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REGENERAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL:

OS MOVIMENTOS DE 1821/1882 NA BAHIA E OS PRIMÓRDIOS DA EDIFICAÇÃO


DO IMPÉRIO DO BRASIL

LUCIA MARIA BASTOS PEREIRA DAS NEVES

No dia 10 de fevereiro de 1821, às duas horas da manhã, na cidade da Bahia,


segundo as memórias de um testemunho dos acontecimentos – Emílio Joaquim da Silva
Maia – que, na época, contava com 13 anos (MAIA, IHGB. Dl. 345.17), os oficiais do
regimento de artilharia da Bahia e todos os oficiais brasileiros natos saíram de suas
casas tentando convencer a outros “camaradas” a aderirem ao movimento que se
iniciava naquela província a fim de demonstrar apoio à Revolução vintista portuguesa.
De fato, as notícias dessa revolução liberal, cujas idéias e práticas
materializavam-se nas atitudes de diversos segmentos sociais, desde as elites até as
camadas mais baixas da população, ainda que pela cultura da auditividade, adquirida
nas ruas, botequins e casas de pasto, tiveram ampla repercussão. Assim, a presente
comunicação objetiva examinar os distintos discursos que os homens da época
empreenderam a fim de expressar as diversas identidades políticas e sociais presentes
naquela conjuntura histórica. Tais discursos são também fundamentais para se distinguir
as diferentes percepções que os homens possuem sobre o vocabulário político
(FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, 2008: 5-15), de que se valiam, ao formularem as
opiniões que os situam no espaço público de poder, a fim de viabilizar a apreensão das
variadas visões de mundo de uma época.
Para tal análise, voltou-se o olhar, sobretudo, para os pasquins manuscritos,
panfletos políticos e periódicos, que apareceram ao longo do ano de 1821 e 1822,
tomando como exemplo a Bahia. Esta situou-se entre as primeiras províncias do Brasil a
aderir à Revolução Liberal de 1820 e, ao adquirir a dimensão decisiva da luta armada, a
oposição entre constitucionalismo e separatismo converteu-a em uma região
privilegiada para o exame dos escritos de circunstâncias. Estes concorreram, naquele
momento de crise e convulsão política, para formar uma rica literatura de argumentação,


Professora Titular de História Moderna da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Pesquisadora do CNPq; Cientista do Nosso Estado FAPERJ; Coordenadora principal do Pronex
(FAPERJ/CNPq) Dimensões e Fronteiras e Dimensões do Estado brasileiro no século XIX (2010-
2912).

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opinião e polêmica. Desse modo, eles constroem a história de um tempo, constituindo-
se, portanto, como memórias que, ao apresentar visões distintas de um mesmo fato,
servem para repensar a História. Nesse caso, para reconsiderar a conjuntura política que
moldou a Independência do Brasil e o novo Estado a ser implantado. Este, frente, às
polêmicas e discussões daquela época, não mais poderia se fazer sem a elaboração de
uma Constituição, ainda que outorgada, por meio de uma divisão de poderes, que
respeitasse a participação dos cidadãos.

* * *
Desde fins do ano de 1820, notíciais pormenorizadas sobre o sucesso da
revolução liberal em Portugal chegaram ao Brasil. A proposta fundamental do
movimento era "uma reforma de abusos e uma nova ordem de coisas", substituindo as
práticas do Antigo Regime pelas do liberalismo, embora sob a ótica das mitigadas
Luzes ibéricas (A Regeneração, 1821: 3). Com a propagação das novas idéias e a
explosão de um clima de agitação que tomara conta de diversas províncias, em especial,
aquelas do norte e nordeste do Brasil, o governo de D. João não mais podia ignorar
aquela situação, devendo se posicionar acerca da convocação de Cortes pelos revoltosos
portugueses (SILVA, 1978-79: 1-52; PROENÇA, 1990; ALEXANDRE, 1993: 261-
286; 387-440; NEVES, 2003: 231-246). Além disso, os próprios acontecimentos no
lado de cá do Atlântico passaram a pressionar o governo a tomar decisões. Em 1o de
janeiro de 1821, o Grão-Pará foi a primeira província a manifestar a adesão ao
movimento liberal português: “no dia 1o de janeiro do corrente, o clero, o povo, as
tropas e todas as autoridades constituídas desta capital aclamaram e solenemente
juraram obediência a El-rei, ao Senhor D. João VI e à augusta Casa de Bragança, às
Cortes nacionais e à Constituição, que por elas for estabelecida, mantida a religião
católica” (O PREGOEIRO, 1821: 103).1

Em seguida, o movimento tomou conta da Bahia, aos 10 de fevereiro. O coronel


Manuel Pedro de Freitas Guimarães, “verdadeiro representante do patriotismo brasileiro
do tempo”, na visão do citado Silva Maia, lançou uma proclamação para deixar clara a
intenção daqueles que tomavam a iniciativa da revolução.

1
Ofício de 5 de fevereiro de 1821. Apud O Pregoeiro Lusitano, 1821, p. 103. Ver também Diário
das Cortes Sessão 27 março 1821, p. 369.

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A Bahia é a nossa pátria [...] Nós somos os salvadores do nosso país; a demora é
prejudicial, o despotismo e a traição do Rio de Janeiro maquinam entre nós, não
devemos consentir que o Brasil fique nos ferros da escravidão. Soldados!
Ganheis a glória de destruir a tirania [...], libertemos a nossa aflita pátria,
ganhemos este imortal troféu e proclamemos: Viva a nossa religião. Viva a
Constituição e Cortes na Bahia e Brasil. Viva El-Rei D. João 6º, nosso soberano
pela Constituição!

Algumas reflexões podem ser destacadas a partir da proclamação acima tanto em


relação ao vocabulário político da época quanto acerca das representações que se
construíam. Em primeiro lugar, a Bahia era a pátria, continuando-se a ver o conceito
como “a terra donde alguém é natural” (SILVA, 183: 412 e 1823: 370). Foi somente
depois dos diversos escritos de circunstâncias e das discussões políticas sobre o
movimento constitucional que pátria adquiriu uma nova dimensão, identificada a uma
força criadora de grupos anônimos, que promovia o poder do espírito público em
oposição ao individualismo monárquico. A palavra era herdeira do vocabulário da
Revolução Francesa, que a definia como “um ser ao qual se fazem sacrifícios”, que “se
criou através de grandes esforços” e que “se ama, tanto pelo que ela vale, quanto pelo
que dela se espera” (BRUNOT, 1967: 640). O Brasil continuava a ser apenas um país.
De outro lado, ainda havia um constante embate entre as idéias constitucionais e liberais
e as persistências das práticas do Antigo Regime. Fazia-se necessário destruir o
despotismo e a tirania, por meio de um governo constitucional. Em nenhum momento, a
proclamação questionava a monarquia. Portanto, D. João tornava-se, doravante, o
legítimo soberano por meio de uma Constituição.
A imprensa, ainda em virtude da vigência da censura prévia, abolida somente em
28 de agosto de 1821, utilizava um tom moderado para narrar os acontecimentos de 10
de fevereiro, dia da feliz regeneração da Bahia. Na visão do periódico Idade d’Ouro,
também, era importante explicar a atitude dos “revoltosos” aos baianos e formular
críticas à inércia da Corte, frente às notícias chegadas de Lisboa. Dessa forma, afirmava
seu redator: “A Bahia esperava em modesto silêncio pela resolução do Rio de Janeiro à
vista dos sucessos de Portugal; a Bahia não queria roubar aos ministros de S. M. a glória
de fazerem por bem aquilo que necessariamente se havia fazer por mal”. Inocentava o
soberano, numa atitude típica do Antigo Regime, sempre mal aconselhado por seus
assessores:

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As baionetas, que, no sistema do florentino Maquiavel, eram as últimas razões dos
tiranos, são hoje as últimas razões do povo. Do povo, tornamos a repetir, do povo,
que antes de servir das baionetas, se serviu de lágrimas e humildes representações,
que nem chegavam aos ouvidos do mais amável dos soberanos (Idade d’Ouro. nº
13, 13 de fevereiro de 1821).

Apesar de um discurso prudente, em número seguinte, a gazeta baiana conclamou


as tropas de todo o Brasil, para que aceitassem o movimento que se iniciara em
Portugal: “Soldados europeus e brasileiros de diferentes capitanias do Brasil, vinde já
incorporar-vos às nossas honradas fileiras. Debandai desses pérfidos chefes de Santanás,
que ainda querem que prevaleça o reino das trevas sobre o reino das Luzes” (Idade
d’Ouro. nº 18, 20 de fevereiro de 1821). Utilizando-se de linguagem metafórica,
personificava um combate entre o bem (as luzes) e o mal (as trevas), em uma espécie de
prenúncio de uma nova fase de justiça e felicidade no reino do Brasil. Outros escritos,
como o folheto político, Lembranças úteis tendentes a melhor reforma que o Brasil
procura pela Constituição, detalhava os aspectos essenciais relacionados à elaboração
da futura Constituição da família luso-brasileira, preocupando-se em justificar a atitude
da Bahia por sua adesão às Cortes de Lisboa. Esse ato não representava uma hostilidade
a D. João VI, mas voltava-se contra o despotismo daqueles que cercavam o soberano:
A paciente Bahia já não mais podia sofrer; o seu grito de Constituição foi
verdadeiramente um gemido de dor, sendo ela o bálsamo das suas chagas. Foram
os áulicos do rei, seu Ministério alto e baixo, fabricadores da [mina] que fez a
explosão sobre eles mesmos. Santa Constituição! Teus passos vantajosos mostram
bem, o teres obtido amparo Divino (Lembranças úteis, [1821]: 56).

Corroborava-se ainda a idéia de que a Constituição possuía um respaldo divino, não


sendo, portanto, incompatível com os ensinamentos da Igreja Católica. Na visão de
época, não se tratava de uma revolução injuriosa ao trono e desacreditadora da Nação.
Instaurava-se uma situação política inédita, elegendo-se uma junta governativa,
por meio de aclamação: o procurador do Senado apregoava “de uma das janelas das
praças dos Conselhos para a multidão de povo e tropa, apinhada embaixo na praça” os
nomes dos indivíduos que deveriam ser aprovados por geral aclamação. Eleitas pelos
cidadãos, estas juntas foram, posteriormente, reconhecidas pelas Cortes de Lisboa,
reforçando seu próprio poder, em oposição ao controle central do Rio de Janeiro.

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Se os condutores do movimento – negociantes, bacharéis, oficiais e soldados –
agiam com prudência, uma vez que iniciaram um movimento, em que prestavam
juramento à futura Constituição a ser elaborada pelo Congresso de Lisboa, também
proclamavam obediência ao soberano, à dinastia e à “conservação da santa religião”,
uma linguagem mais enfática começava a circular nas ruas da cidade de Salvador, por
meio de panfletos manuscritos. Estes incitavam o povo a aderir ao movimento
constitucionalista português:
Às armas Cidadãos: é tempo! Às Armas
Nem um momento mais perder deveis
Se à força da razão, os Reis não cedem
Das armas ao poder cederão os reis

(Proclamação Anônima – AHI - Coleções Especiais – capitania da Bahia – Documentação do


Ministério anterior a 1822. Lata 195, maço 1, pasta 7)

A retórica do escrito lembrava aquela dos textos da Revolução Francesa de 1789


– Citoyens! Aux armes! – embora não refletisse o clima de um movimento cujo objetivo
fosse destronar a dinastia reinante – a de Bragança. A linguagem também permanecia
híbrida. A proposta era quebrar os grilhões do despotismo, que há tanto tempo,
oprimiam os luso-brasileiros. Os grilhões, contudo, não foram lançados pelo “augusto
monarca”, mas sim “pelos que o trazem enganado ou vendido”. Era uma alusão clara ao
despotismo ministerial, já também apontado pelos jornais, em que o soberano surgia
como uma figura inocente e ludibriada. No entanto, o soberano sabia “distinguir os
vassalos leais”, aqueles que se opõem “não à sua santa vontade, que não quer senão o
bem dos seus vassalos, mas ao sistema devastador das sanguessugas, que o rodeiam e
enganam” (Pernicioso poder dos perfidos, 1821: 4-5).
Em outro texto, lia-se: “Heróis bahianos! Às Armas! A glória vos chama!
Vossos Ilustres ascendentes do Douro e do Tejo deram-vos o exemplo e por vos
esperam. Gritai audazes: Viva a Constituição do Brasil e o Rei que não a recusará”!
(AHI – Coleções Especiais – capitania da Bahia – Documentação do Ministério anterior
a 1822 - Lata 195, maço 1, pasta 7). O exemplo continuava a ser aquele vindo de
Portugal, a mãe-pátria, e a Constituição destinava-se também ao Brasil, visto, porém,
apenas como uma das partes do Império Português. Os escritos multiplicavam-se, mas
sempre a partir da mesma ótica:

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Eia pois ó Brasileiros! Levantai o grito da Liberdade e logo do Amazonas até o
Prata haverá Congresso Nacional, haverá Constituição que, tirando-nos do
aviltamento da escravidão, nos faça um Povo Livre e Representativo. Não vos
fascineis da fanática idéia do crime: ela é impostura do despotismo para acanhar o
brio dos homens. [...] Assumi pois a energia que vos caracteriza e mostrando ao
Mundo que partilhais da glória, exigi do Bom Rei, que nos rege, representação
política e Nacional (AHI – Coleções Especiais – capitania da Bahia –
Documentação do Ministério anterior a 1822. Lata 195, maço 1, pasta 7).

A situação tornava-se mais complexa: não apenas se pedia, mas já se exigia que
o soberano aceitasse a Constituição a ser elaborada em Portugal. Encontravam-se, ainda,
conselhos a D. João para assinar a Constituição, insistindo-se na crítica a seus ministros,
como Tomás Vilanova Portugal, que além de ministro de Estado, era homem de
confiança de D. João VI. Espírito ilustrado, embora defensor das estruturas do Antigo
Regime, se opôs radicalmente à Revolução Liberal do Porto de 1820 e às Cortes de
Lisboa:
Se queres ainda reinar
Olha beato João
Deves ir a Portugal
E assinar a Constituição
Se tu depressa não vais
Para o teu país natal
Ó João, olha que perdes
O Brazil e Portugal
[...]
Não te fies no malvado
No pérfido Tomás Antonio
Olha que quando te fala
Por ele fala o demônio.
[...]
Assina a Constituição
Não te faças singular,
Olha que a teus vizinhos
Já se tem feito assinar.

(Thomaz, deves apresentar isto a El-Rei - AHI - Coleções Especiais – Documentação do


Ministério anterior a 1822. Lata 195, maço 6, pasta 13, panfleto 27)

Em alguns momentos, a linguagem tornava-se mais violenta, como em um aviso


também pregado nas ruas:
Pelo Povo ao rei o poder é dado

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Ao Povo, portanto, legislar compete,
Se a este aviso o Rei não cede
As Armas cederá o seu poder inerte
Da Nação, o Rei não é mais que Chefe
Para executar a Lei por ela imposta
Como é possível, então, que o rei a dite
Não, não! Cidadãos eis a resposta.
Viva o rei que jurar a sábia Constituição
Que pelas Cortes for dada.
Da Portuguesa Nação (AHI – Coleção Especiais - Documentação do Ministério
anterior a 1822. Lata 195, maço 6, pasta 13, panfleto 22/23).

O texto, feito para ser lido, apresentava uma retórica em que a linguagem constitucional
já se fazia presente, embora possa ser levantada a hipótese de que o poder dado ao rei
pelo povo representava ainda uma perspectiva das antigas teorias corporativas de poder
(HESPANHA, 2004). De qualquer forma, as idéias liberais e constitucionais chegavam
ao Brasil.
Naquele contexto, era preciso ainda instruir o cidadão, que passava a ter um novo
espaço em uma sociedade constitucional. Ele devia votar adequadamente nas eleições
para a escolha dos deputados nas Cortes de Lisboa e saber desempenhar com eficiência
os cargos públicos. Nesse sentido, o Semanário Cívico usou uma forma de discurso
muito comum na época: o catecismo político, a fim de explicar aos novos cidadãos o
que eram Cortes e quais eram as características de um governo constitucional. Por meio
das tradicionais perguntas e respostas, definia a essência do governo constitucional.

Do Governo Constitucional:
P: Qual é o governo constitucional?
R: É aquele no qual um rei governa, segundo as leis fundamentais estabelecidas
pelo Congresso da nação, a que chamam Cortes.
P: Por que dizeis que esta forma de governo é a melhor?
R: Porque se acham divididos os três poderes, e seguros. O povo como soberano
por meio de seus deputados em Cortes faz as leis, conhece das suas necessidades, e
marca os remédios precisos. Os juízes segundo as leis da nação, e o rei, por assim
dizer, não tem outro ofício senão o de fazer manter em vigor estas mesmas leis, a
que todos estão sujeitos, de modo que nestas circunstâncias o rei pode fazer o bem,
privando-o de fazer mal (Semanário Cívico. nº 10, 3 de maio de 1821).

Também a Idade d’Ouro do Brasil explicava em linhas gerais o que se entendia


por Constituição, por Cortes e por liberdade. A constituição quer dizer “bom governo e

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boas leis, fundadas na natureza dos homens, nas suas precisões e tendo por alvo final a
sua felicidade” (nº 22, 24 de fevereiro de 1821; cf. SILVA, 2005: 303-320). As Cortes
eram identificadas como “uma representação nacional, pela qual só se pode regular
invariavelmente os destinos do povo e fixar para sempre a constância da sua felicidade”
(nº 24, 27 de fevereiro de 1821). Em relação ao conceito de liberdade, o redator alertava
que “a população francesa [fizera] um terrível abuso” da “palavra liberdade”, sendo seu
dever explicar as várias significações que o termo apresentava. Iniciava sua explicação
por uma conotação religiosa – um “sentimento religioso, que nos livra da tirania das
paixões e das ilusões e do demônio”. Em seguida, descrevia a definição dos políticos,
afirmando que “nos governos constitucionais esta Liberdade é a mãe dos bons
costumes”. Terminava seu artigo, anunciando que a liberdade civil era “o terror dos
perversos e a consolação dos justos”. Era o “mesmo que verdade e justiça” não se
devendo confundir “a Liberdade com a licença e desenvoltura”. Era, portanto, uma idéia
moderada da palavra, que se incorporava na maneira de sentir e pensar dos membros
das elites políticas e intelectuais, que aceitavam os princípios liberais, mas sem admitir
a perspectiva de uma democracia (nº 19, 21 de fevereiro de 1821).
Nesse sentido, nos primeiros meses de 1821, os escritos de circunstância
indicavam um debate político acerca da construção dos princípios da cultura política do
constitucionalismo e do liberalismo. A Bahia fora a segunda província a aderir ao
movimento liberal do Porto, sendo, entretanto, a primeira a formalizar seu desligamento
do Rio de Janeiro, no tocante à subordinação política e econômica, em ofícios às Cortes
de Lisboa, datado de junho de 1821. Justificava sua atitude por considerar arbitrária a
política do governo fluminense de manter sob seu controle as provinciais brasileiras.
Para a junta da Bahia, o decreto de 22 de abril de 1821, ainda de autoria do soberano D.
João VI, que anulava a vigência da Constituição gaditana no Brasil e estabelecia os
poderes da Regência e Governo provisório, confiado a D. Pedro, era abusivo, sendo
considerado um “monstro em política” e um desejo “mal coberto de semear a cizânia e
gerar divisões entre portugueses dos dois hemisférios”. Começavam a ficar evidentes as
tendências da Bahia em unir-se às Cortes de Lisboa, afastando-se, posteriormente, da
Regência de D. Pedro, na qual tendia a ver apenas a administração de mais uma
província da nação portuguesa.

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A posição radical da Bahia contra o Rio de Janeiro não deve, contudo, ser
explicada por uma visão simplista de uma postura contrária ao sistema constitucional ou
de oposição às propostas de autonomia do governo do Rio de Janeiro em relação a
Portugal. Para a Bahia, a mais importante ligação comercial continuava a ser feita com
Portugal. Daí, o papel dos negociantes que sempre se mostraram contrários aos tratados
de 1810, assinados entre a Corte fluminense e a Inglaterra. Uma proclamação
manuscrita a esse segmento demonstrava com clareza tal situação:
Negociantes da Bahia! Vós que sois o nervo do Estado; Vós sobre quem o
despotismo tem mais pesado e cujos interesses têm sido menos protegidos, que
fazeis !!!
Os vossos Irmãos e associados da Europa têm aberto a estrada da glória.
Segui-os, pois, e entoai com eles o canto saudável da Liberdade no Brasil = Viva a
Constituição e o Justo Rei, que não contravirá. (AHI – Coleções Especiais –
capitania da Bahia – Documentação do Miistério anterior a 1822. Lata 195, maço
1, pasta 7)

Ficava evidente a situação de descontentamento dos negociantes de forma semelhante


àquela da burguesia portuguesa, privada da maior parte dos recursos das possessões
ultramarinas, sem os lucros do comércio colonial, humilhada por sua dependência em
relação à Inglaterra, que “dá leis em nossa casa, nos acovarda e nos torna uns coitados”
nas palavras do jornalista português João Bernardo da Rocha Loureiro (O Portuguez). 2
Além da questão econômica, que unia os comerciantes portugueses dos dois lados do
Atlântico, havia também um importante aspecto político. Ao adotar uma postura
favorável ao constitucionalismo português, a Bahia não deixava de entrever a
possibilidade de uma autonomia que a Corte no Rio de Janeiro parecia negar desde a
sua instalação em 1808, transformando-se em uma espécie de nova metrópole
centralizadora, semelhante às atitudes de Lisboa, na época colonial.
Dessa forma, a partir do movimento de 10 de fevereiro, segundo Francisco
Sierra y Mariscal, que presenciou a revolução constitucional, estruturavam-se na Bahia
três partidos, entendidos aqui no sentido de grupos que se posicionam a favor ou contra

2
Para a análise da situação econômica e financeira de Portugal, ao longo de 1808 a 1820, cf. M.
Valentim Alexandre. Os sentidos do Império: a questão nacional e a questão colonial na crise do
Antigo Regime. Porto: Afrontamento, 1993, p. 261-286 e 387-440; Armando Castro. As finanças
públicas na economia portuguesa da primeira metade do século XIX. In: M. Halpern Pereira et al.
(coords.). O liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX. v. 2, Lisboa: Sá da
Costa, 1982, p. 189-199.

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alguma prática política. Em suas andanças pelas ruas, “envolto nas massas do povo”,
identificava o partido “europeu”, que desejava manter a união com Portugal. O segundo,
que denominava de “aristocrata”, um partido “muito novo” no Brasil, era composto “de
alguns senhores de engenho, alguns empregados públicos e de mui poucos
eclesiásticos”. Seus membros encontravam-se “nos Tribunais Superiores e no corpo de
negociantes falidos, porém fidalgos do Rio de Janeiro”. Queria um “governo [...]
independente de Portugal”, com uma “Constituição e duas Câmaras”. O terceiro
almejava “governos provinciais independentes” e era um “partido democrata”. Nele,
incluía a maior parte do clero; os empregados públicos, que “ambicionavam os restos da
fortuna dos europeus”; e também a maioria dos senhores de engenho, “porque é o
partido das revoluções e com elas se vêem livres dos seus credores”(MARISCAL, 1931:
62-63). Este último era também chamado de partido “felisbertino”, liderado por
Felisberto Caldeira Brant Pontes, senhor de engenho, futuro marquês de Barbacena.
Uma curiosa carta, datada de 1º de março, destinada a importante personagem do
governo da Corte, a fim de que este entregasse a missiva ao soberano, apregoava que o
ministério do Rio de Janeiro estava vendido ao partido revolucionário, cujo cabeça era
Felisberto. Afirmava ainda que todos sabiam que a Capitania da Bahia estava a ponto de
fazer uma revolução, trabalhando para tal fim dia e noite. Descrevia o governador da
Bahia como um “tolo”, que não sabia de nada. Quando desejavam realizar coisas “muito
violentas para fazer desesperar o povo”; quando queriam fazer suas maldades
costumadas, convidavam o Conde para um jantar e “depois de estar borracho”, como
costumava, assinava tudo quanto eles queriam e “zombavam dele como de um menino
perdido” (AHI – Coleções Especiais – capitania da Bahia – Documentação do Miistério
anterior a 1822. Lata 195, maço 1, pasta 7).
O ano de 1821, portanto, marcou, sobretudo, o surgimento de escritos diversos
que demonstravam em verdade um debate que trazia à tona os novos valores das
linguagens políticas do liberalismo e do constitucionalismo. Jornais, folhetos impressos
e panfletos manuscritos não discutiam a questão de uma possível separação, mas a
adesão da Bahia ao regime constitucional português, opondo-se cada vez mais ao
governo do Rio de Janeiro. A polêmica acirrou-se no ano seguinte, opondo-se um
partido absolutista, favorável às Cortes a um partido brasileiro, defensor da causa
nacional. Em verdade, por detrás desses rótulos, outros elementos encontravam-se em

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disputa, não se devendo ainda esquecer de um fato primordial, muitas vezes, usado
como uma espécie de temor social – a escravidão africana. O principal argumento
aventado no Rio de Janeiro para não seguir os constitucionais de Portugal voltava-se
para a questão dos escravos, cuja disputa já existia desde o momento do Congresso de
Viena, em 1815. Neste, os plenipotenciários portugueses preocuparam-se muito mais
em reformular as condições do tratado de comércio de 1810, que arrasara a economia do
reino continental, e, em seguida, recuperar o território fronteiriço de Olivença, tomado
pelos espanhóis em 1801, do que preservar o tráfico negreiro, base da economia no
Novo Mundo.

* * *

Em síntese, alguns pontos podem ser destacados a partir dessa rápida análise
sobre os movimentos políticos de 1821/1822 na Bahia. Em primeiro lugar, pode-se
afirmar que tais anos foram marcados por uma inédita e ampla discussão política no
Brasil Reino. Incorporavam-se as linguagens do constitucionalismo e do liberalismo
ainda que a política não se encontrasse totalmente desvinculada da moral religiosa. De
qualquer forma, nos espaços públicos (GUERRA, LEMPÉRIÈRE et al., 1998), a
política começava a ser discutida, esboçando uma incipiente opinião pública (MOREL,
2005; NEVES, 2009: 1011-1023), em que, de um lado, os dirigentes viam-se na
contingência de fazer proclamações aos povos, informando-os das decisões realizadas;
de outro, manifestos, representações e libelos eram elaborados pelos habitantes que
tomavam posição em relação aos acontecimentos.
Em segundo, verifica-se, por meio dos conteúdos dos textos impressos e
manuscritos publicados naquela época, que a interpretação simplificadora, dominante
por algum tempo na historiografia, de um partido português versus um partido
brasileiro, era bem mais complexa, envolvendo questões políticas, econômicas, sociais
(Cf. RIBEIRO, 2002), além de valores distintos que iam muito além de uma suposta
identidade, pois muitos ainda se auto-proclamavam luso-brasileiros.
Verifica-se ainda que a oposição ao governo centralizado do Rio de Janeiro
signifcava uma proposta das elites locais de se organizaram com ampla autonomia nos
negócios internos e transformaram-se, em expressão de R. Barman, no governo de

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“pequenas pátrias” (BARMAN, 1988: 77-79) que contribuiu para ampliar a influência
local na administração e nos assuntos fiscais das províncias, característica funamental
da estrutura política do Brasil no Império.
Toda essa literatura de circunstância possibilitou, portanto, o início da entrada do
Brasil na via da política moderna, ainda que mesclada à política antiga (GUERRA,
1993). Ficava claro, entretanto, que o novo Estado a ser implantado, a partir de 1822,
não mais poderia fazer-se sem a elaboração de uma Constituição, ainda que outorgada,
mas aprovada pelas Câmaras Municipais, e que estabelecia uma divisão de poderes,
respeitando os direitos daqueles que eram considerados, naquela época, como cidadãos.

FONTES E BIBLIOGRAFIA:

Fontes Manuscritas

* ARQUIVO HISTÓRCIO DO ITAMARATI

Coleções Especiais – capitania da Bahia – Documentação do Ministério anterior a 1822. Lata


195, maço 1, pasta 7.

Coleção Especiais - Documentação do Ministério anterior a 1822. Lata 195, maço 6, pasta 13.

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO (IHGB)

Dl. 345.17. Emílio Joaquim da Silva Maia. Estudos Históricos sobre Portugal e Brasil. Estudo
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