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Teologia Paulina

Fidelidade
Divina
Vol. 1
Editora Brazil Publishing
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Rodrigo Horochovski (UFPR - Brasil)
Membros do Conselho:
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Capa: Paula Zettel
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Revisão de Texto: O autor

DOI: 10.31012/978-65-5016-261-0

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www.aeditora.com.br
Júlio Zabatiero

Teologia Paulina
Vol. 1: Fidelidade Divina
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
BIBLIOTECÁRIA: MARIA ISABEL SCHIAVON KINASZ, CRB9 / 626

Zabatiero, Júlio Paulo Tavares Mantovani


Z12t Teologia Paulina: fidelidade divina / Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero –
Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
[recurso eletrõnico]

ISBN 978-65-5016-261-0

1. Paulo, Apóstolo, Santo. 2. Teologia. 3. Fidelidade. 4. Bíblia, N.T. Epístola de Paulo


– Crítica, interpretação, etc. I. Título.

CDD 227.06 (22.ed)


CDU 234.15

COMITÊ CIENTÍFICO DA ÁREA CIÊNCIAS HUMANAS

Presidente: Prof. Dr. Fabrício R. L. Tomio (UFPR – Sociologia)


Prof. Dr. Nilo Ribeiro Júnior (FAJE – Filosofia)
Prof. Dr. Renee Volpato Viaro (PUC – Psicologia)
Prof. Dr. Daniel Delgado Queissada (UniAGES – Serviço Social)
Prof. Dr. Jorge Luiz Bezerra Nóvoa (UFBA – Sociologia)
Prof. Dra. Marlene Tamanini (UFPR – Sociologia)
Prof. Dra. Luciana Ferreira (UFPR – Geografia)
Prof. Dra. Marlucy Alves Paraíso (UFMG – Educação)
Prof. Dr. Cezar Honorato (UFF – História)
Prof. Dr. Clóvis Ecco (PUC-GO – Ciências da Religião)
Prof. Dr. Fauston Negreiros (UFPI – Psicologia)
Prof. Dr. Luiz Antônio Bogo Chies (UCPel – Sociologia)
Prof. Dr. Mario Jorge da Motta Bastos (UFF – História)
Prof. Dr. Israel Kujawa (PPGP da IMED – Psicologia)
Prof. Dra. Maria Paula Prates Machado (UFCSPA- Antropologia Social)
Prof. Dr. Francisco José Figueiredo Coelho (GIEESAA/UFRJ – Biociências e Saúde)

Curitiba / Brasil
2020
Prefácio

Escrever uma teologia dos escritos de Paulo é uma tarefa ao mes-


mo tempo prazerosa e desafiadora. As cartas paulinas têm sido uma das
principais fontes da teologia cristã, usadas tanto para firmar e confirmar
doutrinas estabelecidas, como para desafiar os dogmas eclesiásticos e ini-
ciar movimentos de reforma e renovação nas Igrejas Cristãs. Dentre as
interpretações mais interessantes e desafiadoras dos escritos do apóstolo
estão aquelas que, a partir dos dilemas e possibilidades do mundo do in-
térprete, dirigiram às cartas um olhar interessado na contribuição inova-
dora desses textos para a vida do povo de Deus.
Esta Teologia Paulina procura se inserir nessa tradição de leitu-
ras híbridas de Paulo. De um lado, é um esforço para interpretar os textos
paulinos em seu próprio contexto, procurando encontrar o mais fielmente
possível as nuanças e possibilidades de sentido descortinadas pelo texto.
De outro, também se esforça para apresentar o resultado da exegese em
linguagem e conceitualidade capazes de nos desafiar a construir uma visão
da práxis e da teologia cristãs relevantes para um mundo cada vez mais
distante do projeto transformador do apóstolo aos gentios.
Este é o primeiro volume de uma obra planejada em cinco vo-
lumes, todos aproximadamente com o mesmo tamanho e organizados da
mesma maneira: o tema teológico é construído a partir da exegese de uma
(ou duas) carta(s) de Paulo na qual esse tema desempenha um papel de
destaque. Na sequência, o tema é “problematizado”, ou seja, são questio-
nados os hábitos conceituais arraigados na interpretação do conceito nos
escritos de Paulo. Após a problematização, o tema é descrito a partir de
uma leitura teológico-temática das principais perícopes paulinas em que
ele aparece. Após a descrição, o tema é narrativizado, ou seja, é abordado a
partir do seu lugar na vida social e eclesial. Os embates e conflitos sociais
e políticos presentes no tema são apresentados, procurando compreender
de modo mais intenso a práxis pública do apóstolo. Por fim, o tema é
tratado de modo conceitual. Aqui se encontrará a principal novidade des-
ta Teologia em relação às demais interpretações teológicas da Escritura.
Contra a tradição de que os textos bíblicos não são conceitualmente pro-
fundos, esta seção da discussão procurará desvelar as categorias teológicas
e conceituais presentes no texto, mas não destacadas por falta de um olhar
diretamente voltado para a sua interpretação.
O resultado da pesquisa é, espero, uma Teologia Paulina fiel ao
pensamento e práxis do apóstolo, mas, também, intensamente latino-a-
mericana e contemporânea. Uma Teologia que poderíamos nomear como
pública, que busca transcender os limites artificialmente construídos en-
tre pensamento e ação, fé e razão, práxis e ortodoxia, doutrina e ciência.
Acima de tudo, é uma leitura afetiva dos escritos de Paulo – a apresen-
tação do pensamento de um amigo que, a partir de seu antigo mundo,
permanece um parceiro insuperável na aventura de aprender a viver e a
servir a Deus, servindo ao mundo a quem ele amou fielmente, para o qual
esvaziadamente enviou seu Filho, e no qual está presente no Espírito que
comunica e comunga conosco a própria vida divina.
Abstract

This Pauline Theology highlights not only the thinking, but


also the praxis of Paul and his communities in the world of the Roman
Empire. An innovative approach to Pauline texts, based on the semiot-
ic-discursive exegesis and in a multidisciplinary perspective. It is not sim-
ply an exposition of the apostle’s thoughts, but a translation of Pauline
theology in conceptual and cultural terms of our contemporary world.
This volume introduces the five volumes of the work and the chapter on
Divine Faithfulness. After the introduction, which discusses the history
of Paul’s recent research and the epistemology adopted in the making of
this book, the focus is on the Pauline concept of God’s Fidelity, based on
theological exegesis of Paul’s letters to the Thessalonians and some crucial
texts of the others letters concluding with a reflection on the novelty of
the Pauline notion of God in its own contextual universe.
Palavras-Chave

Introdução
Epistemologia. Projeto de Paulo. Subjetividade. História da Pesquisa.
Multidisciplinaridade.

Capítulo “Fidelidade Divina”


Fidelidade. Trindade. Quenose. Tessalonicenses. Revelação.
Sumário

Introdução............................................................................................. 12

Capítulo 1
Fiel é o que vos chama (1 & 2 Tessalonicenses)........................................ 44
1.1 As epístolas em seu contexto..................................................................... 44
1.2 A hipótese interpretativa........................................................................... 47
1.3 Exegese...................................................................................................... 51
1.3.1 A estrutura das cartas............................................................................. 51
1.3.2 Saudação e Ação de Graças (1Ts 1,1-10)............................................... 53
1.3.3 A integridade de Paulo como ministro do Evangelho (2,1-12).............. 58
1.3.4 A recepção do Evangelho em meio ao sofrimento (2,13-16).................. 66
1.3.5 Visita impedida e Relatório de Timóteo (2,17-3,10).............................. 68
1.3.6 Planos para visita de Paulo (3,11-13)..................................................... 70
1.3.7 Exortações a uma vida santa (4,1-12)..................................................... 71
1.3.8 Questões escatológicas (4,13-5,11)......................................................... 77
1.3.9 Exortação à integridade comunitária (5,12-22)...................................... 83
1.3.10 Orações e saudações finais (5,23-28).................................................... 87
1.3.11 Saudação e Gratidão (2Ts 1,1-5).......................................................... 88
1.3.12 Tribulação e oração (1,6-12)................................................................. 89
1.3.13 Quanto à parousia do Senhor (2,1-12)................................................. 91
1.3.14 Orações (2,13-3,5)................................................................................ 93
1.3.15 Exortação e saudações finais (3,6-18)................................................... 95

Capítulo 2
Problematização.................................................................................... 97
2.1 Introdução................................................................................................. 97
2.2 Concepção Ontoteológica: Teísmo e Monoteísmo ................................ 101
2.3 Concepção de Divindade no Antigo Oriente Próximo............................ 106
2.4 A Concepção de Divindade em Israel..................................................... 109
2.4.1 Exclusividade e Irrepresentabilidade..................................................... 109
2.4.2 YHWH, Deus que dá vida................................................................... 115
2.5 Concepções de Deus no mundo greco-romano....................................... 119

Capítulo 3
Descrevendo Deus............................................................................... 124
3.1 Há um só Deus: O Pai é Deus ................................................................ 126
3.1.1 Para nós há um só Deus (1 Co 8,4-6)................................................... 126
3.1.2 “No anúncio da boa nova” ... “Do céu” se revela (Rm 1,16-25)............. 130
3.1.3 Porventura é Deus somente dos judeus? (Rm 3,29-30)........................ 136
3.1.4 O Deus que gera a vida (Rm 4,17)....................................................... 138
3.1.5 Dele, por meio dele e para ele (Rm 11,33-36)...................................... 142
3.1.6 Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor (Ef 1,3-14).............................. 146
3.1.7 Há um só Deus e pai de todos (Ef 4,1-6)............................................. 152
3.1.8 A majestade inominável de Deus (1Tm 1,17; 6,15b-16)...................... 155
3.2 Há um só Deus: O Filho é Deus............................................................. 157
3.2.1 A mente do Messias (1Co 2,16) .......................................................... 158
3.2.2 Um Senhor – Messias Jesus (1Co 8,6)................................................. 159
3.2.3 Glorie-se no Senhor (1Co 1,30-31; cp. 2Co 10,17)............................. 161
3.2.4 Homem celestial, espírito vivificante (1Co 15,45-49).......................... 162
3.2.5 Deus bendito eternamente (Rm 9,5).................................................... 163
3.2.6 Invocar o Nome (Rm 10,13 )................................................................ 164
3.2.7 Deus esvaziado (Fp 2,5-11).................................................................. 165
3.3 Há um só Deus: O Espírito é Deus......................................................... 170
3.3.1 Conhecimento do Espírito de Deus (1Co 2,6-16)............................... 171
3.3.2 As manifestações do Espírito (1Co 12,1-13)........................................ 172
3.3.3 Penhor (2Co 1,21-22; 5,5; Ef 1,13-14)................................................ 174
3.3.4 Espírito da Nova Aliança (2Co 3,1-18)................................................ 175
3.3.5 Espírito da Vida (Rm 8,1-27).............................................................. 178
3.3.6 Há um só... (Ef 4,1-6).......................................................................... 182
3.3.7 A Plenitude da Totalidade.................................................................... 184

Capítulo 4
Narrativizando Deus ........................................................................... 188
4.1 Deus que elege e chama .......................................................................... 190
4.1.1 O Deus que elege e chama.................................................................... 192
4.1.2 A eleição-chamado de Deus messianicamente ressignificada .............. 205
4.2 Deus glorioso........................................................................................... 216
4.2.1 A Glória Divina.................................................................................... 218
4.2.2 A Glória Divina Messianicamente Ressignificada................................ 224
4.3 Deus potente........................................................................................... 229
4.3.1 Introdução............................................................................................ 230
4.3.2 A dimensão ontológica da potência divina........................................... 233
4.3.3 A potência de Deus messianicamente ressignificada............................ 241
4.4 Deus Fiel................................................................................................. 249
4.4.1 A Fidelidade de Deus........................................................................... 250
4.4.2 A fidelidade divina messianicamente ressignificada.............................. 256
4.4.2.1 A Fidelidade do Messias.................................................................... 256
4.4.2.2 A fidelidade divina em seu relacionamento com a humanidade......... 262
Capítulo 5
Conceituando Deus............................................................................. 271
5.1 Comunicabilidade ................................................................................... 272
5.2 Vacuidade................................................................................................ 276
5.3 Vidalidade............................................................................................... 281
5.4 Unidiferencialidade.................................................................................. 287

Sobre o Autor....................................................................................... 292


Introdução

O Projeto desta Teologia Paulina

Por que tenho estudado Paulo e me dado ao prazeroso trabalho


de escrever esta “teologia paulina”? Apresentarei as razões conscientes que
me animam neste projeto teológico, bem como a racionalidade ou episte-
mologia que dá corpo ao empreendimento.
(1) Porque não desejo elaborar uma teologia restrita aos limites
disciplinares da academia ou aos limites normativos eclesiásticos do teolo-
gizar ocidental moderno. A exegese e a teologia tendem a ficar subordi-
nadas às demandas e projetos das Igrejas institucionalmente organizadas
e passam a ser definidas pela sua adequação a essas demandas e projetos,
não mais pela sua adequação ao seu próprio objeto. O aspecto positivo da
pertença eclesiástica é a filiação a uma tradição que sempre se pode inovar
e renovar. O negativo é o aprisionamento a formulações dogmáticas e a
projetos de manutenção ou expansão institucional que não conseguem
perceber a falência pública dos Cristianismos organizados e instituciona-
lizados. O aspecto positivo da pertença acadêmica é o rigor disciplinar da
pesquisa que ajuda a superar os limites da pertença eclesiástica, o negativo
é a redução ao aspecto objetivo da pesquisa científica.
Nos dois casos, quando o aspecto negativo domina, a principal
consequência é o reducionismo a que a leitura bíblica é submetida: Te-
ologia não é história da religião cristã, nem decisão institucional sobre
a verdade doutrinária e Exegese não é a reconstrução historiográfica da
elaboração de textos e práticas, nem subordinação da pregação à identi-
dade eclesiástica. Quando o aspecto positivo predomina, porém, Exegese
e Teologia deixam de ser vistas como disciplinas estanques e passam a ser
praticadas como um único, interinstitucional e interdisciplinar processo
de construção de saber da fé. Processo cujas quatro características fundan-
tes são: hermeneuticidade, criticidade, praticidade e publicidade.1

1  Apresento e discuto esta proposta de compreensão da teologia em duas obras: Para um Método
Teológico e Para uma Teologia Pública, ambas publicadas por Fonte Editorial & Unida (editora da

12
As exegeses e teologias “militantes” do último quarto do século
passado deram, a meu ver, um passo significativo em direção ao rom-
pimento com o aspecto negativo dos ambientes ora discutidos. O prin-
cipal aspecto positivo destas foi a inclusão do caráter prático e público
na pesquisa exegética e teológica – gerando diálogos interinstitucionais e
interdisciplinares, bem como demandando comprometimentos públicos
concretos a partir da justiça. O aspecto negativo ainda presente consiste
em que a exegese e a teologia continuaram subordinadas a um critério
epistemológico externo, “de fora”, seja esse critério a luta de classes, o gê-
nero, a raça, a utopia, o pós-colonialismo etc. Um passo extremamente
significativo, porém, foi dado e não pode ser abandonado: reencontrou-se
a validade da teologia e da exegese no serviço à vida. Teologia não é um
saber cujo objeto é a produção de conhecimento sobre si mesma. Teologia
é um saber cujo objeto é a própria vida em seu viver. Teologia é saber a
partir de Deus e sobre Deus – totalidade eternamente inacabada e infi-
nito experimentado finitamente. Objeto que não é “lançado” (posto) por
nós; mas que se arremessa a nós, como na extasiante metáfora da kenosis,
esvaziando-se, a única forma possível de plenificação. Saber, sim, mas que
jamais esgota o seu “objeto”, um permanente mistério. Saber que é mais
uma poética da presença2 do que uma epistemologia da certeza, uma es-
tética do evento do que uma ciência do ser. Sim, um Deus que não se
reduz aos limites da secularização está entre nós – ou seja, um Deus que
não só age na história, mas está presente conosco em nossos espaços de
vida e não vida. Dessa forma, como participante desse percurso histórico
de mutações epistemológicas, meu sonho, meu projeto epistemológico-
-missional, é o de uma teologia que nos ajude a viver, diante de Deus, a
vida humana como uma vida de serviço e cuidado de si mesma e do seu
ambiente cósmico.3 Que nos ajude a viver a vida em seu encanto, em sua
sublimidade, em seu mistérico viver. Penso e pratico uma teologia que,

Faculdade Unida de Vitória). Para minha visão da Exegese, também duas outras obras fazem a
descrição: Manual de Exegese (Garimpo Editorial) e Para uma Hermenêutica Bíblica (junto à Sidney
Sanches e José Adriano Filho, Fonte Editorial).
2  A crítica ao modo metafísico de pensar se dirige fortemente contra a metafísica da presença, por
isso, uso a frase “poética da presença”, para indicar que permaneço em um modo não metafísico de
pensamento teológico.
3  E se está a serviço da vida está, acima de tudo, a serviço de Deus.

13
embora consciente de sua própria tradição eclesiástica e de sua trajetória
acadêmica, não se vê obrigada a prestar contas primariamente a essas tra-
dições, mas, sim, às pessoas e à criação inteira a quem Deus amou e ama
radicalmente. Simultaneamente, porém, não desejo inventar uma nova
exegese, uma nova disciplina, uma nova escola de pensamento, seja uma
antiteologia, antifilosofia, uma não teologia ou qualquer coisa do tipo.4
Não acredito em reinventar a roda, mas me dá prazer usá-la ludicamen-
te. Em outras palavras, pretendo mobilizar os recursos que a exegese e a
teologia construíram e colocá-los sob o crivo do novo objeto-objetivo: o
serviço à vida enquanto expressão de nossa fidelidade ao Deus da vida.
Quer seja uma autoprojeção, quer não (e acredito que não o seja),
vejo Paulo como um exemplo fundante de tal tipo de pensamento prático
e de tal prática de pensamento5. Uma prática que, embora enraizada em
uma particularidade, não se reduziu à mesma, mas alçou voos em busca
de uma universalidade sem pretensões totalizantes, uma pluriversalidade,
como diria Sousa Santos. Como seguidor do Messias Jesus, ele não “saiu”
do Judaísmo, mas extraiu de dentro de si o “judaísmo” como fonte sufi-
ciente de verdade e construção da subjetividade, e o fez em diálogo com
o mundo não judaico de seu tempo. Foi capaz de usar os materiais per-
tencentes aos mundos culturais em que vivia, sem se submeter a nenhum
deles, sem criar um novo sistema coerente ou cosmovisão substitutiva
dessas tradições6. Ele foi capaz de realizar tal proeza porque redirecionou
radicalmente sua vida, sua subjetividade, por assim dizer, em fidelidade ao
Messias Jesus, experimentado por ele como a fidelidade divina e humana

4  Tem sido relativamente comum nos escritos de filósofos da virada do século XX para o XXI
propor uma “nova” filosofia, seja uma “não filosofia”, seja uma filosofia que, enfim, encontra o seu
verdadeiro objeto etc. O resultado dos esforços desses filósofos, porém, não está à altura de suas
declarações totalizantes sobre o seu próprio “que-fazer”. Não pretendo me extraviar nesse tipo
de aventura. O que aqui ofereço seria impossível sem o que aprendi da pesquisa acadêmica e da
vivência eclesial-eclesiástica.
5  De modo similar, Stuhlmacher compreende a teologia paulina como uma teologia missionária:
“[...] a teologia de Paulo deve ser entendida como uma teologia da missão” (STUHLMACHER,
Peter. Biblical Theology of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 2018, p. 273).
6  Podemos dizer que Paulo fez do Judaísmo e do Helenismo vetores para a construção da nova
matriz de fidelidade aprendida do Messias. Nesse ponto, fica evidente minha discordância em
relação ao projeto de N. T. Wright – para ele Paulo cria uma nova cosmovisão – conquanto faça
uso de muito do material reflexivo desse autor.

14
em pessoa. Não mais um Deus a serviço de um povo exclusivo, nem a ser-
viço de uma razão e de um império excludentes, mas um Deus a serviço de
todas as pessoas e de toda a criação – um Deus-escravo. Embora diferente
de João, Paulo pode ser visto como um militante místico. Mística mili-
tante por assim dizer, mas não menos mística – militância jamais aberta
à compreensão plena, militância do mistério, revelado, mas permanente-
mente misterioso.
Consequentemente, uma teologia a serviço da vida. E uma teo-
logia a partir da fé-fidelidade-vivida que se superpõe criticamente à fé-
-pensada-conceitualizada. Em um registro de linguagem mais conhecido
em nosso continente latino-americano, a teologia como ato segundo. E
com essa formulação espero deixar evidente que não desprezo a tradição
acadêmica, nem a tradição confessional. Somente não vivencio (ou tento
não vivenciar) a fé-fidelidade e o pensamento teológico dentro dos limi-
tes rígidos das institucionalizações dessas tradições. Assim, por exemplo,
embora em parte eu pratique uma desconstrução dessas tradições, não
considero a desconstrução como indesconstrutível. Embora eu questione,
analise, critique e reelabore conceitos, considero mais importantes do que
os conceitos a compreensão da “lógica” de viver, a descoberta de novas e
instigantes possibilidades de viver fielmente a Deus, ao Messias, no Espí-
rito. Se reduzirmos essas práticas às suas identidades abstratas: neste livro
não pratico a teologia apenas como um saber-saber, nem apenas como um
saber-fazer, nem apenas como um saber-ser. Trata-se de um saber-saber-
-fazer-viver, o que poderíamos reduzir ainda mais e afirmar, abstratamen-
te, trata-se de saber-viver.
Em função da adesão da teologia ao modo moderno de fazer
ciência, a pesquisa teológica foi abrindo mão do saber-fazer e do saber-
-ser, concentrando-se quase exclusivamente no saber-saber. O saber-fa-
zer, principalmente em função da formação sacerdotal, acaba voltando
ao âmago da teologia, mas, novamente, no modo moderno: do saber de-
duz-se o fazer – a teologia prática está subordinada à teologia. É assim
que mais comumente se lê as cartas de Paulo: na primeira parte delas
encontramos o saber (indicativo), na segunda, o fazer (imperativo) – da
“teologia” deduz-se uma “ética”. Não vejo essa forma de relação em Paulo.

15
Para o apóstolo, trata-se de saber-viver: suas cartas são escritas em respos-
tas a deficiências no saber-viver e essas deficiências não podem ser lidas
como se houvesse uma falta de conhecimento que gerasse uma prática
inadequada. É o caminho da vida que está em jogo – ou vivemos na carne,
ou vivemos no Espírito; ou vivemos como nova criação, ou vivemos como
velha criação; ou vivemos como escravos de Deus, ou como escravos do
pecado; ou somos livres, ou voltamos à escravidão. Não há meio-termo e
o conceito subjacente a esta visão é o da conflitividade: viver no Espírito
ocorre em tensão permanente com o viver na carne (viver como nova cria-
ção ocorre em tensão permanente com o viver como velha criação etc.). A
prática definidora do saber-viver é a pístis, fidelidade (ou fé-fidelidade), se
somos fiéis a Deus vivemos; ao contrário, morremos.7
(2) Leio Paulo porque considero sua vida e seus escritos como
valiosos no ambiente atual de revisão da chamada civilização ocidental e,
com ela, do próprio estatuto da fé cristã no mundo ocidental globalizado.
Algumas teólogas e teólogos cristãos estão fazendo tal autorrevisão, ques-
tionando seu papel no mundo contemporâneo e sua própria identidade
institucional. Boa parte dos “grandes” filósofos e filósofas da virada do
século XX para o XXI são também protagonistas de uma reflexão crítica
sobre o mundo ocidental e sua radical perda de identidade. A contribuição
decisiva de Paulo para nossa participação nesse processo é a de oferecer
caminhos, não só de desconstrução do Ocidente Cristão, mas, acima de
tudo, caminhos para ouvir o clamor do/a Outro/Outra que sofre, a partir
do ouvir o chamado do Messias que atendeu a esse clamor fielmente à sua
própria condição divina, esvaziando-se.
De um modo mais particular e pessoal, considero os textos pau-
linos valiosos na busca por integridade “espiritual” e integralidade da vida
e missão da ’ekklesia8 no Brasil em tempos de globalização. A integridade

7 Fidelidade é essencial aqui na medida em que é termo de uma operação desconstrutiva: o


saber-ver cristão não se define pela ortodoxia, nem pela ortopráxis, nem pela ortoliturgia, nem
pela ortoafetividade. Não se define pela fé-crença, não se define pela fé-obediência, não se define
pela fé-sacramento, não se define pela fé-experiência. A relação de fidelidade, ao mesmo tempo,
engloba e implode todas essas práticas.
8  Usar o termo grego preferido por Paulo para falar do‘“povo messiânico de Deus” permite um
olhar ecumênico para o Cristianismo no Brasil, que transcende as fronteiras institucionais; bem
como um olhar disposto ao diálogo inter-religioso, na medida em que se faz o reconhecimento de

16
espiritual é uma demanda de nosso tempo para as comunidades cristãs, na
medida em que inúmeras propostas de “fé cristã” circulam no mercado de
ideias e práticas religiosas e é difícil avaliar a validade dessas ideias apenas
pelos conteúdos, que são bastante parecidos. A integralidade missional é
exigida pela crescente situação de exclusão a que são submetidas as maio-
rias da população mundial, sofrendo sob o peso do sucesso do capitalis-
mo neoliberal. Por isso, a minha carreira acadêmica jamais se desligou de
minha carreira pastoral (ou militante), tanto em ambientes eclesiásticos,
como em ecumênicos e “seculares”.
Como viver de modo fiel a Deus e como testemunha fielmente
do Evangelho são perguntas que me questionam constantemente e os
textos paulinos, permeados por um questionamento similar, têm sido mi-
nha principal fonte de inspiração na busca infinda de respostas teórico-
-práticas-vivenciais. Busca essa que está indissoluvelmente ligada ao meu
trabalho docente – o diálogo pedagógico é, para mim, o principal espaço
do processo de buscar e oferecer razões desse modo de viver em fidelida-
de. Este livro foi gestado a partir da ministração de disciplinas exegéticas
e teológicas em Faculdades de Teologia e começou a tomar a sua forma
atual na escrita de disciplinas para educação teológica a distância. Por
isso, seu gênero é predominantemente pedagógico. É pedagógico porque
nasceu no ambiente do aprendizado mútuo que ocorre quando o diálogo
pedagógico efetivamente se concretiza. Aprendizado que não se esgota
no tempo-espaço da sala de aula, mas invade todos os espaços da vida e
da ação humana e, de modo especial, diria eu, no espaço da atuação pú-
blica. Pedagógico, enfim, porque efetivamente se propõe a construir novo
conhecimento a partir da práxis no mundo em diálogo com a tradição
eclesiástica e a tradição acadêmica.
(3) Por que Paulo e não os Sinóticos, por exemplo? Cresci, do
ponto de vista eclesiástico, no âmbito da tradição reformada calvinista,
para a qual os escritos de Paulo são particularmente valiosos. Então, não
se trata de valorizar Paulo acima dos demais escritos bíblicos, mas de uma

que a “salvação” não está restrita às instituições cristãs propriamente ditas. Nas teologias latino-
americanas do final do século passado usava-se o conceito do Reino de Deus para expressar essa
atitude “macroecumênica”.

17
contingência biográfica. Por exemplo, ao falar sobre a carta aos Romanos,
Calvino afirmou: “se obtivermos uma verdadeira compreensão desta Epís-
tola, teremos uma porta aberta para os mais profundos tesouros da Es-
critura”9. Nesse sentido, a tradição reformada, em vários momentos, tem
lido toda a Escritura através das lentes de Paulo – o que vale para minha
própria leitura bíblica.
A concentração reformada no tema da aliança dá testemunho
desse modo de ler a Bíblia Hebraica que está presente neste ensaio. A
partir dos escritos de Paulo, Calvino afirmava a existência de uma única
aliança da graça nas Escrituras, apesar de operar em duas administra-
ções distintas, sendo que na antiga administração, Abraão e os israelitas já
criam na promessa – Cristo:

Com estes vaticínios Deus quis que os judeus fossem de tal modo
ensinados que, a fim de buscarem livramento, voltassem os olhos dire-
tamente para Cristo. Nem de fato, por mais que houvessem vergonho-
samente se degenerado, pôde ser obliterada, no entanto, a lembrança
deste princípio geral: que Deus, como prometera a Davi, haveria de ser,
pela mão de Cristo, o libertador da Igreja, e que desse modo haveria
de finalmente ser firme o pacto gracioso pelo qual Deus havia adotado
a seus eleitos.10

Uma das consequências desta compreensão para a leitura de Pau-


lo, por exemplo, é que o problema da relação Lei-Graça não tem a agude-
za presente em outras tradições de leitura: “mas, o evangelho não sucedeu
a toda a lei, a tal ponto que apresentasse um meio diferente de salvação,
senão que, antes, confirmasse e mostrasse ser relevante tudo quanto ela
havia prometido, e desse corpo a seus delineamentos11. Esse trilho de lei-
tura nos permite, ainda, questionar toda e qualquer forma de supersses-

9  CALVINO, João. Commentary on the Epistle to the Romans. Albany: Books for the Ages, 1998,
p. 20. É claro que se deve repudiar uma compreensão desta citação em termos superssessionistas –
quer tal atitude estivesse na intenção do texto, quer não.
10  CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã II.6.4. [(Livro) II. (seção) 6. (parágrafo) 4]. Uso
esta forma de indicação porque ela permite consultar qualquer das versões impressas das Institutas.
Não seria demais lembrar que Loci Communes de Melanchthon se estrutura a partir da carta aos
romanos. Devo notar, aqui, o supercessionismo de Calvino que, obviamente, deve ser evitado.
11  Institutas v. 2, n. 9, p. 4.

18
sionismo cristão, bem como nos obriga a perceber a ausência dessa atitude
em Paulo. Desnecessário lembrar que ler, a partir de uma tradição, não
implica em aceitar acriticamente essa tradição. Por outro lado, ler a partir
de uma tradição específica é, a meu ver, condição inevitável para participar
ecumenicamente da vida pública – tanto nas relações inter-religiosas como
nas relações sociais em sentido amplo12.
(4) O formato do livro e o seu estilo revelam minha militância
no espaço liminar entre pastorado e academia. Não é um livro escrito
exclusivamente para acadêmicos, embora o arsenal da pesquisa acadêmi-
ca tenha sido mobilizado para a sua escrita. Nem é, todavia, um livro de
“popularização” da pesquisa ou de aplicação prática. É, sim, uma espécie
híbrida – um livro para “pensar”, mas também um livro para “sentir e agir”.
Essa opção se deve, em grande medida, ao meu próprio contato com os
escritos paulinos desde o início de minha atividade eclesial e acadêmica.
À luz dos textos paulinos fiz a opção por não escolher entre ação pastoral e
ação acadêmica, mas manter unidas as duas formas de trabalho e vivência.
É claro que essa opção pode provocar questionamentos radicais de ambos
os ambientes e o resultado da pesquisa pode ser considerado como insufi-
cientemente acadêmico ou insuficientemente prático. Por outro lado, pre-
firo pensar que esse tipo de teologia oferece alternativas interessantes tanto
ao academicismo, de um lado, quanto ao imediatismo prático, de outro.
Entendo a ação pastoral-acadêmica como ação pública, de modo
que este livro se coloca a serviço da libertação integral do ser humano, re-
conhecendo Paulo como um dos principais articuladores do sentido ima-
nente da libertação, oferecendo, assim, um conjunto de valores e critérios
para a ação no mundo concreto das relações sociais, sem a necessidade de
apelo a valores sobre-humanos. A fidelidade ao projeto de Deus descrito
por Paulo, modelada pela fidelidade do Messias Jesus, supõe a opção de
Deus pelos que não são (1Co 1,18ss) – de modo que é inevitável que a
Igreja não veja a si mesma como a finalidade da ação messiânica, mas
como um dos meios mediante os quais a libertação integral do Messias

12  Uma releitura de Calvino, que mostra as possibilidades políticas radicais de seu pensamento, é
encontrada, por exemplo, em BOER, Roland. Political Grace: The Revolutionary Theology of John
Calvin. Louisville: Westminster/John Knox Press, 2009.

19
se concretize historicamente na terra. Semelhantemente, a teologia não
pode ver a si mesma como a fonte da verdade sobre o projeto de Deus,
mas como uma das formas de busca incessante do conhecimento de Deus
e seu projeto para a criação.
(5) Neste projeto de leitura, trabalho no espaço interdisciplinar entre
teologia e filosofia, exegese bíblica e ciência – espaço que é comum no am-
biente semiótico. A exegese é aqui entendida como um processo complexo
que engloba não só a compreensão do texto em seu contexto, mas também o
ato da compreensão praticado pelo intérprete e seus resultados. Se a exegese
é uma ciência, ela é uma ciência performativa, não representacional. Aprendi
isso principalmente com o movimento da leitura popular da Bíblia, que veio
reforçar o ambiente pietista de minha experiência da fé cristã. É assim que,
basicamente, vejo o processo hermenêutico: lemos textos a partir de nosso
próprio universo discursivo, ou seja, lemos textos a partir das práticas, insti-
tuições, ideias, valores, conceitos, expectativas que já fazem parte de nossos
conhecimentos pessoais e nossa cultura. Não se trata de partir de um axioma
objetivista: o “significado original” do texto. Trata-se de partir de outro axio-
ma: o diálogo entre textos-sujeitos. O problema é permitir que a ordem dis-
cursiva do tempo da leitura se torne tão predominante no processo de leitura
que confundimos as possibilidades de sentido do texto antigo, em seu mundo
discursivo, com a interpretação por nós feita (o que Foucault chama de “co-
mentário” em sua aula inaugural sobre “A ordem do Discurso”).13
Como prevenir o problema? A exegese precisa abrir mão de sua
soberania e permitir que a relação com os textos seja vital e não meramen-
te interpretativa.14 Seria, enfim, apropriado evocar, aqui, o testemunho de
Emmanuel Lévinas transmitido por Pierre Boretz:
13  Comentário: procedimento que se baseia em um desnível entre texto primeiro e texto segundo,
que, “por um lado, permite construir (e indefinidamente) novos discursos [...] mas, por outro lado,
o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer
enfim o que estava articulado silenciosamente no texto primeiro. [...] O comentário conjura o
acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com
a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado” (FOUCAULT, Michel. A
Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1992, p. 25s, grifos do autor).
14  Na linguagem de Nancy: “sentido se completa em sua interrupção: ele não é completado, ele
não é satisfeito. Sentido é uma insatisfação, um permanente desejo de sentido” (NANCY, Jean-Luc.
“Preamble. In the Midst of the World; or, Why Deconstruct Christianity”. In: ALEXANDROVA,
A.; DEVISCH, I.; KATE, L.; van ROODEN, A. (eds.). Re-treating Religion. Deconstructing
Christianity with Jean-Luc Nancy. New York: Fordham University Press, 2012, p. 2).

20
esfregar o texto para chegar à vida que ele dissimula, como Rava mer-
gulhado em seu estudo esfregava o pé tão forte que o sangue espirrava;
arrancar às palavras os segredos que o tempo e as convenções recobrem
com seus sedimentos a fim de expô-los ao ar livre; fazer sair, enfim, um
pouco de água das passagens de aspecto em geral desérticas, procu-
rando associar uma paisagem bíblica a uma outra para resgatar dessa
dupla germinação o perfume secreto da primeira.15

Essa visão interpretativa já estava parcialmente presente na exe-


gese patrística e medieval, semelhantemente ao modo como os primeiros
Reformadores trataram a Escritura, modo que foi sintetizado na famosa
frase Sola Scriptura – um lema que descreve a atitude de desconstruir a
dogmática institucional a fim de chegar ao significado puro do texto em
seu contexto original16. Essa atitude foi especialmente importante, na me-
dida em que inaugurou uma forma tipicamente moderna de leitura – a
leitura crítica, conforme reconhece Michel Foucault:

em uma época na qual o governo dos homens era essencialmente uma


arte espiritual, ou uma prática essencialmente religiosa ligada à au-
toridade de uma Igreja, ao magistério de uma Escritura; não querer
ser governado de tal modo seria essencialmente buscar nas Escrituras
uma relação outra, que a ligada ao funcionamento do ensinamento de
Deus [...] uma certa maneira de refutar, recusar, limitar (digam como
vocês quiserem) o magistério eclesiástico, seria um retorno às Escri-
turas, seria a questão do que é autêntico nas Escrituras, do que está
efetivamente escrito nas Escrituras, a questão de que espécie de ver-
dade dizem as Escrituras, como ter acesso a esta verdade da Escritura
na Escritura e a despeito, talvez, do escrito, e até chegarmos à questão
finalmente muito simples: as Escrituras são verdadeiras? Diremos que
a crítica é historicamente bíblica.17

15  BOURETZ, Pierre. Testemunhas do Futuro. Filosofia e messianismo. São Paulo: Perspectiva,
p. 1064, 2001.
16  O itálico, neste parágrafo, indica a terminologia usada em textos da polêmica institucional,
a qual, porém, é inadequada para expressar o resultado da atividade hermenêutica. De fato,
deveríamos recuar ainda mais e ver as origens desta exegese performativa na própria Escritura
(Antigo e Novo Testamentos dão exemplos desse tipo de exegese), bem como notar que na
interpretação bíblica pré-Reforma já estavam presentes as raízes da exegese performativa – tanto
nos Pais da Igreja como na exegese medieval e seu sensus plenior.
17  FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung). In: BIROLI, F; ALVAREZ,
M. C. (orgs.). Michel Foucault: Histórias e destinos de um pensamento, Cadernos da F.F.C.

21
Desse modo, o que faço é, em certo sentido, retomar a tradição
pré-moderna de exegese, à luz do que os primeiros reformadores fizeram,
mas a partir de uma outra situação histórica que demanda outra consta-
tação: mesmo a leitura do texto que se pretende autêntica acaba gerando
sua própria deformação do texto e sua identificação com a interpretação.
Ou seja, a crítica protestante baseada na Sola Scriptura tem de ser aplicada
à própria tradição protestante. Nesse sentido, podemos afirmar que a tra-
dição protestante acabou gestando um Paulo protestante moderno, uma te-
ologia paulina que responde a problemas específicos do mundo moderno
visto sob a ótica protestante e que, assim, se distancia do Paulo antigo. É
essa identificação entre o Paulo moderno e o antigo que desejo descons-
truir (pelo menos em parte) em minha pesquisa. Mas pretendo fazê-lo de
modo “herético”, mediante uma exegese performativa da escritura paulina.
(6) Aproveitando a menção à era moderna, minha leitura de
Paulo também procura se caracterizar por um tom não ontoteológico18.
Desde a apropriação neoplatônica de Paulo a partir de Agostinho até a
atualidade, a forma mais comum de interpretar Paulo é aquela que vê no
apóstolo um campeão de um tipo específico de teologia: uma teologia
capaz de explicar o sentido último da realidade mediante conceitos abs-
tratos, em grande medida independentes da corporeidade e historicidade
humanas. Noções como as de pecado original, morte como castigo pelo pecado,
carne enquanto natureza humana pecaminosa, teísmo enquanto a explicação
adequada sobre Deus etc. têm sido determinantes na definição do conjun-
to do pensamento de Paulo como um pensamento metafísico abstratos.
Essa forma de interpretação, porém, está em forte tensão com o projeto da
exegese histórica e vários autores e autoras têm refletido sobre essa tensão
e apontado para a necessidade de superá-la – conquanto tal superação não
esteja plenamente presente na “teologia paulina” em geral. Trata-se, enfim,

Marília: 2000, v. 9, n. 1, p. 171s


18  Esse termo claramente se situa no campo de pensamento ligado a Heidegger e à chamada
virada linguística nas ciências humanas em geral. Nesse campo, vale a pena dedicar atenção à
leitura que o próprio Heidegger fez de cartas paulinas, um componente de sua obra que não
foi devidamente valorizado na filosofia, nem na exegese ou teologia. HEIDEGGER, Martin.
Phänomenologie des religiösen Lebens (edição de Matthias Jung, Thomas Regehly e Claudius Strube).
Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995. Edição em inglês: The Phenomenology of Religious
Life. Bloomington: Indiana University Press, 2004.

22
de reabilitar a alteridade – primeiramente a Alteridade divina, o fato de
que Deus jamais permanece o mesmo em sua divindade; depois, a alteri-
dade da criação, que não se reduz ao humano; enfim, a alteridade da Outra
pessoa que clama com sua face luminosa diante de mim.
Um passo adicional, timidamente presente na pesquisa acadêmi-
ca do hemisfério norte, precisa também ser dado: ir além dos limites dis-
ciplinares da pesquisa “bíblica” e Esse ensaio sobre o pensamento paulino
pretende dar esse passo adicional, de modo que além da tradicional biblio-
grafia exegética e bíblico-teológica, um diálogo multidisciplinar mais am-
plo seja realizado com teólogos sistemáticos, filósofos, antropólogos etc.
Esse diálogo é realizado em um modo terapêutico – não estou interessado
em definir qual sistema de pensamento é o mais apto, nem em me aliar
(ou filiar) a esta ou aquela corrente de pensamento – ou seja, o diálogo é
estabelecido em bases temáticas e não em bases autorais. Usarei conceitos
extraídos desse diálogo como materiais para a edificação de minha leitura
de Paulo, cujos textos fornecerão a estrutura e o design para a construção
de um edifício edificante.
No diálogo temático com esses autores e autoras, a partir dos
textos neotestamentários, considero que o olhar “filosófico” mais adequa-
do não é o da filosofia da identidade, nem o da filosofia da diferença – mas
o da alteridentidade. Por exemplo, em diálogo com pesquisas antropoló-
gicas sobre povos amazônicos, podemos perceber melhor que, em Paulo,
há uma cosmologia humana, mas não antropocêntrica – poderíamos di-
zer, messiânica – uma cosmologia em que a animalidade não é o outro do
humano, mas o outro do humano é o não messiânico; uma cosmologia
em que natureza e cultura não são antagônicos, mas humanizadas de tal
forma que a natureza é culturalizada e a cultura naturalizada. Da mesma
forma, poderemos perceber que o conceito de Deus em Paulo não é for-
mado a partir da negação radical do humano e da afirmação radical da
transcendência, mas, sim, a partir de uma transimanência mediante a qual
o criado não é o oposto do divino, mas o divino subtraído de sua peculiari-
dade. Seria o pensamento a partir do Um, mas não do Uno; o pensamento
da diversidade na unidade (como o ser divino, como o corpo de Cristo na
metáfora paulina). A unidade divina não é a unidade da identidade, mas a

23
da multiplicidade, não se trata de um simples 1, mas do 1 como resultado
de uma operação do tipo “1 x 1 x1 = 1” ou, de modo ainda mais interes-
sante, uma operação do tipo “1 + 1 + 1 = 1”.
(7) Se fosse nomear o tipo de pensamento que encontro em Pau-
lo, usaria o termo sabedoria, para distingui-lo tanto da “filosofia”19 quanto
da “teologia” enquanto disciplinas especializadas ocidentais.20 No cam-
po da disciplina teológica cristã, considero a obra de Juan Luis Segundo
como a tentativa mais bem elaborada de ir além dos limites disciplinares
modernos na leitura de Paulo, o que pode, em parte, ser percebido em seu
título da análise de Romanos 1-8: cristologia humanista. Vejo, então, Pau-
lo, não como um defensor de Deus cuja honra foi manchada pelo pecado
humano, mas um defensor do ser humano, cuja vida divinamente doada
não pode ser vivida plenamente sem uma nova subjetividade constituída a
partir da fidelidade. Diante do estatuto disciplinar de Teologia e Filosofia
na atualidade, Paulo não é nem teólogo, nem filósofo, embora os seja. Ao
mesmo tempo em que se pode dizer dele, com Badiou, por exemplo, que
é o antifilósofo; por outro se pode dizer, à luz de Henry, que é o filósofo
por excelência. Esse paradoxo vale igualmente para a descrição de Paulo
como teólogo. É um sábio judeu-helênico híbrido – oriente e ocidente anti-
gos nele se encontram em um diálogo tenso e inacabado. Talvez seja, por
isso mesmo, uma figura nova de teólogo-filósofo.
O seu tipo de sabedoria não se ocupa do sentido do ser, ou das
possibilidades do conhecer, mas do viver humanamente, ou, em outro regis-
tro, das diferentes subjetivações do parecer em sua concretude histórica.
E mais: o seu saber – a sua epistemologia – é de outro tipo: “Ὥστε ἡμεῖς
ἀπὸ τοῦ νῦν οὐδένα οἴδαμεν κατὰ σάρκα· εἰ καὶ ἐγνώκαμεν κατὰ σάρκα

19  Ainda que, conforme salienta Pierre Hadot, a filosofia antiga possa ser caracterizada como
uma efetiva sabedoria prática. Mesmo assim, o caminho do pensamento paulino não segue a
lógica do pensamento filosófico grego de sua época. Essa definição do pensamento paulino como
sabedoria reafirma a sua classificação como um pragmatista avant-la-lettre.
20  Laruelle sintetiza o que, a meu ver, é uma válida crítica ao projeto da exegese/teologia bíblica
moderna: “o plano de salvação teológico dominante, a obra de Deus e a base do ‘Cristianismo’, toma
emprestadas suas definições essenciais e fundamentos filosóficos da ontologia grega. Nesse aspecto,
cristologia é um concentrado daqueles preconceitos filosóficos gregos dos quais devemos extrair o
seu núcleo – um núcleo que, por falta de termo melhor, chamaremos de ‘crístico’”. LARUELLE,
François. Christo-fiction, the ruins of Athens and Jerusalem. New York: Columbia University Press,
2015, p. 1.

24
Χριστόν, ἀλλὰ νῦν οὐκέτι γινώσκομεν” (De modo que nós, de agora em
diante, não conhecemos nada segundo a carne; ainda que antes tenhamos
conhecido o Messias segundo a carne, agora, ao contrário, já não mais o
conhecemos segundo a carne” (2Co 5,16). Por quê? Porque “ὥστε εἴ τις ἐν
Χριστῷ, καινὴ κτίσις· τὰ ἀρχαῖα παρῆλθεν, ἰδοὺ γέγονεν καινά·” (uma
vez que alguém está no Messias, está na nova criação; as coisas antigas
se passaram, eis que se fizeram novas”. Conhecer a Jesus como o Mes-
sias-Deus só é possível para quem não mais está “neste mundo” (nessa
criação), para quem está no Messias, o que equivale a estar e um “outro
mundo” (nova criação).
Não apenas “um outro mundo possível”, construído neste mun-
do; mas um outro mundo impossível, não construído por carne e sangue,
mas manifestado pelo próprio Deus que se esvaziou e se tornou um de
nós. Não se trata da possibilidade do impossível (utopia), mas da impos-
sibilidade do possível. Eis a radicalidade do modo de pensar de Paulo,
radicalidade que só poderemos começar a alcançar se nos aventurarmos
a uma “nova teologia” – a uma nova “poética” do Messias. Consequente-
mente, deveríamos ver em Paulo uma espécie híbrida de fenomenólogo-
-antropólogo, arqueólogo-desconstrutivista, teólogo-poeta resultando em
um militante da impossível subjetividade fiel messiânica. Em sua sabe-
doria messiânica, torah e nomos, dabar e logos, hochmah e sophia se encon-
tram e articulam de modos incomuns e inesperados – modos de um outro
mundo impossível, modos de uma outra desordem do discurso.21
(8) Enfim, a pergunta motriz primária para a escrita deste livro
é sobre a fidelidade (de Deus, a Deus; do Messias, ao Messias) como
matriz de uma nova subjetividade22 humana, fiel a Deus e ao seu pro-

21  Vejo no pensamento de Boaventura de Sousa Santos uma construção epistemológica similar à
de Paulo. O primeiro livro de Boaventura que me encantou para o caminho de uma epistemologia
da resistência foi A Crítica da Razão Indolente. Contra o desperdício da experiência. Para um novo
senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2000.
O percurso em busca dessa nova epistemologia recebeu seu coroamento com a obra SANTOS,
Boaventura de Sousa. The end of the cognitive empire: The coming of age of epistemologies of the
South. Durham: Duke University Press, 2018.
22  Pergunta que Kierkegaard formulou e respondeu com sua peculiar junção de teologia e filosofia
em praticamente toda a sua obra, especialmente em Desespero e Ejercitación del Cristianismo. O
seguinte testemunho de Derrida também pode ser aduzido: “Mas é a Kierkegaard a quem tenho
sido mais fiel e quem me interessa bastante: existência absoluta, o sentido que ele dá à palavra

25
pósito para a sua criação. Como ser sujeito fiel no século XXI? Pergunta
cuja resposta somente pode ser efetivamente encontrada no regime da
impossibilidade, da invisibilidade. A partir de Agostinho, reforçado pela
Reforma Protestante,23 Paulo tornou-se, predominantemente, o cam-
peão da resposta à pergunta tipicamente moderna da felicidade do in-
divíduo, em sua roupagem religiosa da salvação: como posso reconhecer
que estou salvo diante de Deus se sou um pecador atormentado pela
culpa? Focando a interpretação sobre a questão do indivíduo, a exegese
paulina protestante passou a enfrentar uma série de aporias típicas do
mundo moderno, todas centradas na questão da relação entre o indivi-
dual e o coletivo, o secular e o sagrado.24 Assim, por exemplo, é evidente
o caráter moderno da disputa entre a justificação e a participação em
Cristo como o centro do pensamento paulino. Da mesma forma, fica
delineada a origem da dificuldade de trabalhar as questões éticas e po-
líticas em Paulo – centrada no indivíduo e sua salvação, a interpretação
não desenvolve ferramentas adequadas para lidar com os aspectos éticos
da vida das comunidades e da relação política entre as comunidades e a
sociedade mais ampla. Desconstrução é necessária.
Todavia, há que se reconhecer que a pergunta “moderna” sobre
a salvação do indivíduo não é totalmente alheia aos escritos de Paulo,
embora não podendo ser entendida do modo como costumeiramente
o é, pelo menos desde Agostinho: a pergunta pelo indivíduo como um
“eu” vazio que busca desesperadamente ser completado pela presença
de Deus – e, no mundo moderno – pela presença de si mesmo. Ela
deve ser reformulada como uma pergunta sobre a nova subjetividade
que pode transcender a questão, finalmente moderna, de um ser que está
“no-mundo” (Da-sein). Michel Foucault percebe que todas essas lutas
modernas são lutas por subjetividade:

subjetividade, a resistência da existência ao conceito ou ao sistema [...]” (DERRIDA, Jacques;


FERRARIS, Maurizio. A Taste for the Secret. Cambridge: Polity Press, 2001, p. 40).
23  A “interiorização” da teologia paulina pode ser traçada pelo menos até Santo Agostinho,
conforme concorda a maioria dos intérpretes de Paulo e da tradição teológica a ele vinculada.
24  O exemplo mais significativo dos problemas desta abordagem é a interpretação da segunda
parte de Romanos 7, marcada por polêmicas quase que intermináveis sobre o sentido do “eu” que
fala nessa perícope. Neste ensaio, com vistas a resolver – pelo menos parcialmente – esta aporia,
trilho em caminhos abertos por Kierkegaard, Foucault e Henry.

26
Eu suponho que não é a primeira vez que a nossa sociedade se con-
frontou com este tipo de luta. Todos aqueles movimentos dos séculos
XV e XVI, e que tiveram a Reforma como expressão e resultado má-
ximos, poderiam ser analisados como uma grande crise da experiência
ocidental da subjetividade, e como uma revolta contra o tipo de poder
religioso e moral que deu forma, na Idade Média, a esta subjetividade.
A necessidade de ter uma participação direta na vida espiritual, no
trabalho de salvação, na verdade que repousa nas Escrituras – tudo isso
foi uma luta por uma nova subjetividade.25

Mesmo Foucault, porém, entende a luta pela nova subjetivida-


de como uma luta ativa, tipicamente “moderna, de modo tal que a noção
de nova subjetividade acaba perdendo sua força crítica, sua capacidade de
engendrar, de fato, uma nova subjetividade. Nestas primeiras décadas do
século XXI, a “nova” subjetividade (que não é nada além da mais velha e
caduca subjetividade existente) predominante é consumista, egocêntrica,
indiferente, tecnocentrada, sem passado e sem futuro. Perdemos a vivência
da solidariedade, e buscamos refazê-la de “n” modos distintos. Perdemos
a capacidade de construir o sagrado, e aparentemente entramos em uma
era pós-secular. Ainda não resolvemos o dilema de se nossos direitos são
individuais ou comunais. Em uma palavra, ainda pensamos e praticamos
a subjetividade na ilusão transcendental – apesar de afirmarmos cada vez
mais fortemente que somos seres naturais, ainda pensamos e vivemos como
“eus transcendentais”, mas uma transcendência reduzida a uma interiori-
dade, a uma consciência incapaz de conhecer a si mesma. Por isso, neste
ensaio, priorizarei a compreensão formal da subjetividade desenvolvida por
Alain Badiou, na medida em que ela nos permite pensar o tema fora dos
limites tipicamente modernos da questão do sujeito. Porém, a leitura da te-
oria formal do sujeito de Badiou é feita a partir dos escritos paulinos, e não
vice-versa. Não se trata de ler Paulo a partir de Badiou, mas de ler Badiou
a partir de Paulo e sua concepção do sujeito ou da subjetividade fiel. A im-
portância da teoria de Badiou reside em sua articulação entre subjetividade,
verdade e corpo – três categorias presentes nos escritos paulinos.26
25  Idem, p. 172.
26  No campo dos estudos bíblicos, as referências a Badiou se resumem a seu livro sobre Paulo:
Saint Paul: La Fondation de l’universalisme. Paris: PUF, 1998. Esta interpretação de Paulo foi feita

27
O desafio de uma nova subjetividade que não se perca nos ex-
tremos opostos do individualismo e do comunitarismo, do secular e do
sagrado, do consumo ou da partilha – ou seja, uma subjetividade não ensi-
mesmada, é prioritário em Paulo que, ao afirmar de modo absolutamente
radical em sua carta aos gálatas: “já não sou eu quem vivo, mas o Messias
vive em mim”! Esse desafio da subjetividade está na própria essência do
Cristianismo, reconhecido também por Jean-Luc Nancy: “meu questio-
namento é orientado por este motivo da essência do Cristianismo en-
quanto abertura: uma abertura do self e do self como abertura”.27
A nova subjetividade na teologia paulina deve ser buscada, pri-
mariamente, em sua descrição da fidelidade messiânica. A fidelidade do
Messias é expressão da fidelidade de Deus à sua criação e convite para a fi-
delidade humana a Deus no Messias, sob a direção e presença do Espírito
Santo – além de ser a própria fidelidade do Messias a Deus e a si mesmo
no Espírito. Por que a fidelidade e não a justificação a salvação etc.? Exa-
tamente porque em nosso mundo a fidelidade está ausente e sua ausência
é uma das marcas da escravidão sistêmica a que estamos submetidos e que
nos incapacita a amar como o Messias amou. Segundo Vilém Flusser:

Essa é a razão pela qual a maioria de nós nem sequer se ressente da


falta de liberdade. A pequena minoria, que sofre com a consciência
do absurdo do jogo social, inventou um substituto para a fidelidade,
chamado ‘compromisso’, que pode proporcionar uma sensação de li-
berdade. Essa minoria reconhece que a liberdade é o gesto de assumir
responsabilidades, e que essa é a única estratégia que confere sentido
ao jogo social. Assim como a fidelidade, o compromisso assume res-
ponsabilidades; sacrifica a disponibilidade e a mobilidade social em
favor de uma relação específica. Mas há uma profunda diferença entre
a fidelidade e o compromisso. [Este último] é baseado na decisão de-
liberada, [enquanto] a fidelidade [baseia-se] na espontaneidade. Nin-

à base da ontologia desenvolvida por Badiou em L’Ètre et L’événement. Paris: Du Seuil, 1988.
Entrementes, Badiou atualizou e reconfigurou sua ontologia em Logiques des Mondes. L’Être et
l’événement, 2. Paris: Du Seuil, 2006. Desta forma, a utilização de conceitos de Badiou feita neste
ensaio leva em conta essa reconfiguração que, em alguns aspectos importantes, modificaria a
interpretação de Paulo pelo filósofo da ontologia matemática.
27  NANCY, Jean-Luc. Dis-enclosure. The Deconstruction of Christianity. New York: Fordham
University Press, 2008, p. 145 (original francês de 2005).

28
guém decide ser fiel: a fidelidade é mantida. Em termos arcaicos, con-
venientes ao assunto: o compromisso é a fidelidade sem amor. Assim,
a substituição da fidelidade pelo compromisso (ou engajamento) é um
sintoma não apenas de nossa incapacidade para a liberdade existencial,
mas acima de tudo, de nossa incapacidade para o amor.28

A pergunta contemporânea encontra ressonância em Paulo, para


quem a fidelidade é traço distintivo de Deus e seu Messias, seguindo a
tradição veterotestamentária. Consequentemente, por fidelidade não po-
demos supor apenas a relação afetiva entre duas pessoas, mas nela estão
presentes todas as dimensões da vida humana: religiosa, política, econô-
mica, social etc. A resposta paulina se reveste de uma radicalidade que
a própria pergunta é incapaz de antever. Ao sujeito fiel Paulo outorga
um título, um honorífico que, em última instância, é o nome dessa nova
subjetividade: escravo (doulos). Precisamente onde vemos o não-ser, o não-
-sujeito, aí é que o ser-sujeito se nos dá, se nos advém como dádiva pura
e perfeita: “Deus escolheu as coisas que não são...”. Este ensaio dedica-se
a uma compreensão abrangente da fidelidade nos escritos paulinos. Suas
diferentes seções, suas múltiplas temáticas, suas diversas fontes textuais,
todas buscam sua coerência na compreensão da subjetividade fiel enquan-
to impossibilidade que se realiza sem realizar-se e invisibilidade que se
visibiliza sem se tornar visível.29
Enfim, não se trata de uma teologia “histórica” no sentido já tra-
dicional da teologia “bíblica” na academia30. Meu objetivo não é reproduzir
o que “Paulo efetivamente pensava”, a ipsissima vox Pauli, mas, sim, apre-
sentar a minha teologia paulina, ou seja, o modo como tenho sido exis-
tencialmente afetado pelos escritos de Paulo – sem abrir mão, porém, de
ser afetado “por Paulo” e não por uma “invenção” particular de Paulo. Para

28  FLUSSER, Vilém. Pós-História. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p. 155.
29  Podemos concordar com Michel Henry em sua afirmação de que, “com respeito a tudo o que
concerne ao eu e aos problemas ligados a ele, a filosofia não sabe nada. [...] Este saber, é a Vida que
o detém, e somente ela. No plano do pensamento, é paradoxalmente o cristianismo que o traz”.
(HENRY, Michel. Eu sou a verdade. Por uma filosofia do Cristianismo. São Paulo: É realizações,
2015, p. 192-193).
30  O trabalho “histórico” da teologia bíblico tem sido realizado magistralmente na pesquisa
acadêmica, de que as sínteses historicamente estruturadas da teologia paulina de Wright e Schnelle,
entre outras, são exemplos de alta qualidade.

29
brincar com termos da pesquisa linguística, é uma teologia dialogal e poli-
fônica – na qual as vozes de Paulo, de Júlio Paulo, de Marias, Joões, Johns,
Alains, Jacques, Jeans, Juans, Elzas se unem na inquietante busca de ouvir
e de fazer ouvir a voz única-plural do Pai, do Filho e do Espírito Santo. É,
assim, e enfim, uma teologia “teológica” (com o perdão pela redundância),
ou seja, uma reflexão sobre as noções, conceitos e categorias teológicas do
pensamento paulino, não apenas uma descrição dos conteúdos teológicos
presentes na “superfície” de seus textos. É um questionamento sobre as
bases epistêmicas e conceituais que permitem a Paulo dizer o que ele diz,
escrever o que ele escreve e agir como ele age.
Consequentemente, esta obra apresenta a teologia “paulina” a par-
tir das treze cartas neotestamentárias que compõem o corpus paulinum e não
apenas a partir das sete costumeiramente entendidas como “autênticas” – ou
seja é uma teologia “paulina”, não no sentido em que é a teologia exclusiva
do apóstolo Paulo, mas no sentido de ser uma teologia do Paulo canônico –
que é mais do que a pessoa física do apóstolo. O diálogo sobre o pensamen-
to do apóstolo Paulo já está manifesto na seleção canônica que apresenta
não só algumas das cartas do próprio apóstolo, mas também algumas da
chamada “escola” paulina. A discussão sobre a autoria das cartas paulinas
permanece viva na pesquisa, bem como a discussão sobre a sua cronologia,
e no tratamento de cada carta será perceptível que, embora eu adote a lista
canônica, não deixo de levar em consideração a discussão crítica relativa à
data, autoria e composição das cartas.31 Parte das dificuldades deste tipo
de pergunta jaz nos próprios escritos paulinos – são “escritos de ocasião”,
determinados não apenas pelo “pensamento” do autor, mas, e eu diria, prin-
cipalmente, pela interação dos destinatários com Paulo. Outra parcela de
dificuldades reside na noção pré-consciente que temos do “autor” Paulo – a
busca de uma coerência, quase uma coesão, conceitual e terminológica em
seus escritos (a partir da qual, posteriormente, se define quais cartas pode-
riam ter sido escritas por ele e quais não o poderiam) vê Paulo muito mais

31  Pessoalmente, considero que 2 Tessalonicenses, Colossenses e Efésios fazem parte dos
escritos do próprio Paulo (N. T. Wright considera estas três cartas como de autoria paulina e Peter
Stuhlmacher sustenta que Colossenses e 2 Tessalonicenses podem ser de Paulo) e que a atribuição
das Pastorais à escola paulina, embora embasada em fortes argumentos, e seja aqui aceita, ainda
não está absolutamente comprovada.

30
como um intelectual moderno do que como um militante místico judeu
pré-moderno. Vejo uma coerência em seus escritos, mas não uma coerência
sistêmica, e sim uma coerência de projeto de vida – uma coerência que en-
globa variações conceituais, variações éticas, variações culturais.
É evidente, por exemplo, que mesmo entre as chamadas “cartas
autênticas” de Paulo há uma variação terminológica e conceitual significa-
tiva. Por exemplo: ao compararmos o vocabulário e temática de 1 Coríntios
com Romanos e Gálatas, constatamos que enquanto nas duas últimas Pau-
lo considera significativa a noção de “justificação”, em 1 Coríntios ela não
possui qualquer relevância, mencionada apenas sem qualquer reflexão. Por
outro lado, o tema da “sabedoria”, que é crucial em 1 Coríntios, não possui
qualquer relevância nas cartas aos romanos e gálatas – isso sem contar as
variações entre Gálatas e Romanos no tocante à descrição do papel da “lei”.
Devemos acrescentar às variações conceituais, os conflitos éticos e culturais
do próprio apóstolo. Um exemplo significativo é o modo como Paulo te-
matiza a “mulher” em seus escritos. 1 Coríntios 11 certamente está em forte
tensão com as afirmações de que no Messias “não há homem e mulher”,
assim como a parênese doméstica de Efésios e Colossenses também está em
tensão com essas afirmações de igualdade. Paulo era um judeu mediterrâneo
do primeiro século, nascido e criado em um ambiente patriarcal, treinado
teologicamente em um ambiente de rigidez e fundamentalismo. Após sua
“conversão” ao novo mundo da fidelidade messiânica, não deixou de conti-
nuar a ser “Saul”, sempre incomodamente presente em “Paulo”.
Em poucas palavras: esta Teologia Paulina é a interpretação do
pensamento de um ser humano extraordinariamente comum com todas
as possibilidades e limitações de qualquer ser humano.

Percursos para esta Teologia Paulina

A teologia que apresento nestas páginas é a busca de uma ex-


posição deste projeto. Exposição, porém, que não seria possível sem uma
tradição interpretativa de Paulo – embora seja, também, e principalmente,
a experiência de um questionamento da tradição a partir de sua própria
conflitividade e pluralidade. Antes, portanto, de iniciar minha reflexão so-

31
bre a teologia paulina, é necessário apontar os principais débitos acadêmi-
cos deste empreendimento. Faço isso sem oferecer um status questionis ou
uma história da interpretação recente de Paulo. Apenas aponto as prin-
cipais tendências exegético-teológicas do século XX-XXI às quais tenho
tratado como vetores formativos em minha própria leitura de Paulo e que
tenho incorporado de modo indisciplinar, mas não indisciplinado.
(a) a tendência etno-identitária de leitura de Paulo, mais conhe-
cida como “nova perspectiva sobre Paulo” – já não mais tão nova assim –,
em sua versão constituída a partir dos anos 1970 por autores como Krister
Stendahl, Edward Sanders, James Dunn, N. T. Wright etc. e seus críticos
e revisores como, e.g., Stephen Westerholm, Douglas Campbell e outros;
(b) a tendência apocalíptica, iniciada em fins do século XIX com
Johaness Weiss e Wilhelm Bousset, revivida na segunda metade do século
XX por autores como Ernst Käsemann; J. C. Beker; John Louys Martin etc.;
(c) as leituras sociológicas e socioantropológicas de Paulo, desde
os esforços pioneiros de John G. Gager, Gerd Theissen e Wayne Meeks
nos anos 1970-1980, até a multiplicidade quase infinita de autoras e auto-
res neste campo da pesquisa;
(d) as tendências retórica e epistolar, com nomes-chave como
Hans Dieter Betz, Abraham Malherbe e Troels Engberg-Pedersen (estes
dois últimos também introduziram a relação com a filosofia grega no cerne
da interpretação dos textos bíblicos), Stanley Porter e outras(os) autoras(es)
contemporâneas(os) – com destaque para a discussão se as cartas de Paulo
são, do ponto de vista do gênero, efetivamente “cartas” ou obras “retóricas”;
(e) as leituras políticas e/ou anti-imperialistas, tanto em suas
vertentes propriamente teológicas (Norman K. Gottwald, Richard Hor-
sley etc.), como nas vertentes filosóficas (Nietzsche, Jacob Taubes, Alain
Badiou, Giorgio Agamben etc.) e nas interpretações teológicas feitas em
diálogo com esses filósofos (Theodore Jennings, Brigitte Kahl etc.);
(f ) as leituras pós-coloniais, com R. S. Sugirtharajah, Fernando
Segovia, Mary Ann Tolbert e outros; ou as descoloniais e/ou intercultu-
rais de Hans de Witt, Walter Mignolo e outros;
(g) as leituras feministas em suas diferentes versões e projetos,
com destaque para autoras como Elizabeth S. Fiorenza, Ivoni Raimer,
Elsa Tamez e tantas outras;

32
(h) as propostas filosóficas “pós-metafísicas”, “pós-estruturalis-
tas” e “neo-fenomenológicas” que se ocupam da reinterpretação da identi-
dade ocidental, especialmente as vinculadas aos projetos de, entre outras,
Jürgen Habermas, Charles Taylor, Gianni Vattimo, Jacques Derrida, Jean-
-Luc Nancy, John Caputo, Michel Henry, Alain Badiou, Hannah Arendt,
Gilles Deleuze, Rahel Jaeggi, Rainer Forst e Axel Honneth;
(i) há várias e importantes “teologias paulinas” com as quais este
ensaio dialoga, dentre as mais recentes destaco as densas obras de teologia
histórico-crítica de James D. G. Dunn, N. T. Wright, Peter Stuhlmacher,
Udo Schnelle, Joseph Fitzmyer e Frank Matera, representativas não só de
duas grandes tradições “linguageiras” de pesquisa (inglesa e alemã), mas
também de duas grandes tradições “eclesiásticas” de pesquisa (protestante
e católico-romana);
(j) as recentes discussões sobre a hermenêutica do apóstolo Pau-
lo, como seu modo de ler as Escrituras, tema que tem sido reativado por
várias pesquisadoras e pesquisadores, dentre os quais Richard Hays e
Francis Watson são especialmente representativos do conjunto;32
(k) discussões sobre as relações da teologia paulina com o mun-
do sociocultural greco-romano, que não chegam a formar uma “corrente
interpretativa”, mas se caracterizam pela ênfase na discussão sobre temas
como o patronato, o dom, a honra etc., com diferentes autores e perspec-
tivas, tais como Bruce Malina, John Barclay, Stephan Joubert e outras;
(l) a pesquisa brasileira sobre as origens do Cristianismo a partir
de enfoques como a história cultural e o estudo da linguagem religiosa,
no trabalho de colegas como André Chevitarese, Monica Selvatici, Paulo
Nogueira. Destaque aqui deve ser dado à inclusão da semiótica cultural e
da semiótica do discurso como eixos metodológicos inovadores;
(m) como o principal lugar a partir do qual pratico a teologia,
as leituras “latino-americanas” ligadas, seja à Teologia da Libertação, seja
à Missão Integral. Em especial, no caso da leitura específica de Paulo,
nomes como Juan Luis Segundo, Elsa Tamez, Nestor Míguez Bonino,
Enrique Dussel e Franz Hinkelammert são os que ressoam mais audivel-

32  Subjacente a estas várias discussões está a questão da identidade apostólica de Paulo e sua
visão da missão e suas relações com a comunidade de Antioquia e com as ‘colunas’ em Jerusalém.

33
mente, como porta-vozes de uma busca espiritual, intelectual e política de
comunidades cristãs em nosso continente.
Em síntese: a pesquisa sobre Paulo na atualidade se debruça
principalmente sobre os seguintes problemas, dando aos mesmos dife-
rentes soluções: (a) quem é Paulo: judeu, cristão ou judeu-cristão? E há
diferentes formas de definir cada uma dessas descrições da identidade
paulina; (b) qual é a relação entre lei e graça: complementar, antagônica
ou outra forma? E há, mais uma vez, diferentes formas de definir cada po-
sição adotada; (c) que tipo de apocalipsista era Paulo: literalista, místico,
inovador? Igualmente com diferentes respostas para cada opção; (d) que
relação tinha Paulo com o Império (e isso vale para questões de gênero,
raça etc.): indiferente, conservadora, opositora? E diferentes formas de
definir cada uma dessas atitudes; (e) que tipo de universalista era Pau-
lo? Inclusivo, excludente, peculiar? Mais uma vez, diferentes formas de
definir cada tipo de universalismo paulino; (f ) como construir uma “te-
ologia paulina” propriamente dita – cronologicamente, conceitualmente,
sistematicamente, seguindo a sequência das cartas etc.; (g) de fato, que
tipo de teologia é a presente nas cartas de Paulo? É uma teologia herme-
nêutico-exegética, prático-pastoral, missiológico-apologética? A essas e
outras questões pretende-se oferecer uma resposta a mais no conjunto das
respostas ora existentes.
Se é necessário ‘‘classificar’’ este ensaio, ofereço a seguinte des-
crição: vejo Paulo como judeu seguidor do Messias Jesus (posto que não
havendo ainda “Cristianismo”, Paulo jamais poderia ter sido “cristão”), sua
teologia é uma teologia multidimensional, cujo eixo é a apresentação do
“projeto divino” para as comunidades eclesiais e sua justificação exegética
e argumentativa. Para Paulo, não há um “problema lei versus graça”, mas
uma compreensão da lei como expressão da graça – compreensão esta
que é “judaica”, ou, melhor, bíblica, ou seja, presente na Bíblia de Pau-
lo –, tal “problema” existia para os adversários de Paulo – especialmente
nas cartas aos Gálatas e Romanos. Paulo era um apocalipsista inovador,
rearticulando a noção apocalíptica do tempo de tal modo que subordi-
nou o elemento cronológico ao elemento transformador da ação do Mes-
sias. Paulo se opunha radicalmente contra todas as formas de dominação,

34
opressão e classificação excludente dos seres humanos, mantendo uma
atitude contextual e “realista” a respeito das táticas e estratégias concretas
para enfrentá-las. Paulo era um judeu “universalizante” que visava a in-
clusão de todas as identidades possíveis nas comunidades de seguidores
do Messias Jesus, subordinando-as todas, porém, à identidade messiânica
de Jesus. Sua teologia e sua leitura da Escritura se constituíam mediante
um diálogo crítico, a partir do Messias Jesus, com a própria Escritura,
a interpretação judaica da Escritura em sua diversidade, a interpretação
messiânica pré-paulina e as noções de vida presentes no mundo gentílico.
Não uma “história da pesquisa”, que demandaria muito mais espa-
ço do que este livro possibilitaria, esta breve descrição é apenas um pequeno
guia que permitirá a você, leitora ou leitor, situar, classificar ou categorizar
o tipo de teologia paulina que aqui lhe proponho. Lembrando, enfim, que
não são essas correntes de pensamento que sustentam este projeto, mas a
incessante busca de viver em fé-fidelidade messiânica. Nesse sentido, essa
teologia paulina não é, propriamente dita, uma expressão da ciência, mas
é a busca de um novo senso comum (nos termos de Jürgen Habermas e
Boaventura de Souza Santos), que não se apresenta como a verdadeira in-
terpretação de Paulo, mas como uma voz composta de muitas vozes, espe-
cialmente aquelas que têm sido banidas da verdade definida em termos do
discurso científico. Uma voz que, como a paulina, deve ver a si mesma como
coconstrutora do futuro melhor que desejamos, sobre o qual ainda não te-
mos nenhum controle, mas construímos em esperança e fidelidade.

A estrutura da obra

A estruturação de uma “teologia paulina” é sempre desafiadora.


Várias formas de estrutura têm sido utilizadas. Por exemplo: Bultmann
usa uma estrutura temática baseada em sua leitura de Romanos, apresen-
tando duas grandes seções: o ser humano antes da revelação da pistis e o
ser humano sob a pistis.
Dunn usa uma estrutura temática similar à das teologias sistemáti-
cas modernas e a justifica a partir de sua aprovação da tese de Becker sobre a

35
coerência do pensamento de Paulo e seu objetivo de formular uma teologia
não meramente histórica, mas útil para a realidade atual.
Wright usa uma estrutura predominantemente histórico-contextu-
al: na primeira parte de seu livro expõe o mundo do apóstolo; na segunda, a
“mentalidade” do apóstolo; na terceira parte, a teologia do apóstolo; e na parte
quatro “Paulo na história”. A terceira parte, por sua vez, é estruturada a partir
dos três “eixos” da teologia de Paulo: monoteísmo, eleição, escatologia.
Schnelle usa uma estrutura histórico-cronológica seguida de uma te-
mática: a “parte principal” trata da vida e pensamento de Paulo, iniciando com
a “vida” do apóstolo, seguida pelo “pensamento” do apóstolo na sequência cro-
nológica de suas cartas. A segunda parte do livro recebe o título “pensamento
paulino” e segue uma estrutura temática similar à das teologias sistemáticas.
Thomas Schreiner organiza sua teologia paulina a partir de um cen-
tro “a glória de Deus”, com os capítulos seguindo as temáticas da teologia
sistemática protestante reorganizadas a partir do tema da missão. Enquanto
Fitzmyer usa uma estrutura mista: primeiro, um parte histórica e segundo,
uma parte temática seguindo as linhas da dogmática.
Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas essa amostragem
basta para indicar meu ponto: não há consenso sobre como estruturar
uma “teologia paulina”. Consequentemente, não considero a estrutura que
me proponho a seguir como “a” estrutura que deve ser seguida, mas como
uma estrutura que busca:
(a) levar a sério a contextualidade dos escritos de Paulo em seu
mundo do primeiro século da era comum;
(b) dar conta do gênero textual em que a teologia paulina é ex-
pressa: cartas;
(c) não considerar a existência de um centro intencionado pelo
apóstolo, mas mostrar uma linha de coerência do pensamento paulino na
multiplicidade textual-conceitual de seus escritos, e
(d) procurar apresentar o impacto do projeto paulino para a nos-
sa realidade contemporânea, a partir do lugar periférico desta leitura.
Destarte, a estrutura da obra apresenta:
(a) o eixo de coerência é o tema da fidelidade – de Deus, do
Messias, do Espírito e, consequentemente, do ser humano a Deus em sua
identidade unidiferenciada;

36
(b) a ordem dos capítulos segue uma lógica temática de pa-
ralelismo, buscando representar o modo de pensar de um judeu do
primeiro século.
Cada capítulo, por sua vez, é organizado da seguinte maneira:
(a) a exposição exegética de uma (ou mais) carta(s) paulina(s) a
partir do eixo teológico-argumentativo dessa(s) carta(s)33; e
(b) uma reflexão teológica temática, buscando sintetizar o pen-
samento paulino sobre um tema específico – que é importante na carta
que inicia o capítulo – no conjunto de suas cartas. Essa reflexão temática,
para ser o mais fiel possível aos escritos paulinos, é estruturada em quatro
partes: a primeira é a problematização do tema a partir da nossa realidade
atual e do modo como o tema tem sido exposto academicamente, a segun-
da é uma descrição discursiva do tema a partir de textos seletos do apósto-
lo, a terceira constitui-se como uma análise da narrativização do tema pelo
apóstolo (ou seja, sua visão sócio-política do tema), e a quarta oferece uma
síntese conceitual que busca explicitar a conceituação abstrata subjacente
aos textos predominantemente figurativos do apóstolo.
Sigo, aqui, a lógica da semiótica greimasiana que vê o sentido
como o resultado de um percurso que vai do mais abstrato ao mais con-
creto e possui dois planos complementares: o plano do conteúdo e o plano
da expressão. O plano do conteúdo é estruturado a partir da abstração
para a concreção e o texto, que é a expressão concreta do conteúdo, pode
ser organizado a partir de figuras (palavras que expressam “coisas” reais no
mundo) e temas (palavras que explicam conjuntos de figuras). Os textos
paulinos são predominantemente figurativos, ou seja, são construídos por
meio da utilização predominante de figuras. Assim, a partir da linguagem

33  Não se trata, então, de um “comentário” perícope por perícope, mas de uma leitura que procura
seguir o fluxo da argumentação da carta e sua coerência temática diante da situação que motivou
a escrita da carta. Sigo a estrutura “canônica” das cartas e não as possíveis reconstruções de cartas
específicas ou fragmentos de cartas eventualmente presentes na carta em sua forma canônica.
Este tipo de procedimento é similar ao de dois outros autores, presente em uma Teologia Paulina
e em um Comentário a Romanos: “repetidamente apelarei à sequência de pensamento em uma
carta como um todo, em uma seção como um todo, em um capítulo ou parágrafo como um todo”
(WRIGHT, N. T. Paul and Faithfulness. London/Minneapolis: SPCK/Fortress, 2013 p. 609); e
“até prova em contrário, processo baseado na premissa de que o texto possui uma preocupação
central e uma lógica interna notável, que pode não ser mais plenamente compreensível para nós”
(KÄSEMANN, Ernst. An die Römer. Heidelberg: Mohr, 1980 [1973], VIII).

37
figurativa das cartas (analisada na seção exegética), busco inferir os temas
paulinos (na primeira parte da seção temática) e, a partir desses temas,
busco reconstruir o nível mais elevado de abstração que subjaz aos temas
(segunda parte da seção temática).
A organização de cada capítulo visa, portanto: (a) dialogar com
a pesquisa sobre Paulo e se nutrir dela para oferecer uma compreensão
não idiossincrática de seus textos e (b) elaborar uma teologia que vá além
da descrição do pensamento paulino e alcance uma efetiva conceituação
teológica que desvele a estrutura mais abstrata do pensamento paulino.
A estruturação em forma de paralelismo quiástico-concêntrico
destaca, no eixo central, a fidelidade de Paulo ao chamado de Deus para
ser apóstolo, enquanto os demais capítulos são estruturados a partir do
eixo central, e vão do tema mais abrangente para o mais específico: à fi-
delidade divina corresponde a fidelidade subjetiva humana; à fidelidade
messiânica corresponde a fidelidade espaço-temporal; à fidelidade espiri-
tual corresponde a fidelidade salvífica; à fidelidade evangélica corresponde
a fidelidade eclesial-ministerial:

Fidelidade Divina (1 e 2 Tessalonicenses)


Fidelidade Messiânica (Filipenses)
Fidelidade Espiritual (1 Coríntios)
Fidelidade Evangélica (Gálatas)
Fidelidade Apostólica (2 Coríntios)
Fidelidade Eclesial-Ministerial (Pastorais)
Fidelidade Salvífica (Romanos)
Fidelidade Espaço-Temporal (Efésios)
Fidelidade Subjetiva (Colossenses e Filemon)34

Os três primeiros capítulos, por sua vez, representam a teocen-


tricidade do pensamento paulino35 e cada capítulo apresenta a seu pró-

34  Não custa lembrar que esta estrutura temática não pode ser entendida como expressão da
intenção de Paulo, mas, de modo similar à teologia paulina de James Dunn, deve ser vista como
exemplo do resultado de um diálogo com Paulo.
35  Não me alinho, portanto, com as compreensões da teologia paulina centradas na sua
soteriologia, ou na sua experiência pessoal.

38
prio modo um ou mais dos grandes temas da Sistemática cristã (teologia
própria, cristologia, pneumagiologia, revelação, soteriologia etc.), sem se
subsumir a esses temas.
Finalmente, esta estrutura nos permite evitar algumas das aporias
ainda presentes na pesquisa de Paulo: a ordem cronológica de suas cartas;
o excesso de valor atribuído a Romanos como “matriz” ou “culminação” da
teologia de Paulo; a existência ou não de um desenvolvimento conceitual
no pensamento de Paulo e, em o havendo, em que grau teria ocorrido; a
leitura ainda predominantemente “moderna” das cartas, subordinando a
prática à teoria, e praticamente excluindo a espiritualidade do foco da pes-
quisa, a alienação das Pastorais que, mesmo não sendo de autoria paulina,
pertencem ao corpus paulinum neotestamentário. De modo mais positivo,
essa estruturação procura evidenciar o quanto é possível integrar-se a uma
outra forma cultural de pensar e viver sem abrir mão da forma cultural de
pensar e viver de que participamos. Também pretende mostrar a fidelida-
de do livro à proposta integradora do saber-saber, saber-fazer e saber-ser
em um saber-viver fiel a Deus que nos chama à existência e à fidelidade.

39
Introdução
Fidelidade Divina

Figura 136

36  Todas as ilustrações realizadas por Glauci Mantovani.

40
“Fiel é o que vos chama” e “Deus vivo e fiel”. Assim Paulo des-
creve aos tessalonicenses o Deus em quem passaram a crer ao aceitarem
o evangelho do Messias Jesus. Para Paulo, Deus é um parceiro fiel com
quem podemos conviver, o Senhor a quem podemos nos entregar, o Li-
bertador que dá sentido às nossas vidas. Deus é a fonte da vida de Paulo,
de suas crenças e de suas lutas. A importância de Deus é maior do que a
do Império, do que a do Judaísmo, do que a das comunidades do Messias,
do que a própria realidade de Paulo. Se hoje em dia a visão naturalista
do mundo dá por assentado que não existe tal realidade a que chamamos
Deus, a visão de mundo de Paulo dava por assentado que não existe reali-
dade a não ser a que foi criada e é sustentada por Deus, o Deus de Israel,
o Pai de nosso Senhor, o Messias Jesus, que envia o Espírito como penhor
e primícias da libertação de toda a criação.
Não podemos, porém, dar por assentado que o nosso Deus é o
“mesmo” Deus anunciado pelo apóstolo. Assim, nosso estudo sobre Deus
nos escritos paulinos tem como ponto de partida um axioma: nosso con-
ceito de Deus não é o conceito de Deus do apóstolo Paulo, nossa experi-
ência de Deus não é a experiência de Deus do apóstolo Paulo, nossa ado-
ração a Deus não é a mesma adoração a Deus das comunidades paulinas.
Nosso axioma fundante é: não conceituamos Deus como Paulo o con-
ceituou. Consequentemente, nosso capítulo está estruturado como uma
busca, com uma aventura rumo ao desconhecido. O primeiro desafio será
a análise teológica das Cartas aos Tessalonicenses a partir desse axioma,
como um primeiro contato com o Deus de Paulo e suas comunidades37.
O próximo desafio será, a partir dessa análise, problematizar o conceito
básico a partir do qual lemos os textos que falam sobre Deus.38 Por isso, a

37  A escolha das cartas aos Tessalonicenses se deu principalmente pelo fato de 1 Tessalonicenses
ser reconhecida pela maioria das pesquisadoras como a primeira carta (canônica) escrita por Paulo.
38  Embora tal problematização não seja um hábito das “Teologias Bíblicas” (como se pode
perceber no recente e bem documentado livro O Deus dos vivos. Uma doutrina bíblica de Deus. São
Leopoldo: Sinodal & EST, 2015), vários teólogos “sistemáticos” têm-na realizado. Por exemplo:
HAUGHT, John F. What is God? How to Think About the Divine. New York: Paulist Press, 1986;
as obras de Moltmann e Pannenberg, a importante discussão na Teologia Sistemática de Tillich
e, mais recentemente: KELLER, Catherine. On the mystery: Discerning Divinity in Process.
Minneapolis: Fortress Press, 2008; KEARNEY, Richard. The God who may be: A hermeneutics of
religion. Bloomington: Indiana University Press, 2001; KEARNEY, Richard. Anatheism: returning
to God after God. Bloomington: Indiana University Press, 2010; MARION, Jean-Luc. Dieu sans
l’être. 4. ed. Paris: PUF, 2013; FALQUE, Emmanuel. Dieu, la chair et l’autre. D’Irénée à Duns Scot.

41
segunda seção tratará dos conceitos sobre Deus que subjazem a pesquisa
exegética e, depois, discutirá as concepções de Deus disponíveis ao após-
tolo. Veremos, com a brevidade imposta pela estruturação deste livro, que
a concepção judaica de Deus tem menos em comum com as visões oci-
dentais modernas, ou teístas (deístas etc.) do que se toma por assentado.
A seguir, também uma breve reflexão sobre a concepção e/ou o conceito
“deus” no mundo greco-romano, temática bastante diversificada, embora
mais próxima – em seu formato filosófico – de nossos conceitos moder-
nos, de modo que apenas vislumbres serão oferecidos, para que se ressalte
a peculiaridade da teologia paulina em seu ambiente.
A partir do quadro então constituído, passarei ao estudo da des-
crição de Deus no conjunto dos textos paulinos. Manterei o uso de termos
tecnicamente anacrônicos, mas que precisamos usar por falta de outros
melhores. Continuarei a usar os termos deus e monoteísmo, por mais que
estejam carregados de significado não presente em Paulo – sempre que
necessário, porém, farei críticas ao próprio uso dos mesmos. Em primeiro
lugar, analisarei uma série de textos paulinos nos quais podemos encontrar
descrições de Deus-Pai, em seguida, a análise de textos em que o Mes-
sias é descrito como “Deus” e, enfim, textos em que o Espírito também
é descrito como “Deus” – uma descrição que está na base da posterior
doutrina eclesiástica da Trindade, mas não é essa doutrina da Trindade.
Posteriormente, tratarei de quatro temas específicos do ser-agir de Deus,
a partir de uma perspectiva social ou pública, que nos ajudam a montar
o quadro para reconstruir o conceito de Deus em Paulo na seção final do
capítulo. A última seção do capítulo, portanto, oferecerá uma análise do
conceito paulino de Deus, estruturada a partir das categorias semânticas
de profundidade abstraídas da descrição paulina nas seções anteriores.
Falar sobre Deus é uma tarefa paradoxal, conforme reconheceu,
entre outros, Karl Barth:

Como ministros devemos falar de Deus. Somos humanos, porém, e


por isso não podemos falar de Deus. Portanto, devemos reconhecer

Paris: PUF, 2008; CAPUTO, John. The Weakness of God. A Theology of the Event. Bloomington:
Indiana University Press, 2006; CAPUTO, John. The Insistence of God. A Theology of Perhaps.
Bloomington: Indiana University Press, 2013.

42
tanto a nossa obrigação quanto a nossa incapacidade e, por este mesmo
reconhecimento, dar a Deus a glória. Esta é nossa perplexidade.39

Não tenho dúvidas de que Paulo se sentia aproximadamente as-


sim. E é com essa sensação que concluí este capítulo.

39  BARTH, Karl. The Word of God and the Word of Man. Nova Iorque: Harper & Brothers, 1957,
p. 186.

43
Capítulo 1
Fiel é o que vos chama (1 & 2 Tessalonicenses)

1.1 As epístolas em seu contexto

Praticamente não há discussão sobre a autoria paulina de 1 Tes-


salonicenses, enquanto a de 2 Tessalonicenses tem sido questionada re-
petidamente nos séculos XIX e XX, a ponto de a maioria dos estudiosos
da questão na atualidade pender para a atribuição de pseudepigrafia à
segunda carta. A síntese introdutória de M. Eugene Boring40 é apta, tanto
na apresentação dos argumentos contra a autoria paulina de 2 Tessalo-
nicenses, quanto na apresentação de um cenário plausível para a escrita
desta carta – para ele, no final do primeiro século. Todavia, o que parece
ser uma conclusão razoável, de fato não resiste a um exame mais acurado.
Os argumentos relativos à estrutura, vocabulário e semelhanças temáticas
entre 1 e 2 Tessalonicenses, os argumentos relativos à relação entre 2 Tes-
salonicenses e as paulinas “autênticas”, bem como a Colossenses e Efésios,
podem ser utilizados pelos dois lados na controvérsia. Restam, a meu ver,
duas questões críticas. A primeira tem a ver com 2Ts 2,1-12: como encai-
xar esse texto na escatologia paulina? A segunda tem a ver com o cenário
para a pseudepigrafia – ele é convincente?
Em relação à segunda questão minha opinião é de que o cená-
rio proposto no final do primeiro século, na Ásia Menor, com autores da
“escola paulina”, não se sustenta. Em especial, a interpretação completa-
mente forçada de Boring sobre a “assinatura do próprio Paulo” dever ser
entendida como uma referência à escola paulina e não ao próprio apóstolo
beira às raias do absurdo argumentativo. A proposta de pseudepigrafia em
relação a 2 Tessalonicenses nos faz duvidar tanto da inteligência do seu
eventual autor, quanto da sabedoria das comunidades receptoras – e aqui
o exemplo da pseudepigrafia em escritos apocalípticos judaicos não serve
40 BORING, M. Eugene. Introdução ao Novo Testamento: história, literatura, teologia. Santo
André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2015 (original de 2012). Boring também foi o autor
do comentário a 1 e 2 Tessalonicenses na série New Testament Library: BORING, M. Eugene. I
& II Thessalonians: a commentary. Louisville: Westminster John Knox Press, 2015.

44
como paralelo confirmatório. Podemos, agora, voltar à primeira questão.
Em especial, 2Ts 2,12 deve ser visto como o trecho que mais evidente-
mente depõe contra a autoria da escola paulina: que valor probatório pode
ter uma afirmação completamente estranha ao corpus paulino? Por que
usar uma ideia tão incomum e ininteligível para fornecer evidência de
uma eventual origem paulina? Seguindo um princípio fundamental na
crítica textual, parece-me decisivo que a “leitura mais difícil” – a de que
Paulo mesmo escreveu 2Ts 2,1-12 – é a leitura que deve ser seguida41.
Resta a questão da ordem das epístolas. A ordem canônica não
é baseada em fatos, mas em tradição, e pode não ser a mais adequada. É
possível que 2 Tessalonicenses tenha sido escrita primeiro e que 1 Tessalo-
nicenses seja um esforço de Paulo em amenizar o tom por demais “oficial”
da carta anterior. Mas também é plausível que a primeira carta tenha a
ver com problemas relativos à identidade de Paulo e da comunidade42 que,
uma vez resolvidos, tenha possibilitado o tom menos “íntimo” da eventual
segunda carta – os problemas de mau testemunho questionados na pri-
meira carta continuavam a acontecer, em parte pela permanência de dúvi-
das quanto à cronologia da parousia. Tal decisão, porém, do ponto de vista

41  Dentre os vários autores que admitem a autoria paulina de 2 Tessalonicenses, sobressai-se
James Dunn.
42  O uso do termo “comunidade” para referência aos destinatários das cartas de Paulo é ambíguo.
Não podemos projetar para o tempo de Paulo a noção de “comunidade eclesiástica’ organizada,
com identidade doutrinariamente definida, ritual estabelecido e ordem estrutural já legitimada.
São comunidades em construção – a identidade, o ritual, a doutrina, a ordem etc. não são dados pré-
estabelecidos, mas processos socioculturais e políticos relativamente complexos em conformidade com
cada situação específica em discussão. Essa advertência vale para todas as vezes que, nesta Teologia
Paulina, mencionar a ‘comunidade messiânica’ destinatária das cartas de Paulo. Para uma tentativa
coletiva de questionar o paradigma dominante de leitura das cartas de Paulo e redescrever as origens
de sua missão e relações com as ‘comunidades’”. Ver: CAMERON, Ron; MILLER, Merrill P. (eds.).
Redescribing Paul and the Corinthians. Atlanta: SBL, 2011.
Um artigo mais antigo, de John Barclay, já apontava nessa direção: “podemos ter uma razoável
confiança, então, de que houve apenas um pequeno intervalo entre o nascimento da igreja [sic]
em Tessalônica e o estabelecimento, pelo mesmo evangelista, de uma comunidade cristã [sic] em,
Corinto. Entretanto, essas comunidades irmãs desenvolveram interpretações significativamente
diferentes da fé cristã [sic]. Qualquer leitura cuidadosa das cartas de Paulo a essas igrejas revela
que elas possuíam características muito diferentes; e qualquer análise conscienciosa dessas diferenças
mostra que elas divergiam, não apenas em questões superficiais, mas no conjunto de sua percepção da
fé que aprenderam de Paulo” (BARCLAY, John M. G. Thessalonica and Corinth: Social Contrasts
in Pauline Christianity. Journal for the Study onf the New Testament, 1992, p. 49-50). Apesar de sua
advertência, Barclay ainda usa a palavra “cristã” de modo a sugerir uma realidade “completa”.

45
da interpretação teológica das cartas, é secundária. Se ambas as cartas são
de autoria paulina, o intervalo entre a redação das mesmas, qualquer seja a
sua ordem, não deve ter sido muito grande, tendo em vista que problemas
praticamente idênticos são tratados nas duas cartas.
Que problemas são esses? Primeiramente, o sofrimento que a
comunidade messiânica de Tessalônica enfrentava por causa da oposição
de seus compatriotas à sua nova identidade religiosa (mais por gentios
do que por judeus). Em segundo lugar, detalhes relativos à parousia do
Messias Jesus (ou do “dia do Senhor”) estavam causando dissensões e
desânimo na comunidade. Em terceiro lugar, a prática “desordenada” de
vida de alguns membros da comunidade (sejam líderes, ou não) ameaça-
va o testemunho da mesma perante os de fora. Os três problemas estão
interligados à questão da identidade apostólica de Paulo e à da própria
comunidade, às questões escatológicas, bem como dependem da relação
da comunidade com a sua cidade.
Tessalônica era uma importante e próspera cidade que manteve
sua cultura grega mesmo sob a dominação romana, cujo status como cidade
livre era garantido por sua lealdade a Roma, expressa de diversas formas,
particularmente por meio do culto imperial. Boring sintetiza a situação do
culto imperial à época de Paulo:

dentro desta variedade sincrética, a presença e importância do culto


ao imperador, associado com a deusa Roma era clara na Tessalônica
do primeiro século, fundamentando a ‘paz e segurança’ da vidade (ver
sobre 5,3). Uma inscrição do tempo de Augusto (27 a.C. – 14 d.C.)
Kaisaros Naos (Templo de César), documenta a existência de um tem-
plo de César. As moedas da cidade eram impressas com a efígie de
César substituindo a figura de Zeus. O culto a César envolvia não ape-
nas sacrifícios a, e pelo imperador, mas também um grande número de
eventos cívicos e dias festivos. O culto não foi imposto pelos romanos,
mas iniciado e encorajado por cidadãos locais, um movimento autóc-
tone e não uma imposição estrangeira, autoritária.43

43  BORING, M. Eugene. I and II Thessalonians: A Commentary. Louisville: Westminster John


Knox Press, 2015, Local do Kindle 1363-1369.

46
A hesitação em participar de tais celebrações comunitárias só po-
dia ser interpretada como a não preocupação com o bem-estar da cidade e
não passaria desapercebida. Ademais, tal afastamento seria uma afronta às
relações de patronato que permeavam o relacionamento social nas cidades
romanas, gerando inevitavelmente uma reação forte (e não legal) das pesso-
as que tenham se considerado ofendidas.
Uma cidade com cerca de 60.000-100.000 habitantes, marcada pela
diversidade religiosa, com a presença de uma pequena colônica judaica, orgu-
lhosa de seu status como cidade livre, era um espaço de tensão para uma pe-
quena comunidade de seguidores do evangelho do Messias Jesus – tanto em
sua relação com a colônia judaica, como em sua relação com a população em
geral. Não é à toa que a perseguição e os problemas com os “de fora” formam
um dos temas centrais da correspondência paulina com os tessalonicenses.
Em um mundo em que a opção religiosa não estava desligada da vida pública,
a aceitação de Jesus como o único Senhor e a afirmação de sua parousia, clara-
mente em substituição a César e sua parousia, seriam vistas como um perigo
para a estabilidade e o status da cidade, de modo que a pequena comunidade
messiânica teria de ser muito firme para enfrentar tal tipo de oposição e lidar
com as consequências do novo estilo de vida por ela adotado.

1.2 A hipótese interpretativa


As cartas aos tessalonicenses, geralmente reconhecidas como as
primeiras de Paulo (cerca de 15-20 anos após seu reconhecimento de Je-
sus como o Messias), escritas por volta de 50-52 d.C., nos oferecem um
vislumbre da pregação e teologia de Paulo na fase central de sua carreira
apostólica. É tentador tentar construir uma visão do “desenvolvimento” do
pensamento de Paulo por meio de uma leitura diacrônica de suas cartas,
mas a natureza desses escritos torna a tarefa mais difícil do que parece.
Por exemplo, o uso do termo parousia do Senhor Jesus é frequente nessas
duas cartas, mas praticamente ausente no restante das epístolas, apenas
em 1Co 15,23 ele é novamente usado em sentido escatológico. Por outro
lado, o tema da justificação está ausente dessas cartas em que não há ques-
tionamentos relativos ao papel da Lei na vida dos gentios, mas é frequente
em Romanos e Gálatas (cartas em que o debate relativo à identidade ju-
daica é intenso).

47
A frequência do vocabulário político ligado à ideologia do Impé-
rio Romano é ressaltada nessas epístolas, o que nos possibilita ver a prega-
ção de Paulo como um contraponto à propaganda imperial romana (bem
como à eventual pregação judaica aos gentios, sem contar com a polêmica
em relação às demais religiões e filosofias da época). Como afirma Punt:

no contexto deste império, a palavra ‘boas novas’ (euaggelion, ou evan-


gelho’) teria sido usada mais comumente para descrever a ascensão de
César Augusto ao poder. De fato, o arauto que anunciava a chegada
de um imperador como Augusto seria um apóstolos (mensageiro, não
‘apóstolo’) com uma mensagem da parousia (‘chegada’ e não retorno de
Cristo) do kyrios (‘senhor’, um dos muitos títulos dados ao imperador).
À esta luz, torna-se necessário relembrar que o termo comumente tra-
duzido como ‘igreja’, ekklesia, era usado para descrever uma reunião
política e ta ethne funcionava como uma referência a todas aquelas ‘na-
ções’ ou ‘povos’ sob o domínio romano (e não somente aos ‘gentios’).44

O anúncio das boas novas de um novo kyrios certamente seria


visto como bastante provocativo no contexto tessalônico e causaria uma
forte reação da parte das lideranças da cidade, bem como dos próprios
judeus na cidade, preocupados com a sua situação diante da expulsão de
seus conterrâneos de Roma em 49 d.C. As cartas foram escritas prima-
riamente para ajudar a comunidade a lidar com as pressões externas que
ameaçavam a sua fidelidade ao evangelho do Messias Jesus e reforçar as
suas convicções construídas desde a atividade missionária de Paulo na
cidade (cerca de um ou um ano e meio antes da escrita das cartas).
Outro motivo importante da escrita das cartas, especialmente
da primeira, é a questão da identidade do apóstolo Paulo e a da própria
comunidade. A linguagem fortemente pessoal e afetiva da primeira carta
não deve ser lida apenas em termos “pessoais”, mas também em termos
das relações de poder e de identidade. Paulo faz um grande esforço na pri-
meira carta para desvincular de si e da comunidade a relação de patrona-
to-clientelismo dominante na sociedade greco-romana. A linguagem da

44 PUNT, Jeremy. Postcolonial Approaches: Negotiating Empires, Then and Now. In:
MARCHAL, Joseph A. (ed.). Studying Paul’s letters: contemporary perspectives and methods.
Minneapolis: Fortress Press, 2012, p. 198.

48
primeira carta oferece à comunidade uma versão de sua identidade como
uma família de iguais e de Paulo como um igual, pertencente igualmente
à comunidade. A ênfase na parrhesia (ver 2,1-12) e no adequado teste-
munho público (in passim) tem a ver com a espiritualidade proposta por
Paulo à comunidade, caracterizada por um estilo de vida messiânico capaz
de alterar profundamente os fundamentos das relações sociais.
A questão da parousia do Messias era um dos tópicos que ali-
mentava a pressão externa e causava polêmicas internas. Essas eram de
duas naturezas. Em primeiro lugar, tinham a ver com os detalhes relativos
ao tempo e modo da chegada – e como veremos na interpretação das
cartas, o problema não era (como se interpretou durante bom tempo) o
desapontamento pela não chegada do Dia do Senhor naquela geração
inicial de crentes em Jesus. A pregação de Paulo falava da indeterminação
temporal e não da iminência cronológica da parousia. O problema girava
principalmente ao redor da situação dos crentes mortos quando da parou-
sia e de eventuais acontecimentos preparatórios da chegada. Em segundo
lugar, o problema tinha a ver com a relação com os de fora – esperar a
parousia do kyrios Jesus certamente seria uma afronta a uma eventual ex-
pectativa pela visita de um imperador e causaria forte pressão e ameaças
sobre a comunidade. As cartas visam, então, reassegurar a comunidade a
respeito dos detalhes da parousia e reforçar a resposta correta às pressões
causadas por essa esperança – de modo que a segunda carta, não havendo
mais a necessidade de focar na questão da identidade, pode ocupar-se
mais especificamente dos problemas “apocalípticos” que não haviam sido
resolvidos mesmo após a visita de Timóteo. A origem desses problemas
deve estar no fato de que a quase totalidade dos membros da comunidade
messiânica era composta de gentios com pouco ou nenhum conhecimen-
to das sutilezas da apocalíptica judaica. Facilmente a pregação de Paulo
sobre o tema geraria mal entendidos e dificuldades, acrescido ao fato de
que profetas da própria comunidade poderiam também trazer mensagens
inadequadas, às quais Paulo teria de responder em suas cartas.
As cartas também oferecem uma resposta de Paulo ao problema
causado por alguns membros da comunidade que não davam um testemu-
nho adequado, tanto interna como externamente. Pessoas que não viviam

49
de seu trabalho e, por isso, causavam prejuízo aos demais membros da
comunidade que deveriam sustentá-las. Tais pessoas também provocavam
problemas aos de fora da comunidade, pois forneciam argumentos para
a pressão externa contra quem seguia o Messias Jesus – qualquer “de-
sordem” poderia servir como pretexto para uma prisão ou outro tipo de
sanção contra a comunidade. É possível que essa atitude de relaxamento
público tenha a ver com uma crença na iminência da parousia, mas não é
necessário interpretá-la dessa maneira. Uma vez que o evangelho do Mes-
sias Jesus solapava as bases da autoridade imperial, essas pessoas poderiam
simplesmente estar reagindo de modo inadequado, causando problemas
que não poderiam ser resolvidos pela comunidade. Outras cartas de Paulo
também mostram o cuidado do apóstolo em não provocar situações de
pressão legal desnecessária para as comunidades, cujos problemas já se-
riam suficientemente graves, de modo que o acréscimo de motivos para
sanções judiciais ou políticas deveria ser evitado. Também podemos ver
nesse tipo de comportamento o reflexo de uma situação de anomia social
causada pelo rompimento das relações de patronato, de modo que os no-
vos seguidores do Messias ficaram sem norte para o seu comportamento
social derivado de sua nova religião.
A segunda carta dá continuidade à tentativa de solução dos
problemas efetuada na primeira. Possivelmente, diante da explicação a
respeito da indeterminação da parousia, surgiram questionamentos a
respeito do que impedia a manifestação do Senhor, que foram respon-
didos por meio da enigmática figura do katechon. Essas mesmas pesso-
as, insatisfeitas com a primeira carta, continuaram o seu estilo de vida
ataktos, não aceitando as exortações da primeira carta, o que motivou a
retomada do tema na segunda.
As cartas representam, portanto, a resposta pastoral do apóstolo
Paulo a problemas de uma comunidade religiosa ainda imatura diante das
pressões externas e polêmicas internas. A ausência do apóstolo certamente
facilitaria a dissonância eventualmente causada por membros da comuni-
dade que, baseados em sua própria experiência carismática, apresentariam
palavras proféticas supostamente autoritativas, contrárias ao ensinamento
de Paulo e potencialmente perigosas para a comunidade. Assim, Paulo

50
enfatiza nas cartas o seu próprio exemplo pessoal, a sua conduta íntegra e
a resposta igualmente íntegra da comunidade à sua pregação. Esse exem-
plo de ousada integridade deveria ser lembrado diante da dificuldade de
discernir que palavras efetivamente seriam provenientes do Senhor e que
profetas seriam porta-vozes do Espírito Santo.
De fato, é possível que os distúrbios causados pela dificuldade
em lidar com as experiências carismáticas tenham sido uma das causas
da nova estratégia paulina de escrever cartas às “suas” comunidades, ofe-
recendo às mesmas algo mais palpável do que apenas a memória oral de
sua pregação. As exortações finais de 1 Tessalonicenses, pouco valorizadas
na maioria dos comentários, nos abrem uma janela para a vida religiosa
das comunidades paulinas, certamente muito mais típicas de uma religio-
sidade carismática do que de uma religiosidade de cunho doutrinário ou
escolar: “Não apaguem o Espírito. Não tratem com desprezo as profecias,
mas ponham à prova todas as coisas e fiquem com o que é bom”.

1.3 Exegese

1.3.1 A estrutura das cartas


Do ponto de vista discursivo (do conteúdo), as cartas paulinas
normalmente são estruturadas em paralelismo quiástico, o que seria de
se esperar de um judeu treinado na interpretação das Escrituras. Essa es-
trutura discursiva não anula a estruturação textual propriamente dita (do
plano de expressão, seguindo a linguagem da semiótica greimasiana), seja
seguindo a estrutura mais ou menos típica das cartas helenistas, seja se-
guindo padrões da retórica greco-romana. Apresento a estrutura discursi-
va, não entrando na discussão da estrutura textual propriamente dita.

1 Tessalonicenses:
A Saudação (1,1)
B Ação de Graças (1,2-10)
C A integridade de Paulo como ministro do Evangelho (2,1-12)
D A recepção do Evangelho em meio ao sofrimento (2,13-16)

51
E Visita impedida (2,17-20)
F Visita e Relatório de Timóteo (3,1-10)
G Planos para visita de Paulo (3,11-13)
F’ Exortações a uma vida santa (4,1-12)
E’ Quanto aos que dormem (4,13-18)
D’ Quanto ao dia do Senhor (5,1-11)
C’ Exortação à integridade comunitária (5,12-22)
B’ Orações (5,23-25)
A’ Saudações Finais (5,26-28)

Este arranjo estrutural mostra que a planejada visita de Paulo


à comunidade ocupa o centro temático da epístola, o que combina bem
com a motivação para a escrita da carta conforme descrita na hipótese
interpretativa anterior.

2 Tessalonicenses:
A Saudação (1,1-2)
B Gratidão e desejo de vida digna (1,3-5)
C Tribulação para os atribuladores (1,6-10)
D Oração intercessória pelos tessalonicenses (1,11-12)
E Quanto à parousia do Senhor (2,1-12)
D’ Oração gratulatória pelos tessalonicenses (2,13-15)
C’ Pedido de Oração por Paulo (3,1-5)
B’ Exortação à vida digna (3,6-15)
A’ Saudações Finais (3,16-18)

Nesta carta, o lugar central é ocupado pela enigmática perícope


de 2,1-12, compatível com o tom mais didático da carta, e com a neces-
sidade de resolver problemas teológicos ainda pendentes. Em ambas as
estruturas percebemos a presença dos problemas relativos às pressões ex-
ternas e às polêmicas internas. Na interpretação a seguir, manterei a forma
tradicional de analisar as perícopes das cartas em sua sequência escrita,
mas sempre levando em conta o conjunto e a peculiaridade estrutural de
cada carta. Como esta análise está a serviço da teologia bíblica, não será
um comentário propriamente exegético, mas teológico.

52
1.3.2 Saudação e Ação de Graças (1Ts 1,1-10)

Paulo, Silvano e Timóteo, à ’ekklesia dos tessalonicenses em Deus Pai e


no Senhor Jesus, o Messias, graça e paz sejam convosco. Damos, sem-
pre, graças a Deus por todos vós, mencionando-vos em nossas orações
e, sem cessar, recordando-nos, diante do nosso Deus e Pai, do vosso
trabalho na fé, da labuta do vosso amor e da firmeza da vossa esperança
em nosso Senhor Jesus, o Messias, reconhecendo, irmãos, amados por
Deus, a vossa eleição, uma vez que o nosso evangelho não chegou até
vós tão somente em palavra, mas, sobretudo, em poder, no Espírito
Santo e em plena convicção, assim como sabeis que tipo de pessoas fo-
mos entre vós e por amor de vós. Com efeito, vos tornastes imitadores
nossos e do Senhor, pois recebestes a palavra com a alegria do Espírito
Santo, mesmo em meio a muitas tribulações, de sorte que vos tornas-
tes modelo para todos os crentes na Macedônia e na Acaia. Porque
de vós repercutiu a palavra do Senhor não só na Macedônia e Acaia,
mas também por toda parte se divulgou a vossa fé para com Deus, a
tal ponto de não termos necessidade de acrescentar coisa alguma; pois
eles mesmos informam que repercussão teve o nosso período entre vós,
e como, deixando os ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes o
Deus vivente e fiel e para aguardardes dos céus o seu Filho, a quem ele
ressuscitou dentre os mortos, Jesus, que nos livra do desgosto vindouro.

Além da afirmação da autoria coletiva, que possivelmente tem a


ver com a questão da identidade apostólica – Paulo estaria evitando ser
confundido com um patrono com autoridade divina – a saudação inicial é
peculiar em sua descrição da comunidade (τῇ ἐκκλησίᾳ Θεσσαλονικέων
ἐν θεῷ πατρὶ καὶ κυρίῳ Ἰησοῦ Χριστῷ): não menciona a cidade na qual
está localizada a comunidade, mas o adjetivo “tessalonicenses”, e fala da
comunidade como estando “em Deus Pai” (o que só se vê novamente em
2Ts 1,1), o verdadeiro e único patrono da comunidade. O texto parece
responder a duas questões interligadas: a primeira, uma vez que a maio-
ria dos membros da comunidade era de origem gentílica, Paulo sentiu-se
compelido a reafirmar a sua fé no Deus único, descrevendo os tessalo-
nicenses como a assembleia que pertence a Deus, ou seja, cuja lealdade e
identidade são definidas pelo novo kyrios e não pelo tradicional kyrios do-

53
minador. A segunda, mediante a repetição da afirmação da paternidade de
Deus, vinculada ao senhorio do Messias Jesus, tem a ver com a mudança
de estilo de vida provocada pela fidelidade a Deus e ao Senhor Jesus, que
rompia com as relações de patronato e de lealdade ao Império.
O tom deste primeiro capítulo é de reafirmação, com Paulo se es-
merando nos elogios à nova vida dos tessalonicenses, destacando a sua fé,
amor e esperança eminentemente ativos, a sua recepção inicial do evange-
lho (alegria mesmo em meio a tribulação, e recepção da pregação acom-
panhada de sinais), a sua pronta atitude de imitar Paulo e o Senhor Jesus,
bem como a repercussão do evangelho por toda a Acaia, de modo que a
conversão dos tessalonicenses se tornou objeto de testemunho externo.
Por duas vezes Paulo lembra os tessalonicenses de seu próprio caráter,
lembrando-os de sua conduta durante a fundação da comunidade, condu-
ta que foi reconhecida pelos “de fora” por meio do testemunho dos tessa-
lonicenses. Há um evidente esforço de equalizar o status dos pregadores
com o da comunidade, evitando, assim, uma interpretação hierárquica da
relação entre eles.
Que aprendemos sobre a experiência dos tessalonicenses em res-
posta à pregação do Evangelho? Podemos descrevê-la como uma experiên-
cia de conversão (mudança de religião) iniciada pela atividade evangelizado-
ra de Paulo – recebida com entusiasmo (alegria e convicção) e certamente
também marcada por experiências de êxtase ao longo da estada de Paulo e
seus colegas entre eles. O êxtase, porém, não parece ter sido o fator mais im-
portante, pois a descrição de Paulo focaliza principalmente na mudança de
vida dos tessalonicenses: (a) tornaram-se imitadores de Paulo e, consequen-
temente, do Senhor Jesus – o que deve indicar o compromisso de fidelidade
ao Messias e sua aceitação como Deus (o título Senhor deveria ter essa força
à época), junto à adesão ao “Deus dos judeus” implícita na pregação paulina;
(b) trabalharam intensamente em prol do novo modo de vida, manifestando
as virtudes dessa nova vida: fé, amor e esperança, a ponto de serem vistos
em sua região como modelo de vida messiânica; (c) abriram mão de suas
convicções religiosas prévias, aceitando o Deus vivo e fiel anunciado por
Paulo e reconhecendo o direito divino de julgar a humanidade em função
de sua resposta ao Evangelho. Tudo isso em meio a uma situação delicada,

54
posto que a conversão acarretaria sérios transtornos para a vida pública dos
membros da comunidade que, certamente, iriam evitar o máximo possível
os contatos sociais e cerimônias públicas que envolvessem elementos reli-
giosos – agora vistos como idolátricos.
A nova convicção religiosa dos tessalonicenses já incorporava,
de algum modo, a crença em Deus Pai, no Senhor Jesus como Messias
e Filho de Deus, e no Espírito Santo. Até que ponto essa pluralidade
descritiva de Deus foi compreendida pela comunidade, ou até que ponto
Paulo enfatizava essa descrição é algo que não podemos saber com cer-
teza. Seguramente, porém, podemos reconhecer a convicção em um novo
Deus, o Deus dos judeus, recebido como “Deus vivente e fiel”, o Pai que os
elegera para a salvação; o Deus cuja fidelidade foi demonstrada pelo servi-
ço do Messias, seu Filho e Senhor, cujo poder foi manifestado pelos sinais
que acompanhavam a pregação paulina.45 A ênfase na paternidade divina
(sete vezes nas duas cartas aos tessalonicenses, duas vezes nesta abertura
da carta), tema conhecido dos judeus, é claro, mas não tão destacado, cer-
tamente se deve à filiação de Jesus, que autoriza as pessoas fiéis a ele de se
reconhecerem também como filhas de Deus (cp. Rm 8,15). A menção à
eleição pode indicar duas coisas: (a) que os tessalonicenses foram ensina-
dos a não mais aceitar a diferenciação deles, gentios, para com os judeus;

45  Quanto à linguagem “familiar” usada por Paulo: “A linguagem de parentesco era usada por
outros grupos, por exemplo pelos cultos de mistério e por escolas filosóficas, para os quais era
importante o senso de comunidade, mas a noção de Paulo derivava do Judaísmo (SCHLKLE,
p. 632-39; KÖTTING, p. 144-45; MEEKS, 1983, p. 87). Mais especificamente, o que informou
o uso de Paulo aqui foi a experiência do prosélito, alienado de seus relacionamentos anteriores e
buscando parentesco de um tipo diferente na comunidade judaica ( Jos Asen 12,11; 13,1; Philo
On the Special Laws 1.52; On the Virtues 103-4, 179; ver MALHERBE, 1987, p. 43-46). Isto
se vê na qualificação paulina de adelphoi como egapemenoi hypo tou theou (a amados por Deus’).
Dizia-se dos prosélitos serem amados e chamados por Deus (Gen Rab 70.5; Num Rab 8.2; Midr
Tanh 6; Jos Asen 8,9; MOORE, p. 348-349; PAX, 1971, p. 234-235). Paulo aplica esta noção aos
gentios convertidos ao Cristianismo [sic] em Rm 9,24-25, modificando Os 2,25 LXX, eleeso tem
ouk eleemenen (‘terei misericórdia de quem não recebera misericórdia’) para kaleso [...] tem ouk
eleemenen (‘chamarei a quem não recebera misericórdia’) (cf. Ep Diogn 4:4; MALHERBE, 1995,
p. 118). Paulo usa normalmente agapetos (amado; cf. 2,8), somente aqui e em 2Ts 2,13 (cf. Cl
3,12) ele usa o particípio e o faz para enfatizar a eleição divina (ver também 2,12; 4,7; 5,24; cf. Cl
3,13; Judas 1) como um ato de amor (Rm 1,6-7; 11,28-29), com o tempo perfeito expressando
a qualidade permanente desse amor” MALHERBE, Abraham. The Letters to the Thessalonians. A
New Translation and Commentary. New Haven: Yale University Press, 2008, p. 110 (primeira
edição em 1974, série The Anchor Bible).

55
e (b) assim como a cidade escolheu a lealdade a César e isso mudou a sua
condição, eles foram escolhidos por Deus e, igualmente, isso mudou a sua
condição – de idólatras e sujeitos ao juízo de Deus, para fiéis e livres de
qualquer punição.
No verso 9, Paulo estabelece um contraste entre “ídolos” e “Deus”.
Nesse contraste, ele explicita que, ao contrário dos ídolos, “o Deus” é ζῶντι
καὶ ἀληθινῷ. Esse par ocorre somente aqui, nos textos paulinos. Separada-
mente, “vivente” é usado apenas três outras vezes como qualificação de Deus
(Rm 9,26; 2Co 3,3; 6,16), e “confiável”46 ocorre somente aqui. Entretanto,
na Bíblia Hebraica encontramos várias vezes essas caracterizações de Deus:
“vivente”, Nm 14,21.28; Dt 32,40; Sl 40,3 [41,2]; Os 2,1 [1,10] etc.; “con-
fiável”, Êx 34,6; 2Cr 15,3; Sl 86,15; Is 65,16 etc., juntos em Jr 10,10. Aqui
Paulo se utiliza da concepção israelita básica da divindade: o Deus de Israel
(com artigo) é identificável, é um deus vivente (ou seja, é eterno, imortal e
doador de vida) e confiável (fiel), o que o distingue dos ídolos que não agem
e não são confiáveis. Ídolos são ídolos não porque não possuem existência,
mas porque sua existência, a sua vida, é fruto da ação humana e retrata
a condição humana de escrava aos poderes. Apropriando-se de um topos
profético iconoclástico, Paulo o ressignifica para o mundo imperial romano.
Enquanto Deus é vivente e confiável, os ídolos são mortificadores e não
confiáveis. Sob o signo dos ídolos, a morte é espalhada por todas as regiões
em que os exércitos imperiais marcam sua presença assassina. Um ídolo é
um ídolo porque não outorga vida, apenas distribui a morte.
Consequentemente, os tessalonicenses puderam entrar em uma
nova uma relação com Deus, definida pela fé-fidelidade e não pelo medo
e pela troca sacrificial, pois o Deus Pai de nosso Senhor Jesus, o Mes-
sias, não é arbitrário nem mortificador como os ídolos. A vida divina é
vida-em-fidelidade, ou seja, a fidelidade é imanente à própria vida divina
e, assim, imanente à vida criada por Deus. A hendíade “vivente e confi-
ável” não deve, assim, ser entendida como um par de atributos de Deus,
mas, sim, como descrição do próprio modo-de-ser-de-Deus. Logo, Deus

46  O costume das traduções modernas é usar o termo “verdadeiro” aqui, mas devemos entender
esta palavra em sua conotação judaica, o Deus fiel – porque Deus é fiel, ele diz a verdade. O
conceito de “verdade” é distinto do conceito filosófico: reconhecemos a verdade na fidelidade de
quem fala.

56
é conhecido experiencialmente, ou seja, no âmbito da totalidade da vida
humana e não apenas no âmbito da “racionalidade” ou da “religiosidade”.
Pertencer a esse Deus implicava, portanto, em fazer parte de uma nova
assembleia (’ekklesia), de entrar em uma nova cidadania. A conversão ao
evangelho do Messias Jesus demandava uma radical troca de lealdade – da
lealdade à Roma à lealdade à ’ekklesia em Deus Pai e no Senhor Jesus, ou
seja, a um novo povo, não mais definido pelas pertenças culturais, étnicas
ou políticas, mas pela fidelidade entre Deus e seu povo eleito e amado.
Paulo encerra a perícope com uma segunda característica da vida
das pessoas conversas ao Messias: “e para aguardardes dos céus o seu Fi-
lho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, Jesus, que nos livra do des-
gosto vindouro”. A linguagem aqui é típica da pregação da boa nova e
Paulo a adotou da tradição messiânica que lhe antecedeu. Chama a aten-
ção a frase final, pois somente nesta carta e em Romanos Paulo se refere
ao desgosto de Deus enquanto expressão do juízo. Em 1 Tessalonicenses
a palavra é usada aqui, em 2,16 e 5,9, com o sentido do juízo final de Deus
contra quem rejeita a palavra da boa nova messiânica. Em Romanos ela é
usada 10 vezes (1,18; 2,5.8; 3,5; 4,15; 5,9; 9,22; 12,19; 13,4.5), com vários
sentidos, não só no senso escatológico ou do juízo final. O sentido de orge
em Paulo é o do juízo de Deus que manifesta seu desgosto pela escraviza-
ção do ser humano aos poderes da morte e não um sentimento divino de
rejeição e condenação das pessoas que não aceitam a sua palavra.
Em uma cidade orgulhosa de sua lealdade ao imperador romano,
celebrado como um deus, a nova lealdade messiânica certamente seria
vista como uma afronta à ordem política e social. Consequentemente, a
conversão ao novo Deus demandou dos tessalonicenses uma radical mu-
dança de vida, que trazia juntamente consigo, de modo inevitável, proble-
mas sociais, econômicos e políticos. O fato de que, como gentios, terem
se tornado membros do povo de Deus, sem aderirem à Lei judaica, cer-
tamente também provocou dificuldades em relação à comunidade judaica
da cidade de Tessalônica, de modo que a nova identidade religiosa dos
tessalonicenses os colocou em uma frágil condição de liminaridade social,
cultural, econômica e política. Certamente, isso está no pano de fundo da
linguagem reasseguradora usada por Paulo nesta epístola.47

47  Abordarei o tema da oração na análise das perícopes finais da Epístola.

57
1.3.3 A integridade de Paulo como ministro do Evangelho (2,1-12)

Porque vós, irmãos, sabeis bem que a nossa estada entre vós não
se tornou infrutífera; mas, apesar de maltratados e ultrajados em
Filipos, como é do vosso conhecimento, tornamo-nos parresiastas
(ἐπαρρησιασάμεθα) em nosso Deus, para vos anunciar (λαλῆσαι) a
boa nova de Deus em meio a muita luta.
Pois a nossa exortação (παράκλησις) não foi marcada por engano, im-
pureza, nem por dolo; pelo contrário, assim como temos sido aprovados
por Deus, que nos confiou a boa nova, assim falamos, não como baju-
ladores de pessoas, e sim agradando a Deus, que prova o nosso coração.
Pois jamais usamos de linguagem de bajulação, como sabeis, nem de
intuitos gananciosos. Deus disto é testemunha. Também jamais bus-
camos glória de homens, nem de vós, nem de outros. Embora pudés-
semos, como apóstolos do Messias, exigir de vós a nossa manutenção,
todavia, nos tornamos como crianças entre vós, também como mãe
que cuida bem de seus próprios filhos; assim, querendo-vos muito, es-
távamos prontos a oferecer-vos não somente a boa nova de Deus, mas,
igualmente, a própria vida; por que nós vos amamos.
Porque, vos recordais, irmãos, do nosso labor e fadiga; e de como, tra-
balhando dia e noite para não vivermos à custa de nenhum de vós, vos
proclamamos (ἐκηρύξαμεν) a boa nova de Deus.
Vós e Deus sois testemunhas da maneira como, piedosa, justa e irre-
preensivelmente procedemos em relação a vós outros, que credes. E
sabeis, ainda, de que maneira, como pai a seus filhos, a cada um de vós,
exortamos, encorajamos e admoestamos para viverdes de modo digno
de Deus, que vos chama48 para o seu reino e glória.

Essa autodescrição da estada de Paulo em Tessalônica não é uma


digressão, mas uma continuação da perícope anterior, indicada pela frase
“pois eles mesmos informam que repercussão teve o nosso período entre
vós”. Na perícope anterior, Paulo celebra a resposta dos tessalonicenses
à pregação do Evangelho, em que relembra sua passagem pela cidade e

48  O particípio presente, aqui mantido, possui uma evidência textual mais convincente: B, D, F,
G, H, K, L e P e a maioria dos manuscritos mais tardios. A forma no aoristo é encontrada em A
104 326 945 1505 2464 e nas versões latina, siríaca e copta. Em 1 Tessalonicenses, o verbo é usado
3 vezes, aqui e em 5,24 no presente, posto que a ênfase recai sobre o Deus que chama. Em 2,12, o
verbo está no aoristo, pois a ênfase recai sobre a ação humana em resposta ao chamado de Deus.

58
apresenta-se como exemplo (tema também já indicado na perícope ante-
rior “vos tornastes imitadores nossos e do Senhor”) a ser seguido, também,
nesse novo momento em que a comunidade passa por novas dificuldades
e sofrimentos. Assim, não se trata de uma apologia, mas de um encoraja-
mento (ou parênese) baseado na afirmação anterior da imitação de Paulo e
do Messias pelos tessalonicenses49.
Podemos ler esta perícope também como uma declaração parcial
de motivos para a escrita da carta:

Em síntese, eu diria que os conflitos enfrentados por Paulo em sua


passagem pela província da Macedônia estão relacionados ao anúncio
da mensagem cristã. Ao falar do Messias Jesus, o apóstolo incomo-
dou alguns segmentos do judaísmo que viram idolatria na proposta de
uma religião que tinha como objeto de culto um ser humano. Ao mes-
mo tempo, atingiu grupos religiosos de origem pagã, que se sentiram
igualmente ameaçados pela mensagem iconoclasta, que denominava
seus deuses de ‘ídolos vãos’. Incomodados, os religiosos afetados teriam
levado suas queixas às autoridades civis, em tom de ameaça à ordem
pública estabelecida pelos romanos, transformando a pauta religiosa
em problema político. Assim, Paulo teria sido acuado e saído às pres-
sas de Tessalônica. Ainda incomodados com a situação, as autoridades
políticas locais teriam pressionado a comunidade local sobre a nova
crença que professavam. É nesse contexto em que Paulo escreveu sua
carta para estimular seus discípulos e discípulas a permanecerem fir-
mes no que haviam aprendido, aproveitando a ocasião para exercitar,
como ele, a prática da parrhesia50.

A linguagem usada é típica da discussão filosófica helenista. Isso


pode sugerir que, na construção de sua identidade apostólica, Paulo não
somente se baseou em sua espiritualidade judaica farisaica ressignificada
messianicamente, mas também buscou elementos na tradição filosófica
grega, especialmente em textos cínicos e estoicos (como é reconhecido por

49 A linguagem aqui é típica das autorrecomendações aceitáveis no mundo greco-romano, v.


AGOSTO, Efrain. Paulo e a recomendação In: SAMPLEY, J. Paul (org.). Paulo no mundo greco-
romano. Um Compêndio. São Paulo: Paulus, 2008, p. 82-111.
50  OLIVA, Alfredo dos S. A coragem da verdade no cristianismo primitivo: uma análise da prática
da parrhesia cristã a partir da obra de Michel Foucault entre os séculos I e III d.C. Londrina, 2019,
p. 109 (texto inédito).

59
grande número de pesquisadores dos escritos paulinos), os quais, é claro,
ele ressignificou teologicamente. Paulo adota dois temas complementares
em sua autodescrição para encorajar a comunidade a permanecer firme
em sua fidelidade a Deus. O primeiro deles era muito importante na dis-
cussão filosófica – o tema da parrhesia51; enquanto o segundo vem do An-
tigo Testamento, o próprio Deus é reto e justo e seus seguidores também
o devem ser (cf. Dt 32,4; Sl 145,17; Pv 21,15). A complementaridade
entre esses temas já está presente no uso dos termos ligados à parrhesia
na Septuaginta (LXX) e em Filo. Junto a estes temas, Paulo também usa
as metáforas de filho, mãe e pai, acrescentando a intimidade familiar ao
testemunho de sua coragem e integridade na pregação da boa nova do
Messias Jesus.
A linguagem da parrhesia está ligada à integridade e à coragem
para falar a verdade em qualquer situação. Em Paulo o substantivo é usado
oito vezes (incluindo uma ocorrência nas Pastorais): 2Cor 3,12; 7,4; Ef 3,12;
6,19; Fl 1,20; Cl 2,15; Fm 8; 1Tm 3,13; enquanto o verbo (παρρησιάζομαι)
é usado duas vezes, aqui e em Ef 6,20. Os dois sentidos mais comuns da
palavra são usados por Paulo: o de confiança (2Co 7,4 e 1Tm 3,13), e o de
ousadia/coragem e integridade para falar publicamente (todas as demais
ocorrências, sendo que em Ef 3,12 o sujeito da parrhesia é a igreja). Con-
forme encontramos em uma das sínteses do sentido do termo nos filósofos
feita por Foucault,

este discurso que dá um relato de si mesmo deve definir a figura visível


que pessoas dão às suas vidas. Este falar-a-verdade não enfrenta o risco
metafísico de colocar aquela outra realidade da alma acima de, ou fora
do corpo; este falar-a-verdade agora enfrenta o risco e o perigo de di-
zer aos homens que tipo de coragem eles precisam e o quanto irá lhes
custar outorgar um certo estilo às suas vidas.52

51  Michel Foucault dedicou um de seus cursos ao tema da parrhesia, oferecendo um relato
detalhado do uso do tema e suas transformações na filosofia grega, bem como fazendo comparações
entre o tema na filosofia e no Cristianismo. FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade. Curso no
Collège de France (1983-1984). Volume 2 de O Governo de Si e dos Outros. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.
52  FOUCAULT, Michel. The Courage of the Truth. (The Government of Self and Others II).
Lectures at the Collège de France 1983-1984. (ed. GROS, FRÉDERIC). New York: Palgrave
Macmillan, 2011, p. 161.

60
Esta síntese descreve bem a atitude paulina, com a exceção, é claro,
de sua fé. Paulo se apresenta como pessoa íntegra, corajosa para dizer o que
deve ser dito às pessoas para que vivam adequadamente.
Podemos ter boa dose de certeza em afirmar que a ressignifica-
ção da parrhesia filosófica helenista por Paulo passou pelo uso da palavra
na LXX (cf. também seu uso por Filo), em que, como interpreta Foucault,

esta outra parrhesia emergente é definida como um tipo de modalidade


de relação com Deus plena e positiva. Ela envolve algo como a abertu-
ra do coração, a transparência da alma que se oferece à visão de Deus.
E, ao mesmo tempo em que ocorre esta abertura do coração e trans-
parência da alma diante de Deus, há um tipo de impulso ascendente
desta alma pura que se eleva ao Altíssimo53.

É o que temos aqui, pois Paulo fala sobre ter se tornado parre-
siasta “em nosso Deus” (ἐν τῷ θεῷ ἡμῶν) – incluindo os tessalonicenses
no estilo de vida apostólico-messiânico. A parrhesia de Paulo entre os
tessalonicenses certamente foi motivada pela perseguição e violência so-
fridas pelo apóstolo em Filipos, como ele mesmo relembra na perícope, e
serve também de estímulo para a parrhesia dos próprios tessaloniceneses
em meio às provações que agora sofrem. Não é à toa que, nesta passagem,
Paulo fale de seu ministério aos tessalonicenses usando também outros
dois termos predominantemente filosóficos: estada (εἴσοδον) e exortação
(παράκλησις) nos versos 2 e 3.54

53  FOUCAULT, op. cit., p. 326 (citando Pv 10,9-11). Podemos descontar os excessos de sentido
ligados ao uso do termo ‘alma’.
54  “Conceitualmente, eisodos se relaciona com a noção paulina de que Deus abre portas a ele para
pregar o evangelho em meio à adversidade (1Co 16,9; 2Co 2,12; cf. Cl 4,3). Bem diferente é a visão
do suicídio de Epíteto, como uma porta que Deus abre para o filósofo (Discursos 1.24.19; 3.8.6;
13.14). Paulo, porém, usa terminologia e imagens em 2,1-12 que são comuns nas descrições dos
missionários filósofos e este pode bem ser o caso aqui. A palavra eisodos é usada para a entrada na
filosofia (Luciano, Hermotimus 73-74). A eisodos pros hymas (‘estada entre vós’) de Paulo, porém, é
mais provavelmente uma formulação equivalente ao eisenais pros dos filósofos (Plutarco, A Letter
of Condolence do Apollonius 111f; Epíteto, Discursos 1.30.1; 3.1.1), eisenai eis (Epíteto, Discursos
3.23.23; Dio Crisóstomo, Oration 32.4, 20; cf. 7,10 para eisenai usado intransitivamente) e ienai
eis (Dio Crisóstomo, Oration 32.8). Essas formulações são o equivalente de ir eis to meson (‘ao
meio’), ou estar em to meso (‘no meio’ 2,7; ver nota e comentário a 1,5). Para os filósofos, estas frases
descreviam o seu envolvimento público, incluindo a sua fala, que requeria coragem, especialmente
diante da imprevisibilidade das multidões. Crates, um dos antigos cínicos, era chamado de ‘Abridor
de Portas’ por causa de seu hábito de entrar energicamente em cada casa (eis pasan eisienai oikian)

61
Em especial, o uso de “exortação” aqui é significativo. O uso co-
mum desta palavra e assemelhadas tem a ver com a ética e com o encora-
jamento, mas aqui é uma descrição da ação evangelizadora de Paulo, uma
descrição de seu apostolado, fugindo, assim, ao sentido mais comum do ter-
mo (também atestado em Paulo, e.g., Rm 12,1). A fala “paraclética” pertence
ao ambiente da fala parresiasta, pois aquele que fala parresiasticamente fala
para transformar a sua própria vida e a vida de seus ouvintes. Mas o termo
também pertence ao ambiente da esperança judaica de restauração, usado
com certa frequência em Jeremias e no Dêutero-Isaías (a LXX usa o verbo
desta raiz para traduzir o hebraico nhm, e.g. Is 40,1, consolar, encorajar). O
primeiro uso do verbo “anunciar boa notícia” em sentido teológico no An-
tigo Testamento está no livro de Naum (consolador) 1,15 com referência à
libertação do domínio assírio. Lc 2,25 exemplifica o uso absoluto do subs-
tantivo para se referir à esperança judaica: “Havia em Jerusalém um homem
chamado Simeão; homem este justo e piedoso que esperava a consolação de
Israel; e o Espírito Santo estava sobre ele”. Em 2 Ts 2,16 o termo é usado
neste sentido: “Ora, nosso Senhor Jesus, o Messias, e Deus, o nosso Pai, que
nos amou e nos deu eterna consolação e boa esperança [...]”.55
Nos versos 7 e 11, Paulo usa três metáforas do campo da família
para se identificar perante os tessalonicenses: filho56, mãe (amamentando)
e pai. A metáfora paterna não chama muito a atenção, posto que seria
mais comum para um apóstolo judeu assim se identificar em relação à
comunidade. As outras duas, porém, são mais desafiadoras em seu uso. Ao
apresentar-se, simultaneamente, como “criança” e como “mãe”, Paulo ado-

e admoestar seus residentes (Plutarco, Table Talk 2.632; Diógenes Laércio, Vida dos Eminentes
Filósofos 6.86), e, conforme uma tradição de Juliano, Oration 6.200b, os gregos escreviam na
entrada de suas casas ‘Entrada [eisodos] para o Bom Gênio Crates’. Paulo difere dos filósofos em
que é Deus que lhe dá a coragem para falar (cf. verso 2)” (MALHERBE, op. cit., p. 136).
55  O verbo parakaleo é usado oito vezes nesta carta: quatro vezes referindo-se a exortações de
Paulo ou Timóteo aos tessalonicenses (2,12; 3,2; 4,1.10), uma vez relativo ao encorajamento de
Paulo pelos tessalonicenses (3,7) e três vezes (4,18; 5,11.14) para os tessalonicenses se encorajarem
mutuamente. Outros termos relativos à exortação e ao cuidado pastoral em geral são usados na
carta: 2,12 paramytheisthai (“confortar”), martyresthai (“testemunhar”); 3,2 stērizein (“confirmar”);
4,2 parangelia (“preceito”); 4,6 diamartyresthai (“testemunhar”); 4,11 parangellein (“exortar”);
5,12 erotān (“rogar”), proistanai (“cuidar”), nouthetein (“admoestar”); 5,14 nouthetein, paramythein,
antechestai (“ajudar”), makrothymein (“ter paciência”).
56  Este termo, na tradição textual, foi alterado em vários manuscritos para “carinhoso”, mas a
leitura mais difícil deve ser seguida.

62
ta duas figuras identitárias que na cultura patriarcal da honra pertenciam
a níveis inferiores de valor. Essas metáforas, usadas em conjunto, revelam
detalhes da visão do apostolado por Paulo: a condição inferior e frágil da
vocação apostólica, a condição subalterna, mas nutridora e carinhosa, a
autoridade e o cuidado. O povo de Deus é visto como família e a comu-
nidade é vista não só como composta de irmãos e irmãs, mas também de
maridos (se o apóstolo é mãe...) e pais (se o apóstolo é filho...).
Duas monografias recentes foram dedicadas a este tema nos escritos
de Paulo, e vale a pena citar ambas:

Aqui Paulo usa uma metáfora mista, talvez até mesmo invertida, mas
com boas razões. Ele está lutando para identificar dois aspectos do
papel apostólico. O apóstolo é infantil, em contraste com o charlatão
que constantemente trabalha para extrair o máximo de benefício pos-
sível de sua audiência. O apóstolo é também o adulto responsável, em
primeira instância, a ama de leite que cuida de seus encarregados com
carinho e afeição57;

O fato de que Paulo usa estas diferentes imagens em estreita proximi-


dade para descrever o mesmo objeto ilustra, de acordo com Gaventa,
sua compreensão da natureza complexa e contracultural do aposto-
lado: ‘apóstolos’ de Cristo não devem ser compreendidos em senti-
do ordinário. Para entendê-los, assim como para entender o próprio
evangelho, deve-se empregar categorias que parecem ultrajantes fora
do contexto do paradoxo paulino. Embora em sentenças diferentes,
as metáforas da criança e da amamentadora criam uma justaposição
enfática; não uma justaposição sem sentido, mas uma que promove os
objetivos retóricos de Paulo58.

Por meio de sua ressignificação das noções de família, parrhesia


e exortação, Paulo constrói aqui a sua identidade apostólica e as apresenta
como modelo para a identidade da comunidade dos tessalonicenses. Paulo

57  GAVENTA, Beverly R. Our Mother Saint Paul. Louisville: Westminster John Knox, 2007, p. 27.
58  MCNEEL, Jennifer Houston. Paul as infant and nursing mother: metaphor, rhetoric, and
identity in 1 Thessalonians 2:5-8. Atlanta: SBL Press, 2014, p. 153.

63
não aceita ser visto como patrono da comunidade, de modo que se esforça
por construir uma relação de igualdade de status entre ele e a comunidade
dos tessalonicenses. Semelhantemente, Paulo não vê a si mesmo propria-
mente como um filósofo (de fato há alguma razão na definição de Pau-
lo por Alain Badiou como o “antifilósofo”, se pensarmos no filósofo dos
tempos modernos. Se seguirmos a visão de Pierre Hadot sobre o filósofo
antigo, há mais semelhanças entre Paulo e os filósofos do que comumente
se aceita), nem como o típico judeu (fariseu) que (raramente) desafia um
gentio a aceitar a condição judaica, ou um mestre rabínico que ensina seu
discípulo. Paulo vê a si mesmo como um imitador do Messias, um mix
de profeta, sábio, evangelista, pastor e irmão – membro de uma grande e
inovadora família – que não só anuncia a nova vida, mas participa da nova
vida das comunidades por ele fundadas, sendo solidário com seus novos
irmãos e irmãs em seu novo estilo de vida que, por não se adequar ao ethos
social, provoca reações fortemente adversas.59 Tudo isso é confirmado pelo
conjunto da perícope, mediante o uso imponente de termos ligados à in-
tegridade, à coragem, à disposição de sofrer por manter um novo estilo
de vida “diante de Deus”, “em Deus”, em resposta à “boa nova de Deus”.
Podemos, ainda, refletir sobre o sentido da linguagem do teste/
provação também presente na perícope. A prova em questão pode ser a
evidência da parrhesia, mas devemos ir além e encontrar as figuras judai-
cas que estão no pano de fundo dessa linguagem. Duas personagens, em
particular, saltam à mente, personagens que Paulo usará em outras de suas
epístolas: Adão e Abraão. O primeiro foi um exemplo de pessoa testada
e reprovada (Gn 2-3), enquanto Abraão é a figura típica do judeu pro-

59  “Quando Paulo adota e usa este vocabulário ele o funde com seu apelo evangelístico, o chamado
ou o convite divino para responder à mensagem. O apelo à resposta de fé é fundamentado no ato
anterior de Deus: o convite e o chamado estão indissoluvelmente ligados ao anúncio das boas
novas do que Deus já fez. O uso paulino da terminologia da paraklesis para resumir o todo de
sua mensagem é belamente capturado em 2Co 5,19-21; os parágrafos iniciais de 2 Coríntios
estão saturados deste vocabulário (dez vezes em 2Co 1,3-7). O ‘exortador’ (parakalon) nas igrejas
paulinas é o pregador que, em palavra e ações, anuncia o ato salvífico de Deus em Cristo e convida/
encoraja/exorta/apela por uma resposta. Como o termo evangelho pelo qual é aqui envelopado
(2,2.4), paraklesis tem o duplo sentido de dom e demanda, comunicada em um tom de voz
encorajador. Em Fm 7-8, paraklesis é contrastada com ‘comando’. Este tipo de apelo fundamentado
é a quintessência da paraklesis paulina, à qual ele se refere nesta carta”. BORING, M. Eugene. I and
II Thessalonians: A Commentary. Louisville: Westminster John Knox Press, 2011, p. 2958-2967
(Edição do Kindle).

64
vado e aprovado por Deus (cf., e.g., Rm 4). Uma alusão a uma ou ambas
personagens é possível na perícope, embora, de qualquer modo, a ideia da
aprovação no teste divino seja fundamental na construção da identidade
apostólica e das comunidades de seguidoras e seguidores do Messias. É a
identidade do novo Israel de Deus (cf. Gl 6,16), o novo povo de Deus que,
não mais composto apenas de judeus, mas também de gentios, é o cum-
primento messiânico da promessa divina a Abraão, de ser o pai de muitas
nações. Faz parte da parrhesia paulina reler a Escritura e oferecer uma
nova interpretação da promessa divina a Israel.
Encontramos, nesta perícope, a primeira autodescrição pauli-
na como apóstolo do Messias Jesus. Certamente o sentido judaico do
mensageiro representante de seu destinador está aqui presente. Paulo é o
Messias Jesus presente entre os tessalonicenses e, pregando-lhes a boa
nova messiânica, certamente lhes ensinou a serem também representan-
tes do Messias em sua nova vida. A ideia de imitação do Messias certa-
mente se encaixa aqui e foi uma referência fundamental para a vida de
Paulo. A parrhesia paulina é parrhesia messiânica – Jesus é o exemplo
climático de parresiasta para Paulo. A boa nova de Deus é que, agora,
mediante a resposta de fidelidade ao anúncio da boa notícia, cada pessoa
pode se tornar representante parresiasta do Messias Jesus.60 Por isso, a
linguagem familiar é também usada por Paulo aqui – seguir ao Messias
Jesus implica em entrar em uma nova família, construir uma nova iden-
tidade e uma nova pertença, que transcende as fronteiras étnicas, sociais,
culturais e econômicas. Uma ousada parrhesia, poderíamos dizer, a de
ser o novo povo de Deus em meio à gigantesca e terrível presença do
poderoso Império Romano. Será preciso mais do que essa descrição para
compreender a atitude de Paulo diante do Império?

60  Não é inviável pensar na importância dos laços de similaridade e diferença entre Paulo, as
comunidades cristãs paulinas e os filósofos cínicos. Não é impossível que as pessoas que viviam
desordenadamente (ἀτάκτους em 5,14) e ameaçavam a integridade da comunidade fossem pessoas
que teriam adotado uma forma cínica radical de vida, abandonando o trabalho e se dedicando a
exortar e confrontar a cidade com o seu modo de vida alternativo. Além da pesquisa exegética
sobre a relação entre Paulo e a filosofia cínica, vale a pena também consultar a obra já citada de
Foucault que dedica bom número de páginas ao tema, especialmente na aula 10, p. 177ss. Para a
discussão exegética. Ver, em especial: DOWNING, Francis Gerald. Cynics, Paul, and the Pauline
Churches: Cynics and Christian Origins II. Londres; Routedge, 1998; e MALHERBE, Abraham
J. Paul and the Popular Philosophers. Philadelphia: Fortress, 1989.

65
1.3.4 A recepção do Evangelho em meio ao sofrimento (2,13-16)

É por isto que nós, incessantemente, agradecemos a Deus: posto que,


recebida por vós a palavra que de nós ouvistes, que provém de Deus,
a recebestes não como palavra humana, e sim como, em verdade é,
palavra de Deus que vos dinamiza, os fiéis. Pois vos tornastes imitado-
res das igrejas de Deus que estão na Judeia no Messias Jesus; porque
também padecestes, da parte dos vossos compatriotas, as mesmas coi-
sas que eles, por sua vez, sofreram dos judeus, os quais não somente
mataram o Senhor Jesus e os profetas, como também nos perseguiram,
não agradando a Deus, e tornando-se adversários de toda a humanida-
de, impedindo-nos de falar aos gentios para que sejam salvos, preen-
chendo assim a medida de seus pecados; a ira, porém, enfim sobreveio
contra eles.

Esta perícope oferece dois problemas básicos à interpretação.


Em primeiro lugar, vários intérpretes a consideram uma glosa pós-pau-
lina. Em segundo lugar, e esta é a razão para a consideração da perícope
como glosa, a sua acusação aos judeus como os que ‘mataram o Senhor
Jesus’ pode e tem sido interpretada como uma forma exaltada de discrimi-
nação. Aqui, como poderá ser visto, entendo a perícope como paulina e a
acusação aos judeus como limitada ao contexto da fala de Paulo aos tes-
salonicenses, de modo que não deveria servir como base para preconceito
contra o povo judeu em geral. Sintaticamente o parágrafo é composto por
dois períodos: verso 13 e versos 14 e 16 que formam uma única sequência
no grego, o que a tradução anteriormente manteve.
A primeira sentença da perícope retoma o tema anterior, da es-
tada dos apóstolos em Tessalônica, mas, agora, do ponto de vista dos tes-
salonicenses. Paulo os relembra de que receberam a pregação da boa nova
como palavra de Deus e não meramente como palavra humana. Paulo
reafirma o que já fora dito no primeiro capítulo sobre a maneira como os
tessalonicenses receberam a pregação, enfocando aqui o caráter dinâmico
da palavra pregada, cuja origem é Deus e funciona como instrumento da
dynamis divina não só para a salvação (cf. Rm 1,16-17), mas também para
a vida da comunidade de fiéis – ressalto esta tradução de pistis para evitar

66
cairmos no hábito de pensá-la como a fé enquanto objeto da crença. Pistis
é, predominantemente em Paulo, a relação de confiança e fidelidade que
se estabelece com Deus.
A segunda parte da perícope destaca que essa recepção da pa-
lavra pregada se deu em meio ao sofrimento causado pelos compatriotas
– a população tessalonicense – assim como os primeiros seguidores do
Messias, na Judeia, que também foram perseguidos por seus compatriotas
judeus. A essa altura da carreira de Paulo, os conflitos com o Judaísmo
ainda eram relativamente difusos (mais tarde, o problema passa a ser mais
específico e os adversários judeus de Paulo são os judaizantes, provavel-
mente seguidores do Messias que, com base em seu zelo pela identidade
judaica, queriam que os gentios se tornassem judeus para poderem parti-
cipar da vida comunitária). A comparação com as comunidades da Judeia
é feita mediante o uso do adjetivo imitadores – retomando a afirmação de
1,6 – os tessalonicenses se tornaram imitadores do Messias, de Paulo e das
comunidades anteriores de seguidores do Messias na Judeia. Assim, Paulo
equilibra a sua forte invectiva contra os judeus “que mataram os profetas
e o Senhor Jesus e se tornaram inimigos de toda a humanidade”. Não se
trata de uma acusação antissemita, mas de uma acusação factual e tradi-
cionalmente acurada em relação à primeira parte, mas exagerada em sua
segunda parte, repetindo uma acusação mais tipicamente preconceituosa.
O fato de Paulo ter deixado de usar esse argumento em suas outras cartas
pode ser um indício de que ele mesmo percebeu os riscos de usar este tipo
de linguagem, a qual evoca sentimentos discriminatórios não condizentes
com a nova vida vivida em resposta à palavra pregada.
Não sabemos a que Paulo se refere quando fala da chegada da
ira sobre os judeus, que pode ser uma referência à ira vindoura de 1,9-10
ou, mais provavelmente, a algum evento punitivo mais localizado. No-
vamente, a atitude de Paulo em suas cartas posteriores, especialmente
Rm 9-11, nos oferece condições de mitigar o alcance dessas afirmações
condenatórias. Se Paulo já pensava nesse momento como mais tarde, em
relação à não aceitação do Messias pela maioria dos judeus, é impossível
saber. Fato é que esse parágrafo usa uma linguagem que facilmente pode
ser interpretada de modo discriminatório, antissemita. Que Paulo não

67
tivesse condições de perceber isso com clareza, então, é algo que pode-
mos reconhecer.

1.3.5 Visita impedida e Relatório de Timóteo (2,17-3,10)

Ora, nós, irmãos, orfanados, por breve tempo, de vossa presença, não,
porém, do coração, com tanto mais empenho diligenciamos, com grande
desejo, ir ver-vos pessoalmente. Por isso, quisemos ir até vós (pelo menos
eu, Paulo, não somente uma vez, mas duas); contudo, Satanás nos barrou
o caminho. Pois quem é a nossa esperança, ou alegria, ou coroa em que
exultamos, na presença de nosso Senhor Jesus em sua vinda? Não sois
vós? Sim, vós sois realmente a nossa glória e a nossa alegria!
Pelo que, não podendo suportar mais o cuidado por vós, pareceu-nos
bem ficar sozinhos em Atenas; e enviamos nosso irmão Timóteo, mi-
nistro de Deus no evangelho do Messias, para, em benefício da vossa
fé, confirmar-vos e exortar-vos, a fim de que ninguém se inquiete com
estas tribulações. Porque vós mesmos sabeis que estamos designados
para isto; pois, quando ainda estávamos convosco, predissemos que ía-
mos ser afligidos, o que, de fato, aconteceu e é do vosso conhecimento.
Foi por isso que, já não me sendo possível continuar esperando, man-
dei indagar o estado da vossa fé, temendo que o Tentador vos provasse,
e se tornasse inútil o nosso labor.
Agora, porém, com o regresso de Timóteo, vindo do vosso meio, tra-
zendo-nos boas notícias da vossa fé e do vosso amor, e, ainda, de que
sempre guardais grata lembrança de nós, desejando muito ver-nos,
como, aliás, também nós a vós outros, sim, irmãos, por isso, fomos con-
solados acerca de vós, pela vossa fé, apesar de todas as nossas priva-
ções e tribulação, porque, agora, vivemos, se é que estais firmados no
Senhor. Pois que ações de graças podemos tributar a Deus no tocante a
vós outros, por toda a alegria com que nos regozijamos por vossa causa,
diante do nosso Deus, orando noite e dia, com máximo empenho, para
vos ver pessoalmente e reparar as deficiências da vossa fidelidade?

Paulo volta à linguagem de reafirmação e encorajamento. No pri-


meiro parágrafo desta perícope ele retoma a linguagem da intimidade fami-
liar e se lamenta pela distância entre ele e a comunidade. Reafirmou seu de-
sejo de visitá-los, mas destaca que foi impedido por Satanás – que situação
específica teria causado esse impedimento é impossível de saber a partir do

68
texto. Depois de se reapresentar como filho, Paulo destaca que os tessaloni-
censes são o motivo de seu orgulho e exultação na parousia do Senhor Jesus
(tema tratado também em Cl 1,24ss sob outro ponto de visita). A presença
de “Satanás” nas cartas de Paulo não é frequente. De fato, somente nas car-
tas aos coríntios ou em cartas escritas de Corinto: 1Co 5,5; 7,5; 10,10; 2Co
2,11; 4,4; 6,15; 11,3.14; 12,7; 1Ts 2,18; 2Ts 2,9; Rm 16,20. A menção aqui
está dentro da visão conflitiva da dimensão “espiritual” da realidade que,
para Paulo, como para a maioria das pessoas da época, era povoada por seres
de vários tipos. Em Paulo, Satanás é um dos poderes que escravizam o ser
humano e oferecem resistência à obra salvífica de Deus.
Os dois parágrafos seguintes da perícope se referem à visita de
Timóteo, que foi no lugar de Paulo, e seu relatório. Paulo fica feliz por
saber da perseverança dos tessalonicenses na fidelidade a Deus e pela sua
relação afetiva com o próprio Paulo – de modo que o motivo da visita
“confirmar e exortar” foi plenamente cumprido. A linguagem aqui tem a
força retórica de vincular estreitamente Paulo e os tessalonicenses como
membros de uma mesma e única família – a família de Deus no Messias
Jesus que sofre, mas persevera unanimemente, mesmo quando a distân-
cia impede o contato face a face. Paulo usa palavras já presentes em suas
demonstrações anteriores de gratidão e confiança nos tessalonicenses, de
modo que essa primeira parte da carta respira uma retórica de familiari-
dade e amizade intensa.
Ao mesmo tempo, a linguagem usada indica que Paulo, como
apóstolo aos tessalonicenses, não só tem responsabilidade por eles perante
Deus, mas também representa Deus perante os tessalonicenses. O final
da perícope destaca o papel da oração no ministério de Paulo, tanto como
demonstração de gratidão, como expressão de sua solidariedade com a co-
munidade e sua dependência de Deus como aquele que está junto de seu
povo e o protege das adversidades. Ressalta também a autoridade minis-
terial de Paulo, que tem o dever de “reparar as deficiências” na fidelidade
dos tessalonicenses.

69
1.3.6 Planos para visita de Paulo (3,11-13)

Ora, o nosso mesmo Deus e Pai, e Jesus, nosso Senhor, dirijam-nos o


caminho até vós, e o Senhor vos faça crescer e aumentar no amor uns
para com os outros e para com todos, assim como nós vos amamos in-
tensamente, a fim de que o vosso coração seja confirmado sem mancha,
em santidade, na presença de nosso Deus e Pai, na parousia de nosso
Senhor Jesus, com todos os seus santos.

Esta pequena perícope ocupa o lugar central na estrutura discur-


siva da carta. Em sua primeira parte, ela retoma e resume todo o conteúdo
anterior, enfatizando, porém, Deus como o sujeito efetivo do crescimento
espiritual da comunidade e como aquele que faz crescer o amor da sua
nova família. Na segunda parte da perícope (de fato, na última linha), ele
prepara o caminho para o tema principal da parte final da carta, a parousia
do Senhor Jesus e a vida de santidade da esperançosa comunidade messi-
ânica. Paulo terminara a perícope anterior falando de suas orações pelos
tessalonicenses, e esta perícope é a sua oração pedindo a Deus que possa
visitar a comunidade, de modo que o apóstolo permite aos tessalonicenses
se unirem à sua oração quando da leitura pública da carta.
A abertura da oração destaca a fé comum de Paulo e dos tessa-
lonicenses no único Deus e Pai e no Senhor Jesus – o uso dos pronomes
“nosso” e “mesmo” (autos) enfatizam a pertença comum de escritor e lei-
toras ao mesmo Deus. Se na perícope anterior Paulo destacara sua alegria
pelos tessalonicenses na parousia do Senhor, agora ele destaca o amor dos
tessalonicenses na parousia. A palavra amor é usada cinco vezes nesta carta
(1,3; 3,6.12; 5,8.13). Em 1,3 e 3,6, Paulo elogia o amor ativo dos tessalo-
nicenses, confirmado pelo relatório de Timóteo. Em 5,8.13 ele exorta os
tessalonicenses a usar o amor (com a fé e a esperança) como proteção e
vivê-lo como estilo de vida escatológico, e a demonstrar amor pelos líderes
da comunidade. Aqui ele os exorta para que o amor cresça em abundân-
cia, excessivamente (πλεονάσαι καὶ περισσεύσαι), ou seja, a relação de
amor para com o próximo não é quantificável, não pode ser compreendida
dentro dos limites do cálculo de honra-desonra da cultura mediterrânea.
O amor é a resposta paulina à perseguição, às tribulações e sofrimentos,

70
aos conflitos provocados pelo novo estilo parresiástico de vida da família
de Deus – o que é destacado aqui pela expressão “para com todos”, extra-
polando assim as fronteiras identitárias da comunidade messiânica. Esse
amor é o mesmo demonstrado por Deus Pai e pelo Senhor Jesus em sua
ação conjunta em prol da salvação da criação.
A visão romântica moderna do amor deve ser descartada na inter-
pretação de Paulo, para quem o amor é muito mais do que um sentimento,
é uma atitude que demarca o estilo de vida da comunidade messiânica. “De
acordo com Paulo, o amor sintetiza todas as obrigações sociais (Rm 13,8-
10; Gl 5,12-15) e é o elemento vinculador nas relações entre os membros
das congregações a quem ele escreve. Isso é algo similar aos epicureanos dos
dias de Paulo (MALHERBE, 1987, p. 40-42, 102). Para Paulo, porém, o
amor não é algo utilitarista, como a amizade o era para os epicureanos, algo
necessário para se atingir um objetivo (Diógenes Laércio, Vida dos Eminen-
tes Filósofos 10.120; rejeitado por Cícero, Sobre a Amizade 27-28,30; Sêneca
Epístola 9.17; ver BERRY, p. 111-113). Paulo ora por um crescimento dra-
mático em seu amor, a ser realizado por Deus, com um alvo escatológico
(ver também 1Co 13,8-13 para a dimensão escatológica do amor.”61

1.3.7 Exortações a uma vida santa (4,1-12)

Quanto ao mais, irmãos, nós vos pedimos (ἐρωτῶμεν) e exortamos


(παρακαλοῦμεν)62 no Senhor Jesus que, assim como recebestes de nós
a tradição sobre como devemos viver e agradar a Deus (περιπατεῖν καὶ
ἀρέσκειν θεῷ) - que continueis progredindo cada vez mais; porque
estais inteirados de quantas preceitos (παραγγελίας) vos demos através
do Senhor Jesus.
Pois esta é a vontade (θέλημα) de Deus: a vossa santificação (ἁγιασμὸς),
que vos abstenhais da imoralidade sexual (πορνείας); que cada um de
vós saiba possuir o próprio corpo63 em santificação (ἁγιασμὸς) e honra

61  MALHERBE, op. cit., p. 215.


62  Forma similar encontramos em Rm 12,1; 15,30; 1Co 1,10; 2Ts 2,1-2. O primeiro verbo aqui
usado tem um tom mais “familiar” do que “oficial”, coerente com o tom da carta como um todo.
63  A palavra grega pode ser traduzida literalmente por “vaso” e há amplo debate sobre a sua
tradução aqui. Não há consenso exegético, de modo que as traduções “esposa” ou “corpo” são
igualmente atestadas na pesquisa e possuem argumentação suficiente para sua defesa. Preferi

71
(τιμῇ), e não sucumbindo a todo tipo de concupiscência (ἐπιθυμίας)
como os gentios que não conhecem a Deus, de modo que ninguém
ofenda ou defraude a seu irmão nestes assuntos; pois o Senhor é quem
estabelece justiça em todas estas coisas, assim como já vos informa-
mos e testificamos solenemente; porquanto Deus não nos chamou
(ἐκάλεσεν) para a impureza (ἀκαθαρσίᾳ), e sim para a santificação
(ἁγιασμῷ). Consequentemente, quem rejeita estas coisas não rejeita
o ser humano, mas Deus, que vos dá o seu Espírito Santo (τὸ πνεῦμα
αὐτοῦ τὸ ἅγιον).
No tocante ao amor fraternal (φιλαδελφίας), não há necessidade
de que eu vos escreva, porquanto vós mesmos sois ensinados por
Deus (θεοδίδακτοί) a amar (ἀγαπᾶν) uns aos outros; e, na verda-
de, estais praticando isso mesmo para com todos os irmãos em toda
a Macedônia. Contudo, vos exortamos (Παρακαλοῦμεν), irmãos,
a progredirdes cada vez mais e a aspirardes viver com serenidade
(ἡσυχάζειν), a cuidar do que é vosso e trabalhar com as próprias
mãos, como vos ordenamos (παρηγγείλαμεν); de modo que vos por-
teis de modo adequado (περιπατῆτε εὐσχημόνως) para com os de
fora e de nada tenhais necessidade.

A perícope é estruturada em seu plano de expressão mediante o


uso de termos repetidos nos versos 1, 2 e 11, 12 e mediante o uso de pa-
lavas relativas à santidade nos versos 3, 4, 7 e 8 e mediante a temática do
amor ao próximo e da vida serena (indicados acima mediante a inclusão
da palavra grega). A estrutura do texto e a sua organização discursiva tor-
nam claro que a temática da perícope recobre o que costumamos chamar
de ética, mas de tal forma que não está desvinculada da noção ‘teológica’
da santificação e do amor fraternal. A linguagem da perícope revela vín-
culos interdiscursivos tanto com a tradição judaica da vida de santidade
quanto com a tradição filosófica helenista da vida ética, o que pode ser vis-
to, também, no caráter mais teocêntrico do que cristocêntrico da perícope:
apenas duas vezes Paulo menciona o Senhor Jesus (versos 1 e 2), enquanto
menciona Deus sete vezes. As duas menções do Senhor Jesus, porém, de-

traduzir o termo por “corpo” pois entendo que a tradução “esposa” restringiria demais o alcance
da exortação, mantendo-a exclusivamente no âmbito das relações marido-mulher, enquanto o
tom da perícope é bem mais amplo, referindo-se tanto à vida comunitária quanto às relações da
comunidade com “os de fora”.

72
sempenham papel crucial, pois estabelecem um critério messiânico para a
ressignificação das tradições judaica e helenista usadas aqui.
Para superarmos os impasses de linguagem, ao invés de ética
ou espiritualidade, ou termo similar com uma história pesada de senti-
dos, optarei por categorizar a temática desta perícope como estilo de vida
messiânico – uma terminologia que, creio, está bem mais de acordo com as
tradições judaica e helenista de moralidade, incorporadas e ressignificadas
aqui por Paulo. É um “estilo de vida” na medida em que não se trata de
seguir regras bem delineadas e definidas, mas de buscar viver de modo que
Deus seja agradado – o que demanda reflexão e relacionamento com Deus
e com o próximo, e não mera obediência a regras detalhadas. É “messiâni-
co” pois o que Paulo “pede e exorta” ele o faz “no Senhor Jesus” e baseado
no ensinamento do “Senhor Jesus” (versos 1 e 2).
Esse estilo de vida messiânico tem como eixo central agradar a
Deus (περιπατεῖν καὶ ἀρέσκειν θεῷ – temos aqui uma hendíade), tema
que é desdobrado em dois exemplos concretos: o comportamento sexual e
o comportamento social – tanto na comunidade como na sociedade mais
ampla. O verbo peripateo é amplamente usado por Paulo para indicar o
estilo de vida messiânico e tem suas raízes na linguagem sapiencial e pro-
fética da Escritura (e.g. Pv 9,6; Is 30,21; Jr 7,23; Ez 20,19). O mesmo vale
para o verbo “agradar” (usado 12 vezes em Paulo), também com raízes na
sabedoria e profecia israelitas (e.g. Sl 115,3; Pv 10,32; Ec 2,26; 5,4; 9,7;
Is 56,4; Jr 14,10; Ml 2,17).64 A noção de agradar a Deus, por sua vez, é
correlata à noção de Deus agradar-se de pessoas ou de fazer o que agrada
ao ser humano – a salvação. A vontade de Deus, tema que virá logo a seguir,

64  “A ideia de agradar a Deus como o alvo da conduta humana é derivada do Antigo Testamento
(e.g. Gn 5,22.24; 6,9; 17,1; Lv 10,20; Nm 25,7; Sl 55,13; 68,31; 114,9). Era necessário para Paulo
ressaltar esta conexão entre religião e moralidade e ele usa areskein (‘agradar’) e seus cognatos
em outros lugares também com sentido moral (Rm 8,8; 12,1-2; 1Co 7,32; 2Co 5,9; cf. Ef 6,6;
Cl 3,22). A linguagem, porém, não teria sido completamente estranha aos seus leitores gentios,
pois esta linguagem da piedade também era usada por filósofos morais para descrever o alvo da
pessoa moral como seguir ou agradar a Deus (e.g. Ecphantos, ap. Stobaeus, Anthology 6.7.65;
82.24 Thesleff ). Para o estoico Epíteto isto significava viver em harmonia com a ordem cósmica
(Discursos 1.12.8; cf. 7; 2.23.42, e ver 1.30.1; 2.14.12-13; 18.19; 4.4.48; cf. Sêneca Epístola 74.20-
21, exaltando o amor à razão). Seu professor, Musonius Rufus (Fragment 16 final), sustentava
que para viver racionalmente, ou seja, filosoficamente, era necessário praticar a vontade de Deus.”
(MALHERBE, op. cit., p. 219-220).

73
equivale àquilo que agrada a Deus, cuja vontade é “boa, perfeita e agradá-
vel” (Rm 12,2), expressão de sua graciosidade e generosidade em benefício
de toda a sua criação. Não se trata, então, primariamente de uma ética da
relação “indicativo-imperativo”, mas, sim, de uma relação de fidelidade
com Deus de tal modo que Ele próprio realiza a sua vontade na pessoa fiel
que a Ele se entrega plenamente com toda a confiança e convicção. A me-
táfora usada em Gl 5,15ss – fruto – é bastante apta para indicar o caráter
orgânico dessa relação entre Deus e seu povo – aqui indicada sutilmente
pela frase “que vos dá o seu Espírito Santo” (verso 8).
O primeiro tema concreto do estilo de vida messiânico aqui
apresentado é o da santificação no comportamento sexual (a forma sin-
tática do verso 3 mostra que não se está falando da santificação em
geral, mas da santificação na área da sexualidade). A descrição paulina
da santificação neste parágrafo é tipicamente judaica e não seria vista
com muito bons olhos por uma audiência gentílica masculina que teria
ampla facilidade em manter relações sexuais com várias mulheres (e,
eventualmente, também rapazes). Para uma audiência judaica, por outro
lado, a exortação paulina faria todo sentido (lembremos, ainda, de que
esse tema serve também como metáfora para a idolatria na Escritura).
Na tradição judaica adotada por Paulo as relações sexuais devem ser ex-
clusivas do matrimônio e todo tipo de busca de prazer sexual fora do ca-
samento seria considerado impureza. A importância do tema para Paulo
é destacada pela solenidade da linguagem – quem rejeitar o conselho es-
tará rejeitando orientação do próprio Deus que dá o Espírito Santo à sua
nova família. Esse tema será retomado com mais detalhes e argumen-
tação em Rm 1,18ss em que Paulo vincula a imoralidade sexual à “im-
piedade e injustiça humanas” que negam Deus e sua vontade. Devemos,
porém, nos perguntar por que Paulo une esses dois temas aparentemente
desconexos – sexo e relações sociais? Porque na sociedade greco-romana
(e até hoje), são temas fortemente relacionados, especialmente o uso das
relações sexuais como manifestação de poder e prestígio social. Na so-
ciedade patriarcal quiriárica do mundo greco-romano, a sexualidade não
era uma dimensão “autônoma” e/ou “isolada” da vida pessoal, mas parte
integrante dos relacionamentos sociais e políticos.

74
O segundo exemplo concreto da santificação é o do comporta-
mento social e as relações de poder nele implicadas. Embora o parágrafo
inicie com o “amor fraternal”, imediatamente amplia o foco para o amor
ao próximo e a conduta social adequada ao estilo de vida messiânico. Pau-
lo usa uma argumentação interessante: introduz o tema do amor, mas diz
que é desnecessário se estender sobre ele, pois os tessalonicenses já são
ensinados pelo próprio Deus a amar o próximo, e já o praticam, inclusive,
para com outras comunidades messiânicas. Então, Paulo amplia o foco da
prática do amor para a vida social em geral. Como expressão desse amor,
Paulo pede que os tessalonicenses vivam de modo sereno (não provocan-
do tumultos ou problemas na cidade), trabalhando e se sustentando, ocu-
pando-se de seus próprios assuntos e recebendo dos de fora uma avaliação
positiva sobre sua conduta. O campo de linguagem aqui representado é
o da ambição pessoal, do objetivo da vida de uma pessoa. Paulo aqui não
estabelece a honra ou a glória como a ambição de quem vive um estilo
de vida messiânico, mas, ao contrário, uma vida de serenidade, trabalho,
autossuficiência e dignidade.
O trecho poderia ser interpretado como um chamado ao con-
formismo, mas a melhor interpretação vai na direção contrária. Paulo não
está pedindo aos tessalonicenses que se conformem ao ethos social, mas
que redefinam o seu estilo de vida a partir da prática do amor. A propos-
ta paulina demanda que os tessalonicenses evitem a participação na vida
política de sua polis (encontramos visões parecidas na filosofia helenista,
mas nenhuma delas dá destaque à solidariedade como prática pública,
de modo que o uso dessa linguagem filosófica por Paulo implicava em
pesada ressignificação da mesma), certamente porque essa participação
implicaria em fazer parte das relações de patronato e das cerimônias liga-
das aos ídolos, bem como implicaria em lealdade ao kyrios Cesar, de modo
que nenhuma divisão de lealdade seria bem-vinda para o estilo de vida
messiânico. Seguir a Jesus implica em não seguir a César, mesmo que isso
custe o afastamento da vida pública. Claramente essa proposta é justifi-
cável no contexto vivido pelos tessalonicenses e não deve ser vista como
padrão para todos os tempos e arranjos sociais. Por outro lado, a não-par-
ticipação na estrutura política da polis não significa um afastamento da

75
vida social. Ao contrário, Paulo exorta a comunidade a dar testemunho de
solidariedade e autossuficiência comunitária aos seus compatriotas. Em
uma sociedade marcada por alto grau de desigualdade socioeconômica
justificada por uma ideologia de prestígio e honra, o estilo de vida pro-
posto por Paulo seria revolucionário em âmbito microssocial: na família
de Deus todos são iguais e trabalham por seu próprio sustento, de modo
que os valores que sustentam a desigualdade no mundo greco-romano são
solapados pelos novos valores do Senhor Jesus.
Em termos mais concretos, o arranjo microssocial a que Paulo
contrapõe o estilo de vida messiânico é o do patronato. Uma longa citação
cabe aqui para deixar claro que tipo de relacionamento social está presente
nas relações de patronato.

Patronato é um relacionamento mútuo, contínuo e geralmente extrale-


gal, ou moralmente baseado, entre duas partes de estatuto e recursos
desiguais. Isto é, o relacionamento se dá entre partes que estão en-
volvidas em alguma troca de bens e/ou de serviços; estes não neces-
sitam ser da mesma ordem ou variedade, nem necessitam ser ‘iguais’
em um sentido que satisfaria um contador. Segundo, o relacionamento
é contínuo e, de fato, o arranjo formal (a palavra contrato seria forte
demais) entre as duas partes rotineiramente menciona descendentes; o
patronato assume, então, relacionamentos de longa duração. Terceiro, o
exercício de obrigações pelas duas partes não é formalmente regulado
por lei; patrões desapontados e clientes não-agradecidos não poderiam
apresentar suas queixas em nenhum tribunal. De outro lado, há um
elemento moral significativo, um senso do sagrado (sacer ou pietas),
termos que serviam para assegurar que a maioria das partes cumpriria
seus deveres na maior parte do tempo (e.g. Tácito Hist. 1.2-3). De
modo mais pragmático, os escritores antigos concordam, as duas par-
tes estavam ligadas pelo fato de que o abandono de uma parte em
tempo de necessidade seria vergonhoso e indigno. Alternativamente,
esses relacionamentos prosperavam porque o respeito à obrigação tra-
ria prestígio e dignidade a ambas as partes; os relacionamentos eram
uma manifestação visível do poder e influência de cada um. Quarto, as
partes (indivíduos ou grupos) formalmente reconheciam algum tipo
de desigualdade de estatuto no relacionamento. Esses elementos do
patronato podem ser reconhecidos em todos os estágios da história

76
romana e, de fato, como muitos antropólogos e sociólogos admitem,
em muitas sociedades modernas também.65

Ao contrapor ao estilo de vida clientelista da sociedade greco-


-romana o estilo de vida messiânico Paulo está fazendo uma proposta
efetivamente “revolucionária”, transformadora. Ao invés de enfrentar di-
retamente a estrutura imperial do poder – o que resultaria em morte certa
– Paulo propõe um estilo de vida que poderia fazer implodir os laços so-
ciais e políticos que mantinham a sustentabilidade das relações imperiais.
Contra a valorização absoluta do princípio da desigualdade, a proposta
paulina de identificar a nova comunidade como uma família, composta
de iguais que se amam mutuamente, dinamizados pela presença amorosa
e transformadora de Deus, representa uma radical inversão da estrutura
social e seus relacionamentos. Nada de amor romântico, mas, sim, amor
como uma força vital transformadora da vida pessoal, social e política.

1.3.8 Questões escatológicas (4,13-5,11)

Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes com respeito aos
que dormem, para não vos entristecerdes como os demais, que não têm
esperança. Pois, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim tam-
bém Deus, mediante Jesus, trará, em sua companhia, os que dormem.
Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor66, isto: nós, os vivos,
os que ficarmos até à vinda do Senhor, de modo algum precederemos
os que dormem.
Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a
voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os
mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois, nós, os vivos, os que
ficarmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para

65  NICOLS, John. Civic Patronage in the Roman Empire. Leiden: Brill, 2014, p. 2-3. A definição de
NICOLS é, por sua vez, baseada na obra fundamental da pesquisa sobre o patronato: EISENSTADT,
S. N.; RONIGER, L. (eds.). Patrons, clients and friends. Interpersonal relations and the structure of
trust in society. Cambridge: Cambridge University Press, 1984, em especial p. 50-52.
66  Há muita discussão em relação a que dito de Jesus este termo se refere. Possivelmente não
se trata apenas de um dito do próprio Jesus, mas também de palavra profética em nome de Jesus.
O paralelo mais evidente nos Sinóticos é a parábola em Mt 24,32-44 (o verso 43 contém o dito
sobre o ladrão) e seus paralelos: Lc 21,29-36 e Mc 13,28-37; em Lc 12,39 – em outra parábola –
também temos o dito sobre o ladrão, ausente nos paralelos de Mt 24.

77
o encontro do Senhor nos ares, e, assim, estaremos para sempre com o
Senhor. Encorajai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras.
Irmãos, relativamente aos tempos e às épocas, não há necessidade de
que eu vos escreva; pois vós mesmos estais inteirados com precisão
de que o Dia do Senhor vem como ladrão de noite. Quando andarem
dizendo: Paz e segurança, eis que lhes sobrevirá repentina destruição,
como vêm as dores de parto à que está para dar à luz; e de nenhum
modo escaparão.
Mas vós, irmãos, não estais em trevas, para que esse Dia como ladrão
vos apanhe de surpresa; porquanto vós todos sois filhos da luz e filhos
do dia; nós não somos da noite, nem das trevas. Assim, pois, não dur-
mamos como os demais; pelo contrário, vigiemos e sejamos sóbrios.
Ora, os que dormem, dormem de noite, e os que se embriagam é de
noite que se embriagam. Nós, porém, que somos do dia, sejamos só-
brios, revestindo-nos da couraça da fé e do amor e tomando como
capacete a esperança da salvação; porque Deus não nos destinou para a
ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo,
que morreu por nós para que, quer vigiemos, quer durmamos, vivamos
em união com ele. Encorajai-vos, pois, uns aos outros e edificai-vos
reciprocamente, como também estais fazendo.

As duas perícopes aqui analisadas são exortativas e não polêmi-


cas (ver 4,18 e 5,11). Paulo está esclarecendo dúvidas a respeito da situ-
ação de membros da comunidade que morreram antes da parousia, bem
como no tocante à relação entre a ressurreição dos mortos e a das pessoas
vivas quando da parousia, de modo que Paulo esclarece as duas dúvidas de
uma só vez. Não sabemos, ao certo, por que surgiram tais dúvidas entre os
tessalonicenses. Há várias possibilidades levantadas na pesquisa, mas não
há um consenso ainda a respeito desta questão67. O mais provável é que
as dúvidas tenham surgido em função do desconhecimento dos tessalo-

67  “Talvez a explicação mais convincente até hoje seja a de Plevnik (Taking Up, p. 274-283; ver
também Parousia as Implication, p. 199-272), que toma a obra de Lohfink (Himmelfahrt Jesu) e a
aplica a 1Ts 4,13-18. Lohfink demonstrou que no Antigo Testamento e na literatura apocalíptica
judaica aqueles que eram arrebatados eram sempre pessoas vivas, e, de fato, é axiomático que
pessoas mortas não podem ser arrebatadas ao céu. Daí Plevnik conclui que a questão em
Tessalônica não era a de se os cristãos mortos iriam participar da ressurreição, mas o medo de
que eles teriam alguma desvantagem por não serem aptos a participar no arrebatamento ao céu”
(WITHERINGTON III, Ben. 1 and 2 Thessalonians. A Socio-Rhetorical Commentary. Grand
Rapids: Eerdmans, 2006, p. 144).

78
nicenses acerca dos detalhes da visão apocalíptica judaica e sua ressigni-
ficação por Paulo. Talvez tenham até entendido que a salvação somente
aconteceria na parousia (cf. 1,10), de modo que a morte de algum membro
da comunidade tenha causado debates entre os membros. A preocupação
de Paulo era pastoral e não doutrinária. Não se ocupou de oferecer aos
tessalonicenses uma descrição detalhada de acontecimentos futuros, mas
de resolver problemas comunitários.
Seja como for, a dúvida é clara e a resposta de Paulo também.
Não haverá qualquer tipo de distinção, do ponto de vista da ressurrei-
ção, entre as pessoas que estiverem vivas na parousia e as que já estiverem
mortas. Aliás, Paulo enfatiza que as pessoas vivas não terão vantagem –
primeiro ressuscitarão as mortas, depois as vivas as seguirão, mediante ar-
rebatamento ao céu, na ressurreição final. Também não sabemos ao certo a
que “palavra do Senhor” Paulo se refere no verso 15, tema que já tratamos
na hipótese interpretativa da carta.
Aparentemente Paulo, mais tarde, mudou sua compreensão desse
tema, conforme 1 Coríntios 15,51-2: “eis que vos digo um mistério: nem
todos dormiremos, mas transformados seremos todos, em um momento,
em um abrir e fechar de olhos, ao ressoar da última trombeta”. Paulo estaria
descartando o “arrebatamento”, substituindo-o pela “transformação instantâ-
nea” das pessoas vivas durante a parousia. Durante a maior parte dos séculos
XIX-XX, a interpretação das epístolas aos tessalonicenses tomava por certo
que tanto Paulo como seus ouvintes acreditavam que a parousia aconteceria
ainda durante o tempo de suas vidas. Como nas cartas posteriores de Paulo
a questão da iminência da parousia não retorna, também era comum se afir-
mar que houve um desenvolvimento no pensamento de Paulo sobre o tema,
ocasionado pela demora da volta de Jesus à terra. Este tipo de interpretação,
embora ainda presente, já não conta mais com a aceitação da maioria das pes-
quisadoras e pesquisadores e não forma mais o consenso exegético acadêmico.
Todavia, claramente podemos perceber uma mudança de tom
e de conceituação sobre os acontecimentos ligados à parousia nas cartas
posteriores de Paulo. Essa mudança deve ter sido, em parte, causada pelas
dificuldades de compreensão, principalmente entre gentios, dos detalhes
da visão apocalíptica. Nada impede, porém, que o próprio Paulo tenha

79
modificado sua própria compreensão desses aspectos do seu pensamento
à medida em que cresceu sua reflexão sobre o tema.
A instrução paulina em 5,1-3 é clara. Paulo afirma que os tes-
salonicenses sabiam, e sabiam bem, que o dia da parousia não poderia ser
determinado por nenhuma pessoa: “vem como ladrão de noite”. Ou seja,
não se trata de iminência cronológica, mas de indeterminação cronológica
– a parousia é inesperada, mas não do ponto de vista do tempo cronológico
que caracteriza a espaçotemporalidade “presente”. Sob esse ponto de vista
ela é indeterminada. À esperança romana da parousia de um novo pacifi-
cador e edificador do Império Paulo contrapõe a esperança na parousia do
Senhor que morreu pela humanidade e por toda a criação. Para a minús-
cula comunidade messiânica de Tessalônica, uma ousada esperança.
A tradução “tempos e épocas” busca dar conta da expressão gre-
ga τῶν χρόνων καὶ τῶν καιρῶν. A diferença básica entre os dois termos
gregos, chrónos e kairós tem a ver com a dupla natureza da temporalidade.
Chrónos se refere ao tempo enquanto visto cronologicamente, enquanto
kairós se refere ao tempo enquanto visto existencialmente. Witherington
capta bem o significado da expressão: “a força da frase, aqui, então, é que
a audiência não precisa ser informada sobre quanto tempo deve passar
antes do grande evento, nem que ocorrências significativas irão marcá-la
ou pontuá-la”68.
A expressão “como ladrão de noite” vem da pregação de Jesus
(Mt 24,43; Lc 12,38-39; 2Pe 3,10; Ap 3,3; 16,15) e destaca a indeter-
minação cronológica da parousia. Paulo usa diferentes expressões para se
referir ao evento: “o dia” (1Ts 5,4; 1Co 3,13; Rm 2,5), “aquele dia” (2Ts
1,10), “dia do Senhor” (1Ts 5,2; 2Ts 2,2; 1Co 5,5), “o dia de nosso Senhor
Messias Jesus” (1Co 1,8; 2Co 1,14), “o dia do Messias” (Fp 1,10; 2,16), e
“o dia do Messias Jesus” (Fp 1,6). Certamente Paulo se baseou na tradição
sobre Jesus e na Escritura, especialmente no termo yom YHWH – repeti-
damente usado pelos profetas (Am 5,18-20; Ob 15; Jl 1,15; 2,1ss; Sf 1,14-
16; Zc 14,1ss etc.). O “dia do Senhor” no Antigo Testamento é um dia
de juízo para as nações e pode ser também um dia de salvação para Israel.

68  WITHERINGTON III, Ben. 1 and 2 Thessalonians. A Socio-Rhetorical Commentary.


Grand Rapids: Eerdmans, 2006, p. 144.

80
Essa dupla significação está presente também nos escritos paulinos. Aqui,
porém, o foco do significado recai sobre o juízo divino (cf. 1Ts 1,10).
As duas metáforas usadas por Paulo aqui deixam claro o enfoque
do juízo: “ladrão de noite” e “paz e segurança...”. Ambas são expressões
com tom ameaçador. A primeira metáfora, como vimos, provém da tra-
dição cristã. A segunda, porém, vem de outros círculos, o que se pode de-
preender pela forma como Paulo a introduz: “Quando andarem dizendo”,
claramente indicando um sujeito indeterminado (a forma verbal grega só
é usada aqui nos escritos paulinos). Alguns autores consideram que a ex-
pressão “paz e segurança” seria tradicional, derivando da mesma tradição
presente em Lc 21,34-36 (que tem três palavras também presentes nessa
perícope). Outros sugerem que a expressão vem do Antigo Testamento,
de Jr 6,14 e 8,11 (“Eles tratam da ferida do meu povo como se não fosse
grave. ‘Paz, paz’, dizem, quando não há paz alguma”); Ez 13,10 (“Porque
fazem o meu povo desviar-se dizendo-lhe ‘Paz’ quando não há paz”) –
note que a palavra “segurança” não é usada.
Embora possam haver alusões a essas passagens e tradições, a fonte
mais provável dessa frase é a ideologia imperial romana:

havia inscrições por todo o império atribuindo a Roma e seu exército a


chegada de ‘paz e segurança’ a uma região depois da outra. Por exemplo, na
Síria temos uma inscrição que diz ‘o senhor Marcus Flavius Bonus, o mais
ilustre comandante da primeira legião, governou sobre nós em paz e deu
constante paz e segurança aos viajantes e ao povo’ (OGIS 613). Velleius
Paterculus diz ‘naquele dia emergiu mais uma vez nos pais a certeza de
segurança para suas propriedades, e em todos os homens a certeza de se-
gura, ordem, paz e tranquilidade’ (2.103.5). Ele acrescenta ‘a Pax Augusta
que se espalhou por todas as regiões do Leste e do Oeste, e pelas fronteiras
do Norte e do Sul, preserva cada canto da terra seguro e livre do temor de
bandidos’ (2.126.3).69

Witherington continua citando outras fontes greco-romanas,


mas essa citação é suficiente para confirmar a validade de sua interpre-
tação. A busca de “paz e segurança” é uma busca “humana”, centrada na

69  WITHERINGTON III, Ben. 1 and 2 Thessalonians. A Socio-Rhetorical Commentary.


Grand Rapids: Eerdmans, 2006, p. 145.

81
manifestação do poder político-militar e é impressionante como mesmo
as vítimas da dominação romana podiam se convencer de que era melhor
ter “paz e segurança” sob o domínio imperial do que não as ter e viver em
liberdade. Essa atitude impressiona porque perdura até hoje, mesmo em
democracias avançadas, em que as pessoas, em geral, preferem a “seguran-
ça” e acreditam que o Estado a proverá diante da violência e da incerteza,
em vez de assumirem a responsabilidade de construírem, como cidadãs,
uma sociedade com uma paz proveniente dela mesma, e não como um
“presente” estatal.
Enfim, o ponto dessa seção da perícope é claro: ninguém pode
predizer quando virá o “fim”, ou quando será a parousia ou o dia do Senhor.
Será uma radical surpresa para quem não vive na espaçotemporalidade
messiânica, mas não para as comunidades de seguidoras e seguidores do
Messias. Para elas vale o que Paulo reafirma na seção central da perícope:

Mas vós, irmãos, não estais em trevas, para que esse Dia, como ladrão,
vos apanhe de surpresa; porquanto vós todos sois filhos da luz e filhos
do dia; nós não somos da noite, nem das trevas. Assim, pois, não dur-
mamos como os demais; pelo contrário, vigiemos e sejamos sóbrios.

Essa afirmação conclui a seção inicial e prepara a próxima seção,


com sua exortação aos tessalonicenses. A expressão “filhos da luz” é tradi-
cional para descrever os cristãos, e foi apropriada também por Paulo (Lc
16,8; Jo 12,38; Ef 5,8). A exortação à vigilância também vem da tradição
jesuânica (Mc 13,34-37; Mt 24,42-43), de modo que os tessalonicenses
deveriam estar acostumados a ouvir tais palavras.
A exortação na parte final da perícope gira ao redor de uma te-
mática relativamente comum nas cartas paulinas, por meio do contraste
entre o sono e a vigilância e entre a salvação final e a perdição, e dá conti-
nuidade ao tema da vigilância presente na seção anterior da perícope; em
uma carta posterior, Paulo retoma essa linguagem do contraste entre noite
e dia (Rm 13,11-14). A esperança da parousia serve como estímulo para
viver um estilo de vida messiânico no presente. A certeza da parousia não
é fonte de passividade e resignação, mas fonte de resistência e ação. Que a

82
parousia do Messias Jesus seja um problema para o Império, cuja ideologia
de paz e segurança negava o reinado de Deus, fica também evidente pelo
fato de que o termo parousia era usado para a chegada do imperador ou de
generais do exército romano. O estilo de vida messiânico não é “revolu-
cionário” no sentido político-militar, mas é revolucionário, sim, no sentido
ético, moral e político-social: quem segue o Messias vive de tal forma que
aponta os males da sociedade e denuncia os pecados da dominação injus-
ta. O estilo de vida messiânico é uma crítica permanente à sociedade e os
poderes estabelecidos não a conseguem suportar.

1.3.9 Exortação à integridade comunitária (5,12-22)

Agora, vos pedimos, irmãos, que reconheçais os que trabalham entre


vós, vos lideram no Senhor e vos admoestam, concedendo-lhes, amo-
rosamente, elevada estima por causa do trabalho que realizam; vivei,
pois, em paz uns com os outros. Exortamo-vos, também, irmãos, a
que admoesteis os desordeiros, encorajeis os desanimados, ampareis os
fracos e sejais pacientes para com todos. Cuidai que ninguém retribua
o mal com mal; pelo contrário, segui sempre o bem entre vós e para
com todos. Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar. Em tudo, dai gra-
ças, porque esta é a vontade de Deus no Messias Jesus para convosco.
Não apagueis o Espírito. Não desprezeis as profecias, mas ponham
todas elas à prova, retende o que é bom e mantenham distância de
qualquer profecia sem valor.

Esta perícope está vinculada à anterior pela exortação final daque-


la à edificação mútua. Em prol da edificação mútua da comunidade – sem
o exercício de uma liderança de tipo patronal – Paulo agora passa a ofere-
cer conselhos sobre a vida litúrgica e comunitária dos tessalonicenses. O
tema da perícope não é duplo como alguns intérpretes sugerem (liderança
e profecia), mas é um único tema abordado de modo complexo: a ação do
Espírito na liturgia e vida comunitária. O arranjo estrutural da perícope
mostra um paralelismo entre o tema de abertura (o reconhecimento da li-
derança) e o final (o discernimento das profecias). É possível que a liderança
da comunidade tenha sido constituída principalmente por profetas e profe-

83
tisas que, em função do seu carisma profético, tenham assumido também o
cuidado pastoral da comunidade. Não é incomum que lideranças extáticas,
ou carismáticas, sejam distintamente avaliadas por seus liderados, seja em
função de alguma inadequação pessoal, seja em função de alguma falha de
sua fala extática. Também não é incomum que o exercício de carismas como
o da profecia possa gerar divisões na comunidade (como deixa bem clara a
discussão de Paulo em 1 Coríntios 12-14).
Independentemente da natureza específica das funções aqui
descritas,

Paulo apresenta sua recomendação com dois verbos de petição: εἰδέ-


ναι, eidenai (‘reconhecer’), em 5,12 e ἡγεῖσθαι, hegeisthai (‘estimar’),
em 5,13. Com eidenai, Paulo destaca a necessidade de reconhecimento
do trabalho desses líderes eclesiásticos locais. Com hegeisthai, não
apenas cabe à igreja reconhecer o trabalho desses indivíduos, mas
também tê-los em grande consideração. Paulo ainda acrescenta o
advérbio ὑπερεκπερισσοῦ, hyperekperissou (‘com toda sinceridade’,
‘muito altamente realmente’), para destacar o respeito e a afeição a
ser demonstrada a essas pessoas. Paulo exorta a comunidade a ‘ter na
mais alta consideração’ ou ‘respeitar sem medida’ esses operários da
igreja. Com outras palavras, Paulo espera honra para eles.70

Assim, Paulo pede encarecidamente aos tessalonicenses que não


deixem que a presença de experiências extáticas (na liturgia) seja motivo
de divisões na comunidade, exortando-os a manter a unidade através do
reconhecimento do trabalho de suas lideranças e do respeito mútuo, ou
harmonia da comunidade no culto e na vida em geral. Para manter a co-
munidade unida e em edificação, Paulo destaca a necessidade do cuidado
pastoral específico para alguns tipos específicos de situação: (a) admo-
esteis os desordeiros (ataktoi), verbo usado de forma bastante apropriada,
significando literalmente “colocar a mente em ordem”:

ataktos não significa ‘preguiçosos’. O adjetivo é derivado do verbo tasso


‘colocar em ordem’, ‘organizar’, com o prefixo negativo alfa privativo. O
sentido básico é, assim, ‘sem ordem, desordenadamente’, que é o único

70  AGOSTO, op. cit., p. 95 (grifos do autor).

84
sentido dado em BDAG 148; cf, 991, com exemplos de uso helenístico
neste sentido. A palavra só é usada uma vez na LXX, em 3Mac 1,19
e significa ‘desordenadamente’, usada em referência a jovens mulheres
que se apressavam em ver espetáculos públicos sem usar o tempo ne-
cessário para vestir-se de modo apropriado. [...] Ataktos só é encontra-
do aqui em todo o Novo Testamento, mas se encontra o verbo cognato
atakteo (2Ts 3,7) e o adverbio ataktos (2Ts 3,6.11), em que o termo é
relacionado aos que não trabalham;71

(b) encorajeis os desanimados (ὀλιγοψύχους), ou seja, aquelas


pessoas que, diante dos conflitos e dificuldades, poderiam rapidamente
desanimar e voltar à vida anterior à conversão; e (c) ampareis os fracos
(ἀσθενῶν), para que possam resistir e crescer. Para com todos, porém, a
mesma atitude: longanimidade.
A mutualidade nos relacionamentos é enfatizada mediante a du-
pla exortação: não retribuir o erro e fazer o bem a todas as pessoas (inclu-
sive fora da comunidade). É uma exortação que visa quebrar o ciclo vicio-
so da vingança e da violência, de modo que a exortação à longanimidade
serve tanto em relação ao que fora dito antes quanto ao que é dito agora:
para não retribuir o mal com mal é preciso ser paciente, não respondendo
a uma injúria ou maltrato com o sentimento de indignação que imedia-
tamente é gerado pela situação (cf. Rm 12,17). Ao invés disso, ao dano
sofrido, a retribuição deve ser uma ação abençoadora, benéfica – afinal de
contas, somente esse tipo de resposta seria compatível com o exemplo do
Messias Jesus.
Na parte final da perícope, Paulo volta a tratar da vida comuni-
tária, mais especificamente, da prática litúrgica. Alegria, oração e gratidão
são os três primeiros elementos litúrgicos destacados por Paulo: o culto
messiânico não deve ser tristonho, mas expressão do regozijo pela nova
vida concedida à criação pelo Senhor ressurreto. Aos que creem em um
Deus vivo e confiável, a oração é uma forma apropriada de resposta e de
comunhão. Paulo frequentemente menciona a sua vida de oração e sempre
exorta as comunidades a perseverarem na oração, não somente com pedi-
dos, mas com intercessão e, especialmente, ação de graças. Viver na nova

71  BORING, op. cit., p. 5522-5529.

85
era messiânica é motivo de constante gratidão, temperada pela oração que
reconhece a presença da dor, do conflito e da perseguição. Nada de resig-
nação nem de passividade: a vida cristã é marcada por alegria e gratidão
não-alienadas da realidade. Por isso, há que sempre perseverar na oração72,
reconhecendo não só a nossa dependência de Deus, mas o compromisso
de agir conforme a resposta divina à oração. A importância desses três
elementos na vida cristã é enfatizada por Paulo mediante a frase “esta é a
vontade de Deus no Messias Jesus para convosco”, paralela a seu uso an-
terior na carta, “essa é a vontade de Deus, vossa santificação” (4,3).
Finalmente, o texto tematiza a profecia na liturgia (em 1Co 14,
o tema reaparece, junto ao exercício do dom de línguas). É possível que
uma ou outra “profecia” tenha sido inadequada, de modo a causar uma
boa dose de rejeição por parte da comunidade, possivelmente até profecias
ligadas à questão da parousia, tema importante na correspondência com
os tessalonicenses. Paulo enfatiza a necessidade de não desprezar o dom
profético, mas deixa clara a importância de apreciar o dom com discerni-
mento e inteligência. Por sua própria natureza, a experiência extática foge
ao controle racional da pessoa, de modo que é necessário que a comuni-
dade exerça um papel moderador nesse caso. Temos aqui uma “síntese” da
discussão mais longa e detalhada sobre o mesmo tema em 1Co 14. Se em
1 Coríntios Paulo enfatizou o papel do amor como critério para a valori-
zação da experiência extática, aqui ele enfatiza a edificação e unidade da
comunidade, juntamente com a missão (prática do bem), como critérios
para lidar com os eventuais problemas derivados do êxtase. Não se trata,
então, de ou/ou, mas do cuidado necessário que se deve ter com o êxtase,
para que esse não descambe para a desordem e a irracionalidade. Cuidado,
também, que se deve ter com a racionalidade rotineira, que também pode
ser causa de problemas na vida comunitária, tais como a acomodação e o
conformismo (sobre essa temática em sentido amplo ver, também, 1Co
12-14; 2Co 10-13; Gl 1, 6-9; 2,11-21; 5,13-26; Rm 12,6; 14,1-15,13).

72  “A oração está no coração do pensamento e da prática paulinos. De fato, é fascinante observar
quão facilmente ele vai da exposição ou exortação a uma forma de oração e de volta novamente.
O apóstolo demonstra que oração e teologia andam juntas. A oração que honra a Deus será
informada e motivada por um verdadeiro conhecimento de Deus e seus caminhos” (PETERSON,
David G. Prayer in Paul’s Writings. In: CARSON Donald A. Teach us to Pray. Prayer in the Bible
and the World. Exeter: Paternoster Press, p. 84, 1990).

86
1.3.10 Orações e saudações finais (5,23-28)

O mesmo73 Deus da paz vos santifique plenamente; e que todo vosso


ser – espírito, alma e corpo – se mantenha íntegro e irrepreensível na
parousia de nosso Senhor, o Messias Jesus. Fiel é o que vos chama, o
qual também o fará. Irmãos, orai por nós. Saudai todos os irmãos com
ósculo santo. Conjuro-vos, pelo Senhor, que esta epístola seja lida a
todos os irmãos. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja convosco.

Após a exortação à vida comunitária íntegra, Paulo encerra a


carta de modo tradicional, com as saudações finais, antecedidas, porém,
por mais uma oração de sua parte pelos tessalonicenses. Mais uma vez,
Paulo destaca o papel de Deus na realização dos objetivos do estilo de
vida messiânico, afastando novamente uma eventual interpretação de
seu papel apostólico como o de um patrão ao estilo romano. Uma vez
que a vontade de Deus é a santificação da comunidade (tema já discuti-
do), Paulo ora a Deus para que Ele mesmo santifique a assembleia dos
tessalonicenses – e santifique integralmente a comunidade e cada um
de seus membros (veja o uso duplo dos sinônimos holoteleis e holokleros).
O tom escatológico-apocalíptico de toda a carta é mantido mediante o
vínculo entre santidade e parousia, assim como o tom de encorajamento
e exortação é repetido no pedido para a plena santificação de cada pes-
soa. “Fiel é o que vos chama” retoma a descrição de Deus presente em
outros momentos da carta, desde 1,9-10. A identidade da comunidade é
dada por Deus em seu chamado, que deve ser visto como a interpelação
definitiva para a construção de seu estilo de vida. Também se repete o
tema do vínculo indissolúvel entre o que Deus pede da comunidade e
o que ele mesmo realiza na comunidade (também presente, e.g., em Fp
2,12ss). O idêntico status de Paulo e seus companheiros com relação à
comunidade retorna aqui no pedido de Paulo para que a comunidade ore
por ele e seus companheiros de ministério. A recomendação à fraterni-
dade é expressa pela lembrança da importância do cumprimento mútuo

73  Autos de ho theos é uma expressão tão rara em Paulo (só aqui e em 1Ts 3,11), quanto em todo
o Novo Testamento (apenas em Ap 21,3).

87
e a exortação enfática para que a carta seja lida publicamente mais uma
vez destaca a ausência de hierarquia na comunidade. A oração final se
repete nas cartas, normalmente com uma forma mais longa. Aqui, após
a apresentação de uma visão mais teocêntrica do que cristocêntrica ao
longo da carta, Paulo a encerra com a súplica pela presença permanente
da graça generosa do Senhor Jesus no dia a dia da comunidade.

1.3.11 Saudação e Gratidão (2Ts 1,1-5)

Paulo, Silvano e Timóteo, à igreja dos tessalonicenses, em Deus, nosso


Pai, e no Senhor Jesus Cristo, graça e paz a vós outros, da parte de
Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo. Irmãos, cumpre-nos dar sempre
graças a Deus no tocante a vós outros, como é justo, pois a vossa fide-
lidade cresce sobremaneira, e o vosso mútuo amor de uns para com os
outros vai aumentando, de modo que nós mesmos nos gloriamos em
vós nas igrejas de Deus, por causa da vossa perseverança e fidelidade
em todas as vossas perseguições e nas tribulações que suportais, clara
evidência do reto juízo de Deus, posto que sereis considerados dignos
do Reino de Deus, pelo qual, com efeito, estais sofrendo.

Do ponto de vista sintático, o período iniciado no verso 3 se estende


ao verso 12, de modo que a divisão estrutural aqui seguida, como já dissemos,
se baseia no plano de conteúdo e não no plano de expressão da carta. Dessa
forma, a tradução do parágrafo seguinte refletirá a estrutura discursiva que
seguimos. Não há quase nada de novo aqui em relação à primeira carta. A
saudação inicial é idêntica, enquanto a oração de gratidão é uma síntese das
orações de gratidão da primeira carta. O peculiar desta segunda carta é a in-
terpretação da perseverança em meio ao sofrimento como uma evidência da
fidelidade dos tessalonicenses, a qual será um fator levado em consideração
no juízo final: os tessalonicenses verão reconhecido o seu direito de entrar no
reino de Deus, posto que não deixaram de ser fiéis a Deus em meio ao sofri-
mento (que é parte integrante da soberania divina neste tempo presente). A
relação entre o juízo divino e a participação no reino de Deus vindouro tam-
bém está presente em outras duas passagens paulinas: “invejas, bebedices, glu-
tonarias e coisas semelhantes à essas, a respeito das quais eu vos declaro, como
já, outrora, vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas

88
praticam” Gl 5,21; e “sabei, pois, isso: nenhum incontinente, ou impuro, ou
avarento, que é idólatra, tem herança no reino do Messias e de Deus” Ef 5,5.

1.3.12 Tribulação e oração (1,6-12)

Afinal de contas74, é justo, diante de Deus, que seja retribuída tribu-


lação aos que vos atribulam e a vós, os atribulados, alívio juntamente
conosco, quando da revelação do Senhor Jesus, do céu, em chama de
fogo, juntamente com os anjos de seu poder75, concedendo-se justiça
contra os que não conhecem a Deus, ou seja, contra os que não obe-
decem à boa nova de nosso Senhor Jesus. Tais pessoas sofrerão a pena
da ruína da era vindoura, distanciados da face do Senhor e da glória do
seu poder, no dia em que Ele vier para ser glorificado por seus santos
e ser admirado por todos os que se tornaram fiéis (porquanto foi cri-
do entre vós o nosso testemunho). Por isso, também não cessamos de
orar por vós, para que o nosso Deus vos torne dignos da sua vocação
e cumpra com poder todo propósito de bondade e obra da fidelidade,
a fim de que o nome de nosso Senhor Jesus seja glorificado por vós, e
vós por ele, segundo a graça do nosso Deus e Senhor, o Messias Jesus76.

Esta perícope tematiza um sentimento intensamente humano –


a justa retribuição para um sofrimento indevido causado por pessoas que
não teriam o direito de infligir tal sofrimento. É interessante que Paulo
não afirma diretamente que é a justiça de Deus que retribuirá aos causa-
dores de sofrimento, mas afirma que é justo “diante de Deus” esperar que
haja retribuição da injustiça com injustiça. Todavia, ao afirmar que a retri-
buição somente ocorrerá no juízo final, ele está negando o eventual direi-
to de vingança da parte da comunidade. A retribuição dar-se-á no juízo
final, na parousia do Messias, quando ele, no exercício de seu poder como
Senhor de vivos e de mortos, realizar o julgamento de toda a humanidade
em função de sua resposta à proclamação da boa nova – e não por causa

74  Vejo a oração condicional aqui como do tipo sintático “determinada como cumprida”.
75  Sigo a sintaxe do grego que vincula a palavra “poder” ao Senhor Jesus e não aos anjos (o uso da
conjunção neste sentido também é encontrado em Rm 8,3.9.17 e 1Co 8,5; 15,15).
76  Esta tradução, embora incomum nas versões modernas, segue a sintaxe grega e é apoiada por
vários comentaristas, entre eles, Boring e Malherbe, aqui repetidamente citados, e Wanamaker
(representando a erudição de cunho evangélico mais conservador).

89
das tribulações que causaram à comunidade. Não se fala, aqui, de destrui-
ção ou de inferno, mas de afastamento, do distanciamento, das pessoas que
rejeitaram a boa nova, em relação a Deus – essa é a sua ruína77. O tema da
justa retribuição no juízo final é retomado em outras cartas paulinas, e.g.
Rm 2,1-16; 12,19; com o termo “ruína”, ver 1Co 5,5; 1Ts 5,3.78 O contras-
te com as pessoas fiéis à boa nova é acentuado no verso 10: participarão,
admiradas, da manifestação da glória de Deus presente no Senhor Jesus.
A linguagem apocalíptica aqui presente prepara o terreno para a discussão
de 2,1-12. Semelhantemente, o terreno é preparado para a seção iniciada
em 2,13 que retoma o tema da glória de Deus na vida dos fiéis.
A perícope se encerra com uma oração: ao invés de buscar vin-
gança contra as pessoas injustas que as perseguem, Paulo deseja que os
tessalonicenses vivam de modo digno de sua vocação divina – o que é
explicado mediante as orações seguintes, também pedindo a Deus que
concretize o desejo dos tessalonicenses em fazer o bem e perseverar na
fidelidade à boa nova do Messias. Essa temática também está presente em
Fp 1,15; 2,13 – é Deus quem torna possível que as pessoas fiéis ao Messias
vivam o que delas, o que é exigido como prática da fidelidade à boa nova.
De modo similar a Fp 2,11, aqui Paulo indica que o nome do Senhor
Jesus será glorificado – no presente – por quem não o conhece, graças ao
testemunho das pessoas que o conhecem; pessoas que, no futuro, de uma
forma ou de outra, confessarão o nome do Senhor. Tudo isso é efeito da
graça de Deus, o nosso Senhor, o Messias Jesus – essa é uma das pou-
quíssimas frases em Paulo que identificam Jesus com Deus, embora essa
identificação seja comum em seus escritos, mas mediante o uso de outros

77  “O verso 9 deixa clara a consequência eterna do juízo de Deus. Para aqueles que rejeitam Deus
e o evangelho a penalidade é olethron aionion, que está em paralelo com diken. Vemos a mesma frase
em 4Mc 10,15 e, em o Novo Testamento, em 1Ts 5,3; 1Co 5,5; 1Tm 6,9. O conceito de punição
eterna também é achado em 1QS 2.15; 5.13. O campo semântico em que a frase opera pode ser
visto quando comparamos com a referência à destruição em Rm 9,22; Fp 1,28; 3,19 (cf. Sl Sal
2.31-34), o fogo eterno em Mt 18,8; 25,41; Js 7; 4Mc 9,9; castigo eterno em Mt 25,46; 4Mc 10,11
ou juízo eterno em Hb 6,2; 1En 91,15-56. Destruição eterna, então, é o oposto de vida eterna.
Conforma diz Malherbe, a frase aqui significa a ruína eterna ou perpétua, e não a aniquilação”
(WITHERINGTON III, Ben. 1 and 2 Thessalonians. A Socio-Rhetorical Commentary. Grand
Rapids: Eerdmans, 2006, p. 184).
78  Em seu comentário, BORING, op. cit., indica as alusões a textos veterotestamentários
presentes nesta seção da carta, ver p. 7192-7206.

90
recursos textuais. Em termos práticos, Paulo estaria afirmando, aqui, a
impossibilidade humana de diferenciar Deus de Jesus.

1.3.13 Quanto à parousia do Senhor (2,1-12)

Irmãos, no que diz respeito à vinda de nosso Messias, o Senhor Jesus,


e à nossa reunião com ele, nós vos exortamos a que não vos demovais
da vossa mente, com facilidade, nem vos perturbeis, quer por espírito,
quer por palavra, quer por epístola, como se procedesse de nós, supon-
do tenha chegado o Dia do Senhor.
Ninguém, de nenhum modo, vos engane, porque isto não acontecerá
sem que primeiro venha a apostasia e seja revelado o homem da ini-
quidade79, o filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra tudo
que se chama Deus ou é objeto de culto, a ponto de assentar-se no san-
tuário de Deus, ostentando-se como se fosse o próprio Deus. Não vos
recordais de que, ainda convosco, eu costumava dizer-vos estas coisas?
E, agora, sabeis o que o detém, para que Ele seja revelado somente em
ocasião própria.
Com efeito, o mistério da iniquidade já opera e aguarda somente que
seja afastado aquele que agora o detém; então, será, de fato, revelado o
iníquo, a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca e o des-
truirá pela manifestação de sua vinda. Ora, o aparecimento do iníquo
é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, e sinais, e prodígios
da mentira, e com todo engano de injustiça aos que perecem, porque
não acolheram o amor da verdade para serem salvos. É por esse motivo,
pois, que Deus lhes manda a operação do erro, para darem crédito à
mentira, a fim de serem julgados todos quantos não deram crédito à
verdade; antes, pelo contrário, deleitaram-se com a injustiça.”

A questão agora gira ao redor de dois temas complementares –


o homem da iniquidade (2,3) e o mistério da iniquidade (2,7) e aquilo ou
quem o detém: “καὶ νῦν τὸ κατέχον οἴδατε εἰς τὸ ἀποκαλυφθῆναι αὐτὸν
ἐν τῷ ἑαυτοῦ καιρῷ” e do verso 7b: “μόνον ὁ κατέχων ἄρτι ἕως ἐκ μέσου
γένηται”, ambas relativas a uma personagem ou situação “que o detém” (τὸ
κατέχον, ὁ κατέχων).

79  Talvez uma alusão a Nm 1,15: “Eis sobre os montes os pés do que anuncia boas novas, do
que anuncia a paz! Celebra as tuas festas, ó Judá, cumpre os teus votos, porque o homem vil já não
passará por ti; ele é inteiramente exterminado”.

91
Em relação ao segundo item,

a dificuldade exegética primária gira ao redor do sentido do particípio


neutro τὸ κατέχον, no verso 6 e do particípio masculino ὁ κατέχων, no
verso 7, embora haja igualmente outros problemas. O verbo κατέχeiν
pode e tem sido entendido de diferentes modos, levando a diferentes
interpretações do texto.80

São várias as interpretações deste objeto ou pessoa que “detém”,


nenhuma, porém, tem o consenso da academia. O mesmo vale para a dis-
cussão sobre o “homem” e o “mistério” da iniquidade. As propostas se mul-
tiplicam, desde o Império Romano, até os não-convertidos, mas não há
qualquer consenso sobre o referente desses termos paulinos. Assim, aqui,
não farei nenhum esforço para apontar os referentes dessas expressões.
Normalmente, as traduções e os comentários consideram que a
perícope tem seu final no verso 12. Junto a Jeffrey Weima, porém, entendo
que a perícope vai até o verso 17 (note que há repetição, nos versos 13-15
de elementos presentes em 1-2), e que a perícope se encerra com uma se-
ção em que a personagem principal é o “Messias, o Senhor Jesus” – mesma
formulação do verso 1.
Que podemos afirmar a partir dessa perícope? Em primeiro lu-
gar, Paulo está discutindo detalhes que nós desconhecemos, pois não es-
tão presentes em nenhuma de suas cartas – são detalhes de sua pregação
e ensino orais nas comunidades. Em segundo, deve ficar evidente que
Paulo não tinha qualquer preocupação em estabelecer uma “linha do
tempo” dos eventos apocalípticos ou escatológicos – nesta perícope, por
exemplo, o fluxo temporal se move do futuro para o presente e de novo
do presente para o futuro, sem qualquer sequência cronológica definida.
Em terceiro lugar, a discussão sobre a parousia, como era o normal na
apocalíptica judaica em sua discussão sobre o dia do Senhor, tem como
objetivo a exortação ao povo de Deus para ficar firme no tempo “presen-
te”. A apocalíptica é uma forma de linguagem voltada para a construção
da resistência diante da dominação injusta e da opressão exacerbada.

80  WANAMAKER, Charles A. The Epistles to the Thessalonians. A Commentary on the Greek
Text. Grand Rapids: Eerdmans, 1990, p. 250.

92
Em quarto lugar, a linguagem apocalíptica aqui utilizada reafirma o que
já vimos nas demais unidades dessa disciplina: a teologia espaçotempo-
ral em Paulo é uma teologia da conflitividade no tempo “presente”. No
tempo em que nós vivemos, coexistem em tensão as espaçotemporalida-
des messiânica e não-messiânica, de modo que a vida cristã possui uma
dimensão conflitiva fundamental.
A perícope, de fato, é parenética e não argumentativa. Paulo não
está interessado em provar aos tessalonicenses que seu argumento é corre-
to. Ele está interessado em ver os tessalonicenses firmes e praticando boas
obras – ou seja, vivendo um estilo de vida messiânico, com firmeza e resis-
tência contra as perseguições e conflitos. Que esse tema não mais apareça
nas cartas de Paulo é um indício de que seu ensino sobre a parousia do
Senhor Jesus foi se modificando em resposta aos problemas e dificuldades
de compreensão enfrentados pelas comunidades.

1.3.14 Orações (2,13-3,5)

Mas nós devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados
pelo Senhor, porque Deus os escolheu como primícias81 para a salva-
ção mediante a obra santificadora do Espírito e a fé na verdade. Ele
vos chamou para isso por meio de nosso evangelho, a fim de partici-
pardes da glória de nosso Senhor, o Messias Jesus. Portanto, irmãos,
permaneçai firmes e apegai-vos às tradições que vos foram ensinadas,
quer oralmente, quer por carta nossa. Que o próprio Messias, o Senhor
Jesus, e Deus nosso Pai, que nos amou e nos deu encorajamento perpé-
tuo e boa esperança pela graça, anime vosso coração e vos mantenham
firmes para fazerem sempre o bem, tanto em atos como em palavras.

Em contraste com a ruína que sobrevirá a quem não é fiel à boa


nova, descrita nos versos finais da perícope anterior, Paulo agora dá gra-
ças a Deus pela comunidade dos tessalonicenses – a sentença de abertu-
ra é quase idêntica a 1,3, apenas com uma diferente ordem de palavras,
dando ênfase ao senso de obrigação sentido por Paulo. A descrição do
processo de salvação usa uma linguagem incomum nos demais escritos
81  Há evidêntica textual antiga para a forma ap’ archen, desde o princípio, ao invés de aparchen,
primícias. Sigo a avaliação da edição crítica de Nestle-Aland.

93
paulinos, ditada, aqui, pela manutenção de termos presentes na perícope
anterior e pela necessidade de Paulo reafirmar seu amor e compromisso
pela comunidade de Tessalônica como líder pastoral. A linguagem é in-
comum, mas as ideias por ela expressas se repetem na literatura paulina.
Encontramos cinco elementos nessa descrição do processo de salvação:
(a) a eleição divina, um tema importante na correspondência com os tes-
salonicenses, como já tratamos anteriormente; (b) a comunidade como
primícias da salvação, não em sentido temporal, mas em sentido quali-
tativo – os tessalonicenses são uma oferta divina visando a sua salvação
futura, seu livramento do juízo final, presente na perícope anterior; (c)
gramaticalmente, dois elementos formam uma hendíade e são tratados
aqui como um só: a ação santificadora do Espírito e a fé na verdade como
os meios de realização da salvação – embora a santificação mediante ação
do Espírito não seja a metáfora mais comum em Paulo para descrever o
processo de salvação, a santificação, no Messias, como processo e resultado
da ação messiânica está presente em diversos textos, e.g., 1Co 1,2.30; 6,11;
Rm 1,7 com o paralelo mais próximo em Rm 15,16 que se refere à ação
santificadora do Espírito na salvação dos gentios. Como resposta à ação
santificadora do Espírito, os tessalonicenses foram fiéis à verdade da boa
nova que receberam de Paulo e seus companheiros de ministério; somente
aqui Paulo usa a expressão “fidelidade à verdade”, provocada pelo uso de
“verdade” nos versos 10 e 12, mas a noção da verdade em relação com a
salvação e o juízo está presente, e.g., em Rm 1,18.25; 2,2.8; e a expres-
são “evangelho da verdade” se encontra em Gl 2,5.14 e em Gl 5,7 Paulo
fala sobre a obediência à verdade; (d) a eleição é concretizada mediante
o chamado de Deus por meio da pregação da boa nova, tema recorrente
na primeira carta (1Ts 2,12; 4,7; 5,23), cujo alvo é (e) a participação na
glória do Messias em sua parousia, retomando o segundo tema antecipado
em 2Ts 2,1. A palavra “participação” só é usada por Paulo aqui e em 1Ts
5,9, também com relação à participação na salvação, ao invés de cair sob o
juízo divino. Em 1Ts 2,12 e em Fp 3,21, encontramos a mesma termino-
logia da glória de Deus. O tema é modificado em Romanos mediante o
uso do verbo “glorificar” ao invés do substantivo “glória” (Rm 8,17.29-30),
enquanto em 1Coríntios a “glória” está conectada ao corpo ressurreto.82

82  Muito se fala sobre o desenvolvimento da “escatologia” paulina, mas as cartas aos tessalonicenses

94
Diante da síntese do processo de salvação aqui apresentada
Paulo passa a exortar os tessalonicenses a permanecerem firmes em sua
convicção inicial (apelo similar é feito aos gálatas, com uma terminolo-
gia mais enfática em função da situação distinta que motivou a escrita
dessa carta), apelo acompanhado por mais uma oração, dessa vez inter-
cessória, em que Paulo reafirma a necessidade de perseverar na prática
do bem como fruto da ação divina na vida da comunidade. Possivelmen-
te essa insistência tenha a ver com o fato de que, diante da permanência
do sofrimento, membros da comunidade tenham desanimado e pensado
em ou buscado retribuição, de modo que Paulo reassevera que a resposta
da comunidade messiânica ao sofrimento injusto causado pelos “de fora”
não deve ser a vingança, mas a contínua prática do amor e da bondade
(cp. Rm 12,17-21).

1.3.15 Exortação e saudações finais (3,6-18)

Nós vos ordenamos, irmãos, em nome do Senhor Jesus, o Messias,


que vos distancieis de todo irmão que ande desordenadamente e não
segundo a tradição que receberam de nós; pois vós mesmos sabeis
que deveis nos imitar, visto que nunca nos portamos desordenada-
mente entre vós, nem jamais comemos pão à custa de outrem; pelo
contrário, em labor e fadiga, de noite e de dia, trabalhamos, a fim de
não sermos pesados a nenhum de vós; não porque não tivéssemos
esse direito, mas por termos em vista oferecer-vos exemplo em nós
mesmos, para nos imitardes. Porque, quando ainda convosco, vos or-
denamos isto: se alguém não quer trabalhar, também não coma. Pois,
de fato, estamos informados de que, entre vós, há pessoas que andam
desordenadamente, não trabalhando, mas dando trabalho83. A elas,
porém, determinamos e exortamos, no Senhor Jesus, o Messias, que,
trabalhando tranquilamente, comam o seu próprio pão. E vós, irmãos,
não vos canseis de fazer o bem. Caso alguém não preste obediência à
nossa palavra dada por esta epístola, notai-o; nem vos associeis com
ele, para que fique envergonhado. Todavia, não o considereis por ini-

também nos ajudam a perceber um eventual “desenvolvimento” de sua descrição dos efeitos da
obra messiânica na vida dos fiéis, ou seja, da “soteriologia” paulina.
83  A tradução procura manter o jogo de palavras do grego, com dois verbos da mesma raiz.

95
migo, mas adverti-o como irmão. Ora, o Senhor da paz, ele mesmo,
vos dê continuamente paz em todas as circunstâncias. O Senhor seja
com todos vós.

Neste final é retomado um problema já discutido na primeira


carta, o da vida irresponsável de alguns membros da comunidade. Paulo
usa a mesma terminologia e dá a mesma resposta da primeira carta. Desta
vez, porém, ele utiliza como argumento adicional o seu próprio exem-
plo (usado na primeira carta em outro contexto temático) e insistindo na
necessidade dos tessalonicenses serem imitadores de Paulo em todos os
aspectos. Acrescenta, ainda, a atitude diante das pessoas que não quise-
rem viver de modo responsável – o exercício da “disciplina”, descrito aqui
como a não-associação com esses membros da comunidade – disciplina
não rancorosa, mas amorosa, com vistas à restauração da honra das pes-
soas que não viviam adequadamente.84 A conclusão da carta é apropriada
a esse tema final: que o Deus da harmonia encha a comunidade de har-
monia, eliminando as divisões e conflitos internos, e estando presente na
vida de todos os seus membros. O “Senhor”, aqui, é mais provavelmente o
Senhor Jesus do que “Deus-Pai”, em conformidade com a grande ênfase
dada por Paulo na correspondência com os tessalonicenses ao título “Se-
nhor” aplicado ao Messias Jesus, como expressão da divindade de Jesus,
tema fundamental para uma comunidade predominantemente gentílica.

84  O uso de formas de causar “vergonha” era um meio comum, na época, de lidar com pessoas que
não viviam de acordo com os padrões de honra da sociedade. A interpretação de Boring, em seu
comentário, de que essa exortação seria dirigida a líderes que não trabalhavam para o seu próprio
sustento é forçada.

96
Capítulo 2
Problematização

2.1 Introdução

A reflexão sobre Deus na Teologia Paulina durante o século XX


é marcada por boa dose de ambiguidade nos escritos de Paulo85: ainda
que se reconheça o lugar fundamental de Deus nos escritos paulinos, a
maioria das obras considera o tema “Deus” como um elemento não-re-
fletido do pensamento de Paulo. Por exemplo:

Mas para nós o problema está em que as convicções de Paulo sobre


Deus são todas muito axiomáticas. Por serem axiomas, Paulo nunca
se esforçou muito para expô-los. Fazem parte dos fundamentos da sua
teologia e por isso estão em grande parte ocultos à vista.86

Um número bem menor chega ao ponto de recusar qualquer


valor na apresentação paulina de Deus:

dele não aprendemos nada novo ou significativo a respeito de Deus.


Deus é um Deus de ira e misericórdia, que prefere salvar a condenar,
mas se O rejeitamos o resultado é a morte. Poderíamos, é claro, alis-
tar várias declarações de Paulo sobre Deus, mas é evidente que Paulo
não gastou seu tempo refletindo sobre a natureza da divindade.87

Essa situação se alterou no século XXI, a partir de uma série de


estudos que tem como foco o relacionamento entre Jesus e Deus e como
a afirmação da divindade de Jesus, por Paulo, afetou a sua compreensão de
Deus. As atitudes de Dunn e Sanders anteriormente descritas não são mais
tão comuns na pesquisa. Ao contrário, encontramos afirmações como:

85  O mesmo vale para as teologias do Novo Testamento (NT) como um todo, conforme constata
HURTADO, Larry W. God in New Testament Theology. Nashville: Abingdon Press, 2010, p. 17-39.
86  DUNN, James D. G. A Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 56.
87  SANDERS, E. P. Paul and Palestinian Judaism. Philadelphia: Fortress Press, 1977, p. 509.

97
esta persistente e determinada identificação de ‘Deus’ como esta di-
vindade específica é digna de nota. Ela não é simplesmente um tema
irrefletido, algo passivamente herdado do antigo Judaísmo como um
acidente histórico, mas não examinado de fato. Ao contrário, esta iden-
tificação de ‘Deus’ é claramente deliberada, essencial e programática
em o Novo Testamento.88

Frank Matera afirma que: “a teologia paulina começa e termina


com Deus. Ela começa com o Deus que revelou Seu Filho a Paulo e ter-
mina com o Deus que será tudo em todos quando o Filho irá se submeter
àquele que subjugou todas coisas a Ele (1Co 15,28)”.89
Esse mais recente reconhecimento da importância do tema Deus
na teologia Paulina, porém, não tem resultado em uma reflexão crítica
sobre o conceito “deus” (de divino ou da divindade), que é dado como ga-
rantido, ou meramente pressuposto. O ponto de partida comum é que a
noção de Deus já estava constituída em sua tradição judaica e, é claro, em
sua experiência de fé. E, juntamente com esta suposição, considerar que
“nosso” conceito de Deus é idêntico ao de Paulo. As obras descrevem o
que Paulo diz a respeito de Deus, mas não discutem o conceito, lendo os
textos como se o conceito cristão teísta de Deus já lá estivesse presente.
Não podemos, porém, anacronicamente impor “nosso” conceito de deus
sobre os textos paulinos ou sobre a tradição veterotestamentária em que
ele se baseia.
De fato, a pesquisa recente tem destacado que a visão paulina de
Deus sofre ampla revisão a partir da revelação de Deus no Messias Jesus90,
e reconhecido que a linguagem paulina sobre “Deus” revela a conflitivi-
dade entre a noção paulina de Deus e as noções mais comuns de ‘deus’

88  HURTADO, op. cit., p. 49.


89  MATERA, Frank J. God’s saving grace: a Pauline theology. Grand Rapids: Eerdmans, 2012, p. 215.
90  Neste ponto, podemos destacar a ambiguidade na opinião de Dunn: “Em outras palavras,
a conversão de Paulo não mudou sua fé em Deus e a respeito de Deus [...] Em suma, o seu
pressuposto fundamental permaneceu intacto” (Idem, p. 57). Essas afirmações são qualificadas pelo
próprio Dunn no parágrafo seguinte, ao afirmar “Ao mesmo tempo, o impacto dessa ‘revelação
de Cristo’ dada por Deus não deixou de atingir sua fé fundamental em Deus. De fato, um dos
aspectos mais fascinantes de um estudo da teologia de Paulo é a exploração das maneiras como a
fé de Paulo em Cristo influenciou sua teologia de Deus” (Idem) – embora ele mesmo não realize
tal exploração. Essa tem sido feita por autores como Hurtado, Bauckham, Wright e outros.

98
ou “deuses” em seu mundo. Richard Bauckham, em um dos importantes
trabalhos que tentam superar a ausência de discussão sobre a visão pau-
lina de Deus, introduzindo também a discussão sobre o ‘monoteísmo’ no
campo dos estudos neotestamentários, também reconhece que a discussão
é insuficiente, ao discutir a viabilidade da afirmação neotestamentária de
que Jesus é Deus:

embora este tenha sido um desenvolvimento radicalmente novo,


quase que sem precedentes na teologia judaica, o caráter do mono-
teísmo judaico era tal que este desenvolvimento não exigiu qual-
quer tipo de repúdio das formas mediante as quais o monoteísmo
judaico entendia a singularidade de Deus. O que falta na discussão
desta questão é uma compreensão adequada dos modos mediante
os quais o Judaísmo do Segundo Templo entendia a singularidade
de Deus.91

A ausência de discussão sobre o conceito de Deus é ainda mais


destacada pela presença de discussão conceitual de outros temas. Encon-
tramos nas duas últimas décadas vários autores que discutem a histori-
cidade da ressurreição de Jesus à luz da cosmovisão moderna, mas não
discutem o conceito de Deus. Udo Schnelle, por exemplo, discute a reali-
dade da ressurreição e a define como um evento transcendente, mas não
discute a própria noção de Deus como transcendente92. “Deus”, na pesquisa,
é um daqueles conceitos que tomamos por assentado, “todos sabemos quem
é Deus” (algo mais ou menos assim) e, por isso, supomos que Paulo sim-
plesmente também pensa da mesma forma que nós, cristãs e cristãos do
século XXI. Consequentemente, apesar da pesquisa teológico-bíblica ser
predominantemente histórico-crítica, não é crítica o suficiente quando se
trata da autocrítica conceitual.
O conceito de Deus, que é sobreposto aos escritos paulinos é o
conceito ontoteológico, cujas origens podem ser traçadas pelo menos até os
Concílios Ecumênicos, o Deus supremo da total transcendência, da distinção

91  BAUCKHAM, Richard. God Crucified. Monotheism and Christology in the New Testament.
Grand Rapids: Eerdmans, 1998, p. 6.
92  SCHNELLE, Udo. Apostle Paul: His Life and Theology. Grand Rapids: Baker, 2014, seção 16.2,
posições 358ss. (edição digital).

99
entre essência e existência (ser e agir), da unidade singular para a qual a
trindade é uma aporia conceitual insuperável93. A construção ontoteológi-
ca do conceito de Deus se dá a partir das categorias do um (singular), da
infinitude (negativa), da transcendência e da imutabilidade, derivadas das
categorias da metafísica grega clássica, relidas na discussão teológica da
antiguidade tardia e idade medieval e chegada a nós passando pela mo-
derna filosofia da consciência ou do sujeito.94
Udo Schnelle, mais uma vez, exemplifica esse conceito ontoteoló-
gico, apesar de sua aparente crítica ao mesmo:

A realidade de Deus é o axioma de toda teologia paulina, o ponto deter-


minante além do qual não se pode pensar ou inquirir, o ponto de partida
para a sua abrangente cosmovisão. Os dados linguísticos já sinalizam a
significância deste tema, pois nas cartas paulinas não-disputadas ὁ θεός
ocorre 430 vezes. Paulo jamais reflete ou pergunta acerca da existência
de Deus; o conhecimento de Deus pertence à sua experiência natural
de vida e molda sua compreensão da realidade. Deus, porém, jamais en-
tra no campo de visão de Paulo em sua essência essencial como Deus,
mas sempre como aquele que age. A teologia de Paulo, per se, está em
direta continuidade com a afirmação judaica fundamental: Deus é um,
o Criador, o Senhor que realizará o seu propósito criativo. Ao mesmo
tempo, a cristologia efetua uma mudança básica na teologia de Paulo,
pois ele proclama um monoteísmo cristológico.95

Precisamos questionar os próprios termos em que Schnelle de-


fende o seu ponto – será, de fato, que a “realidade” de Deus é o axioma da
teologia paulina? Qual é a validade da afirmação de que o conhecimento

93  O efeito fundamental desta não-problematização é assim descrito por Kearney: “minha
aposta no decurso deste volume é que somente se aceitamos que não sabemos virtualmente nada
sobre Deus é que podemos começar a redescobrir a presença da santidade na carne da existência
ordinária. Tal santidade, sugerirei, sempre esteve lá – só que nós não a vimos, tocamos ou ouvimos”
(KEARNEY, Richard. Anatheism: returning to God after God. Bloomington: Indiana University
Press, 2010, p. 5).
94  A crítica ao conceito ontoteológico de Deus na filosofia do século XX é bastante conhecida,
tendo como um de seus pontos fundamentais a discussão heideggeriana sobre a metafísica ocidental.
Em tempos mais recentes, os principais críticos têm sido autores como Jürgen Habermas, John
Caputo, Jean Luc-Nancy e outras.
95  SCHNELLE, op. cit., posição 341. Logo, não está apenas em “direta continuidade”, mas em
continuidade & descontinuidade!

100
de Deus em Paulo provém de sua “experiência natural de vida”? Será, de
fato, que “Deus jamais entra no campo de visão de Paulo em sua essência
essencial”, mas, apenas como “aquele que age”? Qual é a validade dessa
distinção, a não ser se pensamos de modo ontoteológico? De fato, a “afir-
mação judaica fundamental” é que Deus é “o criador que realizará o seu
propósito criativo”, ou que o Deus Um é o Senhor que elegeu Israel e
realizará seu propósito eletivo? Ou, enfim, podemos afirmar que a revisão
teológica de Paulo consiste mesmo em proclamar um “monoteísmo cris-
tológico”? Pois se Paulo não trata da “essência essencial” de Deus como
podemos afirmar que ele proclama um “monoteísmo”, conceito que tra-
ta, sim, da “essência essencial” de Deus? O texto citado mostra o caráter
aporético da análise da compreensão paulina de Deus a partir do modo
ontoteológico prevalente.
É preciso ir além da discussão recente e iniciar uma reflexão so-
bre o conceito paulino de Deus, o que tentamos fazer neste capítulo. Nosso
ponto de partida é a discussão dos conceitos de teísmo e monoteísmo, a
partir da qual discutiremos os conceitos judaico e greco-romanos de Deus,
até chegarmos aos textos paulinos que serão analisados no âmbito da des-
construção do conceito ontoteológico de Deus que lhe tem sido sobreposto.

2.2 Concepção Ontoteológica: Teísmo e Monoteísmo

Teísmo e monoteísmo são conceitos que subjazem às obras de


teologia paulina. Entretanto, ainda que a visão teísta tenha uma longa
história no pensamento ocidental, é preciso lembrar, com o egiptólogo
Jan Assmann, que “monoteísmo e politeísmo são conceitos nascidos nas
controvérsias e debates teológicos dos séculos XVII e XVII. Como tais,
são completamente inadequados para descrever religiões da Antiguida-
de”.96 Semelhantemente, a noção moderna de ateísmo é anacrônica para o
mundo antigo:

o ateísmo jamais se desenvolveu como uma ideologia popular com se-


guidores reconhecíveis. Tudo o que temos na Antiguidade é o indiví-

96  ASSMANN, Jan. The Price of Monotheism. Stanford: Stanford University Press, 2010, p. 31

101
duo excepcional que ousava tornar pública sua descrença, ou filósofos
corajosos que propunham teorias intelectuais a respeito da origem dos
deuses sem, normalmente, colocar essas teorias em prática nem rejeitar
a prática religiosa como um todo. Quando encontramos alguma forma
de ateísmo, é usualmente um ateísmo soft, ou a imputação de ateísmo
a outras pessoas como uma forma de desacreditá-las.97

Não é difícil elencar diversas definições de teísmo, seja na filo-


sofia, seja na teologia98. Em geral, todas elas terão como características
comuns a afirmação das “oni”-qualidades divinas, e outros atributos tais
como eternidade, infinitude, aseidade, pessoalidade e atividade. Para os
efeitos de contraste entre o teísmo e a visão antiga de Deus, porém, pre-
cisamos ir mais a fundo. A característica predominante do teísmo pode
ser definida como a transcendência divina – ou seja, a afirmação da radical
diferença essencial entre Deus (criador) e as suas criaturas. A partir dessa
caraterística básica, o discurso ontoteológico, apesar das variações e pecu-
liaridades culturais, filosóficas e teológicas, é construído a partir do para-
digma da diferenciação: o divino se define em oposição ao não-divino, logo,
ele não pode ter características pertencentes ao “mundo criado”. A partir
desse paradigma da diferenciação, ou, ainda mais exatamente, da negação,
o discurso sobre Deus simultaneamente legitima e se sustenta sobre uma
visão dualista da realidade: espírito vs. matéria; sobrenatural vs. natural;
imortal vs. mortal; transcendente vs. imanente; uno vs. múltiplo; ser vs.
entes; etc. Podemos traçar as origens dessa concepção até o quarto século
a.C., pelo menos: “primeiramente, pense em Deus como um ser imortal e
feliz, correspondentemente à ideia de Deus usualmente aceita, e não lhe
atribua nada que contradiga sua imortalidade ou sua felicidade eterna”99.
A construção do conceito ontoteológico de Deus a partir da di-
ferenciação corresponde à construção do conceito ontoteológico do ser

97  BREMMER, Jan N. Atheism in Antiquity. In: MARTIN, Michael (ed.). The Cambridge
Companion to Atheism. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 11.
98  Dentre a vasta bibliografia, pode-se consultar, por exemplo: SMART, J. J. C.; HALDANE, J.
J. Atheism and Theism. Oxford: Blackwell, 2003, que oferecem descrições adequadas do consenso
sobre as noções contemporâneas de teísmo e ateísmo.
99  Fala de Epicuro em LAERTIUS, Diogenes. Βίοι καὶ γνῶμαι τῶν ἐν φιλοσοφίᾳ εὐδοκιμησάντων
(Vida e ensino dos filósofos ilustres), tomo X.

102
humano que estabelece uma diferença de valor entre homem e mulher,
de modo que assim como o Deus ontoteológico é um Deus dominador,
o homem crente no Deus ontoteológico é um macho dominador e, con-
sequentemente, impassível diante do sofrimento alheio, correlação esta
desvelada pela teologia feminista:

o teísmo clássico sublinha de modo unilateral a absoluta transcen-


dência de Deus em relação ao mundo, o caráter imune de Deus com
relação à história e o sofrimento humano, e a onipresença do poder
dominador de Deus a quem os seres humanos devem submissão e
temor reverencial. Não é essa ideia de Deus o reflexo de uma imagem
patriarcal que caloriza acima de tudo a submissão sem oposição e a
lealdade inquestionada? Não é o símbolo da transcendência, a oni-
potência e a impassibilidade de Deus a manifestação climática do
ego masculino dirigente e solitário, situado acima das lutas humanas,
perfeitamente feliz em si mesmo, repleto de poder diante do caráter
subalterno dos outros? Não é um ‘homem’ segundo o ideal patriarcal?
O pensamento feminista vê uma relação mais intrínseca do que ha-
bitualmente se percebe entre essas características do Deus dos teístas
(tão problemático para os críticos dos séculos XIX e XX) e o sexismo
fundamental do símbolo desse Deus.100

Em uma obra que procura preencher a lacuna de estudos espe-


cíficos sobre Deus em o Novo Testamento, encontramos uma clara defi-
nição teísta (ontoteológica) de Deus imposta aos escritos neotestamentá-
rios, na qual destaco os elementos mais preeminentes:

também é importante notar que ‘Deus’ em o Novo Testamento é o


criador e senhor transcendente de todas as coisas, o único a quem todas
as nações devem culto e também é identificado mediante termos bem
particulares e pode ser o destinatário direto na oração. A ideia de uma
divindade universal atrás e acima de todas as divindades particulares
da era romana desfrutava de algum favor entre círculos filosóficos, mas
esta divindade última/universal era retratada tipicamente como alheio
a qualquer contato imediato e tão inescrutável em sua natureza, que

100  JOHNSON, Elisabeth A. La que Es. El misterio de Dios em el discurso teológico feminista.
Barcelona: Herder, 2002, p. 36.

103
pouco mais se poderia dizer a seu respeito além de afirmar a sua rea-
lidade divina. O Deus do Novo Testamento, porém (a divindade tam-
bém afirmada por figuras como Justino), combina uma sublime trans-
cendência e escopo universal com uma particularidade indelével. Como
exemplo, note 1Tm 6,13-19, que combina referências a ‘Deus’ como o
doador da vida em quem os crentes podem ter uma esperança segura
(versos 13 e 17), com descrições desta divindade como ‘somente ele
tem imortalidade e habita em luz inacessível, a quem ninguém jamais
viu ou pode ver’ (verso 16 NRSV). Ademais, como temos notado, o
único e verdadeiro Deus do Novo Testamento também é a divindade
testemunhada no Antigo Testamento, que convocou Abraão de seu
passado pagão [sic] e lhe deu firmes promessas, tirou Israel do Egito,
deu a Torá através de Moisés, e enviou os profetas que anunciavam a
‘palavra de Deus’.101

Dentro da visão teísta de Deus, o conceito do mono­teísmo sim-


plesmente expressa uma visão quantitativa da divindade – se há uma só,
todas as demais divindades não podem existir. Nesse sentido meramente
quantitativo, no mundo antigo predominava o politeísmo – com a exceção
de judeus e cristãos. No fundo, porém, a questão é mais complexa: como
no mundo antigo não se afirmava que deus possuía as características do
deus do conceito teísta, não seria igualmente anacrônico atribuir aos ju-
deus e aos cristãos o conceito de monoteísmo, mesmo em nossos dias?102
A partir dos anos 1970, a pesquisa bíblica viu crescer a discussão
sobre monoteísmo nas Escrituras judaico-cristãs – por exemplo, alguns
autores passaram a questionar a validade do conceito de monoteísmo para
os israelitas e até que ponto no próprio Novo Testamento já se considera
Jesus como Deus, ou apenas como divino, e se devemos falar em monote-
ísmo ou diteísmo – todavia, mesmo estes estudos não discutem o conceito
“deus”.103 De um ponto de vista prático, podemos concordar com N. T.

101  HURTADO, Larry W. God in New Testament Theology. Nashville: Abingdon Press, 2010, p.
50-51.
102  Jürgen Moltmann afirma que o Cristianismo não deve ser interpretado como uma religião
monoteísta, enquanto Wolfhart Pannenberg sustenta que, sim, o Cristianismo é monoteísta.
MOLTMANN, Jürgen. The Trinity and the Kingdom: the doctrine of God. Minneapolis: Fortress
Press, 1993; PANNENBERG, Wolfhart. Systematic Theology. v. 1. Grand Rapids: Eerdmans,
1992.
103  Infelizmente não é possível entrar nessa discussão assaz interessante. Como uma obra de

104
Wright104 em sua descrição da diferença entre a crença ocidental moderna
no monoteísmo e a crença judaica e cristã antiga em Deus: antigamente se
morria pela fé em Deus e, mais importante ainda, a vida era vivida diante
de Deus; hoje em dia não se morre pela crença (embora ainda se mate em
nome dela) e muitas pessoas monoteístas simplesmente não vivem diante
de Deus. Não somente nos distanciamos dos antigos em nossos conceitos
de divindade, mas, principalmente, em nosso modo de crer na divindade.
Nas palavras do próprio Wright:

[...] Meeks 1983, 180. Ver também 168: ‘para o próprio Paulo o pro-
blema central não é apenas o de esclarecer as implicações do mono-
teísmo, mas explicar como o propósito unificado de Deus através da
história poderia abranger o novum de um Messias crucificado. E con-
forme Meeks sugeriu, isto deve ser perguntado. Estudos recentes da
teologia de Paulo têm dado alguma atenção a ‘Deus’ no pensamen-
to de Paulo, mas sem enfatizar o tópico ou estudando-o deste modo.
Schnelle (2005, 2003, p. 393s). está correto ao dizer: ‘o monoteísmo
judaico é a base da cosmovisão paulina’, mas seu breve tratamento do
desenvolvimento da doutrina por Paulo dificilmente permite a emer-
gência das perspectivas necessárias. O tratamento breve, mas sempre
interessante de Dunn (1988, p. 27-50) semelhantemente passeia rapi-
damente pelo material sem se ocupar do modo como o ‘monoteísmo’ se
relacionava às questões concretas da época. Schreiner (2001, p. 18-35)
provê uma comovente introdução sobre a centralidade de Deus dentro
do pensamento de Paulo, mas sem chegar perto do tópico que eu estou
propondo como realmente central, não somente para o pensamento
teológico de Paulo, mas também para sua cosmovisão.105

Wright questiona o uso comum da noção de monoteísmo na


pesquisa, embora não discuta os fundamentos conceituais dessa visão.
Se não podemos mais pressupor que o conceito teísta de Deus é
o conceito disponível para Paulo, que conceitos em seu contexto ocupa-
riam esse lugar?

introdução à questão, ver: NEWMAN, C. C.; DAVILA, J. R.; LEWIS, G. S. (eds.). The Jewish roots
of christological monotheism: papers from the St. Andrews Conference on the Historical Origins of
the Worship of Jesus. Leiden: Brill, 1999.
104  Ver o capítulo 9 de Paul and the Faithfulness of God. Londres: SPCK, 2013.
105  WRIGHT, N. T. Paul and the Faithfulness of God. Londres: SPCK, 2013, p. 626.

105
2.3 Concepção de Divindade no Antigo Oriente Próximo

O conceito paulino de Deus, como é amplamente aceito na pes-


quisa, não foi formado no pensamento grego, mas advém da tradição cul-
tural judaica a qual ele pertencia. Para entender o conceito judaico de
Deus, porém, precisamos situar os escritos veterotestamentários no campo
dos discursos do Antigo Oriente Próximo sobre Deus. Quando analisa-
mos esse campo reconhecemos que a categoria ‘Deus’ não é construída do
mesmo modo que nos discursos ocidentais sobre Deus. De fato, a própria
categoria Deus não é plenamente adequada, embora a utilizemos por falta
de outra que cumpra a mesma função:

as principais culturas vizinhas do antigo Israel desenvolveram, todas,


vocábulos especiais para a noção de divindade. Embora essas palavras
sejam costumeiramente traduzidas por ‘deus’ pelos tradutores mo-
dernos, não deve ser assumido que as concepções de ‘deus’ no Antigo
Oriente estejam em perfeita correspondência com as dos povos mo-
dernos. Portanto, é essencial não parar na mera tradução dos termos,
mas inquirir sobre seu significado e conotações mediante um cuidado-
so estudo do modo e contexto em que foram usados.106

Como fruto parcial desse cuidadoso estudo, podemos constatar


que o discurso vétero-oriental sobre Deus não é constituído a partir da
diferenciação radical (ou negação), mas da intensificação: os deuses não
são o contrário do não divino, são intensificações dos seres não-divinos, os
quais, por sua vez, partilham de algumas das características essenciais do
divino107. Não há, consequentemente, uma visão dualista da realidade, mas
um tipo de monismo “anômalo”, posto que há distinções entre o mundo
divino e o terreno, mas essas não são descritas de modo essencialista108.
106  TOORN, Karel van der. God (I). In: TOORN, Karel van der; BEKING, Bob; HORST, Pieter
W. van der (eds.). Dictionary of Deities and Demons in the Bible. rev. Leiden: Brill, 1999, p. 353.
107  A palavra ’elohim, por exemplo, não é usada exclusivamente para se referir a ‘divindades’, mas
também se aplica a seres humanos, fenômenos naturais e mesmo animais. Para uma listagem, na
Escritura israelita, ver o capítulo 1 de GERICKE, Jaco. What is a God? Philosophical Perspectives
on Divine Essence in the Hebrew Bible. Londres: Bloomsbury Publishing, 2017.
108  Uma interessante discussão sobre a corporeidade das divindades antigas, especialmente a
corporeidade de YHWH na Escritura, ver: SOMMER, Benjamin D. The Bodies of God and the
World of Ancient Israel. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

106
No Egito, por exemplo,

um exame desta curta lista mostra que as qualidades dos deuses são
basicamente as dos humanos: aqueles as possuem, porém, em forma
mais pura do que os últimos. O que de fato eleva os deuses acima
dos mortais comuns é, primariamente, seu poder; uma deusa pode
ser mais divina que seus pares se ela for mais poderosa. [...] O poder
dos deuses é exaltado, porém circunscrito: está limitado a uma área
topográfica ou a um campo específico de ação. Em suas habilidades
e qualidades, deuses são superiores aos humanos, mas não infinita-
mente superiores.109

Modo similar ocorre na Mesopotâmia:

fundamental para a concepção mesopotâmica dos deuses é seu antro-


pomorfismo; os deuses têm forma humana, masculina ou feminina, e
são movidos por razões e sentimentos similares aos dos humanos. Sua
divindade está no fato de que eles são, em certo sentido, super-huma-
nos. Eles ultrapassam os humanos em tamanho, beleza, conhecimento,
felicidade, longevidade – em síntese: em todas as coisas que eram va-
lorizadas positivamente.110

Em Israel, essa concepção também está presente: “as qualidades


de Deus são qualidades humanas, entretanto, purificadas da imperfeição e
ampliadas para dimensões super-humanas. [...] há uma imensa diferença
de grau, mas não de natureza”.111 Todavia, pelo menos duas características
distinguem a crença israelita (pelo menos a canônica) da crença de seus vi-
zinhos: YHWH não pode ser materialmente representado, e YHWH é um.
Os povos do Antigo Oriente Próximo acreditavam em vários
deuses e os descreviam de várias formas, sempre seguindo a categoria da
intensificação: (a) intensificações de seres humanos e/ou de outros ani-
mais – deuses antropomorfos e teriomorfos; (b) intensificação dos astros
celestes, considerados deuses; (c) aspectos da vida divinizados: doenças,
morte, justiça etc. Assim, devemos pensar em categorias híbridas para en-

109  TOORN, op. cit., p. 354.


110  TOORN, op. cit., p. 357.
111  TOORN, op. cit., p. 362.

107
tender os discursos vétero-orientais sobre deuses e deusas que são “muito
mais” do que os seres não-divinos – mais poderosos, mais impiedosos,
mais sábios etc. O mundo divino não era dualista nem dual (com exceção
dos persas) – não se pode falar em deuses e demônios. Havia distinção e
hierarquia entre os deuses: sexo, poder, função, moradia – mas todos os
deuses eram igualmente divinos.
Embora os deuses compartilhassem características com os seres
humanos e os animais não-humanos, eles e elas, porém, não eram “cria-
turas”. Mesmo sem um dualismo metafísico, os deuses e deusas não eram
“humanos” ou “animais”, eram “deuses” e se distinguiam de modos eviden-
tes dos seres humanos, mas não se pode atribuir uma distinção de essência
no sentido metafísico deste termo. Por exemplo: mesmo que (a) os deuses
fossem considerados corpóreos e sexuados, de modo que praticavam sexo,
procriavam, se alimentavam, bebiam, viajavam, moravam em lugares espe-
cíficos, poderiam eventualmente morrer, mas nunca ser mortos por seres
humanos, apenas deuses poderiam matar outros deuses; e (b) em vários
textos podemos encontrar indicações de que antes de serem deuses, alguns
deles teriam sido humanos. Em termos filosóficos atuais, poderíamos di-
zer que os deuses vétero-orientais se situavam em uma zona liminar entre
imanência e transcendência.
Pode-se perceber, ao longo da história antiga, um crescente dis-
tanciamento entre criaturas e deuses, os quais se tornavam mais inescrutá-
veis, distantes112. Semelhantemente, apesar da não-diminuição do número
de divindades enquanto tal, constata-se a diminuição de divindades que
concretamente afetam a vida cotidiana das pessoas. Os deuses eram vistos
como responsáveis pelos eventos terrenos, de modo que os seres humanos
dependiam deles para obter sucesso no trabalho, na vida, na política etc.
Os(as) deuses(as), porém, não eram concebidos(as) de modo predomi-
nantemente moral – eles(as) podiam ser arbitrários(as), não tinham obri-
gação de responder às orações dos adoradores, poderiam mentir, enganar
etc. Eram, sim, concebidos(as) de modo hierárquico, similar à estrutura-

112  Por volta dos séculos VIII-VI a.C., esse processo se consumou em quase todo o Antigo
Oriente Próximo. Seguindo a terminologia de Karl Jaspers, trata-se das mudanças culturais
nomeadas como Era Axial.

108
ção hierárquica das cidades-estado, com um deus-rei supremo113 e uma
variedade de graus hierárquicos em relação aos demais. Semelhantemente,
eram representados(as) materialmente de diversas formas por seus ado-
radores. Pinturas, esculturas, rochas, árvores eram os principais meios de
representação material dos mesmos.

2.4 A Concepção de Divindade em Israel

2.4.1 Exclusividade e Irrepresentabilidade


Israel não alterou a conceituação vétero-oriental do divino en-
quanto intensificação de realidades criadas, mas modificou radicalmente a
sua compreensão sobre a maneira como Deus se relaciona com sua criação
e como deve ser apresentado.114
YHWH é Deus zeloso (’el qanah), de modo que não pode ser re-
presentado por figuras de nosso mundo, nem pode ter outros deuses ao
seu lado na adoração. Essas características, porém, não nasceram de modo
automático, pois são a conclusão de um longo processo histórico-cultural
do qual podemos apenas traçar alguns pontos aqui. Vejamos os principais
textos que oferecem indícios do reconhecimento de vários deuses em Israel,
os quais se situam dentro da noção vétero-oriental comum do conselho de
deuses: (a) Salmo 82 e Dt 32,8-9: o primeiro descreve o concílio celestial e
nomeia Elohim como o deus de Israel; o segundo nomeia YHWH como o
deus de Israel – em ambos, porém, Elyon é um deus superior a Elohim e a
YHWH; (b) Jz 6,25-26 Gideão destrói o altar de Baal e a imagem de As-
tarte115, que pertenciam ao templo de sua família e se torna adorador exclu-
sivo de YHWH; (c) Jz 5,8 fala da escolha de “novos deuses (elohim)” entre
as tribos de Israel e seus vizinhos; (d) Sl 78,48-50 menciona os deuses bdr,

113  Na região de Canaã, por exemplo, El foi durante um tempo o deus supremo, mas,
posteriormente, foi substituído por Baal nas crenças mais comuns.
114  Para uma criativa história das leituras filosóficas da concepção do divino nas Escrituras,
com uma atitude crítica antiontoteológica, ver GERICKE, Jaco. What is a God? Philosophical
Perspectives on Divine Essence in the Hebrew Bible. Londres: Bloomsbury Publishing, 2017.
115  Indício forte da crença de israelitas em uma deusa esposa de Elohim ou de YHWH é a
supressão do nome Astarte de vários textos, nos quais em seu lugar aparece uma expressão como
poste-ídolo.

109
rshph, mot, dvr, além dos “mensageiros do mal”; (e) Dt 32,24 menciona Qe-
teb e Resheph (fome/destruição), o Salmo 91,6 também menciona dbr e qtb,
este termo é traduzido pela LXX como δαιμονίου μεσημβρινοῦ (demônio
ou deus do meio-dia), Is 28,2 também usa qtb, além de outros termos que
podem ser deuses; (f ) Jr 7,18 e 44,17-19.25 mencionam a “rainha dos céus”,
a quem moradores de Jerusalém adoram; e (g) o Sl 78,48 fala de resheph
como o destruidor do gado egípcio e em Hc 3,5 resheph e dbr são auxiliares
de YHWH na teofania (aparição divina).
Além desses indícios, o outro elemento que claramente aponta
para a existência da crença em diversos deuses é a constante acusação de
idolatria presente nos textos anteriores ao período exílico. Não haveria ne-
cessidade de se fazer tal acusação – com tanta frequência – caso não hou-
vesse, do ponto de vista de quem fazia a acusação, a existência de crenças
e práticas idolátricas no antigo Israel. Tendo em vista que essa acusação é
extremamente marcante nos textos deuteronomistas, podemos supor que
foram os círculos de autores e autoras do Deuteronômio e obras afins os
responsáveis pela progressiva monolatrização e monoteização da crença
israelita antiga.
Nesses textos, encontramos dois modos paralelos de idolatria:
(a) a prática de adorar outros deuses e deusas além de YHWH; e (b) a
prática de atribuir a YHWH a identidade de outro Deus, como no livro
de Oséias, por exemplo, a de Baal. Fica evidente, nos textos deuteronô-
micos e deuteronomistas, que a crítica à idolatria não é apenas uma crítica
“religiosa” – e nem poderia ser no mundo antigo – mas uma crítica que
poderíamos chamar de teológico-política: adorar outros deuses levará Israel
a perder sua terra, sua liberdade, seu templo e seu rei. Somente YHWH é
o libertador de Israel, traí-lo significa, na prática, o exílio.
YHWH não se torna o deus único na Escritura de Israel por
um processo de negação dos demais deuses, ou de diferenciação entre a
essência de YHWH e a dos demais deuses. A categoria utilizada é, como
no caso dos deuses em geral, a da intensificação: YHWH incorpora as
características e funções dos demais deuses, até o ponto em que não seja
mais necessário que o israelita creia em outros deuses: YHWH torna-se
completamente suficiente. Sob a perspectiva canônica, YHWH é o úni-

110
co deus de Israel, ou seja, é defendida a exclusividade de YHWH como
Deus de Israel. Essa noção, porém, não deve ser identificada com a noção
ocidental do monoteísmo. Embora YHWH seja o único deus de Israel,
não há uma negação absoluta da existência dos demais deuses, mesmo
nos séculos VII e VI a.C., em textos de Jeremias e do Dêutero-Isaías, nos
quais a crítica aos demais deuses – definidos como ídolos construídos
pelas pessoas – aparentemente mais se aproxima da noção moderna de
monoteísmo. A afirmação de que somente YHWH é Deus de Israel é o
ponto climático de um processo longo e complexo, do qual temos vários
indícios no Antigo Testamento e nos achados arqueológicos na região do
antigo Israel.116
Essa defesa da exclusividade de YHWH se torna um dos temas
dominantes no chamado Judaísmo do Segundo Templo e está na base
da noção paulina de Deus. Vejamos dois exemplos escriturísticos que
destacam a inutilidade dos deuses e a exclusividade de YHWH como
Deus de Israel.
O primeiro é do livro de Jeremias:

Ouvi a palavra que YHWH vos fala a vós outros, ó casa de Israel.
Assim diz YHWH: Não aprendais o caminho dos gentios, nem vos
espanteis com os sinais dos céus, porque com eles os gentios se atemo-
rizam. Porque os estatutos dos povos são vazios; pois cortam do bosque
um madeiro, obra das mãos do artífice, com machado; com prata e
ouro o enfeitam, com pregos e martelos o fixam, para que não oscile.
São como um espantalho em pepinal e não podem falar; necessitam de
quem os leve, porquanto não podem andar. Não tenhais receio deles,
pois não podem fazer mal, e não está neles o fazer o bem. Ninguém
há semelhante a ti, ó YHWH; tu és grande, e grande é o poder do
teu nome. Quem te não temeria a ti, ó Rei das nações? Pois isto é a ti

116  Perseguindo outra questão, uma das conclusões da pesquisa de McClellan é útil aqui: “dentro
das culturas do antigo Israel e do Judaísmo, YHWH constituía o centro da categoria divina, mas
sua conceptualização não era monolítica nem consistente. Um foco extensivo (sobre as fronteiras da
categoria) revela uma inconsistência similar, embora menos estreitamente monitorada. [...] Quem
Deus era permaneceu muito mais importante do que a questão que é deus. Os aspectos prototípicos
da conceptualização de YHWH eram seu antropomorfismo, sua realeza e patriarquia, e seu poder
sobre a criação” (MCCLELLAN, Daniel O. You Will Be Like the Gods: The Conceptualization of
Deity in the Bible in Cognitive Perspective. Langley: Trinity Western University, 2013, p. 142
[dissertação inédita]).

111
devido; porquanto, todos os sábios das nações e em todo o seu reino,
ninguém há semelhante a ti. Mas eles todos se tornaram estúpidos e
loucos; seu ensino é vão e morto como um pedaço de madeira. Traz-se
prata batida de Társis e ouro de Ufaz; os ídolos são obra de artífice e
de mãos de ourives; azuis e púrpuras são as suas vestes; todos eles são
obra de homens hábeis. Mas YHWH é Deus fiel; ele é o Deus vivo e o
Rei eterno; do seu furor treme a terra, e as nações não podem suportar
a sua indignação. Assim lhes direis: Os deuses que não fizeram os céus
e a terra desaparecerão da terra e de debaixo destes céus. YHWH fez
a terra pelo seu poder; estabeleceu o mundo por sua sabedoria e com
a sua inteligência estendeu os céus. Fazendo ele ribombar o trovão,
logo há tumulto de águas no céu, e sobem os vapores das extremidades
da terra; ele cria os relâmpagos para a chuva e dos seus depósitos faz
sair o vento. Todo homem se tornou estúpido e não tem saber; todo
ourives é envergonhado pela imagem que ele mesmo esculpiu; pois
as suas imagens são mentira, e nelas não há fôlego. Vaidade são, obra
ridícula; no tempo do seu castigo, virão a perecer. Não é semelhante a
essas Aquele que é a Porção de Jacó; porque ele é o Criador de todas
as coisas, e Israel é a tribo da sua herança; YHWH dos Exércitos é o
seu nome ( Jr 10,1-16).

De acordo com essa passagem, os deuses dos povos são constru-


ções humanas, expressão da insensatez de seus adoradores; em relação a
YHWH são completamente frágeis e desprovidos de poder. YHWH é
incomparável, pois somente Ele criou o mundo, somente Ele é vivo e reina
e somente Ele escolheu Israel como seu povo.
Outro exemplo é a invectiva sarcástica do Segundo Isaías contra
os deuses dos babilônios:

Todos os artífices de imagens de escultura são nada, e as suas coisas


preferidas são de nenhum préstimo; eles mesmos são testemunhas de
que elas nada veem, nem entendem, para que eles sejam confundidos.
Quem formaria um deus ou fundiria uma imagem de escultura, que é
de nenhum préstimo? Eis que todos os seus seguidores ficariam con-
fundidos, pois os mesmos artífices não passam de homens; ajuntem-se
todos e se apresentem, espantem-se e sejam, à uma, envergonhados. O
ferreiro faz o machado, trabalha nas brasas, forma um ídolo a martelo e
forja-o com a força do seu braço; ele tem fome, e a sua força falta, não

112
bebe água e desfalece. Artífice em madeira estende o cordel e, com o
lápis, esboça uma imagem; alisa-a com plaina, marca com o compasso
e faz à semelhança e beleza de um homem, que possa morar em uma
casa. Um homem corta para si cedros, toma um cipreste ou um carva-
lho, fazendo escolha entre as árvores do bosque; planta um pinheiro,
e a chuva o faz crescer. Tais árvores servem ao homem para queimar;
com parte de sua madeira se aquenta e coze o pão; e também faz um
deus e se prostra diante dele, esculpe uma imagem e se ajoelha diante
dela. Metade queima no fogo e com ela coze a carne para comer; assa-a
e farta-se; também se aquenta e diz: Ah! Já me aquento, contemplo a
luz. Então, do resto faz um deus, uma imagem de escultura; ajoelha-se
diante dela, prostra-se e lhe dirige a sua oração, dizendo: Livra-me,
porque tu és o meu deus. Nada sabem, nem entendem; porque se lhes
grudaram os olhos, para que não vejam, e o seu coração já não pode
entender. Nenhum deles cai em si, já não há conhecimento nem com-
preensão para dizer: Metade queimei e cozi pão sobre as suas brasas,
assei sobre elas carne e a comi; e faria eu do resto uma abominação?
Ajoelhar-me-ia eu diante de um pedaço de árvore? Tal homem se
apascenta de cinza; o seu coração enganado o iludiu, de maneira que
não pode livrar a sua alma, nem dizer: Não é mentira aquilo em que
confio? (Is 44,9-20).

Junto ao texto de Jeremias, este oráculo promove uma crítica ma-


terialista à religião dos dominadores – seus deuses não têm vida própria, são
feitos pelos próprios adoradores, por isso não podem dar vida, não podem
libertar. Em sua história Israel experimentou os deuses dos outros povos
como deuses dos conquistadores, deuses opressores que não estavam inte-
ressados na vida dos israelitas, mas em conquista, dominação e riqueza.
Estes textos se tornam a fundamentação a posteriori da interdição
de imagens presente no Decálogo: se é uma imagem feita por pessoas, não
pode ser uma divindade ativa em favor de seu povo. A seguinte afirmação
de Josefo manifesta a permanência desta peculiaridade da crença judaica
em Deus, ainda que a terminologia de Josefo seja mais apropriada para
círculos gentílicos do que para círculos culturais judaicos:

Ele [Moisés] representou-o como único, incriado e imutável por toda


a eternidade; ultrapassando em beleza todo o pensamento mortal, tor-
nado conhecido a nós pelo seu poder, embora a natureza do seu ser

113
real ultrapasse o conhecimento [...] Pelas suas obras e sua generosida-
de é visto claramente, na verdade mais manifesto que qualquer coisa;
mas sua forma e dimensão ultrapassam nossa capacidade de descrição.
Nenhum material, por mais precioso seja, é adequado para fazer uma
imagem dele; nenhuma arte é capaz de concebê-lo e representá-lo.
Nunca vimos a sua semelhança, não o imaginamos e é ímpio conjetu-
rar (Contra Apionem 2.167, p. 190-191).117

Tanto os textos bíblicos citados, como o texto de Josefo, dão tes-


temunho da crença judaica em Deus sob a dominação estrangeira, que
marcou toda a história de Israel. A confissão de YHWH como o único
Deus de Israel não é uma afirmação metafísica sobre a essência e a exis-
tência da divindade, mas uma declaração polêmica teológico-política: so-
mente YHWH é o Deus de Israel porque somente YHWH é Deus que
liberta. O egiptólogo Jan Assmann, em seu estudo sobre Moisés e o Egito,
formulou uma hipótese para explicar a crença israelita em um único Deus,
que ele chamou de distinção mosaica, válida em sua descrição conceitual,
apesar de inadequada em sua negação do caráter teológico da mesma:

é a distinção entre o verdadeiro e o falso na religião. Esta proposta


enfrentou muitas objeções de estudiosos bíblicos, que insistiam em que
a distinção certamente não era uma das questões centrais de Moisés
quando tirou o seu povo do Egito. Ele estava preocupado com liberda-
de e escravidão, justiça e injustiça, bem e mal, ao invés de com questões
de verdade religiosa, muito menos com as da ortodoxia. Essa visão é
correta e permanece correta, mesmo quando substituímos o Moisés
‘histórico’ pelo Moisés ‘simbólico’, isto é, pelo Moisés como figura da
memória, e não da história. O que a tradição bíblica atribui a Moisés
tem pouco a ver com teologia, e mais com ética, política, lei, comporta-
mento, regras dietéticas, organização social, ritual e abstenção de ado-
rar outros deuses, ou o Deus certo de modo errado. Essas coisas todas
têm a ver com a questão, não da ‘verdade’, mas da lealdade e justiça.118

Não é possível aceitar, porém, a ideia subordinada à noção de


distinção mosaica de que o Deus de Israel era concebido de modo radi-

117  Conforme citado por Dunn, op. cit., p. 60.


118  ASSMANN, Jan. Of God and gods: Egypt, Israel, and the rise of monotheism. Madison:
University of Wisconsin Press, 2008, p. 127, (grifos meus).

114
calmente distinto do modo como as demais divindades eram concebidas
no Antigo Oriente.119

2.4.2 YHWH, Deus que dá vida


Outra característica distinta de YHWH em relação aos deuses
vétero-orientais é que YHWH é predominantemente o Deus que dá vida.
Essa característica é afirmada sinteticamente por Gerleman:

a evidência lexical sugere que o Antigo Testamento não coloca grande


peso sobre uma apresentação do Deus vivo. Vida e vitalidade quase
nunca são vistas enquanto atributos de YHWH. Toda ênfase recai so-
bre o fato de que YHWH dá vida e tem o poder de dar vida, mas não
de que ele participa dela. A dicção do Antigo Testamento é distinta
daquela das outras nações do Antigo Oriente Próximo, que, de modo
radicalmente explícito, falam da vida e vitalidade de suas divindades120.

Das 14 vezes em que se qualifica Deus como “vivo” (`el, `elohim ou


YHWH), em apenas duas vezes não há referência a outros deuses, nações
ou a falsos profetas, o que indica que o uso do qualificativo “vivo”, para
Deus, predomina em textos polêmicos contra a idolatria ou abdicação da
exclusividade de YHWH. Nessas e nas 43 ocorrências de fórmula de jura-
mento (em que ocorre a qualificação de YHWH ou Elohim como “vivo”),
a ênfase recai sobre a atividade de Deus – o Deus vivo é o Deus único e
libertador que age em favor de seu povo, de pessoas de seu povo, de sua
terra, com base em sua fidelidade e justiça. A ideia de vida no Antigo
Testamento é, portanto, uma noção concreta: vida é viver (nascer, comer,
beber, trabalhar etc.).
A doação da vida por YHWH está ligada a dois atos mais es-
pecíficos: criação e libertação. Criar o ser humano é dar-lhe vida e dar

119  Para uma discussão da concepção de Assmann, bem como para um estudo mais amplo da
noção do divino nas religiões do Antigo Oriente, ver: SMITH, Mark S. God in Translation. Deities
in Cross-Cultural Discourse in the Biblical World. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008.
120  GERLEMAN, G. hyh. to live. In: JENNI, Ernst; WESTERMANN, Claus. Theological
Lexicon of the Old Testament. Peabody: Hendrickson, 1997, v. 1, p. 554. A conclusão é baseada
no fato de que apenas 14 passagens falam de YHWH como “Deus vivo”, e a expressão “Deus
vivo” ou “vida de Deus” só é usada de oura forma em juramentos, com 41 ocorrências em todo
o Antigo Testamento.

115
vida ao povo de YHWH é libertá-lo da dominação opressora (que tira a
qualidade da vida). Em várias passagens no Dêutero-Isaías, a libertação
de Israel do exílio é descrita como criação do povo e em Ezequiel 37,
na visão do vale de ossos secos, a restauração da vida é metáfora para a
restauração de Israel após o exílio. Jr 10,10 tem um papel especial aqui,
posto que em uma passagem que polemiza com os deuses de outras
nações, os quais, segundo o profeta, não podem criar nem dar vida, ou
libertar. Somente YHWH é capaz dessas coisas:

Mas YHWH é Deus fiel; ele é o Deus vivo; o rei eterno. Quando
ele se ira, a terra treme; as nações não podem suportar o seu furor.
Digam-lhes isto: Estes deuses, que não fizeram nem os céus nem a
terra, desaparecerão da terra e de debaixo dos céus ( Jr 10,10-11).

Dois outros conjuntos de textos devem ser destacados aqui, os


quais sintetizam as principais características da fé israelita em YHWH.
O primeiro é um dos relatos da vocação de Moisés para libertar os filhos
de Israel do Egito:

Disse YHWH: ‘De fato tenho visto a opressão sobre o meu povo no
Egito, tenho ouvido o seu clamor, por causa dos seus feitores, e conheço
os seus sofrimentos. Por isso desci para livrá-los das mãos dos egípcios
e fazê-los subir daqui para uma terra boa e vasta, onde manam leite e
mel: a terra dos cananeus, dos hititas, dos amorreus, dos ferezeus, dos
heveus e dos jebuseus. Pois agora o clamor dos israelitas chegou a mim,
e tenho visto como os egípcios os oprimem. Vá, pois, agora; eu o envio
ao faraó para tirar do Egito o meu povo, os filhos de Israel’. Moisés,
porém, respondeu a Deus: ‘Quem sou eu para apresentar-me ao faraó
e tirar os filhos de Israel do Egito?’ Deus respondeu: ‘Eu estarei com
você. Esta é a prova de que sou eu quem o envia: quando você tirar
o povo do Egito, vocês prestarão culto a Deus neste monte’. Moisés
perguntou: ‘Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O
Deus dos seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem:
Qual é o nome dele? Que lhes direi?’ Disse Deus a Moisés: ‘Eu Sou o
que Sou. É isto que você dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês’.
Disse também Deus a Moisés: ‘Diga aos israelitas: YHWH, o Deus
dos seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de

116
Jacó, enviou-me a vocês. Esse é o meu nome para sempre, nome pelo
qual serei lembrado de geração em geração (Êx 3,1-14)121.

Solidariedade, libertação, parceria, vitalidade, fidelidade, poder.


Podemos abstrair o sentido das afirmações sobre Deus nessa passagem
com os seis termos acima. Solidariedade: YHWH vê o sofrimento, ouve o
clamor, conhece o sofrimento de seu povo, por isso desce e envia Moisés.
Libertação: Desce e envia Moisés para tirar os filhos de Israel do Egito
e fazê-los subir para uma terra em que poderiam ter vida plena. Parceria:
YHWH libertará os filhos de Israel do Egito, mas envia Moisés para
fazê-lo e “estou contigo”, assim também faz parceria com o seu povo que
se lembrará para sempre de seu nome. Vitalidade: ao anunciar o nome de
YHWH o verbo usado é hyh – existir, ser, tornar-se, acontecer, YHWH é
o Deus existente que faz acontecer (liberta para uma nova vida). Fidelida-
de: tudo isto é expressão do compromisso de Deus com os “pais e mães de
Israel”, por isso o seu nome é nome ‘para sempre’. Poder: para tirar Israel
das mãos de seus opressores e para derrotar os habitantes da terra em que
as filhas de Israel iriam viver.

Aquela que é, cuja natureza é a pura vitalidade, é a fonte profundamen-


te relacional do ser de todo o universo, mas, também, sujeito à ameaça
histórica. Ela é o poço que se transborda livremente, inundando de
energia a todas as criaturas para que floresçam, e é também a energia
de todos quantos resistem à ausência de florescimento; e tudo isto é
possível mediante a participação em seu ato dinâmico. Com o poder de
seu ser, ela faz ser. Com a força de seu amor ela dá a conhecer seu nome
como promessa de fidelidade, sempre presente em meio à opressão
para resistir e dar vida.122

Não temos aqui a messianologia paulina in nuce? O Deus que vê,


ouve, conhece e desce, não é o Messias que desce à nossa condição huma-
na e, mais ainda, à condição última de escravo (conhecendo então nossa

121  Em Êx 33,20 a apresentação do nome de YHWH é repetida, destacando a sua liberdade,


compaixão e amor fiel: “e te proclamarei o nome do SENHOR; terei misericórdia de quem eu tiver
misericórdia e me compadecerei de quem eu me compadecer”. A insuficiência do verbo “ser” para
traduzir o texto hebraico é evidenciada pelo traço que o atravessa.
122  JOHNSON. op. cit., p. 296.

117
dor maior), cuja fidelidade é a base da nossa justificação e, ressurreto pelo
poder do Espírito, nos faz subir para uma nova terra, que eternamente
mana leite e mel, criando uma nova parceria e um novo apostolado? Não é
o enigmático nome do Deus dos pais de Israel aquele que significa “eu me
torno naquilo que me torno”? Ou seja, “eu, Deus, existo enquanto Deus
ao me tornar humano vivente, morto e ressuscitado”? Não é este nome, a
ser lembrado de “geração em geração”, o nome a ser confessado por “todo
joelho” no céu e na terra?
Outro conjunto de textos fundamentais para compreendermos a
noção de Deus no Antigo Testamento é composto pelas “declarações de
fé” que destacam a fidelidade amorosa de YHWH. A primeira forma a ser
destacada é:

E passou diante de Moisés, proclamando: ‘YHWH, YHWH, Deus


compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade,
que mantém o seu amor a milhares e perdoa a maldade, a rebelião e o pe-
cado. Contudo, não deixa de punir o culpado; castiga os filhos e os netos
pelo pecado de seus pais, até a terceira e a quarta gerações’ (Êx 34,6-7).

E é possivelmente nessa forma mais rígida que o fariseu Saul


teria fundamentado seu zelo por YHWH. Todavia, após sua recepção do
Messias Jesus, a nova visão de YHWH teria sido celebrada mediante a
exclamação da forma deuteronômica dessa confissão, presente, por exem-
plo, no Decálogo:

Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem de qualquer coi-


sa no céu, na terra ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás
diante deles nem lhes prestarás culto, porque eu, o Senhor, o teu Deus,
sou Deus zeloso, que castigo os filhos pelo pecado de seus pais até a
terceira e quarta geração daqueles que me desprezam, mas trato com
bondade até mil gerações os que me amam e obedecem aos meus man-
damentos (Dt 5,8-10; cf. Dt 7,7-11).

Note-se o contraste com a forma no Êxodo: aqui a misericórdia


(hsd) se estende até mil gerações. Misericórdia, ou graça, ou amor, ou fi-
delidade, ou constância – chesed o polissemântico termo hebraico que se

118
refere ao modo de se relacionar do Deus que se relaciona fielmente com
sua criação enquanto permanentemente e confiavelmente Deus criador e
doador de vida.
A distintividade de Israel, em relação aos demais povos do An-
tigo Oriente, era, sim, teológica – mas uma teologia não ontoteológica,
uma teologia em que não se podia separar a crença em Deus da situação
concreta do povo. Crer exclusivamente em um só Deus é teologicamente
verdadeiro, segundo a Escritura judaica, mas esse crer só é verdadeiro se
for a expressão de toda a vida da pessoa, e não apenas de suas ideias. Para
o mundo judaico antigo, há Deus e ídolos. A pessoa deve se posicionar
entre eles, e de sua adesão fiel depende a sua vida. A diferença entre Deus
e ídolos não é vista de modo conceitual, mas de modo político – Deus
liberta, os ídolos oprimem. A defesa da unicidade de YHWH, portanto,
tem a ver, primariamente, com a singularidade do modo de agir de Deus e
não com a eventual exclusão de outros seres do mundo divino. YHWH =
um, ou seja, somente YHWH é o Deus de Israel, somente YHWH é Deus
que liberta e dá vida, fazendo aliança com o seu povo. Essa confissão é o
pressuposto israelita do conceito de Deus em Paulo.

2.5 Concepções de Deus no mundo greco-romano

O tema é bastante amplo e complexo, pelo que sou obrigado a


fazer grandes simplificações aqui, de modo que a consulta à bibliografia
especializada é indispensável para uma visão mais abrangente. No mun-
do greco-romano devemos distinguir a concepção “religiosa” de deus, da
filosófica. Inicio com a apresentação das principais características da con-
cepção de deus nas religiões, destacando o elemento conceitual comum,
de modo que não é necessário considerar as distinções individuais entre
os diversos deuses.
Os deuses do mundo religioso greco-romano não eram concebi-
dos a partir da negação de características “humanas” ou “animais”, e, sim,
como no Antigo Oriente, a partir da intensificação de características hu-
manas. Diferentemente do deus dos israelitas, mas semelhantes aos deu-

119
ses dos demais povos vétero-orientais, os deuses do mundo greco-romano
podiam ser presentificados culticamente mediante imagens e outros tipos
de representação visível. A principal diferenciação entre os seres divinos e
os humanos no mundo religioso greco-romano era constituída por duas
características exclusivas aos deuses: imortalidade e poder sobrehumano.
Em relação à imortalidade, os deuses poderiam nascer, evoluir, reprodu-
zir-se – eram imortais, mas não eternos.
Em termos da noção de poder,

a qualidade mais pervasiva que define um deus grego é o poder divi-


no (dynamis). De todas as qualidades divinas, esta é, de longe, a mais
difícil de definir, em parte porque ela não se manifesta em abstrato e
porque suas manifestações concretas assumem formas muito diferen-
tes. [...] Dentro da esfera de influência de cada deus individual, seu (ou
sua) poder é absoluto e jamais desafiado.123

As religiões greco-romanas giravam, em grande medida, ao re-


dor da concepção do poder das divindades. O temor em relação às possí-
veis sanções divinas era uma das forças motrizes da experiência religiosa,
e afetava todas as dimensões da vida humana – sempre vivida “diante
dos deuses”. Tendo em vista a existência de diversos deuses com iden-
tidades conflitantes e arbitrárias, formas complexas de relacionamento
com as divindades precisaram ser constituídas, a fim de que os crentes
pudessem dar conta de todas as demandas – por vezes contraditórias –
de suas várias divindades.
A síntese de Henrichs cabe aqui como conclusão desta brevíssi-
ma descrição da concepção religiosa de Deus no mundo greco-romano:

como conclusão, submeto que, enquanto objetos da pesquisa acadê-


mica, os deuses gregos são construtos culturais que existiam aos olhos
do contemplador (epifania), no coração do crente (fé), ou na mente do
contemplador (teologia); que imortalidade, antropomorfismo e poder
são os três pilares na construção grega da divindade; e que essas pro-

123  HENRICHS, Albert. What is a Greek God? In: BREMMER, Jan N.; ERSKINE, Andrew
(eds.) The Gods of Ancient Greece: Identities and Transformations. Edinburgh: Edinburgh University
Press, 2010, p. 36.

120
priedades genéricas que são compartilhadas por todos os deuses gregos
tem sido amplamente ignoradas por estudiosos da religião grega, que
tendem a privilegiar os deuses enquanto indivíduos com suas distintas
honras, habilidades e formas visíveis.124

Passo à apresentação sintética e necessariamente simplificada da


concepção filosófica de Deus no mundo greco-romano.125 Talvez a pri-
meira descrição conceitual da divindade seja a presente em Xenófanes,
conforme o interpreta Kenny:

ao invés de um antropomorfismo infantil, Xenófanes ofereceu um so-


fisticado monoteísmo. Ele acreditava em um deus, senhor sobre deuses
e sobre a raça humana, não-idêntico aos mortais no corpo ou na men-
te. (DK 24 B23). Somente poderia existir um Deus, porque Deus é a
mais poderosa de todas as coisas; se houvesse mais do que um deus,
nenhum deles poderia ser mais poderoso do que os outros, e nenhum
deles seria capaz de fazer o que quisesse. Deus deve ter existido sem-
pre: ele não poderia vir a ser a partir de algo similar a si mesmo (pois
ele não pode ser algo semelhante a si mesmo), nem poderia vir a ser a
partir de algo distinto dele mesmo (pois o maior não pode ser trazido
ao ser pelo menor) (ARISTÓTELES, MXG 976b145-36). Deus é
um ser vivo, mas não um ser orgânico como homens e animais: não
há partes em Deus, e ‘ele vê como um todo, ele pensa como um todo,
e ele ouve como um todo’ (DK 21 B24). Ele não tem contato físico
com nada no mundo, pois, ‘remoto e sem esforço, com sua mente ele
governa tudo o que há.126

Podemos deixar de fora as discussões sobre o divino em Sócrates


e Platão e partir diretamente para o conceito de Deus na Metafísica de
Aristóteles, em que encontramos a mais plena conceituação ontoteológica
de Deus. De acordo com Kenny,

124  HENRICHS, op. cit., p. 38.


125  Para uma descrição da concepção da divindade na filosofia, ver, em especial: GERSON,
Lloyd P. God and Greek Philosophy. Studies in the early history of natural theology. London:
Routledge, 1990.
126  KENNY, Anthony. A New History of Western Philosophy. Volume 1: Ancient Philosophy.
Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 290).

121
é tal ser que Aristóteles, na Metafísica seção K, descreve em termos
teológicos. Deve haver, diz ele, uma substância eterna imóvel que possa
causar movimento eterno. A ela deve faltar a matéria – ela não pode
vir a existir, nem a deixar de existir ao se tornar em outra coisa – e a ela
deve faltar a potencialidade – pois o mero poder de causar mudança
não garantiria a eternidade do movimento. Ela deve ser simplesmente
ato (energia) (1071b3-22).127

Ou, nas palavras do próprio Aristóteles:

A vida reside nele, porque a atualidade do pensamento é vida, e Deus


é essa atualidade; a atualidade autônoma de Deus é a vida perfeita e
eterna. Dizemos, pois, que Deus é um ser vivo, eterno, supremamente
bom, de sorte que a ele pertencem a vida e a duração contínua e eterna;
pois isso é Deus.128

Essas concepções de Deus têm em comum o fato de que Deus


não pode agir pessoalmente no mundo, não pode cuidar do ser humano,
pois a ele faltam a potencialidade e o movimento, de modo que é impas-
sível e inativo em relação ao que existe sem ser ele mesmo. Mais próximo
ao tempo de Paulo teremos as discussões sobre Deus dos epicureanos e
estoicos que, embora admitindo a possibilidade de Deus agir no mundo,
mesmo assim mantêm uma concepção de Deus que é impessoal e imu-
tável. É nas Enéadas de Plotino, porém, que a ontoteologia atinge seu
clímax, ainda que sustente uma forma de teologia negativa.
Plotino escreve:

O uno não é a percepção, ele precede a percepção, pois a percepção é


uma das coisas que são, enquanto o uno não é uma coisa, mas ele pre-
cede cada coisa, já que não é o mesmo, pois, justamente, o que é, possui
de certo modo uma figura, aquela que ele é, enquanto o uno está pro-
vado de figura, mesmo de figura perceptível. Com efeito, o surgimento
do uno, já que ele é o pai de todas as coisas, não é nenhuma delas.
Não é, portanto, nenhuma coisa, nem qualidade, nem quantidade, nem

127  KENNY, op. cit., p. 300.


128  Aristóteles. Metafísica. 1072b25. Tradução de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969,
p. 259.

122
percepção, nem alma. Ela não está em movimento, nem em repouso,
nem está em um lugar, nem no tempo, mas ele tem uma única forma,
em si e por si mesma. Ou melhor, ele é privado de forma, pois precede
toda forma, como precede o movimento e o repouso. Pois essas coisas
são relativas às coisas que estão sendo, e essas coisas são o múltiplo. 129

Sendo assim, nada se pode postular efetivamente a respeito do


Uno, e voltamos, pela via negativa, ao motor imóvel de Aristóteles rein-
terpretado à luz da noção das formas em Platão. Esta brevíssima apre-
sentação deve ter deixado claro que a concepção filosófica grega de Deus,
que está na base da concepção teísta de Deus – modificada ontoteologi-
camente pelo diálogo com a teologia cristã – em pouco se assemelha às
concepções religiosas de Deus disponíveis no tempo de Paulo, inclusive à
do apóstolo. Em termos mais pertinentemente filosóficos: se na concep-
ção ontoteológica (presente em raiz na filosofia greco-romana à época de
Paulo) é impossível identificar o Ser com o existente (ente), dada a dis-
tinção entre potência e ato, essência e existência, na concepção judaica é
impossível identificar o Ser a não ser no existente – daí a indiferenciação
gramatical entre o termo “deus” e o nome “deus” (’el ou ’elohim). A essência
não é distinguida da existência, ao contrário, a essência de Deus é a sua
existência – o seu modo de ser – que é definida pelo seu nome (cf. Êx 3).130

129  PLOTINO. Enéadas 6.9.3.38-45. Tradução de Paulo Henrique Fernandes Silveira. In:
Integração, n. 53, 2008, p. 178.
130  É evidente que temos, então, de abandonar as categorias tradicionais da ontologia metafísica.
Nesta virada do século XX para o XXI, têm sido, especialmente, Giles Deleuze, Alain Badiou e
Giorgio Agamben os filósofos que buscam constituir ontologias não ontoteológicas. No limiar
entre filosofia e teologia, semelhante tentativa é realizada por John D. Caputo e Richard Kearney.

123
Capítulo 3
Descrevendo Deus

124
Introdução

Apresentarei a descrição paulina de Deus levando em conside-


ração essas questões anteriormente discutidas. Elas mostram que a noção
judaica de Deus, subscrita por Paulo, não é o conceito racional da filosofia
grega nem o da ontoteologia cristã ocidental. Paulo permanece fiel à con-
cepção judaica de Deus: sua visão não-dualista do divino, sua noção da
exclusividade de YHWH em função de sua plena suficiência. A partir de
sua compreensão a respeito do Messias Jesus, porém, Paulo a modifica em
pontos cruciais conforme veremos a seguir. De antemão podemos afirmar,
porém, que se a concepção judaica é fundada na categoria da intensifica-
ção, a de Paulo é fundada na categoria da vacuidade, ou seja, da intensifi-
cação esvaziando-se.
O número de passagens em que Paulo faz algum tipo de descri-
ção discursiva de Deus é imenso, de modo que é inevitável fazermos uma
seleção a fim de tornar o estudo academicamente viável. Preliminarmente
é bom destacar que evito atribuir a algum dos temas presentes em Paulo o
lugar central em sua descrição de Deus, como o fazem, por exemplo, Udo
Schnelle: “a característica distintiva do Deus proclamado por Paulo é que
Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos (cf. 1Ts 1,10; 4,14; 1Co 15,12-
19), Deus é a fonte de toda graça (Rm 1,7; 3,24; 1Co 15,10) e o alvo da
história redentora”.131 Frank Matera faz a sua lista:

os principais temas que investigarei são (1) Deus que chama e elege,
(2) Deus revelado na fraqueza e no sofrimento, (3) Deus que justifica,
(4) Deus que é fiel, (5) Deus que partilha seu nome, (6) Deus revelado
em Cristo, (7) Deus revelado na economia da salvação, e (8) Deus que
é Salvador.132

Richard Hays, em seu estudo sobre Deus em Gálatas, faz a se-


guinte lista, conforme citado por Matera:

Richard Hays (‘The God of Mercy Who Rescues Us from the Present
Evil Age: Romans and Galatians,’ in The Forgotten God, p. 123-44)

131  SCHNELLE, Udo. Apostle Paul: His Life and Theology. Grand Rapids: Baker, 2005, p. 395.
132  MATERA, Frank J. God’s saving grace: a Pauline theology. Grand Rapids: Eerdmans, 2012,
p. 218 (já citada na Introdução).

125
aborda sua discussão de ‘Deus’ em Gálatas em termos da narrativa
sobre Deus pressuposta pela carta. Ele sintetiza essa narrativa sob
os seguintes títulos: Deus fez promessas a Abraão. Deus deu a Lei.
Deus enviou seu Filho. Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos. Deus
justifica os gentios mediante a fidelidade de Jesus Cristo. Deus nos
chama para participarmos da comunidade da nova aliança. Deus dá
o Espírito. Deus irá julgar. Deus é o destinatário último da glória.133

Nesses três autores o critério de seleção é o da relevância temática,


critério problemático na medida em que os escritos paulinos não se cons-
tituem em um sistema ordenado de pensamento. Assim, lembrando que
para qualquer seleção arbitrária, adotei dois critérios para a exposição: (a)
iniciarei pela temática pessoal, mapeando a descrição paulina de Deus-Pai,
Deus-Filho e Deus-Espírito Santo mediante a análise das perícopes mais
significativas com relação a esta temática. Ao fazer esse mapeamento, vários
elementos da ação ou de características pessoais de Deus, como vida, elei-
ção, revelação, imparcialidade etc. já serão abordados; (b) na sequência, dis-
cutirei a narrativização do discurso paulino sobre Deus, procurando captar
quatro grandes valores socio-políticos da pregação paulina sobre Deus. Na
última seção do capítulo apresentarei analiticamente o conceito paulino de
Deus, decomposto em quatro categorias semânticas fundamentais: comu-
nicabilidade, vacuidade, vidalidade e unidiferencialidade.

3.1 Há um só Deus: O Pai é Deus

3.1.1 Para nós há um só Deus (1 Co 8,4-6)

No tocante à comida sacrificada a ídolos, sabemos que o ídolo nada


é no mundo e que não há senão um só Deus. Porque, ainda que há
também alguns que se chamem deuses, quer no céu ou sobre a terra,
como há muitos deuses e muitos senhores, todavia, para nós há um só
Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem existimos; e um
só Senhor, o Messias Jesus, pelo qual são todas as coisas, e nós também,
por ele.

133  MATERA, op. cit., p. 228.

126
Esta perícope de 1 Coríntios 8,1-13 apresenta uma das afirma-
ções cruciais de Paulo sobre Deus, em um contexto polêmico relativo à
falta de unidade nas comunidades coríntias em função da participação em
eventos sociais com cunho religioso. O problema que evoca a discussão
neste capítulo de 1 Coríntios é a possibilidade de um cristão comer carnes
de animais sacrificados a deuses ou ídolos. Não discutiremos o conjunto
da perícope, apenas notei o problema para mostrar o pano de fundo da
temática da identidade de Deus nos versos 4-6, à qual restringir-me-ei.
(1) Paulo, claramente, faz uma distinção entre Deus, o único
Deus, e os ídolos dos gentios – deuses ou demônios134. Os autonomea-
dos deuses – no céu e na terra - não podem salvar, porque não criaram o
mundo, não podem agir – repete-se a crítica judaica à idolatria – ou, na
linguagem aqui adotada: não se relacionam fielmente. É possível, ainda,
que Paulo esteja aludindo ao costume grego de “divinizar” pessoas em
função de suas qualidades extraordinárias, ou seja, de sua não-relação com
os demais, de seu posicionamento radicalmente assimétrico em relação
aos demais seres humanos135. O verso 4 oferece uma terminologia rica para
a reflexão: Περὶ τῆς βρώσεως οὖν τῶν εἰδωλοθύτων, οἴδαμεν ὅτι οὐδὲν
εἴδωλον ἐν κόσμῳ καὶ ὅτι οὐδεὶς θεὸς εἰ μὴ εἷς. Destaco dois elementos:
a expressão no mundo – o espaço em que vive o ser humano (não o mundo
filosófico, da exterioridade), o mundo diante de Deus em que vivemos, no
qual somente um Deus age e está presente. No mundo, o visível não é
nada/ninguém, somente o Deus invisível é no mundo, como sua fonte, sua
esfera de existência e sua finalidade. O ídolo nada é no mundo porque não
se relaciona com ninguém sob o signo da fidelidade, mas sob a lógica dual
da dívida-dever. “Nenhum Deus, se não um”, o uso da dupla negativa pro-
voca uma ambiguidade interessante – poderíamos ler um como não-deus,

134  Como o termo grego daimonion é ambíguo, podendo se referir a deuses em sentido
subalterno, ou a demônios, no sentido de espíritos impuros, como no Judaísmo, devemos manter
aqui a ambiguidade que, neste caso, está a serviço da teologia.
135  “Aristóteles (Política III 13, 1284, p. 7-12) afirma que, se uma pessoa possui realmente
qualidades superiores, será vítima de injustiça se for reconhecida apenas como igual àqueles
que a ela são inferiores em excelência e em capacidade: ‘tal homem pode verdadeiramente ser
considerado um deus entre homens’”, HOORST, P. W. van der. God (II). In: TOORN, Karel van
der; BEKING, Bob; HORST, Pieter W. van der (eds.). Dictionary of Deities and Demons in the
Bible. Leiden: Brill, 1999, ed. revisada, p. 366.

127
na medida em que deus seja um objeto ao alcance do olhar humano. O
Deus vivo-confiável, consequentemente, é de tal natureza que até mesmo
reduzi-lo a theós poderia ser considerado idolatria, pois seria reduzi-lo ao
alcance do olhar. Traduzindo para uma linguagem afirmativa: existe ape-
nas um Deus, exatamente o Deus a quem não se pode ver (ou conhecer
a partir dos modos de relação deste mundo), mas que se faz visível em sua
invisibilidade (tanto no anúncio como nas coisas criadas Deus se torna
visível sob o signo da invisibilidade);
(2) Não há uma preocupação em discutir se os deuses/ídolos exis-
tem ou não! Paulo distingue radicalmente Deus dos ídolos, mas afirma
“como há muitos deuses e muitos senhores, todavia, para nós há um só Deus [...]”
– para nós é a expressão que se deve destacar. Aparentemente, na visão
paulina, seria um desperdício discutir a questão da existência de Deus ou
dos deuses-ídolos. De fato, tentar convencer alguém de que ‘seu deus’ não
existe é uma via inadequada para o anúncio da boa nova. O foco é exis-
tencial: para nós há um só Deus, e somente esse um-Deus é que realmente
importa, pois somente Ele é fiel. De modo similar ao Antigo Testamento,
não se trata de uma defesa conceitual do monoteísmo, mas da defesa radi-
cal de uma vida exclusivamente fiel. Não importa quantos deuses, deusas,
ídolos ou demônios possam existir – importa servir ao único Deus vivo e
confiável – como encontramos em 1Ts 1,9b. A questão, em outros termos,
é: a quem servimos? Se servimos a ídolos, permanecemos escravos do pe-
cado. Se servimos a Deus, somos verdadeiramente livres!
(3) A unidade de Deus é o fundamento para a ênfase na unida-
de da comunidade messiânica, tanto no capítulo 8 como no capítulo 10.
Se há um só Deus, deve haver também um só povo de Deus. Entretan-
to, assim como na divindade a unidade não é sinônimo de uniformidade,
também na unidade da koinonia a diversidade está presente. A unidade
divina é qualitativa, não-calculável, existente na forma de uma pluralidade
de modos de ser-em-relação. Esse tema é fundamental em Paulo, pois
para ele um dos piores sintomas da escravidão ao pecado é a divisão da
humanidade em grupos opostos e antagônicos, sempre de modo egocên-
trico – nós versus os outros, seja a divisão judeus-gentios, seja a divisão
gregos-bárbaros etc. A comunidade de seguidoras e seguidores do Deus

128
único deve ser pluralmente una, a fim de dar testemunho da unidade da
humanidade como expressão da unidade de Deus;
(4) “para nós há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para
quem existimos”. Aqui encontramos uma descrição tipicamente judaica,
desenvolvida principalmente no período do Segundo Templo, que une
as concepções de paternidade e criação como características definidoras
de Deus e sua distinção dos seres humanos. Entretanto, essa visão é res-
significada por Paulo, na medida em que, em primeiro lugar, Deus é Pai
do Messias e, no Messias, Pai de toda a criação. Como origem e alvo de
todas as coisas, inclusive de nós, seres humanos, o Pai é, não somente a
fonte da vida, ele é a vida propriamente dita. Assim, podemos reforçar o
raciocínio sobre a expressão no mundo, pois para Paulo o mundo não tem
existência própria, mas criada por Deus e, deveríamos dizer, mais do que
criada e, sim, gerada. Nenhuma possibilidade, consequentemente, de uma
concepção autônoma do mundo, da existência ou da vida. Viver e exis-
tir são expressões da paternidade divina, de tal modo que é somente no
Messias que se pode viver e existir plenamente. É no movimento de Deus
para fora de si mesmo, em seu amor criador e libertador, que a vida existe
e permanece. Do ponto de vista das consequências antropológicas, deve-
ríamos reconhecer imediatamente: em que consiste ser humano? Em ser-
-filho, assim como o ser-Messias consiste em ser-filho-de-Deus. Destarte,
Pai e Filho não são termos substanciais, mas relacionais, e não se referem
apenas à relação intradivina, mas ao modo de relacionar-se de Deus em
sentido lato. Nas relações intradivinas e com sua criação, Deus sempre se
relaciona como Pai do Filho no Espírito;
(5) Não cabe, aqui, uma discussão sobre a divindade de Jesus,
mas podemos ressaltar o caráter anômalo do monoteísmo paulino: um só
Deus e um só Senhor – “pelo qual são todas as coisas, e nós também, por ele”.
Entendo o termo Senhor como se referindo ao Messias. A ideia de que o
Messias é agente de Deus na criação está presente em forma mais desen-
volvida no hino cristológico de Cl 1,15-20. De igual forma, na segunda
estrofe do hino se celebra a ação salvífica do Messias. Sem a ação do
Messias não há conhecimento salvífico de Deus, sem serviço ao Messias
Jesus, o Senhor, não se pode também servir ao Pai. O que nos importa,
agora, porém, é que no Senhor temos vida – vivemos graças a Ele e por

129
meio dEle. A concepção paulina de Deus é judaica, mas revisada messia-
nicamente. Temos, aqui, a fórmula matemática anômala da concepção de
Deus em Paulo: 1 + 1 = 1. Se no mundo gerado cada unidade é distinta da
outra, cada coisa e cada pessoa tem sua identidade particular e intransfe-
rível e o que é igual não pode ser, ao mesmo tempo, diferente; no mundo
geracional cada pessoa somente tem sua identidade na outra, de tal modo
que identidade e diferença se correspondem mutuamente: igualdade na
diferença e diferença na igualdade. Do ponto de vista das categorias lógi-
cas, temos aqui a da indiscernibilidade.

3.1.2 “No anúncio da boa nova” ... “Do céu” se revela (Rm 1,16-25)

[...] pois não me envergonho do anúncio da boa nova, porque é potên-


cia de Deus para a libertação de todos os fiéis, tanto judeus, primei-
ramente, como gregos. Pois a justiça de Deus é revelada nele, a partir
da fidelidade com vistas à fé-fidelidade, assim como está escrito: ‘mas
o justo viverá com base na fidelidade’, enquanto o desgosto de Deus
é revelado do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens que
detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode co-
nhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque as
invisibilidades de Deus, sendo vistas, são discernidas desde o princípio
do mundo, nas coisas criadas, a saber sua eterna potência e divindade,
de modo que são indesculpáveis. Tais homens são, por isso, indescul-
páveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram
como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus
próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Incul-
cando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus
incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem
como de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus entregou tais ho-
mens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para
desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a verdade de Deus
em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o
qual é bendito eternamente. Amém! (Rm 1, 16-25)

No capítulo sobre a fidelidade salvífica de Deus no Messias tra-


taremos do texto de Romanos como um todo. O que nos interessa, aqui,
porém, é o que este trecho nos ensina sobre a concepção paulina de Deus.

130
A grande maioria dos estudos sobre Romanos vê aqui duas perícopes
(1,16-17 e 1,18ss) e há boas razões para tal. Para a análise da concepção
de Deus, porém, é melhor analisá-las conjuntamente, unidas como são
pela repetição do verbo “é revelada” (ἀποκαλύπτεται) nos versos 17 e 18, e
pelo contraste temático entre a revelação da justiça e do desgosto de Deus,
respectivamente, no anúncio da boa nova e “do céu”, ou seja, a partir da
criação. Em ambas as seções a “revelação” é apresentada a partir de textos
da Escritura.
Em 1,16-17 Paulo se apropria de uma série de textos sobre o
anúncio da boa nova: Sl 68,12[11]; Na 2,1[1,15]; Is 40,9; 41,27; 52,7;
60,6 e 61,1; enquanto em 1,18ss temos uma releitura de dois textos: Sl
19,1-4 e, especialmente, Sabedoria de Salomão 13,1-5. No Salmo lemos:
“Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras
das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conheci-
mento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se
ouve nenhum som; no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as
suas palavras, até aos confins do mundo”.
Já em Sabedoria, encontramos:

Pois todas as pessoas que são ignorantes de Deus são tolas por natureza;
e elas são incapazes de conhecer aquele que existe a partir das coisas que
são vistas, nem reconhecem o artista enquanto olham para suas obras;
mas supõem que o fogo, ou o vento, ou o ar, ou o círculo das estrelas,
ou a água turbulenta, ou as luminárias do céu são os deuses que regem
o mundo. Se pelo prazer na beleza dessas coisas as pessoas assumem
que elas são deuses, que venham a conhecer como é muito melhor do
que elas o seu Senhor, pois o autor da beleza as criou. E se as pessoas se
admiram diante de seu poder e operação, que venham a perceber quão
mais poderoso é aquele que as formou. Pois, da grandeza e beleza das
coisas criadas vem uma correspondente percepção de seu Criador.

Do ponto de vista da concepção paulina de Deus, pelo menos


três pontos devem ser aqui destacados:
(1) É possível conhecer Deus por meio das suas obras na criação.
Para Paulo, Deus pode ser conhecido mediante o estudo das coisas que ele
criou – na medida em que o próprio Deus tornou manifesto o que pode

131
ser conhecido dele em suas obras (τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν
αὐτοῖς· ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς ἐφανέρωσεν 1,19). O que se pode conhecer de
Deus, porém? Para começar: as invisibilidades divinas (ἀόρατα); prefiro
invisibilidades a “coisas” ou “atributos” divinos, pois a primeira opção não
oferece sentido e a segunda é anacrônica, impondo ao texto de Paulo um
conceito teológico posterior – essas invisibilidades são “sua eterna potên-
cia e divindade”.
Em Cl 1,15 Paulo fala sobre o Messias como “imagem visível do
Deus invisível, primogênito de toda a criação” (ὅς ἐστιν εἰκὼν τοῦ θεοῦ
τοῦ ἀοράτου, πρωτότοκος πάσης κτίσεως), o que sugere uma dupla signi-
ficação neste verso de Romanos: (a) a invisibilidade é conatural ao divino,
invisibilidade, porém, que se manifesta, que se torna visível mediante o
amor criador de Deus, que se expressa naquilo que faz; e (b) se manifesta
na carne humana, na fragilidade humana, na forma de Seu Filho, o criador
e sustentador de todas as coisas. Sob esta ótica, a discussão sobre revelação
“natural” ou “especial”, teologia “natural” versus teologia “revelada” perde
seu sentido, na medida em que não há distinção no modo revelatório de
Deus: Ele mesmo se revela em tudo o que faz – o que se modifica é o
modo mediante o qual nos apropriamos de sua revelação.
Na sequência, dois outros termos designam o que se pode conhe-
cer de Deus: (a) sua “eterna potência” (ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις) – o adjetivo
indica que a potência de Deus (mesmo termo usado em relação à justiça
de Deus no verso 17) não é delimitada pela temporalidade do mundo, seja
do mundo criado, seja do mundo “mítico” das religiões greco-romanas.
A mera existência do mundo manifesta a potência divina ilimitada tem-
poralmente: o Deus criador é “efetivamente” Deus, sua potência é criar e
nisso difere radicalmente dos deuses das religiões e do “deus” do pensa-
mento grego – especialmente do motor imóvel de Aristóteles, que é pura
energia (em grego, ’energeia), ausência de potência e/ou de movimento.
(b) Sua “divindade” (θειότης), um hápax legomenon. O termo, no mundo
grego, indica a natureza divina, junto a theios (o que pertence ao divino,
ao mundo sagrado) e, provavelmente é nesse sentido que Paulo o usa aqui:
podemos saber que Deus é “deus” por meio das coisas que Ele criou, pois
nelas deixou sua impressão – diríamos, com Derrida, seu traço.

132
Devemos notar que no estoicismo o conhecimento das coisas
criadas era equivalente ao conhecimento de Deus, mas o conceito de
Deus era bem diferente do conceito de Paulo. Os estoicos acreditavam
que qualquer fenômeno natural nos dá acesso ao conhecimento de Deus
que é intrinsecamente imanente – não há, consequentemente, noção de
criação do mundo por Deus, mas uma forma de panteísmo.
A relação do Criador com suas criaturas não é estabelecida
sob o modo da exterioridade, como nas relações entre o ser humano e
os objetos que produz. Não há matéria-prima deste mundo; criado por
Deus, em si mesmo e a partir de si mesmo, o mundo não pode ser visto
senão como corpo do próprio Deus, manifestação da matéria divina, de
tal modo que a materialidade do mundo torna visível a invisível mate-
rialidade de Deus. Paradoxalmente, porém, o mundo não é Deus, nem
divino. Poderíamos, talvez, brincar com as palavras e as ideias e acres-
centar aqui a noção de externo/interno do pintor russo Kandinsky, que
nos afirma que a arte é sempre interior, invisibilidade tornada visível na
visibilidade da tela, invisibilidade tornada concreta na pintura abstrata.
Ou, ainda, poderíamos brincar com alguns fenomenólogos e dizer que
Deus é pura manifestação, o aparecer do aparecer que jamais se esgota e
eternamente aparece.
Por que, então, a maioria das pessoas e povos não o conhece?
Segundo Paulo, por causa da impiedade (o termo grego denota princi-
palmente a profanação do divino) e da injustiça – a busca de poder, de
controle, de domínio sobre as demais partes da criação é que impede o
ser humano de conhecer a Deus pelas coisas criadas. A afirmação retrata
mais uma vez a epistemologia peculiar de Paulo: conhecer é ser fiel. Em
linguagem mais moderna, poderíamos dizer que é o antropocentrismo que
impede as pessoas de conhecerem a Deus através da sua criação. O ser hu-
mano, ao olhar para a natureza, vê apenas a sua própria grandeza e pecu-
liaridade em relação à mesma – e a domina a seu bel-prazer, destruindo-a
irresponsavelmente. Ou seja, o ser humano não tem prazer em enxergar
a invisibilidade de Deus, rejeita a visão do invisível e prefere a visão do
visível. Talvez porque o invisível seja demais para nós?
(2) Em um registro teológico de linguagem, não se re-conhece
a Deus por meio da natureza porque o ser humano é um fabricante de

133
deuses-ídolos, um construtor de visibilidades do visível em uma busca in-
cessante da invisibilidade (ou, diríamos, transcendência). Como na Sabe-
doria de Salomão, também em Romanos, destaque é dado ao fato de que,
mediante a impiedade e injustiça, as coisas criadas são elevadas à condição
divina e substituem o Deus vivo e verdadeiro.136 Como em Isaías, a idola-
tria é criticada de um modo materialista – os deuses que não o são, mas são
adorados como se fossem, são fabricados por mãos humanas. Astros celes-
tes, animais, pedras etc., qualquer coisa pode ser transformada em ídolo
porque a impiedade humana assim o permite e que resulta em estultice e
ignorância. Se examinarmos a idolatria sob o ponto de vista epistemoló-
gico, percebemos que em Paulo o conhecimento de Deus é idolátrico na
medida em que se basear no raciocínio e na observação empíricas (para
usar termos modernos). O conhecimento de Deus não é “intelectual”, mas
vivencial: só é possível conhecer a Deus em Deus, conhecimento de Deus,
em Paulo, é reconhecimento de Deus – é vivência, pathos, koinonia, é mo-
vimento de ser afetado por Deus e de afetar a Deus na fidelidade.
A consequência da idolatria é uma vida vivida sob a escravidão
ao pecado, uma vida imunda, resultado da transformação da verdade de
Deus em mentira. Aqui podemos fazer um jogo de palavras com os ter-
mos gregos. Em grego, verdade (aletheia) tem como um de seus sentidos a
noção de desvelamento – verdade é aquilo que fica claro, evidente, aberto.
A verdade de Deus, clara, aberta e evidente em sua criação é, mediante
a injustiça humana, transformada em mentira – fica obscura, fechada e
encoberta. Ao invés de adorarem o Criador – que merece louvor em todo
o tempo – adoram criaturas, criam ídolos para si e vivem conforme a
estatura de seus ídolos. Ao reduzir Deus a um produto da ação humana,
esse é transformado em ídolo e, como ídolo, é adorado. A idolatria, mais
do que uma fábrica de deuses, é uma fábrica de visibilidades que tentam
dar conta da invisibilidade do visível sem, porém, jamais chegar a tornar
visível a visibilidade do invisível. Ao invés de desvelar, o saber humano
(conhecimento-ação) oculta o que deve ser efetivamente conhecido. Ao
invés de a-letheia, torna-se letheia. Por isso, podemos dizer que a idolatria

136  A polêmica bíblica contra a idolatria, especialmente no Antigo Testamento, é frequente. Para
começar, pode-se estudar Isaías 44.

134
paralisa o ser humano – ou, usando termo paulino, escraviza, impede o
movimento livre e responsável da pessoa. Da mesma forma, a idolatria pa-
ralisa Deus, o torna impessoal, imóvel e, quando aspectos de pessoalidade
lhe são atribuídos, o revelam arbitrário, não confiável. Para Paulo, Deus é
permanente movimento amoroso e fiel em direção à sua criação e a cada
uma de suas criaturas; e
(3) Deus se revela também na pregação a respeito do Messias
Jesus, mas nessa, o que se revela de Deus é a sua justiça – o contrário de
seu desgosto. É importante o contraste estabelecido entre as origens das
distintas revelações de Deus: enquanto o desgosto é revelado “do céu” – ou
seja, embora venha de Deus, Paulo evita dizer que é uma revelação direta
de Deus, afirmando, sim, que é uma revelação originada no “espaçotempo”
de Deus; a justiça é revelada no anúncio da boa nova relativa ao Messias
Jesus – novamente se evita afirmar que a revelação vem diretamente de
Deus, aqui ela é originada na atividade humana da evangelização, uma
revelação no “espaçotempo” da humanidade. Outro elemento contrastante
neste trecho pode ser visto nos dois pares que expressam o que pode ser
conhecido a respeito de Deus mediante a revelação: (a) do céu podemos
conhecer “o eterno poder e a divindade” de Deus, enquanto (b) no anúncio
podemos conhecer o poder e a justiça de Deus. É possível perceber aqui
um paralelo semântico: o eterno poder de Deus é realizado historicamen-
te na salvação, enquanto a divindade de Deus é percebida historicamente
por meio de sua justiça – o que é reforçado pela afirmação paulina de que
a impiedade e injustiça das pessoas impedem o conhecimento de Deus.
Do ponto de vista da concepção de Deus podemos inferir que
a revelação divina se dá como que na ausência de Deus – “do céu” ou ‘no
anúncio da boa nova’ – o eterno poder e a divindade de Deus somente
podem ser conhecidos em sua forma fragilizada, esvaziada, mediada pelas
coisas criadas ou pelas pessoas criadas por Deus. Conceitualmente, po-
demos perceber aqui a afirmação de que a manifestabilidade de Deus se
dá sob o modo da vacuidade (esvaziamento). Nesse sentido, a concepção
paulina de Deus representa o polo contrário das visões costumeiras de
Deus como se manifesta em sua plenitude – seja a visão judaica oficial do
Segundo Templo, que esperava a manifestação do poder de Deus na der-

135
rota do Império, seja a visão das religiões do mundo greco-romano para
as quais é o poder da divindade que a caracteriza, seja a visão das filosofias
gregas da época, nas quais o Um é sempre o pleno, nunca o vazio.

3.1.3 Porventura é Deus somente dos judeus? (Rm 3,29-30)


“É, porventura, Deus somente dos judeus? Não, o é também
dos gentios? Sim, também dos gentios, visto que Deus é um só, o qual
justificará, com base na fidelidade, o circunciso e, por causa da fidelida-
de, o incircunciso”.
Mais uma vez encontramos uma perícope (Rm 3,21-31) em que
a concepção de Deus não é o tema central, mas no qual a novidade paulina
em relação à concepção judaica se mostra de modo explícito e contun-
dente. Note-se que todo o linguajar da perícope respira a fé judaica dos
tempos de Paulo, especialmente em seu aspecto sacrificial: libertação, san-
gue, propiciação, justiça, tolerância, impunidade. Esses elementos eram
fundamentais na constituição da identidade israelita, em contraposição
às identidades gentílicas. Os judeus eram um povo peculiar exatamente
porque receberam a justiça de Deus, foram libertados, foram perdoados
e tolerados em sua história de abandono de Deus, e, mediante o culto
sacrificial no Templo, mantiveram viva a sua relação com Deus. E tudo
isso aconteceu na história do povo judeu porque YHWH é seu único
Deus. Aprenderam, com o sofrimento, a não praticar a idolatria. De fato, a
maioria dos judeus dos tempos de Paulo poderia dizer: “YWHW é Deus
somente dos judeus”.
Paulo, tirando proveito do Shemá, tira a conclusão oposta: uma
vez que YHWH é um, então Ele é Deus de judeus e gentios. Ora, se os
gentios estão sendo libertados pelo Messias então Deus é também Deus
dos gentios, de outra forma, haveria outro Deus libertador apenas dos
gentios. O raciocínio de Paulo é interessante, embora não pareça tão con-
vincente aos olhos de um filósofo no século XXI. O que caracteriza Deus
é a sua fidelidade justa ou justiça fiel que, no Messias, liberta todas pessoas
escravizadas, tanto judeus como gentios. Se a justa fidelidade de Deus é
uma e a mesma, tanto para judeus como para gentios, então não há qual-
quer sentido em afirmar que Deus é somente dos judeus – pois se ele “é”

136
dos judeus porque os libertara ao longo de sua história, também o é dos
gentios, porque os está libertando agora no Messias.
E se um leitor judeu dos tempos de Paulo não aceitasse o argu-
mento, afirmando que Paulo estava se baseando apenas em sua própria
experiência ou visão do Messias, o apóstolo torna explícito que chegou a
essa conclusão com base no seu estudo da Lei e dos Profetas (ou seja, da
Bíblia): “mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada
pela Lei e pelos Profetas”. Dito isso, porém, o fictício oponente judeu res-
ponderia: mas se é assim, então a Lei foi anulada e Deus se tornou men-
tiroso, não cumpriu suas promessas antigas aos pais, é infiel! É aqui que a
discussão de Paulo se torna sofisticada: a lei que determina a identidade
do povo judeu dos tempos paulinos não pode ser identificada, porém, com
a Lei (Bíblia). A lei que no século I demarcava a identidade judaica era
vista, por Paulo, como a das obras da lei – ou seja, como uma interpretação
inadequada da Lei, uma interpretação que afirmava a letra da Lei, mas
não permitia o exercício da fidelidade a Deus, o autor da Lei. A lei (diría-
mos hoje, religião oficial) do Judaísmo institucionalizado estava anulando
a Lei divina, porque impedia que os próprios judeus entendessem a Lei
(cf. a metáfora do véu em 2 Coríntios) e, mais, impedia que os judeus en-
tendessem que YHWH é Deus de todas as pessoas, independentemente
de sua etnia (na linguagem da própria Lei, impedia que os judeus reco-
nhecessem a si mesmos como continuadores da vocação abraâmica de ser
bênção para todas as famílias da terra).
Uma discussão similar é encontrada em Gálatas 3, de que po-
demos apenas vislumbrar em relance: “Qual, pois, a razão de ser da Lei?
Foi adicionada por causa das transgressões, até que viesse o descendente a
quem se fez a promessa, e foi promulgada por meio de anjos, pela mão de
um mediador. Ora, o mediador não é de um, mas Deus é um” (Gl 3,19-20).
Repare nas sentenças em itálico, com a marcante frase “o mediador não é
de um” (pois ele age em nome de anjos), que antecede a alusão ao Shemá:
mas Deus é um. O peso final da argumentação em Gálatas é similar ao de
Romanos aqui: um só Deus, uma só promessa, uma só salvação para ju-
deus e gentios. A releitura paulina do monoteísmo judaico o universaliza,
recusando o particularismo exclusivista do Judaísmo oficial – o monoteís-

137
mo não precisa ser particularista, totalitário ou imperialista. Crer em um
só Deus não tem como resultado inevitável a divisão da humanidade entre
nós e os outros: há um só Deus – de toda a criação, de toda a humanidade,
sem privilégios ou classificações.
Conceitualmente falando, a universalidade de Deus em Paulo
rompe com as noções do divino ou da divindade como totalidade particular
que dominavam o mundo da época. Tanto nas religiões do Oriente, como
nas do Ocidente, deus ou os deuses (monoteísmo ou politeísmo) são simul-
taneamente totalidade e particularidade – cada deus tem seu próprio povo,
sua própria atividade, sua própria individualidade diferencial. Nas filosofias
greco-romanas, Deus também é totalidade, mas uma totalidade cósmica e
impessoal, também excludente, pois somente mediante a razão a divindade
pode ser conhecida e é exatamente a razão que distingue os gregos dos de-
mais. Deus, em Paulo, embora possa ser concebido como totalidade, é tota-
lidade genérica inclusiva. Não só o mundo é corpo de deus, a vida é presença
do próprio Deus e não há viver no mundo que não seja viver em Deus, dian-
te de Deus, para Deus. A totalidade particular exclui, a totalidade genérica
inclui. A totalidade particular é fechada, a totalidade genérica é aberta. A
totalidade particular excludente é a afirmação do Uno indivisível, singular,
cheio; é uma totalidade totalizável, redutível ao conceito e sua utilização. A
totalidade genérica includente é a afirmação do Uno divisível, plural, vazio;
é uma totalidade intotalizável, irredutível ao conceito e sua utilização.

3.1.4 O Deus que gera a vida (Rm 4,17)


“Conforme está escrito: tenho te estabelecido como pai de mui-
tas nações, na presença daquele a quem foi fiel, Deus, o que vivifica os mor-
tos e chama ‘ser’137 as coisas que não são.”
Estas afirmações pertencem a uma perícope que interpreta o pa-
pel de Abraão na história da justificação (4,1-25), a primeira parte (1-12)
focalizando no próprio Abraão, a partir da leitura de Gn 15,5 e a segunda,
na descendência de Abraão segundo a promessa (13-25), a partir da lei-

137  Uso o termo filosoficamente carregado “ser” propositalmente, para destacar a importância de
levar a sério o caráter reflexivo do pensamento paulino. O particípio grego pode ser entendido mais
gramaticalmente como ‘sendo’.

138
tura de Gn 17,5. A perícope também funciona como uma explicação da
afirmação anterior de que Deus é Deus de judeus e gentios, oferecendo à
mesma uma base bíblica e histórica: Deus escolheu Abraão anteriormente
à outorga da Lei e ao chamá-lo fez uma promessa que não se restringe
apenas aos judeus, mas abrange todas as nações. Mediante a fidelidade
se concretiza a justiça divina e não mediante a obediência à Lei, assim, o
acesso à justiça de Deus é o mesmo para gentios e judeus: a fidelidade a
Deus, da qual Abraão é um modelo histórico. Nosso foco, novamente, será
a concepção de Deus presente na perícope.
Três tópicos retratam a concepção de Deus aqui:
(a) Deus promete a Abraão que ele será “pai de muitas nações” e
essa promessa é baseada na lógica da dádiva e não na do dever (ou dívida).
Fiel à sua promessa, Deus “estabeleceu” Abraão como pai de muitas nações
– estando o verbo grego no tempo perfeito, indicando que Deus estabeleceu
Abraão no passado e, no presente, ele continua sendo o “pai de muitas na-
ções” – desta forma, a chegada da Lei não invalida a promessa, mas deveria
desempenhar uma função histórica: o povo que recebeu a Lei deveria dar
testemunho da promessa, mas acabou por fazer o contrário e estabeleceu a
lei no lugar da promessa, de modo que Abraão foi estabelecido “pai de uma
única nação”, em vez de “pai de muitas nações”. A promessa divina é univer-
sal, ou seja, genérica, e não particularizante. A sintaxe irregular da primeira
parte do verso é consequência do hábito interpretativo de citar apenas parte
de um texto para se referir ao texto todo. Paulo cita apenas o verso 5, mas o
advérbio κατέναντι é sugerido por Gn 17,1 e evoca o relacionamento criado
pela promessa – a promessa divina a Abraão não tem eficácia fora da relação
de fidelidade entre Deus e Abraão.
(b) Deus é quem vivifica os mortos (θεοῦ τοῦ ζῳοποιοῦντος τοὺς
νεκροὺς), o particípio funcionando como um adjetivo: Deus é vivificador
de mortos. À luz de 4,19, a sentença deriva do fato de que, do ponto de
vista da geração de filhos, Abraão e Sara podiam ser considerados “mor-
tos”, mas foram vivificados por Deus para gerar Isaque – aqui, então, a
fé-fidelidade de Abraão é a confiança na promessa divina, a certeza de que
Deus seria fiel, independentemente das circunstâncias absolutamente ad-
versas. Mas a sentença tem um alcance ainda maior, posto que se Abraão
e Sara foram vivificados, a sua vida era a base para o cumprimento da

139
promessa da paternidade global de Abraão. Os versos finais da perícope
mostram que o tema da vivificação se amplia no tema da ressurreição de
Jesus, em quem efetivamente Deus cumpre a sua promessa a Abraão (cp.
Rm 8,11; 1Co 15,22.36.45). A frase em si também está presente em uma
oração judaica tradicional, as Dezoito Bênçãos, que o fariseu Paulo certa-
mente recitava. Está na segunda bênção: “Bendito sejas, Senhor, que dás
vida aos mortos”, obviamente uma linguagem prenhe de alusões escritu-
rísticas (cf. Sl 71,20; Tob 13,2; SabSal 16,13; Dn 12,2; 2Mc 7,23) e tradi-
cionais (Asc. José 20,7; Testamento de Gade 4,6). O outorgar vida a quem
não pode gerar vida, o ressuscitar de quem está morto, são expressões de:
(a) a fidelidade de Deus, que cumpre a Sua promessa mesmo quando as
circunstâncias aparentam ser um obstáculo insuperável; e (b) a potência
de Deus que é gerar vida, a que podemos chamar de vidalidade138.
(c) chama/nomeia “ser” às coisas que não são (καλοῦντος τὰ μὴ
ὄντα ὡς ὄντα), mais uma vez o particípio funcionando adjetivamente –
Deus é quem cria o “ser” no “não-ser”. Aproveitando a ambiguidade do
vocábulo grego, tanto chamar como nomear, Paulo estabelece uma nova
ontologia política – ao que o mundo greco-romano chama de “não-são”
(escravos etc.), Deus outorga “ser” – Deus, extra-ser, é o que dá ser a tudo
quanto é. Talvez até mesmo uma alusão às primeiras linhas do Enuma
Elish em que o ato criador dos deuses é descrito com o verbo “chamar”.
Trata-se, então, da potência ilimitada de Deus – nem a morte, nem a tem-
poralidade, nem a inexistência do mundo podem impedir Deus de ser
quem ele é e agir como ele age. Criatividade – geração da vida – é o que
caracteriza a potência divina, criatividade capaz de transformar a existên-
cia humana no mundo em uma nova vida, um novo viver livre e criativo.
Esta afirmação também é tipicamente judaica, conforme descre-
ve Dunn:

a ideia do ato criador de Deus como um ‘chamado’ eficaz (Is 41,4;


48,13; SabSal 11,25; Filo Spec. Leg. 4,187; 2Ap. Bar 21,4; Asc. José
8,9) e a crença de que Deus criou ‘do nada’, creatio ex nihilo (2Mc 7,28;
Asc. José 12,2; 2Ap. Bar 2,14; 48,8; 2En 24,2; Ap. Const. 8.12.7) – um

138  Um neologismo proposital, para diferenciar da já desgastada palavra vitalidade que, na língua
portuguesa, não se usa como definição da qualidade da própria vida, mas, sim, daquilo que é “vital”,
ou seja, relativo à vida.

140
aspecto particular da teologia de Filo, para quem Deus é τὸ ὄν, pelo
que faz do não-ser ser (Opif. 81; Leg. All. 3,10; Migr. 183; Heres 36;
Mut. 46; Som. 1,76; Mos. 2,100.267; note-se especialmente Spec. Leg.
4.187 – τὰ μὴ ὄντα ἐκάλεσεν εἰς τὸ εἶναι). Assim como em relação à
frase precedente, Paulo está obviamente usando uma linguagem bem
estabelecida na reflexão teológica judaica, particularmente em círculos
judeus helenistas. Digno de nota é o paralelo à formulação completa
na Asc. José 8,9 [... θεός ὁ ζῳοποιήσας τὰ πάντα καὶ καλέσας... ἀπὸ
τοῦ θανάτου εἰς τὴν ζωήν].139

A formulação em 2 Baruque também é muito similar à de Paulo:


“Tu, que criaste a terra, quem fixou o firmamento por sua palavra e esten-
deu a extensão do céu pelo espírito, que, no princípio do mundo, chamou
àquilo que ainda não existia e eles te obedeceram” (21,4). A terminologia
aqui também evoca 1Co 1,28 em que Paulo afirma a radical diferença en-
tre a sabedoria divina e a humana, essa caracterizada pela negação do ser e
aquela pela atitude contrária – a da criação do ser, da vida, do existir e do
valor da pessoa independentemente de sua posição social.
Cabe, aqui, a definição desconstrutiva do teísmo apresentada
por Jean-Luc Nancy, não como uma interpretação adequada do texto
paulino, mas como uma voz que clama, ainda que não reconheça o Deus
a quem clama:

O inominável não é um real que supera toda a nomeação, ele é o que


todos os nomes nomeiam sem nunca significá-lo: ele é a própria razão
da linguagem, a razão que sempre o devolve novamente ao chamado
que o abre e que o forma. ‘Meu Deus, absolva-me de Deus!’ – é um
chamado para o que não se deixa nomear nem chamas, mas que, sendo
dirigido dessa maneira, já se apresenta e responde: não, não se trata
absolutamente de Deus, e tua existência surge em um impulso que a
atira de repente tanto na tua distinção absoluta (sim, separada de toda
e mais radicalmente ‘tua’ que não saberá nem concebê-lo nem experi-
mentá-lo), quanto para além do ser e da diferença. Um dia, talvez, não
diremos mais ‘meu Deus!’. Mas nunca iremos parar de nos exclamar na
suspensão de nosso pensamento e de nosso discurso, recebendo a pró-
pria exclamação como nossa mais própria e íntima verdade. E também

139  DUNN, James D. G. D. Romans 1-8. Grand Rapids: Zondervan, 2018, p. 443.

141
nossa mais pobre verdade, desprovida de todo sentido e exposta, assim,
a toda a extensão de sua fenda.140

YHWH, nome que não pode ser pronunciado, nome inomi-


nável, é o “nome acima de todo o nome” que o Filho esvaziado recebe
em sua exaltação como o Deus-crucificado que liberta a criação de sua
escravidão aos poderes da morte. Aquele “que chama ser o não-ser”, está
além do ser e do existir, além da diferença, além da identidade, é viver
puro e simples, viver em sua imanência absoluta, meramente viver, sem
adjetivações, sem qualificações. Viver que é doar-se, viver que é vivificar,
viver que é esvaziar-se.
Vemos, aqui, o movimento criador divino – a palavra que sai de
Deus e se dirige ao nada para transformar o nada em ser, em vida, em
multiplicidade de seres e fazeres. O movimento da palavra do ressuscita-
do, que ressuscita os mortos e transmuta a ressurreição em um segundo
nascimento, dessa vez em outro espaçotempo – o da aproximação a Deus
que implode as fronteiras espaçotemporais em uma transimanência que
somente no movimento da fidelidade é possível captar. Muito distante
do ser imóvel e imutável, ontos em Paulo é puro movimento, é fusão de
potência-ato no infinito e eterno movimento da divindade que faz do que
não-é aquilo-que-é. Movimento da fidelidade amorosa do Deus que nos
insere em seu perpétuo movimento de fazer viver mediante a ressurreição
dentre os mortos. Deus não é pura atualidade (energia), mas pura poten-
cialidade (dynamis), potência da vida e não da morte – a dynamis da Lei e
a do Império causam morte, mas a divina gera vida. Deus é, também, para
Paulo, pura vitalidade, uma potencialidade caracterizada pela generosida-
de fiel, pela permanente graça – da criação à nova criação – doadora de
vida na relação fiel com as pessoas destinatárias de sua promessa.

3.1.5 Dele, por meio dele e para ele (Rm 11,33-36)

Ó profundidade da riqueza e da sabedoria e do conhecimento de


Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os
seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem

140  NANCY, Jean-Luc. Meu Deus! In: Arquivida: do Senciente e do Sentido. São Paulo:
Iluminuras, 2015, p. 11. (Obs.: a publicação é original, fruto de palestras de Nancy no Brasil.)

142
foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha
a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as
coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém! (Rm 11,33-36).

A forma da perícope sugere que a mesma seja litúrgica, mais es-


pecificamente hínica: iniciada com uma interjeição de espanto ou admira-
ção; dividida em três estrofes, cada uma delas com uma forma triádica (v.
33: três características de Deus: riqueza, sabedoria, conhecimento; versos
34 e 35: três perguntas retóricas; verso 36, três preposições), juntamente
ao final doxológico. Os ecos e alusões à Escritura judaica são evidentes: a
alusão a Is 55,8 no verso 33; a citação de Is 40,13 no verso 34 e a citação
de Jó 41,11 no verso 35, bem como as alusões à sabedoria e conhecimento,
presentes, também, por exemplo em 2 Apoc. Bar. 14,8-9. Um texto bas-
tante lido e recitado, mas, aparentemente, menos conhecido e valorizado
do que deveria ser.
Vejamos os aspectos da concepção de Deus presentes nestes versos:
(a) Riqueza, e sabedoria, e conhecimento. Paulo evoca a profun-
didade de três aspectos de Deus, todos os quais evocam a discussão teo-
lógica complexa dos capítulos 9-11. Se parece que o plano de Deus para
a criação é complexo demais, isso não nos deveria assustar, porque ela
reflete a profundidade do saber divino, que não pode ser alcançada por
nada nem ninguém. Riqueza evoca Rm 11,12 em que se afirma que a ri-
queza do mundo e dos gentios é causada pela miséria de Israel – qual seria
então o resultado se a riqueza de Israel afetasse todo o mundo? Podemos
vislumbrar aqui uma comparação entre o menor e o maior. A riqueza de
Deus, infinitamente maior do que a de Israel, é capaz de levar a bom ter-
mo o plano divino para sua criação. Somente em Ef 3,8 é que Paulo usa
novamente o termo riqueza referindo-se ao agir de Deus – naquele texto,
a salvação no Messias. Sabedoria e conhecimento são um par de termos que,
derivados do mundo dos sábios israelitas, se aplicam a Deus para distin-
gui-lo de todos os demais deuses (ver, por exemplo, o Sl 82 no qual os
deuses são julgados por não terem conhecimento adequado). Exatamente
porque Deus é sábio, somente ele pode reger toda a criação. Os tesouros
da sabedoria e do conhecimento de Deus, em Colossenses, estão presentes
e manifestados no Messias, em quem temos acesso aos mesmos;

143
(b) Como consequência dessa profundidade, o verso 33 termina
com duas afirmações que aludem a Is 55,8: “Quão insondáveis são os seus
juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos”. Não se trata, é claro, de
uma negação da possibilidade de conhecer o modo de Deus agir, mas de
uma advertência ao sábio: há um limite para o conhecimento humano
de Deus. Se queremos efetivamente conhecer a Deus, precisamos estar
dispostos a transcender o conhecimento baseado exclusivamente nas re-
alidades deste mundo, e nos colocarmos na mente do Messias, a fim de
conhecer como Ele conheceu (cf. 2Co 5,14ss). “Conhecer a Deus significa
estar diante dele em temor e estar firme na presença daquele que habita
em luz inacessível”.141 A perícope, assim, retorna ao início da discussão no
capítulo 9, que enfatiza a impossibilidade humana de se igualar a Deus e
discutir com Ele os rumos da história de suas ações;
(c) Os versos 34-35 trazem duas citações bíblicas, como vimos:
“Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselhei-
ro? Ou quem primeiro deu a Ele para que lhe venha a ser restituído?”. A
tese do livro de Jó está no pano de fundo dessas questões: não podemos
conhecer Deus em sua totalidade, apenas em sua revelação. São perguntas
retóricas, cuja resposta é ninguém. Cabe destacar, porém, que na tradição
sapiencial judaica, a sabedoria, que acompanhava Deus na criação, possui
tal conhecimento. Talvez haja, aqui, uma alusão velada a Jesus como a sa-
bedoria de Deus – o que ninguém pode conhecer a respeito de Deus, está
revelado na pessoa do Messias, misteriosamente. Em ambos os contextos
literários dessas citações, o tema é a singularidade de Deus Criador, a
incapacidade humana de conhecê-lo plenamente, e a completa distinção
entre Deus e os demais deuses (ídolos) ou poderes terrenos. Como Cria-
dor e Redentor, a majestade de Deus é inatingível pelo ser humano, e a
única atitude adequada diante dela é a adoração, ou grato louvor àquele
que faz o melhor para toda a sua criação;
(d) “Porque dele e por meio dele, e para ele são todas as coisas”
(verso 36)142. Deus é a origem, a providência e a finalidade de todas as coi-

141  BARTH, Karl. The Epistle to the Romans. Oxford: Oxford University Press, 1974, p. 423.
142  No século II d.C. encontramos afirmação semelhante em Marco Aurélio: “de ti são todas as
coisas, em ti estão todas as coisas, para ti são todas as coisas” (Meditações 4.23).

144
sas que existem. Aqui temos outra descrição da criatividade divina: tudo o
que existe, se dá apenas porque Deus dá vida e existência e conduz todas
as coisas em sua própria direção. Essa linguagem não é exclusiva de Paulo,
é encontrada também em Filo e no pensamento filosófico, especialmente
no estoicismo. Robert Jewett indica as principais passagens afins:

embora não compartilhando da doutrina da criação, há uma formula-


ção similar com as preposições ἐκ (‘de’) e διά (‘por meio de’, ‘através’)
no texto estoico Pseudo-Aristóteles Mund. 6, ὃτι ἐκ θεοῦ πάντα καὶ
διὰ θεοῦ συνέστηκε (‘por que tudo vem de Deus e é sustentado por
Deus’). Asclepius 34 contém uma série similar de frases preposiciona-
das em latim: omnia enim ab et in ipso et per ipsum (‘pois tudo vem dele,
e em si mesmo e através de si mesmo’). [...] Que o universo vá ‘para ele’,
como afirma a terceira frase no hino romano, implica em um conceito
histórico de criação que começa e termina com um Deus intencional.
Filo faz afirmação semelhante em Spec 1.208 ἓν τὰ πάντα ἣ ὅτι ἐξ
ἑνός τε καὶ εἰς ἕν [...] (‘todas as coisas são um, ou que elas vêm de um
e retornam para um [...]’). Há também textos estoicos que incluem as
fórmulas ‘de’ e ‘para’ Deus, embora falte a fórmula ‘por meio de’: Marco
Aurélio Τὰ εἰς ἑαυτὸν 4,23 escreve: ἐκ σου πάντα, ἐν σοὶ πάντα, εἰς
σὲ πάντα (‘todas as coisas [são] dele; todas as coisas [estão] nele; todas
as coisas [são] para ti’) e Sêneca Ep. 65.8 tem o equivalente em latim:
Quinque ergo causae sunt, ut Plato dicit: id ex quo, id a quo, id in quo, id ad
quo, id propter quod (‘portanto, há cinco causas como diz Platão: ‘aquela
de que algo se origina, aquela de que algo provem, aquele que está em,
aquele para a qual, e a que está perto de’). No contexto paulino, esta
terceira frase reitera afirmações anteriores da salvação para judeus e
gentios indistintamente (3,22; 11,23-24.32).143;

(e) “A ele, pois, a glória eternamente. Amém!”.144 Somente esse


Deus é digno de toda glória – de ser glorificado por toda a criação, durante
todo o tempo. Glória é o que os poderosos do mundo desejam receber de

143  JEWETT, Robert. Romans: A Commentary on the Book of Romans. Augsburg: Fortress
Press, 2007, in loco (edição digital).
144  Outras doxologias nas cartas de Paulo: Rm 16,27; Gl 1,5; Ef 3,21; Fp 4,20; 1Tm 1,17; 2Tm 4,18.

145
seus súditos. Glória é o que os ídolos (deste ou de outro mundo) esperam
receber de seus seguidores. Glória é o que as pessoas, na cultura de honra
do Mediterrâneo, esperam receber das demais. Essa expectativa, porém,
diante da reivindicação de Deus, não passa de vanglória – um louvor inútil
e sem valor. Somente Deus merece todo o louvor e toda a glória – a honra
não é negada por Paulo, mas sua fonte e orientação se encontra em Deus e
não na hierarquia social. Consequentemente, a glorificação de Deus tam-
bém tem a ver com o confronto contra o poder imperial – a Deus ou a
César, ou “a quem honra, honra”. Há somente um que merece receber
glória – e esse não é o imperador romano!
Enfim, podemos notar neste texto dois elementos já presentes
nos demais: (a) uma reafirmação da epistemologia peculiar de Paulo –
somente é possível conhecer a Deus mediante a relação com Ele; e (b) a
reafirmação da ontologia relacional paulina. É possível que haja aqui uma
sutil polêmica contra a concepção estoica de Deus e do conhecimento de
Deus, na qual a diferenciação entre Deus e mundo é diluída a ponto de se
poder falar de Deus como a alma ou a mente do mundo – mas em forma
impessoal, como a ordenação racional do cosmos.

3.1.6 Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor (Ef 1,3-14)

Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor, o Messias Jesus, que nos


abençoou com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais no
Messias, assim como nos escolheu nele, antes da fundação do mundo,
para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor145 nos pre-
destinando para ele, para a adoção de filhos, por meio do Messias Jesus,
segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua
graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, no qual temos
a libertação, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a riqueza
da sua graça, que Deus derramou abundantemente sobre nós, em toda
a sabedoria e prudência146, desvendando-nos o mistério da sua vontade,
segundo o seu beneplácito que propusera no Messias, de fazer convergir

145  No grego, a expressão “em amor” pode ser unida à sentença anterior. Não discutirei esta
questão, por falta de espaço e tempo.
146  Há grande discussão se esta expressão deve ficar anexa à bênção anterior ou à seguinte.
Podemos ficar com a ambiguidade e ligar às duas bênçãos.

146
nele147, na economia148 da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as
do céu como as da terra; no qual fomos também feitos herança, predesti-
nados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o
conselho da sua vontade, a fim de sermos para louvor da sua glória, nós,
os que de antemão esperamos no Messias; no qual também vós, depois
que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, no qual
tendo também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; o qual
é o penhor da nossa herança, até a libertação da sua propriedade149,
para louvor da sua glória (Ef 1,3-14).

O texto acima citado é belíssimo, profundo, e impossível de ser dis-


cutido com profundidade em umas poucas páginas. Essa eulógia apresenta
um conjunto de ações de Deus que tornam manifesto, em seu movimento
para o outro, quem ele é em sua pluralidade paterno, filial, pneumática. O
parágrafo é composto por um único período de orações subordinadas, no
conjunto, à declaração inicial “Bendito...”. Há, ainda, algumas orações su-
bordinadas a outras orações subordinadas. Quanto à forma,

a literatura de Qumran pode prover o paralelo mais próximo ao estilo


desta bênção. Não somente as suas orações contêm frequentemente
longas sentenças (KUHN, 1968, p. 116-17; GNILKA, 1971, p. 56-
57), algumas vezes pontuadas com bênçãos (e.g. 1QS 9.15; 1QHa
13.20; 18.14; 19.27-30), mas também em 4Q434 encontramos uma
oração de louvor que, embora fragmentária, tem o mesmo padrão de
amplitude de Ef 1,3-14. Ela também começa com uma declaração de
bênção (‘Bendize minha alma, ao Senhor, por todas as suas maravilhas,
para sempre. E bendito seja Seu nome [...]’), e continua com uma lon-
ga e densa descrição do porque Deus é bendito.150

(1) Pai de nosso Senhor, o Messias Jesus: a afirmação de que Deus


é Pai de um ser humano não subentende a divindade desse ser humano,

147  A expressão “nele”, no final da sentença, faz mais sentido aqui, como recapitulação, do que,
como em algumas traduções (Almeida, por exemplo), pertencendo à sentença seguinte: “nele, digo,
no qual”.
148  Transliteração e tradução do grego ’oikonomia. Sobre o sentido, ver abaixo. Na filosofia
contemporânea, Giorgio Agamben tem se dedicado, nos últimos volumes de Homo Sacer à reflexão
sobre a “economia” teológico-política.
149  Alusão a Êx 19,5.
150  THIELMAN, Frank. Ephesians. Baker Exegetical Commentary on the New Testament.
Grand Rapids: Baker, 2010 p. 39.

147
aqui, porém, o uso do termo Senhor para se referir a Jesus decide a questão
em favor do reconhecimento da divindade de Jesus – tema que, à época da
escrita dessa carta, já estava assentado, pelo menos nos textos paulinos;
(2) Deus é abençoador (presente no verso 3, o verbo é um aoristo
particípio, indicando identidade ou “natureza”)151: não limita a quantidade
nem a qualidade de suas bênçãos (todo o tipo de bênçãos espirituais...),
a não ser pelo seu próprio caráter e modo de agir. Que as bênçãos sejam
espirituais não significa que não tenham aspectos materiais ou que a vi-
são aqui seja dualista. “Espirituais” está em consonância com “celestiais”
e indica a vitória apocalíptica de Deus, no Messias, para renovar toda a
sua criação e alcançar, assim, o seu propósito. Deus abençoa “no Messias”,
ou seja, na e mediante a ação do Messias, bênçãos a serem recebidas na
comunhão com o Messias e mediante a fidelidade ao Messias. Abençoar é
o modo fundamental do movimento divino – sempre em favor de, sempre
fazendo bem a: expressa sua amorosa fidelidade para com sua criação e,
aqui, para com o ser humano.
(3) Escolheu - predestinando (versos 4 e 6): estes termos são fun-
damentais para a identidade judaica dos tempos paulinos, e podemos en-
tendê-los como uma hendíade: antes da criação, Deus nos escolheu, predes-
tinando – o objeto da ação eletiva de Deus são “os fiéis ao Messias”. Paulo
está agradecendo a Deus pelo que Ele fez por “nós”, e não estabelecendo a
identidade de “todos” os eleitos e/ou reprovados – fato da eleição/predesti-
nação se dar no Filho revela seu caráter amoroso e o movimento abençoa-
dor de Deus que se identifica com toda a humanidade escravizada. Não se
trata de “predestinar uns para a salvação”, mas de colocar na “eternidade” o
mover salvífico de Deus. Podemos arriscar conceitualmente aqui e afirmar
que morrer faz parte do ser divino: no caso de Deus a morte não é fim,
nem derrota, mas a expressão suprema de seu amor. Que Deus “morra” é
afirmação absolutamente inusitada e Paulo não abre mão da mesma. Que a
“morte” de Deus (no Filho) faça parte da eternidade de Deus é o escândalo

151  O local das bênçãos são as regiões celestiais – a expressão ’en tois epouraniois só é usada por
Paulo em Efésios: aqui e em 1,20; 2,6; 3,10; 6,12. A expressão ’en tois ouranois é usada em 2Co
5,1; Ef 1,10; 3,15; 6,9; Fp 3,20; e Cl 1,5.16.20. A palavra ’epouranios é usada cinco vezes, em casos
diferentes, em 1Co 15,40-49. A terminologia é apocalíptica e nos textos paulinos normalmente se
refere ao lugar em que se dá o conflito cósmico do Messias contra os poderes.

148
supremo e o paradoxo irresolvível: o deus eterno e imortal morre “na” eter-
nidade, vivendo eternamente.
A predestinação nos faz “filhos adotivos” de Deus – participantes
integralmente do povo de Deus (cf. a adoção como meio de acesso à cida-
dania no Império Romano). Nós fomos escolhidos e predestinados para,
como membros da família divina: (a) sermos santos e irrepreensíveis – as
qualidades do povo sacerdotal de Deus, (b) para si mesmo – para sermos sua
propriedade peculiar: ambas expressões aludem a Êx 19,5-6 e Dt 7,6-8, tex-
tos cruciais para a identidade judaica. Ao localizar a eleição-predestinação
‘antes da criação’, Paulo subordina a eleição de Israel à eleição cósmico-apo-
calíptica de Deus, no Messias e, ao mesmo tempo, vincula a eleição-predes-
tinação da “igreja” à eleição de Israel – também sob o modo da fidelidade de
Deus que cumpre suas promessas e não retira os seus dons. A unidade do
povo de Deus é tema crucial na carta aos Efésios, especialmente em 2,11-22
(texto que estudamos em outra parte deste livro).
Semelhantemente, nos escolheu para (c) “louvor da glória de sua
graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado” – se juntarmos a es-
tas expressões a frase “segundo o beneplácito de sua vontade”, temos uma
caracterização plena da lógica da dádiva em contraposição à lógica da dí-
vida (e do dever, da honra etc.). Não há pagamento possível, ou necessário,
para a ação abençoadora de Deus. A dádiva divina cria uma nova realidade
e a única expectativa (retribuição, se usarmos a linguagem econômica) é a
de que as pessoas que recebem as bênçãos vivam nelas e por elas.
(4) Deus é libertador (versos 7 e 8) “no qual temos a libertação152,
pelo seu sangue, a remissão dos pecados153, segundo a riqueza da sua graça,
que Deus derramou abundantemente sobre nós em toda a sabedoria e
prudência”. Na plenitude dos tempos, a libertação está no Messias que
manifestou, em sua morte como condenado e executado na cruz, a graça
misericordiosa de Deus que torna inoperante a escravidão vigente sobre
a humanidade. Em contraste com o processo romano de adoção, somos
adotados pelo Pai na e mediante a morte do Messias. Não é o devedor

152  A palavra só é usada dez vezes em o NT, três das quais aqui em Efésios. Refere-se à libertação
de escravos, normalmente mediante um pagamento.
153  A conjunção de perdão (ἄφεσιν) com transgressões só é usada por Paulo aqui e em Cl 1,14. A
libertação da escravidão é acompanhada do cancelamento da dívida, do fim de qualquer obrigação
previamente existente.

149
que paga o preço de sua liberdade, mas o próprio Deus paga esse preço,
na morte do Messias na cruz.154 Evidentemente, a linguagem aqui evoca
a linguagem da libertação de Israel, no êxodo e em situações similares.
Também essa bênção deve ser interpretada em termos apocalípticos, des-
tacando a vitória divina no Messias, inaugurando a nova criação. Nessa
conexão, destacamos, ainda, que a graça é revelada com toda sabedoria de
Deus – desconhecida dos humanos que, escravos da velha criação, detêm
a verdade mediante a injustiça (cf. Rm 1,18ss).
(5) Deus é revelador (versos 9 e 10). Permanece em uso a lin-
guagem apocalíptica (especialmente “mistério” e “plenitude dos tempos”).
O Senhor que revelava seu segredo apenas aos profetas (Am 3,7), agora
revela seu plano a todos os que são fiéis ao Messias (cf. Cl 1,24ss). O mis-
tério revelado é compreendido “segundo o seu beneplácito que propusera
no Messias”. A lógica da dádiva retorna aqui, em certo sentido, implodin-
do a linguagem apocalíptica da guerra. Em que consiste o mistério? Na
convergência155 de toda a criação sob o senhorio universal do Messias. O
que parece impossível diante do domínio praticamente indestrutível do
Império Romano será realizado mediante a dádiva. O que a conquista
não pode fazer, pois um novo império apenas provê uma troca de domi-
nadores, acontecerá mediante a autoentrega do Messias como expressão
da vontade benéfica de Deus. Aqui podemos notar uma alusão à figura do
benefactor no mundo greco-romano. O benefactor divino é radicalmente
diferente dos humanos, pois sua ação não se insere na lógica econômica
da dívida, nem na lógica militar da conquista pelos romanos. A ’oikono-
mia de Deus, no Messias, segue uma lógica peculiar, própria – em vez de
dispersar os “bens” (compare com a visão do intercâmbio comercial na
descrição da paz romana no capítulo inicial), Deus reunirá todas as coisas
no Messias. Toda a criação, fragmentada e dominada pelo pecado, voltará
a ser uma – então “Deus será tudo em tudo”. O senhorio cósmico de Deus,
no Messias, já se manifesta historicamente na unidade do povo de Deus
sob o senhorio do Messias (cf. Ef caps. 2-3). A comunidade messiânica,
em sua fraqueza, pode tornar inoperante o poder invencível do Império.

154  A linguagem é metafórica e não deveríamos entrar em discussões sobre a quem o resgate é
pago etc.
155  O verbo usado aqui só é usado também em Rm 13,9 em seu sentido mais comum, do
ambiente da retórica, de “resumo” (dos itens da lei).

150
(6) Deus fiel às suas promessas (versos 11 e 12). Paulo parece in-
troduzir uma distinção de destinatários156 da ação de Deus: o pronome nós
(que antes se referia a todos os seguidores do Messias) passa a se referir
aos judeus (verso 12 “nós, os que de antemão esperamos no Messias”) e o
pronome vós (13) aos gentios e, no verso 14, volta a se referir a todos os se-
guidores do Messias157. Historicamente, primeiro os judeus (cf. Rm 1,16s)
foram eleitos por Deus para abençoar as nações e, por isso, já possuíam a
expectativa da vinda do Messias. O verbo kleroo é raro na Escritura (so-
mente aqui, em 1Sm 14,41 e em Is 17,11 duas vezes), mas seu sentido é
sinônimo dos verbos mais comumente usados kleronomeo e katakleronomeo.
É uma clara alusão ao tema veterotestamentário da terra como herança de
Deus para Israel. Ressignificando o tema no contexto apocalíptico, Paulo
afirma que Deus permanece fiel às suas promessas, mas o seu dom a Israel
é muito maior do que seu povo anteriormente pensava. A dádiva a Israel é
inserida na vitória cósmico-apocalíptica do Messias, de modo que o Israel
que agora é “vergonha” para Deus, será louvor de sua graça (cf. a lógica da
honra e a ideia bíblica de que o exílio de seu povo envergonha Deus, em
Ezequiel, por exemplo. Uma discussão mais ampla sobre o lugar de Israel
na economia de Deus, no Messias, se encontra em Rm 9-11).
(7) no qual também

vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa sal-


vação, no qual tendo também crido, fostes selados com o Santo Espírito da
promessa; o qual é o penhor da nossa herança, para a libertação da sua
propriedade, para louvor da sua glória (Ef 1,3-14).

O raciocínio aqui, no tocante à recepção do Espírito, é seme-


lhante ao de Gl 3,1ss – mediante o ouvir a pregação do Evangelho e
sua aceitação em fé-fidelidade, a pessoa recebe o Espírito. No tocante
à dimensão escatológico-apocalítica, é similar a Rm 8,15.23 (usando a
metáfora das primícias e não do penhor). A recepção do Espírito aqui, di-

156  Vários autores consideram esta interpretação exagerada, a troca de nós por vós seria apenas
uma questão de estilo, ou uma referência a Paulo e seus companheiros de missão (nós), e aos
cristãos em Éfeso (vós).
157  Vários comentaristas, porém, preferem ver aqui apenas uma questão de estilo. Por exemplo,
Frank Thielman, já citado acima. De uma forma ou de outra, a alusão à herança justifica a
interpretação dada ao trecho.

151
ferentemente de 1Co12,12ss, não está ligada à formação da comunidade,
mas à temporalidade escatológico-apocalíptica. O Espírito é a garantia
divina de que a promessa a Abraão seria cumprida neles. O Espírito é o
penhor, o sinal e garantia divinos de que a promessa da herança (não mais
a terra de Israel, mas toda a terra, a nova criação), seria cumprida. Ele
é o símbolo concreto (na experiência messiânica) da libertação do povo
peculiar de Deus – agora composto de judeus e gentios indistintamente
(cp. Êx 19,6s; 1Pd 2,9-10). A presença permanente do Espírito “na terra”
é a concretização decisiva do movimento salvífico de Deus: Ela doa a si
mesmo e é a nova potencialidade vital de suas filhas e filhos.
O final é apropriado: para o louvor da sua glória. Em 1,6 a expressão
é “para louvor da glória de sua graça” (referindo-se a ação do Pai), no verso
12 (referindo-se à ação do Filho) e aqui (referindo-se à ação do Espírito),
com a forma abreviada “louvor da sua glória”. O monoteísmo anômalo de
Paulo reaparece nesta eulógia, apresentando Deus como a fonte de toda
bênção e de toda a vida – em radical contraposição aos poderes que escra-
vizam o ser humano, fonte de maldição e morte. Ser-em-relação, fiel, aben-
çoador, automanifestador, móvel – características de Deus que se acumulam
na eulógia e vinculam Pai, Filho e Espírito no mesmo ser-em-movimento
eterno favorável à sua criação – eterno movimento da dádiva divina que, na
pluralidade de seus dons, é acima de tudo autodoação.

3.1.7 Há um só Deus e pai de todos (Ef 4,1-6)

Rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo


digno da vocação na qual fostes chamados. Com toda a humildade
e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em
amor, procurando guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz.
Um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em
uma só esperança da vossa vocação. Um só Senhor, uma só fé, um só
batismo, um só Deus e pai de todos, o qual está acima de todos, e age
através de todos, e está em todos.

Em Efésios 4,1-6, Paulo exorta a comunidade dos efésios à unidade,


e seu fundamento teológico é a unidade de Deus. No verso 6, o clímax da

152
perícope, encontramos uma sentença que ecoa 1Co 8,6 e o Shemá judaico:
“um só Deus e pai de todos, o qual está acima de todos, e age através de todos,
e está em todos” (εἷς θεὸς καὶ πατὴρ πάντων, ὁ ἐπὶ πάντων καὶ διὰ πάντων
καὶ ἐν πᾶσιν). Essa afirmação é uma repetição ampliada de Ef 3,14b-15: “Por
esta causa, me ponho de joelhos diante do Pai, de quem toma o nome toda
linhagem, tanto no céu como sobre a terra” – um texto que afirma ser Deus
o criador de todas as criaturas vivas, nos mundos celestial e terreno. Esses
dois versos refletem claramente a concepção judaica de Deus – tanto na sua
unidade, quanto na sua função de Criador de todas as coisas. Paulo reafirma a
singularidade de Deus, que não só é o Deus de Israel, mas também de todas
as nações e povos (tema também presente na escritura judaica). Do ponto de
vista da visão judaica, porém, a unidade de Deus é apresentada por Paulo de
modo anômalo – uma unidade pessoal plural, não singular.
Vejamos os principais aspectos da concepção de Deus na perícope:
(a) o objetivo da perícope não é apologético, mas exortativo. A
questão fundamental é a unidade da ekklesia do Messias Jesus, não a uni-
dade de Deus: A vida cristã é para ser vivida em conformidade com a
sua chamada, a sua vocação – em comunhão e unidade, pois há um só
Deus, um só Senhor, um só Espírito, um só corpo, uma só fé, um só batis-
mo, uma só esperança. A “vocação/chamada” é usada 3 vezes em Efésios:
1,18; 4,1.4. Em 1,18 e 4,4 a vocação está ligada à esperança, em 4,1 à
“espiritualidade”. A vocação messiânica é a vida em liberdade, mas essa
vida ainda não é vivida plenamente sob o domínio romano. A unidade da
comunidade representa, então, o modo mediante o qual os seguidores do
Messias podem enfrentar e resistir ao Império, tornando inoperante a sua
escravização. O repetido uso do numeral um é evidência suficiente para
destacar o quão importante era, para Paulo, a unidade das comunidades de
seguidores do Messias – essa unidade refletia a própria unidade de Deus
e, como vimos na exegese de suas cartas, reflete a missão do Messias de
reunir todas as pessoas em um só povo de Deus;
(b) a unidade de Deus é anômala: Deus é Pai, Senhor, Espírito
– obviamente não se refere a três deuses, mas a uma unidade complexa
no modo de ser da divindade. Unidade essa que as Igrejas Cristãs, ao
longo da história, têm se esforçado em demonstrar e explicar mediante

153
a doutrina da Trindade. Não nos cabe discutir os complexos caminhos e
meandros dessa doutrina. Basta apontar uns poucos itens exegéticos: (a)
nesse texto não temos uma doutrina da Trindade, mas uma descrição do
único Deus com três termos distintos; (b) não podemos interpretar este
texto (e outros similares) a partir de uma visão estrita de monoteísmo,
pois ele revela uma forma anômala de monoteísmo: Deus é um, mas sua
unidade é plural, e não singular158; (c) o foco da descrição de Deus não
é doutrinário, mas prático: assim como Deus é um, a comunidade cristã
deve ser uma. Do ponto de vista conceitual, esta afirmação pertence ao
campo da indiscernibilidade;
(c) a sentença fundamental, repito, é a do verso 6: “εἷς θεὸς καὶ
πατὴρ πάντων, ὁ ἐπὶ πάντων καὶ διὰ πάντων καὶ ἐν πᾶσιν”. O Deus úni-
co é pai de todos – ou seja, o criador e doador de vida a todas as criaturas
vivas neste e em qualquer mundo existente. “Todos” é gramaticalmente
ambíguo no grego – pode ser neutro ou masculino. Se neutro, sua refe-
rência seria a todas as coisas. Se masculino, o seu sentido será pessoal.
Nesse caso, pode se referir apenas aos membros das comunidades mes-
siânicas, ou a todos os seres vivos criados. Não há como eliminar essa
ambiguidade, mas à luz de Ef 3,14-15 e Rm 11,33-36, o peso recai sobre
a totalidade dos seres vivos criados por Deus159. Ele está acima de todos
– implícitos, aqui, são os poderes e divindades (ídolos): não é necessário
buscar salvação, socorro ou vida em qualquer outro. “Age” por meio de
todos – todos os seres criados, inclusive, paradoxalmente, os poderes e
divindades são, em última instância, servos e instrumentos do Deus uno.
“Está” em todos, ou seja, está presente na vida de todos os seres de sua
criação – sem sua presença não há vida!

158  Para uma discussão mais ampla, ver MOLTMANN, Jürgen. A Trindade e o Reino de Deus.
Uma contribuição para a teologia. Petrópolis: Vozes, 2000.
159  “Conforme intérpretes, pelo menos desde Jerônimo (HEINE, 2002, p. 170), tem notado
algumas vezes, esta compreensão da frase é consistente com o uso de expressões similares, no
estoicismo, sobre a presença de Deus em todos os lugares (e.g., Marcus Aurelius, Med. 7.9; cf.
4.23). A expressão também se assemelha a afirmações no Judaísmo helenístico de que o Deus ‘uno’
é o Criador de ‘tudo’ (e.g. Josefo, Ag. Ap. 2.193), ou que Deus é ‘o único Pai de toda’ a criação (e.g.
Filo, Spec. Laws 1.14; cf. Heir 62; cf. GNILKA, 1971, p. 204, n. 2; DIBELIUS, 1956, p. 24-25).
Tanto nos textos estoicos como nos judaicos, o termo ‘tudo’ refere-se a tudo o que existe, e este
contexto religioso mais amplo torna provável que Paulo, ao usar linguagem similar, entenda ‘tudo’
da mesma maneira”( THIELMAN, Frank. Ephesians: Baker Exegetical Commentary on the New
Testament. Grand Rapids: Baker, 2010, p. 260).

154
A primeira implicação contextual clara dessa afirmação da uni-
dade de Deus é: nenhum poder, terreno ou celestial, pode se comparar ao
amor paterno de Deus, o único Pai. Diante de um auditório que recebia
constantemente a mensagem de que só o “divino” imperador pode salvar
e trazer paz, a confissão de fé paulina é subversiva! E o é também diante
de todo e qualquer poder “divino”, ou não-divino, que intente controlar o
ser humano e a sua vida. Plena liberdade só existe em estarmos sob e em
Deus, colocando-nos à sua disposição para que aja através de nós.
Em síntese: para Paulo a questão de Deus não era meramente
teórica. Crer que Deus significa estar disposto a viver com exclusiva fi-
delidade a esse Deus único. No Messias Jesus isso se tornou possível, se-
gundo Paulo, para toda a humanidade, sem distinções terrenas – todas
abolidas pela universalidade da graça de Deus, manifesta na vida, morte e
ressurreição do Messias Jesus. Há um só Deus, Pai de toda a sua criação,
Libertador de toda a sua Criação. Há um só Messias e um só Espírito.
Assim, consequentemente, um só povo de Deus: seguidoras e seguidores
do Messias, sem distinção de cor, raça, credo, nacionalidade etc. Mais uma
vez, encontramos uma reflexão sobre Deus sustentada pela categoria da
totalidade genérica.

3.1.8 A majestade inominável de Deus (1Tm 1,17; 6,15b-16)


“Ao Rei eterno, o Deus único, imortal e invisível, sejam honra e
glória para todo o sempre. Amém” (1Tm 1,17).
“Ele é o bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos
senhores, o único que é imortal e habita em luz inacessível, a quem nin-
guém viu nem pode ver. A ele sejam honra e poder para sempre. Amém”
Tm 6,15b-16).
A terminologia dessas afirmações sobre Deus mescla elementos de
origem judaica e de origem helenística e não tem paralelos no corpus pauli-
no. Vou focar na segunda passagem. Por exemplo, “bendito” (μακάριος) só é
usado nas cartas paulinas com referência a seres humanos, nunca em relação
a Deus. O adjetivo único (μόνος) só é usado em referência a Deus, no corpus
paulino, fora das Pastorais, em Rm 16,27 na expressão “ao único Deus sábio”.
Semelhantemente, nas cartas paulinas não se usa a palavra “honra” (τιμὴ) em

155
doxologias, apenas a palavra “glória” (δόξα), e o mesmo vale para os demais
termos no verso 16. O aspecto mais interessante dos textos, para nossos pro-
pósitos aqui, tem a ver com a interpretação da frase “habita em luz inacessível,
a quem ninguém viu nem pode ver”. Uma leitura típica é a seguinte:

A ideia de que deus habita em luz inacessível (φῶς οἰκῶν ἀπρόσιτον) é


nova, mas está profundamente enraizada na tradição judaica. A descri-
ção enfatiza a noção judaica tradicional da transcendência de Deus, a sua
total alteridade da qual escrevem teólogos contemporâneos. As estórias
bíblicas clássicas de Moisés demonstram vividamente que o Deus de
Israel é inacessível e não pode ser visto (Ex 3,2-6; 19,20-23).160

O uso da categoria da transcendência enquanto total alteridade é


marca da visão ontoteológica, anacronicamente imposta à tradição judaica
e seu uso nas Pastorais. Que categoria poderíamos utilizar em seu lugar,
que fizesse mais justiça à visão judaica de Deus expressa nesta frase? Em
outros momentos, usamos a categoria do genérico, derivada da matemáti-
ca, e agora podemos usar outra categoria matemática, também utilizada
por Alain Badiou em sua ontologia. A afirmação de que Deus habita em
luz inacessível e não pode ser visto é, a meu ver, mais bem entendida a
partir da categoria do inominável. Segundo Badiou,

O inominável é aquilo que se subtrai ao nome próprio, a que também


ele é o único a se subtrair. O inominável, portanto, é o próprio do
próprio. Tão singular que nem mesmo tolera ter nome próprio. Tão
singular, na sua singularidade, que é o único a não ter nome próprio. O
inominável é esse ponto em que a situação é pensada em seu ser mais
íntimo: na presença pura, que saber algum pode circunscrever. O ino-
minável é algo como o real indizível de tudo aquilo que uma verdade
permite dizer.161

Ao usar essa categoria, não subscrevo a ontologia de Badiou,


apenas reconheço que esse tipo de linguagem categorial é mais adequado

160  COLLINS, Raymond F. 1 & 2 Timothy and Titus. A Commentary. Louisville: Westminster
John Knox Press, 2002, p. 168.
161  BADIOU, Alain. Verdade e Sujeito. Estudos Avançados.  São Paulo, v. 8,  n. 21,  1994.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141994000200011. Acesso em: 2 out. 2012.

156
para interpretar a concepção de Deus na Escritura do que a linguagem
categorial ontoteológica. A categoria do inominável é claramente parado-
xal, se não admite ter nome, como nomeá-la? Assim é o encontro de Deus
com Moisés e assim a tradição judaica interpretou a palavra “não tomarás
o nome do Senhor teu Deus em vão” – o nome não deve ser nomeado.
A inacessibilidade de Deus aqui descrita não é de cunho metafísico, ex-
pressão de uma alteridade tão radical que seria absolutamente incompre-
ensível – algo que contradiz a afirmação bíblica de que Deus criou o ser
humano à sua imagem. A inacessibilidade de Deus é a sua não-disponi-
bilidade para manipulação pelo ser humano, é expressão de sua liberdade
e soberania – o que nessa perícope é descrito com a expressão também de
origem vétero-oriental “Rei dos reis e Senhor dos senhores” (cp. Dt 10,17;
Dn 2,47). Inominável, sim, mas, paradoxalmente, conhecível – a partir
de sua ausência, de seu esvaziamento, conforme já vimos acima: nas coisas
criadas, no anúncio da boa nova.

3.2 Há um só Deus: O Filho é Deus

Não tratarei de todos os textos em que Paulo descreve o Mes-


sias como Deus, retomarei alguns destes textos e acrescentarei outros no
segundo capítulo, dedicado ao tema da fidelidade messiânica. Minha hi-
pótese inicial é, citando Wright, que “os primeiros seguidores de Jesus vi-
ram a si mesmos não somente (por assim dizer) com permissão para usar
linguagem divina para Jesus, mas compelidos a usar linguagem jesuânica
para o Deus único”.162 Compelidos por sua própria experiência de Deus
no Espírito do Messias. Ou, como dissera Paulo aos coríntios, “o amor do
Messias nos constrange” – a nova teologia paulina não surge da reflexão
pura, mas da reflexão existencial sobre o viver-com-Deus. Ou seja, a vida,
morte e ressurreição de Jesus mostraram a Paulo e aos demais seguidores
iniciais de Jesus que Ele era o Messias esperado de Israel, mas que era
Messias de uma forma completamente inusitada e radical – a ponto de a
única forma capaz de efetivamente explicar sua messianidade foi afirmar

162  WRIGHT, N. T. Paul and the Faithfulness of God. Minneapolis: Fortress Press, 2013, v. 2, p.
755. A discussão sobre a relação entre Jesus e Deus é tema de vasta literatura nas últimas décadas,
com autores como Bauckham, Hurtado e outros.

157
que ele era o próprio Deus, o próprio YHWH em forma humana! E para
explicar a “encarnação”, Paulo adota a metáfora do esvaziamento como
categoria ontológica e epistemológica.163

3.2.1 A mente do Messias (1Co 2,16)


τίς γὰρ ἔγνω νοῦν κυρίου, ὃς συμβιβάσει αὐτόν; ἡμεῖς δὲ νοῦν
Χριστοῦ ἔχομεν. “Pois quem conheceu a mente do Senhor, que o possa
instruir? Nós, porém, temos a mente do Messias”. (Citando com altera-
ções a LXX de Is 40,13: τίς ἔγνω νοῦν κυρίου καὶ τίς αὐτοῦ σύμβουλος
ἐγένετο ὃς συμβιβᾷ αὐτόν “quem conheceu a mente do Senhor, quem se
tornou seu conselheiro, para instrui-lo?”)164.
O verso faz parte da perícope iniciada no verso 6 e serve como
sua conclusão. A perícope tematiza a sabedoria de Deus e o acesso ao co-
nhecimento de Deus, que só pode existir mediante a revelação do próprio
Deus, pois só o Espírito de Deus pode conhecer a mente de Deus, assim
como somente o espírito humano pode conhecer a mente do ser huma-
no. Podemos conhecer a Deus porque recebemos a dádiva do Espírito de
Deus. Ao concluir a perícope, porém, o verso 16 introduz abruptamente o
termo Messias. O verso começa com uma afirmação da radical incompa-
rabilidade do Senhor, Deus de Israel. Isaías 40,12ss – de onde vem a cita-
ção presente no verso – é uma declaração da singularidade e da majestade
de YHWH, o Deus de Israel, cuja sabedoria é tão grandiosa que ninguém,
humano ou divino, é capaz de estar à sua altura e de conhecê-la – estamos
aqui no ambiente do inominável. A mente do Senhor não pode ser co-
nhecida, mas como nós temos a mente do Messias, podemos conhecê-la.
A identificação entre o Messias e YHWH e seu Espírito é radical: como
conhecer a insondável mente do Criador? O Deus que não pode de ou-
tro modo ser conhecido é, porém, conhecido no Messias. Somente Deus
pode conhecer a Si mesmo e somente Deus pode revelar a Si mesmo: no
Messias, consequentemente, Deus se revela de modo pleno, em sua plural
singularidade de Deus Pai, Espírito e Filho.
163  Na descrição a seguir, pressuponho a discussão sobre a relação entre Jesus e Deus na pesquisa
contemporânea, conforme a nota anterior.
164  Is 40,13 é aludido em Sir 42,21 e 2En 33,4a, bem como em escritos de Filo e Josefo, como
um texto antipoliteísta. Como uma afirmação da incomparabilidade de YHWH, seu uso por Paulo
é significativo, inserindo a messianidade de Jesus na mesma categoria da incomparabilidade.

158
Por termos a mente do Messias, podemos discernir todas as coi-
sas, ainda que não possamos ser discernidos por ninguém que não a tenha,
pois o ser humano “psíquico” não pode discernir as coisas “espirituais”
(2,14-15). Aqui a unidade entre Jesus e Deus é apresentada no ambien-
te da epistemologia, o que nos permite buscar uma categoria explicativa
atual. Se podemos falar de Deus como genérico e inominável, podemos
falar da diferença entre Jesus e Deus como indiscernível. Podemos voltar a
Badiou, que explica a categoria da indiscernibilidade:

dois termos são indiscerníveis se nenhum efeito de linguagem permite


distingui-los; mas, se nenhuma fórmula de linguagem discerne dois
termos da situação, está assegurado que a escolha de fazer com que a
verificação passe antes por um que por outro não tem apoio algum na
objetividade da diferença165.

Embora Jesus não seja o Pai, nem o Espírito, ele também não
pode ser discernido do Pai e do Espírito, como na frase paulina “o Senhor
é o Espírito” (2Co 3,17), ou nos textos que identificam Jesus com o Pai,
conforme adiante.
Incidentalmente, podemos aqui notar a principal diferença en-
tre a visão paulina de Deus e a doutrina ontoteológica da Trindade. Na
doutrina da Trindade há um esforço hercúleo para distinguir as pessoas
divinas mediante a “objetividade da diferença” – o Pai não é Filho, nem é
Espírito: objetivamente difere do Filho e do Espírito. A doutrina da Trin-
dade permanece na categoria do Um único e singular, isento de qualquer
pluralidade, mas a visão paulina afirma a pluralidade divina em sua singu-
laridade. Não se trata de afirmar que a unicidade divina é mais qualitativa
do que quantitativa, mas, sim, de afirmar que quantitativa e qualitativa-
mente Pai, Filho e Espírito são indiscerníveis.

3.2.2 Um Senhor – Messias Jesus (1Co 8,6)


“Todavia, para nós há um Deus, o Pai, de quem são todas as coi-
sas e nós para Ele; e um Senhor, o Messias Jesus, por meio de quem são
todas as coisas, e nós também, por meio dele”.

165  BADIOU, Alain. Verdade e Sujeito. op. cit.

159
Estruturalmente temos um paralelismo sinonímico evidente:
A. Um Deus, o Pai
B. De quem se originam todas as coisas
C. E nós, para Ele
A’. Um Senhor, o Messias Jesus
B’. Por meio de quem foram feitas todas as coisas
C’. E nós, também, por meio dele.

É claro que Paulo está relendo cristologicamente o Shemá Israel.


Como no caso do Shemá, não há verbos nessa passagem que tenham os
termos “Deus, Pai” e “Senhor, Messias Jesus” como sujeito ou predicado.
No Shemá, na LXX, em vez de YHWH encontramos kyrios. Nesse para-
lelo vemos que: (a) Deus-um, o Pai, é o Criador de todas as coisas e nós
existimos para Ele (para sua glória); (b) Senhor-um, o Messias Jesus, é
o agente divino da criação de todas as coisas, e o agente divino da nova
criação em quem vivemos. As três preposições usadas indicam: origem e
finalidade (Deus como sujeito), e agência (Senhor como sujeito). Jesus é
claramente chamado de Senhor, o termo usado na LXX para traduzir o
nome sagrado e inefável YHWH. Um judeu dos tempos de Paulo não
teria dificuldades em perceber que Deus=Kyrios, ou seja, que Jesus é Deus,
e Deus é Jesus. Em outras palavras, Paulo está reescrevendo o Shemá
neste verso: em vez de recitar o Shemá em sua forma bíblica, ele passa a
recitá-lo em sua forma crística. Conforme percebe Wright,

o ponto subjacente aqui deveria ser claro, uma vez que reconheçamos o
contexto-êxodo do argumentação paulino em 1 Coríntios 8-10. Assim
como o êxodo foi realizado pela vida do Deus de Israel em pessoa para
libertar seu povo, assim também o novo êxodo foi inaugurado pela lon-
gamente esperada volta deste mesmo Deus em e como o próprio Jesus.166

Um judeu daquele tempo certamente teria problemas em aceitar


a proposição paulina, mas não em entender o seu alcance: o Messias é
Deus porque ele faz o que Deus faz (assim como no texto anteriormente
estudado, o Messias é Deus por que ele tem a mente de Deus). Ou, nas

166  WRIGHT, op. cit., p. 662.

160
palavras de Wright, “dentro deste monoteísmo Jesus recebe um papel que,
no antigo israel, era considerado como o papel do próprio YHWH”167.
Novamente estamos no campo categorial do indiscernível.

3.2.3 Glorie-se no Senhor (1Co 1,30-31; cp. 2Co 10,17)


“Mas vós, da parte de Deus, estais no Messias Jesus, o qual se tor-
nou para nós sabedoria da parte de Deus, justiça e santificação e redenção,
a fim de que, como está escrito, ‘aquele que se gloria, glorie-se no Senhor’”.
A citação, com alterações, é de Jr 9,24 (23 na LXX): ἀλλ᾽ ἢ ἐν
τούτῳ καυχάσθω ὁ καυχώμενος συνίειν καὶ γινώσκειν ὅτι ἐγώ εἰμι κύριος
ποιῶν ἔλεος καὶ κρίμα καὶ δικαιοσύνην ἐπὶ τῆς γῆς ὅτι ἐν τούτοις τὸ θέλημά
μου λέγει κύριος “mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e
saber que eu sou YHWH e faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque
destas coisas me agrado, diz YHWH”. Mais uma vez, a identificação entre
Jesus e YHWH é feita mediante uma citação da Escritura e mais uma vez
o texto citado é alterado para se encaixar no argumento paulino. O sentido
é claro: não há nada na terra, no ser humano, que seja base para autoglorifi-
cação (negando o sistema de honra do Império), se há motivo para alguém
se gloriar, que seja em Deus, porque Ele é o salvador de seu povo (e de toda
a criação).
Essa afirmação abstrata procura dar conta da discussão sobre o
status dos membros das comunidades de Corinto na parte inicial da perí-
cope. Mais uma vez estamos no campo da epistemologia e da honra: como
sabemos que alguém é digno de honra? Não a partir dos critérios imperiais
da honra, mas a partir dos critérios divinos da honra – critérios que ofe-
recem uma visão radicalmente inversa da hierarquia de honra no mundo
greco-romano. A nossa honra está em Deus e dela participamos porque, no
Messias, temos a sabedoria, a justiça, a santidade e a liberdade divinamente
outorgadas. A conclusão, usando Jr 9,24, mais uma vez identifica Jesus com
YHWH: se somente podemos nos gloriar validamente em Deus, no Messias
podemos fazê-lo, posto que o Messias é Deus em nós e por nós. Permane-
cemos no âmbito da categoria do indiscernível.

167  WRIGHT, op. cit., p. 736.

161
3.2.4 Homem celestial, espírito vivificante (1Co 15,45-49)

Assim está escrito: ‘o primeiro homem, Adão, tornou-se psique viven-


te’; o último Adão, espírito vivificante; todavia, não foi o espiritual que
veio antes, mas o psíquico; depois, o espiritual. O primeiro homem
veio do pó da terra; o segundo homem, do céu. Os que são da terra são
semelhantes ao homem terreno; os que são do céu, ao homem celes-
tial. Assim como vestimos a imagem do terreno, vestiremos também a
imagem do celestial.

Deixaremos de lado todos os aspectos que não se referem à di-


vindade do Messias Jesus, em particular a questão da cristologia adâmica
de Paulo. O que nos interessa aqui são os contrastes estabelecidos entre
Adão e o Messias: o primeiro é psique vivente, veio do pó da terra e é, por
isso, terreno; o segundo, é espírito vivificante, veio dos céus e, por isso, é
celestial. Claramente Paulo está interpretando o relato da criação de Adão
em Gn 2, origem da citação no verso inicial desta passagem, ao redor da
qual gira toda a apresentação nestes versos. Que o Messias seja ‘‘espírito
vivificante’’ é uma ousada interpretação do relato de Gn 2, em que o es-
pírito (sopro) de Deus, vindo do céu, dá vida ao corpo inerte, terreno, de
Adão. Nos escritos paulinos o termo ‘‘vivificar’’ é comumente empregado
com relação à ressurreição e à transformação da pessoa ‘‘morta’’, fora do
Messias, em pessoa viva no Messias – mas nessas passagens é o Espírito
quem vivifica (Rm 8,11; 2Co 3,6), com exceção a Rm 4,17 em que o
sujeito do verbo é Deus. Alguns autores consideram que a origem ‘‘do
céu’’ se refere à parousia do Messias, mas o mais provável é que se refira à
encarnação do Messias, pois o contraste é feito com a origem terrena de
Adão, de modo que o texto deve se referir à “origem” do segundo Adão
‘‘no passado’’ e não ‘‘no futuro’’. Que a perícope como um todo se refira à
ressurreição humana não justifica interpretar escatologicamente a origem
da função vivificante do Messias.
Mais uma vez nos encontramos no campo da indiscernibilidade.
O Messias faz o que o Pai e o Espírito fazem: dá vida. Na teologia judaica
antiga somente Deus é o doador da vida, de modo que ao afirmar que o
segundo Adão é espírito vivificante, está afirmando que o segundo Adão

162
é Deus. Dunn e outros enfatizam a identificação entre Jesus e o Espírito,
mas o nexo mais evidente aqui é entre Jesus e o Pai, quem sopra vida em
Adão. Por isso optei por manter a palavra espírito com letra minúscula,
entendendo que ela funciona como uma metáfora – Jesus é o sopro di-
vino vivificante. Mais interessante, ainda, porém, é o fato de Paulo falar
do Deus-Messias como humano, como adâmico – em seu esvaziamento
o Messias vivifica, na sua mortalidade o Messias é autor da imortalida-
de de quem é fiel a Ele. Se é possível identificar o Jesus adâmico com a
divindade, então estamos de fato absolutamente distantes do ambiente
ontoteológico que destaca a “total alteridade” o Deus transcendente em
relação ao ser humano.

3.2.5 Deus bendito eternamente (Rm 9,5)


“De quem são os pais e de quem é o Messias segundo a carne, o
qual é sobre todos, Deus bendito eternamente, amém”.
O verso é a conclusão da primeira seção dos capítulos 9-11 de Ro-
manos, em que Paulo discute a eleição de Israel e a sua rejeição do Messias
Jesus. Nosso foco recairá mais uma vez apenas sobre a identidade de Jesus.
Nesse sentido, a principal discussão exegética recai sobre a pontuação do
verso. Acima, sigo a pontuação que considera a identificação de Jesus como
“Deus bendito eternamente”. Para os que não consideram que os primeiros
cristãos afirmassem a divindade de Jesus, ou que Paulo chamasse Jesus de
Deus, o texto deve ser traduzido de modo diferente, com ponto e vírgula
após panton (sobre todos), deixando a doxologia final separada do texto so-
bre o Messias, algo mais ou menos assim: “de quem são os pais e de quem é
o Messias segundo a carne, o qual é sobre todos; Deus seja bendito eterna-
mente, amém!”. Uma decisão em termos puramente gramaticais é impossí-
vel, a decisão deve ser tomada em termos interpretativos.168
A perícope exalta a relação de Israel com Deus como expressão
do forte sentimento de Paulo em prol da salvação dos seus ‘irmãos e com-
patriotas’, destacando vários aspectos da identidade de Israel como povo

168  Não apresentarei toda a argumentação e seus respectivos defensores, para as quais devem ser
consultados os comentários. Uma excelente síntese da mesma, com indicação bibliográfica ampla e
atualizada, se encontra no comentário de Jewett a Romanos, na série Hermeneia.

163
de Deus. No conjunto dos capítulos, esses versos servem para introduzir
a temática da fidelidade de Deus à sua eleição de Israel que, “no fim, será
salvo”. Este ponto apresenta, a meu ver, o argumento mais forte dos que
rejeitam a identificação de Jesus com Deus no verso 5 – segundo eles, seria
mais natural uma eulógia a Deus do que a Jesus como Messias, posto que
é exatamente esse o ponto de discórdia entre Paulo e os “seus irmãos”.
Esse argumento, porém, é mais frágil do que aparenta, posto que o pro-
pósito de Paulo, aqui, não é convencer o Israel que rejeita o Messias, mas
resolver o problema da divisão entre gentios e judeus nas comunidades de
seguidores do Messias em Roma.
Por outro lado, o contraste entre a identidade de Jesus ‘‘segundo
a carne’’ e sua divindade é paralelo ao contraste entre Jesus ‘‘filho de Davi
segundo a carne’’ e ‘‘filho de Deus segundo o Espírito’’ em Rm 1,4. Uma
vez que a esperança de Paulo é a salvação de todo Israel, faz mais sentido
reconhecer a divindade de Jesus do que o contrário, posto que se Jesus é
reconhecido como Deus-Messias, a salvação de Israel efetivamente virá.
Aceita a identificação, Rm 9,5 é quase único na literatura paulina, com
paralelo apenas em 2Ts 1,12 (κατὰ τὴν χάριν τοῦ θεοῦ ἡμῶν καὶ κυρίου
Ἰησοῦ Χριστοῦ) e Tito 2,13 (καὶ ἐπιφάνειαν τῆς δόξης τοῦ μεγάλου θεοῦ
καὶ σωτῆρος ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ) no qual não há qualquer ambiguida-
de gramatical e a nomeação de Jesus como Deus é evidente. Seguindo o
mesmo raciocínio dos outros textos aqui analisados, estamos no campo
categorial da indiscernibilidade, de modo que embora não possamos ter
certeza absoluta, Rm 9,5 (como 2Ts 1,12 e Tt 2,13) afirma que Jesus é
“Deus sobre todos, bendito eternamente”.

3.2.6 Invocar o Nome (Rm 10,13 )


“Pois todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”.
O texto é uma citação da primeira parte de Jl 2,32 (3,5, presente
na LXX) “καὶ ἔσται πᾶς ὃς ἂν ἐπικαλέσηται τὸ ὄνομα κυρίου σωθήσεται
ὅτι ἐν τῷ ὄρει Σιων καὶ ἐν Ιερουσαλημ ἔσται ἀνασῳζόμενος καθότι εἶπεν
κύριος καὶ εὐαγγελιζόμενοι οὓς κύριος προσκέκληται” (E acontecerá que
todo aquele que invocar o nome de YHWH será salvo; porque, no monte
Sião e em Jerusalém estarão os que forem salvos, como YHWH prome-

164
teu; e, entre os sobreviventes, aqueles que YHWH chamar). Em Romanos
10, claramente, Paulo está falando da fé-fidelidade em Jesus. Ao citar Jl
2,32 não há alternativa de interpretação a não ser a de que ele identifica
Jesus com YHWH (kyrios). C. K. Rowe considera 10,13 como o clímax
da discussão do capítulo 10 e afirma que:

se for entendido como instrutivo do modo como Paulo concebe a re-


lação de Deus com Cristo, elimina a possibilidade de pensar no Deus
de Israel, YHWH, aparte do ser humano Jesus. Este relacionamento
de união é dialético e gira ao redor de uma identificação sem reservas
de um com o outro, assim como ao redor de uma clara diferenciação.169

A descrição de Rowe sobre o relacionamento de união entre Je-


sus e YHWH como dialético, girando ao redor de uma identificação sem
reservas e de uma clara diferenciação combina com a categoria da indis-
cernibilidade que temos usado para descrever a visão de Paulo sobre a
divindade de Jesus. A identificação de Jesus com o YHWH a ser invocado
para se alcançar a salvação reforça a interpretação de Rm 9,5 como uma
eulógia a Jesus enquanto Deus bendito e sobre todos (eventualmente, uma
citação do Sl 88,52). Em termos abstratos, não há discernibilidade entre
Jesus e YHWH neste verso.

3.2.7 Deus esvaziado (Fp 2,5-11)

Tende em vós o mesmo hábito170 que houve também no Messias Jesus:


O qual171, existindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o
ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de

169  ROWE, C. K. Romans 10.13. What is the name of the Lord?. Horizons in Biblical Theology
n. 22, 2000, p. 136s.
170  O texto grego é sintaticamente estranho, assim como a tradução. ‘‘Hábito’’ é tradução do
sentido do imperativo froneite, que significa bem mais do que pensamento ou raciocínio, mas
inclui a afetividade e a ação em sentido moral. “O propósito mais abrangente da carta é moldar
uma phronesis cristã, um raciocínio moral prático que seja conforme à sua [de Cristo] morte na
esperança de sua ressurreição” (MEEKS, Wayne C. The Man from Heaven in Paul’s Letter to
the Philippians. In: PEARSON, Birger A. et al. (eds.). The Future of Early Christianity: Essays in
Honor of Helmut Koester. Minneapolis: Fortress Press, 1991, p. 333). Uma discussão mais ampla
sobre o sentido do termo grego será apresentada no capítulo sobre a fidelidade messiânica.
171  O mesmo pronome inicia o hino cristológico de Cl 1,15-20.

165
escravo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em
figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à
morte e morte de cruz.
Pelo que também Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o nome que
está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo
joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que
o Messias Jesus é Senhor, para glória de Deus Pai.

Este é um dos textos mais conhecidos e mais substanciosos de


Paulo (ou se o hino não for dele, incorporados por Paulo). Não à toa o
volume de material acadêmico – e o consequente confronto de hipóteses
e teses – é imenso. Não poderemos sequer tocar na listagem dos temas
e questões em discussão, mas ela é pressuposta no que apresentaremos
aqui. Não há consenso no tocante à forma literária ou à estrutura da pe-
rícope. Por razões semânticas e não estruturais, trabalho o texto em duas
partes (6-8; 9-11), a primeira referindo-se ao esvaziamento do Messias
e a segunda à sua exaltação. O texto possui uma estrutura poética ou, no
mínimo, uma forma elevada de prosa. Se era um hino, ou não, é impossí-
vel ter certeza. Se fosse um hino, oferece um argumento adicional sobre
a divindade de Jesus na tradição das comunidades primitivas: ao cantar
hinos a Jesus, as comunidades messiânicas o adoravam juntamente com o
Pai, e isto é indicativo de que reconheciam a sua divindade. Se não for um
hino, porém, perderíamos o argumento litúrgico, mas o conteúdo do texto
continuaria sendo o argumento mais forte em relação à compreensão da
divindade do Messias Jesus.
Como última preliminar ao estudo do texto, destaco mais uma
vez que o objetivo da perícope não é apresentar a noção do monoteísmo
anômalo, mas exortar à unidade da comunidade messiânica em Filipos (cf.
2,1ss)172. O monoteísmo teórico não era uma questão das igrejas primiti-
vas, mas, sim, o prático: se confessamos Jesus como Senhor, deixamos de
172  “Aqueles a quem a parênese é dirigida não são exortados a, simplesmente, serem humildes
porque eles têm em Cristo um exemplo de humildade. Paulo dirige sua exortação a pessoas que
vivem em um cosmos que está sendo transformado pela exaltação do Messias por Deus. Se lemos o
hino todo como fundamental para a parênese, vemos que os destinatários de Paulo são encorajados
a viver em um mundo no qual os seus poderes hostis estão no processo de ser submetidos ao
Cristo kenótico” (COUSAR, Charles B. Philippians and Philemon: a commentary. Louisville:
Westminster Press, 2009, p. 58).

166
confessar César como Senhor! Sob o Império, os riscos concretos da fé são
evidentes. Não entrarei nesse aspecto na breve análise do texto, mas cla-
ramente ele tem uma relevância anti-imperial – há um só Senhor, mesmo
que esse reconhecimento só seja feito de modo universal no fim dos tempos.
Se no presente César quer ser confessado como kyrios, as pessoas que
confessam Jesus como kyrios e único kyrios, se colocam como resistentes ao
império e seu modo de vida.173
Na primeira seção, a expressão-chave no tocante à divindade de
Jesus é ἐν μορφῇ θεοῦ (em forma de Deus), obviamente amplamente de-
batida na pesquisa. Sem discutir as questões técnicas, apenas cito a con-
clusão de O’Brien:

μορφῇ refere-se à ‘forma que verdadeira e plenamente expressa o ser


que a subjaz’. A frase ἐν μορφῇ θεοῦ é mais bem interpretada contra
o pano de fundo da glória de Deus, aquela luz brilhante em que, de
acordo com o AT e a literatura intertestamentária, Deus era apresen-
tado. A expressão não se refere simplesmente à aparência externa, mas
descreve o Cristo pré-existente como vestido com as roupas da majes-
tade e esplendor divinos. Ele era em forma de Deus, partilhando da
glória de Deus. ἐν μορφῇ θεοῦ, assim, corresponde a Jo 17,5 (a glória
que tinha contigo antes do início do mundo), e nos lembra de Hb 1,3
(o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser).174

Esse sentido é reforçado pela sequência do verso: mesmo sendo


Deus, Jesus não considerou que sua igualdade (τὸ εἶναι ἴσα θεῷ) com Deus
fosse algo tão valioso que o impedisse de cumprir sua vocação de Messias a
morrer na cruz. A sentença deixa claro que a condição divina de Jesus não foi
algo acrescentado à sua humanidade, pelo contrário, Ele já era Deus antes de
sua existência terrena – e, sendo Deus, não era o Pai, mas assumiu a forma
(morphe) humana – ou seja, tornou-se humano175, a ponto de morrer executa-

173  Para uma leitura sociológica recente, ver: NEBREDA, Sergio Rosell. Christ Identity: A
Social-Scientific Reading of Philippians 2,5-11. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2011.
174  O’BRIEN, Peter. The Epistle to the Philippians. Grand Rapids: Eerdmans, 1991, p. 248s.
175  Não é possível discutir aqui a kenosis do filho de Deus, tema fundamental para a teologia
cristã como um todo, mas que não afeta a discussão sobre a divindade de Jesus propriamente
dita. A bibliografia é vasta e uma atualizada pode ser encontrada no comentário de O’Brien. A
resenha mais completa sobre a discussão do hino se encontra em MARTIN, Ralph P. Carmen
Christi: Philippians 2,5-11 in recent interpretation and in the setting of early Christian worship.
Cambridge: Cambridge University Press, 1967. Uma atualização parcial dessa discussão pode

167
do em uma cruz. Para citar O’Brien novamente:

diferentemente de muitos déspotas orientais, que usavam sua posição para


vantagem própria, Jesus entendeu que a igualdade com Deus não signi-
ficava ‘conseguir’, mas ‘dar’, para usar a frase de Mouse. ‘O filho pré-exis-
tente considerava a igualdade com Deus, não como um meio de se livrar
da tarefa (redentora) de sofrimento e morte, mas, de fato, como o que o
qualificava de modo único para essa vocação’. Levando o ponto adiante,
Wright afirma que é aqui que a real soteriologia subjacente do ‘hino’ deve
ser encontrada: é na morte de Jesus que o amor de Deus é revelado (cf.
Rm 5,6-8).176

Na segunda estrofe, o movimento de descida de Jesus é invertido.


Deus (Pai) o faz subir (eleva, exalta) acima de todas as coisas (uma palavra
que só ocorre aqui em o Novo Testamento) e lhe deu um nome – acima de
todos os demais – que se torna fonte de adoração a Ele (joelhos dobrados e
confissão/oração). Começo com o nome que, conforme o verso 11, é kyrios.
O fato do nome não ser mencionado no verso 9 levou a enorme especula-
ção sobre qual seria, mas a estrutura da estrofe, a meu ver, deixa claro que o
nome é kyrios e, sendo assim, como a palavra é usada na LXX para YHWH,
podemos afirmar que Jesus recebe o nome YHWH – ou seja, a segunda es-
trofe reafirma a igualdade de Jesus com Deus (sem anular a diferença entre
Deus-Pai e Jesus-Deus. E isso é tanto mais impactante quanto lido à luz
de Is 42,8: “Eu sou YHWH, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a
darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura”.
Enfim, o reconhecimento da soberania e divindade de Jesus será
feito (apocalipticamente) de modo universal – toda a criação, especial-
mente os poderes – dobrará os joelhos e confessará que Jesus é YHWH
– aqui uma citação de Is 45,23: “Por mim mesmo tenho jurado; da minha
boca saiu o que é justo, e a minha palavra não tornará atrás. Diante de
mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua” (cp. Rm 14,10-12).177 Não

ser encontrada em HELLERMAN, Joseph A. Reconstructing Honor in Roman Philippi. Carmen


Christi as Cursus Pudorum. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
176  O’BRIEN, op. cit., p. 253.
177  A interpretação feminista do texto se divide em duas tendências opostas, uma afirmando que
ele representa uma inversão do patriarcalismo quiriocêntrico, a outra, que ele mantém a linguagem
quiriocêntrica. Para bibliografia, ver a nota 119 de MARCHAL, Joseph A. Hierarchy, unity, and

168
há expressão mais clara e evidente – em sua radicalidade – da divindade
de Jesus do que esta: ser adorado por toda a criação, reconhecido como
YHWH, o criador e rei de todas as coisas.
Para concluir, volto a Richard Bauckham:

De particular relevância neste aspecto é o fato de que a passagem descreve


a adoração de Jesus por toda a criação (2,10-11) e é, portanto, a mais ine-
quívoca referência nos escritos de Paulo à adoração de Jesus em conexão
com a monolatria ou monoteísmo cúltico, que é uma das características
definidoras do monoteísmo judaico do Segundo Templo. Demais, visto
que a adoração de Jesus é descrita como o alvo escatológico do propósito
de Deus em Cristo, temos nesta passagem uma convergência entre mono-
teísmo escatológico e monoteísmo cúltico.178

E é essa conjunção que forma o que Bauckham chama de mono-


teísmo cristológico – e eu denomino de monoteísmo anômalo, lembrando o
uso anacrônico do termo monoteísmo. O movimento de subida e descida
do Filho só pode ser plenamente compreendido a partir das categorias da
vacuidade e do esvaziamento (a ser tratada no próximo capítulo) – a subida
do Filho não é uma redivinização, um reenchimento, mas o reconhecimen-
to do valor permanente do esvaziamento. Deus permanece esvaziado eter-
namente no Messias. A perícope também mostra uma diferenciação entre
o Messias e o Pai, sob o signo da relação em função com o mover-se divino:
o Messias é Deus-esvaziado na criação e na libertação. Tal conceituação
certamente seria escandalosa no mundo paulino: como adorar a um deus
mortal? Como conceber um deus que não seja totalmente outro em relação
ao mundo material? A apresentação do Messias como Deus esvaziado, em

imitation: a feminist rhetorical analysis of power dynamics in Paul’s letter to the Philippians.
Atlanta: SBL, 2006, p. 135. (O autor do livro citado defende a segunda linha de interpretação,
enquanto eu sigo as autoras que defendem a primeira. Temos de levar em conta as limitações
da linguagem disponível para Paulo – aqui ele segue a lógica da inversão, comum em textos
apocalípticos judaicos do período. Isso não quer dizer, porém, que a “inversão” é puramente
mecânica – a troca de um “senhor” por outro “senhor” do mesmo tipo).
178  BAUCKHAM, Richard. Jesus and the God of Israel. God Crucified and Other Studies on the
New Testament’s Christology of Divine Identity. Grand Rapids: Eerdmans, 2008, p. 148s. Ver,
também, do mesmo autor: The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11. In: MARTIN, Ralph P.;
DODD, Brian J. (eds.). Where Christology Began: Essays on Philippians 2. Louisville: Westminster/
John Knox Press, 1998, p. 128-139.

169
Paulo, reforça a peculiaridade de sua concepção de Deus em seu tempo:
uma concepção em que as fronteiras entre o divino e o criado não recebiam
uma formulação metafísica, mas relacional. A validade da categoria do in-
discernível para interpretar a relação entre Jesus e o Pai permanece válida.
Que síntese podemos oferecer desse conjunto de textos? O peso
da evidência aponta para o reconhecimento da divindade do Messias por
Paulo. O Messias é Deus na medida em que faz as mesmas coisas que
YHWH faz e é digno da mesma fé-fidelidade (adoração e reconhecimen-
to) de que YHWH é digno. Ao mesmo tempo, porém, o Messias não é
“idêntico” ao Pai que é Deus: estamos plenamente dentro do campo da in-
discernibilidade. Que consequências a relação Pai-Messias (Filho) apre-
senta para uma compreensão ontológica de Deus? A essência de Deus,
por assim dizer, é revelada no movimento de esvaziamento do Messias. A
afirmação de que Deus que se diferencia de si mesmo, sem deixar de ser
si-mesmo, no autoesvaziamento, é compreensível se levarmos em consi-
deração a pluralidade do “ser” do Deus-Um na visão judaica. Temos, então,
em Paulo, uma das primeiras reflexões sobre essa pluralidade interna de
Deus, levada a um grau de radicalização não conhecido no mundo judaico
e, até hoje, fonte de inevitável discussão. Sua validade conceitual é defen-
sável sob a categoria do indiscernível, que permite aceitar a diferenciação
entre termos sem poder nomeá-la mediante a linguagem.

3.3 Há um só Deus: O Espírito é Deus

Se o tema Deus não é suficientemente discutido na teologia do


Novo Testamento, o tema do Espírito é ainda mais negligenciado, havendo
poucas obras acadêmicas dedicadas ao mesmo. A própria discussão sobre o
monoteísmo judaico em o Novo Testamento opera primariamente a partir
da reflexão sobre a relação entre Jesus e o Pai, com pouca discussão sobre a
relação entre o Espírito e o Pai, o Espírito e Jesus. Ao manter a mesma estru-
tura descritiva para analisar a relação do Espírito com o Pai e o Filho procuro
superar essa atenção insuficiente à noção da divindade do Espírito.179

179  O terceiro capítulo será dedicado ao tema da fidelidade espiritual (do Espírito), de modo
que estes textos serão retomados e aprofundados na descrição discursiva da fidelidade do Espírito.

170
3.3.1 Conhecimento do Espírito de Deus (1Co 2,6-16)

Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém,


a sabedoria deste século, nem a dos poderosos desta época, que se re-
duzem a nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora
oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória;
sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; por-
que, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor glo-
rioso; mas, como está escrito: ‘Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram,
nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado
para aqueles que o amam’. Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; por-
que o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profunde-
zas de Deus. Porque que pessoa conhece as coisas da pessoa, senão o
seu próprio espírito, que nela está? Assim, também as coisas de Deus,
ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. Ora, nós não temos
recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para
que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente. Disto
também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana,
mas ensinadas pelo Espírito, interpretando coisas espirituais para pes-
soas espirituais. Ora, a pessoa psíquica não aceita as coisas do Espírito
de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas
se discernem espiritualmente. Porém a pessoa espiritual discerne todas
as coisas, mas ela mesma não é discernida por ninguém. Pois quem
conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir? Nós, porém, temos
a mente do Messias.

O texto selecionado faz parte de uma longa discussão sobre o ver-


dadeiro conhecimento, em que Paulo estabelece os parâmetros de sua epis-
temologia, iniciada em 1,18. Nosso foco aqui, sobre a identidade do Espíri-
to, nos impede de tratar desse tema central. A reflexão sobre o Espírito (de
Deus) em analogia com o espírito (humano) gira ao redor do autoconheci-
mento da pessoa. Nos dois casos (humano e divino), Paulo, de certo modo,
hipostatiza o Espírito, uma espécie de si-mesmo que detém o conhecimento
de si, é o portador da identidade da pessoa (divina ou humana). A partir
desta primeira analogia, Paulo estabelece uma segunda: somente a pessoa
espiritual pode conhecer as coisas espirituais (ou coisas de Deus, ou o que é
dado gratuitamente por Deus, também nomeadas no texto como coisas do

171
Espírito de Deus), ou seja, tudo aquilo que se refere à libertação messiânica,
posto que essas coisas espirituais somente são conhecidas pelo Espírito de
Deus que as comunica diretamente ao nosso espírito (assim como, em Rm
8, o Espírito testifica a nosso espírito que somos filhas e filhos de Deus). Por
meio dessas analogias, Paulo nos oferece uma identificação entre o Espírito
e Deus: o Espírito é a própria identidade de Deus, pois somente o Espírito
conhece Deus (pode haver aqui uma alusão parcialmente polêmica à noção
estoica do autoconhecimento do Uno).
Mas o que mais chama a atenção nesta perícope é o seu final.
Poderíamos esperar que Paulo concluísse a reflexão afirmando que temos
“a mente do Espírito”, o que corresponderia mais diretamente ao conhe-
cimento da “mente do Senhor” no mesmo verso e seria mais harmônico
com o conjunto da perícope. Todavia, Paulo prefere a expressão mente do
Messias. Ora, se somos pessoas espirituais, a quem o Espírito de Deus
revela as coisas de Deus, e em quem o Espírito habita, então não só temos
o conhecimento da identidade de Deus (mente de Deus, acompanhada
de uma citação de Jó que tem como efeito indicar que nenhum ser hu-
mano é capaz de conhecer a sabedoria ou a mente de Deus), nós temos
a própria mente do Messias (em analogia com a expressão de Gálatas “o
Messias vive em mim”). Temos uma situação similar à de 2Co 5,14ss, em
que Paulo afirma que não conhece o Messias “de acordo com a carne”, ele
o conhece segundo a participação na nova criação de Deus (em contraste
com “carne” poderíamos esperar “Espírito” nesta passagem). Paulo oferece,
portanto, uma tríplice identificação sem negar a diferenciação: Deus, Es-
pírito de Deus, Messias (previamente nomeado como “Senhor glorioso”,
crucificado pelos poderosos da espaçotemporalidade não-messiânica) –
um em sua pluralidade, uma pluriunidade, o que só pode ser efetivamente
compreendido sob a categoria da indiscernibilidade.

3.3.2 As manifestações do Espírito (1Co 12,1-13)

A respeito dos espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes.


Sabeis que, outrora, quando éreis gentios, deixáveis conduzir-vos aos
ídolos mudos, segundo éreis guiados. Por isso, vos faço compreen-

172
der que ninguém que fala pelo Espírito de Deus afirma: ‘Anátema,
Jesus!’. Por outro lado, ninguém pode dizer: ‘Senhor Jesus!’, senão
pelo Espírito Santo.
Ora, os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E também há diver-
sidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade nas reali-
zações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos. A manifestação
do Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso. Porque
a um é dada, mediante o Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro, se-
gundo o mesmo Espírito, a palavra do conhecimento; a outro, no mesmo
Espírito, a fé; e a outro, no mesmo Espírito, dons de curar; a outro, ope-
rações de milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos;
a um, variedade de línguas; e a outro, capacidade para interpretá-las. Mas
um só e o mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como
lhe apraz, a cada um, individualmente. Porque, assim como o corpo é um e
tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um
só corpo, assim também com respeito ao Messias. Pois, em um só Espírito,
todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer
escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito.

Como de costume, deixamos de lado a temática central da perí-


cope e focalizamos em sua descrição do Espírito. Esse é o único texto na
literatura paulina em que a identificação-com-diferenciação entre Deus,
Filho e Espírito é realizada tendo como elemento principal o Espírito (e
não Deus, ou o Senhor):

Ora, os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E também há


diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade nas
realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos. A mani-
festação do Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso.

Primeiramente o texto diferencia o Espírito (ligado aos dons), do


Senhor (ligado aos serviços), de Deus (ligado às realizações), para, então,
identificá-los sob o termo “a manifestação do Espírito” (priorização que
permanece na sequência com expressões como διὰ τοῦ πνεύματος (me-
diante o Espírito), κατὰ τὸ αὐτὸ πνεῦμα (conforme o mesmo Espírito), ἐν
τῷ αὐτῷ πνεύματι (no mesmo Espírito), ἐν τῷ ἑνὶ πνεύματι (no Espírito
uno) πάντα δὲ ταῦτα ἐνεργεῖ τὸ ἓν καὶ τὸ αὐτὸ πνεῦμα (um e o mesmo
Espírito opera todas essas coisas).

173
De fato, se voltarmos ao início da perícope, é o Espírito de Deus/
Espírito Santo que torna uma pessoa “espiritual” e a pessoa espiritual é
a única que pode confessar que Jesus é Senhor, não sendo capaz de, ao
contrário, amaldiçoar a Jesus. Encontramos, assim, a mesma identificação
diferenciada entre Espírito, Deus e Senhor ( Jesus), dessa vez sem a prio-
rização do Espírito presente na segunda parte do texto que analisamos
primeiramente. Havendo, portanto, identificação-com-diferenciação, per-
manecemos no campo do indiscernível.

3.3.3 Penhor (2Co 1,21-22; 5,5; Ef 1,13-14)

Mas aquele que nos confirma convosco para pertencer ao Messias e


nos ungiu é Deus, que também nos selou e nos deu o penhor, que é o
Espírito, em nossos corações (2Co 1,21-22).
Ora, foi o próprio Deus quem nos preparou para isto, outorgando-nos
o penhor, que é o Espírito (2Co 5,5).
[...] em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade,
o evangelho da vossa salvação, no qual credes, fostes selados com o
Espírito da promessa, o Santo; o qual é o penhor da nossa herança, até
ao resgate da sua propriedade, para louvor da sua glória (Ef 1,13-14).

Ao qualificar o Espírito como penhor (ou “sinal”, ambos termos


comerciais), Paulo ensina que a presença do Espírito é a garantia divina, o
selo divino de que a espaçotemporalidade messiânica percorrerá seu curso e
a vitória final nos será dada no Messias (“nossa herança”). As relações entre
Deus, Messias e Espírito são: (a) Deus nos ungiu e nos confirma (Paulo e
seus coautores), junto as comunidades de Corinto (vós), como pertencentes
ao Messias; (b) Deus nos selou e nos deu o Espírito como penhor/sinal
dessa dádiva de pertencer ao Messias; (c) Deus nos preparou para a vida
pós-morte nos outorgando o Espírito, sua presença ativa como penhor, para
que mantenhamos a esperança e a perseverança; (d) assim, a pertença ao
Messias é garantida pelo Espírito. Na espaçotemporalidade messiânica, o
que Deus (Pai) e o Messias fizeram (passado) é garantido (presente) pelo
Espírito que habita em nós/entre nós, até que o Messias e Deus, no futuro,

174
levem ao fim a coexistência da espaçotemporalidade messiânica com a não-
-messiânica. Estamos no campo da indiscernibilidade.

3.3.4 Espírito da Nova Aliança (2Co 3,1-18)

Começamos, porventura, outra vez a recomendar-nos a nós mes-


mos? Ou temos necessidade, como alguns, de cartas de recomen-
dação para vós ou de vós? Vós sois a nossa carta, escrita em nosso
coração, conhecida e lida por todas as pessoas, estando já manifes-
tos como carta do Messias, produzida pelo nosso ministério, escrita
não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente, não em tábuas de
pedra, mas em tábuas de carne, isto é, nos corações. E é por inter-
médio do Messias que temos tal confiança em Deus; não que, por
nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se par-
tisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus, o qual
nos capacitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da
letra, mas do Espírito; porque a letra mata, mas o Espírito vivifica.
E, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, se re-
vestiu de glória, a ponto de os filhos de Israel não poderem fitar a
face de Moisés, por causa da glória do seu rosto, ainda que desva-
necente, como não será de maior glória o ministério do Espírito!
Porque, se o ministério da condenação foi glória, em muito maior
proporção será glorioso o ministério da justiça. Porquanto, na ver-
dade, o que, outrora, foi glorificado, neste respeito, já não resplan-
dece, diante da atual sobre-excelente glória. Porque, se o que se des-
vanecia teve sua glória, muito mais glória tem o que é permanente.
Tendo, pois, tal esperança, servimo-nos de muita ousadia no falar. E
não somos como Moisés, que punha véu sobre a face, para que os filhos
de Israel não atentassem na terminação do que se desvanecia. Mas os
sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando fazem a
leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo reve-
lado que, no Messias, é removido. Mas até hoje, quando é lido Moisés,
o véu está posto sobre o coração deles. Quando, porém, eles voltam
ao Senhor, o véu lhe é retirado. Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde
está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. E todos nós, com o rosto

175
desvendado, contemplando em um espelho a glória do Senhor, somos
transformados, de glória em glória, nessa mesma imagem, mediante a
ação do Senhor, o Espírito.

Paulo utiliza as metáforas gêmeas da carta escrita em “tábuas” e


das “tábuas da Lei” para mostrar a validade do seu ministério apostólico
entre os coríntios. Não podemos discutir aqui essa questão mais ampla,
devemos nos concentrar naquilo que Paulo fala sobre o Espírito e suas
relações com Deus e com o Messias.
Em primeiro lugar, é o Espírito do Deus vivo quem insere as pes-
soas na comunidade messiânica, como cartas vivas que validam a pregação
de Paulo. Qualificar Deus como “vivo” é comum na Escritura e está pre-
sente em outros lugares na literatura paulina, mas somente aqui, em toda
a Escritura, encontramos a expressão “Espírito do Deus vivo”, indicando
a unidade entre Deus e seu Espírito, vivos e doadores da vida.
Em segundo lugar, Paulo estabelece um contraste entre o “mi-
nistério da Lei” (de Moisés, da antiga aliança) e o “ministério do Espí-
rito” – aquele provoca condenação e morte, esse gera vida. O ministério
da antiga aliança é superado pelo ministério da nova aliança, um serviço
divino realizado pelo Espírito de Deus – claramente em alusão ao papel
vivificador do Espírito em Ezequiel, tanto no capítulo 37 (visão do vale
de ossos secos), quanto na metáfora do novo coração; não descartando
também uma alusão a Jr 31,27ss (a nova aliança). É o Espírito de Deus
quem concretiza a nova aliança, na espaçotemporalidade messiânica, em
que a glória (honra) do ministério é extremamente superior à do antigo
ministério da Lei, posto que o ministério do Espírito é permanente, en-
quanto o da Lei foi provisório.
Em terceiro lugar, Paulo apresenta uma explícita identificação en-
tre o “Senhor” e o “Espírito”, nos versos finais da perícope. O verso 17 tem
uma formulação intensa e sintética: “ὁ δὲ κύριος τὸ πνεῦμά ἐστιν. οὗ
δὲ τὸ πνεῦμα κυρίου, ἐλευθερία” (Ora, o Senhor é o Espírito, de modo
que onde o Espírito do Senhor, liberdade), que tem provocado intensa dis-
cussão. A quem se refere o “Senhor” neste verso: a YHWH ou a Jesus? A
maioria dos intérpretes, desde os anos 1970, entende que a referência é a

176
YHWH, em continuidade com a interpretação de Êx 34 nos versos anterio-
res. Neste caso, temos uma perfeita e completa identificação entre YHWH
e o Espírito; é YHWH, Espírito, quem remove o véu dos membros de seu
povo quando lêem a Torá e lhes permite enxergar nela o Messias Jesus. É
YHWH, Espírito, quem outorga a liberdade aos membros do seu povo que
reconhecem Jesus como o Messias, assim como é Ele quem outorga liber-
dade a todas as pessoas que reconhecem Jesus como o Messias. A presença
de YHWH-Espírito é a presença da liberdade, é a concretização da nova
aliança. Essa identificação entre YHWH e o Espírito não teria causado di-
ficuldades a nenhum judeu leitor ou ouvinte dessa carta. Que estamos ainda
no campo do indiscernível pode ser percebido pelo fato de nesse mesmo
verso encontrarmos a expressão “Espírito do Senhor”.
Quando lemos essa passagem, em conjunto com Gl 4,15ss, em
que Paulo estabelece o contraste entre as alianças da lei e da liberdade,
junto ao Gl 5,1ss podemos notar a íntima relação entre YHWH-Espí-
rito e o Messias, posto que na antiga aliança é o nascido “do Espírito”
quem simboliza a promessa enquanto, no capítulo 5, é o Messias quem
“liberta para a liberdade”, e é “no Espírito” que as pessoas libertas para
a liberdade podem viver na espaçotemporalidade messiânica a liberdade
para a qual forma libertadas. Também podemos notar essa íntima rela-
ção no verso 13, mediante o uso da voz passiva “fostes chamados para a
liberdade”, que indica a agência divina no chamado, normalmente ligada
a Deus-Pai na literatura paulina. Uma vez que a lei se concretiza na prá-
tica do amor e na medida em que o amor é fruto do Espírito, temos um
vínculo real entre Pai, Messias e Espírito.
A identificação YHWH-Espírito é reforçada no verso 18:
“ἡμεῖς δὲ πάντες ἀνακεκαλυμμένῳ προσώπῳ τὴν δόξαν κυρίου
κατοπτριζόμενοι τὴν αὐτὴν εἰκόνα μεταμορφούμεθα ἀπὸ δόξης
εἰς δόξαν καθάπερ ἀπὸ κυρίου πνεύματος” (e todos nós, com o ros-
to desvendado, contemplando a glória do Senhor em um espelho, so-
mos transformados nessa mesma imagem, de glória em glória, como
pelo Senhor, o Espírito). Uma vez que o véu do não-reconhecimento
do Messias é retirado por YHWH-Espírito, podemos contemplar a sua
glória diretamente enquanto YHWH-Espírito nos transforma confor-

177
me essa mesma imagem – de glória para glória – que pode ser entendi-
do escatologicamente (da glória inicial da justificação à glória final da
glorificação) ou qualitativamente (transformados em graus crescentes
de semelhança a Deus; cp. Rm 12,1-2; Ef 4,24ss). A imagem a que esse
texto se refere, na literatura paulina, é a glória de Deus, mais adiante
identificada como o próprio Messias-imagem de Deus (2Co 4,6), de
modo que sutilmente temos a identificação não-idêntica de Pai, Filho e
Espírito em sua indiscernibilidade.

3.3.5 Espírito da Vida (Rm 8,1-27)


A reflexão mais intensa sobre o Espírito nos escritos paulinos
se encontra em Romanos capítulo 8, embora mais focada no papel do
Espírito na experiência cristã do que propriamente na relação entre o Es-
pírito o Pai e o Filho. O foco, aqui, recairá sobre a compreensão paulina
do Espírito, outros temas da perícope sendo abordados apenas em função
dessa reflexão sobre o conceito paulino de Deus. Este capítulo é a conclu-
são de uma longa seção iniciada no capítulo 5 e que ocupa o lugar central
na estrutura quiástica da carta aos romanos. O tema da seção é a vida dos
seguidores do Messias na espaçotemporalidade messiânica, marcada pela
conflitividade contra a espaçotemporalidade não-messiânica (carne, lei e
pecado, cujo resultado é a morte). O capítulo 8, enquanto conclusão da
seção, retoma os temas anteriormente discutidos e lhes proporciona uma
solução pneumatológica. Em 8,1-8 se discute a relação entre o Espírito
e a Lei, retomando, assim, o problema discutido no capítulo 7, que é o
lugar da lei na vida de quem segue o Messias Jesus. Em 8,9-17 apresen-
ta-se a relação entre Espírito, carne e justiça no âmbito da corporeidade
humana, retomando assim o capítulo 6 que discute o papel do corpo na
conflitividade da vida messiânica. Em 8,18-30 o tema é a ação do Espírito
no empoderamento das seguidoras do Messias no tempo presente sob o
signo da esperança e do amor de Deus, retomando a temática do capítulo
5, a vida sob o signo da ação libertadora do Messias Jesus, o último Adão.

Porque a lei do Espírito da vida, no Messias Jesus, te livrou da lei do


pecado e da morte, porque, aquilo que a Lei fora incapaz de fazer por

178
estar enfraquecida pela carne, Deus, tendo enviado seu próprio Filho, à
semelhança da carne do pecado, em relação ao pecado, condenou o pe-
cado na carne, a fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós, que
não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que
vivem segundo a carne cogitam das coisas da carne; mas os que vivem
segundo o Espírito, das coisas do Espírito. Porque a mentalidade da
carne leva à morte, mas a do Espírito, à vida e paz. Porquanto a men-
talidade da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeita à lei de
Deus, de fato, nem pode estar, mas os que vivem na carne não podem
agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se,
de fato, o Espírito de Deus habita em180 vós. E, se alguém não tem
o Espírito do Messias, esse tal não é dele. Se, porém, o Messias está
em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o
Espírito é vida, por causa da justiça. Se o Espírito daquele que ressus-
citou a Jesus dentre os mortos habita em vós, esse mesmo que ressusci-
tou ao Messias Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso cor-
po mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita. Assim, pois,
irmãos, somos devedores, não à carne como se constrangidos a viver
segundo a carne. Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para
a morte; mas, se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo, certa-
mente, vivereis. Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus
são filhos de Deus. Porque não recebestes um espírito de escravidão,
para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes um espírito de
adoção, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com
o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos
também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com
ele sofremos, também com ele seremos glorificados. Porque para mim
tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser
comparados com a glória a ser revelada em nós. A ardente expectativa
da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus. Pois a criação foi
sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a
sujeitou, em esperança, de modo que a própria criação será libertada
do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.
Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta as
dores de parto até agora. E não somente a criação, mas também nós,
que temos as primícias do Espírito, nós mesmos igualmente geme-

180  A preposição também poderia ser traduzida por “entre” para destacar o caráter comunitário
da habitação do Espírito, mas a tradução “em” preserva a ambiguidade que perpassa a perícope – o
Espírito habita “em” e “entre” vós.

179
mos em nosso íntimo, aguardando [a adoção de filhos,] a redenção do
nosso corpo. Porque nessa esperança fomos salvos. Ora, esperança que
se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? Mas, se
esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos. Também o
Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não
sabemos orar como convém, mas o próprio Espírito intercede por nós
com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os corações sabe qual
é a mentalidade do Espírito, porque, em conformidade com Deus ele
intercede pelos santos.

O Deus-Espírito é mencionado de várias formas neste capítu-


lo: (a) Espírito da vida, verso 2; (b) Espírito de Deus, versos 9 e 14; (c)
Espírito do Messias, verso 9 (também Gl 4,6 e Fp 1,19); (d) o Espírito
daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, verso 11; (e) esse mes-
mo que ressuscitou ao Messias Jesus dentre os mortos vivificará também
o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, verso 11; (f ) somente
Espírito, versos 4, 5, 6, 9, 13, 16, 26 e 27; (g) a Lei do Espírito liberta
da lei do pecado, v. 2; (h) a mentalidade (fronema) do Espírito, verso
6; (i) podemos viver conforme o Espírito, verso 5; (j) o Espírito habita
em nós, versos 9 e 10; (l) o nosso corpo mortal será vivificado por Deus
mediante o Espírito que habita em nós, verso 11; (m) pelo Espírito
mortificamos as obras do corpo mortal, verso 13; (n) os filhos de Deus
são guiados pelo Espírito, verso 14; (o) testifica com o nosso espírito,
verso 16; (p) temos as primícias do Espírito, verso 23; (q) nos ajuda em
nossa fraqueza, verso 26; (r) intercede por nós, versos 26 e 27; (s) Deus
conhece a mentalidade do Espírito, verso 27.
Temos, assim, em Romanos 8 uma pneumagiologia paulina em
síntese, uma descrição do Espírito que pode ser expandida e, ao fazê-lo,
confirmaria o que concluímos – a partir da análise dos textos sobre a di-
vindade de Jesus – a respeito do caráter anômalo da concepção monoteísta
de Deus em Paulo.
* O Espírito, de Deus-Pai e de Deus-Messias, também é senhor
e doador da vida (dele é a lei da vida), Ele foi o agente da ressurreição do
Messias e habita em nós como representante do Messias, outorgando a
vida do Messias (cp. Gl 2,20 em que Paulo afirma que “o Messias vive em

180
mim”), e agindo segundo a vontade de Deus-Pai que conhece a mentali-
dade do Espírito.181
* Em nós, a ação do Espírito é o que dá energia e realidade ao
que nomeamos de espiritualidade ou santificação – sem a cooperação do
Espírito de Deus em nós, não poderemos viver como seguidores do Mes-
sias Jesus em fé-fidelidade como Ele viveu em relação ao Pai. O Espírito é
Deus em nós, vivificando, dirigindo soberanamente, intercedendo, socor-
rendo, agraciando, confirmando.
Cabe aqui a síntese da visão paulina do Espírito em Romanos
feita por Fee:

O Espírito é tanto o Espírito de Cristo quanto o Espírito de Deus, a


quem Deus enviou aos corações dos crentes, derramando assim o seu
amor sobre eles, circuncidando seus corações e os santificando. Não só
isso, mas o Espírito escatológico é tanto a evidência segura de nossa
pertença a Deus quanto as ‘primícias’ de nossa glória final. Como tal, o
Espírito nos empodera para abundar em esperança no presente, e in-
tercede por nós em meio às nossas atuais fraquezas. O Espírito, assim,
cumpre a antiga aliança, de modo que a vida descrita na Torá é agora
vivida pelo poder do Espírito. Assim o Espírito representa uma nova
‘lei’ – a lei da vida outorgada por Cristo Jesus. Como tal, o Espírito é a
fonte de amor, alegria e paz no presente, enquanto esperamos ao futuro
prometido. Finalmente, o Espírito empodera o ministério, isso sem
mencionar a vida individual e comunitária em todos os seus aspectos.
O Espírito, como sempre em Paulo, é, portanto, retratado como a pre-
sença empoderadora de Deus, como a presença de Deus para criar e
capacitar seu povo sob a nova aliança.182

Se unirmos essas relações, poderemos afirmar: Deus-Pai e Deus-


-Messias (um só Deus) não “vivem” entre nós, então Deus-Pai envia (dá) o
Deus-Espírito para ser sua presença ativa entre nós. Deus-Pai, Deus-Filho,

181  Em 1Co 1,11 “Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do
homem, que nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus”,
a unidade identitária entre Deus e Espírito é descrita como a unidade indissolúvel entre a pessoa
e seu próprio espírito. Lá, é o Espírito quem conhece a mente de Deus (v. 10), aqui, é Deus quem
conhece a mente do Espírito.
182  FEE, Gordon D. God’s empowering presence: the Holy Spirit in the letters of Paul. Peabody:
Hendriksen, 1994, p. 476.

181
Deus-Espírito, porém, são um em nós e é o Deus-Espírito a presença plena
de Deus-um em nós. Deus-um (plural) em sua transimanência, que significa
sair-de-si-mesmo e estar-entre-nós, Deus-um-presente/ausente. Se Jesus
é re-posicionado “em sua divindade” pelo Espírito Santo, Deus é a-posto
a nós e com-posto conosco no Espírito Santo. Sem o Espírito, Jesus não
poderia agir como agiu, sem o Espírito o Pai não poderia agir como agiu – o
Espírito é Deus-em-relação consigo mesmo e com a sua criação.

3.3.6 Há um só... (Ef 4,1-6)

Rogo-vos, eu o prisioneiro no Senhor, que andeis de maneira digna da


vocação a que fostes vocacionados, com toda a humildade e mansidão,
com longanimidade, suportando uns aos outros em amor, esforçando-
-vos para conservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um
corpo e um Espírito, assim como fostes chamados em uma esperança
da vossa vocação; um Senhor, uma fidelidade, um batismo, um Deus e
Pai de todos, o qual sobre todos, por meio de todos e em todos.

Focando na temática do Espírito, encontramos dois aspectos im-


portantes. O primeiro é a vinculação da unidade das comunidades de segui-
dores do Messias com o Espírito – a unidade da comunidade é unidade ge-
rada e mantida pelo Espírito. Uma vez que o corpo (comunidade) é o corpo
do Messias, afirmar que a unidade do corpo é unidade do Espírito supõe uma
identificação entre o Messias e o Espírito no corpo. O segundo é a formula-
ção triádica – um Espírito, um Senhor, um Deus e pai de todos, sobre todos,
por meio de todos e em todos. Aqui não encontramos afirmações da identi-
ficação entre Espírito, Senhor e Deus-Pai, eles são apenas apresentados em
sua diferenciação indiscernível, de modo que especulações sobre uma eventual
hierarquia funcional ou ontológica entre Pai, Filho e Espírito estariam fora de
lugar, posto que seriam tentativas de discernir o indiscernível.
Podemos, a partir disso, apresentar uma pequena síntese focando
na questão “trinitária”. N. T. Wright, após mencionar o aspecto “progres-
sivo” da construção da doutrina da Trindade e questionar a aplicação re-
troativa desse modo de construção para o Novo Testamento, afirma sobre
o Espírito em Paulo: “No que tange ao apóstolo Paulo, o Espírito, assim

182
como Jesus, estava fazendo o que o próprio YHWH dissera que ele iria
fazer. O Espírito era a manifestação permanente e avançada da presença
pessoal do Deus uno”183. Gordon Fee, em sua exposição da teologia do
Espírito Santo em Paulo, aponta para a principal razão porque o tema do
Espírito não é tão amplamente tratado como o da cristologia, por exem-
plo: “Consequentemente, o Espírito é absolutamente pressuposicional
para a experiência e compreensão integral da vida presente em Cristo na
igreja primitiva; e, como frequentemente acontece com tais matérias de
pressuposição, raramente se reflete sobre elas”.184
Duas questões, porém, ainda merecem maior esforço de elucida-
ção. A primeira delas tem a ver com a imprecisão da linguagem do próprio
apóstolo e que se reflete na imprecisão da linguagem na pesquisa. Que
imprecisão é essa? A de considerar o Pai como Deus “mais propriamente”,
ou como a “fonte” da divindade, ou como a expressão plena da “natureza”
de Deus, de modo que a divindade do Filho e a do Espírito pareçam su-
bordinadas ou de algum modo inferiores à divindade mais “essencial” do
Pai. Um exemplo dessa imprecisão na pesquisa pode ser dado:

De fato, os textos cristãos mais antigos refletem uma experiência tri-


ádica de ‘Deus’, que inclui o senso de ‘Deus’ (‘o Pai’) como a fonte e
o destino último de todas as coisas; Jesus como o único e essencial
agente dos propósitos divinos [sic] através de qual a criação deve
agora ser vista e através de quem, também, a redenção é providen-
ciada; e o Espírito como a comunicação e dom de ‘Deus’ que é, ao
mesmo tempo também, o advogado e o meio pelo qual os crentes
recebem um status filial que deriva da própria filiação divina singular
de Jesus.185

Como vimos repetidamente acima, minha hipótese é de que essa


imprecisão da linguagem não deve ser entendida a partir de alguma forma
de subordinacionismo ou de hierarquia no ser divino. É uma imprecisão
inevitável dado o caráter indiscernível dos termos Pai (Deus), Filho (Se-

183  WRIGHT, op. cit., p. 711.


184  FEE, Gordon D. God’s empowering presence: The Holy Spirit in the letters of Paul. Peabody:
Hendrickson, 1994, p. 2-3.
185  HURTADO, Larry W. God in New Testament theology. Nashville: Abingdon Press, 2010, p. 64.

183
nhor) e Espírito. Assim, salvo melhor juízo, entendo que Paulo não con-
templava qualquer tipo de distinção entre a divindade do Pai, a do Filho
e/ou a do Espírito Santo.
A segunda, diretamente ligada a essa, tem a ver com o eventual
caráter trinitário do pensamento de Paulo. Essa questão é mais facilmente
solucionável. Podemos dizer, com certeza, que Paulo não entenderia as
três ‘pessoas’ divinas nos mesmos termos das afirmações conciliares ecle-
siásticas. Da mesma forma, podemos dizer com certeza que essas afir-
mações conciliares – aceitas quase que de modo inalterado até hoje em
dia – não são a reprodução exata das crenças específicas de Paulo ou de
outros autores do Novo Testamento. Podemos, porém, a partir da teologia
paulina, repensar o próprio conceito de Deus, desvestindo-o do caráter
ontoteológico que lhe foi imposto ao longo da história do pensamento
cristão. Podemos tirar proveito da teologia paulina sob as categorias do
inominável e do indiscernível para desconstruir o teísmo e o monoteís-
mo ontoteológicos que ainda operam como pressuposto não-discutido da
quase totalidade da pesquisa exegética de Paulo – algo que faremos pelo
menos em parte na seção final deste capítulo.

3.3.7 A Plenitude da Totalidade


Cabe agora voltarmos a uma série de frases, já discutidas em suas
perícopes, que tematizam a relação de Deus com a totalidade da criação e
frases similares: de um lado, 1Co 8,6; Rm 11,36; e, de outro, 1Co 15,26-
28; Ef 1,9-10.23; 4,9-10; Fp 3,21; Cl 1,15-18.20. De um lado temos uma
pequena série de afirmações, confessionais ou litúrgicas, relativas a Deus (e
ao Messias) como a plenitude da totalidade – a origem, a providência e a
finalidade de todas as coisas. De outro lado, uma série maior de afirmações
relativas ao Messias como a plenitude da totalidade em uma linguagem que
engloba a espaçotemporalidade humana. Vejamos as duas primeiras:

porque sujeitou todas as coisas debaixo dos pés. E, quando diz que
todas as coisas lhe estão sujeitas, certamente, exclui aquele que tudo
lhe subordinou. Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem sujeitas,
então, o próprio Filho também se sujeitará àquele que lhe sujeitou
todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos (1Co 15,26-28); e

184
pois a nossa pátria está nos céus, de onde também aguardamos o
Salvador, o Senhor Jesus Cristo, o qual transformará o nosso corpo de
humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a eficácia do
poder que ele tem de até subordinar a si todas as coisas (Fp 3,20-21).

Ambas se referem ao ‘fim dos tempos’, a primeira tratando da


relação entre o Filho e o Pai, quando aquele sujeitará todas as coisas ao
Pai, inclusive a si mesmo; a segunda, no contexto da glorificação dos se-
guidores e seguidoras do Messias, afirma que o Messias tem o poder de
sujeitar a si todas as coisas. A ação salvífica do Messias é também uma
ação libertadora – toda a criação será libertada da escravidão na medida
em que todos os poderes existentes serão subordinados ao Filho que os
entregará ao Pai.
Nessa mesma direção temos Ef 1,23 “E pôs todas as coisas de-
baixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja, a
qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as
coisas”, que inverte a ordem da descrição e afirma que o Pai sujeitou todas
as coisas ao Filho para que o Filho se tornasse cabeça de tudo – e insere a
salvação dos seres humanos nesse propósito divino: se o Messias é a ple-
nitude de todo o universo, a igreja é a plenitude do Messias. O Messias
somente é pleno, completo, em seu esvaziamento que possibilitou o ser
plenificado pela humanidade – que ele assumiu na encarnação – e pelos
seus seguidores e seguidoras, de modo que não é possível falar em termos
exclusivamente cronológicos de Jesus: divino antes da encarnação, divino-
-humano durante a vida terrena, divino novamente após a ressurreição (de
modo similar a Fp 2,6-11).
Ainda em Efésios encontramos outras duas afirmações simila-
res: “desvendando-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu bene-
plácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação
da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da
terra” (1,9-10) e “ora, que quer dizer subiu, senão que também havia
descido até às regiões inferiores da terra? Aquele que desceu é também
o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas”
(4,9-10). A primeira é uma afirmação genérica sobre o propósito de
Deus, enquanto a segunda focaliza a salvação da humanidade – mas

185
ambas afirmam o mesmo sobre o Filho de Deus – ele é a plenitude de
toda a criação e ele será, novamente, o ponto de convergência de toda a
realidade – a origem, a providência e a finalidade de tudo o que existe –
igualando Filho e Pai.
A última perícope nessa conexão é o hino messiânico em Cl
1,15-20, no qual se afirma do Filho: (a) “nele foram criadas todas as coisas
[...] tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas.
Nele, tudo subsiste”, e (b) “porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda
a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio
dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer
nos céus”. A estrutura temática do hino mostra a relação de indiscernibi-
lidade entre Pai e Filho: no Filho o Pai criou todas as coisas e reconciliou
todas as coisas consigo mesmo; o Filho é o agente divino da criação, o am-
biente da criação, a finalidade da criação, a vitalidade de tudo o que existe
e a que ele antecede – por isso, nele habita a plenitude (não só a plenitude
da divindade, mas também a plenitude da criação).
Com essas afirmações, por um lado, Paulo está descartando todas
as explicações possíveis da realidade que dispensem a presença atuante de
um Deus pessoal, bem como todas as explicações possíveis da realidade
que dispensem a ideia de um Deus que se torna humano sem deixar de
ser quem é. Ou seja, rejeita in toto as explicações filosóficas e religiosas
de seu tempo, considera-as insuficientes e equivocadas, e apresenta uma
nova solução para a compreensão da realidade: a sua total e completa
dependência vital de um Deus criador, providente, libertador e consuma-
dor – um Deus único mas plural em sua unicidade. Do ponto de vista de
nossa época, essas afirmações paulinas equivalem à rejeição de quaisquer
explicações naturalistas da realidade, bem como à declaração de inade-
quação das teorias sobre a divindade tais como o teísmo, deísmo e simi-
lares – em uma palavra, equivale à rejeição da descrição ontoteológica da
realidade, de modo que a totalidade da qual Deus é a plenitude não pode
ser concebida como uma totalidade fechada, exaurida em si mesma, mas
uma totalidade permanentemente aberta, tanto do ponto de vista espacial,
quanto do temporal.
Se podemos usar a categoria da indiscernibilidade para as relações
entre Pai, Filho e Espírito, somos obrigados também a usar essa mesma

186
categoria para as relações entre Deus (Pai, Filho, Espírito) e a totalida-
de de Sua criação. Se usamos a categoria da indiscernibilidade estamos
também autorizados a usar a categoria do genérico, na medida em que
há uma relação indissolúvel entre o indiscernível e o genérico no âmbito
ontológico. Essas duas categorias, conforme utilizadas por Alain Badiou,
permitem a construção de uma concepção da realidade que é análoga (in-
sisto: meramente análoga) à descrição paulina de Deus como a plenitude
da totalidade – uma plenitude não a-histórica da totalidade.186

186  Ver, em particular, BADIOU, Alain. L’être et l’événement. Paris: Éditions du Seuil. 1988, p.
359-377.

187
Capítulo 4
Narrativizando Deus

Após o trabalho de análise discursiva de perícopes que nos aju-


dou a compreender a noção de Deus em Paulo a partir da relação Pai-Fi-
lho-Espírito, cabe agora refletir sobre o aspecto narrativo da discussão
paulina, analisando quatro temas abstratos que representam objetos-va-
lor que circulam na sociedade e cultura e são adotados ou perseguidos
por um determinado grupo social. Esses temas nos permitirão situar o
discurso paulino sobre Deus no campo das lutas sociopolíticas de seu
tempo. O critério da seleção, consequentemente, é o que em semiótica
greimasiana se chama de contrato de veridicção187 e os temas serão apre-
sentados, na sequência, em uma estrutura de paralelismo que visa dar
conta da sistematicidade implícita da descrição paulina de Deus. Essa
estrutura é a seguinte:

A Deus que elege e chama


B Deus glorioso
B’ Deus poderoso
A’ Deus que ama fielmente

Nos elementos externos tematizo ações de Deus em relação con-


sigo mesmo e com sua criação, enquanto nos internos tematizo qualifica-
ções de Deus no tocante a sua identidade pessoal e as relações com a sua
criação. Os elementos internos, por sua vez, podem ser vinculados ao que
é revelado de Deus na criação (seu eterno poder e divindade, cf. Rm 1,20)
e os elementos externos ao que é revelado de Deus no Messias (eleição-
-chamado, amor-fiel, cf. Rm 1,16-17).

187  Por meio deste conceito, a semiótica visa dar conta do conjunto de saberes e interações
envolvido na interação comunicativa entre sujeitos: “é o termo usado pela semiótica para
circunscrever o espaço sociocultural de definição da validade de um enunciado. A persuasão só
ocorre quando enunciador e enunciatário compartilham de suficientes critérios de validade em
comum para que cheguem a um acordo, a um consenso” (ZABATIERO, Júlio Paulo T. M. Manual
de Exegese. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 85).

188
De fato, se estamos no caminho da desconstrução da versão
ontoteológica de Deus, o que encontramos em Paulo é a convicção de
que não há um ser de Deus anterior às suas ações. Não há uma essência
que antecede à existência. Por isso, a tentativa da teologia bíblica em es-
capar à visão ontoteológica mediante a via do “Deus que age” é ineficaz.
Deus não é o que ele “faz”, de fato, nenhum ser pode ser definido pelo
que “faz” – pois então voltaríamos à distinção aristotélica entre potência
e ato, à atualidade que, afinal de contas, dissolve a potencialidade. Ao
contrário, Deus é o que está sendo-vivendo, ehyeh asher ehyeh. Ser Deus
é outro modo de dizer existir-enquanto-Deus. Ou, usando uma metá-
fora ausente dos escritos paulinos, Deus é Deus em seu descanso. Se
permitirmos que o descanso se torne a chave epistêmica para definirmos
Deus, temos de volta o caminho para a noção da potencialidade em uma
forma-de-vida – Deus é Deus em sua potencialidade-inoperatividade.
Por isso, a aparente ausência de “reflexão” paulina sobre Deus não passa
de mera aparência, posto que é assim que a vemos, como miragem. A
ausência de uma linguagem do tipo conceitual filosófico não caracteriza
ausência de reflexão, mas, apenas, a ausência de um tipo específico de re-
flexão. A reflexão sobre Deus, no âmbito dos escritos paulinos, somente
pode ser uma participação no ser de Deus, assim como o ser de Deus
somente pode ser conhecido mediante a participação de Deus em nós.
Não há, portanto, em Paulo, qualquer meio de conhecimento de Deus
que não a participação na vida messiânica e a participação do Mes-
sias em nossa vida messiânica a partir de sua inserção autoesvaziada em
nossa vida não-messiânica. Logo, não faz sentido qualificar a divindade
a partir da transcendência que se opõe à imanência. Transcendência e
imanência, em Deus, também pertencem à categoria da indiscernibili-
dade, e são igualmente constitutivas do modo de ser divino.

189
4.1 Deus que elege e chama

190
Duas teologias paulinas recentes dão lugar de destaque ao tema
da eleição. A primeira é a de Udo Schnelle: “Ὁ καλέσας ἡμᾶς (‘aquele que
nos chamou’) torna-se em Paulo um predicado central de Deus (cf. 1Ts
2,12; 5,24; Gl 1,6; 5,8)”188. Podemos concordar em termos genéricos com
essa afirmação, mas é necessário fazer uma correção: o Deus que chama
é também o Deus que escolhe, de modo que a escolha é a potencialidade
do chamado na espaçotemporalidade eterna, e o chamado que é poten-
cialidade da eleição na espaçotemporalidade presente. A segunda é a de
N. T. Wright:

Estou igualmente consciente de que muitos ensaios em ‘teologia pau-


lina’ assumem que o seu tema central, dominante, ou mesmo único,
será a soteriologia e que minha proposta pode parecer ignorar isto e
colocar a teologia paulina em uma direção completamente diferen-
te. Entretanto, como ficará claro, acredito que o tema da ‘eleição’ é a
melhor moldura dentro da qual podemos entender a soteriologia de
Paulo, e que a ‘eleição’, por sua vez, somente é entendida de modo
adequado dentro da moldura mais ampla das crenças a respeito do
Deus único e do futuro prometido (e dentro do problema específico do
mal, que somente emerge à plena luz uma vez que a realidade do Deus
único tenha sido vislumbrada). A soteriologia, portanto, permanece no
centro. Parte da força de minha proposta é, acredito, a clareza que ela
traz aos múltiplos debates que ainda rodeiam a exposição paulina da
salvação, como abelhas em torno de uma colméia.189

A visão de Wright é mais abrangente do que a de Schnelle e


está mais próxima do que considero ser uma descrição adequada do tema
nos escritos paulinos. Todavia, são questionáveis as duas teses básicas de
Wright, a de que a soteriologia está no centro do pensamento paulino, e
a de que somente dentro do arcabouço da eleição é que se pode entender
a soteriologia paulina. Em relação à primeira, conforme já discutido na
introdução deste livro, considero inadequada a defesa e a busca de um
centro da teologia paulina. Em relação à segunda, podemos questionar
pelo menos dois aspectos: (a) se é de fato a eleição que forma tal moldura,
ou se é a fidelidade divina, ou, ainda, se é a conjunção destes dois temas

188  SCHNELLE, Udo. Apostle Paul: His Life and Theology. Grand Rapids: Baker, 2005, p. 514.
189  WRIGHT, op. cit., p. 611.

191
que possibilitaria a leitura mais adequada da soteriologia paulina; e (b) se
é necessária tal moldura, uma vez que não há a soteriologia paulina en-
quanto centro do pensamento do apóstolo.
Como é amplamente reconhecido, a teologia paulina da eleição e
chamado tem suas bases na Escritura e na experiência teológica de Israel.
O cerne da noção bíblica de eleição pode ser descrito da seguinte maneira:

Israel conheceu seu Deus YHWH como ‘YHWH da terra do Egito’


(Os 12,10; 13,4). Conforme é indicado pelo importante preâmbulo
do Decálogo (Ex 20,2; Dt 5,6), esta confissão acerca de YHWH se
refere ao êxodo do Egito e à libertação no mar como a ação divina
decisiva, que conduziu ao estabelecimento de uma comunidade entre
YHWH e Israel, tanto em seus inícios externos como em sua fun-
dação interna.190

Implícita nesta síntese está a crença na fidelidade de YHWH e


sua demanda por igual fidelidade da parte de Israel, tema do último tópico
desta seção. Esta síntese também aponta para o fato de que a linguagem
da eleição na Escritura não se restringe à escolha propriamente dita, mas
abrange o chamado, a ação libertadora e o relacionamento estabelecido
entre YHWH e seus eleitos.
Consequentemente, abordarei esse tema duplo da eleição-cha-
mado em Paulo levando em conta o conjunto semântico a que ele per-
tence, o qual recobre também as temáticas da vontade divina, do plano de
Deus e da predestinação.

4.1.1 O Deus que elege e chama


Iniciarei com duas perícopes que, ao longo da história da teolo-
gia, serviram de base para a reflexão teológica sobre a chamada ordo sa-
lutis situando o pensamento paulino no âmago da visão ontoteológica da
salvação. Em parte, é por isso que essas passagens são o ponto de partida
aqui, para nos permitir uma leitura não-onteoteológica, um tipo de leitura
mais fiel a essas passagens, posto que: (a) são textos celebrativos, ligados à

190  PREUSS, Horst Dietrich. Old Testament Theology, v. 1. Louisville: Westminster John Knox
Press, 1995, p. 40.

192
vida litúrgica das comunidades messiânicas, de modo que devemos lê-los
como expressão da grata fidelidade a Deus das comunidades messiânicas
conforme a ótica de Paulo; e (b) oferecem a visão mais abrangente do
tema nos escritos de Paulo, situando a teologia da eleição-chamado no
campo da fidelidade amorosa de Deus.

Οἴδαμεν δὲ ὅτι τοῖς ἀγαπῶσιν τὸν θεὸν πάντα συνεργεῖ εἰς ἀγαθόν,
τοῖς κατὰ πρόθεσιν κλητοῖς οὖσιν. ὅτι οὓς προέγνω καὶ προώρισεν
συμμόρφους τῆς εἰκόνος τοῦ υἱοῦ αὐτοῦ, εἰς τὸ εἶναι αὐτὸν πρωτότοκον
ἐν πολλοῖς ἀδελφοῖς· οὓς δὲ προώρισεν, τούτους καὶ ἐκάλεσεν· καὶ
οὓς ἐκάλεσεν, τούτους καὶ ἐδικαίωσεν· οὓς δὲ ἐδικαίωσεν, τούτους
καὶ ἐδόξασεν. “Mas sabemos que, para os que amam a Deus, o Espírito
faz com que todas as coisas cooperem para o bem191, àqueles que são
chamados deliberadamente192. Àqueles193 a quem preconheceu e pre-
destinou em conformidade à imagem de seu Filho, a fim de que ele
seja o primogênito entre muitos irmãos, a estes que predestinou, a esses
também chamou; e a estes que chamou, a esses também justificou; e a
estes que justificou, a esses também glorificou” (Rm 8,28-30)194.

Esse parágrafo faz parte de uma perícope que abrange Rm 8,18-39,


cujo tema principal é a atitude diante da incapacidade humana de compreen-
der, em sua totalidade, o “tempo presente” marcado por tribulações, incertezas,
inseguranças. A conclusão do apóstolo é forte:

191  A sentença é problemática, com muitas variantes, indicando a dificuldade de compreensão


mesmo em tempos antigos. O problema básico é o advérbio “tudo” estar no acusativo e no plural,
o que o impede de ser o sujeito do verbo que está no singular. Se procuramos outro sujeito para o
verbo, ou será “Deus”, com a maioria dos que opta por não ver o advérbio como sujeito, ou será o
“Espírito”, com Lutero, Jewett e alguns outros que veem a ação do Espírito aqui em continuidade
a ação do parágrafo anterior (συναντιλαμβάνεται). Sigo essa opção porque me parece a menos
problemática, ou seja, a que mais se ajusta à sintaxe do período.
192  A imensa maioria das traduções acrescenta, aqui, um pronome pessoal inexistente no
texto grego, entendendo a sentença como “de acordo com o seu propósito”. A frase grega (κατὰ
πρόθεσιν), porém, é melhor entendida como adverbial, conforme a tradução acima, ou seja, Deus
chama deliberadamente, de acordo com um plano – o que está em consonância com o uso do grego
para traduzir, na LXX, a palavra “conselho”, ou “plano”, ‘etsah.
193  A conjunção hoti é entendida aqui como “recitativa” e não como explicativa ou consequencial,
um uso relativamente comum, indicando a citação de um texto ou fórmula litúrgica ou credal.
194  Embora não seja possível provar sem sombra de dúvidas, o texto claramente demonstra sinais
de uso litúrgico, seja em celebração batismal, seja em outro momento da liturgia comunitária,
conforme reconhecem os principais comentários a Romanos.

193
Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio
daquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de que nem a morte,
nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do pre-
sente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundida-
de, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus,
que se manifesta no Messias Jesus, nosso Senhor (8,37-39).

Paulo encoraja suas leitoras com a convicção de que o sofrimento


só pode ser devidamente compreendido quando colocado diante do amor de
Deus que criou todas as coisas e irá salvar toda a sua criação com base em seu
amor manifestado no Messias Jesus. Na esfera do amor-fiel divino é possível
colocar o sofrimento na perspectiva correta e não permitir que ele assuma
proporções que inviabilizem a vida no Espírito – entender a sentença nesta
perspectiva impede que ela seja reduzida a mera banalidade “no fim tudo vai
dar certo”. Não se trata aqui de que se resolvam os problemas do cotidia-
no, mas de que mesmo as piores circunstâncias sejam entendidas como parte
do propósito salvífico de Deus. Não se trata de tornar invisíveis as dores do
tempo presente mediante um excesso de visibilidade da futuridade salvífica.
Trata-se, sim, de viver sob o signo da esperança-fiel-amorosa. Para entender a
vida humana no tempo presente não devemos seguir o caminho da sabedoria
humana, que se fia na interpretação do visível pela invisibilidade – do logos, da
divindade etc. É necessário, sim, ler a realidade a partir da manifestabilidade
do invisível amor divino no Messias Jesus.
O parágrafo aqui selecionado forma o cerne conceitual e expli-
cativo da perícope. Dirige-se às pessoas que “amam a Deus”, as quais são,
inevitavelmente, “chamadas segundo o seu propósito”. Para tais pessoas
tudo o que acontece, eventualmente, resultará em bem – o bem é a salva-
ção de toda a criação e não a resolução dos problemas dessa vida. Embora
a temática aqui possa ser entendida ao modo das noções de providência
impessoal195, a linguagem usada por Paulo torna evidente que não estamos

195  Podemos extrair dessas definições uma conclusão inicial segundo a qual o destino se conecta
ao monismo do lógos estoico, manifestando‑se enquanto estrutura que garante a ordem cósmica
mediante o entrelaça­mento das causas que a mantém operante. O destino passa a ser então o
nexus causarum do universo e não mais uma força fatal e cega, a exemplo das Erínias e das Parcas
da mitologia grega. Para os estoicos, o destino se confunde com a razão do mundo, a lei de todas
as coisas regidas e governadas pela Providência. Trata‑se, de acordo com o Pseudo‑Plutarco, da

194
em um mundo regido por leis, mas em um mundo regido por relações
pessoais amorosas e intencionais, um mundo cujo senhor é o Deus amo-
roso que cria e salva toda a sua criação no Messias.
Como podemos saber que Deus faz com que tudo resulte em
bem? Exatamente porque nosso chamado se deu em conformidade com
sua autodeliberação, com o seu plano eterno que envolve tanto a criação
quanto a salvação. Seguindo a ordem textual nos versos 29-30, encon-
tramos: (a) Deus chama pessoas segundo o seu propósito e as coloca em
um relacionamento amoroso consigo; (b) Deus pré-conheceu/predesti-
nou (προέγνω καὶ προώρισεν, que deríamos entender como um único
ato, em função da sintaxe aqui e a ausência do verbo proginosko no verso
30) em conformidade com a imagem do Filho, com a finalidade dele ser
o primogênito dentre muitos irmãos e irmãs; (c) aos que predestinou, a
esses também chamou; (d) aos que chamou, a esses também justificou;
e (e) aos que justificou, a esses também glorificou (todos os verbos dos
quais Deus é sujeito estão no aoristo e podem ser vistos como diferentes
dimensões de um mesmo ato divino). Em um contexto literário é plau-
sível que vejamos aqui uma preocupação em deixar claro aos leitores de
Paulo que a eleição dos gentios não é uma espécie de “segundo plano” de
Deus em reparo da primeira eleição que teria sido malsucedida (a esco-
lha de Israel, tema que reaparece com intensidade nos capítulos 9-11),
mas faz parte do plano de Deus desde sempre. O uso do termo “chama-
dos” liga estes versos a Rm 1,6-7 em que Paulo afirma que os gentios são
chamados para pertencer ao Messias e para a santificação (tema de que
nos ocuparemos mais adiante).
A sintaxe do parágrafo é um tanto quanto forçada (a separação
entre as duas sentenças que identificam os sujeitos do verso 28 “amam a
Deus” e “chamados...” é ocasionada pela necessidade da última sentença
estar ligada com a primeira do verso 29) e deveria ser entendida da se-
guinte forma: o verso 28 apresenta o tema, que é explicado nos versos 29-
30. Ou seja, os versos 29-30 explicam o significado de “chamados delibe-
radamente”, de modo que uma eventual interpretação antropocêntrica do
razão pela qual as coisas passadas foram, as presentes são e as futuras serão (COSTA MATOS,
Andityas S. de M. Destino e liberdade no pensamento estoico greco-romano. In: Revista Filosófica
de Coimbra n. 43, 2013, p. 10).

195
parágrafo é eliminada de antemão – não é o fato de “amarmos a Deus” que
faz com que todas as coisas cooperem para o bem, mas o fato de termos
sido “chamados deliberadamente”. A terminologia usada é tradicional e
sua origem é a concepção judaica de sua relação com o Deus libertador.
No pensamento paulino, tudo que se refere à relação de Deus com Israel
também se refere à relação de Deus com os seguidores do Messias Jesus
– o “Israel de Deus” (Gl 6,14), exceto os detalhes históricos dessa relação.
O chamado “deliberado” de Deus é decomposto nos versos 29-30
em quatro grupos de orações verbais que formam o seguinte quadro: Deus
preconheceu/preorientou, em conformidade com o modo-de-ser do Filho
Jesus, pessoas a quem chamou, justificou e glorificou – com a finalidade
de que o Filho seja o primogênito de uma grande família. Não entendo a
“conformidade com a imagem do Filho” como o objetivo do preconhecer/
predestinar, mas como a esfera em que o preconhecer/predestinar ocorre, de
modo similar ao que encontramos em Efésios (e.g., nos elegeu “nele”), com a
finalidade do Filho ser o primogênito de uma grande família – dessa forma,
não só as tendências de interpretação nacionalista ou antropocêntrica da
eleição são descartadas, mas, também, as noções da predestinação que esta-
belece uma arbitrariedade soberana na escolha divina. A escolha divina em
nada depende do seu eventual resultado na vida das pessoas. O fato de todos
os verbos estarem no aoristo deveria nos fazer evitar uma leitura aqui em
sequência temporal, ao estilo da noção de ordo salutis, mas, ao contrário, ver
nestes versos a descrição de um único ato divino na espaçotemporalidade
divina (da eternidade e não do tempo), o qual orienta o rumo da espaçotem-
poralidade humana (na criação) sob o signo messiânico.
A humanidade foi criada de acordo com o modelo Messias Fi-
lho, criada para viver em um mundo dirigido por Deus, que inclui o seu
chamado para uma vida justa e gloriosa. Uma vez criada “no Filho”, a
direção divina da história da humanidade incorpora a resposta humana
à interpelação divina (chamado), e não deve ser vista de modo fatalista.
Cabe, aqui, uma citação do comentário de Orígenes a Romanos:

mas mesmo que ‘de acordo com propósito’ deva se referir a Deus, isto é,
deles se diz que são chamados de acordo com o propósito de Deus, que
sabe da existência de uma mente piedosa e do desejo de salvação nelas,
mesmo isto não será contrário às coisas que já afirmamos. Deste modo,

196
então, a causa de nossa salvação ou destruição não está na presciência
de Deus; nem a justificação dependerá somente do chamado; nem o
ser glorificado terá sido completamente removido de nosso poder. Pois
mesmo que concebêssemos a presciência de acordo com a compreen-
são popular, não é porque Deus sabe que um evento irá ocorrer que
tal evento ocorre; mas, sim, porque algo irá acontecer é que Deus o
conhece antes de que ocorra.196

É claro que é tentador ver nesses verbos uma sequência temporal


iniciada com a predestinação (na eternidade), passando pelo chamado que
conduz à justificação (no presente), culminando com a glorificação (no
futuro), o que nos daria a segurança de viver em um mundo regido por
uma divindade absolutamente poderosa e soberana – mas isso nos faria
cair nas aporias insolúveis deste tipo de pensamento ontoteológico. O
texto paulino torna desnecessária essa sequencialidade. Usando termos
do Dêutero-Isaías, Paulo está falando do Deus “que sabe o fim desde o
começo”, ou em termos do livro de Jó (que Paulo citará mais tarde em
Romanos), “Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o
seu conselheiro?”. Não precisamos saber como será o fim, nem precisa-
mos resolver os problemas do presente, precisamos apenas amar a Deus
em resposta ao seu amor. É isso que significa ser “salvo em esperança”, é
viver em fidelidade-amorosa ao Deus amor-fiel manifestado no Messias.
A eleição-chamado não nos insere em um mundo de certezas e realiza-
ções, em um presente fechado e discernível, mas em um mundo de fé-
-amor-esperança, uma realidade aberta e indiscernível. Um mundo cuja
espaçotemporalidade não é meramente futura, ou presente, ou passada,
mas abrangente: a fé nos liga à fidelidade de Deus, demonstrada repetidas
vezes no passado, o amor nos liga ao presente em que experimentamos o
amor de Deus em toda e qualquer circunstância e a esperança nos liga ao
futuro em que estaremos para sempre unidos ao Senhor.
Podemos passar à segunda perícope a que nos referimos, Efésios
1,3-14, que amplia e detalha essa celebração credal da vontade de Deus
em relação à sua criação.

196  ORÍGENES. Commentary on the Epistle to the Romans. Books 6–10. Washington: The
Catholic University of America Press, 2002, p. 90.

197
Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor, o Messias Jesus, que nos
abençoou com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais no
Messias, assim como nos escolheu nele, antes da fundação do mundo,
para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e nos predestinando
amorosamente197 para ele, para a adoção de filhos, por meio do Messias
Jesus, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de
sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, no qual te-
mos a libertação, pelo seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a ri-
queza da sua graça, que Deus derramou abundantemente sobre nós, em
toda a sabedoria e prudência, desvendando-nos o mistério da sua vontade,
segundo o seu beneplácito que propusera no Messias, de fazer convergir
nele, na economia da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do
céu como as da terra; no qual fomos também feitos herança, predestinados
segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o con-
selho da sua vontade, a fim de sermos para louvor da sua glória, nós,
os que de antemão esperamos no Messias; no qual também vós, depois
que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, no qual
tendo também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; o qual
é o penhor da nossa herança, até a libertação da sua propriedade, para
louvor da sua glória.

Esta eulógia inicial de Efésios, uma oração de louvor e gratidão


a Deus, oferece uma síntese da teologia paulina da eleição (e, conforme
veremos em capítulo posterior, da espaçotemporalidade paulina). Sua es-
trutura é marcada por termos temporais e espaciais, bem como pela dis-
tinção indiscernível entre judeus e gentios. A temporalidade é marcada
pelas relações entre antes (eternidade “anterior”), agora (época de Paulo,
ou o presente histórico) e depois (eternidade “posterior”). O tempo do
agora, por sua vez, é caracterizado como um de antemão (relativo ao Israel
mosaico) e o agora propriamente dito (relativo ao Israel messiânico e/ou
abraâmico), e é um tempo delimitado pelo depois – plenitude dos tempos.
O tempo do depois é caracterizado pela plenitude dos tempos e pelo tempo
depois da plenitude dos tempos. A espacialidade é marcada pelas relações
entre aqui (a terra, o espaço da vida cotidiana, no agora), no Messias (o
espaço da vida da ’ekklesia agora), regiões celestiais (no Messias ou não-no-
-Messias, na tensão entre o agora e o depois) e o céu (morada de Deus).

197  A expressão en agape pode ser ligada à sentença anterior ou a esta.

198
O aqui-agora é o espaço-tempo da vida humana, sustentado pela tensão
entre aqui-agora; antes-lá (morada de Deus) e depois-lá (indefinido no
texto, mas certamente tem relação com a morada de Deus na eternidade).
A distinção indiscernível entre judeus e gentios é textualizada como “nós,
os que de antemão esperamos no Messias; no qual também vós [...]”, que
faz a conexão entre esta perícope e a discussão em Rm 9-11.
Além de sua estruturação espaçotemporal e étnica, a perícope
também é estruturada trinitariamente: Deus (Pai de nosso Senhor – Mes-
sias Jesus) é o principal agente; o Messias (nosso Senhor) é o segundo ator,
caracterizado não só pelo que faz por nós, mas também pelo que Deus-Pai
faz a ele e com ele; e o Espírito Santo é o terceiro ator, garantia da fide-
lidade de Pai e Filho. Deus-Pai e Jesus são caracterizados como agentes
nas três dimensões espaço-temporais, enquanto o Espírito é agente em
duas dimensões espaço-temporais (aqui-lá, agora-depois), como o ator da
liminaridade – é o Espírito da promessa, é selo e penhor. A glória de Deus é
o alvo das ações de Deus (expressões sublinhadas na tradução), e seu amor
ou graça (dois termos que definem a fidelidade divina) é a paixão e atitude
em que são realizadas as suas ações.
Como nosso foco é a eleição-chamado, não entrarei em detalhes
no tocante à espaçotemporalidade do texto, refletindo imediatamente so-
bre as bênçãos descritas na perícope, estruturadas em quatro conjuntos de
ações divinas, o primeiro tendo o Pai como principal sujeito, o segundo
e o terceiro com o Filho como principal sujeito e o último destacando o
Espírito como principal sujeito:
(a) nos escolheu nele, antes da fundação do mundo, para sermos
santos e irrepreensíveis perante ele; predestinando-nos amorosamente para
ele, para a adoção de filhos, por meio do Messias Jesus, segundo o be-
neplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos
agraciou no Amado;
(b) em quem temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos
pecados, segundo a riqueza da sua graça, que Deus derramou abundan-
temente sobre nós em toda a sabedoria e prudência, desvendando-nos o
mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito que preestabelecera
nele, de fazer convergir no Messias, na dispensação da plenitude dos
tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra;

199
(c) nele, digo, em quem fomos também feitos herança, predes-
tinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o
conselho da sua vontade, a fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os
que de antemão esperamos no Messias;
(d) em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verda-
de, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados
com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança, até
ao resgate da sua propriedade, para o louvor da sua glória.
Sem aprofundarmos os detalhes, podemos alistar algumas carac-
terísticas da teologia da eleição-chamado na perícope. Em primeiro lugar,
é um conceito essencialmente messiânico, note a profusão de termos espa-
ciais messiânicos: nele, perante ele, para ele, por meio do, no Amado, em
quem, nele, no Messias, nele, em quem, no Messias, em quem & nele
(12 termos espaciais e um termo agencial que usa o espaço como forma
de descrição da agência - “por meio de”). Em síntese, tudo que Deus fez e
faz por sua criação inteira é feito nele, por meio dele, perante ele e para ele. O
Messias é a origem, o instrumento, a finalidade e o espaço em que ocorre
toda a vida da criação e, em especial, a vida de quem nele crê. O Espírito
é a concretização da messianidade para os gentios, incorporados aos que
antes esperavam no Messias.
Em segundo lugar, é uma declaração da dádiva, da generosidade
ilimitada de Deus. Quatro termos apontam para o caráter gracioso da ação
divina (um deles, repetido): abençoou; para louvor da glória de sua graça;
segundo o beneplácito de sua vontade, segundo a riqueza da sua graça; se-
gundo o seu beneplácito. Não é possível entender o agir de Deus em relação
à sua criação se o desvincularmos da lógica da dádiva. O que Deus faz por
sua criação é abençoar (fazer o bem, dizer o bem a), não amaldiçoar. O agir
abençoador de Deus, que inclui a eleição, predestinação, redenção etc. tem
sua origem e seu ambiente vital na “riqueza de sua graça”, no seu “beneplá-
cito”. A disposição divina para agir em relação à sua criação é generosa, livre,
graciosa. Não há motivações ocultas, não há busca de recompensas, não há
o estabelecimento de obrigações. É mera dádiva, que gera mera gratidão
– que experimentamos “nas regiões celestiais”, ou seja, de modo conflitivo,
posto que na realidade humana a dádiva, ainda que dádiva, raramente (se é

200
que alguma vez ocorre) é pura. Para deixar bem claro o ambiente da gene-
rosidade divina Paulo enfatiza: para o louvor da glória da sua graça que ele
nos agraciou no amado. Paradoxo: nossa salvação não é realizada para nossa
glória e louvor, mas para a glória e louvor de Deus. Egoísmo divino? Não,
libertação do egocentrismo humano, ao encontrarmos nossa honra não em
nós mesmos, mas em nossa relação com o Senhor.
Finalmente, a eleição-chamado possui abrangência cósmica, en-
globando espaço, tempo e eternidade em um mesmo movimento:
(a) antes da fundação do mundo, na dispensação da plenitude
dos tempos, até ao resgate da sua propriedade. Temos três tempos: o tem-
po anterior à criação, o tempo da plenitude dos tempos, e o tempo entre
esses dois tempos “até ao resgate da sua propriedade”. Não há especulação
sobre a relação entre a eternidade e o tempo histórico, apenas a afirma-
ção de que o tempo vivido pela humanidade na criação divina é o tempo
entre a “eternidade divina”, caracterizada pelo abençoar; e a “plenitude
dos tempos”, caracterizada pela retomada do senhorio do Messias sobre
todas as coisas (celestiais e terrestres). O “tempo eterno” (antes da criação,
depois do fim) está “presente” no tempo presente, uma presençausência
caracterizada pela conflitividade entre o modo de viver não-messiânico e
o messiânico. O tempo é um instante da eternidade, uma pequena dobra
na eternidade, em que o Messias está eternamente presente e ativo como
Filho do Pai e doador do Espírito. Um entretempo, poderíamos dizer, em
que a generosidade de Deus permanece ativamente em busca de todas as
suas criaturas para lhes agraciar com toda sorte de bênção;
(b) o espaço anterior à criação do mundo, caracterizado pela au-
sência de fronteiras e distinções, o espaço da criação, caracterizado por um
espaço anterior à expulsão de Adão e Eva do Jardim, o espaço anterior à
consumação dos tempos, caracterizado pela dominação injusta, que divide
e classifica os espaços humanos e estabelece uma relação de permanen-
te conflito; espaço ao qual o Filho vem esvaziadamente para abrir uma
nova espaçotemporalidade, o espaço messiânico, da liberdade e do fim
da dominação injusta, um espaço limiar que dá uma nova configuração
liminar ao espaçotempo da dominação do pecado; e o espaço posterior à
retomada do senhorio do Messias sobre todas as coisas, em que não have-

201
rá fronteiras entre o espaço divino e o espaço criado e esse não será mais
determinado por fronteiras erigidas injustamente, espaço sem liminarida-
de fronteiriças, apenas liminaridades relacionais, provavelmente marcadas
pela indiscernibilidade.
A teologia paulina da eleição-chamado, consequentemente, re-
tira os fundamentos de uma teologia da história da salvação enquanto
uma história especial, transcendente e paralela à história da criação. Há
uma só história do mundo criado, que se configurou na eternidade e para
a eternidade e que é vivida e concretizada na espaçotemporalidade criada
em sua dupla articulação não-messiânica e messiânica. Ou, nas palavras
de Gutiérrez:

a teologia parece ter evitado, durante muito tempo, uma reflexão sobre
o caráter conflitual da história humana, sobre o enfrentamento entre
pessoas, classes sociais e países. Paulo nos recorda constantemente a
entranha pascoal da existência cristã e de toda a vida humana: a pas-
sagem do homem velho ao homem novo, do pecado à graça, da escra-
vidão à liberdade.198

Essa passagem não pode, portanto, ser interpretada de modo du-


alista, nem de modo reducionista, pois não se trata apenas da salvação
de pessoas, mas da salvação de toda a criação, da realização do propósito
eterno e benéfico de Deus, uma nova criação no Messias, com o Messias
e para o Messias, o Deus-homem.
Semelhantemente, não há base para uma versão radicalmente
apocalíptica da teologia paulina, como uma teologia da intervenção divina
na história, finalizando a velha era e trazendo uma nova era para a his-
tória humana, uma nova era sob o signo da conflitividade entre o já e o
ainda-não. A apocalíptica paulina não pode ser desvinculada da criação e
anexada a uma salvação desistoricizada e transcendentalista199. Também
não podemos pensar a apocalíptica paulina como uma sobredeterminação
da história pelo futuro, pelo juízo final pós-parousia, prolepticamente pre-
sente na ressurreição de Jesus. Assim, embora importante, a contribuição

198  GUTIÉRREZ, Gustavo. Teología de la Liberación. Perspectivas. 7. ed. Salamanca: Sígueme,


1975, p. 66.
199  Neste sentido, a contribuição de Käsemann foi crucial para vincular escatologia e cosmologia,
embora ele mesmo não tenha se livrado da visão ranscendentalista.

202
de Martyn – na linha aberta por Käsemann – à compreensão da apocalíp-
tica paulina precisa ser nuançada.
Segundo Martyn,

o motivo da tríplice crucificação – a de Cristo, a do cosmos e a de


Paulo – reflete o fato de que em toda a carta aos Gálatas o foco da apo-
calíptica paulina não recai sobre a parousia de Cristo, mas sobre a sua
morte. Há referências ao futuro triunfo de Deus (5,5.24; 6,8), mas o
acento recai sobre o advento de Cristo e seu Espírito, e especialmente
sob o aspecto central desse advento: a crucificação de Cristo, o evento
que causou o tempo ser o que ele é mediante nosso deslocamento para
fora do alcance da presente era maligna (1,4). A percepção paulina da
morte de Jesus, então, é tão plenamente apocalíptica como sua espe-
rança pela parousia de Jesus (cf. 1Co 2,8). Consequentemente, o tema
de sua carta aos Gálatas é exatamente um apocalipse, o apocalipse de
Jesus Cristo e, especialmente, o apocalipse de sua cruz.200

De fato, a apocalíptica não se restringe ao futuro triunfo de Deus,


nem à parousia de Jesus, mas também não pode ser tão intrinsecamente
ligada à crucificação do Messias, posto que em Gl 1,4 não é só a crucifica-
ção que está em vista, mas também a ressurreição (nos versos anteriores).
Também não podemos simplesmente reduzir o sentido do tempo apoca-
líptico à noção de revelação (sentido da palavra grega apocalipse). A teo-
logia de Paulo é apocalíptica na medida em que se trata da manifestação
da totalidade do plano de Deus, de seu propósito eterno para a criação,
que se desdobra e concretiza na história do mundo criado mediante a
constante presença liminar de Deus, cujo evento climático é, sim, o even-
to-messiânico – evento, no sentido dado ao termo por Badiou, muito mais
do que um advento, mas jamais uma intervenção externa e a-histórica201.

200  MARTYN, John L. Apocalyptic Antinomies in Paul’s Letter to the Galatians. New
Testament Studies, v. 31, 1985, p. 420-21.
201  Beker é uma das fontes desta interpretação da apocalíptica, embora sua própria versão
padeça dos mesmos problemas verificados em Martyn e outros: “Embora este não seja o lugar
para descrever o caráter geral da apocalíptica, a questão central que a apocalíptica postula é bem
clara: Por que a fidelidade ao Deus da aliança e da Torá é recompensada com perseguição e
sofrimento? A apocalíptica é uma tentativa de vencer a discrepância entre as duras realidades da
vida cotidiana e as promessas de Deus. Embora Paulo modifique amplamente o imaginário e a
[sic] conceptualidade da apocalíptica, seu pensamento é moldado pelos quatro motivos centrais da
apocalíptica judaica: (1) a fidelidade e a vindicação de Deus; (2) a salvação universal do mundo, (3)

203
A apocalíptica paulina tem seu início na criação, não no advento ou na
crucificação do Messias, e seu fim não será a parousia como fim da histó-
ria, mas a reconfiguração da espaçotemporalidade criada em sua relação
com a espaçotemporalidade divina. Essa reconfiguração abrange todas as
dimensões da vida humana, não podendo ser reduzida à dimensão pessoal
ou à puramente religiosa.202
Se não incorremos em leituras do tipo da heilsgeschichte ou da
apocalíptica desistoricizada e acósmica, também não podemos permane-
cer na esfera da leitura ontoteológica. A eleição-chamado é ato divino no
Messias, ou seja, no Deus-esvaziado, de modo que

a estrutura do chamado é precisamente chamar a partir de baixo para


ser o que está além, nos convocar para o que é prometido antecipa-
damente, e nos convocar de volta ao que já foi esquecido há muito.
A frágil força do chamado é algo em relação a que podemos (posse)
ou temos o poder de ignorar – para nosso prejuízo, talvez, mas pode-
mos. O chamado incorpora apenas um poder vocativo – não poder,
puro e simples, mas o poder impotente de uma provocação ou de uma
convocação, de uma solicitação, um poder sedutor – mas não tem um
exército para garantir sua eficácia, e nada nos impedir de fazermos ou-
vidos moucos ao chamado. Ele não tem a pura força de coerção ou de
traduzir o chamado em fato. Ele funciona com o poder da impotência,
não com o poder da fortaleza203.

O Deus que elege-chama é capaz de conviver com a contigên-


cia e arbitrariedade da espaçotemporalidade humana. A eleição-chamado
não transforma a contingência em necessidade, mas a ressignifica como
contingência tornada inoperante pela relação fiel-amorosa entre Deus e

a estrutura dualista do mundo; e (4) a vinda iminente de Deus em glória” (BEKER, J. Christiaan.
The Triumph of God: the essence of Paul’s thought. Minneapolis: Fortress Press, 1990, p. 19).
202  A eleição destas duas correntes deriva de seu posicionamento na história da pesquisa,
conforme lembra Wright: “a oposição aparentemente polar da ‘história da salvação’, que se define
regularmente em antítese a ela, é a recente proposta que, seguindo a liderança de Käsemann, usa a
palavra ‘apocalíptica’. [...] A ênfase apropriada aqui recai sobre a novidade da ação divina nos eventos
do evangelho, o novo desvelamento de coisas previamente não imaginadas, a abertura de olhos
anteriormente cegos às verdades doutra forma invisíveis” (WRIGHT, op. cit., p. 781). A similaridade
e o distanciamento desta leitura em relação a Wright ficam evidentes na descrição acima.
203  CAPUTO, John D. The Weakness of God: A Theology of the Event. Bloomington: Indiana
University Press, 2006, p. 13.

204
seus parceiros humanos. A eleição-chamado não impõe à imanência do
mundo uma transcendência divina ontologicamente transformadora, mas
a ressignifica como imanência aberta, contingencialmente transimanen-
te.204 Paulo celebra a fidelidade divina que mantém a eleição-chamado-
-aliança-promessa em operação mesmo diante da infidelidade de seus
eleitos. A segurança da eleição ou predestinação divina não se baseia na
necessidade do cumprimento da promessa divina independentemente das
circunstâncias do espaçotempo presente. Baseia-se, ao contrário, na capa-
cidade divina em lidar com a nossa impermanência, com a nossa contin-
gente e volúvel fidelidade. Portanto, não se baseia no que vemos, “porque
fomos salvos na esfera da esperança. Ora, esperança que se vê não é espe-
rança; pois o que alguém vê, como o espera? Mas, se esperamos o que não
vemos, com paciência o aguardamos” (Rm 8,24-25).

4.1.2 A eleição-chamado de Deus messianicamente ressignificada


No tópico anterior analisamos a teologia paulina da eleição sob o
ângulo do plano eterno de Deus. Agora cabe-nos a tarefa de dedicar aten-
ção aos aspectos da teologia da eleição que são configurados a partir da
sua ressignificação messiânica. Se na análise anterior as bases veterotesta-
mentárias foram deixadas implícitas, nesta procurarei destacar mais a re-
leitura que Paulo fez da eleição na Escritura. O exame dos textos paulinos
em que aparecem os termos do campo semântico da eleição mostra que
Paulo os usa no mesmo diapasão da tradição canônica judaica. Todavia,
em sua releitura, Paulo deixa fora de sua teologia da eleição as tradições
teológicas que a vinculam a Davi, Jerusalém-Sião (tradição davidida) e ao
sacerdócio (tradições sacerdotais). Paulo prioriza e privilegia as versões
deuteronômica (incluindo o que chamamos de Obra Histórica Deutero-
nomista e as profecias de Oséias e Jeremias) e isaiânica da eleição na sua
204  “Transcendência descreve, em meu vocabulário, o modo como um horizonte de preditibilidade
é transtornado pela vinda do imprevisível. É outra forma de lutar contra o impossível, contra
a possibilidade do impossível, contra seus limites. Em transcendência, as forças distintivas da
imanência são transtornadas, levadas ao limite, sublinhadas, figurativizadas, o que se mostra nas
palavras-limite e nos casos-limite, como Deus e morte, tout autre. É o mundo que nos transcende.
Transcendência é uma categoria do mundo, uma espécie mundana, um modo particular de
transpirar sobre aquilo que é chamado, em metafísica, de o plano de imanência, em virtude do
qual o fluxo da imanência se intensifica e força a si mesmo para a superfície” (CAPUTO, John D.
The Insistence of God. A Theology of Perhaps. Bloomington: Indiana University Press, 2013, p. 52).

205
Escritura, mas as ressignifica messianicamente.
Em Rm 9-11 Paulo apresenta às comunidades romanas sua visão
do lugar de Israel no plano eterno de Deus, destacando a fidelidade de
Deus205 à eleição de seu povo e, seguindo a linha de profetas como Oséias
e Jeremias, analisa a rebeldia de Israel e sua incapacidade de permane-
cer fiel à aliança com YHWH. Não é possível, portanto, compreender
adequadamente Rm 9-11 se o lemos isoladamente de Rm 2,17-3,1 que
aborda o tema da fidelidade divina sob outro ângulo, mas ainda no âm-
bito da identidade de Israel. Em sua releitura messiânica Paulo destaca
que a infidelidade de Israel faz parte da concretização do plano divino na
história da criação, abrindo as portas históricas para a entrada dos gentios
no espaçotempo do povo eleito de Deus. Paulo vê a história da nação de
Israel como uma história de afastamento do propósito divino manifestado
na eleição e chamado de Abraão – abençoar todas as famílias e/ou povos
da terra. É esse propósito da eleição israelita que o Messias vem cumprir
definitivamente, tornando acessível aos gentios a promessa divina a Israel.
A fidelidade de YHWH não é abalada pela aparente rejeição de Israel
e a aceitação dos gentios, porque não se trata de uma mudança de pla-
nos, mas da concretização do plano eterno de Deus. Consequentemente,
a identidade de Israel recebe uma dupla configuração: (a) Israel enquanto
um povo organizado, com sua história, narrada e interpretada teologica-
mente nas Escrituras; e (b) Israel enquanto descendência de Abraão na
promessa, que não se restringe à nação de Israel, mas abrange todas as
pessoas que partilham da mesma fidelidade de Abraão. Como na perícope
anterior, estamos aqui no campo da invisibilidade. O verdadeiro Israel não
é o Israel visível do Templo, sacerdócio, terra, rei, lei e sua obediência. O
verdadeiro Israel sempre foi o Israel invisível, o Israel sem-terra, sem-rei,
sem-Templo.
Se alguns textos isolados de suas cartas poderiam elicitar uma
ideia de supersessionismo, Rm 9-11 deixa claro que Paulo não pensa em
uma religião nova (Igreja Cristã) suplantando e substituindo uma arcaica
e ultrapassada ( Judaísmo). De fato, o foco da teologia da eleição-chamado

205  “Assim, a questão teológica fundamental proposta em Rm 9-11 não é nada menos que Deus
ou, para ser mais preciso, a fidelidade de Deus” (DUNN, James. D. G. A Teologia do Apóstolo Paulo.
São Paulo: Paulus, 2003, p. 571).

206
em Paulo não está em quem recebe o chamado, ou em quem são os eleitos,
mas, sim, a fidelidade amorosa do Deus que elege e chama. Quando per-
cebemos esse foco, as discussões sobre a eventual arbitrariedade de Deus e
a consequente noção de dupla predestinação deixam de ter fundamentação
e validade. Rm 9,19-24 não trata, portanto, do destino eterno de pessoas,
mas da configuração histórica do plano eterno de Deus em relação a Israel:

Tu, porém, me dirás: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais re-
sistiu à sua vontade? Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?
Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste
assim? Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro
fazer um vaso para honra e outro, para desonra? Que diremos, pois, se
Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou
com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a
fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos
de misericórdia, que para glória preparou de antemão, os quais somos
nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também
dentre os gentios?206

O foco histórico da teologia da eleição-chamado de Paulo rea-


parece em 1Co 1,27s: “pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do
mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo
para envergonhar as fortes, e Deus escolheu as coisas humildes do mundo,
e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são” –
um texto que claramente oferece uma releitura de Dt 7,7-8:

YHWH não se afeiçoou de vós, nem vos escolheu porque éreis mais
numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os po-
vos, mas porque YHWH vos ama e, para guardar o juramento que fi-
zera a vossos pais, YHWH vos tirou com mão poderosa e vos resgatou
da casa da servidão, do poder de Faraó, rei do Egito.

206  Esta visão teológica é retomada e ampliada em Efésios. Na eulógia já citada, está presente
no movimento das bênçãos divinas do destinatário “nós” para “vós”, e em 2,11-22 se configura
como a fundação de uma nova humanidade constituída pela aproximação dos gentios a Israel.
Incidentalmente, esta percepção desqualifica um dos argumentos contra a autoria paulina de
Efésios – que nos escritos “autênticos” não há ideia de uma igreja “universal”, mas só de igrejas
locais. Esse argumento é anacrônico e reducionista. Anacrônico, porque não há em Paulo tal ideia
de “Igreja”, e reducionista porque não enxerga a noção de povo de Deus em Paulo, mas a reduz ao
sentido local da ekklesia nas aberturas das cartas.

207
A eleição divina de uma pessoa, ou de um povo é um ato liber-
tador que concretiza historicamente o plano eterno de Deus, na medida
em que a ação salvífica de Deus não anula a historicidade nem a partici-
pação humana (sem apelo a, nem medo de uma concepção sinergista de
salvação). A eleição torna inoperantes as classificações e divisões causadas
pelo pecado, retira a visibilidade das distinções classificatórias e instaura a
invisibilidade daquelas pessoas que não são.
É a partir desse foco que podemos entender o propósito da eleição-
-chamado do povo de Deus como a santidade, presente em Ef 1,4: “assim
como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e
irrepreensíveis perante ele” (Ef 1,4). A comunidade é chamada para ser povo
de Deus, para viver em relação com o Deus santo. Aqui temos uma releitura
de textos levíticos: Lv 19,2 “Fala a toda a congregação dos filhos de Israel
e dize-lhes: Santos sereis, porque eu, o SENHOR, vosso Deus, sou santo”;
20,7 “Portanto, santificai-vos e sede santos, pois eu sou o SENHOR, vosso
Deus” e 20,26 “Ser-me-eis santos, porque eu, o SENHOR, sou santo e
separei-vos dos povos, para serdes meus”. Noção similar se encontra em
Romanos e 1 Coríntios, mas com uma nuança que deve ser destacada: “a
todos os amados de Deus, que estais em Roma, chamados santos (κλητοῖς
ἁγίοις), graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor
Jesus Cristo” (Rm 1,7); “à igreja de Deus que está em Corinto, aos santi-
ficados em Cristo Jesus, chamados santos (κλητοῖς ἁγίοις), com todos os
que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor
deles e nosso” (1Co 1,2), que corresponde a ser chamado para pertencer ao
Messias: “de cujo número sois também vós, chamados de Jesus Cristo (κλητοὶ
Ἰησοῦ Χριστοῦ)” (Rm 1,6). Nestes versos, Paulo relê Dt 7,6 (que propo-
sitadamente deixei de citar acima): “Porque tu és povo santo a YHWH,
teu Deus; YHWH, teu Deus, te escolheu, para que lhe fosses o seu povo
próprio, de todos os povos que há sobre a terra”. A santidade não é apenas
o alvo da eleição, mas o modo da eleição e o modo de ser do eleito. A san-
tidade na qual e para a qual somos chamados é a pertença ao Messias Jesus
e se concretiza no estilo de vida messiânico que manifesta no espaçotempo
presente o propósito eterno e a santidade do próprio Deus.
Nas cartas aos Tessalonicenses, a linguagem usada não é a da
santificação, mas a mesma ideia está presente: a comunidade messiâni-

208
ca composta por gentios participa da eleição de Israel, apresentada de
modo absoluto em 1Ts 1,4 “reconhecendo, irmãos, amados de Deus, a
vossa eleição”. Eleição cuja finalidade é a salvação (a participação na glória
do Messias Jesus), e cujo processo histórico e existencial é articulado pela
pregação do Evangelho e pela santificação do Espírito, – devemos notar
aqui a articulação temporal do passado-presente-futuro (incluindo a vida
pós-parousia).

entretanto, devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados
pelo Senhor, porque Deus vos escolheu como primícias para a salva-
ção, pela santificação do Espírito e fé na verdade, para o que também
vos chamou mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de
nosso Senhor, o Messias Jesus (2Ts 2,13-14).

Uma série de textos amplia a terminologia desse aspecto da te-


ologia da eleição-chamado: “fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à co-
munhão de seu Filho, o Messias Jesus, nosso Senhor” (1Co 1,9), que es-
tabelece como propósito do chamado a participação no Messias; “porque
vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade
para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor”
(Gl 5,13), que define o propósito do chamado como a liberdade messi-
ânica; e duas vezes mais em 1 Tessalonicenses: “exortamos, consolamos
e admoestamos, para viverdes por modo digno de Deus, que vos chama
para o seu reino e glória” (1,2) e “porquanto Deus não nos chamou para
a impureza, e sim para a santificação” (4,7). Em Cl 3,15 encontramos um
uso peculiar do verbo, mesclando a situação específica da comunidade à
vocação messiânica em sentido mais amplo: “seja a paz de Cristo o árbitro
em vosso coração, à qual, também, fostes chamados em um só corpo; e
sede agradecidos” (Cl 3,15).
O chamado também se relaciona com a ideia de vocação, e en-
contramos esse vínculo em três tipos de textos. No primeiro, Paulo é cha-
mado apóstolo, ou seja, vê a sua identidade como seguidor do Messias Jesus
enquanto apóstolo – enviado para anunciar as boas novas e representar, em
seu testemunho, aquele que o enviou – Rm 1,1 e 1Co 11 nos quais temos
a construção chamado apóstolo: o apostolado como finalidade, como meio

209
e como identidade do vocacionado (ver, também, Gl 1,5 e 1Co 15,9). No
segundo, em Efésios 4,1.4, o chamado/vocação é a identidade do povo de
Deus, o padrão a que as comunidades messiânicas devem estar à altura:
“rogo-vos, pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno
da vocação a que fostes chamados” (4,1) e: “há somente um corpo e um
Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa
vocação” (4,4), que destaca o caráter liminar da vocação.
O terceiro tipo está em 1Co 7,17-24:

De qualquer modo, assim como o Senhor distribuiu a cada um, no


modo como Deus tem chamado a cada um, dessa maneira viva. É as-
sim que ordeno em todas as comunidades. Foi alguém chamado estan-
do circuncidado? Não desfaça a circuncisão. Tem sido alguém chama-
do, estando incircunciso? Não seja circuncidado. A circuncisão nada
é e a incircuncisão nada é; apenas o cumprimento dos mandamentos
de Deus. Cada um na vocação em que foi chamado, nela permaneça.
Foste chamado escravo? Não te preocupes com isso; mas, mesmo que
possas tornar-te livre, use-a207. Porque o que foi chamado escravo, no
Senhor é liberto, é do Senhor; semelhantemente, o que foi chamado
livre, é escravo do Messias. Fostes comprados por um bom preço; não
vos torneis escravos de homens. Cada um, no que foi chamado, irmãos,
nisto permaneça diante de Deus.

A resposta de Paulo às questões conjugais e de sexualidade feitas


pelos coríntios (7,1-16) lhe deu a oportunidade para apresentar um prin-
cípio teológico organizador da existência e da identidade como seguidores
do Messias. Esse princípio teológico, por sua vez, fundamenta a resposta
de Paulo à pergunta sobre “as virgens” (7,25-40).208 A estrutura da pe-
rícope é quiástica concêntrica, dominada pela frase “na vocação em que
foi chamado” (no centro, verso 20, sendo que a perícope inicia com uma

207  A tradução aqui entende a relação de ’ei e mallon como uma oração condicional subordinada
ao imperativo xresai, cujo objeto é a condição de escravo. Entendo como basicamente correta
a interpretação de Thiselton, que discute com algum detalhe as opções complexas de tradução
e interpretação desta sentença: THISELTON, Anthony C. The First Epistle to the Corinthians:
A Commentary on the Greek Text (New International Greek Testament Commentary). Grand
Rapids: Eerdmans, 2000, p. 544ss.
208  Estruturalmente, a perícope aqui estudada está no centro de um quiasmo com as duas
perícopes sobre casamento e virgindade nas molduras.

210
forma diferente desta frase: “assim como cada um tem sido chamado por
Deus” e se encerra com outra forma diferente da mesma “no que foi cha-
mado”). O centro do quiasmo indica que o tema da vocação é fundamen-
tal, sendo que o tema é repetido nas duas partes da moldura do quiasmo e
explicado nas seções internas do mesmo mediante exemplificação – duas
situações identitárias contrárias: a da circuncisão ou incircuncisão, a da
escravidão ou liberdade. No conjunto, a perícope trabalha com o jogo de
palavras entre o substantivo klesis e o verbo kaleo.
Aqui, klesis é equivalente ao estado sociocultural da pessoa, e é
discutida sob o signo das lógicas político-culturais da honra, subsumida na
lógica da patriarquia e da classificação. Em jogo está a questão da pertença
e, consequentemente, da identidade. O capítulo inicia com uma questão
dos coríntios sobre a “pertença” no casamento, que Paulo aproveita para
tratar da questão da honra (ou identidade) em sentido amplo. Na resposta
à questão sobre o casamento, Paulo subverte a lógica patriarcal, estabele-
cendo a mutualidade nas relações conjugais. Na apresentação do princípio
geral, o apóstolo subverte a lógica da patriarquia (a da honra subsumida)
e da classificação, indicando que, seja qual for a condição sociocultural,
quem segue ao Messias pertence ao Messias, e seu valor não é determi-
nado pelo status que ocupa nas relações hierárquicas da sociedade ou nos
espaços classificatórios da humanidade.209
Agamben descreve bem o alcance geral do chamado em Paulo
(embora sua explicação, ao se basear no termo klesis, deixa de perceber
que nesta perícope não é a klesis, mas o ser chamado – verbo kaleo – que
determina a relação com o evento messiânico):

klesis indica a transformação particular que todo estado jurídico e toda


condição mundana experimentam ao ser colocados em relação com o
evento messiânico. Portanto, não se trata aqui da indiferença escato-
lógica, mas da mutação, quase da mudança íntima de cada condição
humana em virtude de ter sido ‘chamada’210.

209  Os três exemplos concretos aqui referidos: casamento, circuncisão, escravidão são os mesmos
de Gl 3,28.
210  AGAMBEN, Giorgio. El tiempo que resta – Comentario a la carta a los Romanos. Madrid:
Trotta, 2006, p. 32.

211
O próprio Paulo experimentou essa mudança. Em 1Co 1,1 e
Rm 1,1 ele usa o particípio verbal em relação a si mesmo: “Paulo, escravo
do Messias Jesus, chamado apóstolo, separado para o evangelho de Deus”
(Rm 1,1) e “Paulo, chamado apóstolo do Messias Jesus, pela vontade de
Deus” (1Co 1,1).
O chamado divino, no Messias, portanto, gera uma mudança,
mas não apenas de status, e, sim, da espaçotemporalidade em quem o
atende e recebe mediante a fidelidade, sendo, assim, incorporado no Mes-
sias. O que se transforma é o plano da imanência, cuja visibilidade é tor-
nada inoperante pela invisibilidade da eleição-chamado divino. A pessoa
chamada e incorporada no Messias se torna participante do plano eterno
de Deus concretizado na espaçotemporalidade messiânica no presente.
Até que ponto essa mudança afeta as relações sociais concretas da pessoa?
A resposta a esta pergunta depende diretamente de nossa compreensão da
espaçotemporalidade messiânica. Boa parte dos intérpretes vê na discus-
são sobre o escravo uma “exceção” à regra estabelecida ao longo do capí-
tulo – “permaneça”. A regra valeria para todos, mas não para um escravo,
que poderia aproveitar a chance de se tornar livre. No pano de fundo
dessa interpretação está a visão ontoteológica – na vocação messiânica a
transcendência invade a imanência e a transforma. De outra forma, presu-
me-se, teríamos aqui uma noção politicamente conservadora da pertença
ao Messias, uma noção que afirmaria a permanência das relações sociais
enquanto tais na história.
A vocação messiânica, porém, não anula a condição social ante-
cedente, nem a identidade prévia, mas as reveste de uma nova forma, de
um novo molde, de um novo estilo de vida – a imanência é transformada
em transimanência, sem perder as suas características contingentes. O mas
da identidade messiânica também pode ser visto no como se não de 1Co
7,29-31:

Isto, porém, vos digo, irmãos: o tempo se abrevia; o que resta é que não só
os casados sejam como se o não fossem; mas também os que choram, como
se não chorassem; e os que se alegram, como se não se alegrassem; e os que
compram, como se nada possuíssem; e os que se utilizam do mundo, como
se dele não usassem; porque a forma (sxema) deste mundo passa.

212
Viver messianicamente no mundo torna inoperantes todas as
“identidades” e “pertenças”, incluindo as étnico-religiosas (circuncisão ou
incircuncisão) e as sócio-políticas (escravidão ou liberdade). O chamado
de Deus no Messias inaugura a permanente tensão vocacional de ser o
que ainda não é, não deixando de ser aquilo que ainda é – a vida na in-
visibilidade do visível. Não se trata de indiferença, mas de relativizar a
nossa condição no espaçotempo presente. Não se trata de “mudar ou não
mudar” – as condições históricas são modificadas em todo o tempo da era
presente. A questão é: como transformar, messianicamente, a condição
humana na era presente? Quem participa da vitória messiânica torna-se,
sim, agente de mudanças, mas não sob as mesmas condições da mudança
na era presente (ou seja, não se trata de simplesmente inverter a situação
“atual”, há que se modificar messianicamente radicalmente as relações).
O princípio subjacente à compreensão paulina da condição hu-
mana é ainda mais radical do que a noção de que o Messias viria trans-
formar a realidade social, ou dar legitimidade a um tipo específico de ide-
ologia ou utopia social. De fato, para Paulo, se somos o que somos, se
vivemos da forma como vivemos, isso ocorre porque Deus, somente, é o
Senhor de toda a criação. O problema não é se Deus irá mudar ou não as
estruturas sociais, mas o de reconhecer que Deus é o Senhor em todas as
circunstâncias (princípio que também subjaz à exortação de Paulo em Rm
13,1-7). Com esse princípio, Paulo subverte a lógica da dominação – não
é César o senhor de todo o mundo, mas apenas YHWH, o Deus de Israel.
A partir deste princípio, Paulo estabelece uma analogia: o Israel infiel a
Deus perdeu a terra e está na condição de exilado, assim também a huma-
nidade infiel vive na condição de exilada. Essa condição de exílio, porém,
pertence à “era presente” e não à “espaçotemporalidade messiânica”. Nela,
os poderes da era presente já foram tornados inoperantes e uma nova
vida pode ser vivida, um futuro pode, de fato, ser construído – mesmo no
espaçotempo da escravidão humana ao pecado, à carne, à lei e ao pecado.
Consequentemente, o que importa não é “mudar” ou “não-mu-
dar” a condição (klesis) da era presente, mas viver na era presente de modo
messiânico. O espaçotempo messiânico relativiza todas as identidades e es-
truturas do espaçotempo presente não-messiânico. Enfim, devemos ler esta

213
perícope como uma especificação do princípio geral presente em 1Co 1,18-
31. Assim, por exemplo:

Paulo reitera o princípio orientador básico: ‘cada um permaneça na vocação


em que foi chamado’. Eles não devem alterar suas circunstâncias a partir
de uma necessidade de que tal mudança é necessária para melhorar o seu
relacionamento com Deus. Quando ele lhes pede, em 1,26-27, para consi-
derarem seu chamado, ele lhes lembra de que não são muitos os sábios nos
padrões humanos, nem os poderosos, nem os de nobre nascimento. Deus
os escolheu como eles eram: os tolos para envergonhar os sábios, os fracos
para envergonhar os fortes. O chamado de Deus não gira ao redor do seu
valor conforme calculado por critérios humanos, mas chegou a eles base-
ado apenas nos propósitos e na graça de Deus. Consequentemente, seria
para descrédito de Deus que eles tentassem se tornar sábios, poderosos ou
de nobre nascimento, porque tal esforço revela que eles entendem essas
coisas como mais importantes do que a graça de Deus.211

Paulo permanece no campo da tradição judaica sobre a elei-


ção: o seu foco é o Deus que elege Israel e permanece fiel à eleição,
concretizando-a mediante a libertação e a aliança. Se é verdade que a
eleição-chamado define a identidade do povo de Deus, o faz porque é
expressão da identidade do próprio Deus: fielmente amoroso criador e
libertador de seu povo. Mas Paulo não é mais o Saulo zeloso, um crente
fundamentalista que experimentava a eleição como certeza radical de
sua própria verdade e justiça. O pequeno Saulo pratica uma permanên-
cia desconstrutiva, ressignificando messianicamente a tradição – Deus
não mais circunscrito ao Israel visível, mas Deus de toda a criação; Deus
não mais libertador apenas de Israel, mas de todos os povos sob a domi-
nação injusta; Deus não mais circunscrito ao monte Sinai, mas teofani-
camente presente na planície desértica em que habitou o Messias entre
nós, como um de nós.
Finalmente, como transição para a seção sobre o Deus que ama
fielmente, devemos notar a declaração explícita da fidelidade de Deus no

211  GARLAND, David E. 1 Corinthians. Grand Rapids: Baker, 2003, posição 392 [edição
eletrônica de 2013]. Assim, também FITZMYER, Joseph A. First Corinthians. A New Translation
with Introduction and Commentary (Anchor Yale Bible Commentary). New Haven: Yale
University Press, 2008, p. 305-306.

214
âmbito da eleição-chamado em dois versos: “fiel é Deus, pelo qual fostes
chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1Co 1,9)
e “fiel é o que vos chama, o qual também o fará” (1Ts 5,24). A fidelidade
de Deus faz a conexão entre passado, presente e futuro; faz também a
conexão entre eternidade e tempo, entre as espaçotemporalidades eterno-
-divina, presente-criacional, divino-humana-messiânica.

215
4.2 Deus glorioso

216
Assim como os temas da eleição e fidelidade foram discutidos em
paralelismo, também os temas da glória e poder de Deus serão discutidos
paralelamente. A primeira razão dessa estrutura vem da Escritura usada
por Paulo e dos próprios escritos de Paulo, em que poder e glória jamais se
separam, embora não sejam idênticos. A segunda razão vem do contexto
dos escritos de Paulo no qual esses dois temas possuem uma forte conexão
mediante a dimensão da honra ou dignidade atribuída a uma pessoa – o rei
ou os governantes, em geral, são as pessoas cuja glória é a mais elevada e
fornecem o critério para a construção de uma hierarquia da honra e glória.
A terceira razão vem da própria estrutura do pensamento político do Oci-
dente, marcada até hoje pela relação indissolúvel entre poder e glória, como
demonstra Agamben:

identificar na Glória o arcano central do poder e interrogar o nexo in-


dissolúvel que a liga ao governo e à oikonomia parecerá, a alguns, uma
operação obsoleta. Todavia, um dos resultados de nossa investigação tem
sido, exatamente, notar que a função de aclamações e Glória, em sua
forma moderna de opinião pública e consenso, ainda está no centro dos
dispositivos políticos das democracias contemporâneas.212

Por que intercalar a discussão dos temas gêmeos: eleição-chama-


do e fidelidade com a discussão sobre outros temas gêmeos, glória-poder?
Em primeiro lugar, para manifestar a lógica repetitiva (paralelismo) da
cultura israelita antiga, que marca todos os escritos bíblicos, inclusive os
de Paulo, e que normalmente não é destacada na pesquisa exegético-teo-
lógica. Em segundo, para formar um quadro abrangente do tema “Deus”
nos escritos de Paulo, que não pode ser adequadamente compreendido se
focamos em apenas um ou outro de seus subtemas. Nos escritos de Paulo,
por exemplo, o vínculo entre o primeiro e o segundo par de temas aqui
estudados é explícito na eulógia de Ef 1,3-14, três vezes presente neste
breve e rico parágrafo: “para louvor da glória de sua graça” (verso 6); “para
louvor da sua glória” (verso 12); e “para louvor da sua glória” (verso 14). Já
o vínculo entre poder e glória é evidente em 1Ts 2,12: “exortamos, con-

212  AGAMBEN, Giorgio. Il regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell’economia e del
governo. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2007, p. 10.

217
solamos e admoestamos, para viverdes por modo digno de Deus, que vos
chama para o seu reino e glória”, ou em 2Ts 1,9 “Estes sofrerão penalidade
de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória da sua força”.
Assim como não é possível falar de Deus nos escritos paulinos sem reco-
nhecer a pluriunidade de Pai, Filho e Espírito, não é possível falar no ser
de Deus sem reconhecer a organicidade de suas paixões e atitudes: amor,
graça, justiça, ira, fidelidade, compaixão, potência, força, glória etc.

4.2.1 A Glória Divina


Também no tocante à glória divina a teologia de Paulo é uma
releitura da tradição teológica israelita. Nas Escrituras do antigo Israel a
glória é uma das características fundamentais da sua noção de Deus. A
importância sociocultural dessa noção está em sua correlação indissolúvel
com a temática da honra – um dos fatores centrais das culturas do Medi-
terrâneo na Antiguidade. A afirmação da glória de YHWH correspondia,
portanto, à afirmação de sua exclusividade como Deus de Israel e de sua
soberania sobre todas as coisas. Em relação à exclusividade (a forma pe-
culiar do que se convencionou chamar de monoteísmo israelita), dois textos
de Isaías são determinantes: “Eu sou YHWH, este é o meu nome! Não
darei a outro a minha glória nem a imagens o meu louvor. Vejam! As pro-
fecias antigas aconteceram, e novas eu anuncio; antes de surgirem, eu as
declaro a vocês” (42,8-9) e

Por amor do meu próprio nome eu adio a minha ira; por amor de meu
louvor eu a contive, para que você não fosse eliminado. Veja, eu refinei
você, embora não como prata; eu o provei na fornalha da aflição. Por
amor de mim mesmo, por amor de mim mesmo, eu faço isso. Como
posso permitir que eu mesmo seja difamado? Não darei minha glória
a nenhum outro (48,9-11).213

213  Estes versos são claramente dependentes de Ezequiel: “Tive consideração pelo meu santo
nome, o qual a nação de Israel profanou entre as nações para onde tinha ido. Por isso, diga à nação
de Israel: Assim diz o Soberano, YHWH: Não é por sua causa, ó nação de Israel, que farei essas
coisas, mas por causa do meu santo nome, que vocês profanaram entre as nações para onde foram.
Mostrarei a santidade do meu santo nome, que foi profanado entre as nações, o nome que vocês
profanaram no meio delas. Então as nações saberão que eu sou YHWH, palavra do Soberano,
YHWH, quando eu me mostrar santo por meio de vocês diante dos olhos delas” (36,21-23; cp.
Ez 20,8-9; 22,17-22).

218
O primeiro texto declara a exclusividade de YHWH, manifesta
na negação da doação de sua glória/honra a outros deuses, que equivale
a afirmar que os “outros” não são “deuses”, mas ídolos, o que é confirma-
do mediante a distinção, típica do Segundo Isaías, entre YHWH e os
deuses das nações, mediante a qual YHWH anuncia o futuro antes que
ele sobrevenha. No segundo texto, a infidelidade de Israel é motivo para
desonrar a YHWH, porém, ele não permite que tal desonra ocorra. Por
amor ao seu próprio nome (reputação), YHWH não destrói Israel, mas
mantém uma parte da nação viva a fim de demonstrar a todos os povos
que ele é YHWH, o libertador fiel, que escolheu Israel e se mantém fiel
ao seu povo, apesar da infidelidade desse. A exclusividade de YHWH está
ligada ao seu caráter libertador – somente YHWH, dentre todos os deu-
ses, é libertador, portanto, somente a Ele Israel deve sua fidelidade. Assim,
praticar a injustiça e a infidelidade correspondem a desonrar o nome de
YHWH e acarreta no juízo de Israel.
O segundo tema, a soberania global de YHWH, é celebrado
em vários Salmos, em particular nos Salmos 29 e 24 que enfatizam o
fato de que YHWH, como Criador, é Senhor de todas as coisas e, por
isso, digno de louvor e glorificação:

Atribuam a YHWH, ó seres celestiais, atribuam a YHWH glória e


força. Atribuam a YHWH a glória que o seu nome merece; adorem
YHWH no esplendor do seu santuário. A voz de YHWH ressoa sobre
as águas; o Deus da glória troveja, YHWH troveja sobre as muitas
águas. A voz de YHWH é poderosa; a voz de YHWH é majestosa.
A voz de YHWH quebra os cedros; YHWH despedaça os cedros do
Líbano. Ele faz o Líbano saltar como bezerro, o Siriom como novilho
selvagem. A voz de YHWH corta os céus com raios flamejantes. A
voz de YHWH faz tremer o deserto; YHWH faz tremer o deserto de
Cades. A voz de YHWH retorce os carvalhos e despe as florestas. E no
seu templo todos clamam: ‘Glória!’ YHWH assentou-se soberano so-
bre o Dilúvio; YHWH reina soberano para sempre. YHWH dá força
ao seu povo; YHWH dá a seu povo a bênção da paz.

A linguagem do Salmo polemiza com os relatos mesopotâmi-


cos da criação e do dilúvio, destacando a exclusividade de YHWH e

219
sua ação “solitária” na criação e manutenção do mundo contra todas as
forças da destruição. Semelhantemente, a menção ao deserto é reminis-
cente do êxodo do Egito e da passagem pelo Mar, de modo que criação
e libertação são reunidas na celebração do Deus glorioso. Criador e li-
bertador de Israel, YHWH é celebrado como o soberano que sustenta
seu povo e lhe abençoa com a paz (harmonia e bem-estar).
Outro componente da glória divina na Escritura de Israel é a sua
presença no Templo para ser glorificado pelo seu povo. Essa dimensão do
conceito é preponderante na teologia sacerdotal do Pentateuco (embora,
é claro, Paulo não fizesse tal distinção) e em Ezequiel. Neste profeta, o
tema da desonra do nome de YHWH mediante a infidelidade de Judá
é destacado, a ponto de a glória de YHWH ser personificada na prega-
ção ezequielina, descrita como abandonando e retornando ao Templo de
Jerusalém (ver Ez 8-11; 43-44). Não só no Templo, porém, a glória de
YHWH se estende por toda a terra de Israel e por todas as terras: “Sê
exaltado, ó Deus, acima dos céus! Sobre toda a terra esteja a tua glória!” (Sl
57,6) e “E proclamavam uns aos outros: Santo, santo, santo é YHWH dos
Exércitos, a terra inteira está cheia da sua glória” (Is 6,3). No Sl 97,6 cele-
bra-se a presença da glória de YHWH em todas as terras: “Os montes se
derretem como cera diante de YHWH, diante do Rei de toda a terra. Os
céus proclamam a sua justiça, e todos os povos contemplam a sua glória”.
Nestes versos, a glória de YHWH é celebrada em sua polissemia: a honra
de YHWH, sua grandeza e majestade, sua presença entre o seu povo, sua
soberania sobre Israel, sua santidade e sua ação justa e libertadora.
É, em especial, a dimensão libertadora da noção da glória de
YHWH na Escritura que será utilizada e ressignificada messianicamente
por Paulo. Um texto que era usado nas comunidades messiânicas antigas
é importante aqui:

Uma voz clama: Preparem no deserto preparem o caminho para YHWH;


façam no deserto um caminho reto para o nosso Deus. Todos os vales se-
rão levantados, todos os montes e colinas serão aplanados; os terrenos
acidentados se tornarão planos; as escarpas serão niveladas. A glória de
YHWH será revelada, e, juntos, todos a verão. Pois é YHWH quem
fala (Is 40,3-5).

220
Aqui, no Prólogo do Livro da Consolação (Is 40-55), o novo
êxodo é anunciado: YHWH irá libertar o seu povo do cativeiro babilônico
e esse ato libertador revelará a sua glória a todas as pessoas. A linguagem
desse parágrafo não só é reminiscente do êxodo egípcio, mas também está
em relação polêmica com a descrição da procissão de Marduk em sua
entrada triunfal na cidade. YHWW também passará por um caminho
preparado exclusivamente para Ele, mas este caminho levará Judá, por
meio do deserto, de volta para sua terra. Em Hc 2,12-14 a esperança da
libertação é contraposta à violência dos conquistadores – conhecer a glória
de YHWH equivale a conhecer a sua salvação, a libertação de Israel e de
todos os povos sob dominação.

Ai daquele que edifica a cidade com sangue e a fundamenta com ini-


quidade! Não vem de YHWH dos Exércitos que as nações labutem
para o fogo e os povos se fatiguem em vão? Pois a terra se encherá do
conhecimento da glória de YHWH, como as águas cobrem o mar.

Ideia similar já está presente em Is 11,9-10, que conjuga o co-


nhecimento de Deus com a glória de Deus:

Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, porque
a terra se encherá do conhecimento de YHWH, como as águas co-
brem o mar. Naquele dia, recorrerão as nações à raiz de Jessé que está
posta por estandarte dos povos; a glória lhe será a morada.

Outros textos sobre a esperança na gloriosa libertação de YHWH,


provavelmente usados por Paulo em sua reflexão, são:
(a) Is 59,19-21:

Temerão, pois, o nome de YHWH desde o poente e a sua glória, des-


de o nascer do sol; pois virá como torrente impetuosa, impelida pelo
Espírito de YHWH. Virá o Redentor a Sião e aos de Jacó que se con-
verterem, oráculo de YHWH. Quanto a mim, esta é a minha aliança
com eles, oráculo de YHWH: o meu Espírito, que está sobre ti, e as
minhas palavras, que pus na tua boca, não se apartarão dela, nem da
de teus filhos, nem da dos filhos de teus filhos, não se apartarão desde
agora e para todo o sempre, oráculos e YHWH.

221
(b) Is 60,1-2:

Dispõe-te, resplandece, porque vem a tua luz, e a glória de YHWH


nasce sobre ti. Porque eis que as trevas cobrem a terra, e a escuridão,
os povos; mas sobre ti aparece resplendente YHWH, e a sua glória se
vê sobre ti. As nações se encaminham para a tua luz, e os reis, para o
resplendor que te nasceu” (cp. Is 58,8 que relê a presença da glória de
YHWH na travessia do deserto).

(c) Is 62,1-3:

Por amor de Sião, me não calarei e, por amor de Jerusalém, não me


aquietarei, até que saia a sua justiça como um resplendor, e a sua sal-
vação, como uma tocha acesa. As nações verão a tua justiça, e todos os
reis, a tua glória; e serás chamada por um nome novo, que a boca de
YHWH designará. Serás uma coroa de glória na mão de YHWH, um
diadema real na mão do teu Deus;

(d) Is 66,18-19:

Porque conheço as suas obras e os seus pensamentos e venho para ajun-


tar todas as nações e línguas; elas virão e contemplarão a minha glória.
Porei entre elas um sinal e alguns dos que foram salvos enviarei às na-
ções, a Társis, Pul e Lude, que atiram com o arco, a Tubal e Javã, até
às terras do mar mais remotas, que jamais ouviram falar de mim, nem
viram a minha glória; eles anunciarão entre as nações a minha glória”.

Nestes oráculos isaiânicos uma série de temas importantes nos


escritos paulinos sobre a glória estão presentes: a libertação de Israel e a de
gentios, a inter-relação entre luz e glória, a glória como recompensa para
o povo de Deus, o anúncio da glória de YHWH entre as nações, a ma-
jestade do nome de YHWH, a manifestação da justiça de Deus, o papel
do Espírito de YHWH na manifestação da sua glória, a manutenção da
aliança entre YHWH e seu povo. É desse conjunto de temas que Paulo se
apropria e ressignifica messianicamente. Como prelúdio para o exame da
ressignificação messiânica da glória nos escritos paulinos, a síntese de von
Balthasar é apropriada:

222
Ao longo deste caminho ele revela sua glória. Deus, profundamente,
distingue a si mesmo de si mesmo. Ele é ‘um, e não está preso a ou
restrito a ser apenas um; idêntico consigo mesmo, e, ainda assim, livre
para ser outro [...], não em tensão, dialética, paradoxo e contradição’,
mas ‘nesta bela forma que suscita alegria’. ‘A beleza de Deus’ na ‘beleza
de Jesus Cristo’ aparece, portanto, precisamente no crucificado, mas
o crucificado, precisamente como tal, é o ressurreto: ‘nesta autorreve-
lação, a beleza de Deus engloba a morte e a vida, o temor e a alegria,
aquilo que chamaríamos de grotesco, bem como aquilo que chamaría-
mos de belo’. E precisamente nesta mais elevada autorrevelação é vista
a verdade da primeira descrição da glória: ser a autodemonstração de
seu amor em verdade e poder em todas as obras de Deus, que é, então,
capaz, no dom do Espírito Santo, de suscitar a resposta de glorificatio
da criação, ao ‘desviar o olhar de seu e olhar para Cristo, em quem a
glória e a glorificação se tornam absolutamente uma.214

Apesar de manifesta e doada como libertação e salvação, a glória


de YHWH permanece distante do ser humano, posto que em sua exces-
siva majestade e beleza pode provocar a morte:

Então disse Moisés: ‘Peço-te que me mostres a tua glória’. E Deus


respondeu: ‘Diante de você farei passar toda a minha beleza, e diante
de você anunciarei o meu nome: YHWH. Terei misericórdia de quem
eu quiser ter misericórdia, e terei compaixão de quem eu quiser ter
compaixão’. E acrescentou: ‘Você não poderá ver a minha face, porque
ninguém poderá ver-me e continuar vivo’ (Êx 33,18-20).

Este texto é peculiar na Escritura israelita ao fazer a correlação


entre a glória de YHWH, sua beleza, sua face e a revelação do seu nome. A
tese básica, porém, perpassa a Escritura: há um excesso em YHWH – seja
de santidade, de vitalidade, de glória etc. – excesso tal que YHWH mantém
sua liberdade e soberania em sua autodoação ao ser humano. A interdição
em relação à fala do nome de YHWH, no Decálogo, também é testemu-
nha desse caráter excessivo, excedente do YHWH em sua autorrevelação
e autodoação. A esse excesso podemos chamar de transcendência, desde

214  BALTHASAR, Hans Urs von. The Glory of the Lord. v. 7. San Francisco: Ignatius Press, 1990,
edição do Kindle, posições 256-264.

223
que não seja a transcendência ontoteológica, mas a transcendência da sur-
presa, da promessa, do perdão, da eterna presençausência da eternidade
em nosso tempo.

4.2.2 A Glória Divina Messianicamente Ressignificada


Se a Moisés foi vetada a visão da glória de Deus, às seguidoras e
seguidores do Messias essa contemplação é outorgada, ainda que a exces-
sividade divina seja mantida:

Ora, o Senhor é o Espírito; e, onde está o Espírito do Senhor, aí há


liberdade. E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando em um
espelho a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória,
nessa imagem, mediante a ação do Senhor, o Espírito (2Co 3,17-18).

A perícope a que pertencem esses dois versos já foi parcialmen-


te discutida acima, na descrição do Espírito como Deus, e será analisada
detalhadamente no capítulo sobre a fidelidade apostólica. O que nos
interessa agora é a ressignificação messiânica da glória divina (cuja com-
preensão passa, também, por 2Co 4,4-6, aqui apresentada a partir de
uma releitura de Êx 33,12-34,9 e de Sabedoria 7,1-30 (especialmente
versos 22-26):

o deus desta era cegou o entendimento dos infiéis, para que não vejam
a luz do evangelho da glória do Messias, que é a imagem de Deus. Mas
não pregamos a nós mesmos, e sim o Messias Jesus, o Senhor, e a nós
como escravos de vocês, por causa de Jesus. Pois Deus, que disse: ‘das
trevas resplandeça a luz’, ele mesmo brilhou em nossos corações, para
iluminação do conhecimento da glória de Deus na face do Messias).

Quem recebeu a liberdade do Espírito recebeu também a con-


templação da glória de YHWH – “contemplação em um espelho”, me-
táfora que mantém a excessividade da glória de YHWH – no ministério
de Paulo que, por sua vez, é expressão do ministério do Messias, imagem
e glória de Deus (2Co 4,6).

224
A discussão sobre o sentido contextual mais exato dessa passa-
gem é imensa e não precisa ser revisada aqui215. Quando levamos em conta
também o início do capítulo 4, a compreensão da passagem fica bem mais
evidente. Por meio da boa-notícia do Messias Jesus, que ilumina os nos-
sos corações, podemos ver a glória de Deus, o que está vedado às pessoas
infiéis a Deus que preferem seguir o deus deste século (cf. Rm 1,18ss, o
deus que elas mesmas fabricam para si). Ao receber a boa-notícia me-
diante a fé-fidelidade no Messias, recebemos a presença da glória de Deus
na habitação do Filho em nós (cf. Gl 2,20) e na ação do Espírito do Pai
e do Filho que nos transforma, desde a nossa entrada na família de Deus
(de glória...), até a consumação de nossa jornada pessoal (em glória), em
direção a nos tornarmos cada vez mais semelhantes ao Messias – imagem,
sabedoria e glória de Deus (cf, Rm 12,1-2). A glória de Deus é, então,
ressignificada como a salvação de todas as pessoas fiéis à pregação da boa
nova, judeus ou gentios indistintamente, que são libertadas de todos os
poderes deste mundo.
A contemplação de que Paulo fala nesses versos não é de nature-
za visual, mas existencial – a pessoa toda (mente e coração), habitada por
Deus (Pai, Filho, Espírito), vive na luz divina que brilha em seu coração
e lhe possibilita o conhecimento da glória divina. A glória de Deus é o
próprio Messias, esvaziado e crucificado por nossa libertação, ressurreto
e exaltado por nossa glorificação pelo Espírito do Senhor (Pai e Filho)
que nos faz viver na liberdade da glória divina, sendo ele mesmo o Senhor
(Deus) que nos torna participantes de sua própria glória. Aqui também
funciona a categoria da indiscernibilidade que vimos em atuação nos tex-
tos que descrevem Pai, Filho e Espírito como um só Deus. É impossível
deixar de ver nesse texto a ressignificação da esperança da restauração do
Templo de Jerusalém enquanto lugar de habitação da glória de Deus (cf. a
tradição de Ezequiel). A comunidade de seguidoras e seguidores do Mes-
sias, em sua coletividade plural e na individualidade de seus membros, é
o novo Templo de YHWH, a nova casa de Deus, da qual a glória divina
jamais se retirará novamente, pois o próprio Messias é sua realidade vital,

215  A síntese da discussão por Margaret Thrall é um ótimo ponto de partida para quem deseja
se informar a respeito: THRALL, Margaret. 2 Corinthians 1-7. A Critical and Exegetical
Commentary. Londres: T & T Clark, 1994, p. 268-297.

225
“o qual se tornou sabedoria de Deus para nós, isto é, justiça, santidade e
redenção, para que, como está escrito: ‘Quem se gloriar, glorie-se no Se-
nhor’” (1Co 1,30b-31)216.
Outra passagem fundamental para compreendermos a ressigni-
ficação da glória divina no Messias é 1 Co 2,6-10:

entretanto, falamos de sabedoria entre os que já têm maduridade, mas


não da sabedoria desta era ou dos poderosos desta era, que estão sendo
tornado inoperantes. Ao contrário, falamos da sabedoria de Deus, do
mistério oculto, o qual Deus estabeleceu, antes das eras, para a nossa
glória. Nenhum dos poderosos desta era o entendeu, pois, se o tivessem
entendido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Todavia, como
está escrito: ‘olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma
imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam’; mas Deus o
revelou a nós por meio do Espírito.

Esta perícope retoma e amplia a discussão feita em 1Co 1,18ss,


reafirmando a radical distinção entre a sabedoria divina e a sabedoria mun-
dana. À luz de 1,18ss e de Cl 1,26-27, o mistério oculto é o próprio Messias
em sua inclusão dos gentios na descendência fiel de Abraão. Assim, “nossa
glória” corresponde à glorificação de Israel na Escritura israelita, ou seja, a
libertação de Israel da dominação injusta e opressora. Como é comum em
Paulo, o sentido e o alcance da libertação são ampliados, abrangendo não
só toda a humanidade, mas todo tipo de escravidão a que o ser humano se
submeteu em sua infidelidade a Deus. Assim como em 1Co 1,18ss e Rm
1,18ss, a sabedoria dos poderosos deste mundo é descrita como expressão
da impiedade e injustiça humanas, da dominação injusta e opressora que
caracteriza as relações humanas sob o pecado. A manifestação do mistério
de Deus se deu na cruz do Messias, o Senhor da Glória que não teria sido
crucificado se nesta espaçotemporalidade presente dominasse a fidelidade
a Deus e não a infidelidade humana.

216  Deveria ser evidente que Paulo não está propondo a substituição de Israel pela Igreja, ou
do Judaísmo pelo Cristianismo. A nova aliança não corresponde a uma nova religião, mas a uma
reinterpretação da identidade de Israel: não mais o Israel “estado-nação”, mas o Israel descendente
fiel de Abraão, que não é definido por nenhum tipo de fronteira criada no pecado: étnica, nacional,
racial, de gênero, de classe etc. Seguir o Messias não é entrar em uma nova religião, mas ficar livre
da própria fronteira religiosa.

226
A ressignificação messiânica da glória de Deus é, em uma pala-
vra, sua cruciformidade. Em radical contraste com a sabedoria deste mun-
do, que vê a glória na conquista e destruição do outro, a sabedoria divina
concebe a glória como a autodoação ao outro com vistas à sua glorificação
– sua libertação e inserção na aliança com YHWH. Na espaçotemporali-
dade messiânica a nova aliança é ressignificada a partir da crucificação do
Messias, que possibilita e concretiza a reconciliação, justificação, santifica-
ção e libertação de toda a criação, e de toda a humanidade na medida em
que cada pessoa passa a se relacionar com Deus a partir da fé-fidelidade
no Messias. A cruz do Messias é o novo caminho aplainado no deserto,
o novo êxodo do povo de Deus cativo sob os poderosos deste mundo. A
potente glória de Deus não constrói impérios violentos e assassinos, mas
comunidades de pessoas fiéis a Deus vivendo como o Messias viveu, na
força do Espírito Santo. A potente glória de Deus revela sua excessividade
no dom gratuito do Messias ao ser humano para que participe da glória
divina messiânica. Em sua excessividade, a glória divina cruciforme torna
inoperante a junção de economia e poder político no império217, eliminan-
do toda calculabilidade que mantém a dominação injusta dos poderosos
desta espaçotemporalidade presente não-messiânica.
Um último tópico se faz presente nesta seção. Como na Escritura
israelita, a glória (o reconhecimento universal de que YHWH é YHWH)
de Deus é o alvo da atuação divina, também nos escritos de Paulo esse
reconhecimento universal é mantido e ressignificado messianicamente.
Na eulógia de Ef 1,3-14 o “louvor da glória de Deus” (ou da glória da
graça de Deus) é três vezes declarado como o alvo da atuação eterna de
Deus (1,6.12.14). Deus é glorificado quando o ser humano é libertado da
escravidão aos poderes deste mundo, e esse é o reconhecimento que Deus
espera de sua criação. Noção similar está presente no poema messiânico
de Fp 2,6-11, cujo alvo é que “toda língua confesse que o Messias Jesus é
Senhor, para glória de Deus Pai” (2,11), retomando a tradição teológica de
Ezequiel, em que a manifestação da glória de YHWH é também a revela-

217  A distribuição de trigo pelo Império Romano, juntamente com sua transformação da
pessoa em produto, na escravidão, são as formas mais evidentes de manifestação dessa junção
no contexto paulino.

227
ção do seu nome, para que ele seja reconhecido e glorificado. Quando toda
língua confessar o senhorio do Messias esvaziado, então toda dominação
cessará, e a nova era se concretizará em uma nova comunidade universal
de pessoas fiéis a Deus e umas às outras, uma comunidade composta por
toda a criação que, enfim, estará de novo debaixo de uma só cabeça: o
Messias Jesus (Ef 1,10).218
Assim, a glória divina é a manifestação gêmea de sua potência
que se concretiza, também, na vida messiânica de seu povo, tema que não
podemos abordar aqui, mas fará parte de nossa reflexão sobre a potência
de Deus. Por isso, cabe ouvir a convocatória paulina: “exortamos, con-
solamos e admoestamos, para viverdes de modo digno de Deus, que vos
chama para o seu reino e glória” (1Ts 2,12).

218  “Dado o poder destrutivo do mal e a angústia produzida pelo sofrimento radical, tanto
o mistério da glória de Deus quanto o desenvolvimento humano correm um risco terrível na
história. A verdade sobre Deus é retorcida para justificar a opressão humana e algumas criaturas
são degradadas em nome de uma visão distorcida da vontade divina. De acordo com Juan Luis
Segundo, ‘deformando a Deus protegemos nosso egoísmo. Nosso modo falso e inautêntico de
tratar nossos próximos está aliado à nossa falsificação da ideia de Deus. Nossa sociedade injusta
e nossa ideia pervertida de Deus formam uma estreita e terrível aliança’. Gloria Dei vivens homo:
o mútuo risco histórico que correm a honra divina e o impulso criatural conferem a este querido
aforisma o caráter contestatório de uma teimosa esperança” JOHNSON, op. cit., p. 28.

228
4.3 Deus potente

229
4.3.1 Introdução
Costumeiramente os comentários e as teologias paulinas prefe-
rem a palavra poder para traduzir a palavra grega dynamis, e palavras como
autoridade e direito para traduzir exousia e poder ou fortaleza e força para
traduzir kratos e isxys – tanto quando são usadas em relação a Deus (Pai,
Filho ou Espírito), quanto em relação a seres criados (humanos ou não).
No caso específico da palavra dynamis, vejo como problemática essa pre-
ferência, não porque seja errada, mas por que a palavra poder é usada mais
para expressar poder político do que outros tipos de capacidade. Assim,
ao refletir sobre a dynamis de Deus nos escritos paulinos, prefiro usar a
palavra potência como a opção predominante na interpretação dos textos,
reservando palavras como poder, força, energia etc. apenas para aqueles
casos em que efetivamente essas palavras expressem melhor, em portu-
guês, o significado do texto grego219.
A tradução de dynamis deve respeitar cada caso em particular,
todavia, se olhamos para a ideia fundamental transmitida por essa pala-
vra, dynamis denota primariamente a noção de que algo ou alguém afeta
outro algo ou alguém a partir de sua própria natureza e em sua própria
natureza. Dynamis, então, se distingue de kratos (por exemplo), na medida
em que essa tem a ver com a função exercida, enquanto aquela tem a ver
com a natureza do ser e não com a sua função – daí, por exemplo, a noção
técnica de dynamis em Aristóteles, comumente traduzida por potência ou
potencialidade.220 Uma vez, porém, que a teologia paulina é a teologia de
219  O uso da palavra nos escritos neotestamentários e os dicionários mostram que dynamis é
usada com diferentes sentidos, dependendo do âmbito da realidade a que se aplica: “dynamis possui
uma ampla gama de significados. Assim, demonstra a variedade de palavras com as quais o termo
é associado, ou com as quais se emprega em enunciados paralelos. Em primeiro lugar, estão as
expressões sinônimas que significam poder: isxys, kratos, exousia e energeia; depois os vocábulos para
designar milagres: semeion y teras; o termo tem, ademais, pontos de contato com doxa, aftharsia,
pneuma, sofia, logos e xaris. Finalmente, é mencionado em conexão com arxe, exousia, kyriotes e
aggelos. Como na literatura grega, dynamis pode ter as seguintes acepções: significado (1Co
14,11; Platão Crat 394b; Herm [v]3,4,3; Justino, Dial 125,1), ou também capacidade, habilidade,
faculdade: kata dynamin (Mt 25,15; 2Co 8,3; Eclo 29,20; Josefo, Ant III, 102); hyper dynamin
(2Co 1,8; Eclo 8,13); para dynamin (2Co 8,3; Josefo, Ant XIV, 378)” (HORST, balz; GERHARD,
Sheneider. Diccionário Exegético del Nuevo Testamento, v. 1, col. 1082, 1996).
220  “O uso mais importante de dynamis na antiga filosofia grega é como o nome de características
ou propriedades que podem ser entendidas como sendo ativas, isto é, sua presença provoca efeitos
sobre qualquer coisa em sua proximidade. Uma dynamis é a capacidade afetiva distintiva (ou

230
um judeu leitor da Escritura, devemos também levar em consideração,
no estudo da potência divina em Paulo, a presença e influência do campo
semântico da potência nos escritos da Bíblia dos judeus.
Na Escritura judaica três termos em especial (hayil, ‘oz e koah)
são usados para se falar do poder de YHWH, embora o campo semântico
do “poder” ou “potência” inclua várias outras palavras, semelhantemente
ao caso da língua grega. Chama a atenção o fato de que a LXX usa muito
mais a palavra isxys do que dynamis para as passagens em que Deus é o
sujeito da potência/poder, ao contrário do uso paulino. A análise do uso
dessas palavras mostra que estamos em um ambiente similar ao ambiente
do uso de dynamis na filosofia grega, especialmente a pré-socrática. A po-
tência de Deus é sua capacidade de provocar efeitos, de afetar outros seres
mediante sua ação, sendo que essa ação sempre é consistente com o que
Deus é. Assim, YHWH é potente para criar, salvar, fortalecer, capacitar,
empoderar e julgar (incluindo a capacidade de destruir ou tornar inope-
rante pessoas, coisas ou outros portadores de força e ou poder). Essa mes-
ma gama de sentidos e referentes está presente em o Novo Testamento e
nos escritos de Paulo.221 A dimensão fundamental da potência de Deus,

capacidades) de qualquer existente específico, isto é, aquelas capacidades causais que pertencem a
um objeto porque ela é especificamente o que ele é: a quentura é a dynamis do fogo, por exemplo,
e qualquer coisa a que falte a dynamis da quentura não é fogo. A atividade ou efeito peculiar
de uma dynamis é que ela se reproduz a si mesma, ou dá sua natureza a qualquer coisa que lhe
esteja próxima ou lhe seja acrescentada: o melhor exemplo de uma dynamis reproduzindo-se a
si mesma ou dando sua natureza é a quentura (ou, mais acuradamente, a coisa quente) do fogo
transformando a madeira no (calor do) fogo” (BARNES, Michel R. The power of God: Dynamis in
Gregory of Nyssa’s Trinitarian theology. Washington: The Catholic University of America Press,
2001, p. 28-29).
221  Vale um exemplo de síntese do uso teológico do termo koah: “Em geral, a koah de Deus é
usualmente associada com a criação ou a libertação do Egito. De acordo com Jó 26,12, YHWH
mostrou seu poder em sua vitória sobre o mar. A mesma ideia está presente no Sl 65,7(6). Após
uma referência aos nora’ot [atos poderosos] em tsedeq [justiça] (verso 6), lemos: ‘por sua força
estabelece os montes, cingido com fortaleza (gevura). O verso eguinte passa a falar que deus acalma
o bramido dos mares. Jr 10,12 par. 51,15 ( Jr 51,15-19 ecoando 10,12-16 palavra por palavra)
simplesmente declara que YHWH fez (‘asa) a terra por seu poder (koah) e estabeleceu (hekin) o
mundo (tebel) por sua sabedoria (hochma). Jr 27,5; 32,17 usa a fórmula ‘com grande poder e braço
estendido’, que normalmente aparece no contexto do êxodo, para se referir à criação. Há diversas
variações desta fórmula associadas à libertação do Egito: ‘com grande poder e com um braço
estendido’ (Dt 9,22; 2Rs 17,36); ‘com grande poder e com forte mão’ (Ex 32,11); ‘em tua fortaleza’
(Nm 14,13); ‘por seu grande poder’ (Dt 4,37). Em Êx 9,16 é dito ao Faraó que Deus o poupou
para mostrar a ele o seu ‘poder’. Os atos de Deus, tanto na criação como na história são, assim, uma
expressão de seu poder. Destarte, Sl 111,6 declara que YHWH mostrou o poder de suas obras

231
porém, no pensamento israelita é a libertadora. YHWH é o Deus que
liberta o povo que clama. Mesmo a afirmação de YHWH como criador
está vinculada à sua ação libertadora – o poder de criar é o poder de li-
bertar: ambas ações expressam a natureza da potência de Deus: vitalidade.
Que estas duas noções – libertar e criar – conjugam a essência
da potência divina no pensamento israelita pode ser visto no fato de que
YHWH se dá a revelar exatamente em seu ato criador e em seu ato liber-
tador. E.g.:

Ó YHWH, força minha (ἰσχύς), e fortaleza minha, e refúgio meu


no dia da angústia, a ti virão as nações desde os fins da terra e dirão:
Nossos pais herdaram só mentiras e coisas vãs, em que não há provei-
to. Acaso, fará o homem para si deuses que, de fato, não são deuses?
Portanto, eis que lhes farei conhecer, desta vez lhes farei conhecer a
minha força (χεῖρά = mão) e a minha potência (δύναμίν); e saberão
que o meu nome é YHWH ( Jr 16,19-21).

“Os céus proclamam a glória de Deus, o firmamento anuncia a


obra de suas mãos” (Sl 19,2). No Judaísmo do Segundo Templo a potên-
cia de Deus é, às vezes, identificada com o próprio Deus (e.g., em o Novo
Testamento: Mc 14,62 e paralelos).
O que está ausente em Paulo, porém, é a temática militar como
expressão da força divina. Assim como Paulo não se apropria positivamen-
te da teologia davidida e de Sião, também não tira proveito da teologia
da guerra de YHWH em benefício de seu povo. A recusa em se utilizar
desse tipo de tradições é óbvia: se o Messias é Deus esvaziado que morre
pelos seus “inimigos” e os reconcilia consigo mesmo, como poderiam Ele
e seu Deus serem protagonistas da destruição dos inimigos de Israel pela
força militar? Da mesma forma, a ressignificação da composição do povo
de Deus, não mais apenas de judeus, mas de descendentes de Abraão me-
diante o exercício da fidelidade, não faz sentido mais se falar em inimigos
do povo de Deus.
Ao optar pelo termo potência, claramente situo esta temática em
um ambiente mais abstrato e mais polissêmico do que mediante o uso da
ao dar a terra ao seu povo” (RINGGREN, Helmer. Koah. In: BOTTERWECK, G. Johannes;
FABRY, Heinz-Joseph (eds.). Theological Dictionary of the Old Testament, v. 7., 1997, p. 127).

232
palavra poder. De fato, parece-me que uma das principais razões para a
preferência por “poder”, ainda que inconsciente, é a recusa em reconhecer
nos escritos paulinos uma reflexão abstrata capaz de concorrer com a re-
flexão filosófica de seu tempo.222 Ademais, a concentração da interpretação
no poder escatológico de Deus, na ressurreição do Messias e na salvação de
pecadores também contribui para evitar o uso do termo potência, uma
vez que a vitória escatológica está situada predominantemente no âmbito
histórico-político. Assim, a opção por potência (e potencialidade, quando
necessário), também procura dar o crédito adequado ao tipo de reflexão
subjacente aos escritos paulinos. Essa opção, porém, não pode ser enten-
dida de modo reducionista, como se a potência divina não tivesse nada a
ver com a dimensão política da vida humana, ou se referisse apenas ao
âmbito da ontologia – não se diminuirá a importância da potência divina
no âmbito escatológico ou apocalíptico. Conforme veremos na sequência
a potência divina é multidimensional exatamente porque ontológica, ou
seja, porque se refere ao modo de ser de Deus.

4.3.2 A dimensão ontológica da potência divina


A noção da potência de Deus não é usada com grande frequência
nos escritos paulinos. Excetuando as passagens em que se fala da potência
do Messias, a dynamis de Deus está presente em vinte versos dos escritos
paulinos (23, se contarmos as Pastorais).
Somente em um desses versos a dimensão ontológica enquanto
tal é explicitamente tematizada: τὰ γὰρ ἀόρατα αὐτοῦ ἀπὸ κτίσεως κό-
σμου τοῖς ποιήμασιν νοούμενα καθορᾶται, ἥ τε ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις
καὶ θειότης, εἰς τὸ εἶναι αὐτοὺς ἀναπολογήτους, – “porque as invisi-
bilidades de Deus, sendo discernidas, são vistas desde o princípio do
mundo, nas coisas criadas, a saber sua eterna potência e divindade, de
modo que são indesculpáveis” (Rm 1,20). Já discutimos a passagem a
que pertence esse verso em nossa seção sobre Deus-Pai, mas não atenta-
mos detalhadamente ao tema da potência de Deus no verso 20 – o que
podemos fazer agora. A terminologia do verso mescla elementos típicos
222  Se levamos em conta as obras em inglês, claramente se poderia usar potency ou potentiality
ao invés de power.

233
do pensamento judaico com elementos da filosofia grega223 – a ponto de
encontrarmos nele vários termos raros e hápax legomena (καθοράω e θει-
ότης só ocorrem aqui; ἀΐδιος e ποίημα somente aqui e, respectivamente,
em Jd 6 e Ef 2,10). A junção intercultural desses elementos serve para
afirmar que, por meio das coisas criadas, Deus mesmo manifestou quem
Ele é, de modo que os seres humanos, desde que o mundo foi criado,
poderiam ter conhecido a “essência” divina.
Em vez de usar termos como natureza ou essência, Paulo prefere
o termo invisibilidades (τὰ ἀόρατα αὐτοῦ), que forma um perfeito contraste
com são vistas (καθορᾶται), verbo que é qualificado pelo particípio sendo
discernidas (νοούμενα). Aqui, Paulo conjuga duas culturas sapienciais, a
sabedoria israelita e a filosofia grega, colocando-as a serviço de sua des-
crição da condição humana diante de Deus. O verso termina com a afir-
mação de que as pessoas, então, são indesculpáveis, posto que poderiam,
sim, ter conhecido as invisibilidades de Deus a partir das visibilidades de
sua criação. Aquilo que os seres humanos, mediante a contemplação224 da
natureza, podem conhecer a respeito de Deus é descrito pelo verso com
uma hendíade: “sua eterna potência e divindade” (ἥ τε ἀΐδιος αὐτοῦ δύναμις
καὶ θειότης), que se situa tão bem no pensamento israelita como no mundo
da filosofia grega. Poderíamos decompor a hendíade em seus termos –
eternidade, potência e divindade – e recompô-la de diferentes maneiras: a
divindade consiste na potência eterna; a potência divina consiste em sua
eternidade; a eternidade divina consiste em sua potência.
Quando relacionamos esse verso com sua contraparte em Rm
1,16-17 encontramos os dois atos divinos que configuram a sua potência
na Escritura judaica: a criação e a libertação. Mediante as coisas criadas
todos os seres humanos poderiam conhecer a Deus enquanto criador, to-
davia, preferiram ignorar as invisibilidades de Deus e transformar as pró-
prias coisas visíveis da criação em invisibilidades – a essência da idolatria:
fazer Deus com as próprias mãos. À idolatria humana Deus responde com
223  Pode-se consultar os comentários exegéticos para a lista de passagens da filosofia grega
em que ocorrem os termos e ideias deste verso. Em particular, é o pensamento estoico que mais
utiliza termos similares e ideias que podem ter influenciado não só a Paulo, mas, também, outros
escritores judeus do período.
224  A linguagem do verso mescla o olhar e a reflexão em sua afirmação de que Deus poderia ter
sido conhecido pelos seres humanos desde as origens do mundo.

234
o anúncio da boa nova, no qual se revela a justiça (libertação) = potência
de Deus. À busca humana de imortalidade independentemente de Deus,
Paulo contrapõe a oferta divina da imortalidade no anúncio da boa nova
do Messias. À espiritualização das coisas materiais para criar deuses, Paulo
contrapõe a materialização de Deus – que é Espírito – no corpo do Mes-
sias. A potência de Deus, então, pode ser descrita como: invisibilidade do
visível; eternidade eternamente presente na temporalidade criada; poten-
cialidade criativa e libertadora; vitalidade imortal vivificante. Enquanto o
pensamento grego buscava transformar Deus na visibilidade do invisível,
a saber, a transcendência plena do divino (sabedoria) e o judaico buscava
transformar a invisibilidade de Deus na visibilidade da libertação de Isra-
el, a saber, a imanência do divino (sinais), Paulo oferece um novo modo de
conhecer Deus: o desvelamento do invisível na própria invisibilidade do
visível – para ver o Deus invisível é necessário apenas abrir os olhos para
enxergar a sua marca nas coisas criadas e abrir os ouvidos para ouvir a sua
voz no anúncio do crucificado. Como um novo Moisés, Paulo anuncia que
podemos conhecer a Deus pelos traços que são deixados nas visibilidades/
audibilidades materiais das coisas criadas e das palavras pregadas.
Uma interpretação valiosa desse verso se encontra na negligen-
ciada obra de Nicolau de Cusa, um pensador alemão que não navegou
nas águas da ontoteologia, mas se aventurou no pensamento teológico
místico de seu tempo. Em seu livro Trialogus de Possest, Cusa interpreta
Rm 1,20 e deriva deste verso sua descrição ontológica de Deus. Após
um longo intercâmbio entre as três personagens do Triálogo, Cusa con-
clui que se poderia resumir tudo o que fora dito em uma única palavra
para expressar o ser de Deus: possest:

Concordemos em que há uma única palavra que signifique, mediante


uma significação muito simples quanto a que é significada pela ex-
pressão composta ‘possibilidade existe’ (‘posse est’) – significando que
a própria possibilidade existe. Ora, uma vez que aquilo que existe,
existe atualmente: a possibilidade-de-ser existe na medida em que a
possibilidade-de-ser é atual. Suponha que chamemos isto de possest
[possibilidade-atualizada]. Todas as coisas estão englobadas nela, e
‘possibilidade-atualizada’ é um nome suficientemente aproximado
para Deus, de acordo com nosso conceito humano a seu respeito.

235
Pois ela é, igualmente, o nome (1) de todos os nomes, (2) de cada
nome distinto, e (3) de nenhum nome225.

A potência de Deus, em Paulo, é o próprio Deus. Deus é po-


tencialidade que não se desdobra em atualidade, mas envelopa em si a
atualidade. Potenciatualidade poderia, então, ser uma razoável tradução
da noção paulina da potência de Deus. Jamais desdobrada para fora de si
mesma, a potência divina é potência englobante, seja na criação, seja na
salvação, na medida em que há “um só Deus e Pai de todos, o qual possest
sobre todos, por meio de todos e em todos” (Ef 4,6).
Em contraste com as pessoas infiéis ao Messias, incapazes de
conhecer a Deus por causa de sua “impiedade e injustiça”, Paulo vê as
pessoas fiéis ao Messias como aquelas que são capacitadas por Deus para
conhecê-lo, não só em sua condição divino-eterna, mas também em sua
condição esvaziada-temporal no Messias, capazes de conhecer o ser-de-
-Deus, possest. Duas orações na epístola aos Efésios nos oferecem uma
complexa descrição das relações entre potência, amor, glória e conheci-
mento, e nos proporcionam mais um vislumbre da dimensão ontológica
da possest de Deus.
As duas orações são sintática e semanticamente complexas. Ambas
formam um único período composto no grego, com relações sintaticamente
complexas entre si, produzindo orações e frases cujos significados exatos e
são muito difíceis de serem captados. A tradução das duas perícopes, abaixo,
procura dar conta dessa situação e oferecer, em português, uma formulação
que elimina as dificuldades. É claro que é impossível ter uma plena certeza
da validade dos detalhes da tradução e da respectiva interpretação.226

225  CUSA, Nicolau de. Trialogus de Possest. In: HOPKINS, Jasper. A concise introduction to
the philosophy of Nicholas of Cusa. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1978, p. 77. Uma
significativa apropriação do pensamento de Nicolau de Cusa é feita por Richard Kearney. Ver,
em especial, KEARNEY, Richard. The God who may be: a hermeneutics of religion. Bloomington:
Indiana University Press, 2001; The Wake of Imagination. Toward a Postmodern Culture. London:
Routledge, 2003 (original de 1988). Sem citar Nicolau, e sem refletir sobre Deus, Giorgio
Agamben também desenvolve uma ontologia da potencialidade, especialmente em L’uso dei corpi.
Homo sacer, IV, 2. Vicenza, Neri Pozza Editores, 2014.
226  Desnecesário dizer que os principais comentários foram consultados no processo de
interpretação e posterior tradução dos textos.

236
Por isso, também eu, tendo ouvido a respeito de vossa fidelidade ao
Senhor Jesus e o amor para com todos os santos, não cesso de dar gra-
ças por vós, fazendo menção de vós nas minhas orações, a fim de que
o Deus de nosso Senhor Jesus, o Messias, o Pai da glória, vos conceda
o Espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele,
tendo sido iluminados os olhos do vosso coração, para conhecerdes a
esperança do seu chamado, a riqueza da glória da sua herança entre os
santos e a suprema grandeza de sua potência para conosco, os fiéis, de
conformidade com a eficácia da fortaleza de sua força; a qual operou
no Messias, ressuscitando-o dentre os mortos e fazendo-o sentar à
sua direita nos lugares celestiais, acima de todo príncipe, autoridade,
potência e dominador, e de todo nome que se possa nomear não só na
presente era, mas também na vindoura. E pôs todas as coisas debaixo
dos seus pés e, como cabeça sobre todas as coisas, o deu à ’ekklesia, a
qual é o seu corpo, a receptora da plenitude daquele que é totalmente
plenificado [pelo Pai] (Ef 1,15-23).

A primeira oração é de gratidão, mas em sua ação de graças Pau-


lo intercede pelos efésios, de modo que a sua abrangência envolve prima-
riamente as pessoas fiéis ao Messias, reunidas na ’ekklesia, e, em segundo
lugar, “todas as coisas”. Paulo pede ao Pai glorioso, Pai do nosso Messias,
o Senhor Jesus, que dê aos efésios o seu próprio Espírito – o manifestador
da sabedoria e da revelação divinas que, iluminando o ser humano em sua
essência, o faz conhecer plenamente a Deus. Este pleno conhecimento
de Deus é desdobrado em três aspectos: o conhecimento da esperança
constituída pelo chamado divino, a riqueza da glória de sua herança e a
suprema grandeza de sua potência em benefício dos fiéis. Esses três aspec-
tos são escatológicos, experimentados liminarmente na espaçotemporali-
dade presente mediante a participação dos fiéis na espaçotemporalidade
messiânica e integralmente na espaçotemporalidade eterna pós espaço-
temporalidade presente. Esperança do chamado, herança e a grandeza da
potência divina se complementam e se definem mutuamente e apontam
para a potencialidade divina enquanto vitalidade salvífica, capaz não só
de transformar as vidas das pessoas, mas de transformar a própria criação,
estabelecendo a espaçotemporalidade messiânica na espaçotemporalidade
presente – sendo a espaçotemporalidade messiânica uma forma esvaziada
da espaçotemporalidade eterna de Deus.

237
A potência de Deus, por sua vez, é qualificada com uma sentença
sintaticamente irregular que mostra o esforço de Paulo em descrever o
que é quase indescritível: “de conformidade com a eficácia da fortaleza de
sua força”. A potência divina opera de modo eficaz, posto que é uma for-
te fortaleza, reunindo quatro vocábulos denotadores da potência em sua
plenitude: dynamis, energia, kratos e isxys. Se comparamos essa descrição
paulina com a conceituação aristotélica, encontramos uma identificação
entre dynamis e energia, que contrasta com a radical distinção aristotéli-
ca entre ambos os termos (normalmente traduzidos por potência e ato).
A presença intrometida de kratos e isxys é derivada da teologia judaica,
especialmente na Septuaginta, com sua preferência por isxys (e, em se-
gundo lugar, kratos) ao invés de dynamis para se referir à potência divina.
Enquanto na visão do estagirita a divindade é um motor imóvel, na visão
paulina ela é um “motor móvel”, de fato, muito mais que um “motor”, é,
de fato, um organismo vivo e vivificador, cuja potência não só é vital, mas
pessoal, caracterizada pela fidelidade libertadora (que, conforme veremos
mais adiante, engloba as noções veiculadas pelos vocábulos amor, graça,
bondade, misericórdia).
O final da oração destaca que a potência divina é magnifica-
mente operante na ressurreição do Messias e em sua exaltação como o
Senhor de toda a criação (retomando Ef 1,10 e 1Co 15,20ss). O Pai ple-
nifica o Filho que se esvaziou para a salvação de toda a criação – aquele
que foi rebaixado ao mais abjeto nível é elevado ao mais exaltado nível,
não como uma reversão pura e simples do esvaziamento, mas como o
reconhecimento de que o esvaziado é plenificado pelo Pai para exercer
o senhorio sobre toda a criação no mesmo espírito (ou atitude) com que
realizou a salvação da criação em seu esvaziamento (cf. Fp 2,5ss). Em
seu esvaziamento o Filho-Messias assumiu a condição humana em sua
totalidade e, agora, como Senhor de todas as coisas, ele outorga ao ser
humano a sua própria plenitude (cp. Cl 2,8-12):

Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs su-
tilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do
mundo e não segundo o Messias; porquanto, nele habita, corporalmen-
te, toda a plenitude da divindade e nele sois plenificados. Ele é a cabeça

238
de todo príncipe e autoridade. Nele, também fostes circuncidados, não
por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que
é a circuncisão do Messias, tendo sido sepultados, juntamente com ele,
no batismo, no qual igualmente fostes ressuscitados mediante a fé na
energia de Deus que o levantou dentre os mortos.227

É Deus-Espírito quem revela a sabedoria e a potência divina


às pessoas fiéis, a plenitude da presença divina na vida corpórea de fiéis
que vivem na liminaridade tensa da espaçotemporalidade messiânica na
espaçotemporalidade presente.
A segunda oração é formalmente intercessória e introduzida de
modo solene (“me ponho de joelhos diante do Pai”). Nessa segunda ora-
ção o foco é invertido em relação à primeira, iniciando com ‘todos os seres
existentes’ e afunilando para as pessoas fiéis ao Messias. De modo similar
à primeira, o foco espaçotemporal é escatológico e a descrição de Deus
engloba Pai, Filho e Espírito.

Por esta causa, me ponho de joelhos diante do Pai, de quem é nomeada


toda linhagem, tanto no céu como sobre a terra, a fim de que, segundo a
riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com potência,
mediante o seu Espírito para o homem interior e que o Messias habite
em vossos corações, mediante a fidelidade; a fim de, uma vez que tendes
sido enraizados e alicerçados em amor, serdes fortes para compreender,
com todos os santos, a largura, o comprimento, a altura e a profundidade
e conhecer o amor do Messias, que está acima e além de qualquer com-
preensão, a fim de que sejais plenificados na direção de toda a plenitude
de Deus. Ora, àquele que é potente para fazer infinitamente mais do
que tudo quanto pedimos ou imaginamos, conforme a sua potência que
opera em nós, a ele seja a glória, na ’ekklesia e no Messias Jesus, por todas
as gerações, para todo o sempre. Amém! (Ef 3,14-21).

A oração inicia com a qualificação do Pai como criador e senhor


de todos os seres vivos, nos céus e na terra, com uma formulação que é única

227  “Comentaristas estão unidos no pensamento de que a frase final de 1,23 é a mais obscura da
epístola e uma das mais obscuras de todo o NT. Não há pontos fixos sobre os quais construir uma
interpretação do todo. Assim, qualquer interpretação deve ser algo provisória” (FOWL, Stephen
E. Ephesians: A Commentary. Louisville: Westminster John Knox Press, 2012, p. 63).

239
em todo o Novo Testamento228. Paulo pede que o Pai, com base na riqueza
de sua glória (descrita amplamente em Ef 1,3-14), atenda aos seguintes
pedidos: (a) “vos conceda que sejais fortalecidos com potência, mediante
o seu Espírito para o homem interior e que o Messias habite em vossos
corações, mediante a fidelidade”; (b) “uma vez que tendes sido enraizados e
alicerçados em amor, serdes fortes para compreender, com todos os santos,
a largura, o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer o amor do
Messias, que está acima e além de qualquer compreensão”; e (c) “sejais ple-
nificados na direção de toda a plenitude de Deus”.
Novamente temos, em (a) a inter-relação de pai, Filho e Es-
pírito na doação da potência divina ao ser humano – doação esta que
é consequência da relação de fidelidade entre Deus e as seguidoras do
Messias – potência divina que é, de fato, a própria habitação do Espírito
e do Filho na pessoa, evocando aqui a frase mais exclusivamente mes-
siânica de Gl 2,20. Em (b) após a afirmação de que a comunidade de
seguidores do Messias nasce e é sustentada pelo amor de Deus (cf. Rm
5,8 etc.), ela possa compreender – em contraste com as pessoas ímpias e
injustas de Rm 1,18ss – a “totalidade”, uma das interpretações possíveis
do quadrilátero espacial presente no verso, ou seja, compreender o sen-
tido da criação em sua globalidade229 e, também, possa compreender o
amor do Messias, o qual, de fato, é incompreensível – do ponto de vista
puramente racional – mas sentido e compreendido na integralidade da
vida diante de Deus; e (c) que cada seguidora e seguidor do Messias
receba, assim como a ’ekklesia, a plenitude do Filho que nos leva à pleni-
tude de Deus (cp. Cl 2,8-12).

228  Usando uma tradição do Judaísmo do Segundo Templo, especialmente em Filo e Josefo,
Paulo qualifica Deus-Pai tanto com o criador, quanto como o Pai do Messias. “Não somente a
unidade de Israel ou da humanidade, mas também de todo o universo é garantida pelo cuidado,
direção e domínio exercidos pelo Deus único, o Pai. Escritores clássicos gregos, estoicos, membros
das religiões de mistério e, mais tarde, também gnósticos, falavam dos pais espirituais ou de um
‘Pai de todos’ cósmico. Visto que em Ef 3,15 é declarado explicitamente que todas as famílias
‘nos céus e na terra’ são afetadas pela paternidade de Deus, uma compreensão cósmica do termo
‘pai’ é exigida pelo contexto de 3,14” (BARTH, Markus. Ephesians. Introduction, Translation, and
Commentary on Chapters 1-3. Nova Iorque: Doubleday, 1974, p. 380).
229  “Pois Deus não falha em ser tudo o que é possível de ser. Pois ele é o próprio ser – isto é, a
entitas – da possibilidade e da atualidade. Mas embora Ele seja todas as coisas e esteja em todas as
coisas, Ele é todas as coisas de tal modo que Ele não é uma coisa mais do que outra; pois Ele não
é uma coisa no sentido em que Ele não é outra coisa” (CUSA, op. cit., p. 75).

240
Ao final da oração, mediante uma doxologia, Paulo celebra o fato
de que a potência de Deus é potente para realizar coisas que sequer somos
capazes de imaginar, e é essa potência que opera em nós, potencializan-
do-nos para viver como o Messias viveu, ou seja, para viver a espaço-
temporalidade messiânica na espaçotemporalidade presente, assim como
Deus-Filho viveu a espaçotemporalidade presente em seu esvaziamento
messiânico. Possest – a essência de Deus é sua paternal disposição-em-be-
nefício-de-toda-criação no Messias e no Espírito.

4.3.3 A potência de Deus messianicamente ressignificada


A potência de Deus é possest, vitalidade: os três temas principais
da potência de Deus em Paulo (como vimos acima), se referem à criação, à
ressurreição do Messias e à salvação da humanidade – vitalidade que, por
sua vez, é qualificada pelo amor, graça, misericórdia, bondade e/ou fideli-
dade de Deus e recebida como dádiva mediante a fé-fidelidade no Mes-
sias. A compreensão da potência divina é ressignificada messianicamente
por Paulo à luz da ressurreição do Messias. São seis as menções de Paulo
à ressurreição do Messias crucificado: “e foi designado Filho de Deus em
potência, segundo o Espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a
saber, Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 1,4); “Deus ressuscitou o Senhor e
também nos ressuscitará por meio de sua potência” (1Co 6,14); “Porque,
de fato, foi crucificado em fraqueza; contudo, vive pela potência de Deus.
Porque nós também somos fracos nele, mas viveremos, com ele, para vós
outros pela potência de Deus” (2Co 13,4); “para o conhecer, e a potência
da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, sendo conforma-
do com ele na sua morte” (Fp 3,10); “tendo sido sepultados, juntamente
com ele, no batismo, no qual igualmente fostes ressuscitados mediante a fé
na energia de Deus que o levantou dentre os mortos” (Cl 2,12);

para conhecerdes a esperança do seu chamado, a riqueza da glória da


sua herança nos santos e a suprema grandeza de sua potência para
com os que cremos, segundo a eficácia da fortaleza de sua força; a qual
exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos e fazendo-o
sentar à sua direita nos lugares celestiais (Ef 1,18-19).

241
Nestes versos, sempre que é usada a palavra dynamis a tradução é
“potência”, para kratos uso “fortaleza” e para ’isxys, “força”; ’energeia, hora é
“energia”, hora é “eficácia”.
No primeiro verso (Rm 1,4), a ressurreição é descrita como a de-
signação do Messias como Filho de Deus, em contraste com sua condição
terrena como filho de Davi. Em todos os versos, a potência divina está em
contraste com a fragilidade do Messias esvaziado, que participa solida-
riamente da impotência humana manifestada climaticamente na morte.
Tendo em vista que em mais de um dos parágrafos acima mencionados, a
salvação e ressurreição das pessoas fiéis ao Messias são mencionadas junto
à ressurreição do próprio Messias, está implícito que o modo de funcio-
namento da potência divina é o da fidelidade amorosa e beneficente. A
potência de Deus, seja Deus-Pai, seja Deus-Espírito, é potência contrária
à morte, que torna inoperante a morte e seus efeitos sobre a vida das pes-
soas. Se levamos em consideração que a morte é o “salário” do pecado e
que o pecado, em Paulo, é predominantemente a infidelidade (a Deus e à
criação divina), então a potência divina é potencializadora, no ser humano,
da fidelidade que caracteriza a vida e as relações internas do próprio Deus.
Além de presente em alguns dos versos que tematizam a ressur-
reição do Messias, a ressurreição dos fiéis, junto a sua salvação, também
é encontrada nos seguintes versos: “o qual transformará o nosso corpo de
humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória, segundo a energia da
potência que ele tem de até subordinar a si todas as coisas” (Fp 3,21); e

e a vós outros, que sois atribulados, alívio juntamente conosco, quando


do céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos da sua potência, em
chama de fogo, tomando vingança contra os que não conhecem a Deus
e contra os que não obedecem à pregação da boa nova de nosso Senhor
Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face
do Senhor e da glória da sua força, quando vier para ser glorificado nos
seus santos e ser admirado em todos os que creram, naquele dia (por-
quanto foi crido entre vós o nosso testemunho) (2Ts 1,9-11).

O enfoque temporal é escatológico: a ressurreição das pessoas


fiéis ao Messias, literalmente, ocorrerá apenas quando da parousia do Se-
nhor Jesus, e se concretizará mediante a ressurreição do corpo (deve-se

242
notar que na discussão sobre a ressurreição em 1 Coríntios 15 a palavra
potência não é utilizada), não mais como um corpo frágil, “corpo mortal”
na expressão de Romanos, mas como um corpo glorificado, similar ao do
messias ressurreto. Todavia, a potência da ressurreição já é experimentada
pelas pessoas fiéis desde sua entrada na família messiânica, da qual o ba-
tismo é símbolo e ritual, operando na tensão entre a espaçotemporalidade
messiânica e a não-messiânica (assim, e.g., Fp 3,10 e Cl 2,12).
Como na Escritura judaica, a potência de Deus é descrita por
Paulo em operação na vida de seu povo, começando com a própria en-
trada no povo de Deus, que já destacamos no parágrafo anterior: “para
que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos
com potência, mediante o seu Espírito, para o homem interior” (Ef 3,16);
“Ora, àquele que é potente para fazer infinitamente mais do que tudo
quanto pedimos ou pensamos, conforme a sua potência que opera em nós”
(Ef 3,20); “Quanto ao mais, sede empoderados no Senhor e na fortaleza
da sua força” (Ef 6,10); “sendo empoderados com toda a potência, segun-
do a fortaleza da sua glória, em toda a perseverança e longanimidade” (Cl
1,11). Nestes versos, a potência de Deus experimentada na vida cristã é
tanto a potência do Pai, como a do Filho e a do Espírito – mantida a no-
ção da indiscernibilidade das pessoas divinas. Aqui, a potência de Deus,
ainda no âmbito da vitalidade, se manifesta no empoderamento dos fiéis
e das comunidades para viver de acordo com a potência divina manifesta
no Messias esvaziado.
Para Paulo, nós seres humanos não temos, por nós mesmos, po-
tência para viver messianicamente. Escravizados aos poderes deste mun-
do, os seres humanos não conseguem viver messianicamente, posto que
‘mortos’ para a potencialidade divina em nós uma vez que, segundo Paulo,
a pessoa fiel é renovada/recriada de acordo com a imagem do Filho, pres-
supõe-se que a potencialidade que nos foi conferida na criação (imagem
de Deus) somente pode ser energizada, somente pode ser operacionaliza-
da em comunhão com Deus, posto que a vida é propriedade divina e não
humana. Nós, seres humanos, não temos a vida em nós, de nós e por nós
mesmos, a nossa vitalidade é uma vitalidade relacional, permanentemente
dádiva divina, operação da potência divina no ser humano. Destaca-se,

243
aqui, a intensa reflexão de Paulo em Filipenses 3, que – do ponto de vista
da noção de potência – tem seu clímax em 3,10: “para o conhecer, e a
potência da sua ressurreição, e a comunhão dos seus sofrimentos, sendo
conformado com ele na sua morte”, que utiliza a linguagem da imagem
e semelhança (o verbo “conformar”, na voz passiva). Assim como o Mes-
sias manifesta Deus em seu esvaziamento (Fp 2,5-11), também nós ex-
perimentamos a potência divina em nosso próprio esvaziamento – nossa
conformação com o Senhor em sua morte. É porque fomos crucificados e
sepultados com o Senhor em sua morte que experimentamos a potenciali-
zação da potência vital de sua ressurreição.
Da mesma forma, experimentamos a presença da glória de Deus
operante em nossas vidas, para que vivamos messianicamente: “para que,
segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com
poder, mediante o seu Espírito no homem interior, para que o Messias
habite no coração de vocês mediante a fé-fidelidade” (Ef 3,16-17). Nessa
oração Paulo pede ao Pai que, na medida excessivamente generosa de sua
glória, sua potência nos seja concedida para que, mediante a presença do
seu Espírito e a habitação do seu Messias, vivamos a espaçotemporalidade
messiânica nesta espaçotemporalidade presente não-messiânica. Aquilo
que, sozinhos, não podemos fazer, posto que nosso “homem interior”230 é
impotente para realizar a vontade de Deus e a sua própria vontade (cf. Rm
7,14ss), somos potencializados para realizar na comunhão com Deus (Pai,
Filho, Espírito) que habita em nós, transformando nossa interioridade
impotente em interioridade glorificada, messianicamente esvaziada para
hospedar a divina pluriunidade gloriosamente transformadora.
Não é à toa que comumente Paulo reconheça, em várias de suas
cartas, quão facilmente as pessoas fiéis não vivem messianicamente – uma
temática que está presente na Escritura e em sua interpretação no Judaís-
mo do Segundo Templo: Israel, povo de Deus, não vive habitualmente em
fidelidade à aliança divina. Assim, também os seguidores do Messias Jesus,
judeus ou gentios, são incapazes de viver messianicamente – a não ser que se
mantenham em comunhão com Deus de modo que sejam empoderados pelo

230  Obviamente a expressão “homem interior” deve ser entendida de modo inclusivo, podendo
igualmente ser traduzida por “mulher interior”.

244
próprio Deus (Pai, Filho e Espírito) para viver de acordo com a vontade divi-
na. Em 2 Coríntios 12-13, essa fraqueza humana é tematizada em contraste
com a potência divina, e é nessa reflexão que Paulo afirma enfaticamente que
a potência divina só pode nos empoderar em nossa fraqueza – não a fraqueza
da carne, mas a fraqueza da mera condição humana que, sem o empodera-
mento divino, não vive de acordo com o projeto divino em sua criação. Este
é o paradoxo da espiritualidade paulina: podemos viver messianicamente, mas
apenas como o próprio Messias viveu messianicamente: esvaziando-nos, ex-
perimentando cotidianamente a morte do Messias, pois é somente na morte
que conhecemos e recebemos a vida divino-messiânica.231
Essa visão radical da vida esvaziada está especialmente presente
nas referências que Paulo faz ao seu próprio ministério: “Temos, porém,
este tesouro em vasos de barro, para que a excelência da potência seja
de Deus e não de nós” (2Co 4,7); “na palavra da verdade, na potência de
Deus, pelas armas da justiça, quer ofensivas, quer defensivas” (2Co 6,7);
“Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque a potência se aper-
feiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas,
para que sobre mim repouse a potência de Cristo” (2Co 12,9); “do qual
[anúncio da boa nova] fui constituído servo conforme o dom da graça de
Deus a mim concedida segundo a energia de sua potência” (Ef 3,7). Que
três das quatro ocorrências deste tema estejam em 2 Coríntios é digno
de nota: exatamente na epístola em que Paulo debate sobre a essência do
verdadeiro apostolado, ele contrapõe a sua própria fraqueza e impotência
ao “poder” dos hiperapóstolos, seus adversários nas comunidades coríntias.
Essa contraposição é mais significativa ainda quando levamos
em conta que mais de uma vez Paulo lembra às comunidades da presença
dos sinais da potência divina em seu ministério evangelístico (conforme

231  Assim também Dunn, embora sua linguagem resvale perigosamente para a descrição
ontoteológica da experiência de Deus: “Mais típico da experiência que Paulo teve de Deus foi o
sentido da graça e da força que transformavam sua vida cotidiana. A graça de Deus a ele (ou dentro
dele na estrada de Damasco) não foi em vão, mas estava com ele na eficácia do seu ministério
(1Cor 15,10). O mesmo sentido da graça de Deus é enfatizado em outras passagens como a força
transformadora da sua própria conversão e como a força que explicava o seu sucesso missionário.
Que ‘graça’ e ‘força’ são quase sinônimos no pensamento de Paulo confirma-o uma referência
semelhante da sua experiência do poder transformador de Deus, o evangelho como a força de Deus
que realiza salvação (Rm 1,16), a força que transcende toda a sua fraqueza demasiado humana, e
posteriormente em Efésios, ‘o dom da graça de Deus que me foi concedida pela operação do seu
poder’” (Ef 3,7).

245
veremos logo adiante). Sem negar as manifestações da potência divina na
forma de acontecimentos extraordinários na vida das pessoas (curas, exor-
cismos, experiências de êxtase etc.), Paulo defende, porém, que a potência
manifesta nesses sinais é exclusivamente divina e jamais deve ser confun-
dida com a potência do instrumento humano em sua concretização232. Esse
aparente paradoxo é consequência da tensão entre a espaçotemporalidade
messiânica e a espaçotemporalidade presente. Aquela não anula esta, mas
está presente nesta de forma liminar-esvaziada. Assim, toda cautela deve
ser tomada para não interpretar erradamente os sinais aparentemente me-
nos liminares da potencialidade da espaçotemporalidade messiânica. Pelo
que podemos inferir das cartas paulinas, em especial as cartas aos corín-
tios, o risco de pensar de modo “ontoteológico” a operação da potência
de Deus na vida messiânica era, de fato, uma realidade presente. Dons,
sinais, conhecimento, experiências extáticas são poderosos atratores em
sua performance impressionante. Paulo, porém, não se deixa enganar pelo
espetáculo do poder. Vive da potência divina que se manifestou de modo
pleno no esvaziamento do Messias, e jamais abre mão de viver e ensinar
a nossa participação na potência divina mediante a conformidade com o
Messias esvaziado.
Por isso, sempre enfatiza que, na sua missão, o poder é o poder
do anúncio da boa nova – na palavra impotente de um simples pregador a
potência salvífica de Deus se manifesta: “Pois não me envergonho da pre-
gação da boa nova, porque é potência de Deus para a salvação de todo fiel,
primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1,16); “(Rm  15,19  GNT)
para conduzir os gentios à obediência, por palavra e por obras, por força
de sinais e prodígios, pela potência do Espírito” (Rm 15,19); “certamen-
te, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que
somos salvos, potência de Deus” (1Co 1,18); “a minha palavra e a minha
pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em
demonstração do Espírito e de potência, para que a vossa fé não se apoias-
se em sabedoria humana, e sim na potência de Deus” (1Co 2,4-5); “por-
que o nosso evangelho não chegou até vós tão somente em palavra, mas,

232  Em uma época na qual a religião de um médico divinizado tinha grande prestígio, a
preocupação de Paulo em manter a distinção entre criatura e criador não pode ser negligenciada.

246
sobretudo, em potência, no Espírito Santo e em plena convicção, assim
como sabeis ter sido o nosso procedimento entre vós e por amor de vós”
(1Ts 1,5); e

não te envergonhes, portanto, do testemunho de nosso Senhor, nem


do seu encarcerado, que sou eu; pelo contrário, participa comigo dos
sofrimentos, a favor do anúncio da boa nova, segundo a potência de
Deus, que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo
as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que
nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos (2Tm 1,8).

Não é à toa que, na história das Igrejas Cristãs no Ocidente, a


prática da espiritualidade seja uma das principais marcas da distância en-
tre o potencial messiânico e a realidade eclesiástica233. Em grande medida,
isso se dá pela incapacidade de viver esvaziadamente, de experimentar a
potência divina na conformidade com a morte do Messias. Igrejas glo-
riosas e triunfantes são incapazes de viver na potência divina, de modo
tal que se obrigam a gerar mecanismos e dispositivos de compensação:
doutrina, sacramentalidade, obediência, crescimento etc. Esse é um dos
preços concretos que as Igrejas têm de pagar em função de sua adoção do
modo ontoteológico de pensar e organizar a vida messiânica.
Interpretar a potência de Deus desvinculadamente da cruz do
Messias é entrar em um mundo de equívocos fáceis e de volta à escravidão
aos poderes deste mundo. A potência divina da revelação é potência de
esvaziamento, posto que Deus se revela (de acordo com Romanos 1,16ss)
nas fragilidades: o anúncio da boa nova (1,16-17) e nas coisas criadas
(1,20ss). Deus se dá a conhecer na sua ‘ausência’, ou, melhor, na sua in-
visibilidade. Deus se revela invisivelmente na sua criação e na pregação
da cruz. A visibilidade de Deus é, portanto, a invisibilidade do visível. A
salvação da criação manifesta-se na invisibilidade da potência divina na
visibilidade de nossas vidas cotidianas. A verdadeira sacramentalidade não
é a de objetos materiais que simbolizam realidades espirituais, mas a das

233  Inevitavelmente, a linguagem aqui precisa ser genérica, de modo que o risco da injustiça
a incontáveis casos e situações valiosos está sempre presente. Na leitura, portanto, os descontos
necessários devem ser realizados.

247
pessoas que, vivendo fielmente ao Messias, manifestam a invisibilidade do
invisível Deus nas visibilidades frágeis da espaçotemporalidade presente.
A tentação ontoteológica, presente nas comunidades messiânicas desde
as primeiras gerações, é reduzir a invisibilidade divina à visibilidade do
invisível. Essa tentação tem se manifestado na história das Igrejas de múl-
tiplas e variadas maneiras e até hoje é marca da hegemonia da espaçotem-
poralidade não-messiânica nas comunidades e instituições messiânicas,
por intermédio de uma crença na, e consequente experiência da, presença
excessiva da espaçotemporalidade messiânica. Por isso, podemos concluir
esta seção com a oração paulina: “e o Deus da esperança vos encha de toda
alegria e paz em vossa viver fiel, de modo que sejais transcendentes na
esperança, na potência do Espírito” (Rm 15,13).

248
4.4 Deus Fiel

249
4.4.1 A Fidelidade de Deus
A fidelidade de Deus não é exatamente um tema crucial na
maioria das teologias paulinas recentes, conforme demonstra a lista de
temas escolhidos por alguns autores, na Introdução à seção 3 deste livro.
É a obra de N. T. Wright que, mais uma vez, se distingue nesse aspecto,
intitulada “Paulo e a fidelidade de Deus”. Nela, a fidelidade de Deus é
o tema dominante, mas muito mais como pressuposta do que posta. Se
consultamos o índice de assuntos da obra encontramos o seguinte sobre
a fidelidade de Deus: “fidelidade de, passim, e e.g. 22, 77, 480, 537, 763,
772, 836-9, 879, 900, 910, 1071f.” – em nenhuma das páginas indicadas a
fidelidade de Deus é definida ou discutida, e nas páginas em que suposta-
mente ela seria o tema (836-9), de fato encontramos uma discussão sobre
a fidelidade do Messias Jesus. Isso não quer dizer que a fidelidade divina
não seja apresentada por Wright, ao contrário, o ponto é apenas que ela
é um pressuposto da teologia de Wright e não um tema conceitualmente
estabelecido. Uma vez ele define a fidelidade divina:

a fidelidade de Deus, no final do verso 3 [de Rm 3] é, então, ainda, a


determinação do Deus da aliança fazer o que ele prometeu, ainda que
o povo a quem as bênçãos foram prometidas pareça ter desapontado a
Deus mediante a sua infidelidade. Isto se torna claro no início do pró-
ximo verso, onde aletheia, ‘verdade’, ou melhor, ‘veracidade’, substitui
pistis ‘fidelidade’.234

Dito isto, é bom ver de que modo a fidelidade de Deus opera na


interpretação de Paulo por Wright:

Paulo, o judeu, cuja estória-mestra sempre incluíra a narrativa median-


te a qual o Deus vivo derrotou a tirania do Egito e libertou seu po-
vo-escravo, passou a acreditar que esta grande estória alcançara o seu
clímax divinamente ordenado na chegada do Messias de Israel, que, de
acordo com múltiplas tradições antigas, seria o verdadeiro Senhor de
todo o mundo. Ao ser fiel a seu povo, Deus é fiel a toda a criação. Paulo
viveu sob a autoridade deste ‘senhor’, deste ‘Messias’, e devotou-se a

234  WRIGHT, op. cit., p. 838, na seção sobre a fidelidade do Messias.

250
tornar essa autoridade efetiva nas vidas das comunidades que vieram
a partilhar da mesma fé. Tendo em vista, porém, que este ‘Messias’ e
‘senhor’ era o Jesus crucificado e ressurreto, esta ‘autoridade’ foi radi-
calmente redefinida. Por causa de Jesus, Paulo compreendeu tudo isto
diferentemente – Deus, o mundo, o povo de Deus, o futuro de Deus e,
em e por meio de tudo isto, a fidelidade de Deus.235

Cabe, portanto, explicitar conceitualmente essa fidelidade divi-


na que, acertadamente, Wright afirma ser crucial para o apóstolo Paulo,
mas não conceitua com a intensidade que o tema merece. Preliminar-
mente, devemos levar em conta alguns aspectos da linguagem paulina.
Faz parte dos hábitos da pesquisa histórico-crítica não perceber a per-
tença de uma série de termos ao mesmo campo semântico e à mesma
atividade divina (de modo similar o que vimos no estudo do tema da
eleição-chamado, a ‘“fidelidade” é uma palavra que pertence a um con-
junto mais amplo de termos que se explicam mutuamente). Assim, a
discussão gira principalmente ao redor da palavra graça, mas não se leva
em conta que graça e fidelidade são termos afins e inseparáveis. Esses
termos são: fidelidade (fé e sinônimos, traduções das raízes hebraicas
’mn e bth e das gregas pist e peith), amor, graça, bondade, misericórdia,
compaixão, solidariedade, justiça, verdade, promessa, juramento, puni-
ção e aliança.236 Isso pode ser parcialmente percebido em uma das mais
importantes declarações de fé de Israel, presente em dois textos cruciais
da Escritura lida por Paulo, em que o mais antigo é:

YHWH, YHWH, Deus de ternura e de piedade, lento para a cólera,


rico em graça e fidelidade; que guarda sua graça a milhares, tolera a
falta, a transgressão e o pecado, mas a ninguém deixa impune e castiga
a falta dos pais nos filhos, e os filhos dos seus filhos, até a terceira e a
quarta geração (Êx 34,6-7).

235  WRIGHT, op. cit., p. 22. Vale a pena ressaltar que, em muitas passagens, Wright usa a
expressão covenant faithfulness, a fidelidade pactual de Deus, um passo fundamental na direção da
análise que aqui fazemos.
236  “A fidelidade ressalta os demais atributos de Deus. Yahweh é teimosamente compassivo
e misericordioso. O amor de Yahweh não aparece e desaparece como um relâmpago, mas, ao
contrário, tem a persistência das águas de um rio que penetram as rochas e teimosamente,
pacientemente, aplainam o leito que fizeram para si mesmas” (GUTIÉRREZ, Gustavo. The God of
life. Maryknoll: Orbis Books, 1991, p. 68).

251
Devemos notar o enfoque tipicamente deuteronomista no se-
gundo texto:

saberás, portanto, que YHWH teu Deus é o único Deus, o Deus fiel,
que mantém a aliança e o amor por mil gerações, em favor daqueles
que o amam e observam os seus mandamentos; mas é também o que
retribui pessoalmente aos que o odeiam; faz com que pereça sem
demora o que o odeia, retribuindo-lhe pessoalmente (Dt 7,9-10).237

Também decorrente dos hábitos arraigados na pesquisa neotes-


tamentária, a discussão sobre a fidelidade de Deus em Paulo é prejudicada
pelo pequeno número de textos em que Paulo fala de Deus como um
Deus fiel – apenas seis versos (1Ts 5,24; 2Ts 2,13; 1Co 1,9; 10,13; 2Co
1,18 e 2Tm 2,13 – dos quais dois versos não pertencem às chamadas epís-
tolas “autênticas”); e o mesmo vale para a palavra aliança, usada apenas
nove vezes (Rm 9,4; 11,27; 1Co 11,25; 2Co 3,6;14; Gl 3,15.17; 4,24; Ef
2,12), o que dá a impressão de que não são temas tão importantes assim
para o apóstolo, quanto o seriam a graça e o amor divinos. Semelhante-
mente, a interpretação das palavras da raiz pist com os termos fé ou crer
– cujo sentido é anacronicamente determinado pelo seu uso nas teologias
eclesiásticas – dificulta a interpretação da fidelidade divina em Paulo, e
em especial da fidelidade do Messias, o Deus-esvaziado – embora esse
tema, a partir especialmente dos escritos de Richard Hays, tenha passado
a ocupar um lugar importante na pesquisa nas duas últimas décadas.238
Antes de entrar na discussão dos textos paulinos, é importante
destacarmos os aspectos fundamentais da fidelidade de Deus na Escritura
do apóstolo. Deus é fiel posto que é constante, confiável. Mantém sua

237  Paulo não lia as Escrituras de modo histórico-crítico, mas certamente percebia as nuanças
teológicas das distintas tradições nela presentes.
238  Este tema, na pesquisa de língua inglesa, passa por situação similar à do tema da “justificação”.
Em inglês, justificação é expressa quase sempre por righteousness – a propriedade de ser reto, direito
– que provoca uma concentração demasiada no aspecto forense das palavras gregas e hebraicas
envolvidas, algo que poderia ser evitado se fosse usada a palavra justice, mas esta tem conotações
inadequadas para a teologia; o que é diferente nas línguas latinas, em que justiça e direito são
distinguidos, embora interligados, e ambos os termos são apropriados à discussão teológica.
Fidelidade, em inglês, normalmente é expressa pela palavra faithfulness (assim em Wright, por
exemplo), em vez de fidelity ou loyalty. Uma vez que faithfulness é abstração de faith, o anacronismo
já mencionado entra em operação.

252
palavra e permanece firme em sua eleição, aliança e promessas para Israel.
Enquanto o ser humano não é confiável, posto que volúvel e mentiroso,
Deus sempre fala a verdade e pode receber a plena confiança do ser huma-
no. Todavia, Deus é fiel, mas não previsível, nem todos os seus atos podem
ser compreendidos ou previstos (esta é uma das críticas à teologia sapien-
cial determinista em Jó e Eclesiastes). É imprevisível, mas não arbitrário
– “Deus não é homem para mentir, nem filho de homem para mudar de
ideia. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não
o cumprirá?” (Nm 23,19). Dois textos em particular são importantes para
a percepção da imprevisibilidade não-arbitrária de YHWH na Escritura.
Gn 22,1ss relata a ordem divina a Abraão para sacrificar seu filho Isaque,
o que impediria o cumprimento da promessa divina a Abraão. Mesmo
assim, Abraão obedece e chega a ponto de matar seu filho quando é im-
pedido por um mensageiro celestial, que justifica a decisão dizendo “agora
sei que temes a Deus”. O outro texto é:

[...] pelo que também lhes dei estatutos que não eram bons, e normas
pelas quais não alcançariam a vida; e permiti que se contaminassem
com seus dons sacrificiais, como quando queimavam a fogo tudo o que
abre a madre, para confundi-los a fim de que soubessem que eu sou
YHWH (Ez 20,25-26).

Também relacionado ao sacrifício de primogênitos humanos,


esse texto faz parte da teologia de um profeta que enfatiza o fato de que
YHWH se dá a conhecer ao ser humano e se mantém fiel à aliança (em-
bora a modifique).
A imprevisibilidade da fidelidade divina é marca registrada da
resposta divina à infidelidade humana. Deus permanece fiel, mas julga
o seu povo e os seus eleitos. Assim, o exílio é reconhecido pelos profetas
como expressão da consequência dos pecados de Judá e de Israel. Ha-
bacuque, em especial, reflete sobre essa imprevisibilidade, questionando
YHWH por se utilizar de um povo mais pecador do que Judá para pu-
ni-lo. O profeta, enfim, reconhece o direito de YHWH punir seu povo,
como expressão de sua fidelidade, e afirma – em texto apreciado por Paulo
– “o justo viverá por sua fidelidade” (Hc 2,4). Habacuque reconhece que

253
YHWH é fiel a si mesmo e ao seu compromisso com o seu povo, e não
fiel ao povo propriamente dito.
A noção de fidelidade divina na Escritura judaica tem a ver, en-
tão, primariamente, com o compromisso de Deus para com o seu povo, co-
mumente descrito como uma berith. A fidelidade, então, se compõe com
a hesed (bondade, generosidade, amor pactual etc.) e define o modo como
YHWH se relaciona com o seu povo. Mas esse compromisso divino com
Israel só faz sentido à luz do compromisso de YHWH com toda a criação.
“Estabeleço a minha berith (minha aliança, meu compromisso, ou minha
promessa) convosco: não será mais destruída toda carne por águas de di-
lúvio, nem mais haverá dilúvio para destruir a terra” (Gn 9,11); o que, logo
a seguir, é repetido: “então, me lembrarei da minha berith, firmada entre
mim e vós e todos os seres viventes de toda carne; e as águas não mais se
tornarão em dilúvio para destruir toda carne” (Gn 9,15). O compromisso,
aqui, não depende da resposta de “toda a carne”, Deus se compromete
com “toda a carne”, sem que haja qualquer compromisso da parte de “toda
a carne”. Em outros textos e tradições, a berith é firmada com diferentes
parceiros, dos quais o mais importante e frequente é Israel (passim), mas
também se deve levar em conta a aliança com a dinastia davídica (2Sm 7
etc.) que domina boa parte da teologia da Escritura judaica.
No hebraico bíblico não temos uma palavra exclusiva que se pos-
sa traduzir por promessa. Normalmente se usa a raiz sb´ (predominante-
mente jurar, que em algumas versões modernas se traduz por “prometer
um juramento”, e.g. “e dali nos tirou, para nos levar e nos dar a terra que
sob juramento prometeu a nossos pais” Dt 6,23), seguida das raízes ntn (dar)
e brk (abençoar). A promessa, sinteticamente falando, na Escritura He-
braica é tríplice: descendência, terra e honra ou prosperidade (Gn 12,1-4;
15,1ss; 18,1ss; 22,14ss; 26,3s; Dt 1,8.35; 4,31; 6,10.23; etc.). Duas tradi-
ções, pelo menos, também dominam este tema na Escritura: (a) em uma
delas, eleição, promessa, aliança e bênção não são exclusivas a Israel, mas
expressão da vontade de YHWH em abençoar todas as famílias da terra e
toda a vida na terra (já vimos, acima, Gn 9; mas também devemos incluir
aqui as promessas aos patis e mães de Israel, as declarações sobre a Torá e a
salvação para todos os povos no livro de Isaías, e textos (minoritários, por

254
certo) que explicitamente mencionam outras nações como alvo da ação li-
bertadora de YHWH: Am 9,2ss; Is 19,19ss. Por isso, Amós, por exemplo,
é capaz de questionar radicalmente a versão egocêntrica da eleição: “Ouvi
a palavra que YHWH fala contra vós outros, filhos de Israel, contra toda a
família que ele fez subir da terra do Egito, dizendo: ‘de todas as famílias da
terra, somente a vós outros vos escolhi; portanto, eu vos punirei por todas
as vossas iniquidades’” (3,1-2); e (b) essa é a segunda tradição na Escritura,
a que vê o complexo temático da berith como focado exclusivamente no
povo de Israel e seu rei, que se desdobra em uma visão davidida (presente
em 2Sm 7 e em muitos Salmos, mas de forma crítica em Isaías e Jeremias,
por exemplo) e uma visão sacerdotal-jurídica que se desenvolve a partir da
dominação persa (presente em Esdras, Neemias etc.).239
A imprevisibilidade não-arbitrária da fidelidade de YHWH
mostra que o Senhor é fiel a Si mesmo e à relação que estabelece com sua
criação – não é fiel a “esta ou aquela pessoa”, mas à relação e ao projeto
de vida por ela instituído, na medida em que esse projeto manifesta quem
Deus é. Projeto que recebe a expressão textual da promessa/juramento, da
eleição, da aliança e da bênção, e desemboca na demanda de fidelidade
da parte do povo eleito, a ser expressa primariamente pela realização da
vontade de YHWH expressa em sua Torá240. Em Is 42,8 esse complexo
temático está presente e é vinculado ao tema da glória de YHWH, que
inclui a sua unicidade: “Eu sou YHWH, este é o meu nome. Não darei
minha glória a ninguém, nem meu louvor aos ídolos”. O não-cumprimen-
to da torá acarreta o distanciamento entre o povo e YHWH, de modo
que Israel fica entregue às consequências de sua infidelidade (nos profetas
pré-exílicos esta consequência é predominantemente textualizada como
dominação estrangeira e perda da terra). Deus, todavia, como é fiel, não
fará da punição a última palavra. Pois exatamente no tempo em que Pau-
lo vive, a fidelidade de Deus é contestada, pois o seu povo está, porque,
novamente, sem-terra e sem-honra. A situação de exílio é mais uma vez

239  Não é possível provar, mas podemos sugerir que o fariseu fundamentalista Saulo seguia esta
visão exclusivista do complexo teológico da berit, abandonada pelo apóstolo Paulo, que passa a
seguir a visão aberta e includente da temática já presente na Escritura.
240  A própria Torá de YHWH é qualificada como fiel, tema celebrado nos Salmos, e.g.: 19;
117; 119.

255
vivida por Israel, disperso pelo mundo então conhecido e subjugado ao
Império Romano. É nesse contexto da tensão entre a infidelidade do povo
– fundada primariamente em uma compreensão inadequada de sua pró-
pria eleição – e a fidelidade de Deus, que Paulo desenvolve sua teologia da
fidelidade divina, ressignificada messianicamente.
Enfim, cabe lembrar que, ao falarmos sobre a fidelidade divina
referimo-nos ao modo como Deus se relaciona com sua criação e, em es-
pecial, seu povo eleito (para Paulo, não só o Israel institucional): o modo
amoroso, gracioso, bondoso, solidário, compassivo, abençoador etc. Todas
essas qualificações fazem parte da noção de fidelidade, que as sobredeter-
mina com a noção da permanência e da confiabilidade.
Na sequência o tema será abordado em dois tópicos: começando
com o tema da fidelidade do Messias, o cerne da ressignificação messiânica
da teologia da fidelidade divina em Paulo; em segundo lugar, discutiremos
as ações e paixões de YHWH que manifestam o modo de relacionamento
de Deus com sua criação e seu povo e formam o complexo conceitual da
fidelidade divina. A posição estrutural desta seção no capítulo nos lembra
de que o complexo conceitual teológico da fidelidade é indissoluvelmente
ligado ao complexo teológico conceitual da eleição-chamado divino, de
modo que ambos se complementam mutuamente.

4.4.2 A fidelidade divina messianicamente ressignificada


4.4.2.1 A Fidelidade do Messias
O tema da fidelidade do Messias Jesus reapareceu nas últimas
décadas como um furacão na pesquisa histórico-crítica, gerando uma bi-
bliografia interminável e um debate infindável. Seria inútil tentar, aqui,
expor esse debate e justificar a escolha pela interpretação do genitivo em
questão como subjetivo e não objetivo. Assim, simplesmente apresentarei
a minha interpretação dos textos fundamentais para este tema, a fim de
compreender a teologia da fidelidade divina em Paulo.241
A expressão em questão não é frequente em Paulo, sendo usada
apenas cinco vezes e sempre em conexão com o tema da justiça de Deus e da
241  A bibliografia é quase infinita, assim, ofereço apenas um aperitivo, em uma perspectiva
cronológica mais ampla presente ao final deste livro.

256
justificação: Rm 3,22.26; Gl 2,16 (2x); 3,22; Fp 3,9. Para compreendermos
a noção paulina, porém, devemos levar em conta os parágrafos aos quais
estes versos pertencem, os quais apresento a seguir em ordem cronológica.

Nós, judeus por natureza, não pecadores dentre os gentios, sabemos


que nenhum ser humano é justificado com base nas obras da lei (ἐξ
ἔργων νόμου), mas, apenas mediante a fidelidade do Messias Jesus (διὰ
πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ); por isso cremos no Messias, a fim de sermos
justificados com base na fidelidade do Messias (διὰ πίστεως Ἰησοῦ
Χριστοῦ) e não com base nas obras da lei (ἐξ ἔργων νόμου), posto que
com base nas obras da lei ninguém poderá ser justificado. Ora, se nós
que buscamos ser justificados no Messias somos considerados pecado-
res, então o Messias também é servo do pecado? De modo nenhum!
Pois se construo aquilo que eu mesmo destruí, então sou constituído
transgressor. Pois eu, mediante a lei, morri para a lei, a fim de viver
para Deus. Tendo sido crucificado com o Messias, já não vivo mais eu
mesmo, mas o Messias vive em mim, e a vida que agora vivo na carne,
vivo-a na fidelidade do Filho de Deus (ἐν πίστει ζῶ τῇ τοῦ υἱοῦ τοῦ
θεοῦ) que me amou e se entregou a si mesmo em meu favor. Não inva-
lido a graça de Deus, pois se a justiça vier pela lei (διὰ νόμου), então o
Messias terá morrido em vão (Gl 2,15-21).
É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De modo ne-
nhum! Porque, se fosse promulgada uma lei capaz de vivificar, a jus-
tiça, na verdade, seria baseada nessa lei (ἐκ νόμου). Mas a Escritura
encerrou tudo sob o pecado, para que, com base na fidelidade do
Messias Jesus (ἐκ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ), a promessa fosse conce-
dida aos fiéis (Gl 3,21-22).
Mas agora tem sido manifestada, sem lei, a justiça de Deus, conti-
nuamente testemunhada pela Lei e pelos Profetas; a justiça de Deus
mediante a fidelidade do Messias Jesus (διὰ πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ)
para todos os fiéis, porque não há distinção, visto que todos pecaram e
não estão à altura da honra de Deus, sendo justificados gratuitamente
pela sua graça, pela libertação que há no Messias Jesus. Ao qual Deus
tornou público como sacrifício propiciatório, em seu sangue, mediante
sua fidelidade (διὰ [τῆς] πίστεως), a fim de demonstrar a sua justiça
mediante o perdão dos pecados dantes cometidos, sob a tolerância de
Deus, com vistas à demonstração da sua justiça neste tempo presente,
para que ele seja justo e justificador daquele que vive com base na fide-
lidade de Jesus (τὸν ἐκ πίστεως Ἰησοῦ) (Rm 3,21-26).

257
Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do
conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi
todas as coisas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo e ser
achado nele, não tendo como minha justiça a que decorre da lei (ἐκ
νόμου), mas a que vem mediante a fidelidade do Messias (διὰ πίστεως
Χριστοῦ), a justiça que procede de Deus edificada sobre a fidelida-
de (ἐπὶ τῇ πίστει); para o conhecer, e o poder da sua ressurreição, e
a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-me com ele na sua
morte; para, de algum modo, alcançar a ressurreição dentre os mortos
(Fp 3,8-11).

O primeiro aspecto que nos chama a atenção é que em todas


as cinco passagens o tema é a justiça de Deus, com uma pergunta obvia-
mente pressuposta: se não é pela obediência à Lei divina, como então é
possível receber a justiça (libertação) de Deus? A pergunta, é claro, vem
do ambiente judaico: “estamos mais uma vez sob o domínio de uma na-
ção estrangeira. Quando virá a nossa libertação? Que devemos fazer para
que YHWH mais uma vez nos liberte?”.242 Que o problema é “judaico”
já fica evidente na abertura de Gálatas 2: “Nós, judeus por natureza, não
pecadores dentre os gentios, temos o conhecimento de que [...]”. Conse-
quentemente, e este é o segundo aspecto notável, a questão gira ao redor
da fidelidade de Deus vista sob a ótica de Israel: quando e como YHWH
cumprirá sua promessa? O terceiro aspecto a ser ressaltado é que, en-
quanto as perícopes tematizam primariamente a fidelidade de Deus na
libertação de Israel, em duas delas Paulo torna pessoal a pergunta: “pois
eu, mediante a lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus. Tendo sido
crucificado com o Messias, já não vivo mais eu mesmo, mas o Messias vive
em mim, e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fidelidade do Filho de
Deus que me amou e se entregou a si mesmo em meu favor” (Gl 2,19-20);
e “[...] por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como refugo,
para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo como minha justiça a
que decorre da lei, mas a que vem mediante a fidelidade do Messias [...]”
(Fp 3,8-11). O quarto aspecto é a ligação do tema da justiça com o tema

242  Se lemos estes textos a partir da pergunta agostiniana ou luterana não encontramos a
resposta adequada. É evidente que isto não quer dizer que não podemos interpretar o texto a
partir de novas perguntas.

258
da vivificação e da vida messiânica, de modo que não podemos simples-
mente reduzir a temática destas perícopes à noção da “justificação” – seja
no modo “evangélico”, seja no “judaico”.
A primeira pergunta a ser feita aos textos é: como “nós, judeus
por natureza, não pecadores dentre os gentios, sabemos que nenhum ser
humano é justificado243 com base nas obras da lei, mas, apenas mediante
a fidelidade do Messias Jesus”? A resposta de Paulo deve ter tido os se-
guintes elementos: (a) “Sabemos”, porque a libertação de Israel do Egito
ocorreu antes da outorga da Lei e foi um ato amoroso do Deus poderoso
e fiel que prometera aos pais de Israel descendência e terra; (b) “Sabemos”,
porque Abraão recebeu a promessa muito tempo antes da Lei (argumento
de Paulo na sequência de Gálatas); (c) “Sabemos”, porque a Lei nos foi
dada para permanecermos na terra e não para a ganharmos, o que nos
ensina, e.g., Dt 6,10-25:

YHWH, o seu Deus, os conduzirá à terra que jurou aos seus antepas-
sados, Abraão, Isaque e Jacó, dar a vocês, terra com grandes e boas ci-
dades que vocês não construíram, com casas cheias de tudo o que há de
melhor, de coisas que vocês não produziram, com cisternas que vocês
não cavaram, com vinhas e oliveiras que vocês não plantaram. Quando
isso acontecer, e vocês comerem e ficarem satisfeitos, tenham cuidado!
Não esqueçam de YHWH que os tirou do Egito, da terra da escravi-
dão. Temam a YHWH, o seu Deus, e só a ele prestem culto, e jurem
somente pelo seu nome. Não sigam outros deuses, os deuses dos povos
ao redor; pois YHWH, o seu Deus, que está no meio de vocês, é Deus
zeloso; a ira de YHWH, o seu Deus, se acenderá contra vocês, e Ele
os banirá da face da terra. Não ponham à prova YHWH, o seu Deus,
como fizeram em Massá. Obedeçam cuidadosamente aos mandamen-
tos de YHWH, o seu Deus, e aos preceitos e decretos que Ele lhes
ordenou. Façam o que é justo e bom perante YHWH, para que tudo
lhes vá bem e vocês entrem e tomem posse da boa terra que o YHWH
prometeu, sob juramento, a seus antepassados, expulsando todos os
seus inimigos de diante de vocês, conforme YHWH prometeu. No
futuro, quando os seus filhos lhes perguntarem: ‘O que significam estes
preceitos, decretos e ordenanças que YHWH, o nosso Deus, ordenou a

243  Deveria ser evidente que “justificado” nestes textos é sinônimo de “libertado”, mas séculos de
interpretação antropocêntrica da “justificação pela fé” dos pecadores nos impede de enxergar o óbvio.

259
vocês?’ Vocês lhes responderão: ‘Fomos escravos do faraó no Egito, mas
YHWH nos tirou de lá com mão poderosa. YHWH realizou, diante
dos nossos olhos, sinais e maravilhas grandiosas e terríveis contra o
Egito e contra o faraó e toda a sua família. Mas ele nos tirou do Egito
para nos trazer para cá e nos dar a terra que, sob juramento, prometeu
a nossos antepassados. YHWH nos ordenou que obedecêssemos a to-
dos estes decretos e que temêssemos YHWH, o nosso Deus, para que
sempre fôssemos bem-sucedidos e que fôssemos preservados em vida,
como hoje se pode ver. E permanecerá sobre nós a justiça244, enquanto
ouvirmos, para cumprir, todos estes mandamentos, diante de YHWH,
conforme ele nos tem ordenado’ (tradução NVI com modificações).

Essa passagem do Deuteronômio nos conduz à segunda pergun-


ta que Paulo tenta responder nestes textos: “se Deus é fiel e justo, porque
nós, israelitas, ainda estamos debaixo da dominação dos romanos, ao invés
de termos recebido a justiça libertadora de YHWH?”. A resposta paulina
seria algo mais ou menos assim: “ainda estamos sob a dominação romana
porque não temos sido fiéis a YHWH, apesar de ouvirmos a Lei diaria-
mente, não a praticamos, esquecemo-nos de nosso Deus e nos colocamos
debaixo do poder de uma nação estrangeira”. E se algum israelita ques-
tionar a justiça divina por estar debaixo do juízo, mesmo sendo individu-
almente cumpridor da Lei, a resposta de Paulo seria a que ele oferece em
Gl 3,10-11:

Já os que vivem com base nas obras da Lei (ἐξ ἔργων νόμου) estão
debaixo de maldição, pois está escrito: ‘Maldito todo aquele que não
persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da Lei’. É evidente
que ninguém é vindicado diante de Deus pela Lei, pois o justo viverá
com base na fidelidade (citando Dt 27,26 e Hc 2,4).

A terceira pergunta é clara: “como, então, podemos receber a


justiça de Deus, se ela não é concedida porque cumprimos a lei?”. A
resposta de Paulo, em uma frase, é com base na fidelidade do Messias (ou
mediante a fidelidade do Messias). O imaginário interlocutor de Paulo
poderia, então, perguntar: “mas como a fidelidade do Messias pode ser

244  O hebraico é: ‫ ּונ ָ ּ֑ל־הֶיְה ִ ּֽת ה ָ֖קָדְצּו‬.

260
a base de nossa libertação?”. A resposta paulina está implícita nos tex-
tos citados e em toda a sua teologia: a fidelidade do Messias pode ser
a base da nossa libertação porque ele é o servo eleito de YHWH –
Paulo interpreta a messianidade de Jesus à luz dos poemas do escravo
de YHWH em Isaías. De particular relevância para essa pergunta é Is
53,11: “a partir do penoso trabalho de sua vida ele verá e ficará satisfeito.
Em seu conhecimento, meu escravo justo justificará a muitos, visto que
ele mesmo carregará suas iniquidades”.245 O que está explícito, porém,
na discussão paulina em Romanos e Gálatas é o papel de Abraão como
o “fiel”, o precursor histórico do Messias Jesus, aquele cuja fidelidade é o
padrão para a fidelidade de seguidoras e seguidores do Messias (cf. todo
o capítulo 4 de Romanos e Gl 3,6-29).
Esta interpretação é, então, similar à de Wright:

com isto Paulo lidou de modo preliminar com o problema de 2,17-20:


sim, Israel realmente foi escolhido a fim de ser meio de bênção para o
mundo e, sim, a despeito do fracasso de Israel em ser fiel a essa comis-
são, o Deus da aliança será fiel à promessa de abençoar o mundo por
meio de Israel. Mas o que ele ainda não fez é dizer como Deus fará
isto. Paulo, porém, colocou o problema de modo tal que podemos ver,
em princípio, o que é agora exigido: se o Deus da aliança irá abençoar o
mundo através de Israel, ele necessita de um israelita fiel. Em 3,21-26
Paulo argumenta que é exatamente isto que Deus providenciou agora.
Uma vez que entendemos Christos como o Messias, representante de
Israel, Israel-em-pessoa se você preferir, a lógica funciona imaculada-
mente: (a) O Deus da aliança promete libertar e abençoar o mundo
por meio de Israel; (b) Israel, em sua condição atual, é infiel a essa
comissão; (c) O Deus da aliança, porém, é fiel e proverá um israelita
fiel, o ‘israelita fiel’, o Messias. É a coerência intensa desta linha de
pensamento, mais do que quaisquer argumentos verbais sobre sujeitos
e objetos, preposições e casos, de um lado, ou de posições teológicas
preferenciais, de outro, que me persuadiu muitos anos atrás que Rm
3,22 fala sobre a fidelidade do Messias. E ainda estou persuadido246.

245  Este será um dos temas do capítulo que tematiza a fidelidade salvífica de Deus, de modo que
simplesmente o introduzo aqui, sem detalhamento.
246  WRIGHT, op. cit., p. 839.

261
Falta à explicação de Wright a inclusão de Abraão como o pro-
tótipo do “Israel-em-pessoa”, pois em Gn se diz “em ti serão abençoadas
todas as famílias da terra” (12,3) – texto citado por Paulo em Gl 3,8 – e
tema da continuação do argumento paulino no capítulo 4 de Romanos.
Deve ter ficado evidente que as perguntas do imaginário interlo-
cutor de Paulo estão baseadas em uma situação nova para um israelita dos
tempos de Paulo: a libertação dos gentios pelo Messias. Se a pregação de
Paulo se restringisse aos judeus estas perguntas provavelmente não seriam
feitas, mas é a inclusão dos gentios no povo messiânico de Deus que gera
toda essa discussão sobre a fidelidade divina manifesta na fidelidade do
Messias. É óbvio, então, que Paulo está discutindo com um interlocutor
judeu fundamentalista, assim como ele mesmo o fora antes de conhecer
o Messias Jesus. O zelo extremo de Paulo por Israel, após a revelação do
Filho de Deus nele, foi radicalmente transformado e se tornou em amor
por todas as nações e por toda a criação. O fariseu Saulo agora é o apóstolo
Paulo, fiel a Deus mediante a fidelidade do Messias, não mais o esforçado
fariseu que buscava alcançar a justiça mediante as suas próprias mãos.
Descortina-se, assim, o movimento da fidelidade: a fidelidade de Deus
se manifesta na fidelidade do Messias, possibilita a fidelidade ao Messias
que, fielmente, vive em cada pessoal fiel a Deus nele, manifestando essa
fidelidade no fruto do Espírito que é amor-fiel...

4.4.2.2 A fidelidade divina em seu relacionamento com


a humanidade
Em sua ressignificação messiânica da teologia da fidelidade di-
vina Paulo destaca dois conjuntos de temas que determinam o modo do
relacionamento do Deus que ama fielmente: (a) as ações divinas: eleição,
promessa, aliança, bênção etc.; e (b) as paixões divinas: amor, graça, bonda-
de, misericórdia etc.247 É claro que não irei tratar de cada um desses temas
neste tópico, pois boa parte deles comporá os demais capítulos desta Te-
ologia Paulina. Cabe, aqui, refletir conceitualmente sobre estes dois con-
juntos de temas a fim de captar a visão própria de Paulo sobre a relação de
247  Neste sentido, a proposta de N. T. Wright está acertada ao perceber que todos os temas
paulinos, de um modo ou de outro, dão algum tipo de expressão à noção da fidelidade divina.

262
Deus com a sua criação e seu povo e como esta visão descreve a identidade
de YHWH – Pai, Filho, Espírito Santo.
A pergunta judaica fundamental sobre a fidelidade de YHWH
é, como vimos, a pergunta sobre a condição de Israel sob a dominação
imperial. A resposta de Paulo, em parte, é tipicamente judaica: “estamos
sem vida porque pecamos contra Deus e sofremos o juízo”, mas este ainda
não é o fim, pois como Deus é fiel, “no fim todo o Israel será salvo” (Rm
11,26). Essa resposta, porém, recebe um tríplice deslocamento em sua re-
leitura messiânica: (a) o destinatário da ação de Deus não é mais definido
de modo político-institucional, a nação de Israel; mas de modo pessoal,
Israel enquanto descendência do fiel Abraão; (b) a condição de ‘exílio’ é
universalizada e ontologizada: judeus e gentios são igualmente escravos
de poderes dominadores, pois como diz a Escritura, ‘todos pecaram’; e
(c) a identidade do Messias é deslocada do âmbito da pertença simples a
Israel, para a pertença dupla: o Messias é tanto o Israel-fiel quanto o Filho
de Deus esvaziado; assim, a libertação é ampliada não só em termos de
destinatários, mas também em termos da qualidade de vida a que se refere.
Na seção sobre a eleição-chamado discutimos brevemente Rm
9-11, um dos principais textos ressignificadores do tema da fidelidade
divina. Agora, discutiremos brevemente Gl 3,1-4,7 que recobre o mesmo
tema de Rm 9-11 porém sob a ótica da universalidade da promessa-a-
liança-justiça de Deus prefigurada na eleição-chamado de Abraão. Como
toda a carta aos gálatas, essa perícope é polêmica, e nela Paulo repreende
os gálatas por estarem abandonando o Messias em sua aceitação da tese
de que é necessário ser circuncidado e cumprir a Lei. Essa atitude dos
gálatas permite a Paulo, então, apresentar sinteticamente a sua ressignifi-
cação do tema da fidelidade divina.
Iniciemos com o texto.

Ó gálatas insensatos! Quem vos enfeitiçou, perante cujos olhos o Mes-


sias Jesus foi exposto como tendo sido crucificado? Apenas isto quero
saber de vós: com base nas obras da lei recebestes o Espírito, ou com base
no ouvir fiel248? Sois assim tão insensatos que, tendo começado no Espí-

248  Há uma longa e quase incessante discussão sobre a expressão grega. Boa parte dos
comentários opta por traduzir a expressão por “pregação da fé’, interpretando a palavra ’akoes a

263
rito, sejais, agora, aperfeiçoados na carne? Terá sido em vão que experi-
mentastes estas grandes coisas? Se é que elas poderiam ser inúteis. Deus,
pois, que agora vos concede o Espírito e que opera milagres entre vós,
porventura, o faz com base nas obras da lei ou com base no ouvir fiel?
Assim foi no caso de Abraão: ‘creu em Deus e isso lhe foi reconhe-
cido com vistas à justiça’. Reconheçai, portanto, que as pessoas que
vivem com base na fidelidade são as filhas de Abraão. Ora, prevendo
a Escritura que Deus justifica as nações com base na fidelidade, pre-
evangelizou Abraão: ‘em ti serão abençoadas todas as nações’, assim,
os que vivem com base na fidelidade são abençoados com Abraão, o
fiel. Consequentemente, os que vivem com base nas obras da lei estão
sob maldição, pois está escrito: ‘maldita toda pessoa que não persevera
em todas as palavras escritas no livro da lei para cumpri-las’. Ora, é
evidente que ninguém é justificado diante de Deus ao viver na esfera
da lei (ἐν νόμῳ), pois ‘o justo viverá com base na fidelidade’. Ora, a lei
não tem sua base na fidelidade, mas ‘aquele que pratica estas coisas vi-
verá por elas’. O Messias nos resgatou da maldição da lei, tornando-se
maldição em nosso lugar, assim como está escrito: ‘maldita toda pessoa
pendurada em madeira’, a fim de que chegasse às nações a bênção de
Abraão, no Messias Jesus, e que recebêssemos a promessa do Espírito
mediante a fé-fidelidade.
Irmãos, falo como ser humano. Ainda que um testamento seja mera-
mente humano, uma vez ratificado, ninguém o revoga ou lhe acres-
centa aditivos. Ora, as promessas foram anunciadas a Abraão e à sua
semente. Não diz: ‘e às suas sementes’, como se falando de muitos,
porém como de um só: ‘e à tua semente’, que é o Messias. O que quero
dizer é o seguinte: a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não
pode revogar um testamento já anteriormente ratificado por Deus, de
forma que venha a tornar inoperante a promessa. Porque, se a herança

partir de Is 53,1 e Rm 10,17. O argumento linguístico é fraco, pois nada impede que Paulo tenha
usado a mesma palavra com sentidos diferentes, e este é um caso comum quando comparamos
Gálatas com Romanos. O outro argumento mais comumente usado para a escolha é a afirmação
de que Paulo estaria aqui contrapondo o ato humano de praticar as obras da Lei com o ato divino
de salvar mediante a pregação da boa nova. É um argumento mais sólido, mas, a meu ver, não
persuasivo. O tópico da seção é o modo como os gálatas receberam o Espírito, o que nos faz pensar
em alguma ação da parte dos gálatas, e não na origem dessa ação (a pregação). Por isso, optei pela
tradução “ouvir fiel” que visa descrever o modo de recepção do Espírito: não mediante a prática das
obras da Lei, mas mediante o ouvir da pregação do Evangelho em atitude de fé-fidelidade – o que
é confirmado pelo verso 14, em que Paulo afirma que recebemos a promessa do Espírito mediante
a fé-fidelidade.

264
provém de lei, já não decorre de promessa; mas foi pela promessa que
Deus a concedeu graciosamente a Abraão.
Que é, então, a lei? Foi adicionada por causa das transgressões, até que
viesse a semente a quem se fez a promessa, e foi promulgada por meio
de anjos, pela mão de um mediador. Ora, o mediador não é uno, mas
Deus é um. É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De
modo nenhum! Porque, se tivesse sido dada uma lei capaz de vivificar,
então a justiça, na verdade, seria procedente de lei. Mas a Escritura
confinou todas as coisas sob o pecado, para que, mediante a fidelidade
do Messias Jesus, a promessa fosse concedida aos fiéis.
Ora, antes de que a fidelidade viesse, estávamos sob a custódia da lei,
confinados para a fidelidade vindoura que haveria de se revelar, de
modo que a lei foi nossa pedagoga até a chegada do Messias, a fim
de que fôssemos justificados com base na sua fidelidade. Depois que
a fidelidade chegou, porém, já não estamos mais sob a pedagoga. As-
sim, todos vós sois filhos de Deus mediante a fé-fidelidade no Messias
Jesus, pois todos vós que fostes batizados no Messias, do Messias vos
revestistes. Não há judeu nem grego; não há escravo, nem livre; não
há macho nem fêmea; pois todos vós sois um no Messias Jesus. Ora,
se vós sois do Messias, também sois da semente de Abraão, herdeiros
segundo a promessa.
Mas vos digo o seguinte: enquanto o herdeiro é uma criança, em nada
difere de um escravo, ainda que senhor de todos, mas está debaixo
de guardiões e administradores até o tempo fixado pelo pai. Assim
também em relação a nós: enquanto éramos crianças, estávamos escra-
vizados sob os rudimentos do mundo. Todavia, chegada a plenitude do
tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo
da lei, a fim de resgatar quem está debaixo da lei, a fim de que rece-
bêssemos a adoção filial. Ora, uma vez que sois filhos, Deus enviou o
Espírito de seu Filho aos nossos corações, o qual exclama ‘Abba, Pai’.
Assim, já não sois escravos, mas filhos; e se filhos, também sois herdei-
ros, mediante a adoção de Deus.

O texto é longo e evidentemente não farei aqui uma exegese com-


pleta, mas manterei o foco na ressignificação da fidelidade divina aqui re-
alizada por Paulo249. Apenas alguns comentários breves sobre o texto em
si. A sua estrutura é em paralelismo quiástico: A (3,1-5); B (3,6-14); C

249  A carta aos Gálatas será analisada em detalhes no capítulo sobre a fidelidade evangélica.

265
(3,15-18); C’ (3,19-22); B’ (3,23-29); A’ (4,1-7). As seções A e A’ partilham
da temática da experiência do Espírito, as seções B e B’ da temática da des-
cendência de Abraão, enquanto as seções centrais se ocupam do tema da
Lei. A temática da fidelidade divina perpassa toda a perícope, desdobrada
nos subtemas da fé-fidelidade no Messias e da fidelidade do Messias como
expressão da fidelidade libertadora de Deus. A seção B (3,6-14) fornece a
base bíblica da ressignificação paulina da fidelidade de Deus, centrada na
figura de Abraão e da relação entre promessa e lei na vida de Abraão e de
Israel (descendentes de Abraão). Os temas da promessa, adoção, herança e
resgate fazem parte do complexo conceitual da fidelidade + eleição-chama-
do. Os textos bíblicos interpretados são: Gn 15,6 que fornece a tese central;
Gn 12,3 que expande a tese central para incluir os gentios na justiça de
Abraão; quatro textos relativos à questão da lei: em 3,10 Dt 27,26; em 3,11
Hc 2.4; em 3,12 Lv 18,5 e em 3,13 Dt 21,23.250
Qual é o significado a que Paulo se opõe, desconstruindo-o mes-
sianicamente? Em primeiro lugar, uma versão farisaica fundamentalista da
fidelidade divina a Israel: (a) Deus escolheu Israel, na pessoa de Abraão,
a semente do patriarca; (b) Abraão foi fiel a Deus aceitando a sua aliança,
sendo circuncidado e cumprindo a vontade de Deus posteriormente refe-
rendada na Lei; (c) Abraão é protótipo da fé no Deus único, abandonando
os seus antigos ídolos para servir ao único e vivo Deus de Israel; (d) a
promessa a Abraão também é dirigida aos gentios, mas desde que eles se
tornem descendência física de Abraão, sendo circuncidados e participan-
do da nação de Israel, submetendo-se ao cumprimento das obras da Lei;
(e) Israel foi, várias vezes, infiel a Deus, mas este, sendo fiel, renovou sua
aliança com os descendentes de Abraão, dando uma nova capacidade de
cumprir a Lei; (f ) o Messias será um instrumento divino para a restau-
ração de Israel, mas somente realizará sua tarefa se Israel perseverar no
cumprimento da Lei como preparação para a libertação messiânica. A
ação messiânica não prevê a inclusão de gentios no povo de Deus, que só
pode se dar mediante a aceitação plena da identidade judaica nacional.251

250  A teologia a que Paulo ressignifica se baseia primariamente em Gn 17,9-14 e 26,5, presente
em textos como Sirácida 44,19-20; Jub 17,15-16; 23,10; 24,11; 1Mac 2,50-51; 4QMMT; Filo,
Abraão 60ss.
251  É evidente que não se pode provar ter sido exatamente esta a interpretação concorrente, mas

266
Em segundo lugar, mediante a sua ressignificação da teologia
farisaica, Paulo também passa a questionar a ressignificação oferecida
por judeus seguidores do Messias Jesus (“de Jerusalém” segundo Gálatas).
Esta teologia teria modificado apenas o item (f ): o Messias Jesus torna a
bênção de Abraão também disponível aos gentios, pois sua morte salví-
fica abrangeu a toda a humanidade, não apenas os judeus. A verdadeira
fé-fidelidade ao Messias, porém, é manifestada mediante a obediência às
“obras da Lei”.
A ressignificação proposta por Paulo seria então:
(a) Deus escolheu Abraão para abençoar todas as nações; (b)
Abraão ouviu o chamado de Deus e o Senhor reconheceu a sua fidelidade,
considerando-o justo; (c) Abraão é protótipo da fé-fidelidade e nele já
estava incluído o Messias, a semente de Abraão; (d) a promessa a Abraão
se dirige a judeus e gentios igualmente, não enquanto judeus ou gentios,
mas enquanto pessoas que vivem de acordo com a fidelidade prefigurada
por Abraão e plenificada no Messias; (e) Israel, parte dos descendentes de
Abraão, recebeu a promessa e, quatrocentos e trinta anos depois, a Lei a
fim de permanecer fiel a Deus e abençoar as nações, mas não foi capaz de
realizar a sua vocação por ter compreendido inadequadamente o papel da
Lei e reduzido a visão de sua identidade ao critério da nacionalidade; (f )
Israel não foi capaz de perceber que, embora povo eleito de Deus, não é
possuidor de privilégio diante de Deus, mas, como todos os descendentes
de Adão, é escravo dos poderes deste mundo; (g) Deus, portanto, enviou
o Messias, seu Filho, como cumprimento da promessa feita a Abraão,
criando para si uma nova família, um novo povo, composto por judeus e
gentios igualmente, por pessoas que receberam o Espírito de Deus para
ser o povo liberto do Senhor; (h) o conteúdo da promessa a Abraão é a
nova vida na espaçotemporalidade messiânica que, operando liminarmen-
te, rearticula a espaçotemporalidade presente, não mais sendo limitado
às expectativas do Israel-nação, mas abrangendo a libertação de toda a
criação divina e a existência do novo povo messiânico de Deus; (i) a re-
cepção da nova vida messiânica, com base na fidelidade do Messias (que
concretiza, simultaneamente, a fidelidade de Deus e a de Abraão), é feita

ela é uma versão plausível da teologia sob questionamento.

267
exclusivamente mediante a aceitação da boa nova messiânica de Deus
mediante fé-fidelidade ao Messias fiel; (j) no Messias o povo messiânico
de Deus está livre da obrigação de cumprir a Lei, posto que a Lei não é
parte integrante da promessa, mas um adendo à promessa, circunscrito
apenas ao Israel-nação, e incapaz de substituir a fidelidade e de vivificar
as pessoas.
Em termos mais abstratos, Paulo não aceita a visão da fidelidade
de Deus que é determinada pelas lógicas do dever (cumprir a Lei), da
dívida (os gentios estão em falta para com Deus por estarem em falta com
Israel), da classificação excludente (Deus elegeu Israel, de modo que os
gentios não fazem parte do povo eleito), da dominação (Israel estenderá a
Lei a todas as nações que a ela se submeterão alegremente) e da totalidade
(Deus é o Deus de Israel e tão somente de Israel, coroa de sua criação).
Essa visão da fidelidade divina remove da mesma a sua imprevisibilidade e
subordina Deus incondicionalmente ao povo da aliança. Paulo oferece, em
substituição a essa compreensão, uma noção de fidelidade determinada
pelas lógicas da potencialidade (poder-ser-fazer como o Messias), da dá-
diva (Deus, no Messias, não considera nenhuma pessoa devedora), da in-
clusividade (toda a criação e todos os tipos de pessoas fazem parte da ação
libertadora e do povo messiânico de Deus), da emancipação (o Messias
liberta toda a criação e todas as pessoas dos poderes que dominam este
mundo presente) e da parcialidade (Deus é deus de toda a criação, mas
manifesta a sua fidelidade universal mediante a parcialidade manifesta no
esvaziamento do Messias e na eleição das comunidades messiânicas como
a concretização do Israel de Deus cuja tarefa é abençoar todos os povos e
manifestar a toda a criação a vontade emancipadora de Deus).
A fidelidade divina é imprevisível, mas não arbitrária, gerado-
ra de eventos e suas consequências, e não de realidades fixas e estáticas,
fechadas ao caráter evental da ação divina. Sob essa ótica, o equívoco te-
ológico que Paulo combate é a redução do evento-Abraão à realidade
Israel-nação, ressignificando, portanto, a compreensão teológica a partir
do evento-Messias que cria uma nova espaçotemporalidade não-fixa, mas
liminar, aberta ao novo permanentemente renovador da fidelidade. Si-
multaneamente, Paulo se opõe aos discursos greco-romanos sobre justiça,

268
honra, fidelidade, paz e vida, posto que eles também são concretizações
das lógicas do dever (obedecer à Lei de Roma ou às leis da polis), dívida
(manter a lealdade apenas com aqueles que garantem a nossa identidade),
classificação excludente (excluir do campo da lealdade quem não pertence
à nossa identidade), dominação (expansão imperial ou civilizacional) e
totalidade (metafísica ou moral).
A fidelidade de Deus é permanência, sim, mas permanência-im-
permanentemente-permanente na esfera da espaçotemporalidade eterna,
eternamente determinada pelo esvaziamento-fiel do Deus-Filho-Mes-
sias, enquanto na esfera da espaçotemporalidade presente é permanên-
cia-impermanente que rompe, irrompe e interrompe o fluxo histórico que
mantém permanentemente a dominação das pessoas pelos poderes deste
mundo. A fidelidade divina messianicamente concretizada gera uma nova
espaçotemporalidade messiânica, permanentemente-liminarmente-pre-
sente na espaçotemporalidade presente como potencialidade-impossibi-
lidade, que, rompendo-irrompendo-interrompendo a dominação e todas
as suas formas, gera permanentemente novas comunidades fiéis, impos-
sivelmente caracterizadas pela fé-fidelidade-amor-esperança messiânica,
comunidades potencializadas para emancipar sem classificar-comandar-
-cobrar-totalizar. Ou, para brincar com palavras caras a Paulo, é uma fide-
lidade parresiástica e parousiástica, (im)permanentemente-corajosa-ousa-
da-inovadora-vindoura.
Cabe, enfim, uma palavra sobre a fidelidade enquanto paixão di-
vina. Seguindo a sua cultura israelita e a teologia das Escrituras, Paulo
não distingue a fidelidade divina das demais paixões relacionais de Deus:
amor, graça, misericórdia, bondade, benignidade, ira, desgosto etc. Para
compreendermos a fidelidade divina como modo de Deus relacionar-se
com a sua criação, precisamos conjugá-la com todos estes termos (e com
os demais termos relevantes aqui não mencionados). Por exemplo: Deus é
fiel em seu desgosto (ira) diante do pecado, por isso o juízo sobre o mes-
mo não é impedido por Deus, na medida em que o pecado contém em
si mesmo a sua própria punição (ou seja, o juízo não é um ato arbitrário
de Deus). O desgosto de Deus, porém, é um desgosto do Deus fiel ao seu

269
projeto de salvar toda a sua criação, de modo que em seu esvaziamento
messiânico, a possibilidade da libertação está aberta a toda a criação, sem
qualquer tipo de distinção. A graça divina é uma graça fiel, não se trata de
uma generosidade arbitrária, que não leva em conta a resposta das pessoas
envolvidas, um ato de “pura” doação realizada fora de um relacionamento
fiel entre doador e receptor. A graça é doação, sim, mas doação que gera
um relacionamento de fidelidade: da graça decorre a gratidão ao doador,
da gratidão ao doador decorre a graciosidade em relação ao próximo, e
vice-versa.
Tudo isso já está presente nas Escrituras judaicas, mas o que é
peculiar nos escritos paulinos é a ressignificação messiânica. A fidelidade
amorosa, graciosa, compassiva e desgostosa de Deus se manifesta na vida
do Messias, no evento messiânico em sua totalidade, que não se esgota
com a ascensão e a parousia, mas permanece na tensa presença liminar da
espaçotemporalidade messiânica na espaçotemporalidade não-messiâni-
ca. Nessa relação tensa, a presença do Espírito de Deus é a manifestação
concreta da fidelidade divina em seus relacionamentos com toda a criação
e, em particular, com o povo de Deus. Não é à toa que o Espírito é descrito
por Paulo como o agente divino da graça e da edificação do povo de Deus,
o penhor da fidelidade divina em nosso tempo presente, a garantia de que
Deus permanece fiel, pois permanece entre nós.

270
Capítulo 5
Conceituando Deus

Nesta seção final do capítulo procuro apresentar analiticamente as


grandes categorias semânticas que subjazem à descrição paulina de Deus,
seguindo, como já afirmado, a lógica do conceito greimasiano do percur-
so gerativo do sentido252. Essas quatro categorias são abstrações da descrição
paulina de Deus analisada na seção anterior e visam dar conta do concei-
to paulino de Deus. Na linguagem típica da semiótica, na seção anterior
analisei os níveis discursivo e narrativo dos textos paulinos, enquanto aqui
analisarei o nível fundamental (discursivo = pessoal; narrativo = social; fun-
damental = cultural).

252  Para a descrição deste conceito, pode-se consultar qualquer dos manuais padrão de semiótica
greimasiana. Em meu Manual de Exegese apresento o conceito e uma bibliografia básica. Sigo
a lógica do conceito de percurso gerativo do sentido, mas esta apresentação das categorias
semânticas do nível fundamental não compõe um quadrado semiótico propriamente dito, expressa,
sim, a presença das categorias no ambiente mais abstrato da cultura, ou semiosfera.

271
5.1 Comunicabilidade

272
Deus se comunica com a sua criação. Isso pode ser descrita
como a primeira dimensão do conceito de Deus nos escritos paulinos.
Na linguagem tradicional da teologia prefere-se usar o termo revelação.
Comunicabilidade, porém, é a noção mais abstrata que engloba e expli-
ca a manifestação/revelação, além de englobar e explicar, também, que
Deus “é um e como um (com as pessoas fiéis)”, pode ser conhecido e
inclui toda a criação na sua própria vida. Quando buscamos reconstruir
as dimensões constituintes do conceito de Deus em Paulo, encontramos
pelo menos estas quatro: comunicabilidade, esvaziabilidade, vidalidade
e pluriunidade. São quatro dimensões que se explicam e complementam
mutuamente para nos entregar o conceito de Deus na teologia paulina.
O Deus que se comunica, comunica-se esvaziando-se, comunica vida e
comunica como unidade plural Deus-Pai, Deus-Filho, Deus-Espírito
(sob a categoria da indiscernibilidade).
Deus se comunica mediante as coisas criadas, a pregação da boa
nova, a vida de Deus-Filho, o Messias, na terra. A manifestação-revelação
de Deus vem até nós mediante a ausência divina – como um típico judeu
de seu tempo, Paulo aprendeu que não se pode ver Deus face a face, pois o
contato direto com Deus é tão intenso que causaria morte em vez de vida.
Assim, para chegar até nós, Deus se move esvaziadamente: comunica por
meio das coisas que criou, comunica-se pela palavra da pregação, comunica
mediante o Messias, o Filho esvaziado que comunica Deus na sua forma
humana e na sua condição de escravo que suporta a condenação e execução
na cruz, comunica mediante o Espírito que edifica seu povo. É no vazio, na
presençausência de Deus que podemos apreender a plenitude de Deus em
nós e para nós, especialmente na morte do Messias-Filho que, apropria-
damente, Lutero descreveu como revelatio sub contrario specie. A theologiae
gloriae fiel a Paulo só pode ser uma theologia crucis, pois é na cruz que a glória
de Deus se revela de modo plenamente compreensível a nós seres humanos.
Quem é Deus? A resposta de Paulo é radical: Deus é quem morre
por nós, pecadores. A glória divina é a salvação da sua criação e a criação
da sua salvação, Deus se glorifica e é glorificado na autodoação da sua vida
ao outro, ao não-deus. Porque a comunicação divina não é mera transmis-
são de informações ou de conhecimentos, mas geração de vida em comu-
nhão, a vida divina doada não é um objeto a ser recebido, mas uma relação

273
a ser cultivada. A vida divina doada é uma potencialidade para viver na
presença do criador e na forma-de-vida do criador-salvador. A vida divina
doada é a glória divina que inclui em seu esplendor e majestade todas as
criaturas de Deus, geradas em seu amor, por seu amor, para seu amor fiel.
A comunicabilidade divina não se esgota em sua manifestação
ou revelação, mas se desdobra em sua presençausência inclusiva e esva-
ziada em toda a sua criação. As doxologias e os poemas messianológicos
paulinos celebram Deus como “tudo em todas, por todas, para todas”. A
comunicabilidade divina pode ser descrita como a espaçotemporalidade
eterna liminarmente presente na espaçotemporalidade criada sub specie
espaçotemporalidade messiânica. Na visão apocalíptica de Paulo, não se
trata apenas de uma nova era dividida em duas, com o interregno entre
as duas parousias do Messias como a temporalidade da vida de seu povo.
A própria eternidade se comunica com a temporalidade criada, a espaço-
temporalidade eterna batiza e confere significado à espaçotemporalidade
criada em sua forma de espaçotemporalidade messiânica, esvaziadamente
presente e (in)operante na espaçotemporalidade não-messiânica que rege
a não-vida da humanidade escravizada ao pecado e aos poderes da morte.
Deus, então, se torna “como um” conosco e com toda a criação.
Deus é um-plural: “como-um”, em si e para nós. Ao esvaziar-se, Deus abre
a possibilidade da espaçotemporalidade criada, é no vazio pleno de Deus
que a criação existe e existe “como um” com Deus, de tal modo que nem
mesmo a presença operante dos poderes da escravidão e morte são capa-
zes de tornar inoperante a comunicabilidade criativo-salvífica de Deus. A
salvação, ainda que concretizada historicamente no esvaziamento messiâ-
nico, é uma realidade eterna, tanto quanto a criação é uma realidade eter-
na, eternamente existente em Deus, por Deus e para Deus. A eternidade
não deveria ser concebida como ausência de temporalidade e a transcen-
dência divina não deveria ser concebida como infinita distância de nossa
espacialidade. A eterna transcendência de Deus é a inclusividade de toda
a criação em sua eternidade transcendente. A transcendência eterna de
Deus é sua potencialidade “como-um com sua criação”, é sua comunhão
com a criação. Comunhão que não se reduz a uma incorporação, a uma
unidade singular, indiferenciada. Deus e o mundo criado são “um-plural”,
mas Deus é Deus e o mundo é mundo. Se a categoria da indiscernibilida-

274
de nos ajuda a entender a realidade triuna de Deus, também nos ajuda a
entender a sua relação com a criação.
Deus não cria um mundo alheio a si, estranho à sua vida, mas um
mundo imerso em sua vida, prenhe de sua potencialidade. Por isso, nos
escritos de Paulo não se fala de um “fim” do mundo, nem da vida humana.
O mundo, ou seja, todas as criaturas de Deus, existem de modo inacabável
e infinito: na morte do Crucificado a própria morte foi derrotada, pelo
que o apóstolo pode exclamar “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde, ó
morte, o teu aguilhão?”. A derrota da morte pela morte de Deus esvaziado
na cruz é o símbolo teológico da infinitude do finito, da interminabilidade
do que é terminal. A comunicabilidade divina é retratada por Paulo tam-
bém sob o termo “nova criação”. “Se alguém está no Messias, participa da
nova criação”, entrou na eventidade inominável, indiscernível e indecidí-
vel da comunicabilidade divina. Se na nova criação “não sou mais eu quem
vive, mas o Messias vive em mim”, então a comunhão é plena, total e ir-
reversível. Eis a mística paulina, celebrável, mas não redutível ao conceito.
Se o Messias vive em mim, eu vivo no Messias. Se a comunidade familiar
de Deus se realiza no Messias, ele mesmo se realiza em sua comunidade.
Se o Messias é a plenitude de Deus em nós, o Espírito é o penhor da eter-
nidade divina em nós, nossa infinita finitude.
A comunicabilidade divina é, enfim, a dimensão conceitual de
Deus que nos situa para além da noção ontoteológica do Ser. Pensar Deus
a partir da categoria do Ser é tornar impossível qualquer conhecimento
válido do Deus crido, celebrado e vivido por Paulo. Se Deus é aquele
que “nomeia ser o não-sendo”, para Deus “ser” é uma descrição extrema-
mente pobre, uma conceituação absolutamente inadequada. Ehyeh Asher
Ehyeh não é meramente o “Eu sou o que sou”, deve ser lido como YHWH
faz-viver-o-que-não-vive. Não é à toa que, no mesmo livro do Êxodo,
YHWH é descrito como misericordioso, descrição retomada por Paulo.
Deus é fielmente compassivo e a comunicabilidade divina é compassibili-
dade, pelo que Deus não pode ser reduzido ao ser em sua impassibilidade
e imutabilidade. Deus se compadece fielmente de toda a sua criação, de
modo que no Filho se esvazia fielmente para sofrer o sofrimento da cria-
ção e no Espírito fielmente presente plenifica a criação com vida em co-
munhão e sofre com a criação as dores de parto de seu anseio por salvação.

275
5.2 Vacuidade

276
Paulo usa pouco mais de dez vezes as palavras da raiz ken-,
tanto na forma verbal, como na nominal. Somente em Fp 2,7 o verbo
κενόω é usado em um sentido que não a inutilidade; normalmente a
raiz em Paulo denota aquilo que é inútil ou vão. Quando pensamos na
atitude do Messias, a noção mais abstrata da kénosis pode ser denotada
pela palavra esvaziabilidade, um neologismo derivado do verbo esvaziar.
Quando pensamos no modo de ser divino, podemos recuar ainda mais
na abstração e chegar ao termo vacuidade – a qualidade de ser vazio. Se
buscamos a fonte abstrata da noção do esvaziamento de Deus em Fp
2,7 encontramos uma categoria cultural amplamente usada, moldada
pelo contraste entre vazio e cheio. Nas culturas em que Paulo vivia, o
vazio comumente era visto de modo disfórico (negativo), enquanto a
plenitude era vista de modo eufórico (positivo). O vazio, ainda hoje em
dia, é comumente entendido como privação, como falta, e no tocante
às noções mais abstratas do ser ou da essência, o vazio é equivalente ao
nada ou ao não-ser. Neste sentido, não seria possível ao ser, enquanto tal,
deixar-de-ser, passar a uma condição de não-ser.
A construção positiva de uma noção tão radicalmente vista em
sua negatividade constitui uma das novidades paulinas na conceituação
de Deus. Como vimos, o modo comum de construir a noção do divino
nas culturas orientais era o da intensificação, que corresponde a dizer que
o divino é mais pleno do que o humano, ou o animal, ou ao celestial.
YHWH, que representa a intensificação dos poderes das divindades vé-
tero-orientais é, então, a plenitude da plenitude. Paulo, de fato, utiliza-se
da categoria da plenitude diversas vezes para falar a respeito de Deus. O
que é peculiar em Deus, consequentemente, no pensamento paulino é a
sua capacidade de esvaziar-se, de assumir uma condição de não-ser que
não equivale ao deixar de existir ou à privação de sua essência. De modo
similar ao mistério, oculto, mas revelado, a plenitude de Deus é plena em
sua vacuidade e o vazio de Deus é pleno em sua não-plenitude.
Tanto em Filipenses 2 como em Colossenses 1 (na afirmação
de que no Messias humano “habita corporalmente toda a plenitude da
divindade”), o esvaziamento ou a corporeidade humana do Messias estão
intima e indissoluvelmente ligados à morte na cruz. A esvaziabilidade de

277
Deus-Filho é a sua potencialidade para assumir a morte criatural, não se
extinguindo, a fim de comunicar vida às suas criaturas. A comunicabi-
lidade de Deus demanda, portanto, sua esvaziabilidade e vacuidade; e a
vacuidade de Deus, por sua vez, define a sua vidalidade – para comunicar
vida Deus precisa se esvaziar, seja no sentido mitigado do “sopro da vida”
(em Gn 2), seja no sentido pleno do esvaziamento messiânico. Finalmen-
te, a pluriunidade divina somente pode fazer sentido no movimento da
esvaziabilidade que revela a vacuidade como uma característica de Deus-
-Pai, Deus-Filho, Deus-Espírito, posto que para “ser pai” Deus precisa
esvaziar-se de todas as outras formas possíveis de existir, e assim sucessi-
vamente em relação ao “ser-filho” e ao “ser-espírito”, pois sem a vacuidade
divina não haveria alteridade em Deus, apenas entre Deus e a criação, o
que manteria a visão dualista da metafísica da presença ou da plenitude.
O caráter paradoxal da noção paulina de Deus encontra aqui sua
expressão mais contundente. Como pode o Deus que “plenifica todas as
coisas”, que “é tudo em todos”, ser pensado a partir do vazio e não do
cheio? Somente a partir do esvaziamento divino no/do Messias, que revela
de modo radical a paradoxalidade da potência divina, que é mais frágil que
o poder humano, mas que, em sua fragilidade, torna inoperante o poder
humano e qualquer outro poder ou nome que se levante contra o Deus
vazio, que se esvazia para que a sua criação possa alcançar a vida e a exis-
tência e que a humanidade pecadora possa encontrar a salvação a partir da
fidelidade do Messias. A vacuidade divina é a forma ontológica da graça
fiel e da fidelidade amorosa de Deus que, diante do pecado humano, se
desgosta e, em vez de destruir a humanidade com seu direito de julgar e
condenar, esvazia-se a si mesmo e assume a condição humana, recebendo
a execução como crucificado para reconciliar todas as coisas consigo mes-
mo. Falando por analogia, somente quem está vazio de reivindicações a
respeito de si mesmo está aberto a reconciliar os inimigos e a acolhê-los
como amigos. Somente quem está vazio de classificações de si como su-
perior aos outros está pronto a se relacionar generosamente com qualquer
pessoa que lhe seja diferente, sem ser ameaçado pela diferença do outro.
Decorrem duas dimensões da vacuidade divina: a eventidade e
a dignificabilidade (a qualidade de dignificar, honrar, tornar digna). Ao

278
esvaziar-se Deus se torna evento na história da sua criação e, com essa
noção, Paulo ressignifica radicalmente a visão apocalíptica das duas eras.
A “era vindoura” não deve ser pensada em termos cronológicos, mas em
termos eventais. Assim, a distinção já e ainda-não, embora faça sentido
cronologicamente, não pode ser compreendida como a natureza da tem-
poralidade messiânica. É a esvaziabilidade que caracteriza a nova espa-
çotemporalidade messiânica – a sua presença esvaziada e esvaziadora na
espaçotemporalidade não-messiânica. Uma ontologia radicalmente opos-
ta à metafísica da presença cheia. A presença divina não é uma presença
cheia, caracterizada pela plenitude, mas uma presença esvaziada, caracte-
rizada pela privação ou, para usar um termo paulino, pela fraqueza. É pre-
sença evental, típica do evento, que renova a história sub specie contraria.
A eventidade divina representa a possibilidade do novo na histó-
ria, a emergência de novas possibilidades de viver, não caracterizadas pelo
pecado, pela lei, pela carne, pelos poderes ou pela morte – que determi-
nam as possibilidades do viver na espaçotemporalidade não-messiânica.
Se a plenitude do Império é constituída pela aniquilação dos inimigos,
pela destruição da vida do outro, a plenitude da salvação é constituída pela
esvaziabilidade divina, pela conformação do divino com a mortalidade
humana – vida que assume em si a morte para derrotá-la para sempre. A
salvação, então, é um processo que também se define pelo esvaziamento da
pessoa pecadora para que o Messias se torne a sua plenitude (cf. Gl 2,20;
Fp 3,10ss etc.). Temos, então, uma radicalização da linguagem da tradição
jesuânica do “negar-se a si mesmo”. O evento é negação da história infiel
para a construção de uma história de fidelidade a Deus e ao próximo. De
outra forma, jamais poderíamos compreender a manifestação da glória de
Deus na cruz do Messias. A glória divino-messiânica não é a glória-plena
dos imperadores, mas a glória-esvaziada do Deus que ama fielmente sua
criação e morre por ela a fim de que ela tenha vida plena.
Da eventidade messiânica decorre a dignificabilidade da espaço-
temporalidade messiânica. No mundo da plenitude, a dignidade (honra)
é a condição alcançada por quem está cheio – de bens, dinheiro, poder. A
dignidade da espaçotemporalidade não-messiânica é medida pela glória
da plenitude das riquezas e do poder. Na espaçotemporalidade messiâni-

279
ca, porém, a dignidade é condição dos que vivem esvaziadamente, ou, na
linguagem de 1 Coríntios, dos “que não são” (1,28). Enquanto os supera-
póstolos de 2 Coríntios se qualificam pela plenitude de poder e sabedoria,
Paulo, o subapóstolo, se qualifica pela fraqueza. Não que Paulo não tivesse
sido capaz de realizar, em seu ministério, as obras realizadas pelos supera-
póstolos, mas por que, para Paulo, essas obras não são a essência do serviço
messiânico. A dignidade (honra) é consequência da privação da plenitude
nos termos da espaçotemporalidade não-messiânica. A honra altíssima
do nome do Messias não decorre de sua plenitude-plena, mas de sua ple-
nitude-esvaziada. A exaltação não é o contrário da humilhação, de outra
forma a salvação seria apenas a inversão dos lugares e não a inoperância
da espaçotemporalidade não-messiânica.
O kyrios Jesus não é o kyrios César que, poderosamente, inverte as
posições das pessoas na hierarquia da vida em sociedade. O kyrios Jesus é
um kyrios totalmente-outro; outramente que o ser, para nos apropriarmos
da terminologia levinasiana. Não se trata de o escravo assentar-se no tro-
no, mas do escravo tornar inoperante o trono. Não se trata de uma nova
hierarquia, mas de uma radical anarquia, na qual Deus é tudo em todos.
A dignidade divina é medida pela esvaziabilidade divino-messiânica. En-
quanto a dignidade romana é conquistada pela escravização do outro, a
dignificabilidade divina é manifestada pelo seu próprio envergonhamen-
to – o esvaziamento messiânico trilha um cursus pudorum, em oposição
ao cursus honorum das visões não-messiânicas do poder e da honra. Ao
assumir em si a desonra da humanidade escravizada ao pecado, o Messias
instaura um novo cursus honorum para toda a humanidade e para toda a
criação. Nesse novo caminho, a honra deixa de ser um objeto-valor a ser
conquistado, mediante a competição e exclusão do outro, e se torna uma
dádiva a ser partilhada especialmente com aquelas pessoas que possuem
menos honra (esta analogia é usada por Paulo em 1 Coríntios 12). Parti-
lha iniciada e consumada pelo portador de “toda honra e toda glória” em
sua esvaziabilidade eventual e dignificante.

280
5.3 Vidalidade

281
“Conforme está escrito: tenho te estabelecido como pai de mui-
tas nações, na presença daquele a quem foi fiel, Deus, o que vivifica os mor-
tos e chama ‘ser’ as coisas que não são” (Rm 4,17). Este verso é o que mais se
aproxima de uma definição da vidalidade divina em Paulo. A vida divina
não é apenas o contrário da morte, nem a abolição da morte, mas a abso-
luta ausência da morte e da inexistência. É possível que no pano de fundo
dessa descrição paulina esteja a fala de Jesus que, para o fariseu Saul, seria
bem-vinda: “quanto à ressurreição dos mortos, não tendes lido no Livro
de Moisés, no trecho referente à sarça, como Deus lhe falou: ‘Eu sou o
Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó?’ Ora, ele não é Deus
de mortos, e sim de vivos. Laborais em grande erro” (Mc 12,26-27). Deus
é vida, logo a morte é uma impossibilidade para o Deus “vivo”, ou melhor,
Deus-Vida. Porque é vida, Deus cria, gera vida e vida interminável (embo-
ra, no caso da vida das criaturas de Deus, a infinitude é uma propriedade
derivada, de modo que na linguagem mítica da Escritura, desemboque na
morte, que não é o fim da vida, mas uma forma não-vital de vida. Mesmo
a morte humana, consequência do pecado, é uma espécie de não-morte,
pois não há a extinção da pessoa, mas a passagem para uma outra forma de
existência – os “mortos” são os destinatários da ressurreição em um “novo
corpo” não mais definido como mortal ou corruptível, mas como corpo
espiritual, imortal).253
Fitzmyer sintetizou quase perfeitamente a descrição paulina da
vida de Deus:

na mente de Paulo, o Deus que ressuscitou a Jesus dentre os mortos


era um Deus de poder. Este conceito paulino de Deus reflete a herança
judaica, a fé na força e no poder que o Antigo Testamento atribuía a
Yahvé. A estas ideias é que Paulo remete em Rm 1,20 quando fala do
‘poder eterno’ (aidios dynamis) de Deus, em paralelo com sua ‘divinda-
de’ (theiotes), que os pagãos deveriam ter reconhecido e venerado. Aqui
se trata do poder (dynamis) de Yahvé, o Deus pessoal de Israel, não o de
um dos tantos deuses da natureza como os que eram venerados pelos

253  É claro que os textos sobre morte e ressurreição empregam uma linguagem sugestiva, e são
incapazes de descrever “fatos” ou “realidades” cientificamente pesquisáveis e classificáveis. Cabe
à pesquisa teológica apontar: (a) que sentido esses textos possuem em seu contexto; e (b) que
possibilidades de sentido oferecem para nós em nosso contexto.

282
povos vizinhos de Israel, e muito menos o de uma força mágica. Paulo
se refere ao poder pessoal de Yahvé, o criador, o Deus que formou para
si um povo; fala do poder de outorgar a vida, do poder que Deus mani-
festou em diversas ocasiões para salvar seu povo, especialmente quan-
do do êxodo do Egito e da travessia do Mar Vermelho (cf. Êx 15,6;
32,11 Js 4,23-24; Sl 77,15: Is 40,26). É o poder de Yahvé que Israel
exaltava em suas orações: ‘Teus são, Yahvé, a grandeza, o poder, a gló-
ria e a vitória e a majestade [...] Em tuas mãos há poder e força’ (1Cr
29,10-12)254. Que Paulo se refere a esta qualidade de Yahvé é evidente
em Rm 9,17 em que cita Êx 9,16: porque a Escritura disse a Faraó:
‘eu te exaltei para mostrar em ti o meu poder, para que meu nome seja
proclamado em toda a terra’. A dimensão vivificante desse poder tam-
bém aparece em Rm 4,17-21; nesta passagem, comentando a história
de Abraão no Gênesis, assim como a promessa feita ao patriarca de
que Sara lhe daria uma numerosa descendência, Paulo diz sobre Deus
que ‘dá vida aos mortos e chama à existência o que ainda não existe’, e
que revitalizou o corpo de Abraão, ‘amortecido’, pois ‘Deus era capaz
(dynatos) de fazer o que havida prometido’.255

Destarte, a vida divina é positivamente descrita como ressuscita-


dora e geradora-de-ser, ou seja, é vida que se doa e gera viventes – é vida
manifesta na criação e na ressurreição, que podem ser expressas, também,
como geração da espaçotemporalidade presente e da espaçotemporalidade
messiânica. Por isso a escolha do neologismo vidalidade – a vida divina
não é apenas viver, mas fazer-viver ou fazer-ser, expressões sinônimas.
Como traduzir conceitualmente essas afirmações paulinas?
Giorgio Agamben oferece uma possibilidade de tradução, em
seu diálogo com Mario Vitorino, um filósofo neoplatônico que se conver-
teu ao Cristianismo, por volta de 350 d.C.:

Deus não é nada menos do que viver, mas o viver original, aquele do
qual provem o viver de todos os outros seres; ele é a própria ação [actio

254  Cf. BIARD, P. La puissance de Dieu. París: Bloud & Gay, 1960; GRUNDMANN, W. Der
Begriff der Kraft in der neutestamentlichen Cedankenwelt BWANT 4/8. Stuttgart: Kohlhammer,
1932, p. 11‐26; FASCHER, E. Dynamis Theou. Eine Studie zur urchristlichen Frömmigkeit.
Zeitschrift für Theologie und Kirche, v. 19, n. 1/2, 1938, p. 82-108.
255  FITZMYER, Joseph. Teología de San Pablo: síntesis y perspectivas. Madri: Ediciones
Cristandad, 1975, p. 2.

283
ipsa in agendo existens], tendo o seu ser neste movimento, que é a sua
existência e sua substância, como se não as tivesse [habens quamquam
ne habens quidem], mas existindo como o próprio viver em seu modo
original e universal [existens ipsum quod sit principaliter et universaliter
vivere]. Aquilo que é produzido por esse ato é, de algum modo, sua
forma, é a vida. E assim como o aion é produzido pelo ato sempre
presente de todas as coisas, também a vida é produzida no viver, uma
operação sempre presente, e é gerada conforme sua potência e substân-
cia, a qual podemos expressar como vitalidade, que é, de algum modo,
uma forma de [ou ‘da’] vida [vitalitas, hoc est ut vitae forma] [p. 542].256

Agamben interpreta Vitorino:

em Deus, a forma de vida é tão inseparavelmente unida ao viver que


não há lugar para algo como um ‘ter’; Deus não ‘tem’ existência e
forma, mas, sim, com um torneio gramatical que traduz o verbo ‘exis-
tir’ transitivamente, ele ‘existe’ seu viver e, deste modo, produz uma
forma que não é nada mais do que sua ‘vitalidade’ ou a forma de
sua vida. Novamente, o paradigma modal [substância/modos] ques-
tiona a ontologia aristotélica fundada sobre as oposições existência/
essência, potência/ato: a substância não ‘tem’, mas ‘é’ seus modos. Em
todo caso, na ideia de uma ‘forma-de-vida’, assim como existência e
essência, e zoè e bios, viver e vida contraem-se uma na outra e caem
juntas, permitindo a aparição de um terceiro, cujo sentido e implica-
ções ainda faltam ser deliberadas.257

Em outras palavras, em Deus viver é igual a ser, ser é igual a


existir, potência é igual à ação, de tal modo que a vida divina é como que
uma outra coisa ainda a ser estudada. Para traduzir a visão paulina, porém,
essa opção é insuficiente, posto que dela está completamente ausente o
pathos divino, a passionalidade de Deus – que ama, se relaciona fielmente,
se desgosta etc. Não se trata, porém, de caracterizar o viver de Deus como
sentir em oposição ao agir, mas procurar capturar a essência mesma do
sentir em relação ao viver, o que foi feito recentemente por dois filósofos
franceses que, de outro modo, não dialogam entre si: Michel Henry e

256  AGAMBEM, Giorgio. O Uso dos Corpos. Homo Sacer IV/2. São Paulo: Boitempo, 2014, p.
284-285.
257  AGAMBEM, op. cit., p. 285.

284
Jean-Luc Nancy. Para Henry, “a vida se sente, experimenta-se a si mesma.
Não é que seja algo de que, ademais, dispõe da propriedade de sentir-se
a si mesma, ao contrário, esta é a sua essência: a pura experiência de si, o
fato de sentir-se a si mesma. A essência da vida reside na autoafetação”258.
Na mesma direção, embora chegando a destino diferente, afirma Nancy:

Tal é a vida primordial: a suscetibilidade que afeta a si mesma sem,


contudo, se autorreferenciar nessa afetação a respeito do modo de uma
determinada existência, de um crescimento de si fora de si, ou de um
sentimento de si fora de si. A vida imediata é a vida tomada em uma
separação do consigo, que a torna estrangeira a si própria, afirma Hegel.259

Paulo, porém, ainda vai além, pois para ele o viver de Deus é
vidalidade, viver cuja autoafetação consiste em doar vida ao não-vivente.
Ao doar vida ao não-vivente, porém, o viver de Deus experimenta a morte
que é, de fato, não-morte, uma vez que é a fecundidade da própria vida
que se doa na criação e na salvação. Voltando a Nancy, a vida vivida pela
criatura é vida que não deseja a morte:

a vida se conserva, ou seja, desejo de ainda viver ela é, disse Garrido, o


fenômeno da diferença entre o vivo e o não-vivo: ela é a luta, o esforço ou
a resistência do vivo para permanecer vivo e se seu desejo é morrer, esse
desejo representa uma outra vida mais conservada, mais protegida de
uma ameaça à qual ela descobre não mais poder resistir.260

No caso da vidalidade divina, porém, o desejo de morrer, a au-


toentrega à morte mediante a execução na cruz, não representa uma au-
toproteção ou elevação, mas, sim, a possibilidade de vida do outro, do
não-vivente impotente para gerar-se a si mesmo e vivificar-se a si mesma.
Não se trata de uma ameaça irresistível, mas de uma graça irresistível, um
amor fiel irresistivelmente constituído pela autodoação, pela geração de
mais vida, por assim dizer.
De novo, vale a pena dialogar com Jean-Luc:

258  HENRY, Michel. Fenomenología de la Vida. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2010, p. 27.
259  NANCY, Jean-Luc. Arquivida In: Arquivida: do Senciente e do Sentido. São Paulo: Iluminuras,
2015, p. 6.
260  NANCY, op. cit., p. 17.

285
de fato, todos pensaram, seja transcendente ou imanentemente, o que,
aqui, não faz qualquer diferença, uma vez que quando um Deus cria
um mundo, nele exprime – ou imprime – o projeto de sua vida divina,
e, de modo recíproco, quando um mundo se propaga em imanência o
princípio de sua vida, ou seja, sua mundanidade de mundo, forma-se a
maneira com que a imanência se transcende, o que não quer dizer nada
mais do que isso: ela se dirige a si mesma.261

O primeiro ato salvífico de Deus é a própria criação e, na medida em


que Deus cria o mundo no Filho, por meio do Filho e para o Filho, o projeto
vital impresso por Deus no mundo é a própria messianidade fiel do Messias
Jesus. Assim, a mundanidade do mundo, na visão paulina, tem como carac-
terística a fidelidade, todavia, como o mundo é livre para viver a vida que lhe
fora doada, o projeto pode ser recusado e, em seu lugar, passa a ser vivida a
infidelidade à vida doada, em uma fidelidade infiel à paródia da vida doada
na vida construída por meio da conquista e da morte do outro – seja humano
ou não-humano. É assim que “o salário do pecado é a morte”, não como a
morte da pessoa pecadora em si, mas como a morte que passa a qualificar e
constranger a vida vivida na mundanidade – “assim como por um só homem
entrou a morte no mundo”.
Podemos, então, deduzir duas dimensões da vidalidade divina: (a)
criatividade/geratividade; e (b) imanência/eternidade. Vidalidade divina é
mera criatividade, não apenas como abertura para o novo, mas como gerati-
vidade, vida que gera vida e que não pode deixar de gerar vida, posto que so-
mente gerando vida é que o viver divino afeta a si mesmo. É mera imanência,
na medida em que afetando a si mesmo na geração do outro, cria um mundo
em relação ao qual não transcende, mas imane, imanentiza, um mundo que
vive nele, por ele e para ele. Imanência que não se esgota no limite da transcen-
dência, mas que é conjugada mediante o verbo eternizar, ser eterna. Ou não
é da vida eterna (zoe aionios) que Paulo fala como efeito da vidalidade divina?
Se, como é sabido, a palavra “eterna” não corresponde perfeitamente à palavra
grega que traduz, ela, se desconstruída, é a melhor tradução dessa palavra –
posto que a vida do aion é imanência no/do aion e o aion da zoe aionios não é
outro senão o aion divino, o tempo divino, o espaçotempo divino a que cha-
mamos de eternidade e que poderíamos, melhor ainda, chamar de ternidade,
o espaçotempo da ternura eterna da vidalidade de Deus.

261  NANCY, op. cit., p. 8-9.

286
5.4 Unidiferencialidade

287
Se pensamos o modo-de-ser divino como vacuidade, o viver
como autoafetação e a vidalidade divina como geração permanente de
vida, o viver divino implica em diferenciação no próprio Deus, o que é
afirmado em o Novo Testamento com ênfase em João e Paulo. A noção
de geração é pressuposta na descrição do Messias como Filho de Deus e
na afirmação da ressurreição do Filho esvaziado como obra do Espírito.
Assim, a noção de autodiferenciação de Deus em seu viver é uma decor-
rência lógica da afirmação da divindade de Pai, Filho e Espírito. A autoa-
fetação divina é, também, sua autodiferenciação, e sua autodiferenciação é
a possibilidade da criação e da salvação, uma vez que ela já é a presença da
alteridade na própria identidade divina. Semelhantemente, quando pen-
samos na comunicabilidade divina, implicamos a autodiferenciação em
Deus, que é um, mas não meramente um, é “como-um”, uma unidade
não-singular, nem idêntica ou não-diferenciada. Situação similar temos
em relação à vacuidade divina, pois o vazio pressupõe o não-vazio, o vazio
opera a indiscernibilidade da diferença em Deus, pois, analogamente ao
“conjunto vazio”, seus termos são indiscerníveis e inomináveis.
Deus-um, plural em sua unidade, singular em sua pluralida-
de. Distintos modos-de-comunicar-em-relação se identificamos “ser” com
“mostrar-se”, mas não se identificamos “ser” com “potência” diferenciada
de “ato”. Do ponto de vista do conceito ocidental de teísmo, uma radical e
fatal anomalia. Do ponto de vista da mensagem paulina, a melhor notícia
possível: Deus está totalmente comprometido com a libertação de sua
criação, tão radicalmente comprometido que se fez um de nós e habita en-
tre nós permanentemente, transformando as possibilidades de nosso exis-
tir-no-mundo. Podemos refletir sobre estes textos paulinos e afirmar que,
usando uma linguagem perigosa em sua quase irracionalidade, mas que
busca dar conta da própria “loucura de Deus, mais sábia que a sabedoria
humana”, Deus é “essencialmente” comunicação-em-movimento: Deus se
expõe a todos os efeitos que o amor por sua criação acarreta, ele se dispõe
favoravelmente a nós, ele se apõe a nós, se depõe por nós, se justapõe a nós
e compõe conosco, antepondo-se antecipadamente à morte e a todas as
forças que nos escravizam, e nos propõe uma nova forma-de-vida. Em seu
eterno mover-se, ele se opõe a todas as forças que escravizam e diminuem

288
o humano e o criado, impondo ao humano um modo de viver desumano;
Deus se indispõe contra os dispositivos escravizadores, mas jamais se im-
põe ou sobrepõe às pessoas que gestam e gerenciam tais dispositivos. Ao
contrário, impõe a si mesmo a condição de escravo, tornando-se humano;
sobrepõe-se a si mesmo enquanto Espírito que habita entre nós transpon-
do a nossa temporalidade à sua eternidade.
Não poderíamos, então, depondo a autoridade exclusivamente
humana dos Concílios Universais, deixar nos impor o imutável raciocínio
de uma Trindade que não chega jamais a ser Trindade em seu monar-
quismo paterno, que “freudianamente” impõe o Pai à essência do divino,
negando-lhe a maternidade fecundante? Não poderíamos ver em Paulo
uma concepção – preliminar, talvez – da Trindade divina em que o Pai só
é Pai porque é Pai do Filho (se gera o Filho, é simultaneamente gerado
como Pai pelo Filho), só é Pai do Filho porque é Espírito que se sobre-
põe ao Pai e ao Filho ao impor à divindade a autodeposição com vistas
à coabitação permanente conosco em Sua criação? Uma Trindade que é
movimento amoroso, percebida, ainda que imperfeitamente, por Agosti-
nho em sua concepção relacional da Trindade? Para avançar na ousadia da
linguagem insana de Paulo aos coríntios, não seria o Espírito a “essência”
da divindade, posto que é puro movimento de amor e desgosto ao não
ter seu amor correspondido, de tal modo que se condena à eternidade da
comunhão com uma criação que jamais será perfeita como Ela é perfeita
em sua divindade?
A visão paulina de Deus não deveria ser reduzida, superficializada
ou banalizada mediante concepções teístas e similares. Se é em movimento
amoroso que Deus vive e age, então vivemos já em um tempo radicalmente
transformado: um tempo em que a potência humana criada é capaz de en-
frentar todo e qualquer dispositivo de escravização. Condição? Única, sem-
pre e tão-somente no Messias: ser-humano-em-relação-com-Deus, pois
Deus-Espírito-é-Deus-sempre-em-relação-conosco-na-criação. Visão da
divindade que talvez só possamos captar adequada, mesmo que imperfei-
tamente, no suave movimento da dança, humana e cósmica, com suas sutis
aproximações e distanciamentos, sua leveza e intensidade – uma eterna e
instável pericorese? No obsessivo movimento da arte de van Gogh que pre-

289
cisou de milhares de pinceladas para fazer sua tela “Noite Estrelada sobre o
Rohne”, ou no movimento incessante das pinceladas em curva de uma tela
criada durante sua internação no sanatório de Saint-Remy, “Oliveiras com o
céu amarelo e o sol”. Talvez apenas na intuitiva captação do movimento dos
números na matemática científico-religiosa de Srinivasa Ramanujan, ou
na dança cósmica dos números do esquizofrênico John Nash. Ou, melhor
ainda, talvez apenas no movimento de pessoas que transcendem sua raça,
classe, gênero, religião, cor, nacionalidade, educação e simplesmente amam
quem não merece ser amado.
Decorrem, então, as duas dimensões da unidiferencialidade divi-
na: a veracidade (fidelidade e verdade) e a relacionalidade (pluriunidade,
parceria). Deus é fiel de si para si, entre-si, e se relaciona consigo mesmo
eternamente, e é na fidelidade de Deus a si mesmo em seu relacionamento
eterno que cria, doando vida, e liberta a sua criação dos poderes da mor-
te. A veracidade se compõe da fidelidade divina, sua confiabilidade tanto
em termos de relacionamento pessoal quanto em termos do conteúdo
comunicado – a veracidade inclui, em si, a confiabilidade e a verdade, que,
de fato, são termos inseparáveis. Porque Pai, Filho e Espírito são fiéis a
si-mesmo (não si-mesmos), são Deus em sua singularidade e divisibilida-
de, o Deus veraz que se comunica confiável e verdadeiramente, de modo
tal que a verdade divina não se reduz aos conteúdos enunciados, mas se
manifesta na própria forma-de-viver da divindade criadora e libertadora.
A relacionalidade divina se desdobra, por sua vez, também em
duas dimensões: a da pluriunidade, posto que em si-mesmo Deus é um,
mas não é um-indiferenciado, indiferente. A unidade divina é diferencia-
da, uma unidade em que Deus difere de si mesmo e, na sua autodiferen-
ciação, difere do mundo que cria. Daí que podemos falar em pluriunidade
ou unimultiplicidade, que podem ser analogamente conjugadas como a
relação binária entre 0, 1; relação capaz de constituir inúmeras identida-
des lógicas e paralógicas – no caso de Deus, capaz de constituir inúmeras
identidades diferenciadas, inúmeras alteridades sempre amadas por Deus
e por Ele buscadas para a permanente comunhão-comunicação. Assim,
se Deus é relacionalidade, é também pura parceria, permanente compo-
sição de pares relacionais que incorporam em si os ímpares, ou díspares,

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em uma harmonia comunicacional indissolúvel, ainda que prenhe de dis-
sonâncias. Estamos, portanto, em um mundo infinitamente distante do
mundo das categorias ontoteológicas cristalizadas nos dogmas trinitários,
por mais que essas categorias tenham servido às Igrejas na formação de
suas identidades e de suas missões. Da equação trinitária mia ousia treis
hypostasis podemos manter apenas os termos numéricos mia¸treis e retê-los
sem qualificações ou objetivações. Unidiferencialidade, talvez, alteridenti-
dade, talvez apenas uma exclamação, um reconhecimento: o indiscernível
é o inominável, Deus, não tanto aquele de quem se fala, mas Aquele que
fala, aquela que esvaziadamente comunica sua vida ao outro de si-mesmo,
revelando-se da forma mais plena e dramática possível na execução do
Messias-Filho-kyrios.

Ó profundidade da riqueza e da sabedoria e do conhecimento de Deus!


Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus ca-
minhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o
seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser
restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A
ele, pois, a glória eternamente. Amém! (Rm 11,33-36).

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Sobre o Autor

Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero


Paulistano de nascimento, é pastor e professor de Teologia.
Doutor em Teologia, sua reflexão é fruto não só do diálogo pedagógico,
mas, e especialmente, da atuação pastoral e da militância cristã no espaço
público. Seus interesses de pesquisa e suas publicações refletem o lugar hí-
brido da pesquisa teológica em nossas terras brasileiras. Teologia que não
pretende ser ciência, mas sabedoria da fé e da vida, fruto da práxis cristã e
do diálogo com as ciências e os saberes não teológicos que nos ajudam a
compreender melhor o mundo em que vivemos.

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