hema
(HmA). A figura de Sete deveria então ser amarrada com um tendão de vaca vermelha e
sofrer uma série de maus-tratos, como fortes pisadas, golpes de lança, cortes com faca e
finalmente tudo seria atirado ao fogo, sendo isso executado entre cusparadas e maldições
(The book of victory over Seth. ANCIENT THE EGIPTIAN TEXTES,1.3). Mas as cerimônias sacrificiais de
fato efetuadas nos templos faraônicos do período ptolomaico e posterior são-nos
praticamente desconhecidas.
A egiptóloga Marie Vandenbeusch conseguiu obter alguma informação a
respeito desse assunto em sua tese de doutorado, e o resultado de sua pesquisa pode ser
conferida nos próximos parágrafos (p. 221 a 223; traduzido e adaptado pelo Autor):
Segundo a autora, o objetivo básico dos sacrifícios cruentos realizados pelas
religiões da Antiguidade era fornecer alimento aos deuses, sob a forma de oferenda ou de
fumo produzido pela queima do que era servido sobre o altar. No Egito ptolomaico e
romano, as carnes oferecidas aos deuses podiam provir de sacrifícios de animais associados
a Sete. O sacrifício do asno, e também do touro, do órix, do crocodilo, do hipopótamo, da
tartaruga e da serpente se revestia de um caráter apotropaico já que todos esses animais se
identificavam com as forças do Caos e, por conseguinte, com Sete..
27

De acordo com as representações da morte do asno, era ele transpassado por


lança ou arpão, e múltiplas facas eram por vezes igualmente cravadas em diferentes partes
do corpo do animal. Em uma das cenas no templo de Opet em Carnaque, o deus Hórus
brandia uma maça acima do pequenino deus bimórfico manietado e agarrado pelas longas
orelhas de asno. Essa cena aparece em escala reduzida ao lado de uma cena da ressureição
de Osíris*. O texto no relevo diz: “Hórus subjugando o Rebelde, [a saber] Nebedje [feito de]
jaspe vermelho” (VANDENBEUSCH, p.392). O gesto do autor do sacrifício variava segundo o
animal sacrificado. Por exemplo, o órix era geralmente apresentado preso pelos cornos e
degolado sobre o altar.
* Cena relativa ao encantamento 312 dos Textos dos Sarcófagos, em que se procura afastar Sete do local em que Osíris está sendo
mumificado (ASSMANN, 2001, p..264).

Poucos textos fornecem detalhes sobre a prática do ritual. Só um entre eles


revela a proveniência do animal. Em Edfu, um asno selvagem era levado da "Casa de Sete"
durante o festival de Khoiak, dedicado a Osíris. Esse festival girava em torno do mito desse
deus, assassinado por Sete, e ressuscitado pela esposa Ísis até o ponto em que ela concebia
o filho Hórus. Assim, os asnos selvagens a serem sacrificados ficavam disponíveis num
espaço dedicado a Sete, guardados após a captura, em caso de se tratar de animais
selvagens de primeira geração. A Casa de Sete poderia ser um edifício ou um cercado
adjacente ao templo, destinado à guarda e preparação dos asnos, tendo em vista a
realização da cerimônia sacrificial.
Temos conhecimento de que os asnos podiam ser apunhalados e cortados.
Conforme uma inscrição de Edfu mais detalhada, o texto indica que para o sacrifício era
requerido um jumento inteiro. Depois de morto, devia ser desossado, pois os ossos seriam
jogados ao fogo e o resto, dado aos cães. Não há indicação de como o animal era abatido.
É provável que fosse morto segundo os mesmos métodos empregados pelos açougueiros.
A exposição de certas partes do corpo do animal às chamas é igualmente
registrada numa cena reproduzida na terceira capela osiríaca do templo de Dendera. Um
personagem antropomorfo, talvez Hapi, deus do rio Nilo, a confiar em suas mamas
pendulares, é apresentado ocupado em grelhar pedaços de carne num braseiro. A cabeça
do asno é claramente reconhecível acima do fogo. Esta fase do ritual talvez não servisse
para fazer chegar o repasto ao deus por meio do fumo da carne. Pode-se admitir que a
exposição ao fogo permitia a destruição completa da vítima (holocausto), se bem que não
28

deve ser excluída a possibilidade dessa etapa servir igualmente para cozer as carnes do
animal, a seguir parcialmente servida aos participantes da cerimônia.
Certo animal, como o touro, podia facilmente se integrar na alimentação do
deus, dos sacerdotes e dos demais participantes. Mas o que acontecia com os animais como
o asno que não eram provavelmente consumidos de maneira habitual?
É difícil aceitar que, diante da possibilidade de escolha de outros animais
sacrificiais que poderiam ser oferecidos ao deus, tenha sido preferida para consumo a carne
de jumento.
Poucas fontes indicam o lugar em que era realizado o sacrifício do animal. Há
razões para crer que ele fosse abatido fora do templo, mas entre as muralhas sagradas. Isto
é confirmado por uma inscrição da 2ª capela osiríaca (lado este) do templo de Dendera, que
indica que o sacrifício se desenvolvia na entrada da sala pura (wbt), localizada no pátio do
templo. Este lugar, que designa o ponto em que eram produzidas as oferendas e todos os
elementos que seriam postos em contato com o deus, era o ideal para as preparações das
oferendas de jumento, como a carne, além de outras oferendas
Por outro lado, pode-se perguntar sobre a frequência desses rituais. Nada indica
que os sacrifícios apotropaicos deste tipo tenham sido efetuados com regularidade. O fato
de o asno – tal como outros animais maléficos – não ser geralmente consumido pelos
participantes, talvez não encorajasse o seu sacrifício cotidiano.
O touro, constando como outro representante de Sete, poderia ter sido
privilegiado nesse caso, talvez ao substituir o asno em certos sacrifícios, como sugere uma
cena de Dendera. Aí se vê um rei a transpassar um jumento, com o gesto similar às outras
cenas de massacre do animal. Entretanto, na cena de corte do animal sacrificado que segue
imediatamente, constata-se que é um touro que jaz amarrado, com cabeça decepada e cuja
carne é oferecida a Osíris, como confirmam tanto o texto hieroglífico como as imagens do
relevo (VANDENBEUSCH, p. 211, fig.96; p. 223, p. 393, doc. 12.26).
Quanto aos sacrifícios de asnos no antigo templo de Hatshepsut em Deir el-
Bahari, o assunto é mais complexo, e, após diferentes fases de restruturação, o templo
esteve em função desde o fim da época ptolomaica até uma data indefinida da época
romana.
Dentre os grafitti do fim do século III e começo do IV da EC existentes nas
paredes do templo, destacam-se certas inscrições realizadas por membros da corporação
29

dos comerciantes de sucata de Hermontis (Iunu-Montu; iwnw-mnntw). Estes dirigiram-se ao


templo muitas vezes no espaço de alguns decênios e deixaram inscrições testemunhando a
sua presença. Assim, mesmo se o templo já tivesse sido abandonado por aquela época, o
culto que era praticado no local não havia sido completamente esquecido.
Nada se sabe sobre o ritual que era realizado nesse lugar. Hipóteses podem ser
levantadas, mas pouco há de concreto. Segundo as inscrições, o animal sacrificado nesses
rituais era o jumento. Mas desconhece-se a que deus era dirigido o sacrifício. Não é sabido
também se o animal era sacrificado em holocausto, ou seja totalmente consumido pelo
fogo, ou só parcela dele era entregue às chamas do altar, sendo a sobra consumida pelos
participantes. Em Elefantina, por exemplo, praticava-se um sacrifício em que se sugere que
a carne do asno era servida aos falcões sagrados pertencentes a um lugar não identificado.
No caso de os falcões consumirem inteiramente a carne do animal, tal fato poderia ser
interpretado como representando a aniquilação do deus Sete incarnado no jumento morto,
aniquilação perpetrada pelas aves de Hórus.
Em Deir el-Bahari, esses rituais estavam sendo efetuados, de maneira privada,
no interior dos muros que rodeavam o templo, mas talvez este já estivesse abandonado. Os
comerciantes de sucata promoviam banquetes após o sacrifício cruento, sendo, no entanto,
desconhecida a iguaria que era servida nessas refeições cerimoniais.

Outros indícios de que Sete era um jumento

Embora grande parte da opinião especializada ainda insista em afirmar que a


espécie animal de Sete seja impossível de determinar, por quimérica, compósita ou fictícia,
a secreta origem asinina do deus pode ser inferida, em nossa opinião, a partir de mais alguns
indícios significativos.
Não é mera coincidência, por exemplo, o fato de a cor castanho-avermelhada
dos jumentos selvagens da Núbia* (equus africanus africanus) (ROSSEL & outros,2008), hoje
considerados extintos, ou os estridentes e intimidantes orneios dessa espécie de animal
terem sido considerados típicas manifestações de Sete, qualificado como “ o senhor
vermelho”** e "aquele que levanta a voz" ou "o fazedor de barulho", como bem nos lembra
Huyge (p.301). Características essas que seriam na realidade intrínsecas tanto do jumento
selvagem quanto de Sete, pois afinal ambos partilhavam a mesma identidade zoológica.
30

* A esse respeito ver ROSSEL & outros,2008. No estudo elaborado sobre a domesticação do jumento no Egito Antigo, chegou-se à
conclusão de que o antigo jumento domesticado egípcio era mais parecido em suas características físicas com o jumento selvagem da
Núbia, embora tivesse também algumas semelhanças com o jumento selvagem da Somália, ao contrário do que acontece atualmente
com jumento domesticado.

** Segundo o historiador grego Plutarco, em Peri Isidos kai Osiridos ou De Iside et Osiride,22, os egípcios achavam que Tífon, nome dado
a Sete pelos gregos, tinha pele vermelha. Muitos justificam essa cor de Sete pelo fato de os desertos egípcios, sob a proteção da deidade,
serem compostos de areia dessa cor, mas os jumentos da Núbia também tinham um tom tendente a essa mesma cor. No templo de Edfu,
segundo a egiptóloga Vandenbeusch, conforme um texto mural sobre um dos combates de Hórus e Sete, este se transforma ao ver outro
deus num asno vermelho (p.203).

Outro qualidade marcante dos jumentos, segundo a mentalidade egípcia era a


lascívia. A esse respeito, a egiptológa Marie Vandenbeusch expõe que a palavra asno em
egípcio antigo podia ser redigida de várias maneiras (p.27 e 28). Explica que às vezes o
determinativo com a figura de asno podia ser complementado por alguns hieróglifos entre
os quais um representando um falo (Gardiner D52). A presença do falo é esclarecida pela
autora como não tendo nenhuma significação fonética. Sua presença justificava-se, porque
o falo é um signo que evoca a lubricidade e o tamanho descomunal do sexo do jumento e
isso “corrobora sua natureza como é por vezes percebida na literatura e na iconografia
[egípcias]: o animal pode ser associado a um papel de copulador, talvez com um
comportamento lascivo " (p.28; trad. do Autor).
Essa constatação nos leva a relacioná-la com o mito do combate de Hórus e
Sete (Papiro Chester Beatty I, texto datado da 20ª dinastia), em que ocorre um episódio de
importunação de natureza homossexual do segundo contra o primeiro. A impertinência de
Sete não era, no entanto, apenas resultado de sua luxúria descontrolada e indeterminada,
uma característica que dividia com 0s jumentos, segundo a visão egípcia, mas também uma
maneira oportunística de humilhar o sobrinho (ou irmão), na tentativa de expô-lo ao
desprezo dos demais deuses da enéade.
Devemos acrescentar que o deus compartilhava ainda outros hábitos com os
jumentos. Entre eles, um destacado por Te Velde: Sete só comia folhas de alface (1977, p.43)
– alface egípcia, um tipo de alface espinhosa selvagem, símbolo da fertilidade masculina e
da concupiscência, planta atribuída ao deus itifálico Min (mnw), de Coptos (Gebtu; gbtw). A
nossa explicação para essa peculiaridade é que Sete só comia a hortaliça por ser herbívoro
e, ao mesmo tempo, lascivo, já que não seria outra coisa senão um jumento.
Durante o Médio Império, Sete passou a ocupar um lugar de destaque na
mitologia e na devoção egípcia, a fé no deus adquiriu então um caráter pessoal. Milhares de
estelas com sua representação foram produzidas na esperança de que ele pudesse atender
31

aos pedidos dos devotos. Pedidos esses que incluíam desejos de sucesso em litígios,
proteção para parentes mortos na Outra Vida e melhoria no estado de virilidade de seus
adoradores (MAYDANA, 2022). Campos de atuação em que o deus operava com muita eficácia
e desenvoltura, conforme vimos acima. Pois, litígios eram uma especialidade para um deus
que vivia a criar conflitos. Proteção na Outra Vida era outra atividade em que ele tinha
grande destaque, já que, todas as noites, no Além, salvava da morte o grande deus-sol Rá.
Quanto à melhoria da virilidade dos seguidores, isso era fácil de conceder dada sua
sexualidade escancarada e desabrida de jumento.
Na obra de Plutarco (46 - antes de 119 EC) intitulada Peri Isidos kai Osiridos,
colhemos passagens em que o historiador traça um paralelo entre Tífon (i.e., Sete) e o
jumento. No início do período romano, como vimos, esse animal, odiado e desprezado pelos
egípcios, era habitualmente sacrificado por causa da aversão que naquela altura os egípcios
sentiam pelo antigo deus. Seguem abaixo dois trechos que confirmam que Sete
compartilhava com o asno certas características comuns, relativas ao som que faziam, à
estupidez, à lascívia e à cor vermelha que apresentavam, cor que demonstra que os animais
perseguidos pelos egípcios eram semelhantes aos espécimes provenientes da Núbia, que
tinham pelo tirante a esse matiz:

O povo de Busíris e Licópolis não usa trombetas, porque elas fazem um som de
jumento; e juntos eles consideram o jumento como um animal impuro dominado por
algum poder superior, por causa de sua semelhança com Tífon [i.e.,Sete].
(PLUTARCH,362 f.; trad. do Autor)

Eles pensam [os egípcios], como já foi dito, que o asno colhe as
consequências de sua semelhança [com Sete] por causa de sua estupidez e
de seu comportamento lascivo, tanto quanto por causa de sua cor.
(PLUTARCH, 363 c., trad. do Autor)

Cetro was, o amuleto de Sete

Sete manifestava-se também sob a forma de amuleto. Empunhado pelas


divindades masculinas egípcias e algumas femininas, o was (wAs) (Gardiner S40) consistia
numa longa vara, cuja ponta superior ostentava uma cabeça de animal e a inferior terminava
numa bifurcação.
32

O was era de fato uma estilização do animal sha, a forma teriomórfica do deus.
Nesse cetro, a cabeça de animal aparece no alto com o focinho fino voltado para baixo e
com as orelhas pontudas bastante inclinadas para trás, indicando que o jumento estilizado
que era sha mostrava-se enraivecido e prestes a escoicear mortalmente o inimigo.
Enquanto a extremidade inferior do cetro apresentava a bifurcação com certeza referente
à ponta dupla da cauda, que lhe havia sido conferida por uma precaução de índole mágico-
religiosa.
Geralmente qualificado de bordão, bastão ou cajado, o was deve ter sua suposta
serventia de apoio questionada, na medida em que a ponta inferior forqueada não
permitiria ser firmada diretamente sobre o piso por não garantir a necessária estabilidade,
o que poria em risco não apenas a integridade física do objeto como também a de quem
pretendesse utilizá-lo como um adjutório para andar. O was era para ser portado como
cetro, simplesmente. A propósito, nos relevos e outras representações em que aparece
representado, a ponta bifurcada do was jamais toca o chão, confirmando que o bastão ou
cetro era um talismã e não um mero apoio (fig. 26)
Os mais antigos exemplares de was eram certamente confeccionados de
madeira, pois ainda existem espécimes feitos com esse material, mas é comum também se
encontrarem peças depositadas em tumbas ou em ruínas de templos moldadas em faiança,
material bastante frágil, indicativo de que estavam sendo usadas na verdade como amuleto
(fig. 27).
O was é habitualmente interpretado pelos egiptólogos como símbolo de força,
poder, autoridade e domínio, sendo muitas vezes atribuído a esses conceitos um valor
eminentemente secular, mas levando-se em consideração a natureza divina de Sete e as
deformações impostas a sua aparência por razões mágicas, inclinamo-nos a interpretar a
palavra was não apenas como domínio, mas como domínio sobre as forças maléficas. Desse
modo, o was seria um objeto portador de poderes mágicos destinado ao combate das forças
destrutivas do Caos, forças a serem reprimidas graças a Sete magicamente neutralizado.
Significado que daria sentido ao fato de todo deus egípcio portá-lo, já que os deuses tinham
como missão primordial zelar pela eterna manutenção da harmonia (MaAt) do Universo
criado pelo deus Atum (tm), de acordo com a cosmogonia de Heliópolis (Iunu, iwnw). Até
mesmo o próprio Sete magicamente controlado portava o was, como qualquer outro deus.
33

É essa interpretação do cetro was que nos faz entender porque era esse deus,
eterno desafiador de Maat, que assumia a defesa de Rá em sua navegação noturna através
do submundo e porque era ele o escolhido para destruir a cada noite a terrível serpente
Apófis, existente desde antes da Criação e grande ameaça ao Universo organizado.
Embora encarnasse forças violentas e desagregadoras, Sete, submetido à
força da magia, e em total oposição à sua verdadeira natureza, era levado a assumir a função
de grande salvador do cosmos ao livrar a benigna figura solar do deus Ra do ataque de
Apófis, contra a qual Sete dirigia toda a violência que lhe era característica. Desempenho
altamente dignificante, divulgado no texto funerário chamado Amduat (jmj dwAt) –
originalmente chamado O tratado da câmara oculta e traduzido por O que há no submundo
–, texto conhecido pelos egiptólogos em sua mais antiga versão datada do tempo da rainha
Hatshepsut, encontrado gravado em paredes de tumbas reais e de altos dignitários do Novo
Império.
O was demonstrava sua mais absoluta relevância ao participar de dois
conjuntos de signos de alto valor apotropaico habitualmente constituídos ou por um ankh,
ou por um djet (Dd) (amuleto interpretado como Estabilidade, Durabilidade e Permanência),
que, uma vez personificados, providos de braços e firmados sobre uma cesta neb (nb)
(Gardiner V30), traziam em cada mão um cetro was, sendo frequentemente vistos esses
conjuntos em templos e tumbas egípcias, representados em afrescos, relevos e mesmo em
decoração de móveis funerários (figs. 28a a 29).
Os signos assim reunidos adquiriam especial destaque, graças ao fato de se
apoiarem numa cesta neb, que, enquanto hieróglifo, comportava, entre outros sentidos, a
ideia de totalidade e integralidade, conferindo desse modo relevância ou potência reforçada
aos amuletos por ela suportad0s.
Esses arranjos talismânicos despertam o interesse porque nos fazem ver que,
para os egípcios, a vida comum, a Vida Eterna e a estabilidade deste e do Outro Mundo
(governado por Osíris, dono da coluna vertebral estilizada que era o pilar djet) exigiam
constante e cotidiana luta contra o Caos, sendo tanto a Vida quanto o Cosmos totalmente
dependentes da eficácia do cetro apotropaico was na defesa sobrenatural contra as forças
maléficas. Forças que nunca desistiriam de tentar reverter tudo quanto existia para o estado
geral desordenado e indiferenciado do Caos original, reino de Nun (nwn), o deus das
34

primevas águas abissais. Eterno e encarniçado combate travado entre a Criação divina e o
total aniquilamento que, em resumo, traduzia a essência mais íntima da religião egípcia.
Tão grande era a importância do cetro was que, de acordo com determinados
relevos egípcios, exemplares desses amuletos atuavam como sustentáculos da abóbada
celeste (Gardiner N1, pt), demonstrando que ele tinha como máxima função ser o supremo
garantidor cósmico contra as forças caóticas que insistiam em querer derrubar o
firmamento e assim devastar todas as realidades existentes e imaginadas (fig. 30).

CONCLUSÃO

No presente texto procuramos defender a ideia, ignorada pela maioria dos


egiptólogos, de que Sete era, na verdade, um deus jumento. Toda a bibliografia por nós
utilizada neste trabalho nega redondamente esse fato, mesmo quando são reconhecidos
indícios que poderiam conduzir na direção contrária.
Seremos decerto acusado de especular ociosamente a respeito de um deus,
sem ter documentos irrefutáveis que embasem nosso ponto de vista. Mas, estamos
inclinados a acreditar que tal documento jamais será encontrado, pois provavelmente para a
magia religiosa egípcia ter eficácia o deus e o animal que lhe era atribuído deveriam ser
fisicamente modificados e um silêncio tumular deveria reinar a esse respeito, para que a
feitiço controlador não perdesse o efeito.
Mesmo assim, tanto os sacerdotes quanto os devotos do deus estavam
plenamente cônscios do que se tratava, a ponto de desmascara-lo depois de mais de 2700
anos de contínua adoração. Decepcionados com o deus, os egípcios passaram a
desconsidera-lo como deidade e a massacra-lo em rituais, tanto simbolicamente quanto
praticamente. Nesse último caso, por meio de sacrifícios de jumentos a ele assimilados, no
intuito de destruir não só a ele, mas aos prejuízos por ele causados no equilíbrio cósmico de
Maat.
Ao longo desse texto, fizemos menção a alguns indícios que nos levaram à
percepção da verdadeira natureza do deus. E se mergulhássemos mais aprofundadamente
nessa questão, garantimos que muitos outros surgiriam. Mas a maioria dos egiptólogos
afirma que se não há documentos comprobatórios, nada se pode concluir. Está na hora de
35

se deixarem levar mais pela intuição. Pois não basta ler nas linhas, às vezes é necessário
saber ler nas entrelinhas.

* * *
36

ILUSTRAÇÕES

Fig. 1 - Petróglifo ou gravura rupestre de um jumento localizado na Rocha dos Abutres


em Elkab,Deserto Oriental, Egito, golpeado na parte de trás da cabeça por meio de um
traço representando uma flecha ou um dardo, uma arma da magia simpática com poder
de neutralizar o lado negativo da criatura e colocá-la sob controle de Maat. Ilustração
proveniente de: Huyge, Dirk. De rotstekeningen van Elkab (Boven-Egypte): registratie,
seriatie en interpretatie. Unpublished PhD thesis, Katholieke Universiteit Leuven, 1995.
pl. 72. Arte rupestre datada aproximadamente entre 3800 e 3300 AEC (Nagada I e
Nagada II).Imagem colhida em obra de Dirk Huyge.
Fonte da imagem: HUYGE, Dirk. Detecting magic in rock art: The case of the ancient Egyptian 'malignant ass'. In: HEIKO Riemer & others
(ed.).Desert animals in the Easter Sahara. Colloquium Africanum 4, University of Cologne,Germany, 2009.p.293-308.Academia.edu
Fonte:< https://www.academia.edu/1621315/Detecting_magic_in_rock_art_The_case_of_the_ancient_Egyptian_malignant_ass_>
37

Fig. 2 - Exemplares de pentes de marfim datados dos períodos Nagada I (3900 -3650 AEC) e Naqada II
(3650-3300 AEC). Trazem no alto das peças perfil entalhado de animais selvagens, em geral habitantes
do deserto. Aqui vemos um jumento, à esquerda, um avestruz, ao alto, uma girafa, à direita, e embaixo,
no centro, um antílope com chifres em espiral. Animais que representavam, provavelmente, as forças
negativas advindas dos desertos, segundo a mentalidade egípcia. Acervo do Museu Metropolitano de
Arte de Nova York, EUA.
Fonte:<https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/>
38

Fig. 3 - Paleta Líbia.Peça datada do período Nagada III, também chamado período
protodinástico ou Dinastia 0 (3.300 AEC-c. 2.900 AEC). Peça encontrada em Abidos,
Egito. Nela dizem que estava escrito o nome do rei Escorpião. Acervo Museu Egípcio do
Cairo, Egito. Foto de Zeinab Mohamed, 2016.
No fragmento distinguem-se três ordens de animais provavelmente já domesticados. Bovinos, jumentos e
ovelhas de espécie já extinta, com os característicos chifres horizontais e retorcidos, incorporados pelos
egípcios em seus símbolos religiosos.Abaixo, árvores reconhecidas como oliveiras.
Fonte:< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Libyan_Palette.jpg>
39

Fig. 4 - Escultura de pedra provavelmente do período Nagada III. Acervo do Ashmolean


Museum, Universidade de Oxford, Oxford, Reino Unido.
Hoje há consenso de que a peça retrate uma forma teriomórfica do deus Sete. Se assim fôr, isso explica porque
o animal já passou por modificações na sua aparência. De asinino, transformou-se em canídeo, com patas e
não cascos. Seu corpo, porém, ainda não adquiriu a elegância do futuro animal sha. Taylor ensaiou uma
reconstituição dessa peça em sua tese de doutorado e o resultado foi muito convincente. No entanto, são
justamente as peças faltantes que caracterizariam definitivamente o animal como sha. O focinho ainda não
adquiriu a forma definitiva afilada, mantendo a largura do focinho do jumento. Quanto à cauda faltante,
também não sabemos se já teria o feitio de uma flecha ou ainda seria semelhante à cauda do animal.
Fonte da imagem: PIZZATO, Giulia. The fantastic creatures in Predynastic Egypt: an essay about Near-Eastern influences. Journal of
Interculturalm and interdisciplinary Archaeology, n.3, 2019.
Fonte:<https://journals.ub.uni-heidelberg.de/index.php/jiia/article/view/61266>
40

Fig. 5 - Esboço de um dos dois estandartes que trazem como insígnia o animal de Sete
representados na cabeça da maça cerimonial do rei Escorpião, segundo Whitehouse H.
Ancient Egypt and Nubia. Oxford: Ashmolean Museum, University of Oxford, 2009,
p.22. Ilustração colhida na tese de doutorado de Philip John Turner.

Aqui o animal sha aparece com um aspecto transacional. O corpo ainda se mostra muito próximo do corpo do
jumento: forte, embora com o ventre recolhido. As orelhas estão direitas e cortadas em ângulo reto com as
do animal sha e o rabo tem forma de flecha com o corte na ponta para o encaixe da corda do arco e penas
laterais. O focinho, porém, ainda se conserva trombudo, como o do jumento.
Fonte da imagem: TURNER, Philip John. Seth – a misrepresentated god in the ancient egyptian pantheon? A thesis submitted to the
University of Manchester for the degree of Doctor of Philosophy in the Faculty of Life Sciences, 2012.
Fonte:<https://www.research.manchester.ac.uk/portal/files/54524292/FULL_TEXT.PDF>
41

Fig.6 - Três exemplos de hieróglifos setianos colhidos na web: Gardiner C7, E 20 e E 21.
O animal sha adquiriu uma forma estável, embora os detalhes sempre variem: corpo de
galgo, focinho curvo e afilado e orelhas direitas, de um modelo geométrico bastante
antinatural. A cauda é reta, sua terminação tem em geral feitio de seta, constituindo a
arma mágica que desativava a energia negativa do animal e exercia domínio sobre ele.
1- O hieróglifo com a imagem do deus Sete sentado com o cajado heqa (hKA) às mãos, C 7, é
proveniente de um cartucho com o nome do faraó Seti II, exposto no Museu a Céu Aberto de Karnak,
19ª dinastia.
2- O hieróglifo do animal sha sentado, E20, provém de um bloco do lintel do complexo da pirâmide de
Amenemés I em El Lisht. Acervo do Museu Egípcio, do Cairo, Egito, 12ª dinastia. (A imagem colhida
na web estava invertida)
3- O hieróglifo com o animal sha deitado sobre o ventre data da 18ª dinastia e também está exposto
no Museu a Céu Aberto de Karnak.
Fontes: < https://www.bbc.co.uk/history/ancient/egyptians/gods_gallery_06.shtml>
<https://author.today/post/12844>
<https://br.pinterest.com/pin/489133209519520945/?mt=login>
42

Fig. 7 - Vemos acima dois trechos de afrescos vistos em tumbas (n.15 e n. 17,
respectivamente), localizadas em Beni Hasan, Egito, datadas do Médio Império,
retratando caçadores acompanhados de animais fantásticos. Imagens colhidas na tese
de doutorado de Ian R. Taylor.

Analisando as duas cenas de caçada, o autor identifica sha como um animal ligado ao deserto, o que é correto,
mas interpreta que por ser originário do deserto o animal setiano talvez esteja aqui a exercer uma má
influência sobre os caçadores. Essa é uma interpretação, a nosso ver, equivocada. O sha, sob o efeito da
magia,evidenciada pela presença de sua cauda em forma de seta, estaria a exercer uma influência positiva no
ato da caçada. E outra prova disso é que está em companhia do falcogrifo e do serpopardo, duas entidades
agressivas, mas benéficas, que apareciam em arte egípcia desde as paletas pré-dinásticas, atacando os
animais do deserto, símbolos do Caos (a esse respeito, ver a Paleta dos Dois Cães, acervo do Ashmolean
Museum, fig.14). Esse era justamente o objetivo da magia simpática exercida sobre o sha e o deus Sete,
transformar a divindade ligada às forças do Caos em entidade benfeitora do rei e do povo egípcio.
Aliás, não havia sentido em registrar cenas de significado negativo em túmulos egípcios. A intenção da
decoração murária nas tumbas era representar fatos positivos da vida do morto para que esses se
reproduzissem eternamente no Além.
Há contudo uma observação a ser feita: embora sha apareça aqui de modo muito positivo, o animal guardava
em si uma potencialidade altamente prejudicial, o que resultava em sua imagem ser usada como hieróglifos
determinativos de palavras de sentido negativo, como veremos ao longo deste texto.

Fonte:<https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/7714/1/Taylor17PhD.pdf>
43

Fig. 8 - Estela de Taqayna, peça do acervo do Rijksmuseum van Oudheden, em Leiden


(Inv. AP.60), Países Baixos, datada da 18ª dinastia (c.1550-c.1292 AEC). Imagem
encontrada em site de Joan Lansberry.
O devoto ajoelha ante Sete no momento em que este, sob a forma antropomórfica, ataca Apófis, a serpente
agente do Caos, representada com cabeça e mãos humanas, sendo esse um método mágico para controlar os
maus fluidos emanados de deidades perniciosas. A inscrição hieroglífica diz: ”Dando louvor a Rá, beijando a
terra ante Nubty “ (i.e., o de Nubt, ou seja Sete, o salvador do deus solar).
Fonte:< http://www.joanlansberry.com/setfind/stabapep.html>
44

Fig.9 - Impressionante retrato de Sete, usando uma cabeleira tripartite e postado à


esquerda do faraó, já que era com esse lado que o deus se identifacava. Pormenor do
grupo escultórico em que Sete e Hórus concedem proteção ao faraó Ramsés III, 19ª
dinastia. Peça pertencente ao Museu Egípcio, do Cairo, Egito. Imagem sem outras
referências.
Ao longo do tempo, a aparência do deus Sete evoluiu, mas sem ter padrão iconográfico plenamente fixado,
conforme ficou demonstrado na tese de Ian R. Taylor. O objetivo da magia era esconder a natureza asinina
do deus, alterando-lhe as feições sem recorrer a detalhes provenientes de outros animais vivos, ao contrário
do que os egiptólogos geralmente supõem. Copiar partes de outros animais certamente interferiria no caráter
do deus. E o objetivo não era esse, era evitar que a negatividade natural de Sete se manifestasse contra a
ordem instarauda por Maat. Sob controle mágico, o deus usava seus grandes poderes contra o Caos e não
promovia nem desordens nem violência nas terras do Egito, ou direcionava a sua agressividade contra os
inimigos do país. As longas orelhas e o focinho curvo são heranças diretas dos detalhes anatômicos dos
jumentos, mas cuidadosamente disfarçados (comparar com fig.1, sobretudos as orelhas).
Fonte: <http://hotcore.info/kareff-06079.html>
45

Fig. 10 - Estela de Aapehty, talhada em pedra calcária,final da 19ª dinastia. Peça do


Museu Britânico, Londres, Reino Unido.
A figura bimórfica de Sete, à esquerda, exibe um focinho tão agudo que mais parece um bico.
Fonte:< https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA35630>
46

Fig.11 - Terminação de duas antigas setas egípcias feitas de junco com um corte no final,
para o encaixe da corda do arco, e com penas inseridas para, uma vez arremessada, dar
estabilidade ao voo da flecha. Acervo do Museu Egípcio, do Cairo, Egito. Foto retirada
da tese de Ian R. Taylor.
À cauda do animal sha foram dadas várias formas ao longo do tempo, sempre em formato de arma, conforme
demonstrou Taylor em sua tese. A forma da arma às vezes era explícita, às vezes dissimulada, mas o resultado
era sempre o mesmo, o animal ficava sob o domínio da magia e tinha seu comportamento controlado.
Fonte da imagem: TAYLOR, Ian Robert. Deconstructing the iconography of Seth. A Thesis submitted to the University of Birmingham for
the degree of Doctor of Philosophy, U.K., 2016.
Fonte:<https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/7714/1/Taylor17PhD.pdf>
47

Fig. 12 - Pormenor da deusa Serket, pintada em afresco na tumba da rainha Nefertari,


QV66, Vale das Rainhas, 19ª dinastia, com o seu animal sagrado no alto da cabeça, um
escorpião com o corpo desprovido de pernas e com cauda sem aguilhão, alterações
mágicas necessárias para neutralizar o periculosidade do animal. Imagem colhida em:
MCDonald, John K.House of Eternity: the Tomb of Nefertari.The Getty Conservation
Institute, 1996.
Fonte:< https://www.getty.edu/conservation/publications_resources/pdf_publications/pdf/house_eternity4.pdf
48

Fig. 13 - Pormenor do relevo do rei Djoser, da 3ª dinastia, indo em direção ao santuário


de Horus de Behedet (bHd.t, moderna Edfu), situado no Alto Egito, como uma etapa
cerimonial do jubileu hed-sed. Ao lado da perna esquerda do rei, vemos um amuleto
was personificado sustentando um escorpião neutralizado por magia, símbolo de
Serket, a deusa protetora do rei. O corpo do aracnídeo está inteiramente deformado,
sem pernas nem cauda, e suas pinças trazem presilhas para garantir a inofesividade do
animal. Relevo proveniente das galerias subterrâneas revestidas de faiança azul da
pirâmide escalonada de Djoser, Sacara, Egito, atualmente no Museu Imhotep,situado
junto ao complexo funerário. Desenho de Joan Lansberry traçado sobre foto de
“kairoinfo4u”, sem data.
Fonte:< http://www.joanlansberry.com/setfind/earlywas.html>
49

Fig. 14- Imagens do anverso e do verso da Paleta dos dois Cães. Esculpida em siltito (c.
3300-3100 AEC). Acervo do Ashmolean Museum, Oxford, Reino Unido.
O tema decorativo apotropaico desse objeto cerimonial é a luta da Criação contra as forças do Caos,
representadas pelos animais que viviam no deserto (bovídeos,cervídeos, caprinos, ovinos e até uma girafa,
que aqui se acha fora de seu habitat). Investindo contra os representantes do mal estão os animais
predadores, leões, leopardos e cães de caça. No anverso, veem-se dois animais fantásticos, os serpopardos,
atacando um bovídeo ou cervídeo. Na parte do verso, vemos outro animal fantástico, o leogrifo, com cabeça
de falcão e asas em forma de “pente”, dada a maneira canhestra com que foram desenhadas. Uma figura que
aparece embaixo, à esquerda, bípede com cauda longa e orelhas compridas, em pé, a tocar uma espécie de
instrumento de sopro, tem sido interpretada como uma forma bimórfica de Sete. Ele toca, porque estaria
regozijante de ver a batalha entre o Universo criado e o Caos. Aqui, ele parece estar do lado da Criação .
Fonte:< https://www.getdailyart.com/22129/two-dog-palette>
50

Fig. 14 a - Dois exemplares de marfins mágicos com figuras setianas, datados do Médio
Império. O exemplar superior provém do Museu do Louvre, Paris, e o inferior, do Museu
Britânico, Londres. Imagens colhidas na tese de doutorado de Marie Vandenbeusch, p.
167 e 168.
Muito populares durante o Médio Império, os marfins mágicos traziam gravadas várias
figuras fantásticas, entre elas, figuras setianas, embora haja quem as veja como figuras
leporinas. A esses marfins em forma de meia-lua era atribuído o poder de afastar influências
maléficas. Neles se veem diferentes criaturas míticas de índole protetora. No exemplar do
Louvre, há, por exemplo, um serpopardo e um falcogrifo, animais fantásticos de natureza
agressiva, mas de índole protetora. Veem-se também demônios, entre os quais a deusa
Taueret (tA-wrt), um hipopótamo sobre duas patas com um crocodilo às costas, a atacar um
prisioneiro de guerra (entendido como inimigo do Egito). Há ainda olhos de Hórus e deus
Bes (bs), entidades de reconhecido valor apotropaico, e figura com cabeça de asno, que
relacionamos com Sete.
No exemplar inferior, do Museu Britânico, podemos observar um falcogrifo, a deusa
Taueret, o perfil do animal sha, com orelhas de asno, dentro de um hieróglifo hut (Hwt),
Gardiner O6, que Vandenbeusch diz tratar-se, neste caso, de um encapsulamento mágico
contra as forças negativas do animal setiano, hipótese bastante plausível, em nossa opinião.
Nesse exemplar vemos ainda na ponta esquerda do artefato, uma cara de jumento vista de
frente, com longas orelhas hachuradas, que lembram o tratamento dado às orelhas de sha
nos cetros was (ver fig. 27 b).
Fonte:< https://www.academia.edu/43197033/Sur_les_pas_de_l%C3%A2ne_dans_la_religion_%C3%A9gyptienne>
51

Fig. 15 - Duas ilustrações mostrando a forma teriomórfica de Sete pintada em esquifes


datados do Médio Império. Na parte superior, caixão de Ankhef, com o animal sha (com
corpo de canídeo), pintado com cauda reta empinada, com pequena bifurcação na
ponta, cabeça, orelhas e crina de asno. Acervo do Museu Britânico. Na inferior,caixão
de pessoa não identificada, com animal sha (com corpo de canídeo), pintado com cauda
ligeiramente curva para cima, com terminação em forma de pera (alusão ao rabo do
asno com tufo de pelos na ponta), cabeça e crina de asno e orelhas com pontas cortadas
como as de sha, inclinadas para trás. Também pertencente ao acervo do Museu
Britânico. Imagens colhidas na tese de doutorado de Ian R. Taylor.
Vemos aqui duas versões do animal setiano em forma do hieróglifo Gardiner E21 (sha deitado sobre o ventre)
que revelam sua verdadeira identidade asinina. O corpo de canídeo, o formato das caudas, estirada e ereta
ou com leve curva para cima, indicam, porém, que o controle mágico sobre o animal continuava em vigor, o
mesmo valendo para as orelhas cortadas existentes no exemplar inferior.

Fonte da image: TAYLOR, Ian Robert. Deconstructing the iconography of Seth. A Thesis submitted to the
University of Birmingham for the degree of Doctor of Philosophy, U.K., 2016.
Fonte:<https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/7714/1/Taylor17PhD.pdf>
52

Fig. 16 - Desenho esquemático aproximado do Sete “suas duas faces”, ou Antewy,


baseado na figura existente na 2ª hora do Amduat representada em afresc0 localizado
na tumba KV17 de Ramsés IX, 20ª dinastia, Vale dos Reis, Egito. Desenho do Autor,
2022.
53

Fig. 17 - Imagem da Pequena Estela de Dâkhla, datada do séc. VIII AEC, do tempo do
faraó Piye (piy), 25ª dinastia ou dinastia núbia. Acervo do Ashmolean
Museum,Universidade de Oxford, Reino Unido.
Aqui o deus Sete, então com o epíteto de “Sutekh [swtx], grande em força“, aparece sob a forma de Hórus,
seu antigo inimigo, e com o disco solar no alto da cabeça. Iconografia talvez surgida a partir do deus Antawy,
divindade que reunia os dois deuses antagônicos.

Fonte da imagem: JANSSEN,Jac.J.The Smaller Dâkhla Stela (Ashmolean Museum No. 1894. 107 b).The Journal of Egyptian
Archaeology,Sage Publications Inc.,v. 54, aug. 1968, pp. 165-172.
Fonte:< https://www.jstor.org/stable/3855921?read-now=1&seq=6 >
54

Fig. 18 - Imagem da decoração lateral esquerda do trono do rei Sesostris I, da 12ª


dinastia, mostrando o tema da unificação das duas terras do Egito (Gardiner R26),
chamada sema-tawy (smA-tAwy), geralmente representada com a versão dupla do deus
Hapi (Hapy),deus da fertilidade do rio Nilo, mas que na época de Sesóstris foi composta
com Hórus e Sete, os dois deuses inimigos reconciliados. Hórus representa o Baixo Egito
e Sete, o Alto Egito. Ambos enlaçam o ramo de papiro (Gardiner M13) e o ramo de junça
(Gardiner M26), plantas heráldicas do Baixo e Alto Egito, entorno da forma hieroglífica
Gardiner F36, constituída pela laringe e os pulmões, significando união (smA). Relevo de
calcário proveniente do templo funerário de Al Lisht. Acervo do Museu Egípcio, do
Cairo, Egito. Foto do museu, 2019.
Fonte:<https://m.facebook.com/Egypt.Museum/photos/relief-of-horus-and-sethdecoration-on-the-side-of-the-throne-of-king-
senusret-i-/2390632367639307/>
55

Fig. 19 - Hórus e Sete, como aliados, coroam e concedem proteção ao faraó Ramsés III.
Grupo escultórico de granito, datado da 20ª dinastia, e proveniente de Medinet Habu.
Acervo do Museu Egípcio, do Cairo, Egito. Foto do museu.
Fonte:< http://www.globalegyptianmuseum.org/detail.aspx?id=14750>
56

Fig. 20 a - Relevo de Sete no templo de Hibis (Hebet, Hb), situado no Deserto da Líbia, datado
do período ptolomaico, sob a forma de um Hórus cingido com as coroas do Alto e do Baixo
Egito, alado, a transpassar Apófis com uma lança. De um deus jumento que despertava a
desconfiança em todos, Sete passa a incorporar a imagem positiva de um deus Hórus,
transformação ocorrida nos templos e santuários localizados nos oásis egípcios. Foto extraída
da Wikipedia, de autoria de Roland Unger, 2008.
Fonte:< https://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:HibisSeth.jpg>
57

Fig. 20 b - Pequeno relevo esculpido em pedra calcária, talvez proveniente de um


santuário localizado no deserto, período ptolomaico, com imagem de Sete com cabeça
de falcão, atacando Apófis com ajuda de um leão. Apófis apresenta-se aqui, sob a forma
antropomorfizada, de tamanho minúsculo. Peça pertencente ao The Walters Art
Museum, Baltimore, Maryland, EUA. Peça não exibida. Imagem do museu.
A identificação da peça é de inteira nossa responsabilidade. O museu informa que o tema retratado é de Hórus
atacando um inimigo.
Fonte:< https://art.thewalters.org/detail/40070/horus-spearing-the-enemy/ >
58

Fig. 21 - Hórus como rei do Egito, abatendo Sete sob a forma de um hipopótamo, com
a ajuda de sua mãe, a deusa Ísis. Relevo do templo de Edfu, Egito, datado do período
ptolomaico. O relevo sofreu séria depredação promovida pelos cristãos. Foto extraída
da Wikipedia, de autoria de Remi, 2009.
Enquanto Sete era heroicizado nos templos e santuários dos oásis e outras pequenas localidades, os grandes
templos da época Edfu, Dendera e File demonizavam o deus, representando-o por meio de animais tidos
como maléficos e sob a forma de um jumento submetido a tortura e morte.
Fonte:< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Edfu47.JPG>
59

Fig. 22 - Estela de Peribsen (pr-ib-sen), da 2ª dinastia, talhada em granito cinza. Uma de


um par que estava originalmente instalado defronte à entrada da tumba real, trazendo
o nome de Sete do rei gravado no interior do serekh, cartela retangular cuja parte
inferior representa a fachada de um palácio real. Tem por timbre um animal sha em
posição andante, do qual hoje só se vê a silhueta, pois a figura acha-se obliterada
provavelmente desde a Antiguidade. Acervo do Museu Britânico, Londres, Reino Unido.
Fonte:< https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA35597>
60

Fig. 23 - Deusa Serket fundida em liga de cobre, datada do Período Tardio. Peça do
acervo do Departamento das Antiguidades Egípcias, Museu do Louvre, Paris. A deusa é
retratada aqui sob a modalidade bimórfica, com o corpo de escorpião, e busto, braços e
cabeça de forma humana. Notar que a parte aracnídea não apresenta nenhuma
alteração de natureza mágica, o que parece revelar que os egípcios de então já não
confiavam na eficiência dos antigos métodos de neutralização das imagens
preocupantes.
Fonte:< https://collections.louvre.fr/en/ark:/53355/cl010006182>
61

Fig. 24 - Relevo existente no grande templo de Dendera,dedicado à deusa Hator,na


parte relativa às câmaras do terraço, câmara n. 2, grupo do sul, conforme localização
indicada no livro. A cena mostra a figura bimórfica de Sete, com cabeça de asno,
ajoelhado e amarrado pelos cotovelos a uma forquilha (Gardiner U42), com duas facas
cravadas no peito e uma no ventre, à espera de ser sacrificado por Hórus. Este, por sua
vez, está perante Osíris ressuscitado, acompanhado de seus quatro filhos, todos, como
ele, munidos de faca. Sacrifício mágico com finalidade profilática contra o mal
provocado pelo Caos. Ilustração extraída da obra de Auguste Mariette denominada
Dendérah, Description générale du grand temple de cette ville, 1870-1880,T.4, prancha
n.56.
Fonte da imagem : Mariette, Auguste. Dendérah, Description genérale du grand temple de cette ville.Paris:A.Franck, 1870/1880.v.5, V.4.
Fonte:< https://digitalcollections.nypl.org/items/510d47e2-9774-a3d9-e040-e00a18064a99/book?parent=7db3b2b0-c60b-012f-c11f-
58d385a7bc34#page/311/mode/2up>
62

Fig. 25 – O deus Sete reproduzido quatro vezes sob forma antropomórfica, com
invocações diferentes, gravação em lintel de uma das câmaras do templo de Dendera,
época ptolomaica. Foto de autoria de Ian R. Taylor, colhida na tese de doutorado desse
autor.
Fonte da imagem: TAYLOR, Ian Robert. Deconstructing the iconography of Seth. A Thesis submitted to the University of Birmingham for
the degree of Doctor of Philosophy, U.K., 2016.
Fonte:<https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/7714/1/Taylor17PhD.pdf>
63

Fig.26 - Fragmento de vaso de alabastro mostrando o serekh do rei Sekhemib, da 2ª


dinastia. Ao lado, vê-se parte de uma divindade masculina (seria Sete?) portando o was.
Acredita-se que o vaso foi usado pelo rei Peribsen no início do seu reinado. Acervo do
Museu Britânico, Londres, Reino Unido. Foto extraída da Wikipedia, de autoria de
Captmondo, 2008.
Pelo desenho da figura antropomórfica, parece não haver dúvida de que, pelo seu comprimento, o was era
um amuleto em forma de cetro e não um cajado ou bastão de apoio.
Fonte:< https://en.wikipedia.org/wiki/Sekhemib-Perenmaat#/media/File:CalciteVesselFragmentNameOfSekhemibPerenmmat-
BritishMuseum-August21-08_retouched.jpg>
64

Fig.27 a - Cetro was de faiança azul encontrado em 1895 no templo de Sete, em Nubt,
oferecido pelo faraó Amenófis II (imn-n-Htp), da 18ª dinastia.Trata-se de uma oferenda
monumental, pois o comprimento da peça restaurada é de c. 2, 15 m. Acervo do Museu
Vitória e Alberto, Londres, Reino Unido. Foto extraída da Wikipedia, de autoria de
Soutekh67, 2014.
O amuleto foi concebido numa versão personificada, sendo a ele acrescentados braços, hoje fraturados na
altura dos cotovelos. Devia portar um outro amuleto, talvez um ankh.
Fonte:< https://ru.wikipedia.org/wiki/%D0%A3%D0%B0%D1%81>
65

Fig. 27 b - Cetro was feito de faiança azul, com 30 cm de comprimento,proveniente da


Núbia. Note-se que as orelhas hachuradas do cetro was, como padrão não reproduzem
as do animal sha, sendo mais semelhantes às do asno. Período Tardio (da 25ª a 30ª
dinastia). Acervo do Museu Metropolitano de Arte de Nova York. Foto do museu.
Fonte<: https://br.pinterest.com/pin/382454193328830368/>
66

Fig.28a - Parede do templo funerário de Ramsés III em Medinet Habu (19ª dinastia),
apresentando-se coberta de alto a baixo com os nomes de nascimento (Ramessu Heka
Iunu) e de trono (User Maat Rá, meri Amon) do faraó, intercalados com o conjunto de
amuletos formado por um ankh personificado, ostentando um cetro was em cada mão,
acomodados sobre uma cesta neb (nb) (Gardiner V30) , cuja função era nesse caso, ao
que parece, potencializar a magia apotropaica. Esse conjunto significava que o símbolo
da Vida Eterna esconjurava as forças do mal, para que o rei, incorporado a Osíris (ver o
símbolo do deus sobre os cartuchos reais), pudesse gozar uma vida de um milhão de
anos no além-túmulo.
Fonte: <https://ask-aladdin.com/temples-of-egypt/medinet-habu/>
67

Fig. 28b- Osíris-Nepra (ou Nepri) é o resultado da fusão do deus do grão do trigo com
Osíris, o deus da fecundidade vegetal e da Morte e Ressureição. Do corpo mumificado
de Osíris brotam colmos erectos do cereal, representando o renascimento do deus da
agricultura na Outra Vida. Sob seu corpo, vê-se uma sequência feita de ankhs e cetros
was. Do amuleto ankh emana a Vida Eterna*, enquanto os cetros was mantêm à
distância as forças negativas do Caos. Desenho de um relevo que se encontra no templo
de File, hoje instalado na ilha de Algikia (entre o séc. III AEC e o séc. II EC). Sem outras
referências.
* A respeito do hieróglifo ankh, leiam um pequeno texto em continuação ao presente, por nós elaborado, denominado O
ideograma ankh (anx) como metonímia da Vida Eterna, em que nos esforçamos para explicar a sua significação vinculada à
Outra Vida.

Fonte:< https://www.sacred-texts.com/egy/efl/efl03.htm>
68

Fig.29 - Conjunto apotropaico lavrado em cantaria do templo de Dendera, Período


Ptolomaico, formado por um amuleto Djed personificado, com um cetro was em cada
mão, acomodados não sobre uma cesta neb, mas sobre uma bacia de alabastro
decorada Hab (HAb) (Gardiner W3). O significado desse hieróglifo na base do conjunto
mágico talvez não seja muito diferente do visto na ilustração anterior, mas sem dúvida
implicava numa elevação do grau de eficácia da magia, que tinha por objetivo assegurar
a estabilidade e a continuidade do mundo criado pelos deuses, afastando as ameças
representadas pelas forças do Caos. Imagem encontrada em http://akalle.tumblr, sem
outras referências.
Fonte:<https://akalle.tumblr.com/post/122597707362/personified-djed-pillar-standing-on-the-neb-basket>
69

Fig. 30 - Relevo gravado num lintel. Representa alegoricamente o rei Sesóstris III (z-n-
wsrt), da 12ª dinastia, duplicado, usando a coroa do Baixo Egito (à esquerda) e a coroa
do Alto Egito (à direita) durante o festival Heb Sed. Acervo do Museu Egípcio, do Cairo,
Egito.
Conforme informa o site do museu, os festivais Sed eram jubileus celebrados depois que o governante ocupava
o trono por trinta anos e a cada três ou quatro anos depois de realizada essa cerimônia. Eram efetuados
principalmente para o rejuvenescimento da força e resistência do rei, enquanto ainda ocupava o trono,
celebrando o sucesso contínuo do soberano.
A cena vista acima desenrola-se sob o firmamento, representado pelo hieróglifo pt (Gardiner N1). Nas
extremidades laterais do relevo é possível distinguir dois cetros was que sustentam a abóboda celeste, numa
garantia mágico-profilática contra a influência negativa das ameaçadoras forças do Caos.
Fonte:< https://egypt-museum.com/relief-of-king-senusret-iii/>
70

Referências bibliográficas online:


ANAT; ASTARTE. Ancient Egyptian Religion World History Encyclopedia.
Fonte:<https://www.worldhistory.org/article/885/egyptian-gods---the-complete-list/>
Acesso maio de 2022

AWADALLAH, Abdelhaleem. The crew of the sun bark before the first appearance of the Amduat. In: CZECH
Institute of Egyptology. Current Research in Egyptology 2018. Oxford: Authors and Archeopress, 2019.
Fonte:<https://www.archaeopress.com/ArchaeopressShop/DMS/F9F0EF989B7A49EDA105120E7BEEF745/9781789692143-
sample.pdf>
Acesso maio de 2022

GAD, Magda. Seth Against Apófis.Originating The Scene Depicting Seth Spearing Apófis. Journal of faculty of
Archaeology (Qena). Cairo,2021, p.45-82.
Fonte:<https://mkaq.journals.ekb.eg/article_212434_644a412ae10d7fe4695b96d083579f86.pdf>
Acesso em maio de.2022

GRANDE, María José López. Los amuletos y su función mágico-religiosa en el Antiguo Egipto. In: COSTA,
Benjamí e FERNÁNDEZ, Jordi H.(Ed.).Magia y superstición en el mundo fenicio-púnico. Eivissa: Govern de les
Illes Balears, 2007.p.49-96. Academia.edu
Fonte:<https://www.academia.edu/37536035/Los_amuletos_y_su_funci%C3%B3n_m%C3%A1gico_religiosa_en_el_antiguo_Egipto_pd
f>
Acesso em maio de 2022.

HART, George.The Routledge Dictionary of Egyptian gods and goddesses, 2ª ed. London: Routledge,2005.
Academia.edu
Fonte:< https://www.academia.edu/3698677/_George_Hart_The_Routledge_Dictionary_of_Egyptian_Bookos_org_>
Acesso em maio de 2022

HUYGE, Dirk. Detecting magic in rock art: The case of the ancient Egyptian 'malignant ass'. In: HEIKO Riemer
& others (ed.). Desert animals in the Easter Sahara. Colloquium Africanum 4, University of Cologne,Germany,
2009.p.293-308.Academia.edu
Fonte:<https://www.academia.edu/2285756/Riemer_H_F_F%C3%B6rster_M_Herb_and_N_P%C3%B6llath_eds_2009_Desert_animals
_in_the_eastern_Sahara_Status_economic_significance_and_cultural_reflection_in_antiquity_Proceedings_of_an_Interdisciplinary_A
CACIA_Workshop_held_at_the_University_of_Cologne_December_14_15_2007?auto=download>
Acesso em maio de 2022

LUCARELLI, Rita. The Donkey in the Graeco-Egyptian Papyri, 2017.Academia.edu


Fonte:<https://edizionicafoscari.unive.it/media/pdf/books/978-88-6969-181-2/978-88-6969-181-2-ch-08.pdf>
Acesso em maio de 2022

MAYDANA, Sebastian. Seth: 7 Facts on the Egyptian God of Chaos and Violence, 2022. The Collector
Fonte:< https://www.thecollector.com/seth-facts-ancient-egyptian-god/>
Acesso em maio de 2022

PIZZATO, Giulia. The fantastic creatures in Predynastic Egypt: an essay about Near-Eastern influences.
Journal of Interculturalm and interdisciplinary Archaeology,n.3, 2019.
fonte:<https://journals.ub.uni-heidelberg.de/index.php/jiia/article/view/61266>
Acesso em maio de 2022

PLUTARCH. Moralia. Isis and Osiris.1936, PROJECT GUTENBERG.


Fonte:< https://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Plutarch/Moralia/Isis_and_Osiris*/B.html>
Acesso em junho de 2022

RIBEIRO. Thiago H. Pereira. Coagindo os deuses: o uso de ameaças e intimidações às divindades do Egito Antigo
em encantamento do Reino Novo (séc.XVI- XI AEC). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro,2018. Academia .edu
Fonte:
<https://www.academia.edu/37247350/Coagindo_os_Deuses_o_uso_de_amea%C3%A7as_e_intimida%C3%A7%C3%B5es_%C3%A0s_d
ivindades_do_Egito_Antigo_em_encantamentos_do_Reino_Novo_s%C3%A9culos_XVI_XI_AEC_>
Acesso em junho de 2022

ROSSEL, Stine; MARSHALL,Fiona; Peters, Joris & others. Domestication of the donkey: Timing, processes,
and indicators. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. EUA,
março,2008, v.105, n.10, p.3715-3720. Versão online publicada em de março de 2008.
71

Disponível em :
<https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2268817/#:~:text=The%20African%20wild%20ass%20(Equus,inhabitin
g%20the%20Egyptian%20Nile%20Valley>
Acesso em 12 de maio de 2022.

SET, deity. WIKIPEDIA en.


Fonte:< https://en.wikipedia.org/wiki/Set_(deity)>
Acesso em maio de 2022

TAYLOR, Ian Robert. Deconstructing the iconography of Seth. A Thesis submitted to the University of
Birmingham for the degree of Doctor of Philosophy, U.K., 2016.
Fonte:<https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/7714/1/Taylor17PhD.pdf>
Acesso em maio de 2022

THE Book of the Victory over Seth. ANCIENT EGYPTIAN TEXTS:1.3


Acesso em maio de 2022
Fonte:<http://www.attalus.org/egypt/victory_over_seth.html>

TURNER, Philip John. Seth – a misrepresentated god in the ancient egyptian pantheon? A thesis submitted to
the University of Manchester for the degree of Doctor of Philosophy in the Faculty of Life Sciences, 2012.
Fonte:<https://www.research.manchester.ac.uk/portal/files/54524292/FULL_TEXT.PDF>
Acesso em maio de 2022

VANDENBEUSCH, Marie. Sur les pas de l'âne dans la religion égyptienne. Leiden: Sidestone Press,2020.
Academia.edu
Fonte:<https://www.academia.edu/43197033/Sur_les_pas_de_l%C3%A2ne_dans_la_religion_%C3%A9gyptienne>
Acesso em maio de 2022

______.Thinking and writing “Donkey” in Ancient Egypt, 2019. Degruyter


Fonte:< https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/aofo-2019-0009/html>
Acesso em maio de 2022

Referências bibliográficas impressas

ALLEN, James P. The Ancient Egyptian Pyramid Texts. Atlanta: SBL press, 2015.
ASSMANN, Jan. Death and Salvation in Ancient Egypt.Ithaca and London:Cornell University Press, 2001.

GRIFFITHS, J. Gwyn. The conflict of Horus and Seth. Liverpool: Liverpool University Press, 1960.
TE VELDE, Herman. Seth, God of Confusion: A study of his role in Egyptian mythology and religion. Leiden: E.J.
Brill, 1967.

______. Seth, God of Confusion: A study of his role in Egyptian mythology and religion. Leiden: E.J. Brill, 1977.

______. The Egyptian God Seth as a Trickster. Journal of the American Research Center in Egypt, v.7, 1968, p.37-
40.

* * *
72

O ideograma ankh (anx) como metonímia da Vida Eterna

arq. Eudes Campos

A explicação para o objeto representado no ideograma ankh (anx) (Gardiner


S34) (figs.1 a 3) foi enunciada pela primeira vez pelo egiptólogo inglês Battiscombe Gunn
(1883-1950), que pretendeu provar que o símbolo egípcio representava as tiras de uma
sandália.
Sobre esse assunto o destacado egiptólogo Sir Alan Gardiner (1879-1963)
comentou na entrada "Life and Death (Egyptian)" por ele redigida para a Encyclopaedia of
Religion and Ethics, v.8 (1915, p.21):

Nenhuma demonstração da descoberta de Gunn (aprovada por A. Erman em seu Agyptische [sic]
Grammatik3, 1911, p. viii) encontrou ainda o caminho da impressão: a evidência crucial na seguinte
argumentação foi fornecida pelo próprio Gunn. Há um objeto chamado anx exatamente parecido
com o símbolo e o hieróglifo para 'vida', que é frequentemente representado aos pares na
extremidade dos caixões do Médio Império. Esses caixões são cobertos com imagens de artigos
considerados necessários para a felicidade dos mortos na vida após a morte, e na maioria dos casos
é tomado o cuidado de colocar cada objeto em sua posição apropriada em relação ao corpo do
morto dentro do caixão; assim, são mostrados colares no nível do pescoço, cetros ao alcance da
mão, e assim por diante. A priori, portanto, deve-se concluir que o objeto estava conectado com os
pés – um ponto considerado definitivo devido ao fato de que um par desses objetos geralmente é
mostrado ao lado de um ou mais pares de sandálias, enquanto os outros artigos retratados
(tornozeleiras , tigelas para lavar, etc.) estão mais ou menos claramente conectados com os pés
(ver J. Oarstang, Burial Customs of Anc. Egypt, London, 1907, p. 6, p. 168; P. Lacau, Sarcophages
antérieurs au Nouvel Empire, Paris, 1904, nº 28034 [p. 90 f.]; H. Schäfer, Priestergräber, Leipzig,
1908, fig. 73 [p. 54], 83 [p. 69] e pl. 11) . Em várias ocasiões, as inscrições anexas descrevem o par
de objetos como 'os dois no chão sob seus pés' (cf. Garstang, loc. cit.; Lacau, ilustr. 158; a preposição
'sob' não deve ser forçada demais, mas pelo menos mostra que o axn fazia parte ou pertencia de
alguma forma às sandálias).
Se compararmos o objeto anx com a representação da sandália, veremos que os mesmos
elementos entram em ambos os objetos – o longo laço que passa ao redor do tornozelo, as tiras
que servem para amarrar esse laço às laterais da sandália e, possivelmente, uma espécie de laço
com nervuras ou fivela. É difícil harmonizar as representações em detalhes, mas, lembrando que o
signo é muito antigo, que os modos de fixar as sandálias no pés variavam muito, e que
possivelmente o signo retrate as tiras não como eram realmente usadas, mas dispostas de forma a
exibi-las da melhor maneira, dificilmente duvidaremos que os objetos mostrados nos caixões do
Médio Império sejam um par de tiras de sandálias sobressalente para ser utilizado caso o par
existente nas sandálias [usadas pelos mortos] precisasse ser substituído. A ilustração na página
anterior [figs. 4 e 4a] mostra vários exemplos de tiras de sandálias, tanto como um artigo de uso
quanto como um hieróglifo, juntamente com imagens de sandálias para comparação; o hieróglifo
é normalmente pintado de preto.

(GARDINER, 1915, p.21; trad.do Autor)


73

Em seguida, Gardiner pondera, dando razão a Gunn:

Não havendo conexão óbvia entre a ideia de vida e as tiras de uma sandália, deve-
se supor que a ideia de vida, não sendo ela própria suscetível de representação
pictórica, foi simbolizada por um objeto cujo nome coincide por acaso em som com
a palavra para 'vida' [axn] este procedimento é meramente o procedimento
chamado ‘transferência fonética’, extremamente comum em hieróglifos.

(GARDINER, 1915, p.21; trad.do Autor)

A identificação do ideograma ankh com as tiras de uma sandália, no entanto,


não vingou. Qual seria, afinal, a ligação simbólica entre as tiras de uma mera sandália feita
de fibras de papiro ou de couro e a magnitude do sentido da Vida Eterna? Outras hipóteses
aventadas também não nos convencem, tal como, um osso da coluna vertebral de um touro
ou a união esquemática de duas genitálias humanas, masculina e feminina. Em nossa
opinião, nenhuma dessas hipóteses teriam algo a ver com o significado da Vida do ponto de
vista egípcio.
Para aquele povo antigo, era o indivíduo do sexo masculino o princípio, a
origem, a sede da Criação, e seu sêmen, a essência da Criação. De acordo com a sagrada
cosmogonia de Heliópolis (Iunu, iwnw), todas as deidades haviam sido criadas pelo deus
Atum – considerado um dos aspectos de Rá, o deus sol –, cujo nome provém de tm, que
significa completar ou finalizar. Nada existia antes de Atum. Subitamente, um monte de
terra de forma piramidal (benben, bnbn) emergiu das águas primordiais do Caos (izft) e sobre
ele Atum criou a si mesmo. Para dar origem ao Universo e a tudo que ele contém, Atum
recorreu a um ato de sexo solitário. Foi seu sêmen lançado aos ares que criou tudo o que
desde então existe. A presença feminina nesse ato teve papel bastante secundário,
assumido pela deusa Nebet-hetepet (nbt-Htpt), consorte de Atum e personificação da mão
de seu esposo por ele usada para atingir o orgasmo cosmogônico (HART,2005, p.40, 41 e
99).
Atum não era o único deus criador na religião do Antigo Egito. Min (mnw), Ptá
(ptH), Amon (imn), além do próprio Rá (ra), de quem Atum era um aspecto, também eram
demiurgos, segundo diferentes cosmogonias (de Copto, de Mênfis, de Tebas e de
Heliópolis, respectivamente), sendo o primeiro e o terceiro deuses itifálicos. O que tornava
a função sexual masculina o sagrado fundamento da criação do Universo.
74

Havia também ao menos uma deusa criadora, Nit (nt), uma deusa muito antiga
dos tempos pré-dinásticos, mas essa versão ficou enfraquecida diante das demais, que
conferiam o protagonismo demiúrgico a divindades do sexo masculino. A partir dos mitos
acima referidos, que explicavam a origem do universo por intermédio de deidades
masculinas, podemos aferir o peso do patriarcado egípcio, na prevalência do sexo viril na
sociedade e na religião, e sua importância na criação e na procriação, o que vale dizer na
Vida (NAJOVITS, 2003, p.69). O poder gerador do homem era tão inabalável que no Antigo
Egito a mulher casada podia ser repudiada caso não conseguisse engravidar, sobretudo de
um descendente do sexo masculino.
Como é sabido, o homem de 30.000 ou 20.000 anos AEC desconhecia o seu papel
na reprodução humana. Daí os inúmeros pequenos ídolos femininos que essa época remota
nos legou, ídolos sem dúvida adorados pela parte masculina da população humana graças
à capacidade, até então vista como mágica, das mulheres entrarem em gestação sem que
os homens pudessem atinar com a causa. Mas erguido por volta de 11.400 anos atrás, na
Anatólia, o templo de Karahantepe (Turquia), há pouco escavado, parece provar que
naquela altura os homens do Neolítico pré-cerâmico já tinham plena consciência do real
valor do princípio masculino na procriação, simbolizado esse princípio nos pilares fálicos
erguidos ante a face obesa da Grande Deusa, esculpida quase a tutto tondo no ponto focal
da parede de fundo desse templo megalítico (fig.5).
Diante da questão aqui esboçada, constatamos que as tiras de uma sandália ou
qualquer outro objeto até agora aventado não têm valor algum. Perguntamo-nos então
qual seria a imagem de algo que melhor exprimiria a vida em toda a sua plenitude, até
mesmo a vida após a morte, do ponto de vista do mito cosmológico de Heliópolis, de Coptos
(Gebtu; gbtw), de Mênfis (Men-nefer; mn-nfr), de Heliópolis (Iunu, iwnw) e de Tebas (Wast;
wAst)?
O que nos ocorre é procurar um objeto que tivesse uma relação de proximidade
com a genitália masculina, num claro exemplo de metonímia visual. E o que nos vem à
mente é a cinta que os primitivos egípcios, em sua nudez, usavam em torno dos quadris,
atada na frente com um nó de alças duplas cujas pontas pendiam soltas, encobrindo
parcialmente os órgãos viris (fig.6). A serventia desse adereço, que ao que tudo indica
sucedeu ao uso do estojo peniano (fig.7), nada tinha a ver com pudor ou modéstia.
75

Provavelmente era apenas um expediente de caráter apotropaico contra o mau-olhado que


podia causar impotência.
O ideograma anx (Gardiner S34), com significado de vida, sopro de vida e viver,
assemelha-se muito ao amuleto hoje chamado nó de Ísis (Tyet), transliterado Tt (Gardiner
V39), comumente interpretado como uma faixa de tecido de cor vermelha com que
pretensamente a deusa cingia a cabeça e que, como o anx, tinha para os egípcios uma
conotação transcendental e mágica.
No anx, a alça superior representava a parte que contornava a cintura
masculina, os braços da cruz correspondiam às alças duplas horizontalmente esticadas e a
parte inferior do caractere era composta pelas duas pontas de tecido pendentes, tal como
se vê com clareza numa versão primitiva do amuleto traçada num pente de marfim que traz
o nome de Horus do rei Djet (Dt) (início do século XXX AEC) (fig.7a).
No nó de Isis, a parte superior correspondia à parte que rodeava a fronte e as
têmporas divinas, enquanto as alças duplas não se mostravam estiradas, mas molemente
caídas, flanqueando as pontas pendentes dispostas na parte posterior da cabeça da deusa
(fig.8). Há, porém, quem veja no Tyet uma peça de tecido talvez usado para estancar
alguma hemorragia ocorrida nos dias difíceis que Ísis passou quando viveu entre as moitas
de papiro, aguardando o parto de seu filho Hórus, escondida dado o temor da perseguição
de Sete (GRANDE, 2007, p. 59).
A cinta de uso masculino acima descrita, cujo nome em egípcio antigo
desconhecemos (se é que algum dia foi esse nome consignado em escrita egípcia), aparece
desde muito cedo em manifestações de arte e foi durante séculos a única peça de tecido
usada pelos primitivos egípcios e que, a partir do Antigo Império, estava sendo portada por
camponeses, tocadores de gado, pescadores, caçadores de aves aquáticas, lutadores,
magarefes, soldados e demais homens de condição humilde (fig.9). Notemos, porém que
havia exceções, o relevo do rei Djoser (Dsr-r) (reinado c. 2635 a 2610 AEC), da 3ª dinastia,
que se encontrava na câmara da pirâmide de Sacara mostra-nos o monarca fazendo a
corrida ritual do jubileu Heb Sed (Hb-sd) vestido apenas com essa cinta (fig.10), decerto para
facilitar-lhe os movimentos. E fragmentos de relevo hoje localizados num museu de
Copenhague mostram-nos dois príncipes, netos de um rei da 4ª dinastia ainda usando esse
mesmo traje sumário durante suas atividades físicas mais intensas (fig.11).
76

Quando, durante a faina braçal, as alças e pontas da cinta eventualmente


embaraçavam as pernas do trabalhador, este não hesitava em afastá-las, girando-as para
trás, ficando assim inteiramente livre para desempenhar suas pesadas tarefas diárias
(fig.12). E entre os deuses, o opulento e obeso – e não hermafrodita! – Hapi (Hapy),
personificação da fartura do rio Nilo, por ser um deus arcaico, continuou até o final da
civilização egípcia a ser retratado usando uma faixa semelhante (fig.13).
Quais teriam sido os critérios que levaram os sacerdotes e escribas do antigo
Egito a escolher esse ideograma para simbolizar o conceito de vida e de vida após a morte?
Afinal, existiam hieróglifos inteiramente óbvios que poderiam ter sido usados sem qualquer
ambiguidade para definir a Criação e a Vida, segundo a visão heliopolitana. O caractere
Gardiner D53, por exemplo, representando um falo com emissão, evidenciava o método
empregado pelo demiurgo Atum para criar o universo e tudo que nele existe de animado e
inanimado – uma variante desse mito afirmava que o deus gerou seu casal de filhos,
cuspindo ou escarrando (HART, p.41) –, no entanto o mencionado hieróglifo fálico servia
apenas para definir meros atos fisiológicos e designar as palavras homem e marido.
Talvez na procura de encobrir com um véu de mistério e discrição o ato
altamente sagrado de fundação do Cosmos, ato de tal magnitude que impôs ordem (mAat)
ao Caos original, e que, por respeito, merecia ser apenas aludido e não abertamente
revelado, teria sido essa cinta, de suposto caráter mágico, o objeto eleito pelos sacerdotes
para ser o símbolo egípcio da Vida. Não só da vida cotidiana transcorrida no plano terreal,
mas da Vida Eterna, símbolo tão profundo e entranhado na religião egípcia que seria
adotado como a primeira cruz cristã em uso na igreja copta no princípio da Era Comum
(fig.14).

***
77

ILUSTRAÇÕES

Fig. 1 - Fragmento de relevo proveniente de Dahshur, reinado do rei Seneferu (snfrw),


fundador da 4ª dinastia (c. 2613 AEC). Pedra calcária, com restos de tinta. Fragmentos
oriundos do templo de culto à estátua da Pirâmide Curvada de Seneferu (snfrw). Acervo
do Museu Egípcio, do Cairo.
Acima vemos figuras femininas representando propriedades reais dos nomos do Egito. Cada uma delas tem
na mão esquerda uma mesa de oferendas em forma de hetep (Htp) (Gardiner R4), em que se dispõem pães e
um vaso chamado heset (Hst) (Gardiner w14). Cada uma delas também traz um amuleto ankh na mão direita,
simbolizando os votos de Vida Eterna ao rei morto.
Fonte:<https://www.almendron.com/artehistoria/arte/culturas/egyptian-art-in-age-of-the-pyramids/catalogue-fourth-dynasty/>
78

Fig. 2 - Implemento cerimonial ou amuleto em forma de ankh (anx), feito de faiança


azul. Datado do Novo Império, e encontrado na tumba do faraó Tutmósis (DHwti-msi-
s) IV, da 18ª dinastia (1550/1549 a 1292 AEC), cujo nome de trono (Men-kheperu-ra; mn-
xprw-ra) se vê escrito no centro da crux ansata. Peça de 20 cm de altura. Acervo do
Museu Metropolitano de Nova York. Foto do museu.
Fonte:< https://www.metmuseum.org/art/collection/search/548476>
79

Fig. 3 - Amuleto ankh, proveniente do reino de Cuxe, c. 660 -550 AEC, cultura cuxita.
Acervo do Museu Britânico. Foto do museu.
Ankh feito de composição vitrificada verde. Com uma coluna de texto em ambos os lados da haste vertical,
que inclui a cartela do governante núbio Malonaqan (555 - 542 AEC).

Fonte:<https://www.britishmuseum.org/collection/object/Y_EA65274>
80

Fig. 4- Ilustração da entrada Life and Death (Egyptian) de autoria do egiptólogo Alan
Gardiner na Encyclopaedia of Religion and Ethics, v.8 (1915, p.20), mostrando tipos de
sandálias usadas no Antigo Império. A formalmente mais próxima do amuleto ankh
seria a de n. 6.
Fonte:< https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.56058/page/n41/mode/2up?view=theater>
81

Fig. 4a - Pormenor da Paleta de Narmer (nAr-mr), fundador da 1ª dinastia egípcia (c. 3100
AEC), apresentando um pajem a carregar as sandálias do rei. O calçado é bastante
diferente das sandálias egípcias usadas em épocas posteriores. Apresenta larga faixa
sobre o peito do pé e uma tira envolvendo o calcanhar, formando uma alça, além da tira
estreita que passa entre o hálux e o artelho vizinho, ligada perpendicularmente à faixa
do peito do pé. Corresponde ao modelo n. 6, visto na ilustração anterior, fig. 4. Acervo
do Museu Egípcio, do Cairo, Egito. Foto de Wikimedia Commons, autoria de Heagy1,
2019.
Fonte:< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Narmer_Palette_verso.jpg>
82

Fig. 5 – Vista do interior do templo de Karanhantepe, Turquia do Leste, c. 9400 AEC.


No alto da parede de fundo, acha-se esculpida a cabeça da Grande Deusa, confrontada
por colunas fálicas, que se distribuem pelo centro da nave.
Fonte:< Fonte:<https://www.tripadvisor.com.br/Attraction_Review-g652373-d9817518-Reviews-Karahantepe-
Sanliurfa_Sanliurfa_Province.html>
83

Fig. 6 - Chefe inimigo cativo, pronto para ser executado pelo rei. Pormenor da Paleta de
Narmer (nAr-mr), fundador da 1ª dinastia egípcia (c. 3100 AEC) Acervo do Museu
Egípcio, do Cairo, Egito. Foto de Wikimedia Commons, autoria de Heagy1, 2019.
O personagem proveniente do norte do Egito, região do delta, traz apenas uma faixa em torno da cintura,
com pontas pendentes escondendo a genitália. Talvez seja essa faixa a origem do hieróglifo ankh.
Fonte:< https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Narmer_Palette_verso.jpg>
84

Fig. 7 - Pormenor da faca cerimonial de Gebel el-Arak, um primitivo artefato feito de


pederneira (lâmina) e marfim de elefante (cabo). Com figuras de alta qualidade estética.
No verso, há relevo com animais selvagens e um homem de aparência mesopotâmica
agarrando-se com dois leões. No anverso, há cenas de combate, mostrando homens em
luta, usando estojos penianos atados à cintura. Hoje se acredita que a peça seja
proveniente de Hierocômpolis, antiga Nekhen (nHn). Período pré-dinástico (Nagada II,
c.3450 AEC). Acervo do Museu do Louvre, Paris. Foto do museu.
Fonte:< https://www.wikiwand.com/en/Gebel_el-Arak_Knife>
85

Fig.7a- Pente de marfim do rei Djet (Dt) (c. 2980 AEC), quarto monarca da 1ª dinastia,
exibindo, à direita, um ankh de forma primitiva, em que se veem, claramente, as duas
pontas pendentes, bem separadas, da faixa que os primitivos egípcios usavam em torno
da cintura. Mais tarde, no amuleto, as pontas inferiores se reuniram, ficando só uma
risca central no sentido vertical para evidenciar o fato de que eram duas. Com a
estilização do ankh, ocorrida mais tarde, essa risca desapareceu (ver fig. 1c)
Ladeando o serekh com o nome do rei, além do ankh, dois cetros was, para manter longe as forças do mal.

Fonte:<https://br.pinterest.com/pin/ivory-comb-of-king-djet-first-dynasty-the-decoration-expresses-the-relationship-between-
the-celestial-god-horus--501166264778688776/>
86

Fig. 8 - Amuleto Tyet (Tt), conhecido pelo nome de nó de Ísis (Ast), datado do Novo
Império (c. 1550 – 1352 AEC), feito de jaspe vermelho. Acervo do Museu do Brooklyn.
Foto do museu.
É inegável a semelhança entre o ankh e o tyet. Tinham, porém, significado diferente, um representava a vida,
sobretudo a Vida Eterna, o outro era símbolo da deusa Isis, frequentemente acompanhando o djet, a espinha
dorsal do deus Osíris.
Fonte:< https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/4130>
87

Fig. 9 – Dois relevos do antigo Egito, mostrando lutadores com varas de papiro, acima,
e pescador, abaixo, os três usando a simples tira de tecido, cujas pontas escondiam
parcialmente a genitália masculina. Sem maiores informações.

Fonte:< https://www.elbalad.news/3088927>
Fonte:< http://amigosdelantiguoegipto.com/?page_id=12476>
88

Fig. 10 - Relevo do rei Djoser (Dsr-r), da 3ª dinastia ( c.2630-2611 AEC), praticando a


corrida cerimonial, como uma etapa do jubileu hed-sed. Relevo proveniente das galerias
subterrâneas revestidas de faiança azul da pirâmide escalonada de Djoser, Sacara,
Egito, atualmente no Museu Imhotep, situado junto ao complexo funerário.
Na corrida heb-sed o rei Djoser veste apenas uma faixa estreita em torno da cintura.
Fonte:<https://mobile.twitter.com/hashtag/djoser
89

Fig.11- Relevo datado da 4ª dinastia (c. 2613- 2494 AEC), em que aparecem dois
caçadores de aves. Estão nus, apenas com uma cinta de tecido, cujas pontas pendentes
encobrem os genitais. O relevo acha-se hoje depositado na Gliptoteca Carlsberg, de
Copenhague, Dinamarca, e é proveniente da tumba de Nefer-maat (nfr-mAat), vizir e
filho mais velho do rei Seneferu (snfrw), tendo sido sepultado na mastaba 16 próxima
da pirâmide do pai em Meidun, Egito.
O relevo mostra dois homens aprisionando patos numa armadilha feita para essa finalidade. A inscrição revela
que os homens não eram caçadores comuns, mas "os cortesãos Seref-ka [srf-kA] e Wehem-ka [whm-kA] ",
conhecidos por outras imagens da mesma tumba como filhos de Nefer-maat (Nfr-mAat) e Itet (itt), portanto
netos do rei Seneferu. Isso prova que mesmos os egípcios da mais alta estirpe, dependendo da intensidade
da atividade física que pretendiam praticar, se desfaziam de seus saiotes e praticamente nus agiam com
liberdade.
Fonte:<https://www.almendron.com/artehistoria/arte/culturas/egyptian-art-in-age-of-the-pyramids/catalogue-fourth
90

Fig. 12-Dois relevos do Antigo Império (c. 2686 a 2181 AEC), o de cima com um camponês conduzindo um
boi e o de baixo com um pescador manejando um puçá.
O primeiro relevo representa um camponês que leva um boi ao sacrifício, oriundo da mastaba de Ptah-hotep (ptH-Htp) e
Akhti-hotep (Axti-Htp), Sacara, Egito, 5ª dinastia. Ele afasta as pontas da cinta para ficar mais à vontade.
O segundo retrata uma barca de papiro com pescadores, da mastaba do vizir Kagmeni (kAgmn), Sacara, Egito, 6ª dinastia.
O pescador que maneja o puçá desloca a faixa da cintura para altura das axilas e gira-a de modo a deixar as pontas
pendentes nas costas, e assim poder trabalhar com desembaraço.
Fonte:< https://philologist.livejournal.com/9895849.html>
Fonte:<https://www.researchgate.net/figure/Barca-de-papiro-en-la-mastaba-del-vizir-Mereruka-Saqqara-Egipto-VI-Dinastia-
faraon_fig1_307718044>
91

Fig. 13- Relevo com a imagem do deus Hapi (Hapy), carregando oferendas. Por se tratar
de um deus muito antigo, usa a arcaica faixa na cintura com as pontas pendentes a
esconder as partes íntimas. Como é um deus obeso, seu ventre proeminente e caído
desloca a parte frontal da faixa para baixo. Relevo do templo de Dendera (erguido entre
57 AEC e c.37 EC), Período Ptolomaico.
Fonte:< http://www.egyptsearch.com/forums/ultimatebb.cgi?ubb=get_topic&f=15&t=008459&p=3>
92

Fig.14- Crux ansata com pássaros e pavões, simulando, com os ramos que lhe nascem
aos pés, a Árvore da Vida. Procedente de um manuscrito copta da primeira metade dos
Livro dos Atos, Codex Glazier (séc. IV-V EC). Acervo do Museu e Biblioteca Morgan,
Nova York, EUA. Foto Wikimedia Commons,2015.
Fonte:<https://egytianstreets.com/2020/08/28/ccoptic-art-a-visual-tale-of- death-and-ressurrection/>
93

Referências bibliográficas online

GARDINER, Alan. Life and Death (Egyptian). In: HASTINGS, James. Encyclopaedia of Religion and Ethics, v.8.
Edinburgh:T. & T. CLARK,1915.v.8 (Life and Death - MULLA). INTERNET ARCHIVE.
Fonte:< https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.56058/page/n5/mode/2up?view=theater>
Acesso março de 2022

GRANDE, María José López. Los amuletos y su función mágico-religiosa en el Antiguo Egipto. In: COSTA,
Benjamí e FERNÁNDEZ, Jordi H. (ed.). Magia y superstición en el mundo fenicio-púnico. Eivissa: Govern de les
Illes Balears, 2007.p.49-96. Academia.edu
Fonte:<https://www.academia.edu/37536035/Los_amuletos_y_su_funci%C3%B3n_m%C3%A1gico_religiosa_en_el_antiguo_Egipto_pd
f>
Acesso em maio de 2022.

HART, George. The Routledge Dictionary of Egyptian gods and goddesses, 2ª ed. London: Routledge,2005.
Academia.edu
Fonte:< https://www.academia.edu/3698677/_George_Hart_The_Routledge_Dictionary_of_Egyptian_Bookos_org_>
Acesso em maio de 2022

NAJOVITS, Simson R. Egypt, trunk of the tree. New York: Algora Pub, 2003.
Fonte:<https://archive.org/details/egypttrunkoftree0001najo/page/68/mode/2up>
Acesso março de 2022

* * *

Você também pode gostar