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A política do cidadão narcisista é a negação do constrangimento do desejo

Vivemos um momento suicida. O projeto contemporâneo é realizarmos todos os nossos


desejos sozinhos e deixar como herança três latas de lixo reciclável como prova de que nosso
suicídio foi sustentável. A espécie optou pelo suicídio como forma de felicidade. Que viva o
indivíduo, mas desapareça a espécie. Sim, digo isso com votos de feliz ano novo.

Será que a espécie sobrevive a esse surto de felicidade individual? Entenda-me: não acho que
haja retorno a formas "regressivas" (como gostam de falar os deleuzianos) de convívio. Só
aconteceria isso se a riqueza acabasse. O momento suicida é fruto dessa riqueza. Justamente
por isso suspeito que o projeto esteja em curso de forma irreversível e travestido de uma
obsessão incontrolável pelo direito ao narcisismo como modo empoderado de autonomia. O
vazio de afeto como um exemplo tardio de direitos humanos. Nunca desconfiamos tanto uns
dos outros como nessa era dos "coletivos de arte".

A cultura do narcisismo atingiu seu estágio propositivo, isto é, não se trata mais de um
comportamento patológico, mas sim de um estilo que não tem medo de dizer seu nome. É
uma forma de cidadania.

Fincado na ideia de que o centro da vida é a realização de projetos individuais sem limites no
mundo real, o cidadão do narcisismo assume que seu imaginário pessoal é o propósito
cósmico da Criação –aviso aos inteligentinhos que uso "Criação" como metáfora aqui.

Engana-se quem pensa que ele não tenha uma política. Ele tem. A política da negação de
qualquer constrangimento do desejo. Engana-se quem acredita que ele não tenha projetos
sociais. Principalmente aqueles que servem à própria vaidade sem oferecer qualquer forma de
risco concreto, como apoiar os refugiados sírios na Europa, uma vez que esses refugiados não
morarão na casa dos cidadãos do narcisismo. Cidadãos do narcisismo adoram crianças da
África, principalmente porque estão longe delas.

A arte desse cidadão é qualquer coisa, contanto que ele tenha um gozo anal em fazê-la. A
"libertação da forma", em si um debate estético consistente, acabou servindo bem a esta
forma de cidadania.
A ética do cidadão do narcisismo tem seu imperativo categórico cunhado no culto da forma do
eu e do corpo, jamais na condição de quem se perde num afeto. Aliás, a afetividade desse
cidadão é chorar com os próprios bons sentimentos.

Há psicanalista por aí que afirma mesmo que esse cidadão é um avanço, na medida em que
não sofre do imaginário de amor que o neurótico sofria. O cidadão livre do contrato narcísico
não ama. Superou esta forma primitiva de neurose em favor da circulação livre de afetos
desconexos. Por isso é tão sensível aos animais, que nunca põem em xeque o amor.

Formas "pós-modernas" de psicoterapias surgem no mercado dos consultórios na zona oeste


de São Paulo oferecendo novas definições de psicopatologia. A saúde mental nessa nova
forma de cidadania é se amar acima de tudo e se levar muito a sério sempre.

O cidadão do narcisismo leva a sério afirmações como "procurar a si mesmo para sempre". Ou
"direito à inveja e ao ressentimento como formas de autonomia". É o cidadão do narcisismo
que está por trás das "revoluções" geradas pelas mídias sociais, paraíso do narcisismo. Risco
zero, como ver a própria morte pela Netflix.

E por que um "momento suicida"? Porque, até ontem, sabia-se que o narcisismo é uma
síndrome de pessoas incapazes de viver por si mesmas, vampiros da saúde mental alheia,
inaptos ao afeto. Sorrisos desatentos confessam o projeto suicida sem a mínima noção.

Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.) dizia que a única forma de liberdade que existe é quando
se ama, porque assim saímos da condição de vaidade em que nos encontramos por conta do
pavor do vazio que nos corrói. A consciência de sermos filhos do nada se impõe na mais tenra
infância. O medo infantil é o olfato deste nada.

Pois então. O momento suicida é aquele em que cidadãos conscientes dos riscos pelos quais
passa o planeta optam pelo narcisismo como forma avançada de estar no mundo. Esses
cidadãos perderam o olfato do nada. 

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