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O condomínio de Luís Fernando Veríssimo

visto pela perspectiva do ambiente construído

Caleb Cleverly

PORT 459R

Professora Patrícia Baialuna de Andrade

13 de abril de 2022
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Luís Fernando Veríssimo, o autor de O condomínio, nasceu em Porto Alegre em 1936.

Filho do romancista Érico Veríssimo, Luís Fernando começou a sua carreira como humorista,

publicando as suas histórias em diversos jornais, e depois se tornou um autor de best-sellers

com seus livros A velhinha de Taubaté, As cobras e O analista de Bagé. (Veríssimo, 2011) O seu conto

O condomínio foi publicado em seu livro Outras do analista de Bagé, publicado em 1982. Trata-se

de um economista chamado João, vítima de tortura pela ditadura militar por conta da sua

ideologia de esquerda.

No conto, João e sua esposa, Sandra, moram em um condomínio novo com seu filho

Vladimir. João fica chocado quando fica sabendo que o seu novo vizinho, Sérgio, foi o militar

que o torturara onze anos antes. O conto chega ao seu clímax durante uma reunião com os

outros moradores do condomínio. Nesse momento, João e Sérgio se reconhecem e soltam

indiretas cada vez mais diretas uns para os outros. O conto termina com sentimentos

constrangidos e um jogo de futebol com o torturado e seu ex-torturador. O objetivo desta obra é

analisar a forma como Luís Fernando Veríssimo usa o ambiente construído em O condomínio

para caracterizar o Brasil na época da redemocratização.

“Arquitetura é música petrificada”. Essas palavras, escritas há quase dois séculos pelo

polímata alemão Johann Wolfgang von Goethe ecoam até hoje. Em sua obra-prima, o poema

trágico Fausto, Goethe relata a história de Henrique Fausto, um sábio erudito que está

insatisfeito com a sua vida e acaba vendendo a sua alma para um demônio chamado

Mefistófeles a fim de conquistar os seus desejos. (Nietzsche, 2000) O demônio, Mefistófeles, é

como se fosse uma encarnação do próprio mal. Tais figuras do mal encarnado sempre estiveram
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presentes em diversas áreas da literatura. Nas obras brasileiras que tratam dos traumas sofridos

por um país inteiro durante 21 anos de opressão sob um governo militar, com frequência

encontra-se a ditadura militar como uma força malévola semelhante a Mefistófeles. Em uma

troca quixotesca pela percepção da segurança de ameaças comunistas internas, é como se o

Brasil vendesse a sua própria alma para tal governo malévola.

Tal como uma trilha sonora em um filme, a música petrificada da arquitetura é um dos

métodos empregados por Luís Fernando Veríssimo em O condomínio para sutilmente destacar o

efeito da venda da alma nacional para um regime mefistofélica que deixou sequelas mesmo

durante a época da redemocratização. Os instrumentos tocados nessa trilha sonora não são

trombeta nem violino – os quais se juntam com os demais para criar uma orquestra – são os

tijolos e a tinta que compõem o ambiente construído.

Ambiente construído é um termo criado em 1982 pelo professor polonês de arquitetura

Amos Rapoport em seu livro The Meaning of the Built Environment: A Nonverbal Communication

Approach. De forma simples representa todas as construções ao nosso redor - prédios, ruas,

pontes etc. De forma mais teórica, o ambiente construído é um "fenômeno da arquitetura que

parte da necessidade estrutural da mente humana de ordenar o caos através de esquemas

simbólicos que, variando entre os povos, sempre se apresentam" (Paz, 2013).

Em um conto tão breve como O condomínio, cada detalhe mencionado pelo autor possui

um certo grau de importância e simbolismo, relativo às obras mais compridas. Os detalhes do

ambiente construído - as características físicas do condomínio, a sua localização, as atitudes dos

seus moradores etc. - criam uma imagem mental de como era o Brasil na época de
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redemocratização. Esses traços do ambiente construído nos ajudam a entendermos os danos

colaterais sofridos por conta da Lei da Anistia, a tortura física e psicológica e, no geral, os

traumas da ditadura militar.

Durante todo o conto, vemos o constrangimento existente em um mundo pós-anistia.

Promulgada em 28 de agosto de 1979, a Lei da Anistia concedeu anistia tanto aos exilados e

presos políticos quanto aos militares torturadores e sequestradores. (L. 6.683 de 28.8.1979). Por

um lado, essa lei atingiu as crescentes demandas de um público insatisfeito com a condição

política do país. Por outro lado, a Lei da Anistia foi uma cura que deixou suas próprias

cicatrizes na psique nacional brasileira - criando uma falsa equivalência moral entre o censurado

e o censor, o exilado e o expulsor, o torturado e o torturador. (Crestani, 2011) Para um público

carente de justiça, não se encontrou aquela anistia ampla, geral e irrestrita da forma que tanto se

demandara antes (Soares 2016).

No ambiente construído de O condomínio, há muita relevância entre os traços físicos do

condomínio e a situação moralmente complexa da época pós-anistia. O prédio em si é como se

fosse um microcosmo do Brasil da década de 1980. Um imóvel recém-construído, o luxuoso

condomínio Sunset Palace conta com o slogan “Um prêmio dourado para quem subiu na vida”.

Abre-se a primeira cena com o protagonista, João, sendo criticado por sua esposa, Sandra, por

ter trazido poeira dentro do apartamento.

Logo nesse início aparentemente inconsequente, vemos um pouco da melodia do

ambiente construído. No Brasil que estava no processo da redemocratização, levou tempo para

abafar a poeira inerente em tal processo. A anistia não equivale à anestesia. No conto, João
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sofria as dores da sua tortura mesmo depois de onze anos. Perante a lei, a situação política no

Brasil estava bem encaminhada. As eleições diretas estavam voltando aos poucos, e o novo

governo prestes a se instalar seria bonitinho e arrumado - um prêmio dourado para um país que

finalmente mereceu a autogovernação. Nesse caso, a poeira nacional era aquele pequeno detalhe

inconveniente - nenhuma simples mudança jurídica curaria os feridos infligidos à população

durante duas décadas. O que se faz com tais realidades inconvenientes? Jogam-se embaixo do

tapete. Não se pode deixar que a vizinha veja com aquele prazer preconceituoso a desgraça

doméstica. Seja dentro de casa a tempestade que for, transmite sempre uma aparência tranquila.

Durante a reunião dos moradores do condomínio, vemos tal tempestade violenta com cara

tranquila no vagaroso reconhecimento indireto que se desvenda entre João e Sérgio.

Chegando no apartamento de Mirando, local da reunião dos moradores, Sandra fica com

inveja do ambiente perfeitamente mobiliado e enfeitado. Mostrando uma certa frivolidade,

talvez como mecanismo de enfrentamento, Sandra fala ao longo do conto sobre o seu desejo de

colocar cortinas nas grandes janelas do seu apartamento, mecanismo de enfrentamento esse

para lidar com os traumas que ela sofrera durante o tempo da tortura de seu marido.

Com cortinas como as de Miranda, Sandra conseguiria controlar melhor a entrada do sol

que banhava a sala de luz nos pores do sol de verão. Janelas ajudam a abrir um espaço, criando

uma sensação de uma falta de limites. O pôr do sol, do qual o Sunset Palace deriva seu nome,

pode representar o fim de um dia. Embora o pôr do sol infira que um nascer do sol esteja por

vir, ele não o garante. Enquanto o sol descia no período escuro ditatorial, não era garantido algo

melhor para tomar o seu lugar. As cortinas, metaforicamente, poderiam servir para atrapalhar,
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de forma defensiva, a entrada dos raios de esperança por um novo início - caso o inesperado

acontecesse.

Geralmente, os ambientes construídos tendem a mostrar um pouco sobre a

personalidade de quem os construiu. Situado no décimo andar do prédio, o apartamento de

Miranda combina com seu perfil de ser um alguém que subiu na vida. Veríssimo a descreve

assim: "A mulher recebia a todos com um grande sorriso artificial. Talvez a cirurgia não tivesse

dado certo e o sorriso fosse permanente." (Veríssimo 1986) Cuidadosamente confeitada

pessoalmente e na apresentação da sua moradia, Miranda dá início à reunião dos moradores

atingindo todos os pré-requisitos sociais - comes e bebes para relaxar os convidados enquanto

batem papo sobre assuntos de baixa importância - os rituais preparatórios para exercer a arte da

política. Invocando a linguagem patriota, Miranda diz, "Infelizmente…estamos numa zona

perigosa. Aqui tem malocas de todos os lados. Eu sei que a prefeitura vai remover, mas por

enquanto elas estão aí. E todos nós temos aqui um patrimônio valioso que precisamos

defender."(Veríssimo 1986) Torna-se óbvio nesse momento que a era da opressão elite não está

por acabar, está simplesmente prestes a passar de dono.

As "malocas" em questão aqui foram as comunidades habitadas por pessoas de baixa

renda que cercavam o condomínio por todos os lados. Mais uma vez, uma investigação sobre o

ambiente construído revela muito sobre a situação sociopolítica do Brasil - tanto na época da

redemocratização quanto nos dias de hoje.

Um dos motivos por trás do golpe de 1964 foi justamente uma manifestação por parte de

outras pessoas que subiram na vida das mesmas atitudes presentes na reunião dos moradores do
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condomínio. O conflito entre os camponeses pobres e os donos de terras foi um produto do

sistema latifundiário na era colonial do Brasil. A maioria das terras, e portanto, as riquezas,

ficavam nas mãos de poucas pessoas. Mesmo com a abolição da escravidão, essas enormes

desigualdades permanecem até hoje. Começando na década de 1940, havia um movimento

crescente por parte dos moradores pobres de zonas rurais para obterem terras próprias. Esse

movimento chegou ao seu auge em 1964 durante o mandato de João Goulart (Jango) como

Presidente da República. Propôs-se que as áreas não cultivadas pudessem ser dadas legalmente

a pessoas carentes. Tais áreas incluíam as margens de rodovias, traços de grandes latifúndios

não cultivados etc. Essas propostas reformas agrárias causaram medo na classe elite - tanto a

política quanto a econômica - pois representava uma ameaça esquerdista aos direitos

patrimoniais. Segundo uma pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas, "Ao invés de

resultarem na aprovação da reforma, contudo, os atos do governo aprofundaram a ruptura com

grupos de centro que lhe davam suporte, como o Partido Social Democrático (PSD), abrindo

caminho para o golpe de 1964." (Grynszpan, 2010)

Embora ficassem lado a lado, o mundo dos moradores do condomínio era diferente da

realidade das favelas ao seu redor. Embora fizesse parte da classe média alta - emprego de

colarinho branco, um apartamento seguro em um condomínio fechado e tempo para o lazer -

percebe-se no conto que João, talvez por conta das suas tendências políticas mais esquerdistas,

se identifica mais com o povo da favela do que com seus novos vizinhos na comunidade nobre.

Há uma certa ironia na situação do condomínio dentro do ambiente construído que reforça uma

realidade triste das condições socioeconômicas do Brasil. As mesmas pessoas que temiam a
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invasão de terras que ocorreria sob a reforma agrária de Jango, ajudando a causar o golpe de

1964, acabaram sendo incentivados por prefeituras, como no Rio de Janeiro, a invadir e demolir

partes das favelas a fim de construírem moradias mais agradáveis (disponíveis apenas para

aqueles com poder aquisitivo muito mais amplo do que os antigos moradores). (Osborn, 2016)

Quem pensava que os problemas sociopolíticos seriam resolvidos depois da

redemocratização estava enganado. Na reunião dos moradores, fortalecidos em seus

sentimentos de superioridade devido ao seu ambiente construído, vários vizinhos de João e

Sandra fizeram declarações chocantes. Respondendo à discussão sobre a necessidade de

vigilância armada para proteger o patrimônio, o Senhor Pires exclamou: "Esse negócio de direitos

humanos é muito bonitinho mas em país desenvolvido. Aqui não. Aqui é nós ou eles.”

Uma curiosidade marcante que difere o ambiente construído da maioria dos municípios

brasileiros e seus equivalentes nos Estados Unidos é a presença de muros e cercas. Em O

condomínio, vemos que o prédio é cercado por um muro que serve para proibir a entrada de

pessoas desagradáveis (ou seja, os vizinhos pobres da favela ao lado). No Brasil, quer que seja

baseada na realidade ou na ficção, há um sentimento de desconfiança social que já não existe

tanto nos Estados Unidos. (da Matta, 2009) Mesmo que não sejam aquelas mansões que sempre

passam nos filmes como se fossem o padrão de vida de todos, as casas norte-americanas tendem

a não ter muro na frente. Se tiver cerca qualquer, geralmente serve para destacar onde termina o

terreno de um e onde começa o terreno do outro, e nem tanto para dificultar de qualquer forma

a invasão da propriedade pelos vizinhos. Outro produto da desigualdade econômica, a forte


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presença de muros, cercas elétricas e arame farpado nas casas brasileiras transformam aquela

imagem tropical e paradisíaca de cartão postal em algo mais sinistro.

Essa desigualdade, e a resultante falta de confiança social mostrada pelo ambiente

construído podem se ver até de forma estatística. Calculadas e publicadas anualmente pelo

Banco Mundial, a Índice Gini agrega diversos fatores para indicar a taxa de desigualdade

socioeconômica existente em um determinado país. Uma taxa de zero indicaria a igualdade

total de todos os membros da sociedade. Da mesma forma, uma taxa de cem indicaria uma

situação em que o patrimônio nacional de um país ficasse completamente nas mãos de um

único indivíduo. No ano mais recente em que há dados disponíveis, o Brasil contou com uma

Taxa Gini de 48, enquanto os Estados Unidos contaram com uma Taxa Gini de 41. (Gini Index,

2019)

Conforme se vê no conto, a suposta igualdade social resultante da anistia ampla, geral e

irrestrita de fato foi uma ilusão. Se batesse olho durante a reunião do condomínio, seria óbvio

que João e Sérgio não se davam bem, mas seria perfeitamente acreditável que aquilo fosse

apenas um desacordo frívolo entre dois vizinhos (a abundância do qual qualquer um que já

frequentou um reunião de moradores de condomínio ou de bairro pode atestar). Olhando por

baixo da superfície, porém, vê-se um conflito mais turbulento em que os velhos papéis de

torturador e torturado quebram a fachada ilusória do progresso social. A angústia que João

sente por conta da sua tortura não abafou durante onze anos. Agora ele não teria para onde

correr para aliviar o seu sofrimento. Nessa nova era de redemocratização, João teria que

compartilhar o seu país não apenas com um alguém que era aberta e explicitamente o seu
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adversário, mas sim com um grande inimigo - um agente impenitente de Mefistófeles - que

ocuparia o papel de cidadão colega, com poder de influenciar a política de forma legítima. Pelo

menos na época da ditadura, João tinha o prazer de saber que os seus antagonistas

atormentavam-no de forma ilegítima. Sem a proteção da sua justa indignação, João se sentiria

cada vez mais preso dentro do seu próprio domicílio. Os muros, com arame farpado em cima,

iriam parecer cada vez menos como uma proteção contra a violenta criminalidade do mundo

afora, e cada vez mais como os muros de uma prisão, construídos para prendê-lo para que

nunca mais fugisse do seu passado.

Mesmo que possam parecer no início detalhes irrelevantes, as caracterizações do

ambiente construído em O condomínio reforçam as ideias sobre o conflito pessoal da época

pós-anistia da redemocratização. Os precários novos inícios simbolizados no prédio

recém-construído. A reação de uma comunidade mais rica contra uma comunidade mais pobre,

mostrando a influência que há quando afasta-se do poder político por uma geração inteira. Os

muros construídos para prevenir a invasão por gente de fora que também acabam prevenindo a

evasão de gente de dentro. O significado desse pequeno conto torna-se mais profundo à medida

que se empregue uma perspectiva do ambiente construído. Não é agradável assistir um filme

sem a trilha sonora. Da mesma forma, é enriquecedor usufruir da música petrificada que a

arquitetura e o ambiente construído trazem para uma obra escrita.


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Bibliografía

Crestani, Leandro de Araújo. “O Surgimento Do Inimigo Interno: Ditadura

Militar No Brasil (1964 a 1985).” Revista Eletrônica História em Reflexão 5, no. 9 (2011).

da Matta, Roberto. “O Problema Do Muro No Brasil.” Estadão. 15 de abril, 2009.

https://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,o-problema-do-muro-no-brasil,354787.

“Gini Index.” Data. World Bank, 2019.

https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?end=2020&locations=BR-US&a

mp;start=2020&view=bar.

Grynszpan, Mario. “A Questão Agrária No Governo Jango.” FGV CPDOC.

Fundação Getúlio Vargas Centro de Pesquisa e Documentação de História, 2010.

https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/A_questa

o_agraria_no_governo_Jango.

Lei Ordinária 6.683 de 28.8.1979

Nietzche, Friedrich. “Explanatory Notes.” The Birth of Tragedy, translated by

Douglas Smith, 140–40. Oxford, England: Oxford University Press, 2000.

Osborn, Catherine. “Vila União De Curicica Pode Enfrentar Remoção Total.”

Translated by Roseli Franco. Rio on Watch. Catalytic Communities, 19 de fevereiro,

2016. https://rioonwatch.org.br/?p=4491.
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Paz, Daniel Juracy Mellado. “Ambiente Construído.” Arquitetura Popular:

Espaços e Sabers. Universidade Federal da Bahia, 5 de fevereiro, 2013.

http://www.arqpop.arq.ufba.br/taxonomy/term/103.

Soares, Thiago Nunes. “Gritam Os Muros: ‘Anistia Ampla, Geral E Irrestrita.’”

Revista Tempo e Argumento 08, no. 17 (2016): 350–83.

Verissimo, Luis Fernando. Outras Do Analista De Bage. Porto Alegre, RS: L

& Pm, 1986.

Veríssimo, Luís Fernando. “Luís Fernando Veríssimo.” Companhia das Letras.

Grupo Companhia das Letras, 2011.

https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=01244.

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