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A dança de kpop em público sob a

perspectiva do Programa Ambiental de


Hélio Oiticica

MAK0136 - Arte e Imaginário Contemporâneo


Yugo Borges Oshima NºUSP 10393144
Universidade de São Paulo, 2021
Introdução

Nos anos 90, os produtos culturais sul-coreanos como k-pop e k-dramas começaram
a ganhar popularidade na Ásia, dando origem a Hallyu Wave, que mais tarde se
espalhou e ganhou alcance nos últimos dois séculos devido ao desenvolvimento da
Web 2.0. Ferramentas online, como o Youtube, Spotify e Last.fm foram essenciais
para a disseminação do conteúdo pop coreano para fora da Ásia, e determinantes
para a consolidação de um sólido circuito de interesse em torno do pop coreano no
Brasil, tendo nas danças de kpop em público uma das suas mais visíveis ancoragens,
principalmente nas grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.
O ambiente digital, apesar de ser espaço introdutório da Hallyu Wave no Brasil,
atualmente não dá conta das práticas desenvolvidas pelos k-poppers brasileiros. Não
importando o espaço geográfico, os k-poppers passaram a utilizar os espaços das
cidades como cenários para suas danças e como pontos de encontro e
compartilhamento de seus interesses. Os bairros do Bom Retiro e Liberdade, em São
Paulo, com forte tradição oriental, são exemplos, mas também se apropriam de
outros espaços frequentados pelo público geral, como a Avenida Paulista e o Vale do
Anhangabaú, também em São Paulo.

Grupo B2 dançando na Praça da Liberdade - São Paulo, 2021


A partir da apropriação dos espaços da cidade como meio para
desenvolvimento e produção das diversas práticas realizadas pelos k-poppers,
principalmente a dança, esse texto busca uma reflexão sobre a relação entre os
conceitos empregados por Hélio Oiticica no Programa Ambiental e a dança de k-pop
em público.
No texto “Programa Ambiental” escrito na década de 1960 por Hélio Oiticica,
o ambiental é uma visão ampliada do artístico que faz uso irrestrito de meios e
linguagens e tem ampla abertura às possibilidades participativas do sujeito. A
dança, sobretudo o samba, sintetizam o ambiental em sua manifestação, pois o
corpo em movimento estrutura a obra, e por isso a submete a contínua
transformação pela experiência do sujeito. O parangolé, uma espécie de capa ou
vestimenta fluida feita de tecido, plástico ou papel, para ser usada, experimentada,
vivida e dançada pelo espectador-participante, será a sintetize do ambiental, isto
porque é por meio dele que cor, estruturas, sentido poético, dança, palavra, fotografia
e a ação do participante se fundem, tornam-se indissociáveis uns dos outros, em
prol da "totalidade-obra".
Tendo isto em vista, busca-se entender como as danças realizadas nos
espaços urbanos pelos kpoppers (sujeitos da obra) encontram similaridades e
diferenças com as manifestações ambientais de Oiticica, e como elas se comportam
ao serem inseridas nos lugares do cotidiano, apropriando-se às coisas do mundo,
assim também como propunha o Programa Ambiental.

Poderia a dança de kpop em público ser lida sob a perspectiva do programa


ambientalista de Hélio Oiticica?

As plataformas digitais e posteriormente os ambientes urbanos são espaços de


fluxos de compartilhamento e interação de conteúdos que foram fundamentais no
processo de constituição de uma paisagem sonora e imagética do kpop no Brasil e
no mundo todo. A dança de k-pop é uma das várias formas de manifestação do
interesse dos sujeitos pela cultura coreana que surgiram nestes espaços.
Inicialmente, as danças de kpop tinham seus lugares determinados na cidade,
eram em eventos e convenções direcionadas ao público com interesse em arte e
cultura do leste asiático que os grupos de dança de kpop realizavam suas
performances. Uma vez que, a partir de 2011, uma base sólida de interesse pela
cultura coreana se constrói no Brasil, os espaços da cidade são apropriados para
prática das performances de dança dos grupos. E é nesta manifestação que se
constrói um paralelo com o Programa Ambiental de Oiticica, pois há características
que posicionam uma obra dentro do ambientalismo, e uma de suas fundamentais é
a apropriação das coisas do mundo, das ruas, terrenos e campos - coisas não
transportáveis, para onde se chama o público e se estende a obra.
Ademais, é necessário uma relação, quase que simbiótica, entre artistas,
espaço e público, para se construir um projeto ambiental, pois o espaço na qual está
inserida é parte essencial e agente de sua concepção, não apenas meio para sua
manifestação, assim como o público, propondo sua participação ativa na
construção da obra. A dança de kpop em público segue a mesma premissa a partir
do momento que toma as ruas e constrói sua obra através de um conjunto de
agentes: os sujeitos da obra (dançarinos/artistas), o espaço da qual se apropria e o
público que interage com a dança.
Entender a participação dos artistas e dos espaços de forma ativa, como
agentes construtores da obra, faz-se mais simples, uma vez que um se apropria do
outro a todo momento para se constituir, mas com o público é preciso criar uma
conexão baseada na confiança e disponibilidade para que possam atuar ativamente
na obra, como escreve Oiticica no seguinte trecho: “[...] já que não posso
transportá-las aproprio-me delas ao menos durante algumas horas para que me
pertençam, e dêem aos presentes a desejada manifestação ambiental. Há aqui uma
disponibilidade enorme para quem chega; ninguém se constrange diante da arte [...]”.
Essa disponibilidade é presente nas danças de kpop em público, observa-se,
por meio de vídeos gravados das danças e de experiências em campo, que o público
não se constrange perante a performance, pelo contrário, se instiga pelo corpo
dançante que se instalou no caminho de seu dia-a-dia e tenta participar de alguma
forma, seja apenas parando sua rotina para observar ou para se envolver e dançar
junto.
A dança por si só, como se percebe, não constrói sozinha a obra. Espaço,
público e dançarinos são fundamentais para sua totalidade, mas, para além disso,
outros elementos a constituem e são tão importantes quanto, pois utilizar das mais
diversas modalidades dispostas ao artista, como cor, fotografia, dança e sentido
poético, era para Oiticica uma definição para o ambiental. Através da vestimenta e
da fotografia, o grupo de dança utiliza de outras modalidades para criar a obra,
usando da roupa como instrumento para criar sua imagem e como extensão da
“fala” do corpo (onde aplica suas cores), e da fotografia como construção de cenário
e imagem que posteriormente será compartilhado nos espaços virtuais,
principalmente na plataforma de vídeos Youtube, onde uma verdadeira comunidade
de grupos de daça de kpop em público publicam suas performances.

Vídeo postado no Youtube de grupo reunido para realizar o Kpop Random Play Dance, que consiste
na execução de trechos de músicas de kpop para serem dançadas por quem souber a coreografia -
Nova Iorque, Estados Unidos, 2021

Um último elemento que faz parte da dança de kpop em público que o


aproxima do programa ambiental de Oiticica é o senso de comunidade que se cria
ao redor do grupo que se reúne para estudar, treinar e construir as danças. Utilizam
de sua coletividade para formar o corpo múltiplo que se expressa no espaço, e cria
seu repertório em trocas que acontecem antes de colocarem a dança na rua.
Nesses locais de reunião, uma comunidade é criada conforme pessoas que se
interessam e ocupam a mesma localidade, por outras razões que não a dança,
passam a se aproximar e constituir os grupos.

Grupo realizando o Kpop Random Play Dance - Nova Iorque, Perth - Austrália, 2021

Percebe-se, então, que a expressão acontece em sua individualidade, mas em


consonância com o coletivo, primeiro com o grupo que dança, depois com o espaço
e por último com o público, construindo seu programa para materialização e
manifestação da obra.

A intelectualização excessiva da dança de kpop em público

Como mencionado anteriormente, a dança de kpop em público segue alguns


precedentes que a constituem, o espaço, as pessoas que dançam e o público posto
na localidade em que se realiza, mas há outro item, não abordado anteriormente,
que a caracteriza como uma dança de kpop: a coreografia.
A premissa básica da dança de kpop em público é ser uma reprodução das
coreografias dos grupos musicais sul coreanos. Os grupos de kpop são constituídos
por diferentes posições dadas aos membros, indo de vocalistas a dançarinos, e o
grupo tem sua estreia depois de um longo período de preparações compostas por
aulas de canto e dança, e por essa razão suas músicas são performadas com
coreografias de alta dificuldade, sempre realizadas no limiar do extremo para
garantir um bom desempenho vocal e a dança ser executada à perfeição.

O grupo BlackPink executa a coreografia da canção How You Like That em um vídeo postado no
Youtube que já acumula quase um bilhão de visualizações. Esses vídeos são chamados dance
practice e é a partir deles que os grupos de dança de kpop em público aprendem as coreografias
para que possam executá-las.

Em busca de expressar seu interesse pelo grupo musical e também como


forma de manifestação individual através da dança, os grupos de dança de kpop em
público buscam reproduzir as coreografias com o máximo de maestria possível,
tentando, na maioria das vezes, reproduzir exatamente aquilo que foi apresentado
pelo seu ídolo.
É aí que a dança de kpop em público perde seu paralelo com o Programa
Ambiental, pois para Oiticica o ambientalismo buscava a desintelectualização da
obra em busca de um processo de arte de livre expressão, o qual é enrijecido pela
coreografia, como é dito no seguinte trecho do texto “Dança na minha experiência”
escrito pelo artista em 1965: “A dança é por excelência a busca do ato expressivo
direto, da imanência desse ato; não a dança de ‘ballet’, que, sendo excessivamente
intelectualizada pela inserção de uma ‘coreografia’ e que busca a transcendência
desse ato, mas a dança 'dionisíaca' que nasce do ritmo interior do coletivo [...]”.
Descolar-se das esferas intelectualizadas e se envolver com uma dimensão
mais instintiva seria um passo importante para a “procura do mito” de Oiticica, em
que mito se define como um ambiente originariamente puro, livre das camadas de
elaborações intelectuais que nublam o verdadeiro sentido das experiências
vivenciais. Seria a dança (a não coreografada), a partir da imersão do corpo no
ritmo, o ato puro de criação de imagens que estão em constante movimento e
transformação, e que descolam o espaço ambiental das relações óbvias já
conhecidas.

Grupo B2 executando uma coreografia num domingo de Avenida Paulista aberta ao público - São
Paulo, 2021

Sendo assim, a dança de kpop em público por ser coreografada é


intelectualizada e opressora, por isso não permite o acesso do sujeito a este estado
de pureza que fundamenta a transformação do eu e do ambiente em direção ao
mito, à distanciando de um programa de arte ambiental, que tem em seu cerne uma
postura anárquica, devido ao seu grau de liberdade. E, a liberdade era fundamental
para Oiticica, por considerar que o Programa Ambiental era tido como ponto de
partida para modificações sociais e políticas, que se colocava em oposição a tudo
que não fosse determinado pela necessidade interior do ser.
Além disso, se visto sob outra perspectiva, o envolvimento do público quando
realizado de forma ativa, só se constitui como válido quando a coreografia é
realizada, colocando uma barreira entre os artistas que dançam e o público, que por
essa razão, tende a se envolver passivamente, enquanto contempladores. Ou seja,
há disponibilidade para quem chega, pois o constrangimento se dissipa por ser uma
performance pop inserida em espaços do cotidiano que instigam a curiosidade, mas
a participação ativa do público para construção da obra é limitada, deixando nublada
a condição do público como agente da obra.

O grupo de dança de kpop em público como intérpretes de uma obra

No texto “Dança na minha experiência”, onde Hélio Oiticica busca definir a dança a
partir de sua experiência como passista na Escola de Samba Estação Primeira de
Mangueira, do Rio de Janeiro, o artista discorre sobre a liberdade necessária na
dança para que permita a criação de uma obra ambiental. Entretanto, para além
disso, também lida com a questão da interpretação ao constatar que, na década de
60, ocorre uma alteração no modo do público ao se portar frente a obra, assim como
uma alteração no modo como as interpretações, sejam de canções ou outras coisas
quaisquer, eram realizadas. Em um trecho, o artista declara: “O que se convencionou
chamar interpretação sofre também uma transformação nos nossos dias - não se
trata, em alguns casos é claro, de repetir uma criação (uma canção, por exemplo) [...].
Hoje o problema é diferente: mesmo que as obras interpretadas não sejam grandes
criações, [...], o intérprete alcança um grau expressivo alto - um cantar, Nat King Cole,
por exemplo, cria uma ‘estrutura expressiva vocal’, independente da qualidade das
músicas que interprete há uma criação sua, não mais como simples ‘intérprete’, mas
como um ‘vocalista’ altamente expressivo.”
Seria, então, possível encarar a dinâmica dos grupos de dança de kpop ao
reproduzirem as coreografias dos grupos sul-coreanos dentro da mesma lógica em
que se insere Nat King Cole? Considerando que os corpos são diferentes, inseridos
em contexto e lugares geográficos distintos, pode-se encarar que na dança, por mais
coreografada seja, há certo grau pessoal e individual de expressão colocado sobre
ela?
A coreografia é elemento fundamental para a obra se constituir como dança
de kpop, contudo, entendendo que os artistas utilizam de outras modalidades para
sua construção, é preciso considerar a expressão individual performada durante as
dinâmicas que envolvem o processo de construção das danças de kpop que se
manifestam no espaço público das cidades.
Grupos de dança de kpop em público constituem-se por indivíduos singulares
e criativos, que utilizam de suas habilidades - as mais diversas possíveis, para
elaborarem todo o programa que faz parte de colocar a dança na rua. Nos vídeos
postados no canal do Youtube do grupo B2 de São Paulo/SP, é possível entender um
pouco de como isso se realiza, tendo em vista que compartilham todo o processo
de treinamento das coreografias, elaboração de novos passos de dança, costura das
roupas e, além disso, propõem conversas com o público, via Web, para o
desenvolvimento de uma proposta conceitual para a dança.

Grupo B2 de São Paulo ensaiando no Centro Cultural São Paulo - São Paulo, 2019
É preciso considerar, sobretudo, o fator mais importante para essa
manifestação artística: o corpo. Os artistas fazem uso do instrumento mais
individual e pessoal como ferramenta para performar. As expressões faciais, os
movimentos que vão do topo da cabeça aos pés, são todos individuais, por mais que
busquem reproduzir algo, o corpo tem seu formato particular, que é único de cada
indivíduo.
Ou seja, ainda que engessado por uma coreografia, percebe-se que os grupos
fazem possível uma obra própria por meio de outros componentes que fazem parte
da dança e de seu corpo.

Conclusão

Conforme o paralelo que buscou-se construir entre o Programa Ambiental de Hélio


Oiticica e a dança de kpop em público, suposições são levantadas e não
necessariamente respondidas sobre a relação existente entre os dois, tendo em
vista suas aproximações e distanciamentos.
Mas, para longe da pretensão de encaixar as danças de kpop em público no
Programa Ambiental, é válido identificar expressões artísticas colocadas no
cotidiano, que muitas vezes não são enfrentadas como obras de arte. Estar no
cotidiano, na rua, longe das galerias e museus, as tira do espaço que as valida como
obra de arte, entretanto, encarar essas manifestações, assim como feito por Oiticica
para construir o “Programa Ambiental”, possibilita enxergá-las como tal.
Também não se pretende debater sobre o que pode ser considerado uma
obra de arte, contudo, é válido levantar essas questões e se iniciar uma discussão,
para que assim possamos enxergar o mundo com outros olhos, encarando e
vivendo o cotidiano como se faz ao estilo Oiticica, onde há motivação para se estar,
para se viver, indo em sentido de uma manifestação social, que é individual, mas se
completa no coletivo e que possibilita que se enxergue coisas que se vêem todos os
dias mas que jamais pensávamos procurar (Oiticica, 1965).
Referências Bibliográficas

Loeb, Angela Varela. Os Bólides do programa ambiental de Hélio Oiticica. ARS (São
Paulo) [online]. 2011, v. 9, n. 17 [Acessado 28 Novembro 2021] , pp. 48-77. Disponível
em: <https://doi.org/10.1590/S1678-53202011000100004>. Epub 06 Jan 2012. ISSN
2178-0447. https://doi.org/10.1590/S1678-53202011000100004.

OITICICA, Hélio. A dança na minha experiência. Rio de Janeiro, Brasil, 1965.

OITICICA, Hélio. Programa Ambiental. Rio de Janeiro, Brasil.

URBANO, Krystal. Entre japonesidades e coreanidades pop: da Japão-Mania à Onda


Coreana no Brasil. In: 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação -
Intercom, Curitiba, 2017

URBANO, Krystal; KAUTSCHER, Gabriela. A emergência da cena k-cover no Brasil. In: I


Colóquio Mídia, Cotidiano e Práticas Lúdicas, 2018, Niterói. ANAIS DO I COLÓQUIO
MÍDIA, COTIDIANO E PRÁTICAS LÚDICAS, 2018. v. 01. p. 99-122.

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