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@livreiro Conceitos Básicos Da Teologia Loci Praecipui Theologici
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PHILIPP MELANCHTHON
Repositório Cristão
Expandindo a sabedoria cristã para transformar vidas.
repositoriocristao.com
contato@repositoriocristao.com
Índice
Nota Introdutória
Prefácio da Edição Francesa de 1546
Do Autor
Aos Leitores Piedosos
Prefácio
1. Deus
2. A Criação
3. A Causa do Pecado e Contingência
4. A Força Humana e o Livre Arbítrio
5. O Pecado
6. A Lei Divina
7. O Evangelho
8. Graça e Justificação
9. As Boas Obras
10. A Diferença Entre o Antigo e o Novo Testamento
11. A Diferença Entre o Pecado Mortal e Venial.
12. A Igreja
13. Os Sacramentos
14. Predestinação
15. O Reino de Cristo
16. A Ressurreição dos Mortos
17. O Espírito e a Letra
18. As Calamidades da Cruz e o Verdadeiro Consolo
19. A Invocação de Deus, ou Oração
20. Os Ofícios Civis e Assuntos de Influência
21. Os Preceitos Humanos na Igreja
22. A Mortificação da Carne
23. Escândalo
24. A Liberdade Cristã
Apêndice I. Sobre o Casamento
Apêndice II. Definições de Termos
Phillipp Melanchthon
Sobre o Repositório Cristão
Nota Introdutória
Ao apresentar esta edição final latina de 1559 dos “Loci Praecipui Theologici”, intitulados
aqui como “Conceitos Básicos da Teologia,” é imperativo destacar algumas considerações
históricas acerca das edições anteriores, seu contexto e notas relevantes referentes a esta
tradução. A iniciativa de traduzir esta obra surgiu concomitantemente com o surgimento do
Repositório Cristão, em 2019. Inicialmente, contemplou-se a tradução da segunda versão alemã
de 1553 (publicada em 1555), e após verificar a disponibilidade e ferramentas adequadas, optou-
se por traduzir a versão latina final de 1559. No entanto, antes de adentrar nos detalhes dessa
obra, é apropriado uma breve apresentação do autor e uma análise das características do livro.
Primeiramente, é relevante situar o leitor a respeito da figura de Melanchthon. Apesar de
ainda ser conhecido como “o outro reformador de Wittenberg,” Philipp Melanchthon possuía um
pensamento distintivo. Embora tenha enfrentado desafios em manter suas posições, em
decorrência do amadurecimento ao longo de sua vida, seu comprometimento à causa da Reforma
e seus escritos abordando diversas temáticas e preocupações conferem a Melanchthon uma
importância singular no contexto do século XVI, que transcende o âmbito teológico.
No que concerne ao autor dos “Loci,” é importante salientar a abordagem que Melanchthon
adotou ao sistematizar os conceitos teológicos. Em relação a esse desafio, Sven Grosse oferece
uma perspicaz síntese na tradução desta mesma obra para o alemão, realizada em 2018[1]. Grosse
enfatiza o caráter filológico de Melanchthon, com ampla formação, ressaltando que ele não era
um indivíduo cuja educação se restringiu à teologia. Em seu cerne, encontramos o espanto
perante a vastidão do conhecimento e a transmissão desse saber como um ato de ensino. O
objetivo de Melanchthon era fortalecer a consciência humana, abordando questões de cunho
universal. Dessa forma, ele incorpora uma riqueza de experiências humanas da literatura clássica
pagã da Antiguidade a suas reflexões, fornecendo respostas cristãs. Isso confere à sua obra uma
amplitude na abordagem dos problemas e das questões, o que a torna relevante mesmo nos dias
de hoje para quem busca compreender a teologia cristã em sua essência. O escopo de sua obra é
tão abrangente que as questões abordadas pela teologia desde então, especialmente nos últimos
250 anos, podem ser interpretadas como objeções ou extensões do pensamento de Melanchthon.
Embora Melanchthon tenha se ligado inicialmente à causa luterana, notadamente por sua
autoria na Confissão de Augsburgo e na Apologia dessa confissão, sua influência se estendeu em
diversas direções. Seu impacto é evidente na tradição reformada, por meio da influência exercida
no Catecismo de Heidelberg, redigido por seu aluno Zacharias Ursinus, na tradição anglicana,
que se reflete nos Treze Artigos, posteriormente incorporados nos Trinta e Nove Artigos, e em
eventos como o Sínodo de Dort e a Confissão de Westminster, entre outros. Melanchthon
elaborou diversas declarações de fé e confissões, participou de várias disputas teológicas,
frequentemente representando Lutero, e manteve um esforço constante pela causa protestante.
Ele procurou manter relações cordiais com outros reformadores e também deixou seu legado nas
reformas educacionais na Alemanha. O metodista Clyde L. Manschreck, a quem devemos a
tradução inglesa dos “Loci” de 1555 para o inglês[2], lembrou-nos desta observação de Lutero:
“Martinho Lutero o aclamou como o maior teólogo que já existiu, e os ‘Loci’, disse Lutero,
devem ser estimados ao lado da Bíblia.”
É importante notar que Melanchthon não gozou de consenso entre os reformadores
posteriores, seus contemporâneos, ou mesmo com Lutero, embora este último nunca tenha o
contradito publicamente. De fato, sua reputação foi mais prejudicada do que elogiada pela
posteridade, especialmente no campo da teologia, como ilustra o luterano J.A.O. Preus em sua
nota introdutória à tradução inglesa dos “Locis” de 1543[3]. Isso se tornou evidente logo após a
morte de Melanchthon, quando seu nome não foi incluído como autor da Confissão de
Augsburgo e sua Apologia na Fórmula de Concórdia. Suas várias controvérsias, a maioria delas
ocorrendo dentro do próprio luteranismo, são alvo de diversas interpretações, mas suas
contribuições parecem receber uma avaliação mais positiva no contexto atual, principalmente
entre aqueles que consideram seu espírito como defensor da unidade da igreja e da ortodoxia
protestante.
Os “Loci Praecipui Theologici” são baseados nos estudos elaborados por Melanchthon a
partir de suas palestras sobre a Carta aos Romanos. Essas palestras foram inicialmente impressas
e distribuídas sem autorização, levando Melanchthon a revisar o conteúdo. A obra foi publicada
em 1521, marcando o surgimento da primeira teologia sistemática da Reforma.
Para compreender as edições latinas dos “Locis,” podemos adotar a classificação
apresentada por Michiel[4] (que consta no Corpus Reformatorum), que divide as edições em três
Eras (ou aetates): 1521 (prima aetas), 1535 (secunda aetas) e 1543 (tertia aetas). Vale ressaltar
que existem mais traduções disponíveis da versão de 1521, que é o texto mais curto e juvenil de
Melanchthon, em comparação com a versão de 1543, que é mais madura e refinada. Além disso,
existem duas versões em alemão, uma traduzida por Justus Jonas em 1535 e outra escrita pelo
próprio Melanchthon em 1555, conhecida como Heubtartikel Christlicher Lere, que representa,
de certa forma, um tratado diferente das versões em latim.
Portanto, a pressente edição possui similaridade com a versão de 1543, tertia aetas,
apresentando uma organização mais estruturada, com uma sequência mais lógica e clara em
comparação com as edições anteriores. Melanchthon reorganizou o conteúdo em tópicos
específicos e classificou-os de acordo com a doutrina da trindade, da criação, da redenção, da fé,
dos sacramentos e outros temas, refletindo o desejo de Melanchthon de responder às críticas de
oponentes católicos e reformados, bem como de esclarecer as posições teológicas luteranas em
questões diversas. Ele acrescentou seções inteiras sobre temas como predestinação e autoridade
da igreja, além de ampliar a discussão sobre tópicos como pecado original, justificação e
santificação.
É importante notar que, apesar do pioneirismo dos “Locis” em 1521, outras obras surgiram
na mesma época, como “Christianae religionis Institutio” de João Calvino (com sua última
versão em 1559) e “De vera ac falsa religione commentarius” de Zuínglio (1525). Além disso,
outros dois “Loci communes” foram escritos por Wolfgang Musculus em 1560 e por Peter
Martyr Vermigli em 1576. Também vale mencionar o comentário de Martin Chemnitz sobre os
“Locis” de Melanchthon.
O texto apresentado nesta edição busca adotar uma abordagem mais fluente, empregando
termos alinhados com a linguagem contemporânea. Isso é particularmente evidente no
tratamento das relações entre as pessoas da Trindade, refletindo nossa prática em traduções
anteriores das Escrituras. No entanto, respeitamos integralmente a estrutura original da escrita
adotada pelo autor. É importante observar que, embora a linguagem original seja geralmente bem
organizada e distintiva, ela pode, em alguns momentos, parecer um tanto condensada e
elaborada. No entanto, isso não deve constituir um obstáculo significativo para a compreensão
por parte do leitor comum.
Dado o paralelismo com a versão de 1543, nesta edição dos “Locis” foi incorporado o
prefácio da edição francesa de 1546, preparada por João Calvino. Além disso, incluímos mais de
150 notas de rodapé e dois apêndices abordando temas relacionados ao casamento e definições
de termos. Procuramos também destacar referências a figuras da antiguidade cristã e pagã, bem
como citar fontes sempre que possível.
Prefácio
Os seres humanos são criados por Deus de tal forma que entendem os números e a ordem, e
são grandemente auxiliados no aprendizado de ambas as coisas, números e ordem. Portanto, a
ordem das partes é exibida com atenção especial no ensino das artes, e os inícios, progressões e
objetivos são indicados. Eles chamam essa forma de análise de método em filosofia, mas é no
modo como se estabelece no ensino da Igreja naquelas artes que são construídas sobre
demonstrações. Pois o método demonstrativo procede daqueles que estão sujeitos aos sentidos e
dos primeiros dados, que se chamam princípios. Aqui no ensinamento da Igreja só se busca a
ordem, não aquele método demonstrativo. Pois esta doutrina da Igreja não é derivada de
demonstrações, mas do que foi dito, que Deus entregou ao gênero humano por testemunhos
definidos e claros, pelos quais ele se revelou e sua vontade com imensa bondade.
Assim como na filosofia certas coisas são procuradas e distinguidas das incertezas, e as
causas da certeza são a Experiência, os Princípios e as Demonstrações universais; assim, na
doutrina da Igreja, a certeza da revelação de Deus é a causa, e devemos considerar quais opiniões
foram emitidas por Deus. Como é certo para qualquer um, esta frase: “Duas vezes quatro são
oito”, pois é natural conhecer como princípios; tenhamos, pois, certos e inabaláveis artigos de
fé, as ameaças e promessas divinas, para que tenhamos a certeza de que, quando ele faz
penitência, os pecados são perdoados por amor do Filho de Deus, que ele é ouvido e se torna
herdeiro de vida eterna. Mas as causas da certeza são diversas. A mente vê o julgamento dos
números em seu próprio julgamento. Mas os artigos de fé são certos por causa da revelação, que
foi confirmada por certos e claros testemunhos de Deus, como a ressurreição dos mortos e
muitos outros milagres. Mas como as coisas são colocadas fora do julgamento da mente humana,
o consentimento é mais fraco, o que ocorre porque a mente é movida por esses testemunhos e
milagres, e é auxiliada pelo Espírito Santo a concordar.
Mas, embora a filosofia ensine que não há dúvida sobre as coisas que não são descobertas
pelos sentidos, elas não são princípios, nem são confirmadas por demonstração, de modo que
aqui é permitido duvidar ou reter[7], se a cavidade da nuvem sozinha é a razão pela qual o arco-
íris é o arco; mas saibamos que a doutrina da Igreja transmitida por Deus é certa e imutável,
embora não seja detectada pelos sentidos, nem tenha nascido conosco como princípios, nem deve
ser encontrada por demonstrações, mas por uma questão de certeza é a revelação de Deus, que é
verdadeira.
Portanto, não devemos admitir essa dúvida filosófica ou efêmera[8] à doutrina da Igreja
transmitida por Deus. Caso contrário, fica em nossas mentes nessa corrupção da natureza
humana uma grande confusão de dúvidas sobre Deus, e tais opiniões devem ser resistidas e
combatidas. Não há dúvida aqui para ser apoiada ou elogiada, mas que há certo assentimento à
fé, uma evidência[9], isto é, certeza, pela qual a mente, convencida pelos testemunhos divinos,
abraça com mais firmeza a voz divina sobre coisas que não são visíveis, como diz a Epístola aos
Hebreus.
Estas coisas devem ser ditas de antemão, para que possamos pensar desde o início que certas
coisas, firmes e inalteradas, são ensinadas na Igreja, como diz o Filho de Deus (Marcos 13. 31):
“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão”. Então pensemos também que a
fé é um assentimento firme, que abarca toda a doutrina do Evangelho, que não é, como na
Academia de Arcesilau[10], jogos de opiniões ambíguas e disputas, cujas blasfêmias Deus pune
com castigos presentes e eternos.
Algo não deve ser dito sobre a ordem das partes da doutrina. Os próprios livros proféticos e
apostólicos são escritos na melhor ordem e entregam os artigos de fé na ordem mais adequada.
Pois há uma série histórica nos livros proféticos e apostólicos; eles se originam da primeira
criação e condição da Igreja, e a sequência de eventos de todos os tempos, desde a criação da
monarquia até o reinado de Ciro, está contida nesses livros proféticos. Nesta série são relatadas
muitas reconstruções da Igreja, e a doutrina da lei e a promessa do Evangelho estão espalhadas
nas narrativas. Então os Apóstolos são testemunhas de Cristo sendo apresentado, nascido,
crucificado e ressuscitado. São eventos históricos. E nos sermões de Cristo estão contidos os
artigos de fé, a explicação da Lei e do Evangelho. Há também as disputas de Paulo, que, como
artesão, organizou a discussão na Epístola aos Romanos sobre a diferença entre a Lei e o
Evangelho, no que diz respeito ao Pecado, e a Graça ou Reconciliação, pela qual somos
restaurados à vida eterna.
Mas mesmo que se perceba esta ordem, não há necessidade de comentários, ou nossos livros,
ou similares, mas sim porque Deus quer que a voz daqueles que ensinam na Igreja soe, como se
diz do Ministério do Evangelho, em Efésios 4, que o trabalho de ensino não é em vão. Nós não
produzimos coisas novas ou materiais, como Hesíodo[11] entregou de outra forma, mas
consideramos os pais Sem, Jafé; os hereges inventam coisas novas não transmitidas pelos
apóstolos, mas intérpretes piedosos recitam de boa fé as sentenças recebidas por Deus no relatos
proféticos e apostólicos. E como os iletrados não entendem o gênero da fala em toda parte e não
veem imediatamente a ordem das coisas, eles devem ser lembrados pela voz dos intérpretes
sobre o gênero da fala e a ordem das coisas. E como muitas corrupções foram inventadas e
concebidas de tempos em tempos, pastores e doutores piedosos são testemunhas de opiniões
verdadeiras, aceitas com certa autoridade e refutando falsas interpretações. Por essas causas,
Deus preserva e restaura o ministério do Evangelho e os estudos nas igrejas e nas escolas, para
que sejamos guardiões dos livros dos Profetas e Apóstolos e testemunhas da verdadeira
interpretação; do Evangelho, e como Efésios 4 (v. 14) diz, pois, as igrejas, como que impelidas
pelos ventos e dispersas, tendo perdido sua verdade, podem ser enredadas em vários erros, como
é frequentemente o caso. Os pagãos, tendo perdido a luz da doutrina de seus pais, agitaram-se
com fúrias horríveis e variadas; praticaram sacrifícios humanos, adoraram seus sacerdotes e
prostituíram suas esposas e virgens para aplacar os ídolos. Então, quantos tipos de fúria havia na
seita de Marcião e maniqueístas, quanta blasfêmia, luxúria e sedições! Que variedade de frenesi
há agora com os anabatistas, que têm muito contato com os maniqueus! De Ário surgiu a loucura
dos maometanos. Que tipo de frenesi há na invocação dos mortos, na adoração de estátuas, na
venda da missa, na defesa da lei sobre o celibato e muitas outras coisas que são defendidas por
Maier, Pígio[12] e parasitas semelhantes dos pontífices!
Que os piedosos considerem estes exemplos da fúria de todos os tempos e, sendo lembrados
pela voz daqueles que são corretamente ensinados, abracem com ambas as mãos e com todo o
coração os livros proféticos e apostólicos entregues por Deus e anexem os comentários e
testemunhos de uma Igreja mais pura, como os Credos Apostólico e Niceno, para que retenham a
luz do Evangelho, e não caiam em tal frenesi; deixe-os cair, pois, como eu disse, eles seguem a
luz apagada do Evangelho. Aqueles que com zelo piedoso lerem os livros e credos proféticos e
apostólicos, e buscarem a opinião da Igreja mais pura, julgarão facilmente por quais narrativas
humanas podem ser auxiliados e entenderão que vantagem trazem às explicações dos piedosos,
corretamente e habilmente escritos e testemunhos retirados de fontes. Se estes forem piedosos,
Deus guiará o Espírito Santo neste estudo e julgamento, para que não sejam enganados pelos
truques do diabo, mas sejam influenciados a reconhecer, abraçar e reter opiniões verdadeiras.
Como Paulo diz (Filipenses 2. 13 - KJL): “Pois é Deus quem opera em vocês tanto o querer
como o efetuar, segundo a Sua boa vontade”. Quando se é inflamado pela vontade de buscar a
verdade com zelo piedoso, ela também a ajudará e a guiará, para que a obra seja bem-sucedida
para nós e para os outros.
1. Deus
A humanidade foi criada e, desde então, redimida para ser a imagem e o templo de Deus,
celebrando-O. Pois Deus deseja ser reconhecido e louvado, e uma clara e sólida compreensão de
Deus teria florescido nas mentes humanas se a natureza humana tivesse permanecido íntegra.
Além disso, após a queda de Adão e Eva, não há obra maior e melhor para a humanidade do que
o conhecimento verdadeiro de Deus, a invocação e a pregação. Como o Salmo 149: “Seu louvor
está na congregação dos santos”, e o Salmo 118: “Não morrerei, mas viverei e contarei as obras
do Senhor”. Portanto, a preocupação primordial e suprema do ser humano deve ser aprender a
verdadeira doutrina sobre Deus, como o primeiro mandamento exige em particular. No entanto,
as mentes humanas vagueiam nas profundezas sombrias dessa corrupção da natureza,
questionando se Deus existe, se há providência divina e qual é a vontade de Deus. Embora haja
testemunhos claros e sólidos que mostrem que Deus existe, que Ele ordena a obediência e que
castiga os crimes atrozes com severidade nesta vida, as mentes humanas são atormentadas por
dúvidas terríveis. Isso ocorre porque muitas vezes vemos que tanto os justos quanto os ímpios
são afligidos por grandes calamidades.
E por mais que a mente humana reconheça que Deus está punindo, ela não conhece nada de
reconciliação sem a revelação da promessa divina. Portanto, quando estamos sobrecarregados
com punições, as pessoas argumentam que elas acontecem por acaso ou se perguntam por que
Deus sobrecarrega essa natureza fraca com tantas misérias. Péricles pensa que a peste ática
surgiu principalmente por acaso ou por contágio material, mas não reconhece que é um castigo
divino. Édipo reconhece que está sendo punido por Deus, mas não sabe absolutamente nada
sobre o perdão dos pecados.
Portanto, sendo tão grande a escuridão da mente humana, reconheçamos que é um imenso
benefício que Deus se revelou com uma voz clara e com certos testemunhos desde o início,
depois que o gênero humano foi fundado e depois que sua igreja foi fundada: que Ele entregou
com Sua voz a lei e a promessa de reconciliação, e acrescentou enormes milagres, como a
salvação no dilúvio, a destruição de Sodoma, a saída do povo de Israel do Egito e muitas
ressurreições dos mortos.
Por esses ilustres testemunhos, busquemos Deus revelado, e nos separemos dos pagãos e de
todos os ignorantes do Evangelho, e em nossa invocação consideremos qual Deus invocaremos,
onde e por que Ele se revelou; não vamos vagar em nossas mentes, como os pagãos ou os que
correm para as estátuas, não pensemos negligentemente ou com frieza na revelação de Deus, mas
reconheçamos que é um grande benefício e um testemunho certo que Ele quer nos conceder.
Assim nos leva à revelação de Paulo em 1 Coríntios 1 (v. 21): “Quando o mundo não conheceu o
Deus sábio por meio da sabedoria, aprouve a Deus salvar aqueles que creram por meio de
pregações insensatas”, isto é: Porque suas mentes estão vagando e eles não estão familiarizados
com esta ordem tão bela, que foi instituída com muita sabedoria nas criaturas, nos lembrando de
Sua obra, mas ainda assim duvidam se isso é providência, se somos recebidos por Deus, ouvidos,
consolados; a voz do Evangelho foi emitida, pela qual Deus se revelou, e ainda assim a maior
parte dos homens trata isso também como um mito. Mas alguns são alcançados, e estes
aprendem a reconhecer corretamente e a invocar Deus corretamente, e recebem vida eterna,
justiça, glória etc.
Assim Cristo nos conduz ao Deus revelado. Quando Filipe pediu para ser mostrado o Pai,
Ele o repreendeu severamente e o retirou daquela especulação e disse (João 14. 9): “Quem Me
vê, vê o Pai”. Ele não quer que busquemos a Deus com especulações errantes, mas quer que
nossos olhos se fixem nesse Filho revelado e dirija nossa invocação a esse eterno Deus Pai, que
se revelou enviando esse Filho e dado o Evangelho e que, por causa deste Filho Mediador, nos
recebe e nos ouve. Assim, desde o princípio, Deus, procedendo de sua sede secreta para nossa
salvação, revelando-se e conversando familiarmente conosco, deu algumas palavras e
testemunhos, aos quais Ele ligou as mentes dos homens de tal maneira que eles determinaram
que isso era verdadeiramente Deus, o eterno criador, que se revelou por esta voz e este
testemunho. Assim, no primeiro mandamento, ele liga o povo à palavra que soou no monte Sinai
e à saída do Egito (Êxodo 20. 2): “Eu sou o Senhor, seu Deus, que lhe tirei da terra do Egito”.
Todas as coisas maravilhosas que aconteceram no êxodo, que eram evidências da presença de
Deus, estão completas. Este mesmo Deus deu promessas sobre o Mediador, por causa de quem
os Pais da Igreja desde o princípio sabiam que seriam ouvidos. Assim foi vinculada sua
invocação a este Deus, que se manifestou na libertação do Egito, e deu as promessas do
Mediador, como Davi diz (Salmo 110. 1): “O Senhor disse ao meu Senhor, sente-se à minha
direita. Tu és um sacerdote para sempre” etc. Assim, já tendo nos apresentado, crucificado e
ressuscitado Cristo e reconhecido à luz do Evangelho, apresentemos este testemunho a nós
mesmos, olhemos para este Filho e aprendamos estas duas coisas: Quem é Deus e qual é a sua
vontade, e separemos com sabedoria e fervor a nossa invocação do pagão, do turco, do judeu.
Pois, sobretudo, a verdadeira invocação difere da falsa em duas questões gravíssimas: a questão
da essência e a questão da vontade. Embora os turcos digam que invocam um Deus, o fundador
do Céu e da Terra, eles se desviam do Deus verdadeiro, porque negam que este seja o Deus que
enviou o Filho Mediador; portanto, eles não invocam corretamente. Pois é uma regra eterna e
imóvel, João 5 (v. 23): “Quem não honra o Filho não honra o Pai”. Primeiro, portanto, os turcos
estão enganados sobre a essência de Deus, porque imaginam seu próprio Deus, que não é o Pai
de Jesus Cristo.
Em segundo lugar, eles se enganam sobre a vontade: quando ignoram as promessas e negam
que o Filho é o Mediador, permanecem em perpétua dúvida e não podem determinar que serão
recebidos por Deus e ouvidos. Mas aqueles que vivem nessa dúvida não invocam, mas fogem de
Deus e se precipitam para o desprezo de Deus ou para o eterno desespero e blasfêmia.
Ao contrário, a Igreja de Deus afirma que este é Deus, o criador das coisas, que se revelou
enviando este Filho, dando o Evangelho e publicando os enormes testemunhos que estão listados
na história profética e evangélica. Ele primeiro julga a essência de Deus, não pela imaginação
humana, mas pela palavra de Deus transmitida por certas evidências. Então da vontade sabemos
com certeza que o Filho de Deus foi designado Mediador por um plano maravilhoso e
indescritível, e que temos certeza de receber e ouvir nossas petições por causa desse Mediador.
Considerando essas diferenças de início, que devem ser pensadas diariamente na invocação,
entender-se-á mais corretamente como Deus deve ser buscado, reconhecido e invocado, do que
por especulações ociosas, que muitos acumularam sem caminho nos comentários de Lombardo.
Agora que podemos ter alguma descrição de Deus, vou comparar duas: uma mutilada por
Platão, a outra completa, que foi transmitida na Igreja e é aprendida pelas palavras do batismo.
Isto é platônico: DEUS É A MENTE ETERNA, A CAUSA DO BEM NA NATUREZA. E
embora essa descrição platônica seja composta de maneira tão erudita, que é difícil para o olho
destreinado julgar o que está faltando, mesmo porque ela ainda não descreve Deus da maneira
que ele mesmo se revelou, outra descrição mais clara e mais próxima é necessária. Estas são as
palavras: “Deus é a mente eterna”, isto é, a essência espiritual, inteligente, eterna, “a causa do
bem na natureza”, isto é, o verdadeiro, bom, justo, onipotente fundador de todas as coisas boas e
de toda a ordem na natureza e da natureza humana a uma certa ordem, isto é, a uma certa
obediência. Este todo complexo pertence a Platão. Mas esses ainda são os pensamentos da mente
humana, que, embora verdadeiros e eruditos, e nascidos de demonstrações firmes, ainda assim
devem ser acrescidos, como o próprio Deus se revelou. Seja este o segundo registro:
“Deus é uma essência espiritual, inteligente, eterna, verdadeira, boa, pura, justa,
misericordiosa, livre, de imenso poder e sabedoria, o Pai eterno, que desde a eternidade gerou o
Filho à sua imagem, e o Filho é a imagem coeterna do Pai, e o Espírito Santo procede do Pai e do
Filho, assim como a divindade foi revelada por uma certa palavra, que o Pai eterno com o Filho e
o Espírito Santo fundou e preserva o céu e a terra e todas as criaturas, escolheu para si a Igreja,
para que por ela esta única e verdadeira divindade seja reconhecida por certos testemunhos e pela
palavra transmitida aos profetas e apóstolos, invocado e adorado de acordo com essa palavra
transmitida por Deus, e todos os adoradores de outros deuses são condenados, e que esta
verdadeira divindade deve ser celebrada na vida eterna”.
Essa descrição recita mais de perto quem é Deus e nos leva à revelação divina, pois essa
doutrina sempre foi transmitida na Igreja. O primeiro capítulo de Gênesis testifica que Deus
compreendeu esta essência, pois diz: “Deus disse”. Agora concorda-se em dizer que existe uma
essência inteligente, não bruta, e que é uma essência boa, pura, justa, e o livre arbítrio é
testemunhado pela criação do homem, sobre o qual, tendo sido criado à imagem do divino, Deus
imprimiu a informação que prescreve o bom, justo e ordenado, e acrescentou a liberdade da
vontade, ainda que esses bens depois da queda de seus primeiros pais tenham sido deformados.
Além disso, que a essência é eterna e onipotente, a própria criação testifica, da qual se diz
(Gênesis 1. 1): “No princípio Deus criou o céu e a terra”.
Mas as três pessoas, embora sejam mostradas mais obscuramente no mesmo capítulo, são,
no entanto, gradualmente reveladas com mais clareza. É dito que o Pai gerou o Verbo, que é a
imagem do Pai eterno. E do Espírito Santo é expressamente dito: “E o Espírito do Senhor se
movia sobre as águas”. Mas depois uma doutrina mais ilusória foi apresentada aos Pais e
profetas. Davi e Isaías colocam claramente o Messias acima dos Anjos e de todas as criaturas e O
chamam de Deus, como no Salmo 2 (v. 7): “Tu és Meu filho”, etc. E no Salmo 45 (v. 12): “E o
Rei desejará a sua formosura, porque Ele é o seu Deus, e você O adorarás”. E Isaías 9 (v. 6):
“Um menino nos nasceu, e um Filho nos foi dado, e Seu nome será Deus Forte, Pai da
eternidade”.
Finalmente, no Novo Testamento, as três pessoas ficaram muito claras, como quando no
batismo de Cristo o Pai disse: “Este é Meu Filho amado”. O filho é visto de pé abertamente no
rio. Mas o Espírito Santo habita no Filho de forma manifesta. Olhemos para esta revelação, e
separemos nossos pensamentos sobre Deus e nossa invocação do pagão, turco, judeu, e
invoquemos este Pai eterno, que se revelou ali enviando seu Filho Jesus Cristo e manifestado
pelo Espírito Santo, juntamente com o Filho e o Espírito Santo, o criador e sustentador das
coisas. Com frequências essas coisas devem ser lembradas para a invocação. Mas como as
pessoas devem ser distinguidas será dito mais tarde; primeiramente, de alguma forma, o restante
da descrição deve ser esclarecido.
Eu disse que as criaturas foram criadas pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo, e isso
também é transmitido aqui e ali no Antigo e no Novo Testamento, como em João 1 (v. 3) do
Verbo: “Todas as coisas foram feitas por meio d’Ele”. E do Espírito Santo: “O Espírito do
Senhor pairava sobre as águas”. Portanto, deve-se manter sempre arraigada na mente a regra de
que a criação e a preservação das coisas é obra de toda a Trindade, o eterno Pai, Filho e Espírito
Santo.
Finalmente, na descrição de Deus, menciona-se a Igreja, para que nossas mentes fiquem
conectadas a esse Deus, que se revelou na Igreja, e saibam que Ele é verdadeiramente o fundador
das coisas, que, por Sua palavra, se revelou por certos testemunhos desde o princípio do mundo.
Deixe-os também saber que esta é a maneira de sentir sobre Ele, a forma como Ele se revelou.
Os pagãos e os turcos também se gloriam de invocar aquele Deus que criou o céu e a terra, mas
se gloriam falsamente, porque suas mentes estão vagando e não querem ouvir o fundador se
revelar por sua Palavra e por Seu Filho enviado. Portanto, eles se desviaram do verdadeiro
fundador e imaginaram fundadores para si mesmos em suas especulações. Então, em cada
pensamento sobre Deus e em cada invocação, que as mentes olhem para Cristo enviado em
carne, crucificado e ressurreto, e decidam que este é verdadeiramente o Deus fundador, que
enviou este Filho e deu o Evangelho à Sua igreja.
Percorramos os detalhes da descrição, na qual também podemos saber que essas virtudes,
que atribuímos a Deus, não são acidentes nele, assim como a sabedoria, a justiça e a bondade são
acidentes e coisas mutáveis em um homem ou em um anjo; mas, assim como o poder de Deus
não se distingue da essência, nem é outra coisa, assim também a sabedoria, a verdade, a justiça e
a bondade de Deus não são outras coisas, mas são a própria essência, que é algo vivo que
subsiste em si mesmo, inteligente, eterno, onipotente, bom, justo.
Para que a Igreja tenha à vista esta descrição de Deus e distinta das opiniões pagãs, Cristo
nos recomendou na primeira e mais conhecida cerimônia: “Eu te batizo em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo”, isto é: “Dou testemunho, por meio deste batismo, do mandamento de
Cristo, que sejais recebidos por Deus, o criador de todas as coisas, o Pai eterno, seu Filho Jesus
Cristo e o Espírito Santo, a quem reconhecereis ser Deus apaziguado por Jesus Cristo, o Filho do
Pai eterno, e com esta confiança invocareis aquele que vos governará com o Espírito Santo e vos
vivificará para a vida eterna”, como registram as promessas divinas (Joel 2. 28): “Derramarei o
Meu Espírito sobre toda a carne”, etc. E Cristo disse em João 14 (v. 16): “Eu pedirei ao Pai, e ele
vos dará outro Intercessor, o Espírito da verdade”.
Portanto, pensando em Deus, seja ensinando ou invocando, proponhamos a nós mesmos a
doutrina e o testemunho do Batismo, e não apenas reflitamos sobre o número, mas sobre as
razões pelas quais o Filho foi enviado, sobre a promessa de reconciliação, sobre o maravilhoso
governo dos santos, que são defendidos por Cristo contra o diabo e são milagrosamente
vivificados pelo Espírito Santo. Pois, embora o diabo, que é um assassino, ataque cada um com
tramas assombrosos, a fim de derrubar aqueles que são arrancados de Deus, contudo, Cristo, por
outro lado, defende suas ovelhas, por mais fracas e aflitas que sejam, como Ele diz (João 10. 27):
“Minhas ovelhas ouvem Minha voz, e ninguém as arrebatará da Minha mão”. Ao mesmo tempo,
portanto, pensemos nos maravilhosos favores de Deus concedidos por causa do Filho, sempre
que recitamos as palavras do Batismo.
SOBRE O FILHO
E assim o Filho é descrito. Em João 1 (v. 1) é nomeado Logos. Na Epístola aos Colossenses
(1. 15) é chamado a imagem de Deus. Na epístola aos Hebreus (1. 7) é chamado o esplendor da
glória, isto é, a efígie ou imagem da substância do Pai; e é claro que o texto fala da natureza
divina do Filho, porque diz: “Todas as coisas foram criadas por meio d’Ele”. No Símbolo está
dito: “Luz da luz”. A combinação desses recursos os esclarece. O Filho é chamado a imagem e a
Palavra. Há, portanto, uma imagem nascida da união do Pai, que, para que possa ser considerada
de alguma forma, tomemos exemplos de nossas mentes.
Pois Deus quis que seus passos fossem vistos no homem, e se a natureza do homem tivesse
retido a primeira luz, o espelho da natureza divina teria sido menos obscuro. Agora, porém,
alguns vestígios podem ser notados nessa escuridão. Ao pensar, a mente humana logo traça uma
imagem do pensamento, mas não derramamos nossa essência nessas imagens, e esses
pensamentos são ações repentinas e evanescentes. Mas o eterno Pai olhando para si mesmo cria o
pensamento de si mesmo, que é a imagem de si mesmo, não desaparecendo, mas subsistindo na
essência compartilhada de si mesmo.
Então esta imagem está na segunda pessoa, e os apelos concordam. É chamado Logos
porque é gerado pelo pensamento. Chama-se imagem porque o pensamento é a imagem da coisa
pensada. É chamado o esplendor da glória, que em grego é mais significativamente escrito
resplendor[18], ou seja, o esplendor emitido de outra luz. Assim, o filho é o resplendor da luz
paterna; como se lê no Símbolo: “Luz da luz”. Também: “A efígie da substância do pai”, ou seja,
a imagem não desaparecendo, mas a essência compartilhada subsistindo.
Portanto, como na natureza dos homens, dizemos o Filho, gerado da substância do Pai, como
o Pai; Assim, a segunda pessoa é chamada de Filho, porque nasceu da substância do Pai e é sua
imagem. Então, a característica que distingue o Filho das outras pessoas é esta, que Ele é gerado
e que é uma imagem. E a diferença fica mais clara quando acrescentamos que esta segunda
pessoa assumiu uma natureza humana em determinado momento no ventre de Maria, pois o Pai
não assumiu uma natureza humana, nem o Espírito Santo assumiu uma natureza humana, mas o
Filho é Cristo, isto é, o Redentor prometido, uma pessoa com duas naturezas maravilhosamente
unidas, a saber, aquela imagem eterna do Pai ou Palavra[19] e a natureza humana. Pois é do
costume comum da Igreja usar a palavra união neste artigo.
Essas coisas são maravilhosas e colocadas muito acima de todo o cativeiro das criaturas.
Mas sabemos que esses mistérios da Igreja foram revelados, para que possamos invocar
corretamente a Deus e considerar as causas desse maravilhoso favor, que Deus uniu a si em uma
aliança eterna com a natureza humana. Portanto, em relação à natureza humana, Ele realmente se
importa com ela e a ama, e enviou este filho para ser um redentor e aplacar sua ira contra os
pecados, como será dito muitas vezes depois.
Diz-se que a terceira pessoa, o Espírito Santo, procede do Pai e do Filho. Esta propriedade é
atribuída a este terceiro. Essa característica é atribuída ao fato de ser uma pessoa que é enviada
ao coração dos renascidos, ou seja, pela qual o Pai e o Filho acendem nova luz, novos
movimentos agradáveis a Deus, Justiça e vida nos corações dos renascidos. E verdadeiramente
então o Espírito Santo está presente nos corações, quando os governa, os move e os incendeia,
como em 1 Coríntios 3 (v. 16) é dito: “Você é o templo de Deus, e o espírito de Deus habita em
você”. Este governo e santificação é chamado de ação especial de Deus. Mas como o Filho nasce
pelo pensamento, assim o Espírito Santo procede da vontade do Pai e do Filho; pois é da vontade
de mover, de amar, assim como o coração humano não cria imagens, senão pelo espírito ou
inspiração.
Testemunhos
Mateus por último (28. 19) diz: “Batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo”. Aqui ele lista três pessoas em particular e lhes dá igual poder e honra. Pois Cristo quis
abraçar a essência do Evangelho nesta primeira cerimônia. Portanto, ao mesmo tempo, ele
testifica que somos recebidos por Deus e nos ensina quem é Deus, a quem chamamos de Deus e
o que Ele nos dá. “Eu os batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, isto é:
“Testifico que são recebidos pelo eterno Pai e pelo Filho e pelo Espírito Santo, para que a
misericórdia e o poder destes os libertem do pecado e da morte eterna, e os deem justiça e vida
eterna”. Portanto, você não chamará os gentios como desviados do verdadeiro Deus, que se
revelou, mas estabelecerá que Ele é o Deus, o fundador das coisas, que se revelou por esta
palavra por meio de alguns testemunhos desde o princípio do mundo, faz uma aliança com você
no batismo, afirma que Ele é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e estabeleceu o Filho
propiciatório, e enviou o Espírito Santo para começar a justiça e a vida eterna em você.
Vocês reconhecem que a suma do Evangelho se compreende com sabedoria nas palavras do
Batismo e de mostrar quem é Deus: “Eu os batizo em nome”, isto é, na invocação e no
mandamento. Também em reconhecimento e invocação do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Invoco o Pai, o Filho e o Espírito Santo, para que recebam vocês, para que sejam ouvidos etc.
Esta é a consistência das palavras do batismo.
E quando essas palavras declaram que o Pai é Deus, que Ele é onipotente, que Ele deve ser
invocado, e que o Filho e o Espírito Santo são adicionados à companhia desta honra, é necessário
que haja um poder igual. E quando o poder é igual, significa que são o mesmo[20]. Além disso, é
evidente que o Pai e o Filho, Cristo, são pessoas distintas; por isso também pelo nome do
Espírito Santo é significada uma pessoa distinta. Pois se o Espírito significasse apenas o próprio
Pai mexendo ou movendo coisas, Ele teria mencionado o Pai duas vezes e a tantologia[21] teria
sido ociosa. A esta opinião também Basílio raciocinou com sabedoria e gravidade a partir deste
dito de Cristo: O Pai e o Filho e o Espírito Santo são consubstanciais (ομοούσιος); devemos ser
batizados, como recebemos, e crer, como somos batizados, e glorificar, como cremos no Pai e no
Filho e no Espírito Santo.
Mas como as evidências estão espalhadas aqui e ali nos escritos proféticos e apostólicos,
alguns dos quais falam apenas do Filho, outros do Espírito Santo, as evidências do Filho serão
primeiro coletadas. Há, no entanto, a principal prova no primeiro capítulo de João, que
provavelmente é o escritor deste Evangelho, e que Ebion e depois Cerinto espalharam a opinião
judaica e removeram a natureza divina de Cristo, fingindo que n’Ele havia apenas uma natureza
humana.
Mas antes de ir a João, vou expor duas razões tiradas das Escrituras, que, em minha opinião,
tanto ensinam como confortam os piedosos.
Primeiro: É necessário confessar que Cristo é o Filho de Deus por nascimento, porque o
Evangelho distingue os filhos de adoção do Filho Cristo. Pois João chama Cristo de Filho
unigênito, em João 1 (v. 14): “Vimos Sua glória como o unigênito do Pai”. Além disso, como
não há dúvida de que o Filho o é por natureza, é necessário que a natureza divina esteja
substancialmente presente n’Ele. Mas tudo o que está fora da pessoa do Pai, no qual está a
natureza divina, deve necessariamente ser uma pessoa. Assim Paulo (Colossenses 2. 9) diz de
Cristo: “Em quem a plenitude da divindade habita corporalmente”, isto é, o qual Cristo é a
pessoa divina, como se dissesse que a divindade habita n’Ele, não tanto quanto em Davi,
efetivamente, de forma separável; mas para que a própria existência[22] de Cristo seja divina. Pois
os gregos dizem “corpo” (σωμα), como comumente nos referimos a uma pessoa.
Segundo: Todas os escritos proféticos e apostólicos ordenam com grande concordância que
Cristo seja adorado e invocado, e ordenam confiar n’Ele; portanto, Lhe é dado poder infinito,
para que esteja em toda parte, para que possa olhar nos corações, para que ouça, para que possa
dar justiça e vida eterna. Portanto, é necessário que haja uma natureza divina em Cristo.
Agora há testemunhos claros sobre invocar e confiar em Cristo. Mateus 11 (v. 28): “Venham
a Mim todos os que estão cansados e oprimidos, e Eu os aliviarei”. João 3 (v. 36): “Aquele que
crê no Filho tem a vida eterna”. Isaías 11 (v. 10): “Naquele dia a raiz de Jessé será um sinal para
os povos, as nações pleitearão por Ele”. Salmo 45 (v. 12): “E o Rei desejará a sua formosura,
porque Ele é o seu Deus, e eles O adorarão”. Salmo 72 (v. 5): “E eles O temerão tanto quanto
duram o Sol e a Lua”. Também: “Suplicarão diante d’Ele sempre”. Atos 7 (v. 58): “Senhor Jesus,
receba meu espírito”. 1 Tessalonicenses 3 (v. 11): “Que o próprio Deus e nosso Pai, e nosso
Senhor Jesus Cristo, dirija nosso caminho até vocês”. 2 Tessalonicenses 2 (v. 16): “Nosso
Senhor Jesus Cristo, e Deus nosso Pai, que nos amou e nos deu eterna consolação e boa
esperança na graça, fortaleça-os”. Gênesis 48 (v. 16): “Que o Deus de Abraão, e o Anjo que me
livrou de todo mal, abençoe esses filhos”.
Nestes e semelhantes testemunhos se fala da perpétua invocação de Cristo, mesmo quando
Ele não está visivelmente comprometido com os homens. Portanto, essa adoração não pode ser
entendida, como os judeus zombam, do significado externo de honra, que é apresentado até o
presente como um rei que detém domínio civil; mas que estas frases sejam pregadas sobre o
Messias ouvindo, alimentando e salvando sua Igreja em todo o mundo e em todos os tempos.
Essas coisas são características da natureza do Todo-Poderoso. Portanto, é útil considerar este
ensinamento nos Profetas sobre a invocação do Messias. E parece que os Pais, Profetas e outras
pessoas piedosas do Antigo Testamento professavam a divindade do Messias pela própria
invocação, e essas palavras não apenas nos ensinam sobre a natureza do Filho, mas também nos
confortam e nos despertam para a invocação.
Portanto, que esta razão esteja sempre em vista, quando a invocação de Cristo é ordenada
com tanta frequência. Deve-se admitir que há uma natureza divina em Cristo, porque a invocação
do ausente, que não se vê visivelmente, confere onipotência. Pois ele sente que vê o movimento
dos corações de todos os homens em todo o mundo. Aqui recordamos também o exemplo da
Igreja, que muitas vezes repete a sua oração: Senhor da misericórdia[23]. Esta oração é uma
profissão da divindade de Cristo.
Agora chego a João, que está prestes a descrever as naturezas em Cristo que se originam do
divino: “No princípio era a Palavra”. Assim, ele chama o Filho de Deus, que depois assumiu a
natureza humana, como diz ali: “E a Palavra se fez carne”. Mas falando primeiro daquela
natureza, que era antes da encarnação, ele afirma que a palavra[24] é eterna, porque ele diz que era
antes da criação, e diz: “Todas as coisas foram feitas por Ele”.
E esta palavra ele chama de Deus, dizendo: “E a Palavra era Deus”. Pois o artigo grego
atesta que Logos (λόγον) deve ser colocado no lugar do sujeito e Deus no lugar do predicado.
Tampouco há qualquer ambiguidade no apelo de Deus. Pois a narrativa foi instituída para
descrever a essência divina. Portanto, o nome de Deus não deve ser entendido pelos ofícios
divinos que os homens realizam, como é dito em outro lugar (João 10. 34 e Salmo 81. 6: “Eu
disse, vocês são deuses”), mas mais apropriadamente do eterno, onipotente, inteligente, de boa
essência, fundador, assim como João afirma mais tarde: “Todas as coisas foram fundadas por
esta palavra”; ele, portanto, diz que Logos (λόγον) é o eterno Deus e criador.
As boas mentes entendem que este testemunho é firme, que repousa na voz do Evangelho e
não acede à zombaria e corrupção do Evangelho. Mas algumas pessoas astutas e ímpias, como
Samósata e depois Fotino e o recente Serveto[25], ousaram evadir e corromper as palavras de
João, e sustentaram que λόγον não significa uma pessoa, mas assim como no homem não
dizemos o pensamento de uma pessoa ou fala como sendo uma pessoa, mas uma qualidade
passageira ou movimento. Assim, eles queriam entender em João que λόγον não é uma pessoa,
mas o pensamento ou propósito do Pai, que é o próprio Pai, assim como dizemos que a mente ou
bondade do Pai é o próprio Pai.
Por fim, adaptaram a narrativa de João ao exemplo de um homem arquiteto: como no
arquiteto está a ideia da obra futura, que não é uma pessoa, mas um propósito e pensamento na
mente do arquiteto, então eles disseram que no Deus criador havia uma ideia e um propósito, que
Ele mesmo quis revelar através da condição do mundo e através do excelente mestre Cristo, ele
entregaria a doutrina da salvação e publicaria testemunhos sobre Deus. Eles disseram que este
pensamento ou este propósito era o próprio pai, e eles falam deste pensamento em Gênesis (cap.
1) que está escrito: “Disse Deus”, isto é, ele decidiu, propôs; e em João 1. 3: “Todas as coisas
foram feitas por Ele”, isto é, todas as coisas foram estabelecidas pelo pensamento do arquiteto ou
pelo discurso de comando, para que as coisas fossem feitas.
Mas o que João diz (1. 14), “A Palavra se fez carne”, então eles o corromperam, finalmente,
de acordo com esse propósito, de que Cristo nasceu de uma virgem, e sendo assim eles afirmam
que João veio para avisar que o Evangelho foi não uma invenção humana, mas que era o
propósito divino de Deus enviar este mestre, Cristo, e por meio dele dar evidência de doutrina.
Essa bajulação é corrupta, porque alude a um exemplo humano, e é lisonjeada por
personagens ímpios por causa de sua modéstia e muitas vezes causou grandes quedas; portanto,
evidências firmes devem ser coletadas, que mostram que é necessário aqui entender λόγον em
pessoa; e a principal controvérsia na narrativa de João é se λόγος aqui significa uma pessoa,
como a Igreja Católica de Deus sempre sentiu e defendeu. Pois mesmo naquela época, quando
Samósata estava tumultuando, os anciãos do bispo de Antioquia se reuniram das regiões
vizinhas, que ouviram os discípulos dos apóstolos, e refutaram Samósata e expulsaram da Igreja
aquele que havia sido condenado.
O velho bispo Gregório de Neocesareia, cuja doutrina a Igreja de seu tempo julgava a mais
pura, decidiu conhecê-la e deixou uma confissão escrita muito antes do Sínodo de Niceia. Esta
confissão está no livro 7 de Eusébio, página 173. Um Deus, o pai da palavra viva, da sabedoria
subsistente, e gera a imagem inteira e completa de si mesmo, o Pai do filho unigênito; um só
Senhor da terra, a imagem do Pai, a palavra eficaz, o Filho eterno da eternidade; um Espírito
Santo que tem a substância de Deus, que se manifestou pelo Filho, santificador, pelo qual Deus é
conhecido sobre todos e em todos.
Recitei esta confissão não só porque contém um testemunho ilustre da Igreja antiga e mais
pura, mas também porque transmite eloquentemente as distinções das pessoas. Ele diz que o
Filho é a imagem; Ele diz que o Espírito Santo é o santificador por meio do qual Deus é
conhecido, ou seja, a nova luz que começa nos corações, conforme é dito em 2 Coríntios 3 (v.
18): “Somos transformados à mesma imagem pelo Espírito do Senhor”.
Que na narração de João, λόγος (Logos) significa uma pessoa, é mostrado primeiro a partir
dessa própria narrativa, porque depois João diz de Cristo: “Ele estava no mundo, e o mundo foi
feito por meio d’Ele”. Agora, concorda-se que o mundo não foi fundado pela natureza humana
de Cristo; portanto, é necessário em Cristo, nascido de uma virgem, ser e permanecer a segunda
natureza co-criando com o Pai.
Assim e em outros lugares, ditos semelhantes mostram que há duas naturezas em Cristo.
Colossenses 1 (v. 16, 17): “Todas as coisas foram criadas por meio d’Ele e n’Ele, e Ele é antes
de todas as coisas, todas as coisas existem por meio d’Ele”. E Hebreus. 1 (v. 2,3): “Por meio do
Filho, a quem constituiu herdeiro de todos, por meio de quem também fez os séculos, que é o
resplendor do Seu resplendor e a imagem da Sua substância, sustentando todas as coisas pela
palavra do seu poder”. Essas palavras testificam claramente que a natureza divina coexiste com o
Pai e permanece em Cristo. Portanto λόγος não significa um propósito ou pensamento fora de
Cristo, nem significa uma voz passageira, mas uma natureza de advertência em Cristo, co-criador
com o Pai. Portanto λόγος é uma pessoa.
Assim é dito na Epístola de 1 João 1 (v. 1): “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o
que vimos, o que nossas mãos tocaram, a palavra da vida, isso nós declaramos”. Aqui também é
testemunhado que no próprio Cristo, nascido de uma virgem, a palavra que era no princípio é e
permanece. O mesmo é mostrado abaixo por vários testemunhos que falam da natureza divina
em Cristo, como: “Antes de Abraão nascer, Eu sou”[26].
Mentes piedosas, que sabem que Deus, como Ele se revelou, deve ser sentido, quando veem
que esses testemunhos do Evangelho são claros, reconhecem que essa opinião deve ser abraçada
com mais consistência, que em Cristo está a natureza divina e que o Logos nesta narrativa
significa uma pessoa, e olhando para esses testemunhos Eles invocam o Filho de Deus.
Agora procuremos também os ditos dos antigos escritores que viveram antes do Sínodo de
Niceia, dos quais Serveto calunia perfidamente os leitores, citando ditos mutilados de Irineu e
Tertuliano, como se desejassem que λόγον não fosse uma Pessoa ou Hipóstase[27], antes que
Cristo fosse nascido de uma virgem; mas ele causa um dano manifesto a ambos. Pois Tertuliano
levanta expressamente essa questão contra Práxeas, se λόγος é uma natureza subsistente ou
(como agora dizemos) uma pessoa, e ele responde afirmando que é uma Pessoa ou Hipóstase, e
expõe essa opinião em um longo discurso, no qual estas palavras são: “Eu digo uma pessoa, e
reivindico o nome do Filho, e eu O reconheço como o Filho, e eu O defendo segundo o Pai.
Irineu também afirma claramente que λόγον era uma pessoa antes de assumir a natureza
humana. Assim: ele diz capítulo 2, livro 3: “Mostrei claramente que no princípio o λόγος
existente com Deus, por meio de quem todas as coisas foram feitas, que sempre esteve presente
ao gênero humano, enviou este segundo tempo predestinado do Pai, unido à sua imagem, e
enviado como homem suscetível”.
E Orígenes afirma, eloquentemente, em De Principii[28], que λόγον é uma pessoa. “Ninguém
pensa”, diz ele, “que nós inapropriadamente[29] queremos dizer algo quando mencionamos a
sabedoria de Deus”. E depois: “Se, então, uma vez for aceito corretamente que o Filho unigênito
de Deus é sua sabedoria substancialmente subsistente”. Ele afirma a mesma coisa mais tarde,
quando discute a encarnação. Mas os testemunhos de Gregório de Neocesareia e Irineu, que citei
acima, são mais ilustres e mais firmes.
Agora volto a João, que, quando diz: “A Palavra se fez carne”, primeiro testifica que o Pai e
a Palavra não são a mesma pessoa; o Pai não se revestiu da natureza humana; pois Ele se
distingue do Filho, dizendo: “Este é meu Filho amado”[30]. Então, quando se diz: “A Palavra se
fez carne”, é preciso entender a pessoa. Pois, como mostramos acima, em Cristo nascido de uma
virgem, a natureza divina da criação permanece. Portanto λόγος é uma pessoa. Da mesma forma,
se o Logos fosse apenas pensamento, que é o próprio Pai, esse pensamento não se tornaria carne.
Pois o Pai não se torna carne, nem se pode dizer da voz passageira que se torna carne, pois passa
e desaparece; mas a palavra permanece em Cristo nascido de uma virgem.
Portanto, em Cristo nascido da virgem Maria há duas naturezas, o Logos e a natureza
humana, tão unidas que Cristo é uma pessoa. Pois a Igreja usou este termo de união, cujo
discurso também seguimos. Pois o fato de que os antigos às vezes usavam o termo de mistura,
deve ser entendido com prudência, para que não se pense em uma confusão de naturezas.
Orígenes, embora negue que uma semelhança adequada dessa conjunção possa ser dada, no
entanto a compara a um ferro em chamas. Como o fogo penetra o ferro e se mistura com ele por
todos os lados, assim o λόγος assumindo a natureza humana brilha nele como um todo, e a
natureza humana está unida à palavra como se fosse acesa pela luz.
Refutamos com bastante clareza a fúria de Samósata, Fotino e Serveto, quando decidimos
que λόγον deve ser entendido como uma pessoa. Então a refutação de Ário é fácil, que admite
que λόγον significa uma pessoa em João, mas depois afirma que essa pessoa não é Deus por
natureza; mas João refuta com mais firmeza Ário, quando afirma expressamente que λόγον é
Deus, e para que não haja qualquer ambiguidade no termo Deus, ele atribui a palavra[31], que
através dessa pessoa todas as coisas foram criadas. Portanto, sendo Ele um criador e uma pessoa
todo-poderosa, Deus é verdadeiramente natureza, não apenas de nome.
Agora, ambas as refutações, de Samósata e de Ário, são apoiadas pelos seguintes
testemunhos, que mostram que em Cristo nascido de uma virgem existem e permanecem duas
naturezas, a divina criadora das coisas e a humana.
Em João 20 (v. 28), Tomé chama abertamente a Cristo Deus, dizendo: “Meu Senhor e meu
Deus”, que se diz na usual frase hebraica, à qual se junta o nome próprio de Deus, distinguindo a
verdadeira invocação da pagã, como no Salmo 19 (v. 8): “E invocaremos o nome do Senhor
nosso Deus”. Portanto, havia uma luz maravilhosa e nova em Tomé dando a Cristo o nome do
verdadeiro Deus e reconhecendo que n’Ele havia não apenas uma natureza humana, mas também
divina. Romanos 9 (v. 5): “De quem é Cristo segundo a carne, que é o Deus supremo, bendito
para sempre”. E para que ninguém zombe do uso do nome de Deus aqui metaforicamente,
acrescentemos os testemunhos que atribuem a Cristo as coisas que são próprias da natureza
divina, a saber, criar, dar vida aos mortos, santificar, ouvir, dar a vida eterna, e assim por diante.
João 5 (v. 17, 21): “Meu pai ainda trabalha, e Eu trabalho. O que Ele faz, o Filho também faz”.
Também: “Assim como o Pai ressuscita os mortos e dá vida, assim também o Filho dá vida a
quem Ele quer”. Neste sermão, Cristo afirma claramente que cria junto com o Pai, sustenta a
criação, preserva a Igreja e dá vida aos mortos, que são, sem dúvida, a natureza própria do Todo-
Poderoso. João 10 (v. 28): “Eu lhes dou a vida eterna, e ninguém as arrebatará da Minha mão”.
João 14 (v. 13): “Tudo o que você pedir em Meu nome, isso Eu farei”. Aqui Ele testemunha
claramente que ouve e faz o que pedimos, ambos próprios da natureza divina e infinita. João 15
(v. 5): “Sem Mim você não pode fazer nada”. Esta frase testemunha que Cristo está presente,
para proteger, para ajudar, para guiar aqueles que invocam, que são próprios de Deus. Mateus 18
(v. 20): “Onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome, ali estou no meio deles”. Estar
presente em todos os lugares, ouvir e ser favorecido em todos os lugares, são características da
natureza divina. João 20 (v. 22): Cristo dá o Espírito Santo, que também pertence apenas à
natureza divina. João 10 (v. 17): “Entrego minha alma e a tomo novamente”. João 6 (v. 40): “Eu
o ressuscitarei no último dia”. Da mesma forma (v. 62): “Se vocês virem o Filho do homem
subindo, para onde Ele estava antes”. João 8 (v. 58): “Antes de Abraão nascer, Eu sou”. Aqui Ele
testemunha que existia antes de assumir a natureza humana. João 17 (v. 5): “Glorifica-me, Pai,
contigo com aquela glória que Eu tinha contigo antes que o mundo existisse”. Colossenses 1 (v.
16): “Todas as coisas foram estabelecidas por Ele e n’Ele, e todas as coisas consistem n’Ele”.
Portanto, em Cristo, a natureza divina é a criadora das coisas. Então, mais adiante no cap. 2 (v. 9)
é dito: “N’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade”, como se dissesse: “Em
outros Deus habita com seu espírito, acendendo nova luz e novos movimentos, mas em Cristo ele
habita não só em espírito, mas também para que pela união pessoal a natureza humana se una à
divina”. Pois como agora costumamos dizer pessoas, os gregos antigos diziam corpos (σωματα).
Hebreus 1 (v. 2): A quem Ele fez herdeiro de todos, por meio de quem também fez os séculos,
que é o resplendor de Sua glória e a imagem de Sua substância sustentando todas as coisas” etc.
Atos 7 (v. 58): “Senhor Jesus, receba meu espírito”. Esta petição é atribuída a Cristo para
guardar as almas dos moribundos e reunir almas e corpos. 1 Tessalonicenses 3 (v. 11): “Que o
próprio Deus e nosso Pai, e nosso Senhor Jesus Cristo dirija nosso caminho”. 2 Tessalonicenses
2 (v. 16, 17): “Que nosso Senhor Jesus Cristo, e Deus e nosso Pai fortaleçam vocês”.
Do Antigo Testamento
Jeremias 33 (v. 16): “E este é o nome pelo qual O chamarão, Senhor nosso Justificador”.
Aqui ele dá a Cristo o nome próprio de Deus e afirma que Ele é o justificador, portanto, ele lhe
dá a glória que pertence somente a Deus. Novamente, para justificar, remover o pecado e a ira de
Deus, e restaurar a justiça e a vida eterna, ninguém o pode senão Deus. E embora os judeus
evitassem esse testemunho por muito tempo, sua refutação é fácil. O Profeta diz claramente que
o próprio Messias deve ser chamado, isto é, Ele deve ser invocado por essa fé, que Ele é Deus,
nosso justificador. O apelo pertence a esta mesma pessoa do Messias. Isaías 7 (v. 14): “Seu nome
será Emanuel, isto é, Deus conosco”. Mas é mais certo o que se segue no cap. 9 (v. 6): “Seu
nome será Maravilhoso, Conselheiro, Deus forte, Pai da vida eterna”. Aqui também os judeus
zombam da palavra EL, mas é certo que Deus é significado por esta palavra, e o próprio texto,
que segue: “Pai da vida eterna”, refuta suas artimanhas. Uma vez que Cristo é o autor e doador
da vida eterna após esta vida (como Ele diz em João 10. 28: “Eu lhes dou a vida eterna”), é
necessário que Ele seja Deus por natureza. Miqueias 5 (v. 2): “Sua vinda desde o princípio antes
dos dias do mundo”. Este testemunho é curto, no entanto afirma que o Messias existia antes da
condição do mundo. Ele é, portanto, eterno e Deus. E, portanto, os padres o conheciam desde o
início, e sabiam que ele estava presente na Igreja, como mostra o dito de Jacó citado acima; e
Daniel conversa com Ele e o aterrorizado é fortalecido, e nova luz e vida são infundidas por Ele.
E em 1 Coríntios 10 (v. 4) é dito que Ele esteve com o povo no deserto. Eles bebiam da rocha
espiritual que os acompanhava, e a rocha era Cristo. Salmo 45 (v. 12): “E o Rei desejará a sua
formosura, porque Ele é o seu Deus”. Aqui ele dá o nome próprio de Deus ao Rei Messias. E há
uma doce promessa. Embora a Igreja nesta vida seja deformada por grandes sofrimentos e ainda
seja fraca, ainda assim o rei Messias a ama e a declara bela. Por esta promessa, as mentes
piedosas que lutam com sua enfermidade se sustentarão.
Salmo 72 diz que o Messias é eterno e sempre deve ser adorado: “Seu nome sempre foi,
diante do Sol Seu nome permanecerá, e todas as nações dirão bem d’Ele”. Também: “E eles O
temerão tanto quanto duram o Sol e a Lua”. A adoração confere divindade. Pois é certo que se
diz da adoração perpétua, pela qual o Messias é invocado mesmo quando os olhos não estão à
vista, e não apenas do gesto pelo qual as honras são dadas aos reis presentes. A eternidade
também é descrita no mesmo lugar: “Antes que ‘sol’ fosse seu nome”, ou seja, antes que o sol
fosse criado, havia este Filho. Pois o salmo hebraico aqui usa uma palavra significativa,
significando que o Filho sem dúvida nasceu antes da condição do Sol.
Salmo 110 (v. 1): “O Senhor disse ao Meu Senhor”. A partir disso, Cristo argumenta que Ele
não é apenas o filho de Davi, mas também o Senhor. Já no mesmo reino político e na mesma
natureza, o filho ou sucessor nunca é senhor do pai ou avô do rei, assim como Augusto não é de
modo algum senhor de Júlio César. Portanto, o reino do Messias não será uma mera destruição,
mas vida eterna e justiça eterna, e em Cristo estará a natureza divina dando a vida eterna. Assim
como o restante dos Salmos ensina, todas as coisas devem ser incluídas (v. 4): “Tu és um
sacerdote para sempre”. Ele diz que há um sacerdote perpétuo que nos conduz ao Pai e dá a vida
eterna (v. 1): “Sente-se à minha direita”, isto é, reinando em igual poder com o pai eterno. Mas
como o poder é infinito, é necessário que haja uma natureza divina em Cristo.
Salmo 2 (v. 7): “Eu O gerei hoje”. Isto se refere somente a Cristo. Como também por João
(1. 18), Cristo é chamado o filho unigênito de Deus, isto é, não por adoção, mas por natureza, a
quem a substância do Pai foi propagada.
Se a objeção é levantada de que a natureza divina não pode sofrer nem morrer, enquanto
Cristo está morto; a resposta usual, verdadeira e necessária é a seguinte: Como em Cristo existem
duas naturezas, certas características próprias de uma natureza não impedem a presença da outra
natureza. As características próprias da natureza humana são estas: ter membros feridos, sofrer e
morrer. Portanto, Pedro afirmou claramente (1ª epístola, 4. 1) que Cristo sofreu na carne. E
Irineu[32], com erudição e piedade, afirma que Cristo foi crucificado e morreu com a Palavra em
repouso, para que Ele pudesse ser crucificado e morrer, ou seja, a natureza divina não foi
dilacerada ou morta, mas foi obediente ao Pai, repousou e suportou a ira eterna do Pai contra o
pecado da raça humana, não usando Seu poder, não exercendo Sua força. Se você considerar
cuidadosamente esta afirmação de Irineu, entenderá que as diferenças entre as naturezas são
reverentemente descritas e, ao mesmo tempo, lança luz sobre a magnitude da ira de Deus contra
o pecado derramada sobre Cristo, bem como sobre a humildade do Filho que repousou e foi
obediente ao Pai, não exercendo Seu poder.
Agora, esta afirmação corresponde à de Filipenses 2 (v. 6): “Aquele que era em forma de
Deus”, isto é, sabedoria e poder iguais ao Pai, “não usurpou a igualdade de Deus”, isto é, quando
foi enviado para obedecer a Deus em Sua paixão, não agiu contrariamente à Sua vocação, não
agiu contra a vocação, não usando Seu próprio poder contra à sua vocação, mas esvaziou-se, isto
é, não exerceu o Seu poder, e humilhou-se assumindo a forma de servo, isto é, pondo-se sobre a
mortalidade com a natureza humana, encontrado habitando como homem, isto é, com paixões,
medo, tristeza, dor. Mantenha-se a distinção entre as naturezas, mas ao mesmo tempo, saiba-se
que essas proposições são verdadeiras por causa da união pessoal: Deus sofreu, foi crucificado,
morreu; não pense que somente a natureza humana é redentora, e não todo o Filho de Deus. Pois
embora a natureza divina não seja dilacerada, não morrendo, saibamos que este mesmo Filho é o
Redentor coeterno com o Pai. Por isso, nesta doutrina, são ditadas regras sobre a comunicação de
expressões idiomáticas, isto é, sobre a predicação de propriedades, que se dizem de ambas as
naturezas em comum, mas concretamente, isto é, que podem ser entendidas como propriedades
de uma pessoa.
A diligência é digna dos piedosos, por causa da concórdia com a Igreja, e não sem causas
eruditas. A velha igreja aprovou alguns métodos e rejeitou outros. Mas evitemos a tendência ao
ridículo e retenhamos as formas recebidas com autoridade séria e verdadeira. Esta afirmação não
é verdadeira: “a natureza divina é humana”. Mas esta é a verdade: “Deus é homem, a Palavra é
homem, Cristo é homem, Cristo é Deus, Deus nasceu de uma virgem, sofreu”; porque esta
pessoa, na qual a natureza humana divina está unida pela união pessoal, nasce e é crucificada.
Essa forma de falar em termos concretos é chamada de comunicação idiomática, ou seja,
pregação, na qual as propriedades da natureza da pessoa são corretamente atribuídas, de modo
que o Filho de Deus é o redentor, e não apenas a natureza humana é redentora. Da mesma forma,
essas proposições são verdadeiras e aceitas: “A Palavra se fez carne, a Palavra se fez homem,
Deus começou a ser homem”. Ao contrário, essas proposições foram rejeitadas: “O Verbo é uma
criatura, Cristo é uma criatura, Cristo começou a ser, Cristo se tornou”. A ambiguidade foi
sabiamente evitada e as armadilhas foram evitadas. Pois os arianos falando dessa maneira não
falavam da suposta natureza humana de Cristo, mas afirmavam que a segunda natureza em
Cristo, o primeiro humano, foi criada do nada, que Ele não era a imagem do Pai eterno nascido
de sua substância, “mesmo em essência”[33] e coeterno com o Pai.
“A Palavra é homem”, é recebida, porque se entende que a palavra assumiu uma natureza
humana. “A Palavra é criatura”, rejeita-se, porque não se entende a suposição de outra natureza,
mas o predicado significando que λόγον foi criado, o que é falso. Li estas coisas para aconselhar
os estudiosos para que, ao falarem, tenham um cuidado digno de mentes piedosas e reproduzam
o discurso ortodoxo da Igreja.
E essa resposta deve ser mantida: alguns ditos falam de essência, outros de deveres. Os
arianos citaram este dito (João 14. 28): “O Pai é maior do que Eu”. Isso fala claramente da
diferença entre o remetente e o enviado, não da essência. Pois quando os judeus acusaram Cristo
de ensinar contra a autoridade de Deus, era necessário alegar a Cristo a autoridade do Pai, de
quem Ele afirma que foi enviado e lhe transmitiu a doutrina e o mandamento de ensinar, e Ele
diz que o Pai é maior como o remetente, a fonte da doutrina, o aprovador e defensor desta
doutrina e de Sua igreja. O Filho que aqui foi enviado sofre a cruz e a Igreja está cheia de
fraquezas, mas Cristo clama sobre o Pai: “O Pai é maior do que Eu, Ele trabalha comigo, Ele
defenderá esta doutrina da Sua Igreja”.
Então em outro lugar (João 17. 5) é dito: “Pai, glorifica-Me”. Este dito poderia ter sido
citado pelos arianos tanto quanto o outro, mas faz uma distinção entre deveres, não fala da
essência: “Agora Sou enviado sujeito à cruz e sirvo à Minha vocação, mas depois Me devolva a
glória que Eu tinha contigo antes da fundação do mundo”. Mas esta declaração fala da essência
em João 1 (v. 1): “Deus era a Palavra”.
Essa resposta é frequentemente o caso, e certamente é necessário notá-la nos Profetas.
Outros ditos falam do Cristo reinante tal como em João 5. 19: “O que o Pai faz, o Filho também
faz”. Outros ditos falam do Cristo humilde e paciente, como Mateus 27. 46: “Deus, por que me
abandonaste?”. Não é dito da essência, mas é descrita a obediência daquele tempo, em que a ira
de Deus contra os pecados da raça humana foi derramada sobre o Filho. E a regra deve ser
mantida, que o Filho de Deus assumiu uma natureza humana inteira e incorrupta, tendo todos os
poderes e desejos próprios e ordenados à natureza; novamente, sem vícios, mas ainda passível,
sem pecado e mortal. Tais enfermidades Ele assumiu de bom grado por nós, para que pudesse se
tornar uma vítima. Então, em Hebreus 4 (v. 15), é dito: “Não temos um Sumo Sacerdote que não
possa compadecer-se das nossas enfermidades, mas que foi tentado em todas as coisas, segundo
nossa semelhança, mas sem pecado”.
Portanto, embora Cristo contemplasse o Pai e fosse bem-aventurado, ainda assim a natureza
humana tinha seus desejos, mas ordenados. E estes ditos são frequentemente recitados: “Ele está
com fome, Ele está com sede, Ele está feliz, Ele está com raiva, Ele está com dor, Ele está em
prantos, Ele luta com grande tristeza”, tal como Ele diz (Mateus 26. 38): “Minha alma é triste até
a morte”. E porque a emoção do coração nos leva à tristeza, como todos nós experimentamos, há
tal emoção em Cristo que o sangue é expelido e o suor é como uma gota de sangue grosso e
coagulado; pois é isso que significa a trombose[34]. Ninguém mais poderia ter apoiado tal
resolução. Esses sentimentos em Cristo não eram fingidos, mas emoções reais e grandiosas.
E não pensemos que Cristo era uma pedra ou um estoico, mas Ele estava verdadeiramente
bem-aventurado, verdadeiramente em conflito com a dor, e essa grande dor na agonia tinha
muitas causas, Ele não temia tanto a dilaceração de Seu corpo, mas Ele sentiu um fardo maior, a
saber, a ira de Deus contra os pecados da raça humana, que foi derramado em si mesmo, como se
Ele mesmo tivesse se contaminado com todos os seus crimes horríveis. Ele também lamentou
que uma grande parte da raça humana perecesse desafiando esse favor de Deus. Essas imensas
dores não podem ser compreendidas nem suportadas por nós. No entanto, é necessário que a
Igreja pense algo sobre essas grandes coisas, que é, portanto, sobrecarregada com a cruz, para
que reconheça que a ira de Deus contra os pecados é algo grande.
Quando, portanto, a principal ira foi derramada sobre o Filho, deve ter havido grande
tristeza, com a qual Ele se entristeceu por Deus ter sido ofendido pela raça humana, e Ele lutou
contra a tentação da rejeição. Portanto, um anjo é enviado para confirmá-lo. Essas coisas devem
ser pensadas, para que possamos de alguma forma apreciar a grandeza do nosso pecado e
agradecer a Cristo por sofrer o castigo por nós e, ao mesmo tempo, tornar-se um intercessor por
nós, e por esse pensamento possamos despertar a fé, invocação e temor.
O que é discutido, no entanto, é se a fuga da morte em Cristo foi defeituosa, quando a parte
inferior não obedeceu à superior; em primeiro lugar, respondo que as lacerações na carne
naturalmente causam dor mesmo sem pecado, e também que algumas dores são naturais no
coração e na vontade, que estavam em Cristo sem culpa; Ele se entristeceu, mas não
desordenadamente, como nós.
Então, acima dessa dor natural, há em Cristo o sentido da ira de Deus contra o pecado do
gênero humano, no qual Ele reconhece e se entristece que Deus está verdadeira e terrivelmente
ofendido por causa dos pecados do gênero humano, e luta contra a tentação de rejeição. Portanto,
embora haja uma espécie de trepidação nessa luta, porque a natureza universalmente geme
quando sobrecarregada além de suas forças, essa trepidação ou esse gemido é diferente em Cristo
e em outros homens. Cristo suporta os terrores contra o Pai sem indignação e reconhece que o
Pai deve ser obedecido. Portanto, esta trepidação é sem pecado e não é sujeita a vícios. Mas no
resto dos homens, quando eles fogem, há um rugido contra o julgamento de Deus, e naqueles que
não lutam, fugindo para a vitória de Cristo, aproximam-se horríveis blasfêmias. Não adicionarei
uma discussão mais longa; pois os piedosos serão levados por seus sofrimentos à contemplação
dessas coisas. No entanto, é útil nos lembrar, e a comparação de eventos semelhantes nos Salmos
e nos Profetas esclarece isso de alguma forma.
Mas o que dizem sobre a luta é que o bem-aventurado, quando está em excelente felicidade,
não está ao mesmo tempo em grande consternação; devemos responder que houve um certo
período de sofrimento, no qual aquela glória das bem-aventuranças não brilhou tanto quanto em
outro tempo. Pois havia um tempo marcado para esta luta, em que Cristo se tornaria
verdadeiramente vítima, repousando na Palavra, como diz Irineu. Estamos satisfeitos com esta
distinção de tempos. Outros buscam outras respostas, sobre as quais deixo o julgamento para os
leitores.
Deus queria ser conhecido e visto. Por isso, Ele criou todas as criaturas e usou uma arte
maravilhosa para nos convencer de que as coisas não existiam por acaso, mas sim que existe uma
mente eterna, arquiteta, boa, justa, olhando as ações dos homens e julgando. Embora esta
consideração de toda a natureza nos lembre de Deus (como direi novamente mais tarde);
contudo, no início, refiramos nossa mente e nossos olhos a todos os testemunhos em que o Deus
da Igreja se revelou, à saída do Egito, ao soar da voz no Sinai, a Cristo ressuscitando os mortos, e
ressuscitando e subindo ao céu, à voz do Pai eterno que soa sobre Cristo: atente-se à missão do
Espírito Santo. Estes testemunhos foram emitidos e propostos para educar, convencer e
confirmar-nos mais claramente na fraqueza da natureza; portanto, que suas mentes estejam
sempre fixadas na contemplação desses testemunhos, e fortalecidos por eles, meditem sobre o
artigo da criação, e então consideram também os traços de Deus impressos na natureza.
Ora, há um artigo sobre a Criação em Gênesis 1, e em outros lugares é frequentemente
expresso que o Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, juntamente com o Filho co-
eterno e o Espírito Santo, criou do nada céu e terra, anjos e homens e todos os outros corpos.
Assim em João é dito do Filho (1. 3): “Todas as coisas foram feitas por Ele” (isto é, o Filho). E
do Espírito Santo criando, diz-se no Salmo 33 (v. 6): “Pela palavra do Senhor os céus foram
estabelecidos, e pelo Espírito de Sua boca toda a Sua força”. Mas esta frase ensina que as coisas
foram criadas do nada (v. 9): “Ele disse e tudo se fez, Ele ordenou e tudo foi criado”, isto é, as
coisas vieram a existir por palavra ou mandamento de Deus. Não é que tenham sido construídos
a partir de matéria anterior (como os estoicos imaginavam duas coisas eternas, mente e matéria);
mas quando Deus disse, quando as coisas ainda não existiam, elas começaram a existir, e quando
João diz: “Todas as coisas foram feitas por Ele”, ele refuta o pensamento estoico, que imagina
que a matéria não é feita. É necessário ser advertido sobre o artigo da criação na Igreja.
No entanto, ainda não discutimos este tópico de maneira abrangente. A condição humana,
mesmo que consideremos que Deus a tenha originado, muitas vezes é percebida como algo que
ocorre independentemente Dele, assim como um carpinteiro que, após construir um navio, o
entrega aos marinheiros e se afasta da criação. Isso leva a uma separação entre Deus e Suas
criaturas, criando dúvidas e obscurecendo nossos pensamentos.
Alguns, como os estoicos, acreditam que Deus está restrito às causas secundárias e que tudo
ocorre somente por meio do conhecimento dessas causas. Outros, como os epicuristas, veem o
mundo como regido pelo acaso, misturando todos os eventos. Essas concepções errôneas
frequentemente geram perplexidade nas mentes humanas. Quando enfrentamos situações de
perigo que ultrapassam nossa compreensão, tendemos a atribuir o acontecimento a causas
naturais, levando-nos a acreditar que o mal é incurável, pois acreditamos que a natureza opera
independentemente de Deus.
Frente a essas incertezas, é essencial fortalecer a mente por meio de uma reflexão mais
profunda sobre o artigo da criação. Deve-se compreender não apenas que Deus é o Criador de
todas as coisas, mas também que Ele constantemente preserva e sustenta as substâncias das
coisas criadas. Anualmente, Deus torna a terra fértil, permitindo que ela produza colheitas e
conceda vida aos seres vivos. Esse ato contínuo de preservação e manutenção é conhecido como
a ação geral de Deus, embora isso não o vincule às causas secundárias de forma a impedi-Lo de
agir de maneira independente. Deus age livremente, mantendo a ordem de Sua criação, mas
também intervém em diversos eventos para o benefício da humanidade. A natureza das coisas
responde às orações de indivíduos justos, como Moisés, Elias, Eliseu e Isaías, como Cristo
afirma em Mateus 21:22: “Tudo o que pedirem, crendo, receberão”. Da mesma forma, o Salmo
55:23 nos diz para “lançar nossas preocupações sobre Deus, e Ele nos sustentará”.
Deus está presente às suas criaturas, mas não está presente como um deus estoico, mas como
um agente muito livre, sustentando a criatura e a controlando com Sua imensa misericórdia,
dando dons, ajudando ou dificultando causas secundárias. É necessário que os piedosos sejam
lembrados dessa distinção. Apeguemo-nos, portanto, às evidências que ensinam que há um Deus
das coisas naturais, e que Ele é seu governador e diretor, para que em nossos perigos não
sejamos quebrados pelos pensamentos de epicuristas ou estoicos, não pensemos que por acaso
somos oprimidos pelas adversidades, ou que a ordem fatal das causas é imutável, nem que as
coisas são secundárias ao acaso, ou apenas nos refiramos às causas físicas, mas reconheçamos
mais verdadeiramente a Deus como doador das coisas boas e controlador da natureza. Atos 17
(v. 28): “N’Ele vivemos, nos movemos e existimos”, ou seja, por meio d’Ele nossa vida é dada,
sustentada e encorajada. Hebreus 1 (v. 3): “Trazendo todas as coisas pela palavra do Seu poder”.
Colossenses 1 (v. 17): “Todas as coisas consistem n’Ele”. Em 1 Timóteo 6 (v. 13) acrescenta-se
a descrição de Deus: “Quem dá vida a todas as coisas”. 1 Timóteo 4 (v. 10): “Esperemos no
Deus vivo, que é o salvador de todos os homens, especialmente os fiéis”, ou seja, faz o bem a
todos, favorecendo a vida, produzindo colheitas, preservando o gênero humano, para que possa
reunir a Igreja para si a partir daí, mas sobretudo ajudando a Igreja, na qual não só anima os
corpos, mas também concede bens eternos. 1 Timóteo 6 (v. 17): “Viver em Deus, que nos provê
abundantemente em todas as coisas para desfrutar”. Mateus 10 (v. 29, 30): “Dois pardais estão
chegando, e nenhum deles não cairá no chão sem o seu Pai”; e “todos os cabelos de sua cabeça
estão contados”. Salmo 104 (v. 27-30): “Todas as coisas dependem de Ti, que Tu lhes dês o
alimento a seu tempo; quando Tu os deres, eles ajuntarão; quando Tu abrires a Tua mão, todas as
coisas serão cheias de bondade; quando Tu virares o teu rosto, eles se perturbam, tirar-lhes-á o
espírito, e eles desfalecerão, e voltarão ao pó da terra. Envia o Teu espírito, e eles serão criados, e
renovarás a face da terra”. Salmo 145 (v. 15, 16): “Os olhos de todos esperam em Ti, e Tu lhes
dás de comer no tempo certo, abres a mão e enches de bênçãos todos os seres”. Salmo 33 (v. 13-
15): “O Senhor olhou do céu, Ele vê todos os filhos dos homens, Ele molda seus corações com
um selo, Ele entende todas as suas obras”. Salmo 147 (v. 8): “Aquele que cobre o céu de nuvens
e prepara a chuva para a terra; que produz feno nas montanhas; que dá de comer aos animais e
aos filhos dos corvos que O invocam”. Salmo 36 (v. 6): “Tu ajudarás os homens e os animais,
Senhor”. Houve muitas promessas especiais da Igreja sobre a vida, o alimento e a defesa do
corpo, que também testemunham que Deus está presente nas criaturas, de que nos sustenta e
controla as causas naturais. Salmo 33 (v. 18, 19): “O Senhor se compraz com aqueles que O
temem, resgatando suas almas da morte e os alimentando em meio a fome”. Salmo 34 (v. 10):
“Não há falta para aqueles que O temem”. Salmo 37 (v. 19): “Eles não serão confundidos no
tempo mau, e serão saciados nos dias de fome”. Oseias 2 (v. 8, 9): “E não sabia estas coisas, que
Eu lhe dera trigo; portanto, tirarei Meu trigo novamente”. Estas promessas ensinam o mesmo
sobre bênçãos e maldições. Deuteronômio 28 (v. 11): “O Senhor fará com que você abunde com
o fruto da sua terra”. Da mesma forma (v. 23): “Haverá um céu eterno”. Deuteronômio 30 (v.
20): “Ele é a sua vida e a duração dos seus dias”. E Provérbios 3 (v. 33): “A necessidade do
Senhor está na casa dos ímpios, mas as moradas dos justos serão abençoadas”. Provérbios 10 (v.
22): “A bênção do Senhor enriquece”. Salmo 127 (v. 1): “A não ser que o Senhor edifique a
casa, quem a constrói trabalha em vão”. Aqui é afirmado claramente que as causas secundárias
são nulas, a menos que sejam ajudadas por Deus. Salmo 100 (v. 3): “Saiba que o próprio Senhor
é Deus, Ele mesmo nos fez, e não nós mesmos”; mas nós, seu povo e as ovelhas de seu pasto, ou
seja, não nascemos por acaso, nem vivemos apenas por causas secundárias, por nossos próprios
planos e poderes, mas por Deus nos dando vida e nos guardando.
Finalmente, a oração dominical ensina a mesma coisa, quando nos ordena a pedir a Deus o
pão nosso de cada dia. Portanto, confessemos que Deus concede a vida e que a terra não é
frutífera a não ser que Deus a ajude.
Coletei uma quantidade moderada de evidências que narra o artigo sobre a Criação e afirma
que Deus está presente como sustentador e controlador da criação, e refuta as crenças epicuristas
e estoicas. Pois, como Deus promete coisas boas aos piedosos e aos que O invocam, e ameaça
punir os ímpios, é claro que Ele age livremente e não está vinculado a causas secundárias, mas
atenua muitas coisas por causa dos piedosos e exaspera muitas coisas por causa dos ímpios.
Como os exemplos mostram. Por causa da adoração de ídolos não choveu durante o reinado de
Acabe por três anos, mas as chuvas foram devolvidas a pedido de Elias. Por tais evidências, a
mente deve ser fortalecida na invocação. Pois não podem pedir a Deus o sustento e a defesa da
vida, se se sentem fascinados pelas opiniões dos epicuristas ou dos estoicos, ou pensam que tudo
acontece por acaso, ou que Deus não controla as causas secundárias. Sim, é por isso que Deus
entrega colheitas aos homens, porque eles pensam que nascem por alguma força natural, mesmo
que Deus não os encoraje, e eles não usam o dom que lhes foi dado com reverência, nem temem
o doador, como o dito de Oseias, que citei acima, nos adverte.
A mente humana é convencida por demonstrações a admitir que este mundo foi fundado por
Deus. Mas a presença de Deus como controlador, mesmo que essa opinião também tenha alguns
argumentos, como as punições de crimes atrozes, ainda assim é mais obscura. Portanto, porque o
assentimento é mais difícil, a fé deve ser despertada e fortalecida nos corações pelos testemunhos
divinos, para que possamos invocar a Deus e pedir com fervor e esperar d’Ele coisas boas, como
Ele ordena (Salmo 50. 15): “Invoque-Me no dia da angústia e Eu o livrarei”. Também (Salmo
37. 5): “Entregue o seu caminho ao Senhor, e Ele o fará”.
Mas, depois que a mente foi confirmada na opinião verdadeira e correta sobre Deus e sobre a
criação e a presença de Deus nas criaturas, e sobre o controle das causas secundárias da palavra
de Deus e dos testemunhos ilustres em que Deus se revelou ao gênero humano de modo
particular, como na saída do povo do Egito, na ressurreição dos mortos e por outros feitos
surpreendentes dos Profetas, Cristo e dos Apóstolos; então também é útil e deleitoso olhar para a
obra do mundo e buscar nela vestígios de Deus e coletar demonstrações que atestem que este
mundo não veio à existência por acaso, mas que Deus é a mente eterna, o Criador das coisas.
Pois é por isso que toda a natureza foi criada: para mostrar Deus. E se as mentes humanas
tivessem retido a primeira luz, essas informações sobre Deus teriam sido muito mais claras. Ora,
eles estão perturbados por muitas dúvidas. Mas é útil para as boas mentes realizar algumas
demonstrações que mostram que existe um Deus; assim como Paulo nos leva a olhar para os
trabalhadores do mundo, em Romanos 1 (v. 20) e em Atos (17. 27) ele diz, “Deus estava tão
perto que quase podia ser tateado com as mãos”. Vou, portanto, recitar brevemente algumas
demonstrações, cuja consideração é útil para treinar e confirmar opiniões honestas nas mentes.
A primeira é tirada da própria ordem da natureza, isto é, dos efeitos que mostram um criador.
É impossível que uma ordem permanente na natureza tenha surgido por acaso e permaneça por
acaso, ou que tenha surgido apenas da matéria. As partes principais são ordenadas na natureza,
de modo que permanece uma ordem perpétua dos movimentos celestes, em que o homem nasce
do homem, e o gado nasce dos bois, da fertilidade da terra, da perpetuidade dos rios, do
conhecimento natural na mente dos homens. Portanto, a natureza não surgiu por acaso, mas sim
de alguma mente que compreende a ordem.
A segunda é da natureza do ser humano. A matéria bruta não é a causa da natureza
inteligente; as mentes dos homens têm alguma causa, porque o homem não tem existência por si
mesmo, mas começa e surge de outro lugar; portanto, é necessário que alguma natureza
inteligente seja a causa da mente humana. Portanto, é necessário que haja um Deus.
A terceira é da discriminação de honrosos e profanos, e outros fatos naturais, como ordem e
números. É impossível que a distinção entre o honesto e o profano na mente tenha surgido do
acaso ou da matéria, assim como os dados da ordem e dos números sejam acidentais. Portanto, é
necessário ter alguma mente arquitetônica. E essas duas razões são as mais ilustres de todas. É
digno de consideração que a mente humana e essa luz inata da mente é a evidência mais
importante de Deus na natureza, e de fato isso também está entre as informações naturais, que
Deus, como Paulo diz, se revelou a nós, isto é, Deus revelou isso à mente humana, o
conhecimento de que Ele é Deus, e ao mesmo tempo introduziu esses raciocínios a partir de
efeitos.
Em quarto lugar, o conhecimento natural é verdadeiro: todos naturalmente admitem que
existe um Deus; portanto, esse conhecimento é verdadeiro. Isso seria menos claro se a natureza
não tivesse sido corrompida, mas deve ser confirmada pelos outros argumentos que recitei.
A quinta: de Xenofonte (Memor. Socr. 1. 4, 16) é tirado os terrores da consciência.
Concorda-se que assassinos e outros que cometeram grandes crimes sofrem horríveis torturas
mentais, mesmo que não temam julgamentos humanos. Há, portanto, uma certa mente que
ordenou o julgamento nas almas, que aprova o que é feito corretamente e desaprova o que é feito
de outra forma.
Sexto: a sociedade política. Uma sociedade política não é uma reunião aleatória de homens,
mas uma multidão unida por ordem e lei definidas; nem poderia ser restringido apenas pela ajuda
humana, mas a experiência testemunha que aqueles que violam essa ordem, como assassinos,
incestuosos e tiranos, são levados por alguma divindade à punição. Portanto, há uma mente
eterna que deu aos homens a compreensão da ordem, para que possam louvar a sociedade
política; também, que preserva e defende com Sua ajuda.
A sétima é aprendida sendo tirada de uma série de causas eficientes. Não é um processo
infinito em causas eficientes; portanto, é necessário que haja resistência em um dos primeiros
casos. Os físicos explicam claramente essa razão. Pois se houvesse uma progressão infinita, não
haveria ordem de causas e nenhuma causa estaria necessariamente conectada.
Oitavo: sobre as causas finais. Todas as coisas na natureza são projetadas para determinados
propósitos. É impossível que essa distribuição de limites tenha existido por acaso, mas deve ter
sido feita pelo projeto de um arquiteto.
Nono: sobre sinais de eventos futuros. Os eventos futuros são certamente indicados, não
apenas pelos prodígios que moveram as nações, alguns dos quais têm outras causas, mas muito
mais pelas profecias da Igreja, como Balaão, Isaías, Jeremias, Daniel predisseram mudanças e
sucessões de reinos. Portanto, é necessário que haja alguma mente que preveja e anteveja essas
mudanças.
Essas evidências não apenas testemunham a existência de Deus, mas também são evidências
da providência, de que Deus olha para os homens, pune crimes atrozes e favorece alguns, pois a
fertilidade da terra mostra que Deus examina a vida dos homens. Os castigos dos ímpios indicam
que Deus exige que adoremos a justiça. As profecias também sobre impérios, bem como o fato
de que homens heroicos são enviados para restaurar as civilidades e as artes, indicam que Deus
se preocupa com as civilidades. Estes exemplos são claros e sempre movem boas mentes.
Muitas outras coisas poderiam de fato ser coletadas, mas por serem mais obscuras, deixo-as
de fora. Não foi em vão que o conhecimento da lei foi dado ao homem, pelo qual Deus quer ser
adorado. Mas teria sido em vão, a menos que existisse algum julgamento em que houvesse uma
distinção entre o bem e o mal. Mas essas coisas devem ser explicadas em outro lugar. Voltemos
à primeira admoestação, a saber, que aqueles testemunhos especiais em que o Deus da Igreja se
revelou, como na saída do povo de Israel do Egito, na ressurreição dos mortos, e nos outros
milagres que foram operados pelos Profetas, Cristo e os Apóstolos, e então acrescentemos a
palavra proferida por eles, e decidamos que esta é verdadeiramente a vontade de Deus, que foi
exposta nessa palavra, e vamos discernir a Filosofia ou informação natural do Evangelho, isto é,
da promessa de perdão gratuito dos pecados por intermédio do Filho de Deus, como é dito em
lugar pertinente sobre a diferença entre a Lei e o Evangelho.
3. A Causa do Pecado e Contingência
Todos os sábios sempre se perguntaram, sabendo que há uma ordem tão grande da natureza
na maioria das coisas, de onde na raça humana há tanta confusão, tantos crimes e calamidades,
doenças e morte. E os filósofos colocam as causas em parte na matéria, em parte na vontade e em
parte as transferindo para o destino, porque dizem que há uma conexão necessária entre a causa
primeira e todas as causas secundárias, físicas e vontades. E os maniqueus, nascidos de uma
filosofia corrompida, incitaram um frenesi horrível, prejudicial a Deus, e uma moral perigosa em
relação aos dois deuses, o bom e o mal, e da necessidade; e naqueles tempos antigos a Igreja não
foi pouco abalada por esta questão da causa do mal e da contingência. É dever de uma mente
piedosa pensar e falar respeitosamente de Deus, com honestidade verdadeira, benigna, aprovada
pelos severos julgamentos dos piedosos na Igreja, de moral útil, e não procurar um número
infinito de labirintos de astúcia com curiosidade e zelo por disputas.
E esta é uma opinião verdadeira e piedosa, a ser mantida com as duas mãos e mais
verdadeira em todo o peito, que Deus não é a causa do pecado, nem quer o pecado, nem impeliu
a vontade de pecar, nem aprova o pecado. Ele está verdadeira e terrivelmente irado com o
pecado, mas muitas vezes por Sua palavra, Ele declara pelos incessantes castigos e calamidades
do mundo a ameaça da ira eterna. De fato, o Filho de Deus, que apareceu e foi feito vítima do
pecado, mostrou Sua ira contra o pecado acima de tudo, mostrou que o diabo era o autor do
pecado, e que por Sua morte Ele poderia aplacar a grande ira do Pai.
Portanto, Deus não é a causa do pecado, nem o pecado é algo fundado ou ordenado por
Deus, mas é uma terrível destruição da obra e ordem de Deus.
A causa do pecado são a vontade do Diabo e a vontade do homem, que se afastaram
livremente de Deus, sem o desejo ou aprovação d’Ele por essa aversão, e se perderam ao seguir
caminhos contrários aos mandamentos de Deus, assim como a vontade de Eva, que se afastou da
voz de Deus e se perdeu ao se apegar à maçã.
Embora pessoas perspicazes possam levantar muitas questões intrincadas aqui, nós,
deixando de lado as artimanhas das disputas, abraçamos com todo o coração a verdadeira
doutrina que expus, e mantemos os testemunhos divinamente entregues a essa doutrina, mesmo
que não possamos resolver todas as objeções complicadas que são apresentadas. Os testemunhos
são estes:
Gênesis 1. 31: “Deus viu tudo o que tinha feito, e eis que era muito bom”. Isso significa que
tudo estava agradável a Deus, organizado, de acordo com o plano divino, e adaptado para os usos
específicos que seriam benéficos para a humanidade.
Salmo 5. 5: “Tu não és um Deus que tenha prazer na iniquidade”. Ou seja, Deus
verdadeiramente e não de forma simulada odeia o pecado.
João 8. 44: “Quando ele fala a mentira, ele fala do que lhe é próprio, pois ele é mentiroso e
pai da mentira”. Aqui, “pai” significa a fonte e a causa original da mentira. Cristo está
distinguido a mentira da substância, como se dissesse: “A substância é de fato recebida de outro
lugar por parte do Diabo. Pois todos os anjos foram criados por Deus, e alguns deles caíram mais
tarde. Mas o Diabo tem algo próprio, não recebido de Deus, a saber, a mentira, ou seja, o pecado,
que a livre vontade do Diabo gerou”. Estas coisas não entram em contradição, como
explicaremos mais adiante, ou seja, que a substância foi criada e sustentada por Deus, enquanto a
vontade do Diabo e a vontade do homem são as causas do pecado, porque a vontade tinha a
liberdade de se afastar de Deus.
Zacarias 8. 17: “Não planejem o mal em seus corações, e não amem um juramento falso;
pois todas essas coisas Eu odeio, diz o Senhor”. Portanto, visto que não há ódio fingido pelo
pecado na vontade divina, de modo algum devemos concluir que Deus deseja o pecado.
1 João 2:16 - “Pois tudo o que está no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência
dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas é do mundo”. Isso também evidencia que a
vontade de Deus não deseja o pecado.
1 João 3. 8: “Aquele que comete pecado é do Diabo; porque o Diabo peca desde o
princípio”. Ou seja, o Diabo é o primeiro autor do pecado.
Romanos 5. 12: “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a
morte, assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”. Isso significa que o
pecado não é uma coisa criada por Deus, mas o homem, por sua livre vontade, se afastou de
Deus, rejeitou os dons de Deus e trouxe a destruição sobre si mesmo e sua posteridade.
É útil lembrar que as figuras de linguagem hebraicas não entram em conflito com a doutrina
que expus (“endurecerei o coração do Faraó” e coisas semelhantes), ou seja, que essas figuras
indicam permissão, não uma vontade eficaz. Por exemplo, “Não nos deixeis cair em tentação”
significa “Não nos permitas cair em tentação ou não permitas que nos desviemos e caiamos
quando somos tentados”.
Além disso, é útil para os estudiosos entenderem o que é pecado, para que possam discernir
entre as coisas criadas por Deus e o pecado, que é a perturbação ou confusão da ordem divina.
Portanto, é correto dizer que o pecado é uma deficiência ou privação, como os dialéticos
costumam dizer.
A explicação do pecado original é bastante simples. Consiste na falta de iluminação na
mente, ou seja, a ausência de conhecimento claro e uma crença sólida na providência, nas
ameaças e promessas divinas. Também envolve uma aversão na vontade, ou seja, uma falta de
temor, confiança e amor a Deus. No coração, significa a ausência de obediência à lei da natureza,
sendo levado por inclinações vagas e errantes que nos afastam da ordem de Deus.
É evidente que esses males são defeitos, não coisas criadas por Deus, mas sim uma terrível
destruição da natureza humana. Portanto, Deus não é a causa do pecado. Embora Ele auxilie e
preserve a existência da substância humana, Ele permite que a massa humana permaneça como
ela é agora. Assim, se um artesão fizer um copo de chumbo em vez de ouro, é uma justa punição
para a massa deformada, e Deus realmente se ira com essa deformidade. É por isso que Ele
enviou Seu Filho para aplacar Sua ira e curar a ferida da natureza.
Portanto, pode-se entender que Deus não é a causa do pecado que nasce conosco, Ele não o
deseja e não o aprova. A objeção de que Deus se ira com o nada é dissipada quando se
compreende que há uma grande diferença entre a falta de algo privativo e a falta de algo
negativo. A falta privativa exige um sujeito e é uma destruição desse sujeito, como a ruína de um
edifício é a destruição da estrutura. O pecado original é uma mancha e uma confusão nas
próprias partes humanas, e é por isso que Deus o abomina e se ira com ele. Logo, a comparação
com o nada não é válida. Quando se diz que o cavalo de Alexandre “nada é negativo”, isso
significa que ele não tem nenhum defeito ou falta, mas é perfeito em sua condição. Portanto, a ira
de Deus não é direcionada ao “nada” no sentido negativo, mas ao “nada” no sentido de uma
privação ou ausência de uma qualidade que deveria estar presente.
Esta explicação traz alguma luz à próxima explicação sobre o pecado atual, que é o tema de
muitas questões complexas. No entanto, também é fácil entender os defeitos aqui, se você
considerar não apenas as ações, mas a mente que as governa. Quando Eva comeu o fruto, não
estava guiada pela luz de Deus, ficou claro que não estava seguindo a luz de Deus e que sua
vontade estava afastada de Deus, e isso é um defeito. Mesmo que haja movimentos externos e
internos que ocorram, eles são coisas positivas, embora sejam movimentos errantes e causem
alguma confusão na ordem, como um navio sendo impelido de várias maneiras pelo vento e
pelas tempestades. Essa imagem, de certa forma, descreve esses defeitos.
Assim como enquanto um navio está intacto, há alguns movimentos, da mesma forma,
enquanto uma pessoa está viva, de qualquer maneira, há alguns movimentos, por mais errantes e
confusos que sejam. No entanto, Deus não é a causa do pecado. Mesmo que Ele sustente
temporariamente a natureza, os defeitos na mente não são causados por Ele, e a vontade livre de
Eva foi a verdadeira causa de suas ações, pois ela se afastou voluntariamente de Deus.
Com essa doutrina estabelecida, que Deus não é a causa do pecado e não deseja o pecado,
segue-se que há contingência, ou seja, nem tudo o que acontece necessariamente. Porque o
pecado se originou na vontade do Diabo e do homem, e não foi feito por vontade de Deus, as
vontades foram criadas de forma que poderiam escolher não pecar. A causa da contingência de
nossas ações humanas é a liberdade da vontade. E aqui estamos falando sobre a contingência das
ações humanas, não dos movimentos de outras coisas, que são discutidos na física.
Em seguida, devemos reconhecer - e isso é importante - que a Escritura Apostólica concede
ao homem, mesmo após a queda, alguma liberdade de escolher o que está sujeito à razão e de
realizar ações externas de acordo com os mandamentos da lei de Deus. Portanto, a justiça que é
atribuída à lei é chamada de “justiça da carne”, porque o controle externo pode, de alguma
forma, ser mantido pelas forças dessa natureza, como Paulo diz (1 Timóteo 1. 9): “A lei é feita
para os ímpios”, isto é, para conter os não-renascidos e punir os obstinados. Da mesma forma,
(Gálatas 3. 24): “A lei foi nosso tutor”. E se não houvesse alguma liberdade restante na natureza,
não haveria utilidade nas leis, nos mandamentos e no governo civil como um todo. Portanto, há
alguma liberdade que, como mencionei, é a fonte da contingência.
No entanto, quando se afirma que Deus determina a contingência, é importante fazer uma
distinção. Deus determina de maneira diferente as coisas que Ele deseja e as coisas que Ele não
deseja; Ele determina de maneira diferente aquelas que dependem apenas de Sua vontade e
aquelas que dependem parcialmente de Sua vontade e parcialmente da vontade humana.
Deus prevê os pecados de Saul, mas não os quer, nem impele a vontade dele, mas permite
que ele aja de forma contrária; no entanto, Ele ainda decreta como irá punir Saul. Portanto, essa
previsão não impõe necessidade, nem altera o modo de agir na vontade do homem, que ainda
permanece na natureza, ou seja, essa liberdade que ainda está presente.
E isso não contradiz a contingência ou a liberdade, pois Deus sustenta a natureza. No
entanto, a vontade de Eva ainda era a causa de suas ações, porque a liberdade foi um dom dado à
humanidade na Criação, e a sustentação divina não impede esse dom. Assim, no que diz respeito
à liberdade, ela não é impedida pela sustentação divina, mas Deus permite que Saul permaneça
como ele é, e a vontade de Saul é a verdadeira causa de sua ação pecaminosa.
Quanto às passagens mencionadas, como Jeremias 10. 23: “Eu sei, Senhor, que não está no
homem o dirigir os seus passos”, e outras que serão explicadas posteriormente no título sobre
livre-arbítrio, é importante notar que há uma diferença entre falar sobre a escolha da vontade e
falar sobre o resultado ou o sucesso. Pompeu, por exemplo, queria fazer guerra contra César e
queria isso livremente, mas muitos outros fatores influenciaram o resultado, não apenas a
vontade de Pompeu. Portanto, a declaração de Jeremias contém uma doutrina e uma consolação
muito doce. A via do homem, ou seja, a direção das vidas públicas e privadas do homem, ou a
vocação, não pode ser sustentada apenas pelo poder humano. A mente não pode prever e evitar
todos os perigos, muitas vezes se engana, como Josias errou ao iniciar uma guerra contra o Egito.
Existem muitos erros tristes cometidos por aqueles que se consideram sábios, como exclama
Cícero: “Ah, eu nunca sou sábio”[42]. Muitos erros acontecem e criam dificuldades inexplicáveis
para os conselhos humanos, e um único erro muitas vezes leva a uma grande ruína, como o
adultério de Davi. Além disso, mesmo em boas intenções e boas causas, muitas vezes o resultado
não é o esperado. Grandes calamidades podem ocorrer repentinamente, derrubando aqueles que
estavam no auge de sua prosperidade, como é verdadeiramente dito:
“Todos os homens estão pendurados por um fio fino
E o que parece ser forte de repente cai e afunda em ruínas”[43].
Jeremias está pregando sobre essas grandes dificuldades, a fraqueza humana e a instabilidade
das coisas humanas, que têm muitas causas ocultas. Ele também ensina a recorrer a Deus, a pedir
a Ele e a esperar por Sua orientação e ajuda.
Neste ponto, as seguintes passagens devem ser mantidas em mente (Mateus 10. 20): “Não é
você quem está falando, mas o Espírito de seu Pai celestial que está em você”. Da mesma forma
(João 14. 18): “Não os deixarei órfãos”. Da mesma forma (Filipenses 2. 13): “É Deus quem
permite que você queira e alcance”. Da mesma forma (Lucas 11. 13): “Quanto mais Ele dará o
Espírito Santo para aqueles que pedirem”. Da mesma forma, Salmo 36 (v. 23): “Os atos do
homem serão dirigidos pelo Senhor”. Com base nessas promessas, devemos pedir e esperar ajuda
de Deus, reconhecendo que não podemos agir sem a ajuda d’Ele, como disse Jesus em João 15.
5: “Sem Mim nada podem fazer”. E João Batista (João 3. 27): “Um homem não pode tomar nada
para si, a menos que lhe seja dado do céu”.
Pompeu, Brutus, Antônio e muitos outros fizeram grandes esforços, mas Deus elevou outros.
Portanto, embora essas palavras se refiram à ajuda de Deus em boas e salutares ações, não se
deve concluir que não existe liberdade de escolha humana. Muito menos se segue que todas as
coisas boas e más aconteçam necessariamente e sejam feitas por Deus. Portanto, a declaração de
Jeremias deve ser entendida corretamente, ou seja, que a orientação e a ajuda humanas por si só
não podem realizar o que é salutar.
Aprendamos que é um grande e generoso dom de Deus sermos auxiliados para que
possamos ser instrumentos da salvação de Deus em todo o serviço, e não desertemos como
flagelos da humanidade, como Faraó, Nero, Mani e outros semelhantes. E que a declaração de
Cristo, “Sem Mim nada podem fazer”, nos desperte a orar com fervor, pedindo sermos
governados por Deus. É evidente, porém, que isso não implica que Deus seja a causa eficaz do
pecado. Pelo contrário, a Igreja de Deus, sabendo que Deus verdadeiramente e seriamente odeia
as luxúrias de Nero, nunca dirá que elas aconteceram necessariamente ou que aconteceram com a
vontade de Deus.
Estas passagens são frequentemente citadas: Efésios 1. 11: “Eleitos segundo o propósito
d’Aquele que faz todas as coisas segundo o conselho da Sua vontade”, e 1 Coríntios 12. 6: “E há
diversidades de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos”. É certo que essas
passagens, quando colocadas em seus contextos, falam apenas da Igreja e das ações salutares que
Deus desperta e governa em Sua Igreja; elas não se referem à sustentação universal das coisas ou
aos movimentos individuais de todas as criaturas vivas. Portanto, essas passagens devem ser
interpretadas corretamente e não devem ser aplicadas além de seu contexto original.
Paulo nos lembra que a Igreja não é preservada e governada por conselhos humanos ou pela
força humana, mas sim pelos maravilhosos atos de Deus. A preservação de Noé no dilúvio, a
defesa do povo no Egito e no deserto, as ações de Moisés, Josué, Samuel, Davi e outros piedosos
foram e são obras de Deus despertadas neles para ajudar a Igreja e promover a verdadeira
doutrina.
Portanto, essas palavras são consoladoras, testemunhando que Deus está presente com os
membros de Sua Igreja e ajuda os Seus em perigos e aflições. Deus ajudou Davi na batalha;
ajudou Lourenço à beira da morte para que não renunciasse à sua confissão, apesar do medo[44].
Portanto, confiemos nessas palavras e promessas, e peçamos que Deus nos governe, como
frequentemente clama o Profeta: “Guia-me na Tua verdade e ensina-me, etc.”[45]. “Tu fazes todas
as coisas salutares em Tua Igreja; sê eficaz em mim também, como membro de Tua Igreja; faze
de mim um instrumento de salvação e um vaso de misericórdia, etc.”. A explicação dessas
palavras traz luz a muitos outros ditos semelhantes.
Por fim, deve ser acrescentado que é correto dizer que há dois tipos de necessidade. Uma é a
necessidade absoluta, quando algo ou uma proposição é necessária em si, e colocar o oposto é
absolutamente impossível e destruiria todas as coisas. Exemplos de proposições que são
necessárias por necessidade absoluta são: Deus existe, Deus é essência, inteligente, eterno, de
sabedoria infinita, poder infinito, justiça, bondade, deseja o que é justo, é casto, não deseja o que
é contrário à Sua mente, nem injustiça cruel ou lascívia incestuosa, etc.
No entanto, há outra necessidade, chamada de necessidade de consequência, que se refere a
coisas ou proposições que poderiam, por sua natureza, ser diferentes, mas que se tornam
necessárias devido a causas anteriores ou porque foram determinadas. Existem grandes
diferenças entre esses dois tipos de necessidade. Por um lado, Deus determina coisas boas que
Ele deseja, muitas das quais Ele expressou claramente, como a ressurreição dos mortos em um
dia específico; isso é uma necessidade de consequência. Por outro lado, Ele determina coisas
ruins que Ele não deseja, quando estabelece limites e não permite que o mal progrida mais além.
Isso também se torna necessário, como no caso de Faraó perseguindo os israelitas. Não é
naturalmente necessário, mas acontece devido às circunstâncias. Seria possível que acontecesse
de forma diferente, mas, porque ocorre assim, é considerado necessário por necessidade de
consequência. Essa distinção pode parecer simplista, mas é útil, e frequentemente ensinada em
escolas, para que possamos entender quais eventos realmente dependem da vontade de Deus e
quais ocorrem por outras razões.
Neste contexto, também é importante mencionar a necessidade física, como o fato de o fogo
aquecer necessariamente ou o sol se mover necessariamente. Mas a doutrina da Igreja afirma que
essa é uma necessidade de consequência. O sol se move dessa maneira porque Deus estabeleceu
essa ordem, mas Ele pode mudá-la, como demonstram as histórias de Josué e Ezequias na
Bíblia[46]. Esses conceitos são discutidos de forma mais detalhada em outros lugares.
Li os principais tópicos que costumam ser debatidos nesta questão, e após uma análise
cuidadosa deles, os estudiosos poderão julgar corretamente toda essa controvérsia e
compreenderão claramente que as opiniões estoicas não devem ser introduzidas na Igreja. Como
alguém pode invocar a Deus se acredita que tudo acontece necessariamente? Além disso, é
moralmente prejudicial acreditar naquilo que é dito na tragédia: “A culpa é do destino, ninguém
se torna culpado pelo destino”[47]. Assim como o servo de Zenão alegou estar sendo punido
injustamente porque foi forçado pelo destino a pecar. Portanto, devemos evitar tais discursos e
opiniões. Pão se expressa de maneira mais nobre, como se lê em seu segundo livro da República
(πολιτειών): “Devemos lutar com todas as nossas forças para que ninguém na cidade que
desejamos governar, seja velho ou jovem, em poesia ou em qualquer outra narrativa, diga ou
ouça que Deus é a causa de algum mal. Isso não pode ser dito de forma santa, não é benéfico
para a cidade e não concorda com a explicação”.
Acrescentarei uma explicação que, ao meu ver, é adequada para mentes piedosas, embora a
objeção seja comum e perturbe às vezes as mentes e as leve a opiniões absurdas. Embora haja
uma resposta mais sutil e elaborada para essa objeção, apresentarei uma explicação mais simples
e evidente, baseada na ideia de que Deus está presente nas criaturas não como o Deus estoico,
vinculado às causas secundárias, movendo-as simplesmente como elas movem, mas como um
agente supremamente livre, sustentando a natureza e agindo de forma diferente em diferentes
situações, de acordo com Seu propósito.
Assim como no mundo físico, embora Deus sustente a natureza, Ele às vezes ordena que o
sol retroceda, impede a chuva por três anos e depois a concede abundantemente, torna as
mulheres estéreis fecundas, para que saibamos que muitas coisas acontecem no mundo físico
para além do poder das causas secundárias, e ainda assim Deus as sustenta. Muitas pessoas são
salvas de vários perigos, seja em doenças, em batalhas, ou na água, onde as causas secundárias as
abandonam. Portanto, para que a invocação a Deus seja verdadeira, devemos entender que Deus
está presente em Sua obra não como os estoicos imaginam, vinculado às causas secundárias, mas
sustentando a natureza e governando muitas coisas de acordo com Seu conselho supremamente
livre.
Deus age da mesma maneira com a vontade, sustentando e auxiliando aqueles que agem de
acordo com a ordem, mas não ajudando aqueles que se desviam dela, embora Ele os sustente. Ele
criou a vontade de Eva de tal forma que ela fosse uma agente livre, capaz de manter a ordem ou
de se afastar dela. Portanto, esta é a explicação mais simples: a segunda causa não age sem a
primeira, ou seja, sem a sustentação. Isso é verdade universalmente, mas nem sempre envolve
ajuda; pois a primeira causa não ajuda a produzir um efeito que Deus não deseja. Portanto, a
vontade de Eva é a causa imediata de seus atos quando ela se afasta de Deus.
Não é da mesma maneira que o estoico e o cristão entendem esta proposição: “A segunda
causa não age sem a primeira”. Os estoicos acreditam que há uma conexão semelhante em todas
as coisas, seja no bem ou no mal, como a conexão essencial entre o macho e a fêmea na
procriação. No entanto, os cristãos precisam distinguir entre o bem e o mal: “A segunda não age
sem a primeira”, ou seja, sem a sustentação; mas muitas vezes a primeira causa age sem a
segunda, porque é um agente livre. E a segunda também é livre, como a vontade de Eva age
erroneamente sem a ajuda da primeira, porque tal é a natureza da liberdade. Esta é uma
explicação clara, sem ser excessivamente sutil.
Outros dizem assim: “A segunda não age sem a primeira, produzindo algo de positivo; a
segunda, como a vontade de Eva, age cometendo um erro”. Nesse caso, a resposta é que ela age
não de forma positiva, mas desviada e falha. Se essa solução for explicada com a primeira, será
mais clara, e é apropriado pensar que a conexão entre a primeira e a segunda causa é do tipo que
Deus, como agente livre, deseja, não como a conexão entre macho e fêmea que imaginamos.
Essas discussões são difíceis, então quando pensamos em Deus, devemos direcionar nossa
mente e nossos olhos para a revelação de Deus, para que possamos reconhecê-Lo como Ele se
revelou, e então afirmamos que Deus está presente livremente e ajuda aqueles que O invocam,
como Ele prometeu: “O Senhor está perto de todos os que O invocam”[48].
As palavras sobre a ação individual e a ajuda devem ser impressas em nossas mentes. Agora,
essa discussão obscura sobre a sustentação geral não pode ser completamente compreendida,
assim como a própria criação não pode ser compreendida. Em resumo, devemos aceitar esta
proposição: “Deus está presente em Sua obra, não como o Deus estoico, mas verdadeiramente
como um agente livre, sustentando a criação e governando muitas coisas”.
5. O Pecado
Embora todas as nações vejam a terrível confusão, vícios e mais tristes calamidades da raça
humana, e sintam o peso do pecado, a Igreja de Deus sozinha ensina tanto de onde vem o pecado
quanto o que ele é, e se atenta à palavra de Deus sobre a ira divina e sobre castigos presentes e
eternos. E embora a sabedoria humana nos ensine a controlar o comportamento, condena e pune
as ações contrárias à razão, ainda assim não reconhece o que é próprio da natureza do pecado, ou
seja, a culpa diante de Deus ou a ira de Deus. Alexandre vê que agiu vergonhosamente quando
matou Clito, e se aflige porque agiu contra o julgamento da natureza, mas não se aflige por ter
ofendido a Deus, não se afligindo por ser culpado diante de Deus. Mas a Igreja mostra a ira de
Deus e ensina que o pecado é um mal muito maior do que a razão humana pensa. A Igreja
também não acusa apenas as ações externas, que estão em conflito com a Lei de Deus ou a razão,
como a Filosofia, mas acusa a raiz e os frutos, as trevas interiores da mente, as dúvidas sobre a
vontade de Deus, a aversão da vontade humana em relação à Deus e o desafio do coração contra
a Lei de Deus. Está atrelado a isso a ignorância e desprezo pelo Filho de Deus. Estes são males
tristes e terríveis, cuja magnitude não pode ser contada. Portanto, Cristo disse (João 16. 8-11):
“O Espírito Santo convencerá o mundo do pecado, porque não creem em Mim, e da justiça,
porque Eu vou para o Pai, e do juízo, porque o príncipe deste mundo já foi julgado”.
Este é um sermão completamente alheio aos julgamentos políticos. Portanto, é dito que o
mundo deve ser repreendido pelo Espírito Santo, pela voz do Evangelho, não por julgamentos
humanos e civis, e acusado deste pecado, isto é, de desprezo pelo Filho de Deus, que os homens
desprezam o Evangelho e os benefícios de Cristo, e não se aproximam de Deus com a confiança
do Filho de Deus, mas permanecem em dúvidas perpétuas e fogem de Deus, ou então adoram e
cultuam ídolos com audácia horrível.
Então Ele diz (João 16. 8): “Ele também convencerá o mundo de justiça”. Pois os sábios
pensam que a justiça é qualquer tipo de disciplina, ou obediência universal, como eles chamam,
de acordo com as leis. Mas o Evangelho traz uma justiça muito diferente. Pois essa disciplina
humana não tira nem o pecado nem a morte, mas a justiça diante de Deus, pela qual Deus nos
considera justos, aceitos e herdeiros da vida eterna, elimina o pecado e a morte, como Ele diz:
“Esta é a minha transição para o Pai”, isto é, “Minha oferta por vocês e satisfação, e passagem
para o Reino, no qual Eu sou perpétuo Mediador para vocês, santifico e vivifico para a vida
eterna, retiro o pecado e a morte”. Esta transição para o Pai e este reino de Cristo nos justifica.
Em terceiro lugar, ele acrescenta sobre o julgamento. O mundo sempre incitou e incitará
grandes lutas contra esta doutrina, e condenou e condenará o Filho de Deus, e o diabo incita seus
órgãos a julgamentos blasfemos e crueldades, como as heresias, blasfêmias e crueldades que
todos os tempos mostram. Mas essas fúrias do diabo não destruirão a Igreja. Pois o Espírito
Santo sempre fortalecerá a Igreja, para que ela se oponha a julgamentos ímpios, e a Igreja
finalmente vencerá, porque o diabo foi condenado; portanto, Deus o confunde e enfurece em
seus julgamentos.
Quando, portanto, o Espírito Santo reprova o mundo com a voz do ministério evangélico, e
mostra onde e o que é o pecado e quão ruim ele é, é necessário ouvir o ensino do Espírito Santo,
pois os benefícios de Cristo não podem ser entendidos se não se sabe o que é o pecado. Sim, por
isso mesmo, Deus está pregando à Igreja tanto com a voz do ministério quanto com as imensas
calamidades, para que reconheçamos a ira contra o pecado e nos refugiemos no Filho Mediador.
E Cristo compreendeu assim a soma dos ensinamentos da Igreja (Lucas 24. 47): “Vão, preguem
o arrependimento para remissão dos pecados em Meu nome”. Mas o reconhecimento do pecado
está completo, isto é, os terrores que existem quando a ira de Deus contra o pecado é
reconhecida. E Paulo demonstra isso especialmente em sua Epístola aos Romanos, declarando
essas três passagens: o que é o pecado, o que a Lei realiza e o que a graça de Cristo é e realiza.
Saibamos, portanto, que o ensinamento desses conceitos deve ser claro, sincero e explicado na
Igreja.
É costume no ensino começar com definições; portanto, a definição de pecado tinha primeiro
que ser estabelecida. Mas vejo que os escritores que publicaram as questões em longobardo[57]
não deram uma definição comum, apropriada para pecado original e pecado real, talvez porque
pensassem que nenhuma definição comum poderia ser dada; pois o pecado real nos torna
culpados por causa do que fizemos, mas o pecado original nos considera culpados tanto por
causa da queda de outro quanto por causa de nossa própria impureza, que nasce conosco.
Então eles também alegam que a Lei de Deus condena apenas os pecados reais, o que é
evidente a partir do sétimo capítulo de Romanos como sendo falso.
A razão para o nome nas Escrituras é clara, que o pecado significa propriamente
culpabilidade e condenação por Deus, a menos que haja remissão. Esta descrição geral
corresponde ao pecado original e real. Mas como só se menciona a relação, isto é, a culpa, a
mente também procura aquilo pelo qual o homem é culpado. É por isso que uso esta definição, e
espero que haja uma na Igreja, composta pelos julgamentos de muitos mestres e piedosos: “O
pecado é uma deficiência ou inclinação ou ação que conflita com a Lei de Deus, ofende a Deus, é
condenado por Deus e nos torna culpados da ira eterna e do castigo eterno, a menos que a
remissão seja feita”. Nesta definição, existem tipos de deficiência e inclinação que correspondem
ao mal original. Ação inclui todo o interior e exterior reais.
É uma diferença comum: lutar com a Lei de Deus. Pois a Lei não é apenas pregada sobre as
ações, como dizem os adversários, mas também condena as trevas, os defeitos e as inclinações
erradas na natureza do homem, como em Romanos 7, onde Paulo afirma mais seriamente.
Em seguida, são acrescentados os seus próprios atos, condenados por Deus, que ofendem a
Deus e tornam os homens culpados de ira e castigos, etc. A Igreja enfatiza especialmente esta
propriedade. Pois a razão entende que os vícios são contra a Lei de Deus, ainda que
posteriormente se negligencie a ira de Deus. Esta propriedade particular deve, portanto, ser
considerada sempre que o pecado é mencionado, para que possamos saber o que se refere como
algo culpado e condenado por Deus.
E esta definição é tirada destas palavras: “Maldito aquele que não permanecer em todas as
coisas que estão escritas na Lei”[58]. O pecado define a desobediência como amaldiçoada por
Deus. E entende-se que a desobediência não é apenas real, mas universal, que está na natureza do
homem contra Deus. Ora, há um acréscimo terrível, a ser chamado de “amaldiçoado por Deus”,
isto é, algo que Deus rejeita com ira e por causa do qual Ele lança a criatura em terríveis castigos.
As palavras de Paulo em Romanos 1 também concordam com esta definição: “A ira de Deus
é revelada do céu sobre toda impiedade, etc”. E em Romanos 7 Paulo diz: “Pela Lei, o pecado se
torna notavelmente um pecado”, ou seja: A Lei mostra a ira de Deus, pela qual entendemos que
nossa impureza não é um mal leve, mas que é algo que demonstra culpa, condenação, maldição
por Deus, que é acompanhado por terríveis castigos. Sempre que, portanto, o pecado é
mencionado, essa denominação é distinguida na Igreja da denominação filosófica de vício; pois a
Igreja prega sobre o julgamento e a ira de Deus.
Se alguém imagina que o pecado original é apenas um passivo devido à queda de Adão, sem
depravação em nós, está enganado. Mas se alguém afirma que aqueles que nascem são culpados
tanto por causa da queda de Adão quanto por causa da depravação nascida conosco, eu não o
impeço de adicionar essa partícula à definição, de que o pecado é tanto uma culpa por causa da
queda de Adão, quanto uma deficiência, inclinação ou ação que gera conflito com a Lei de Deus,
etc. Eu não conseguirei definir isso tão apropriadamente. Mas é evidente, que por causa da queda
de Adão, a posteridade carece daquela luz que brilha em toda a natureza, e retidão de vontade e
coração, e por causa desses males é que os homens nascem culpados.
Agora, tendo estabelecido a definição do pecado em geral, vamos então falar da espécie, do
original e do atual, e não sejamos contenciosos[59] e arrogantes de palavras, mas mantenhamos as
coisas necessárias proferidas nos escritos proféticos e apostólicos Escrituras, e também de certos
testemunhos dos escritores antigos, que, se explicam melhor, de bom grado usamos sua
linguagem. Pois não brigamos por palavras, mas explicamos as coisas necessárias. Não
desaprovo a manutenção da descrição de Anselmo.
6. A Lei Divina
A lei de Deus é uma doutrina transmitida por Deus, ordenando o que devemos ser, o que
devemos fazer e o que devemos omitir, e exige perfeita obediência a Deus, a declaração da ira de
Deus e a punição, daqueles que não demonstrarem obediência perfeita, com morte eterna. Esta
definição é tirada da própria lei de Deus e muitos sermões de Cristo. Pois a Lei contém preceitos
e promessas, aos quais se acrescenta a condição de que a Lei seja cumprida; também ameaças.
Preceitos são pregados sobre obediência completa (Mateus 22. 37): “Amará ao Senhor seu Deus
de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças”. Também (ibid. v. 39):
“Amará o seu próximo como a si mesmo”. Também (Êxodo 20. 17): “Não cobiçará”. A ameaça
diz: “Maldito aquele que não permanece nas palavras desta Lei, e não as cumpre com suas
obras”. Também em Mateus 25 (v. 41): “Afaste-se de mim malditos para o fogo eterno”, etc.
É necessário primeiro advertir que há uma enorme e infinita diferença entre as leis humanas
e a lei divina. Assim como o povo não podia contemplar o rosto resplandecente de Moisés e só o
via velado, da mesma forma as mentes e os olhos de todos os homens contemplam a Lei de Deus
à distância, sem compreender o verdadeiro julgamento, mas consideram-na apenas como uma
doutrina sobre obras externas, como os preceitos de Fócilo ou Teógnis. Porém, existem muitas e
maiores razões e propósitos revelados da Lei divina, como será explicado a seguir. Não devemos
encarar a Lei de Deus como as tábuas decemvirais romanas, que pereceram há muitos séculos
juntamente com seu tribunal e tribuna. Mas a Lei de Deus é a regra eterna e imutável da mente
divina e o juízo contra o pecado, que está impresso nas mentes humanas e frequentemente
pregado pela voz de Deus, conforme Cristo diz (Mateus 5. 17): “Não pensem que vim destruir a
Lei ou os Profetas; não vim destruir, mas cumprir”.
Portanto, considere-se essa distinção: as leis humanas apenas exigem ou proíbem ações
externas.
A filosofia ensina algo mais, ou seja, que a ação honesta não é apenas uma obra externa ou
simulada, mas um julgamento correto da mente e uma livre escolha ou volição (προαίρεσιν) para
fazer o que é correto. Ela requer uma certa moderação interna dos afetos e ações, que são
propriamente chamadas de éticas (ηθικη). No entanto, ela não acusa a impureza natural, nem
considera que esses vícios extremos estejam em conflito com a primeira tábua, a dúvida sobre
Deus, o coração vazio de temor e amor a Deus, a falta de confiança e outras doenças que são
inerentes à natureza humana.
A Lei de Deus não exige apenas ações externas ou o controle dos afetos, como falam os
filósofos, mas ordena que a natureza obedeça a Deus integralmente, tenha um conhecimento
verdadeiro e constante de Deus, um temor verdadeiro e perpétuo, uma confiança firme em Deus
e um amor ardente. No entanto, como a natureza humana não é assim, a voz da Lei é o juízo de
Deus condenando o pecado em nossa natureza. Paulo expressa isso ao dizer (Romanos 7. 14): “A
lei é espiritual”, ou seja, não é apenas uma sabedoria política que ordena ações externas na vida
civil, mas é uma doutrina muito diferente que exige movimentos espirituais, um conhecimento
firme de Deus e um amor ardente e perfeito, como a Lei diz (Deuteronômio 6. 5): “Amará ao
Senhor seu Deus de todo o seu coração”.
No entanto, os monges, em relação à Lei de Deus, como falaram sobre a disciplina civil,
afirmaram que a Lei de Deus é satisfeita por meio dessa disciplina civil ou filosófica, isto é, por
meio de obras exteriores e de qualquer esforço da vontade, mesmo que na mente haja dúvidas e
no coração e na vontade haja muitas inclinações malignas. E ensinaram que essas dúvidas e
inclinações malignas não são pecados.
Portanto, eles afirmaram que os homens são justos e agradáveis a Deus por causa de suas
obras, pois acreditavam que a Lei de Deus era satisfeita. Eles não ensinaram que os homens são
justos, ou seja, reconciliados com Deus e agradáveis a Ele pela fé em Cristo, o Mediador. Mas
Paulo refuta esses erros dos fariseus em relação à Lei, afirmando que a natureza fraca dos seres
humanos não pode satisfazer a Lei de Deus, nem apaziguar a ira de Deus, nem remover o pecado
por meio das obras da Lei. Em vez disso, ele afirma que Deus enviou seu Filho, nosso Senhor
Jesus Cristo, para tirar o pecado e nos conceder justiça e vida eterna através d’Ele, tanto nas
questões civis quanto nas cerimônias. Discutiremos isso mais detalhadamente em seu devido
lugar.
A DIVISÃO DAS LEIS
Primeiramente, mencionaremos as seguintes categorias: a Lei divina, a Lei da natureza e as
leis humanas. As leis divinas são aquelas que foram entregues por Deus em qualquer época e
estão registradas em diversos lugares, tanto nos escritos de Moisés como nos livros do
Evangelho. A Lei da natureza, como explicarei a seguir, é o conhecimento natural sobre Deus e
sobre a governança dos costumes, ou seja, a distinção entre o que é honesto e o que é indigno,
inerente à humanidade e implantada divinamente em cada ser humano, assim como o
conhecimento dos números é divinamente implantado nas mentes humanas. Portanto, ela está em
harmonia com aquela parte da Lei divina chamada Lei Moral, como demonstrarei
posteriormente. Primeiramente, devemos distinguir as categorias da Lei divina.
Embora desde o início do mundo tenham soado na Igreja de Deus a voz da Lei e a voz da
promessa da graça, foi somente com um propósito específico que a política israelita foi
estabelecida e a Lei de Deus foi promulgada. Pois Deus quis restabelecer por meio de um
testemunho público e manifesto aquele conhecimento que Ele havia implantado nas mentes
humanas durante a criação, a fim de revelar o Seu julgamento contra o pecado. Uma vez que toda
a política estava sendo estabelecida, não foram apenas apresentadas leis individuais sobre os
costumes, mas também foram acrescentadas leis forenses e cerimoniais.
Portanto, existem três partes na lei mosaica como um todo: as Leis morais, as Cerimoniais e
as Forenses ou Judiciais. É importante considerar cuidadosamente essa distinção, pois embora a
política de Moisés tenha sido abolida, é necessário considerar a distinção entre as leis. As
cerimônias mosaicas e as leis aplicadas nos tribunais não foram destinadas a outras nações e não
nos obrigam. Elas foram transmitidas ao povo de Israel por um período específico, porque a
política tinha uma duração determinada. Isso ocorreu para que houvesse um lugar adequado onde
Cristo pudesse nascer, se manifestar, pregar, se tornar o sacrifício e iniciar abertamente a vida
eterna.
No entanto, existem leis morais que são a vontade eterna de Deus e constituem uma regra
imutável ao longo do tempo. Desde o princípio, Deus desejou que as criaturas O amassem e
temessem, que as criaturas racionais fossem castas. Essas leis morais incluem o conhecimento de
Deus na mente, a obediência a Ele no coração e virtudes em relação aos outros, como justiça,
castidade, verdade e temperança. Essas leis morais foram maravilhosamente reunidas em uma
tabela conhecida como Decálogo, por um sábio conselho de Deus. Portanto, quando nos
referimos ao Decálogo, estamos falando da Lei moral, e devemos entendê-la corretamente, sem
disputas de palavras.
Além das leis morais, há repetições e explicações do Decálogo encontradas nas Escrituras
proféticas e apostólicas. Essas leis são as regras eternas estabelecidas na mente divina e sempre
foram reconhecidas pela Igreja, mesmo antes de Moisés. Elas permanecem relevantes para todas
as nações.
Por outro lado, existem elementos naturais presentes nas leis forenses e cerimoniais, que
também possuem uma natureza perpétua. Por exemplo, a proibição de práticas abomináveis,
conforme mencionado em Levítico 18 (versículos 6 e seguintes), está relacionada à reverência
pelo sangue. Deus deixou claro que os cananeus foram exterminados devido às suas práticas
incestuosas. Portanto, quando as nações são acusadas desses crimes antes da lei de Moisés, estão
sendo condenadas por essa lei eterna de Deus e por um julgamento natural.
EXPOSIÇÃO DO DECÁLOGO
A meditação sobre o Decálogo é extremamente útil e benéfica; ela contém um ensinamento
tão amplo e elevado que nunca pode ser plenamente compreendido ou esgotado. Quanto mais
detestável é a loucura daqueles que afirmam poder satisfazer a Lei de Deus e até mesmo
aprimorá-la. Essas palavras não são humanas, mas foram espalhadas pelo Diabo, que, por meio
dessa zombaria, engana a humanidade caída de sua dignidade e pureza. Quando Deus revelou
nesta Lei a razão pela qual a natureza humana foi criada, de onde caímos e em quais misérias e
trevas caímos, o Diabo espalhou, como que zombando de nós, palavras irônicas que diminuem a
Lei de Deus. Portanto, que os piedosos saibam que esses erros dos fariseus e monges não são
leves, e que eles busquem a Deus para que o véu seja removido de nossos corações, o véu que
impede que vejamos a Lei de Deus mais de perto, e que consideremos seriamente que ela contém
a voz de Deus, muito maior do que podemos compreender completamente.
Primeiro, devemos refletir sobre essas quatro coisas em relação à Lei.
Primeiramente, a lei adverte sobre a finalidade para a qual a natureza humana foi criada e
qual era a dignidade e pureza do ser humano em sua criação. A natureza humana deveria ser da
forma descrita por esta Lei, plenamente consciente de Deus, sempre glorificando-O, sempre
obedecendo-O, sempre reconhecendo Sua presença e governo em todas as obras, observando a
ordem justa em todas as ações, sem qualquer desejo maligno, sem qualquer calamidade, sem a
morte.
Em segundo lugar, a lei nos adverte sobre a atual miséria. Pois agora vemos a natureza caída
lutando contra a lei, cheia de trevas e desprezo por Deus, sem ordem, repleta de más paixões de
todos os tipos, e o pecado é a causa da morte e de inúmeras calamidades. No entanto, não
compreendemos plenamente a nossa miséria, nem ouvimos verdadeiramente a Lei, a menos que
reconheçamos a ira de Deus contra o pecado em verdadeiros terrores ou punições. É aqui que
começamos a entender um pouco a lei de Deus e a miséria humana. Como Davi clama, a ira de
Deus não pode ser suportada se Deus quiser punir os pecados conforme o merecimento (Salmo
129. 3): “Se observares as iniquidades, Senhor, Senhor, quem subsistirá?”. E há mais e maiores
pecados em cada um de nós do que podemos perceber. Mas observe a ênfase desta afirmação:
“Quem subsistirá?”. Não há força humana capaz de suportar as calamidades humanas, que são as
punições dos pecados. Assim como Davi experimentou as punições por seu adultério, o
assassinato de seus filhos, a revolta de seus filhos, as esposas manchadas pelo incesto, o exílio, a
destruição dos cidadãos e inúmeros outros males. Nessas punições, ele aprendeu este versículo:
“Quem subsistirá?”. E ainda assim, esses males presentes nem sequer podem ser comparados às
punições eternas. Portanto, toda vez que recitamos este versículo: “Se observares as iniquidades,
Senhor, Senhor, quem subsistirá?”, devemos pensar na verdadeira e incompreensível ira de Deus
contra o pecado, devemos contemplar a Lei e reconhecer nossa impureza em conflito com toda a
Lei, devemos pensar na imensa carga de punições imposta à humanidade, devemos contemplar
nossas calamidades pessoais e comuns, e devemos orar a Deus para que Ele aplaque Sua ira, que
ninguém pode tolerar e suportar. Se Ele a exercer, é necessário que os seres humanos sucumbam
e pereçam nas punições presentes e eternas. Assim, expressões semelhantes nos Salmos nos
advertem sobre o verdadeiro entendimento da Lei, o reconhecimento de nosso pecado, a ira de
Deus e as punições.
Em terceiro lugar, a lei nos admoesta silenciosamente sobre a reparação do mediador, a
salvação da humanidade e a vida eterna; ela também indica a que altura somos chamados
novamente. Pois, quando Deus repete a voz da lei após a queda da natureza, certamente quer que
a lei seja cumprida em algum momento; haverá, portanto, a reparação da humanidade e haverá
vida eterna, pois nesta vida vemos que a lei não é satisfeita. No entanto, a doutrina da reparação é
apresentada de forma mais clara nas promessas.
Em quarto lugar, ao considerarmos a grande miséria da raça humana, oprimida pelo pecado,
pela ira de Deus e pela morte, e compreendermos que a voz da lei é um anúncio, um vínculo,
uma testemunha e um mensageiro dessa terrível ira que sempre se aproxima de nós, voltemos
nosso olhar para o Filho de Deus e consideremos a vítima que sofreu sozinha a ira em nosso
lugar. Ele assumiu o fardo da lei, aplacou o Pai e proporcionou-nos benefícios que excedem
abundantemente o peso do pecado. Compreendamos também que somos chamados por Ele, o
próprio Filho de Deus, e que é por meio d’Ele que essa pureza descrita na Lei começa a se
manifestar em nós, como discutiremos posteriormente em seu devido lugar.
DECÁLOGO
Existem duas tábuas: A primeira contém as ações pelas quais agimos imediata ou
propriamente com Deus, ou seja, o culto a Deus, interno e externo. A segunda contém as ações
em relação aos seres humanos, que, embora sejam os laços da sociedade humana, também são
consideradas culto a Deus: pois Deus ordena e declara por Sua palavra que essas ações são culto
a Ele, se forem feitas por mandamento de Deus, como ensina Isaías no capítulo 1, também no
capítulo 58, e Samuel (1 Samuel 15. 22): “Obedecer é melhor do que sacrificar”. Oseias 6. 6 diz:
“Quero misericórdia e não sacrifício”. E Cristo diz (Mateus 22. 39): “O segundo mandamento é
semelhante ao primeiro”, ou seja, exige obediência necessária, assim como a obediência ao
primeiro mandamento é necessária. Devemos observar isso para aprendermos o verdadeiro culto
a Deus e que todas as ações dos mandamentos devem ser referidas ao primeiro mandamento, e o
objetivo a ser estabelecido em cada ação é fazer com que a obediência e a honra sejam prestadas
a Deus. O culto a Deus é uma atividade que Deus nos ordenou a fazer. É uma forma de
demonstrar nossa obediência e honra a Deus. O culto é realizado com o conhecimento de Cristo
e através da nossa fé n’Ele. O objetivo é agradar a Deus, nosso Pai, por causa de Jesus Cristo.
Assim como Pedro nos ensina a oferecer sacrifícios espirituais que são aceitos por Deus por
meio de Jesus Cristo.
O PRIMEIRO MANDAMENTO
O primeiro mandamento ordena sobre a obra que é suprema e principal, a saber, o
conhecimento verdadeiro de Deus, a obediência verdadeira e perfeita para com Deus, o temor
perfeito, a confiança e o amor perfeito a Deus. Ele abrange duas coisas principais, ou seja, o
modo de conhecer a Deus e o verdadeiro culto. O modo é tal que Deus seja conhecido através de
Sua palavra e testemunho. Pois, uma vez que Deus é invisível, é necessário que haja algum
testemunho por meio do qual Ele seja reconhecido e compreendido. Assim, quando a mente
humana contempla a obra do mundo, ela pensa no autor dessa obra, ou seja, Deus. No entanto,
esse conhecimento não é suficiente, pois mesmo os pagãos e muçulmanos também têm essa
noção, embora muitas vezes seja suprimida por Satanás. Mesmo que haja uma compreensão
considerável, ainda persiste a dúvida se esse Deus criador cuida de nós, se nos ouve, se deseja ser
adorado e como deseja ser adorado. É nesse ponto que precisamos da Palavra de Deus e de Seu
testemunho. Portanto, é apresentada uma palavra e um testemunho específicos: “Eu sou o
Senhor, seu Deus, que lhe tirei da terra do Egito”. Assim, a mente deve reconhecer que este é o
Deus que se revelou ao dar essa palavra no monte Sinai e que se declarou como nosso Deus, ou
seja, aquele que cuida de nós, nos julga, nos defende e nos pune.
Também foi acrescentado um testemunho, que é a gloriosa libertação e defesa do povo
quando foi tirado do Egito, entre outros eventos. Embora Deus seja invisível, a mente humana
reconhece que Ele é o verdadeiro Deus, revelado em Sua palavra e em testemunhos admiráveis,
mostrando como Ele deseja ser adorado. No início, Adão recebeu a palavra no Paraíso e toda a
natureza testemunhava sobre Deus. No entanto, após a queda, era necessário consolo em relação
ao perdão do pecado. Por isso, foi acrescentada outra palavra, a promessa da graça, e sinais
foram dados, com ofertas consumidas pelo fogo celestial. Da mesma forma, o Evangelho nos
apresenta a palavra e o testemunho certos, o Filho de Deus crucificado e ressuscitado, que nos
revela o Pai. Ao reconhecer esse Filho, invocamos o Pai eterno, revelado no Filho, conforme
escrito em João 1. 18: “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho unigênito, que está no seio do Pai,
esse O revelou”. E também em João 14. 9: “Quem Me vê, vê o Pai”. E novamente em Mateus 11.
27: “Ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e Aquele a quem o Filho O revelar”. É através desse
Filho que o Pai é satisfeito e ouvido, como Jesus afirma em João 14. 13: “E tudo o que pedirdes
em Meu nome, Eu o farei, para que o Pai seja glorificado”. Portanto, afirmamos que este é o
Deus que se revelou enviando o Filho para ser a vítima e ressuscitando-O para ser o Mediador,
Intercessor, Auxiliador e Salvador. Foi Ele quem deu a este Filho o Evangelho do perdão dos
pecados e da vida eterna. Ao reconhecer essa invocação ao Deus eterno e todo-poderoso,
confiando em Cristo através do Evangelho dado por Ele, podemos distinguir a verdadeira
invocação da Igreja das invocações de outras nações. Assim, sempre que a mente clama a Deus,
ela invoca o Deus que é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, e, pela fé,
contempla o Evangelho dado por esse Filho: “E tudo o que pedirem ao Pai em Meu nome, Ele os
dará”. Paulo nos recomenda frequentemente esse modo de conhecer a Deus, como em 1
Coríntios 1. 21: “Porque, visto que na sabedoria de Deus o mundo não O conheceu por sua
própria sabedoria, aprouve a Deus salvar aqueles que creem pela loucura da pregação”. Da
mesma forma, a doutrina sobre o Sumo Sacerdote Cristo, que entrou no Santo dos Santos, ensina
a mesma verdade. As outras pessoas não conhecem o Deus invisível, mas apenas o Filho de Deus
entra nesse mistério sagrado. Portanto, ao nos aproximarmos de Deus, reconheçamos esse Sumo
Sacerdote, que nos conduz ao Pai e apresenta nossas preces, conforme a Epístola aos Hebreus 4.
15-16 diz: “Porque não temos um sumo sacerdote que não possa se compadecer das nossas
fraquezas, antes, foi Ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado.
Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e
achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno”. Essas coisas sobre como conhecer a
Deus devem ser ensinadas aos seres humanos, para que eles possam invocar a Deus
corretamente.
Os cultos aos quais se faz menção aqui são: o conhecimento de Deus, crer na Palavra de
Deus, verdadeiro temor, verdadeira fé ou confiança e verdadeiro amor. O temor é necessário,
como está escrito: “Eu sou o Deus zeloso, que visito a iniquidade” (Êxodo 20. 5). Também está
escrito: “Ao Senhor, seu Deus, temerá e a Ele servirá” (Deuteronômio 6. 13). A confiança e o
amor também são exigidos, como está escrito: “Eu sou o seu Deus Todo-Poderoso, que olho por
você, cuido de você, defendo-o, salvo-o”, etc. Também está escrito: “Fazendo misericórdia aos
que Me amam” (Êxodo 20. 6). E ainda: “Amará ao Senhor seu Deus de todo o seu coração”
(Deuteronômio 6. 5). Pois essas palavras, onde quer que sejam lidas, são explicações do primeiro
mandamento.
Mas quanto à exigência de uma obediência perfeita, estas palavras testemunham: “Amará ao
Senhor seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma, com todas as suas forças”
(Deuteronômio 6. 5). Portanto, exige-se temor, confiança e amor a Deus acima de tudo, e que
essas virtudes sejam puras, ardentes e perfeitas, não misturadas com desejos viciosos. No
entanto, esta natureza corrupta dos seres humanos não pode oferecer essa obediência perfeita. Ela
está enraizada na mente a dúvida sobre a ira de Deus e a misericórdia: ninguém teme tanto
quanto deveria; ninguém queima de amor como deveria, e muitos desejos perversos estão
misturados. Portanto, Paulo diz: “A inclinação da carne é inimizade contra Deus”, e entende-se
que ele está falando de uma inimizade séria contra Deus. Assim, a lei sempre acusa e condena
todos os seres humanos nesta natureza corrupta, porque eles não podem e não conseguem
oferecer obediência perfeita.
Agora alguém pode dizer: “Mas é necessário que aqueles que agradam a Deus cumpram esta
Lei”. Respondo: Primeiramente, isso não pode ser realizado sem o conhecimento de Cristo e do
Evangelho. Pois, uma vez que a Lei acusa e condena a todos, e reconhecemos que somos
culpados e cheios de obstinação contra essa Lei, nossos corações se afastam de Deus, não O
amam e não ousam buscar o bem de Deus. Mas ao ouvir o Evangelho, quando reconhecemos que
nossos pecados são perdoados por causa de Cristo e somos aceitos em Sua graça, tornando-nos
filhos de Deus, embora indignos, com essa presença reconhecida e a misericórdia de Deus,
invocamos a Ele e começamos a nos submeter, temê-Lo e confiar em Sua prometida
misericórdia, e não O amamos de maneira ociosa, mas sim como um Pai que realmente cuida e
nos salva, como Ele diz: “Eu sou o seu Deus”. Portanto, o preceito é iniciado com o
conhecimento de Cristo. Em seguida, embora a obediência deva crescer, aqueles que renasceram
nunca satisfazem completamente esta Lei, mas o restante do pecado é perdoado a eles, como será
mencionado em seu devido lugar, e eles são considerados justos por causa do Mediador, Cristo.
Como está escrito: “Cristo é o cumprimento da Lei”. E, sendo justificados por meio dessa
imputação por serem filhos de Deus, a obediência iniciada é agradável, mesmo que não seja
perfeita. Portanto, aqueles que são renascidos cumprem esta Lei ao iniciar e crer que são
considerados justos por causa de Cristo e que o restante do pecado é perdoado por Ele.
No entanto, para fins de ensino, é conveniente abranger todas as obras do primeiro
mandamento com essas duas palavras, ou seja, o chamado do temor e da fé, pois, embora o amor
necessariamente acompanhe a fé ou confiança na misericórdia, o termo “amor” é mais obscuro
do que as palavras “temor” ou “fé”. Pois devemos experimentar frequentemente o temor na
penitência e também devemos experimentar confiança no consolo.
Descrevi as obras do primeiro mandamento: o conhecimento de Deus, crer na Palavra de
Deus, o temor, a fé ou confiança e o amor a Deus. Além disso, deve ser acrescentada a Paciência
nas aflições, seja quando somos afligidos pela violência injusta dos tiranos ou de outros, ou
quando enfrentamos adversidades comuns, como doenças, morte, perdas materiais, entre outros.
Em ambos os casos, Deus requer obediência do coração. Faz parte da obra do primeiro
mandamento o culto a Deus e a obediência da Igreja em ambos os tipos de aflições; tal como a
obediência de Abel na morte, a obediência de todos os mártires nos tormentos, a obediência de
Jó, Davi, nas calamidades domésticas, e assim por diante. Pois sobre o primeiro tipo está escrito
claramente: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-Me”
(Mateus 16. 24). Também está escrito: “Porque os que dantes conheceu, também os predestinou
para serem conformes à imagem de seu Filho” (Romanos 8. 29). E ainda: “Preciosa é aos olhos
do Senhor a morte dos Seus santos” (Salmos 116. 15). Existem, portanto, claros mandamentos
sobre essa obediência. E Deus quer ser mais temido do que os tiranos; além disso, Ele quer que,
nas próprias aflições, não caiamos em desespero, não pensemos que somos negligenciados por
Deus, mas que mantenhamos a consolação de que Deus é favorável a nós e governará o
resultado.
Quanto ao segundo tipo, ou seja, as calamidades comuns, está escrito: “Porque já é tempo
que comece o julgamento pela casa de Deus” (1 Pedro 4. 17). Portanto, tanto nos casos de
punição quanto nos exercícios, Deus deseja que a Igreja esteja sujeita a essas aflições. Isso
ocorre porque a natureza humana, devido ao pecado, está sujeita à morte física, e muitos pecados
atuais da Igreja, inclusive dos santos, são punidos. Assim, Deus deseja que a Igreja seja advertida
por meio dessas aflições para se arrepender, prestar obediência, exercer fé, invocação e
esperança, não cair em desespero, não pensar que somos rejeitados ou negligenciados por Deus,
mas manter a consolação de que Deus é favorável a nós e governará o resultado. Aqui se aplicam
os ensinamentos que ordenam tanto a obediência a ser prestada em meio às calamidades comuns
quanto a manutenção da consolação por meio da fé. “Não murmurem entre vocês”, ou seja, não
fiquem irritados com Deus, como se Ele nos tratasse com crueldade ou nos negligenciasse.
Também está escrito: “Humilhem-se, pois, debaixo da poderosa mão de Deus” (1 Pedro 5. 6).
Além disso, “O sacrifício agradável a Deus é um espírito quebrantado” (Salmos 51. 17). E ainda:
“Entregue o seu caminho ao Senhor, confie n’Ele” (Salmos 37. 5). E também: “Ofereça
sacrifícios de justiça e confie no Senhor” (Salmos 4. 5).
Veja como há uma grande convergência de boas obras nesta obediência, todas relacionadas
ao primeiro mandamento. Primeiramente, a própria obediência, ao considerar a Deus, é uma boa
obra por si só, e neste mandamento está o chamado para temer a Deus mais do que os tiranos.
Também nos ordena suportar as punições divinamente impostas, como a morte e outras
semelhantes, como está escrito: “O julgamento começa pela casa de Deus” ou “Somos
disciplinados pelo Senhor para não sermos condenados com o mundo”. Além disso, para essa
obediência é necessário acrescentar a fé, que nos assegura que Deus não despreza nem rejeita os
aflitos, mas olha para eles com favor e governa seus destinos, assim como Davi experimentou
quando estava no exílio. Essa fé e esperança são obras do primeiro mandamento.
De todas essas coisas, surge a virtude chamada Paciência, que é a obediência prestada a
Deus com tranquilidade de espírito e uma vontade de obedecer. Essa tranquilidade surge da
consolação da fé. Paulo chama todas essas coisas de paz, como em Filipenses 4. 7: “E a paz de
Deus, que excede todo o entendimento, guardará os seus corações e os seus sentimentos”, ou
seja, haverá uma paz ou tranquilidade de espírito em vocês para que possam obedecer a Deus,
sustentar e fortalecer suas almas pela consolação da fé, e suportar as adversidades, olhando para
a promessa divina. Ao contemplar a admirável bondade e misericórdia de Deus, também se
encontra o amor.
Antítese
Consideremos agora a teimosia da humanidade contra o primeiro mandamento, a fim de
reconhecer nossa fraqueza e discernir os diferentes níveis de pecado contra este mandamento. O
primeiro nível é o dos Epicuristas e Acadêmicos, que negam ou duvidam da existência de Deus,
questionam se Ele se preocupa com os assuntos humanos ou se a palavra transmitida pela Igreja
é de fato de origem divina. Esse é, de fato, o grupo mais numeroso de pessoas em todos os
lugares, que apagaram completamente de seus corações qualquer senso de Deus, entregando-se à
dúvida e fortalecendo-a. Assim, as trevas se espalharam desde a queda dos primeiros pais e
foram posteriormente confirmadas pela maldade dos seres humanos, alimentadas pelo Diabo.
O segundo nível é o daqueles que adoram ídolos, ou seja, aqueles que inventam vários
deuses e atribuem a cada um poderes diferentes, como os pagãos, ou aqueles que prestam honras
divinas, ou seja, invocam criaturas, como aqueles que invocam os santos falecidos. A invocação,
na verdade, atribui onipotência ou amarra Deus a certas imagens, quando Ele não deseja ser
vinculado a nada sem Sua Palavra. É evidente que sempre existiram e ainda existem práticas que
ordenam a obediência a esses ídolos. A invocação dos santos e o culto às imagens não diferem
dos costumes pagãos.
O terceiro nível é o dos magos, que praticam rituais com demônios, inimigos de Deus, assim
como aqueles que consultam os magos e aqueles que se entregam a outras práticas
supersticiosas, atribuindo poder a elas sem a ordenação divina. Se houver consequências dessas
práticas, o responsável é o Diabo, e a confiança é baseada nos demônios. Todas essas coisas são
proibidas em Levítico 20. 6, que diz: “Aquele que se voltar para os necromantes e feiticeiros,
para se prostituir com eles, Eu Me voltarei contra ele e o eliminarei do meio do seu povo”.
O quarto nível é o dos judeus, filósofos, hereges e muçulmanos, que inventam seus próprios
deuses e não reconhecem o Deus que se revelou em Sua Palavra por meio de Jesus Cristo, que
deseja ser conhecido e invocado dessa maneira. Eles violam o primeiro mandamento. Os
maniqueístas também violaram este mandamento, pois afirmavam a existência de dois deuses,
um bom e um mau, ambos eternos. O mesmo ocorre com os samosatenianos, que afirmavam que
Cristo possuía apenas natureza humana. Os muçulmanos também têm visões ímpias sobre o
assunto. Os arianos negaram que o Filho de Deus fosse da mesma substância do Pai. E houve
outros que afirmaram que o Espírito Santo era apenas um movimento criado nos seres humanos.
O quinto nível inclui aqueles que não invocam a Deus por meio do Mediador Cristo, mas
inventam outros mediadores, como santos, missas, satisfações ou outras obras. Também estão
incluídos aqueles que duvidam da graça de Deus.
O sexto nível são os desertores, aqueles que se afastam da verdadeira doutrina do Evangelho
por medo ou ódio, como Judas, Juliano, entre outros.
O sétimo nível são os desesperados, como Saul; todos aqueles que não conhecem o
Evangelho da fé em Cristo estão fadados a cair nesse desespero.
O oitavo nível é não buscar o aprendizado do Evangelho, não se motivar a ouvir e conhecer
a doutrina de Cristo, mesmo quando o Pai celestial ordena, como está escrito em Mateus 17. 5:
“Este é o Meu Filho amado, em quem Me comprazo; a Ele ouçam”.
O nono nível são os hipócritas, que, embora professem a verdade e não se contaminem com
ídolos externos, ainda assim em seus corações não têm temor de Deus, não têm fé e amam mais
seus prazeres ou riquezas do que a Deus, como Nabal. Essa grande multidão sempre existe na
Igreja, mesmo quando ela tem uma doutrina pura, como a parábola do semeador adverte (Mateus
13. 24 e seguintes).
O décimo nível representa o orgulho, que é quando alguém admira e confia em sua própria
força, sabedoria e virtudes, sem reconhecer suas próprias fraquezas e sem buscar ajuda divina.
Um exemplo disso é Alexandre, que acreditava que seu reino era magnífico devido às suas
estratégias e batalhas, desdenhando dos mais fracos e não reconhecendo que suas conquistas
foram possíveis graças à ajuda de Deus, que o protegia dos persas para puni-los.
Consequentemente, Alexandre se tornou mais perverso e é punido. Essa dinâmica também pode
ser observada em Nabucodonosor, que reconheceu seu orgulho e se arrependeu, mas
Senaqueribe, cheio da mesma confiança em si mesmo, não se arrependeu e acabou morto. A
história frequentemente mostra que os heróis são oprimidos por eventos trágicos, pois pecam ao
se admirarem e confiarem em seus próprios dons, sem reconhecer a fragilidade humana e buscar
a ajuda divina. Eles muitas vezes se envolvem em assuntos perigosos ou injustos, impulsionados
por seus sentimentos pessoais e confiança em sua própria força, como no caso de Pompeu. Além
disso, outros vícios como luxúria, desprezo e opressão dos outros se manifestam, como ocorreu
com Alexandre, que se entregou ao luxo sem preocupações, matou líderes respeitados e sofreu as
consequências. Os próprios poemas retratam essas situações, como o exemplo de Ajax, castigado
com loucura por ter desafiado a vontade de Deus ao responder a seu pai, Telamon, que lhe disse
para lutar com coragem, mas buscar a vitória com a ajuda divina. Ajax respondeu que até mesmo
os covardes podem vencer com a ajuda de Deus, mas ele pode vencer sem Ele. Esses exemplos
ilustram por que os heróis acabam sofrendo eventos terríveis e são descritos como “abominação
diante de Deus é tudo o que é elevado diante dos homens” (Lucas 16. 15). Embora esse mal seja
mais evidente em figuras heroicas, todos os seres humanos possuem um pouco dessa
contaminação. Portanto, devemos reconhecer esses problemas em nós mesmos e corrigi-los,
depositando verdadeira confiança em Deus, assim como Davi clama em Salmos 25. 16: “Olha
para mim e tem piedade de mim, pois estou desamparado e aflito”, e também em Salmos 27. 10:
“Pois meu pai e minha mãe me abandonaram, mas o Senhor me acolheu”.
Também devemos mencionar os hipócritas, que confiam em sua própria justiça diante de
Deus, assim como o fariseu mencionado em Lucas 18. Essas pessoas cometem vários pecados:
não reconhecem sua fraqueza, não aceitam que merecem punição divina, têm uma confiança
vazia e não invocam o Mediador Cristo. Em vez disso, apresentam suas obras como substitutas
do Mediador perante Deus. Esses hipócritas são classificados no quinto nível mencionado
anteriormente.
O décimo primeiro nível é a impaciência, que vai contra o primeiro mandamento, pois a
vontade se recusa a obedecer a Deus durante as aflições. Às vezes, até mesmo ficam irritados
com Deus, como se Ele fosse um Senhor severo ou um juiz injusto. A Escritura nos adverte
sobre esse sentimento frequentemente, como vemos em Salmos 4. 5 e Efésios 4. 26: “Indignem-
se, mas não pequem”. Isso significa que devemos resistir à dor e submeter nossas mentes para
obedecer a Deus voluntariamente durante as tribulações, como já mencionado anteriormente.
Agora, vamos agrupar os níveis de pecados que são diretamente contrários ao primeiro
mandamento e que podem ser facilmente reconhecidos e julgados. Como os Dez Mandamentos
resumem o ensinamento de todas as virtudes, também vamos distribuir essas mesmas virtudes
em cada mandamento. A primeira virtude relacionada a isso é chamada de piedade ou religião,
embora seja mais fácil compreendê-la como temor de Deus, fé ou confiança e amor a Deus. Na
verdade, a virtude da piedade engloba necessariamente essas partes. A paciência também se
encaixa aqui. Além disso, o termo piedade quase corresponde à justiça universal, se a
entendermos como a obediência a Deus em todos os Seus mandamentos, como explicaremos
mais adiante, com o objetivo de que todas as nossas obras sejam referidas a Deus. Portanto, a
virtude da justiça universal também deve ser incluída aqui.
O SEGUNDO MANDAMENTO
Após ter abordado no primeiro mandamento os sentimentos do coração em relação a Deus,
que constituem a adoração principal e interior, uma vez que Deus requer obediência sincera do
coração, como expresso no versículo (Deuteronômio 6. 5): “Amará ao Senhor seu Deus de todo
o seu coração”. E também (João 4. 23): “Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade”; em seguida, no segundo mandamento, é
destacada a dimensão externa da profissão de fé: pois Deus deseja ser conhecido, ser invocado
por meio de nossa voz; assim como Ele se revelou por meio da Palavra, Ele deseja que essa
Palavra seja proclamada em voz alta. Portanto, depois de ter tratado dos movimentos do coração,
Ele agora ordena a respeito daquela voz na qual o nome de Deus e a Palavra de Deus ressoam:
“Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão.”
No primeiro mandamento, são apresentadas frases afirmativas e negativas. “Eu sou o
Senhor, seu Deus, que lhe tirei da terra do Egito”. Esta é a afirmativa, à qual devem ser
adicionadas outras afirmativas: “Amará ao Senhor seu Deus de todo o seu coração”. E também:
“Temerá ao Senhor seu Deus”. Após estabelecer as afirmativas, também devem ser adicionadas
as negativas ou exclusivas: “Não terá outros deuses diante de mim”. Assim, nos mandamentos
seguintes, quando ouvimos frases negativas, devemos sempre ter em mente a afirmativa expressa
no primeiro mandamento. No caso específico do uso do nome divino, Deus proíbe seu uso
indevido, mas ainda deseja que Seu nome seja propagado e conhecido: “Eu sou o seu Deus”.
Existem usos apropriados do nome divino, como pregação verdadeira, invocação sincera, ação
de graças e confissão. Devemos entender que esses quatro tipos de obras são prescritos e, ao
discutir essas obras, podemos mencionar afirmações encontradas em outros trechos da Bíblia,
como “Vão, ensinem todas as nações” (Mateus 28. 19), “Invoque-Me no dia da angústia; Eu o
livrarei, e você Me glorificará, ou Me dará graças” (Salmos 50. 15) e “Porque com o coração se
crê para justiça, e com a boca se faz confissão para salvação” (Romanos 10. 10). Essas passagens
são relevantes para ambos os sexos (gêneros) e demonstram como essas obras são importantes. O
juramento está relacionado à invocação, pois quando alguém jura, está invocando a Deus como
testemunha de sua promessa de não enganar e pedindo a Deus que puna o enganador. Assim, a
pessoa se compromete com essa punição. Podemos entender o quanto o juramento é um vínculo,
pois quando invocamos a Deus em um juramento, estamos aceitando a possibilidade de Sua ira
recair sobre nós se falharmos. Não há obrigação mais séria que um indivíduo possa impor a si
mesmo ou uma punição mais severa a que ele possa se submeter. Portanto, os eventos
comprovam isso, pois essa obrigação é sancionada e confirmada pelo direito divino, como está
escrito: “Deus não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão”. Nesta vida, os
perjuros são frequentemente acompanhados de punições terríveis.
O TERCEIRO MANDAMENTO
Assim como o primeiro mandamento ensina as obras interiores da mente, vontade e coração
em relação a Deus, e o segundo mandamento ensina a profissão externa da fé, o terceiro
mandamento trata dos preceitos relacionados às cerimônias divinamente instituídas. No entanto,
é importante compreender o propósito principal dessas cerimônias. Elas foram instituídas para o
ministério de ensino e servem como auxílios para essa função. Portanto, o preceito do descanso
do Sabá se refere especialmente ao ministério de ensino e à administração das cerimônias
divinamente instituídas. O texto não trata apenas do descanso, mas especificamente da
santificação. Ele deseja que sejam realizadas obras sagradas nesse dia, ou seja, ações dedicadas
exclusivamente a Deus, como ensinar o povo e realizar as cerimônias instituídas. Para cumprir
esse propósito, um dia específico deve ser designado. Essa regra se aplica a todas as pessoas em
todos os tempos, pois é uma lei natural. No entanto, em relação à observância do sétimo dia em
particular, é evidente que, com a abolição das cerimônias levíticas, até mesmo essa cerimônia foi
alterada, como afirmado claramente em Colossenses 2. 16: “Portanto, ninguém os julgue por
causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados”. Podemos afirmar, então,
que no terceiro mandamento existem duas partes distintas: uma parte natural ou moral, que é o
gênero, e outra parte específica para o povo de Israel, que é a espécie do sétimo dia. Sobre a
primeira parte, é dito que é um mandamento perpétuo e não pode ser abolido, referindo-se
especificamente ao mandamento de manter o ministério público, para que o povo seja ensinado
em algum dia e as cerimônias divinamente instituídas sejam praticadas. No entanto, a cerimônia
específica relacionada ao sétimo dia foi abolida.
Portanto, aprendamos verdadeiramente aqui o preceito de preservar o ministério público e as
cerimônias que Deus instituiu. Deus deseja que isso seja mantido para a permanência e
propagação da Igreja, como está escrito em Efésios 4. 11: “E Ele mesmo deu uns para apóstolos,
outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, tendo em vista o
aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para a edificação do corpo de Cristo”.
Para não sermos levados por doutrinas instáveis, Deus deu uma palavra segura por meio dos
profetas e apóstolos, transmitida publicamente com testemunhos fidedignos, e instituiu
ministérios públicos nos quais essa palavra é proclamada, para que tenhamos um ensino
confiável sobre Deus e não inventemos novas religiões como os pagãos, nem cultos novos, entre
outras coisas. Devemos amar, honrar e apoiar esse dom divino em seu devido lugar. Como Cristo
disse em Lucas 10. 16: “Quem os ouve, a Mim ouve; quem os rejeita, a Mim rejeita”. E os
profetas, lamentando a solidão no Sabá, reclamavam que o ministério de ensino havia sido
abolido.
Logo, as obras deste mandamento são cumprir com piedade esse ministério, ouvir
corretamente os ensinamentos, participar devotadamente dos Sacramentos e promover seu uso
por meio do nosso exemplo e frequência, obedecer devidamente aos instrutores, sustentar, honrar
e defender os mestres piedosos, e apoiar os estudos necessários para a Igreja. Não estou
buscando uma interpretação figurada deste mandamento, mas transmitindo seu significado
próprio e principal. Pois preservar o ministério divinamente instituído não é uma tarefa leve ou
insignificante.
Os pecados contra este mandamento incluem omitir ou abolir o dever de ensinar
corretamente, disseminar falsidades, corromper as cerimônias divinas, estar ausente do ministério
público ou raramente comparecer às reuniões onde a Igreja é ensinada corretamente. Além disso,
também está o ato de desviar outras pessoas do ministério público, seja através do exemplo ou de
outras formas, que não esteja contaminado pela impiedade, como os donatistas desviavam suas
congregações. Desobedecer ao ensino da verdadeira doutrina, realizar trabalhos servis que
impeçam a participação no ministério no dia designado para o ministério público, passar esses
dias envolvido em jogos, diversões ou outros vícios, desrespeitar e desonrar os ministros
piedosos, recusar-se a contribuir para seu sustento e defesa, não cobrir suas fraquezas, mesmo
que sejam saudáveis na doutrina, como Cam debochava de seu pai nu, e não apoiar os estudos da
Igreja.
Como já foi mencionado anteriormente, o primeiro mandamento deve ser incluído em todos
os outros, pois, sendo mandamentos de Deus, é necessário reconhecer o autor e obedecer a Ele.
Portanto, o temor a Deus e a fé são como a vida das outras obras e devem estar presentes em
todas as obras dos outros mandamentos. Para realizar as obras deste mandamento, é necessário
adquirir o conhecimento do Filho de Deus, para que possamos obedecer a este mandamento com
fé e invocação a Deus. Além disso, quando este mandamento trata do ministério e das
cerimônias, é necessário abraçar o Evangelho, pois o ministério da Lei é apenas o ministério da
morte, mas o Evangelho anuncia o perdão dos pecados e a vida eterna através do Filho de Deus.
As cerimônias divinamente instituídas também são tipológicas de Cristo. Portanto, nem os judeus
poderiam realizar corretamente as obras deste mandamento sem o verdadeiro conhecimento de
Cristo. Entre monges e supersticiosos, muitos pecados se misturam em suas cerimônias porque
desconhecem a doutrina da fé, da verdadeira invocação e dos verdadeiros cultos. Eles
erroneamente consideram como culto as obras de tradições humanas, corrompem a Ceia do
Senhor de várias maneiras e usam essas mesmas cerimônias viciosas para obter lucro. Esses
pecados também são contrários e contaminam o Sabá.
As virtudes mencionadas no primeiro mandamento também se aplicam aos dois
mandamentos seguintes.
A SEGUNDA TÁBUA
Embora este texto trate principalmente da vida política, é importante reconhecer a razão
humana e apresentar o melhor sistema de governo. Primeiramente, é estabelecido o poder e a
obediência é ordenada. Em seguida, são protegidos a paz (não matará) e os casamentos (não
cometerá adultério). Posteriormente, os tribunais são estabelecidos e é exigida a veracidade nos
contratos e acordos (não dirá falso testemunho). Esses são os fundamentos das leis políticas. No
entanto, devemos entender que a vida política não é apenas ensinada; existem dois elementos
adicionais. Primeiro, devemos lembrar que Deus é o autor tanto dessas leis quanto da vida
política. Portanto, a obediência é prestada em virtude de Deus, e devemos incluir o primeiro
mandamento em tudo, para que o temor de Deus e a fé também governem a obediência aos
outros mandamentos. Em segundo lugar, devemos compreender que não apenas ações externas
são exigidas, mas também a obediência interna. Assim, a natureza humana deve ser ordenada de
modo que não tenha inclinações, afetos ou ações contrárias à ordem estabelecida na qual ela foi
criada, como é declarado e ordenado na Lei.
No entanto, é evidente a teimosia e a confusão da ordem na natureza humana, especialmente
na vida política. Onde está a teimosia no governo? Quantos assassinatos injustos, guerras
injustas! Quanta ódio e inveja! Além disso, há desejos desenfreados, paixões e fúrias
incontroláveis dos amantes. Também há inúmeros roubos por meio de fraudes comerciais, usura
e outros meios. Além disso, quem não sofre com a ganância? Quem fica satisfeito com o que tem
e age de maneira justa e piedosa com suas posses? Por fim, todos lamentam a sofisticação e as
mentiras nos contratos, acordos e julgamentos. Nessas situações, percebemos claramente a
confusão da ordem estabelecida por Deus. Portanto, devemos aprender com a Lei de Deus que
não se trata apenas de ações externas, mas também de condenar toda a teimosia da natureza
humana, ou seja, a confusão interna e externa da ordem; assim, nos mandamentos finais são
adicionadas instruções sobre a concupiscência, que tratam claramente da teimosia interna.
Analisemos agora os demais mandamentos, que são de natureza política. Primeiramente,
devemos compreender que Deus nos ordena viver nessa sociedade política na qual Ele deseja ser
conhecido. Ele quer que exerçamos nossa fé e invoquemos Seu nome em meio a perigos e
dificuldades comuns. Ele deseja que pratiquemos o amor ao próximo e que cada um esteja
sujeito a uma servidão comum por causa d’Ele. Ele deseja que, por meio da nossa confissão
pública, brilhemos como luz para que outros sejam ensinados e convidados a conhecer e temer a
Deus, como está escrito em Mateus 5. 16: “Assim brilhe também a sua luz diante dos homens”.
Deus não quer que nos escondamos em solidão ou em algum retiro espiritual, ocupados apenas
com rituais secretos. Pelo contrário, Ele quer que enfrentemos os desafios e as tempestades do
governo, proclamando ali a doutrina divina que nos foi transmitida. Ele deseja exercitar nossa fé
nessas adversidades, ensinar os outros e tornar visíveis as evidências da doutrina que Deus revela
por meio de nós. Ele quer que estejamos sujeitos a uma servidão comum em obediência a Ele.
Assim, a Lei nos iguala a todos, estabelecendo deveres nos quais cada um serve aos outros ao
cumprir suas próprias obrigações. Dessa forma, nos tornamos membros de um corpo unido pelo
amor mútuo e pelos deveres mútuos, e obedecemos a Deus. Portanto, devemos aprender a
suportar os fardos comuns da vida e a servidão comum, contribuindo com nosso trabalho e
lembrando que fomos criados por Deus para viver nessa sociedade política. Pois a primeira Lei
não diz: “Busque a solidão, seus prazeres, crie momentos de lazer para si mesmo”. Em vez disso,
ela diz: “Honra seu pai e sua mãe, estabelece o poder e a obediência”. Devemos aprender que as
obras da segunda tábua de mandamentos são verdadeiro culto a Deus, como mencionei
anteriormente, ou seja, quando são realizadas com o temor de Deus e a fé. É por isso que muitas
vezes, nos profetas, quando ocorre a comparação entre cultos, os deveres políticos são colocados
antes dos rituais. Isaías 1. 17 diz: “Façam justiça ao órfão, defendam a causa da viúva”. E em
Isaías 58. 7: “Reparta o seu pão com o faminto”. Oseias 6. 5 e Zacarias 7. 9 também dizem:
“Pratiquem a justiça verdadeira”. E, acima de tudo, Cristo exalta esses deveres quando afirma
que o mandamento do amor ao próximo é semelhante ao primeiro, ou seja, exige obediência a
Deus em ambos os aspectos simultaneamente, e que os deveres de ambos os aspectos são culto a
Deus.
O QUARTO MANDAMENTO
O quarto mandamento se baseia na autoridade primordial, ou seja, dos pais, que devem ser
uma referência para outros governantes, como é mencionado em outros lugares, como Romanos
13. Ele exige o mais alto grau de obediência, ou seja, honra, que abrange três aspectos principais.
Primeiro, reconhecemos Deus como o autor da sociedade humana, tanto no âmbito familiar
quanto no político. Nessas ordens, podemos observar a sabedoria de Deus, Sua bondade para
conosco, Sua justiça, Sua ira contra os ímpios e Sua proteção aos inocentes. Portanto, é uma
forma de honra reconhecer que essa sociedade é uma obra divina, um testemunho da
providência, um benefício para a humanidade, um bem e uma virtude, e amar essa ordem por
causa de Deus e por seu valor, buscando, por meio de orações piedosas, que Deus a preserve. Em
segundo lugar, a honra inclui a obediência externa, cuidando das instituições políticas através do
cumprimento de nossos deveres comuns e evitando a desordem. Em terceiro lugar, a honra
implica em agir com justiça, perdoando certos erros dos governantes devido à nossa própria
fragilidade humana e, com moderação, diligência e justiça, corrigindo e reparando esses erros,
sempre em conformidade com os mandamentos de Deus.
No entanto, é importante fazer uma distinção entre as coisas e as pessoas. Esse triplo grau de
honra que mencionei é sempre devido às autoridades, ou seja, à própria instituição do casamento
e à ordem política, que estão fundamentadas nas leis honestas que Deus imprimiu na mente
humana, assim como em outras leis justas. Os pais, profetas, Cristo e os apóstolos reconheceram
que o casamento e a ordem política são obras e benefícios de Deus, observando os ciclos
sucessivos e eventos notáveis na política, a partir dos quais eles inferiam que Deus cuida da
humanidade. No entanto, eles também faziam uma distinção entre essas instituições e as obras do
Diabo. Quanto maiores forem as obras de Deus, mais o Diabo tentará deformá-las, abalá-las e
derrubá-las. Portanto, Paulo amava a ordem política, ou seja, as leis do Império Romano, e as
obedecia. No entanto, ele não amava os governantes como Calígula e Nero; pelo contrário, ele os
considerava instrumentos do Diabo, amaldiçoados por Deus. Ele via os crimes deles
contaminando toda a natureza das coisas. Essa distinção entre as instituições e as pessoas é
essencial para discernir as obras de Deus das obras do Diabo. Aqueles que são capazes de fazer
essa distinção amarão e reverenciarão ainda mais as instituições políticas e as leis. Ao
testemunhar a confusão presente nos governos, que é resultado das ações do Diabo e suas
organizações, eles sentirão uma tristeza ainda maior diante do poder do Diabo, que, nos mais
altos cargos de governo, manifesta ódio a Deus, desprezo pela humanidade e crueldade. Pois o
que pode ser mais monstruoso, vergonhoso e abominável do que os tiranos ao longo da história?
Quantos príncipes medíocres existem? Esses males devem ser reconhecidos e lamentados, e
devemos buscar a correção e a preservação das instituições por parte de Deus. Não devemos
desculpar ou defender vícios sob o pretexto de serem obras divinas, nem tolerar abusos
flagrantes e atrozes, impiedades e lascívias por parte dos tiranos, que ocorrem sem fim. No
entanto, devemos reconhecer que a política em si, à qual Deus confiou a espada, age
corretamente quando remove do governo governantes como Calígula, Nero e outras aberrações
semelhantes. Assim como Trajano, de forma honrosa, disse ao mestre dos cavaleiros,
entregando-lhe a espada: “Use esta espada em meu nome se eu ordenar algo justo; mas, se eu
ordenar algo injusto, use-a contra mim”. No entanto, se os governantes forem fiéis, ou seja, se se
esforçarem moderadamente para cumprir seu dever, agirem principalmente de forma justa e
corrigirem seus erros quando os cometerem, devemos tolerá-los e encobrir ou corrigir seus erros.
Exemplos disso foram Davi, Salomão e Josafá, que foram excelentes príncipes, mas também
tiveram suas quedas, descritas para nos alertar que governar é uma tarefa extremamente difícil e
perigosa. O Diabo, sendo homicida, conspira para destruir as instituições políticas e derrubar os
governantes, ou tem seus instrumentos infiltrados no povo. Assim como ele destruiu
completamente Saul, que no entanto realizou grandes e úteis feitos no início, ele lançou laços
para Davi, dos quais ele mal conseguiu escapar. Em seguida, ele incitou o filho de Davi,
Absalão, cujo crime causou grande ruína. Portanto, o Diabo perturba as instituições políticas, e a
natureza humana, já fraca por si só, tanto nos governantes quanto no povo, tem uma inclinação
natural para a licenciosidade e uma aversão às restrições das leis e disciplinas. Manter um estado
mediano no meio dessas artimanhas do Diabo e da múltipla fraqueza humana é uma grande e
singular obra de Deus, como Salomão claramente diz em Provérbios 20. 12: “O ouvido que ouve
e o olho que vê, o Senhor os fez a ambos”, ou seja, Deus capacita o governante a receber
conselhos sábios e a obter a obediência dos súditos. Essas obras são realizadas por Deus por
meio de governantes fiéis, alguns dos quais se destacam mais que outros. Nenhuma sabedoria
humana, vigilância ou virtude é suficiente para enfrentar tais desafios. Portanto, Paulo diz em 2
Coríntios 3. 5: “A nossa suficiência vem de Deus”. Ele também diz: “Não somos capazes, por
nós mesmos, de pensar alguma coisa”. No entanto, é exigida fidelidade das próprias pessoas, ou
seja, esforçar-se para fazer o que é certo, como é requerido em 1 Coríntios 4. 2: “Além disso, os
despenseiros devem ser encontrados fiéis”. Portanto, quando vemos um estado mediano nas
instituições políticas, reconheçamos que isso é um benefício concedido por Deus, por meio de
alguns ministros fiéis, e obedeçamos a Deus, o autor dessas instituições políticas.
Em seguida, devemos atribuir honra aos próprios governantes por sua fidelidade e pelo
imenso trabalho que acompanha toda a governança, ou seja, reconhecê-los como sendo
divinamente ajudados, como instrumentos pelos quais Deus nos fornece benefícios. Devemos
amá-los, nos submeter a eles e reconhecer que devemos agradecer-lhes pela sua diligência e
perdoar alguns de seus lapsos, desde que não violem os mandamentos de Deus. Essa equidade é
uma grande virtude e difícil de praticar. Eu brevemente mencionei o que o termo “honra”
abrange, o qual deve ser cuidadosamente considerado, e falei sobre a distinção entre as coisas e
as pessoas.
Este preceito refere-se às responsabilidades mútuas entre superiores e inferiores. Os deveres
dos superiores são expressos nos termos de pai e mãe, bem como no Decálogo em sua totalidade,
que serve como uma forma universal de governo, abrangendo todas as virtudes e deveres de um
bom pai e governante. Como foi corretamente dito por Xenofonte (Ciro, o Grande, Livro VIII,
início): “Um bom príncipe não difere de um bom pai”. Portanto, a principal preocupação do
governante deve ser com a primeira tábua, garantindo que as igrejas sejam ensinadas
corretamente. O pai deve assegurar que seus filhos sejam instruídos sobre Deus e, em seguida,
ser justo e corajoso na defesa, casto, benevolente em ajudar a promover o bem, ter zelo e uma
aversão intensa à imoralidade, ser verdadeiro em palavras e ações, ser sincero, não desconfiado,
etc. Além disso, deve ser diligente em administrar adequadamente os recursos para não faltar
despesas necessárias. Em resumo, como mencionei anteriormente, o Decálogo representa a
forma de governar, e se o governante tiver um afeto paternal, ele terá zelo por essas virtudes.
Da mesma forma, é responsabilidade do inferior honrar o superior, reconhecendo que as
instituições políticas são estabelecidas por Deus. Isso implica em obedecer por causa de Deus e
estar disposto a perdoar alguns erros. Nessa atitude, são demonstradas as virtudes da justiça
universal, que envolvem a obediência legítima às autoridades, o cuidado com a própria vocação e
a equidade ao lidar com os erros dos superiores, buscando dissimulá-los ou corrigi-los de
maneira a preservar a paz pública. No entanto, é mais evidente quando essas virtudes são
violadas por vícios ou pecados, como a insubordinação contra os superiores, conhecida como
desobediência, que é uma injustiça universal. Além disso, a sedição, a negligência em cumprir a
própria vocação e a intromissão excessiva na vocação alheia também são comportamentos que
devem ser evitados, tanto por superiores como por inferiores, pois podem causar conflitos e
perturbar a ordem pública. Portanto, é importante lembrar as palavras de Pedro, que nos adverte
contra sermos “buscadores de problemas”[72], ou seja, não devemos nos intrometer na governança
alheia.
Além disso, como mencionei anteriormente, assim como é necessário fazer distinção entre
coisas e pessoas nos governos, também devemos observar a distinção entre as próprias questões
em si. Nas monarquias e outros tipos de governos, a principal preocupação está na defesa da
sociedade civil e na promoção da honestidade, mesmo que a religião possa não ser conhecida.
No entanto, no reino do Anticristo, as leis perpétuas e fundamentais desse reino são direcionadas
a um novo culto ultrajante a Cristo, que é condenado por Deus, e o objetivo principal desse reino
é extinguir o nome de Cristo. Sob o pretexto de glorificar a Deus, esse reino é estabelecido, mas,
na realidade, sua intenção é erradicar o nome e a doutrina de Cristo. Isso pode ser observado no
caso do reino de Maomé: A própria lei de Maomé é uma clara afronta a Cristo; além disso, há o
mandamento do roubo, pois ele ordena matar aqueles que acreditam que Cristo é o Filho de
Deus, e também ordena a propagação de seus erros pela espada. Esses eventos foram
profetizados no capítulo 7 de Daniel (versículos 8 em diante) referente ao pequeno chifre: Ele
falará contra o Altíssimo e oprimirá os santos do Altíssimo. Em terceiro lugar, é permitido por lei
uma multiplicidade de práticas lascivas, e na verdade não existem casamentos legítimos entre os
maometanos, pois eles permitem que as mulheres sejam levadas, repudiadas e recebidas
novamente por decisões privadas, sem qualquer motivo justificável. Eles também permitem
práticas lascivas por lei, que são semelhantes àquelas que levaram à destruição de Sodoma e de
muitas outras cidades. Portanto, nesse reino, não há observância da lei de Deus, mas sim uma
fúria diabólica que Deus permite que se espalhe nos últimos tempos como forma de punir o
mundo. Assim como os pecados têm aumentado desde o início, também tem crescido a
escravidão, a aspereza dos governos e a confusão. Portanto, devemos observar a diferença entre
as outras monarquias e o reino de Maomé. Enquanto Daniel poderia servir como magistrado no
reino babilônico, os judeus poderiam servir no exército de Alexandre e os cristãos poderiam
servir sob os príncipes romanos, como foi o caso da grande vitória dos cristãos sob Marco
Aurélio nas Panônias, pois o objetivo da milícia era o estabelecimento de um governo político
justo. No entanto, não é permitido lutar com os turcos, cujo objetivo não é um governo político,
mas sim a consolidação e propagação da lei que eles professam. Enquanto é permitido aos
cristãos suportar a escravidão, não é permitido lutar com os turcos, pois está claramente escrito
(Daniel 7. 25): “O Santo dos Santos será oprimido”.
O QUINTO MANDAMENTO
“Não matarás”.
É proibido não apenas causar danos físicos externos e buscar vingança externa privada, mas
também nutrir sentimentos de malevolência, ódio, inveja e o desejo privado de vingança em
nossos corações. Cristo expõe claramente esse preceito em Mateus 5, nos versículos 21 e
seguintes. Por outro lado, somos chamados a praticar a benevolência, a misericórdia, o zelo, a
sinceridade em oposição à malevolência, a mansidão, a paciência e a equidade em relação a
todos os seres humanos. Devemos renunciar a parte de nossos direitos supremos por causas
justas, a fim de conduzir aqueles que podem ser recuperados para o caminho certo. Além disso,
devemos evitar que as discórdias privadas se transformem em conflitos públicos, pois sabemos
que há uma rigorosa prescrição em relação aos agravos pessoais, conforme expresso em Lucas 6.
37: “Perdoem, e serão perdoados”. Também é importante lembrar que a vingança não é uma
questão de impulsos individuais, mas Deus nos instrui a deixá-la em Suas mãos e estabeleceu
limites para ela. Ele declara em Romanos 12. 19: “A Mim pertence a vingança”. Devemos,
portanto, compreender e obedecer ao mandamento divino em relação à vingança, reconhecendo
quão prejudicial pode ser a cobiça privada de vingança.
Além disso, devemos acrescentar que os magistrados políticos têm uma autoridade divina
para exercer uma vingança legítima. É responsabilidade deles executar a declaração divina: “A
Mim pertence a vingança, Eu retribuirei, Eu punirei”, seja pela própria mão do magistrado, por
sua permissão ou através do exercício legítimo de seu cargo. Isso ocorre porque Deus estabelece,
mantém e altera impérios e governos, conforme declarado no livro de Daniel, capítulo 2,
versículo 21: “Ele muda os tempos e as estações; destrona reis e os estabelece”. Portanto, a
vingança divina é uma forma justa de punição, na qual os magistrados castigam ladrões,
adúlteros, perjuros e todos aqueles condenados por crimes.
O ofício do magistrado está intrinsecamente ligado às guerras legítimas, como quando
Constantino usou a força militar para reprimir a crueldade de Licínio. No entanto, assim como a
guerra é a manifestação máxima do poder político, também pode ser um abuso extremo. Guerras
justas e legítimas são raras. O Diabo, sendo assassino e inimigo da ordem política e disciplina,
muitas vezes incita grandes guerras com base em pretextos insignificantes, inflamando ambos os
lados com cobiça injusta. Deus permite essas consequências para punir os crimes cometidos por
ambas as partes. Um exemplo disso é a Guerra do Peloponeso, que trouxe desastre para toda a
Grécia e teve como origem causas triviais, como a destruição de uma floresta sagrada de acordo
com rituais pagãos e a ofensa pessoal de Péricles aos insultos dirigidos a Aspásia.
No entanto, o direito supremo, especialmente em uma questão leve, não é uma justificativa
suficiente para iniciar uma guerra. Como se diz: “Muitas vezes, o direito supremo é a maior
injustiça”[73]. É necessário acrescentar a equidade, de modo que, mesmo diante de uma ofensa,
busque-se a cura em vez de se enfurecer contra os inocentes devido aos erros de alguns. É
preciso evitar causar danos irreparáveis às igrejas e ao estado. Os governantes devem ter em
mente que as guerras devem ser uma expressão da vingança divina, não devendo ser motivadas
pela ganância humana ou pela ira temerária. Como Abigail disse a Davi em 1 Samuel 25. 28:
“Pois você combate as batalhas do Senhor, e não se encontrou mal em você”.
O SEXTO MANDAMENTO
“Não cometerás adultério”.
Existe uma grande confusão na ordem pública estabelecida divinamente neste preceito, que
todos compreendem estar proibido. No entanto, Cristo oferece uma explicação adicional em
Mateus 5 (versículo 27), mostrando que não apenas as transgressões externas são proibidas, mas
também inclinações perversas e pensamentos desviados contrários a esse preceito. Como
mencionado anteriormente, as proibições abrangem certas afirmações. Portanto, também é
estabelecido e reafirmado o casamento legítimo, pois ele é protegido por essa lei que aprova a
união conjugal e condena qualquer relação sexual fora do casamento legítimo, ameaçando
punições nesta vida e tormentos eternos após a morte. Conforme escrito na Epístola aos Hebreus
(13. 4): “Deus julgará os impuros e os adúlteros”. Também em Efésios 5 (versículo 5): “Porque
bem sabem isto: que nenhum devasso, ou impuro, ou avarento, o qual é idólatra, tem herança no
reino de Cristo e de Deus”. Por causa dessas transgressões, a ira de Deus cai sobre os
desobedientes.
Afirmei que o casamento é protegido por essas leis porque, mesmo quando o mundo não
pune adultérios e outras paixões desenfreadas, Deus os pune e não permite que Suas ameaças
sejam vãs. Como os exemplos ao longo da história mostram, mesmo que nem todos estejam
registrados, Deus quis que alguns fossem registrados para nos lembrar da regra de que Ele
realmente se ira com todos os impuros e pune severamente aqueles que se arrependem, como foi
o caso de Davi, ou destrói completamente aqueles que não se arrependem, como ocorreu com
Sodoma. Não apenas aquelas cinco cidades foram destruídas por essa causa, mas muitas outras
foram arruinadas devido a todo tipo de paixões, como as cidades gregas de Tebas, Atenas e
Esparta. Não apenas Troia foi punida por adultério, mas muitos reis encontraram um fim trágico
devido às paixões, como Egisto, Clitemnestra, a maioria dos reis macedônios, Arquelau, Filipe,
Alexandre, Demétrio, Ptolomeu e muitos Césares. Muitos reinos também foram envolvidos em
grandes guerras devido a essa causa, como ocorreu quando quase toda a tribo de Benjamim foi
destruída por causa do estupro de uma mulher levita. Devemos considerar esses exemplos,
compará-los com as ameaças divinas, incentivar nossa obediência a esse preceito e resistir às
chamas ilícitas.
Virtudes são exigidas aqui: castidade, modéstia, temperança e sobriedade. Pois ninguém
pode preservar a castidade sem temperança.
O SÉTIMO MANDAMENTO
“Não furtarás”.
E aqui, é importante enfatizar em primeiro lugar a afirmação positiva: a distinção entre
propriedades é estabelecida, o que este mesmo mandamento testemunha ser uma ordenança de
Deus. Ao proibir o roubo, ele deseja que cada pessoa mantenha o que é seu. Com esse
testemunho, os delírios dos fanáticos que afirmam, em um grave e prejudicial erro, que a
propriedade é abolida no Evangelho, são refutados.
Além disso, devemos observar a proibição de cobiçar o que pertence aos outros. Como os
contratos são estabelecidos por Deus, a fim de que os homens, por meio de obrigações
recíprocas, demonstrem sua obediência a Ele, eles devem ser exercidos com piedade e santidade.
Pois Deus pune a injustiça nos contratos não apenas com as penalidades dos magistrados, mas
também com outras calamidades, como é mencionado por Isaías (33. 1): “Ai de você, que
saqueia, pois você mesmo será saqueado” e Deuteronômio 25 (versículo 15): “Terá pesos justos
e perfeitos, terá medidas justas e perfeitas”. A experiência confirma a regra comum: o que é
adquirido de forma injusta se desfaz de forma injusta.
Este mandamento abrange várias virtudes que combatem a avareza, a preguiça, a
prodigalidade e promovem a justiça nos contratos, a generosidade, a diligência e a frugalidade.
Pois todos os preguiçosos e esbanjadores são ladrões, pois se não roubam dos outros, não
conseguem suportar sua própria ociosidade e seus gastos excessivos.
O OITAVO MANDAMENTO
“Não dirás falso testemunho”.
Esta lei protege os julgamentos e os pactos, e contém a mais nobre virtude de todas, a
Verdade. Sua utilidade se estende amplamente nas doutrinas, nos julgamentos, nos pactos e nas
relações sociais. Pois todas as corrupções das doutrinas violam esse preceito, quando são
realizadas por meio de fraude ou arrogância mental. Isso inclui todas as calúnias no tribunal,
todas as manobras enganosas nos negócios, todos os sofismas e todos os atos de hipocrisia, em
que as pessoas armam armadilhas umas para as outras e não mostram sinceramente seus
sentimentos e sua verdadeira natureza.
Devemos refletir cuidadosamente sobre como essa ampla aplicação se manifesta na vida
diária, para que possamos aprender a verdadeiramente e firmemente repudiar a sofística e todas
as formas de falsidade. A virtude da Verdade é crucial para preservar a integridade dos
julgamentos, a justiça nos contratos, a clareza nas relações humanas e a busca pela sabedoria e
conhecimento autênticos. Devemos valorizar e cultivar essa virtude, evitando qualquer forma de
engano, falsidade e manipulação, e buscando sempre a sinceridade e a transparência em nossas
palavras, ações e relacionamentos.
SOBRE A VINGANÇA
Além disso, em relação à vindicta (vingança), em todos os lugares onde os preceitos são
lidos, alguns pregam aos magistrados sobre seu dever, enquanto outros falam sobre a vindicta
privada, a malevolência e os conflitos prejudiciais que surgem especialmente em mentes ávidas e
impetuosas, motivadas pela sede de vingança, como ocorreu com Mário, Sula, Caio César e
Pompeu, dominados pela ira. E na igreja, há tantos exemplos quanto em outros reinos: muitos se
envolveram em grandes conflitos motivados pela malevolência e pelo desejo de vingança, como
é mencionado em relação a Aríon.
Portanto, é necessário distinguir a vindicta: há a vindicta pública, que é exercida por
mandato divino pelas autoridades. Sobre isso, é dito em Romanos 13. 4: “Ele é ministro de Deus,
vingador para castigar o que pratica o mal”. Não há dúvida de que as autoridades são obrigadas,
por mandato divino, a punir os delitos, e ambos devem estar cientes de que devem obediência a
Deus. As autoridades punem não por desejo privado, mas de acordo com a vontade de Deus; o
réu sofre punição para obedecer ao mandato divino que ordena a punição dos delitos.
O evangelho não proíbe essa vindicta pública ou o dever das autoridades; pelo contrário, ele
aprova e confirma o papel das autoridades e não deseja que sejam negligentes ou indolentes em
seu dever, especialmente porque é um dever divino. No entanto, porque não consideramos a
dignidade desse ofício tão importante nem a vontade de Deus, os hipócritas inventaram essas
delirantes ideias de não exercer a vindicta. E a fonte dessas atitudes é a teimosia dos seres
humanos: as pessoas sofrem gravemente as punições porque não reconhecem o mandato de
Deus, que é igualmente dado às autoridades e aos culpados.
Outra é a vindicta privada, ou seja, aquela que não é realizada pelas autoridades e pelas leis.
Sobre essa vindicta privada, é dito em Mateus 5 e Romanos 12. 19: “Não se vinguem por si
mesmos”. Essas palavras são verdadeiros mandamentos, pois Deus estabeleceu uma ordem com
leis e juízes aos quais a humanidade está sujeita. Portanto, Ele deseja que sejam eles os
responsáveis pela vingança, e não quer que essa ordem seja perturbada. Por essa razão, Ele
proíbe a vingança privada, tanto externa quanto interna, e espera que, em nosso coração,
entreguemos a vingança a Deus, às leis e aos juízes. Cristo aborda essa questão em Seu
ensinamento registrado em Mateus 5, onde explica a lei e refuta a hipocrisia daqueles que
pensam estar cumprindo a vontade de Deus, quando, na realidade, a confusão nessa ordem é
evidente entre os seres humanos. É como dizem nas sátiras:
“Mas a vingança é um bem mais agradável do que a própria vida.”
Cristo deseja que tenhamos consciência e controlemos o impulso de buscar vingança por
conta própria, especialmente agora que a condição humana está sujeita à morte e às punições. É
importante que, diante das adversidades, não apenas observemos os pecados dos outros, mas
também reconheçamos os nossos próprios pecados. Um exemplo notável disso é o que Davi
disse a respeito de Simei: “Deixem ele me amaldiçoar, pois o Senhor lhe disse: Amaldiçoa a
Davi. Quem sabe se o Senhor, ao ver a minha aflição, transformará a maldição em bênção para
mim”. Outro exemplo inspirador é a atitude de Davi em relação a Saul, quando ele teve a
oportunidade de matá-lo sem enfrentar nenhum problema, mas escolheu poupar sua vida, pois
não desejava tomar o reino de maneira ilegítima, mas sim esperar que Deus lhe concedesse.
Devemos refletir cuidadosamente sobre esses exemplos para compreender melhor a lei de Deus,
reconhecer nossa própria fragilidade e aprender a exercer um maior controle sobre nós mesmos.
Essa compreensão faz parte do ensinamento especial do Espírito Santo, pois as histórias das
nações não apresentam um exemplo semelhante ao de Davi.
Portanto, devemos seguir esta regra: instruir os magistrados a aplicar a punição de acordo
com as leis e repreender a negligência em seus deveres, como está escrito em Deuteronômio 19.
19-20: “Assim você eliminará o mal do meio de você, para que todo o Israel ouça e tema, e não
se cometam mais ações tão perversas no meio de vocês”. Por outro lado, devemos orientar as
pessoas comuns a não buscarem vingança e a não perturbarem a ordem estabelecida por Deus,
seja através de ações físicas ou desejos interiores. Essa regra é benéfica para a vida, fortalecendo
as autoridades e promovendo a paz. A partir disso, podemos perceber o quão absurda é a loucura
dos monges: se o conselho é não buscar vingança, eles estariam concordando em não punir os
criminosos, mas, ao mesmo tempo, incentivariam as pessoas comuns a se rebelarem em busca de
vingança. Portanto, devemos rejeitar completamente essas imaginações fanáticas e falsas da
igreja. Essa também foi a razão pela qual Cristo proibiu repetidamente a vingança, pois Ele
queria remover a falsa convicção dos apóstolos de que o reino do Messias seria terreno e
conquistado por meio de armas. Pelo contrário, Cristo enfatizou aos apóstolos que eles não
usariam armas, mas seriam pregadores do evangelho, reunindo a igreja sem depender de ajuda
humana ou armas, e sabendo que a igreja sofreria com a crueldade dos tiranos, mas mesmo assim
experimentaria libertações divinas. Dessa forma, Ele eleva os mestres de todos os tempos para
que cumpram corretamente seu dever de ensinar e confiem seus perigos a Deus, sem depender de
ajuda humana ou a buscar reinos sob o pretexto do evangelho, como os monges anabatistas
fizeram.
Muito se debate sobre o provérbio comum: “A violência pode ser repelida pela violência de
acordo com o direito natural”. Para compreender o significado dessa afirmação, é necessário
examinar sua essência. Se considerarmos que é um conhecimento natural ou um instinto inato
(στοργη), devemos investigar como essa ideia está ordenada, de modo que não seja corrompida
por pretextos injustos ou misturada com desejos egoístas. Os direitos naturais não são simples
impulsos desenfreados, mas sim disposições específicas que estão harmonizadas com a natureza.
Portanto, os juristas delimitaram corretamente esse provérbio estabelecendo certos limites.
Devemos compreendê-lo no contexto da manifesta violência e da defesa necessária contra uma
violência repentina, como quando um ladrão ataca um viajante pacífico na estrada, ou quando
alguém inicia uma guerra injusta, ou quando agitadores atacam a casa de outra pessoa. Nessas
situações, em que não há juiz ou autoridade presente, é permitido agir em autodefesa. No
entanto, é importante distinguir entre defesa e vingança, ou punição pelo crime. A razão correta,
ao fazer um julgamento, afirma que ninguém deve causar danos a outrem, mas também
reconhece que é legítimo proteger o próprio corpo contra violência injusta. Isso pode ser feito
por meio de ordens e comandos legítimos, como em uma guerra justa, ou por autodefesa, quando
não é possível contar com a ajuda das autoridades. Existe uma inclinação natural justa, um
desejo de autopreservação diante da violência injusta.
Portanto, quando entendemos o ditado de repelir a violência manifesta de acordo com a
ordem e maneira estabelecidas pela razão correta e pelas leis, é verdadeiro afirmar que é
permitido usar a força para se defender. Isso não contradiz o evangelho nem o mandamento de
“amar os inimigos”, pois o evangelho não anula o direito natural nem as obrigações da sociedade
civil, ou seja, as leis que estão em conformidade com a razão correta. Na verdade, é por essa
razão que Deus estabeleceu tantos deveres na sociedade, para que as pessoas tenham a
oportunidade de exercer e demonstrar fé, obediência e amor. Um chefe de família, por exemplo,
tem o dever de proteger sua esposa e filhos. Portanto, ao defender sua casa de um ataque, ele está
cumprindo um dever de amor, e sua fé deve brilhar em seu coração. Da mesma forma, um líder
tem a responsabilidade de defender seus súditos em causas justas. Assim, quando lidera uma
guerra justa, ele está cumprindo um dever de amor, e a invocação de Deus deve ser evidente em
meio ao perigo. Essas ações não entram em conflito com o evangelho, que instrui cada um a
obedecer à sua vocação legítima, nem contradizem o mandamento de “amar os inimigos”. Pois o
amor, a defesa e a punição não estão em oposição uns aos outros. O objetivo do amor é amar e
colocar o amor a Deus acima de tudo. Um exemplo disso é o rei Asa, que não pôde amar sua mãe
devido à sua adoração a ídolos e, consequentemente, a puniu. Da mesma forma, se Constantino
tivesse permitido que Licínio atacasse a igreja sem resistência, ele não teria cumprido os deveres
que agradam a Deus e, portanto, o reprimiu com armas.
Eu recitei essas informações sobre a afirmação de que é permitido repelir a violência com
violência, a fim de que os estudiosos possam examinar sua validade e entender como dela são
derivadas as leis da guerra. No entanto, essa afirmação deve ser comparada com outra que diz:
“quem vive pela espada, morrerá pela espada”. “Viver pela espada” significa empunhá-la sem a
autorização das leis. Assim, aqueles que infligem violência injusta estão “vivendo pela espada”,
enquanto aqueles que usam uma defesa justa não estão “vivendo pela espada”, mas sim
empunhando-a de acordo com as leis estabelecidas.
Além disso, Cristo faz uma distinção especial entre os deveres dos governantes e o
ministério do evangelho. Deus concedeu a espada aos governantes para ser usada em um
governo legítimo; porém, se eles a utilizarem de forma abusiva, agindo por ira pessoal ou como
Nero, estarão pecando. Por outro lado, Deus não deseja que o ministério do evangelho seja um
reino terreno e, portanto, proíbe os apóstolos de lutarem. Essa afirmação estabelece uma
diferenciação entre esses deveres, e é importante que os líderes da igreja compreendam isso para
não confiar em ajuda humana nem empunhar armas contra suas próprias autoridades, mas
reconhecer que a igreja está sob os cuidados de Deus e esperar por Sua ajuda, assim como Deus
libertou a igreja da crueldade do Faraó, dos caldeus, de Maximiano e de outros tiranos. Portanto,
essa afirmação não apenas transmite uma doutrina sobre os diferentes deveres, mas também
indica corretamente que a igreja é divinamente defendida e libertada.
Essa afirmação traz grande consolo aos piedosos. E até aqui discutimos sobre vingança.
SOBRE A POBREZA
A confissão do evangelho traz consigo desafios e perigos para a vida e a prosperidade das
pessoas. O estudo do evangelho é muitas vezes desprezado e não é visto como algo rentável.
Além disso, a pobreza é uma realidade comum nesta vida e afeta especialmente a igreja,
juntamente com outras adversidades que enfrentamos. Diante dessas situações, é importante
recebermos ensinamentos e consolo para não pensarmos que Deus nos abandonou por causa da
pobreza. Por isso, encontramos uma grande quantidade de sermões sobre a pobreza nos
ensinamentos dos profetas e no evangelho. Essas mensagens nos orientam a sermos constantes,
para que não sejamos levados a rejeitar o evangelho por causa do medo da pobreza. Também
somos alertados para não permitir que a busca por riquezas e poder nos leve a nos envolver com
coisas malignas. Além disso, encontramos consolo nas promessas de Deus de auxiliar aqueles
que estão necessitados. Ele nos assegura, por exemplo, que aqueles que deixarem suas casas ou
campos por amor ao evangelho receberão uma recompensa muito maior, embora com
tribulações.
Sobre essas questões cruciais, pregam-se palavras do evangelho e doutrinas saudáveis que
abordam exercícios de fé e outras virtudes. No entanto, é importante não distorcer essas
mensagens em direção à hipocrisia monástica, ao abandono de posses ou à confusão das questões
políticas. O evangelho não exige nem aconselha o abandono das posses, a menos que tenham
sido adquiridas de forma desonesta. Também não ordena nem aconselha a comunhão absoluta de
bens. Pelo contrário, reconhecendo que a distinção de propriedade e a posse são instituições
divinas, os piedosos devem compreender que a propriedade é agradável a Deus, assim como a
legítima troca de bens. Deus deseja que a nossa fé seja demonstrada por meio dessas atividades
civis, permitindo que o amor e outras virtudes sejam exercitados. Além disso, devemos
reconhecer que a renúncia às posses ou a mendicância praticadas por alguns indivíduos fortes e
ociosos é uma forma de roubo. Também devemos questionar a busca por uma vida mais
confortável nos mosteiros, que, por sua vez, possuem suas próprias propriedades. É fundamental
compreender que nenhum grupo pode existir sem algum tipo de propriedade. Podemos até criar
novas palavras para descrever essas situações, mas não podemos mudar a natureza das coisas em
si.
Há várias evidências no evangelho que aprovam a distinção de propriedades, domínios e
riquezas. Primeiramente, a lei diz claramente: “Não furtarás”, o que implica que Deus mesmo
sanciona e aprova a existência de propriedades distintas. Além disso, é certo que reis e príncipes
podem se tornar herdeiros da vida eterna e que alguns deles podem governar de forma justa e
agradar a Deus, como foi o caso de José, Daniel, Nabucodonosor, Ciro, Cornélio, o Centurião e
outros. No entanto, reinos não podem ser mantidos sem riquezas, pois a estabilidade de um
governo requer recursos financeiros. Além disso, em 1 Coríntios 7, é permitido o comércio, o
que implica que compras e vendas são consideradas legítimas.
Ambas as situações - administrar adequadamente as posses e suportar a pobreza
corretamente - requerem habilidade, cuidado e virtude. Para uma administração adequada, é
essencial ter uma boa consciência que reconheça a ordem estabelecida por Deus, onde existe uma
distinção nas coisas, e não perturbar essa ordem defraudando os outros, como frequentemente
ocorre quando os ricos se beneficiam de contratos injustos. Pelo contrário, é necessário preservar
a igualdade por causa de Deus, que ordenou que não se deve se apropriar do que pertence aos
outros. Portanto, devemos demonstrar gratidão ao proteger a igualdade e agradecer a Deus, que
nos concedeu e preserva as posses, conforme está escrito: “A bênção do Senhor enriquece”. Em
segundo lugar, é importante entender que é necessário ajudar generosamente os necessitados,
como Cristo frequentemente nos ordena: “Deem, e lhes serão dados”. E há uma promessa
associada a isso, por duas razões: para que saibamos que a generosidade dos piedosos é
merecedora de recompensas e para que saibamos que Deus requer essas ações, a fim de
exercitarmos nossa fé na expectativa das recompensas. Ambas as razões são evidentes no
exemplo da viúva de Sarepta: ela alimentou Elias e confiou que Deus a sustentaria. Como
resultado, Deus abençoou a mulher e a recompensou abundantemente, e ela demonstrou uma fé
notável ao entregar todas as suas sobras a Elias. No entanto, é importante observar que o modo
de compartilhar e ajudar é descrito em 2 Coríntios 8. 13: “Não para que haja indolência para
outros e aflição para vocês”. Isso significa que, ao praticar a generosidade, devemos agir de
forma equilibrada, evitando tanto a ociosidade quanto o fardo excessivo para nós mesmos.
Devemos buscar um equilíbrio para que nossa ajuda seja eficaz e não cause dificuldades para nós
ou para os outros.
E há um provérbio muito bonito sobre propriedade, modo de liberalidade e recompensas, que
está presente em Salomão: “Beba água da sua própria cisterna e das fontes do seu próprio poço;
que as suas fontes se espalhem pelas ruas e os riachos de água corram pelos caminhos públicos.
Sejam somente seus e não compartilhe com estranhos. Seja bendito o seu manancial!”. É um
ensinamento econômico, transmitindo uma doutrina muito importante através de uma figura de
linguagem encantadora, proibindo o roubo do que é alheio. Por isso ele diz: “Beba água da sua
própria cisterna”, e aprova a propriedade: “Seja você o único senhor delas”. Ele acrescenta
também o mandamento da liberalidade: “Que as suas fontes se espalhem pelas ruas”, ou seja,
compartilhe os frutos da sua propriedade com os outros. Ele mostra também o modo da
liberalidade: “Não quero que sejam dissipadas as suas heranças, nem que perca as suas terras”.
Aqui está o modo: que você mantenha a propriedade, preservando a herança para os filhos e para
a república, mas ajude generosamente os necessitados com os frutos. Isso é o que foi dito sobre
propriedade e sobre o dever da liberalidade.
Por fim, ele acrescenta também o ensinamento sobre as recompensas e a fé: exerça a fé por
meio desses deveres: se reconhecer que as posses e a sua preservação são um dom de Deus, e se
não defraudar ninguém e for generoso, então aguarde a bênção de Deus. Essa é a verdadeira
doutrina da igreja de Cristo sobre esse assunto, e devemos evitar os delírios daqueles que
imaginam uma comunhão platônica dos bens ser ensinada ou elogiada no evangelho.
Mas assim como é uma grande habilidade administrar adequadamente as posses, também é
uma grande habilidade e grande honra suportar corretamente a pobreza. Em relação a isso,
primeiro devemos reconhecer a vontade de Deus, que deseja que estejamos sujeitos a essas
aflições comuns, como doenças, morte e também a falta de recursos. Essas aflições não são
sinais de que os piedosos são rejeitados por Deus, mas são exercícios que nos advertem sobre o
pecado, pelo qual a natureza está sujeita à morte. Elas também nos lembram da importância do
arrependimento e da invocação a Deus. Portanto, é crucial compreender que devemos obedecer a
Deus, que deseja que passemos por essas provações, assim como a obediência em si é uma
virtude que se desenvolve. Quando enfrentamos aflições, é necessário ter humildade, conforme
escrito: “Humilhem-se, pois, debaixo da poderosa mão de Deus”. Além disso, a constância deve
ser cultivada para que não tomemos ações que sejam contrárias à vontade de Deus por medo da
pobreza. Cristo enfatiza a importância da constância ao proclamar: “Bem-aventurados os pobres
de espírito”, pois eles demonstram obediência a Deus ao suportar a pobreza e não serem abalados
pelas dificuldades que acompanham a falta de recursos. De fato, enfrentar opressão, desprezo
pelos poderosos, insultos e testemunhar as aflições dos filhos é uma carga pesada. No entanto,
manter a constância de espírito nessas circunstâncias, não buscar ajuda por meio de conselhos
malignos do povo ou dos poderosos, e não permitir que a escassez leve à perturbação da ordem
pública - essa nobreza de espírito que brilha em meio às aflições é uma grande honra. Assim
como aconteceu com Jeremias, muitos profetas, João Batista, Cristo, os apóstolos e inúmeros
mártires; que nasceram em posições privilegiadas e foram despojados de suas posses, como
Atalo[76]; aqueles piedosos que possuíam recursos, como Jó, Davi e outros, também passaram por
situações semelhantes. Eles compreendiam que era necessário que alguns fossem ricos,
obedecessem ao Seu chamado e não colocassem riquezas acima da confissão da fé. Mesmo
quando perdiam suas riquezas, ainda estavam dispostos a obedecer a Deus. Essa obediência,
juntamente com a constância na confissão da fé, são louvadas e representam uma forma de
adoração a Deus.
No entanto, os monges distorcem claramente as palavras de Cristo para justificar sua
hipocrisia, citando erroneamente Mateus 19. 29: “Quem deixar casa, ou pais, ou irmãos”, etc. Na
realidade, existem duas formas distintas de abandono: uma é feita em obediência ao mandamento
de Deus, na confissão da fé ou na vocação, quando os tiranos exigem que renunciemos ao
evangelho ou abandonemos nossos bens; ou quando alguém chamado para liderar igrejas tem
dúvidas sobre enfrentar perigos e hostilidades, ou se é melhor servir à vida familiar. Em tais
casos, o abandono é louvável, pois devemos dar prioridade à confissão do evangelho e à nossa
vocação acima de todas as coisas humanas, incluindo nossa vida e fortuna.
Não é uma questão trivial que essa declaração seja repetida várias vezes no Evangelho.
Muitas vezes surgem situações em que a confissão da fé nos obriga não apenas a renunciar às
posses, mas, o que é ainda mais difícil, a desagradar aqueles que nos são mais queridos, desafiar
a vontade de grandes e respeitáveis príncipes e outros líderes cujos julgamentos é extremamente
difícil ignorar. É uma tarefa difícil também porque somos acusados de causar discórdia em nosso
próprio país. Essas coisas certamente afligem profundamente nossos corações, e é por isso que
Deus nos ordena repetidamente a colocar o evangelho em primeiro lugar e nos consola,
prometendo ajuda e recompensas.
Encontramos um exemplo disso em Deuteronômio 33. 8, onde a bênção é especialmente
atribuída à tribo dos levitas por ensinar a verdadeira doutrina. Há também discursos sobre
perigos e promessas. Essas palavras são dirigidas aos levitas: “Esta é a Tua lei que foi dada pelo
Teu homem santo, a quem provaste em Massá”. Aqui, na primeira parte, é recomendado às
famílias levíticas um certo tipo de ensinamento, e é proibido ensinar qualquer doutrina falsa. Em
seguida, é acrescentado o preceito da constância diante dos perigos: “Aquele que diz a seu pai e a
sua mãe: Não os conheço; e aos seus irmãos: Não os reconheço, e aos seus filhos: Não os
conheço; estes guardam a Tua palavra e o Teu pacto, e o Teu juízo, ó Jacó, e a Tua lei, ó Israel;
eles colocarão incenso diante da tua ira e holocausto sobre o teu altar”. Esta é a segunda parte,
que adverte os mestres sobre as grandes lutas, perigos, ódios e torturas que enfrentarão na defesa
da doutrina piedosa.
Certamente essas coisas são difíceis, como dizer aos pais, à pátria, aos filhos: “Não os
conheço”; ser considerado inimigo da pátria, causador de discórdia, etc. No entanto, vemos que
os profetas e apóstolos também enfrentaram essas mesmas acusações. E para que não
desanimemos, a promessa é acrescentada: “Abençoa, Senhor, a sua força e aceita as obras de
suas mãos; fere as costas dos seus inimigos, e que os que o odeiam não se levantem”. Ou seja,
Deus ajuda aqueles que ensinam corretamente, faz com que seu ministério seja eficaz e salvador,
e restringe os maus mestres e tiranos. Essas palavras de Cristo foram tiradas das palavras de
Moisés. Ambos pregam sobre assuntos de grande importância, como qualquer leitor prudente
pode facilmente reconhecer. Portanto, essas declarações profundas não devem ser distorcidas
para se adequar às vazias superstições dos monges.
Mencionei essas palavras para que sejam vistas pelos estudiosos piedosos, muitos dos quais
enfrentam várias aflições por causa do estudo da verdadeira doutrina. Que eles se fortaleçam com
essas palavras e não abandonem seus estudos corretos. Que saibam que Deus é seu auxílio, como
Cristo disse: “Busquem primeiro o Reino de Deus, e todas essas coisas os serão acrescentadas”.
E no Salmo 84. 11: “Prefiro ser um humilde porteiro na casa do meu Deus”. E em Isaías 30. 20:
“O Senhor os dará pão na angústia, e água na aflição, e não permitirá que o seu mestre seja
removido”. Este é o caminho, sigam nele e não se desviem. Que se fortaleçam com essas
declarações e sirvam a Deus na propagação da verdadeira doutrina, e tenham cuidado para não
distorcê-la com seus escândalos.
Existe outra forma de abandono que não é louvável, mas sim supersticiosa, que é quando as
pessoas renunciam às suas posses sem uma verdadeira vocação, inventando votos e aderindo à
mendicância como um suposto culto a Deus. Essa forma de abandono não é de forma alguma
digna de elogios, mas é uma expressão de impiedade pagã, como está escrito: “Em vão Me
adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens”, entre outras passagens que
condenam a prática de cultos baseados em tradições humanas.
SOBRE A CASTIDADE
Deus, com um plano maravilhoso, estabeleceu a procriação na natureza humana e instituiu o
casamento por meio de uma lei estabelecida (Gênesis 2). Após a queda de Adão, Deus deseja que
os seres humanos se unam em matrimônio por duas razões principais: para a procriação e para
evitar paixões desenfreadas, como afirmou o apóstolo Paulo ao dizer que cada pessoa deve ter
seu próprio cônjuge como único, a fim de evitar a fornicação. Deus valoriza tanto essa ordenança
que Ele proíbe veementemente todos os desejos ardentes e relações fora do casamento, e Ele as
pune severamente, como evidenciam muitos ensinamentos e exemplos. Passagens como Hebreus
13. 4 afirmam que “Deus julgará os fornicadores e os adúlteros”; em 1 Coríntios 6. 9, é dito que
“Não se enganem: os fornicadores, idólatras e adúlteros não herdarão o reino de Deus”; Efésios
5. 6 adverte para que ninguém seja enganado com palavras vãs, pois a ira de Deus recai sobre os
filhos da desobediência devido a tais práticas; 1 Tessalonicenses 4. 3 estabelece que a vontade de
Deus é a santificação dos crentes, que se abstenham da fornicação e que cada um saiba possuir
seu próprio corpo em santificação e honra, não cedendo à paixão da concupiscência como os
gentios; e Hebreus 12. 14 exorta a buscar a paz com todos e a santificação, pois sem ela ninguém
verá a Deus.
Existem exemplos de castigos nas Escrituras que ilustram esses princípios. Por exemplo, em
Gênesis 5, menciona-se que uma das causas do dilúvio foi a presença de paixões desregradas
entre as pessoas. Além disso, em Gênesis 19, testemunhamos a destruição de cinco cidades
devido a um tipo extremamente perverso de paixões. É realmente surpreendente a magnitude da
loucura dessas cidades, considerando que tinham Sem como vizinho, que havia testemunhado o
dilúvio e, sem dúvida, os advertia e pregava constantemente. Além disso, eles haviam ouvido a
mensagem de outros homens justos, como Abraão e Ló. É notável também a ingratidão
demonstrada em relação a Deus, pois pouco antes de sua destruição, quando a cidade foi
capturada pelos caldeus e os cidadãos foram levados cativos, Abraão os libertou, mas eles
voltaram a se entregar desenfreadamente a todos os seus desejos.
No livro de Números, podemos observar que 12 príncipes foram enforcados e 24.000
homens foram mortos devido à prática da fornicação. Em Levítico 18, é relatado que os cananeus
foram exterminados devido às relações incestuosas que praticavam. No livro de Juízes, quase
toda a tribo de Benjamim foi destruída devido ao estupro da esposa de um levita. Em 2 Samuel
12, são anunciadas graves punições a Davi por causa de seu adultério. O rei Salomão menciona
exemplos de idolatria que surgiram como resultado das paixões carnais. Além disso, o profeta
Jeremias frequentemente menciona adultérios como uma das causas da queda de Jerusalém.
Esses exemplos foram registrados nas Escrituras para que tivéssemos testemunhos claros do
juízo de Deus sobre tais transgressões. Eles servem como evidência de que as paixões carnais são
punidas em todos os lugares e que os infortúnios não ocorrem aleatoriamente para aqueles que
praticam a impureza. Pelo contrário, eles são castigos pelos quais Deus manifesta sua ira contra
esse pecado. Portanto, os terríveis desastres que ocorreram entre os pagãos devido às paixões
carnais devem ser atribuídos à mesma causa e à regra estabelecida na Epístola aos Hebreus, que
afirma que Deus punirá os fornicadores e adúlteros.
Além disso, há exemplos tão horrendos de consequências decorrentes das paixões carnais
entre os pagãos que mencioná-los ou sequer pensar neles causa grande dor. Citarei apenas
algumas mudanças notáveis nos reinos que foram provocadas por essas paixões. Troia foi
destruída devido ao rapto de Helena. Tebas foi punida por causa do rapto de Crisipo e do incesto
de Édipo. Em Roma, os reis foram expulsos devido ao estupro de Lucrécia. Mais uma vez,
ocorreram mudanças no governo devido ao crime cometido pelos dez decênviros de Ápio.
Aristóteles, em sua obra Política, apresenta uma extensa lista de exemplos desse tipo,
descrevendo as causas que levaram a mudanças nos reinos. Entre essas causas, ele destaca as
paixões carnais e relata diversos exemplos. Em Atenas, os filhos de Pisístrato foram expulsos por
insultarem uma jovem. O líder espartano Pausânias cometeu estupro seguido de assassinato de
uma jovem em Bizâncio. Por um estranho prodígio, uma estátua proferiu um verso ameaçador de
punição para ele:
“Você deve pagar o preço, pois a injúria traz desgraça.”
Posteriormente, após rejeitar Pausânias, Bizâncio recebeu os atenienses de volta. Porém,
Pausânias, embora tivesse realizado grandes feitos e derrotado o exército persa, foi
posteriormente obrigado pelos Éforos a morrer de fome. Em suma, a história está repleta de
exemplos que demonstram a ira de Deus contra as paixões desenfreadas. Portanto, aprendamos a
dar instruções severas sobre castidade.
A castidade pode ser praticada por meio do casamento ou pela pureza de vida dos
celibatários que são capazes de viver no celibato, seja na juventude ou naqueles que têm um dom
especial para isso. Falo especificamente sobre a juventude porque essa ordem foi estabelecida
com um propósito, permitindo que os jovens vivam com pureza e diligência moderada enquanto
seus corpos ainda estão em crescimento. No entanto, muitos são enredados nas armadilhas do
diabo, são influenciados por más companhias e são facilmente arrastados para vícios devido à
ociosidade e aos prazeres. Devemos instruir adequadamente as mentes de que os jovens, que
ainda não estão prontos para o casamento, podem viver com pureza, com um esforço moderado,
e que Deus exige rigorosamente esse dever. Aqueles que são manchados pela impureza não
escapam de punições leves.
Se José tivesse cedido ao adultério, teria perdido os dons com os quais foi agraciado e teria
sido abandonado por Deus, caindo em pecados ainda maiores. Da mesma forma, Davi
acrescentou ao adultério o assassinato de um homem justo e escândalos múltiplos, resultando em
múltiplas punições. Paulo afirma explicitamente que a punição para as paixões desenfreadas é a
cegueira espiritual. Aqueles que são abandonados por Deus se tornam escravos de suas paixões,
não conseguem ver nem ouvir conselhos corretos, aumentando assim suas punições e ruína.
No entanto, para aqueles cuja idade é apropriada e que reconhecem que não são adequados
para a vida celibatária, saibam que são obrigados pelo mandamento de Deus a se casar, como
Paulo claramente afirma: “Cada um tenha a sua própria esposa para evitar a fornicação”. Esse
mandamento se aplica a todos que reconhecem que não são adequados para a vida celibatária,
tanto leigos quanto sacerdotes.
Tanto as leis humanas quanto as promessas monásticas não podem anular a ordenação e o
mandamento de Deus. Deus detesta as paixões desenfreadas e as impurezas do corpo. Portanto,
Ele deseja que homens e mulheres se unam de acordo com a lei estabelecida, que foi instituída
no início, conforme registrado em Gênesis 2, e reafirmada por Jesus em Mateus 19 e pelo
apóstolo Paulo em 1 Coríntios 7. Essa união é verdadeiramente uma expressão de castidade e
pureza, uma instituição ordenada por Deus e agradável a Ele, que envolve práticas de fé, amor e
paciência. Além de ser a origem da humanidade, o casamento também é o elo primordial da
sociedade em geral. Deus deseja preservar a procriação humana até que a igreja esteja completa e
a sociedade civil seja estabelecida, para que as pessoas possam ensinar e aprender umas com as
outras. Portanto, é absolutamente correto afirmar que o casamento legítimo agrada a Deus.
No entanto, o diabo facilmente seduziu os ímpios com a ilusão da impunidade, incitando as
paixões. Na igreja, sob uma artimanha singular, ele levou alguns a proibirem o casamento, seja
para todos ou apenas para os sacerdotes, sob o pretexto da castidade. Essa proibição tinha apenas
um objetivo: contaminar mais pessoas e confirmar a licenciosidade de vários crimes. Os piedosos
devem considerar quantas almas foram levadas ao desespero pela lei do celibato, caindo na ira
eterna de Deus e blasfemando eternamente. Portanto, não deve haver autoridade na lei do
celibato, e as opiniões dos monges que a defendem devem ser vigorosamente refutadas e
condenadas. Eles inventaram a ideia de que o celibato é um culto sublime a Deus, merecedor do
perdão dos pecados e da vida eterna. Em resumo, eles trouxeram grande obscuridade ao
evangelho e, ao atrair muitos incautos com votos de celibato, eles próprios se contaminaram
terrivelmente. Assim, tanto o diabo quanto o evangelho foram obscurecidos, e as paixões foram
exacerbadas.
Essas questões devem ser cuidadosamente consideradas, as ameaças divinas devem ser
gravadas em nossas mentes e os terríveis exemplos de punição devem ser observados. Devemos
verdadeiramente evitar qualquer contaminação contra a ordenação de Deus, e reconhecer que
qualquer relação fora do casamento legítimo é um pecado grave, como é afirmado em várias
ocasiões: “Fornicadores e adúlteros não herdarão o Reino de Deus”.
Portanto, é essencial que tenhamos uma consciência clara para que os jovens evitem quedas.
Na idade adulta, se necessário, devemos obedecer ao mandamento de Deus e buscar o
casamento. Aqueles que menosprezam essa orientação devem estar cientes de que estão trazendo
punição para si e para a nação como um todo. É importante ressaltar que uma má consciência
não nos permite invocar a Deus, como está escrito em 1 João 3. 21: “Se o nosso coração não nos
condena, temos confiança diante de Deus, etc.”. Portanto, para que possamos invocar a Deus,
devemos manter uma consciência íntegra. Viver sem invocar a Deus, sem Sua presença,
governança e proteção, é uma situação extremamente desfavorável. Dessa forma, o diabo nos
cega cada vez mais e nos envolve em diversas transgressões, como podemos observar em nossa
experiência diária. Quanto ao argumento dos monges que preferem a virgindade, citando
claramente a passagem de Paulo que diz “Seria melhor não casar, etc.”, é importante que o leitor
piedoso entenda que todo esse sermão deve ser lido e observado, prestando atenção aos dois
aspectos.
Inicialmente, é apresentado o mandamento de Deus de cada um ter sua própria esposa,
devido à necessidade de evitar a fornicação. Em seguida, ao falar sobre a virgindade, Paulo
acrescenta imediatamente: “Mas cada um tem o seu próprio dom”. Portanto, quando ele exalta a
virgindade, ele está se referindo a pessoas adequadas para tal estado de vida. Além disso, é
importante considerar que, por meio dessa comparação, as boas obras são avaliadas e
comparadas dentro de limites úteis. Não estamos buscando uma obra que mereça a remissão dos
pecados ou reconciliação, nem estabelecendo um culto baseado na vontade humana.
É um equívoco pensar que a virgindade merece a remissão dos pecados ou deve ser
preservada porque é em si um culto singular e sublime a Deus, ou que o casamento seja uma
forma de vida impura, pela qual o homem não agrada a Deus ou agrada menos. Esses erros são
doutrinas dos demônios e devem ser rejeitados. No entanto, Paulo elogia a virgindade nas
pessoas adequadas e a enaltece por seu propósito útil, não porque seja um culto superior ao
casamento, mas porque o estado de celibato é mais adequado para muitos ministérios, uma vez
que as múltiplas preocupações domésticas da família frequentemente representam obstáculos,
especialmente para aqueles de coração fraco. Isso é verdade, mas cada um tem o seu próprio
dom. Essa advertência deve estar sempre em mente, pois muitos celibatários, embora seus corpos
não estejam contaminados, têm suas mentes ocupadas por desejos ilícitos. Além disso, muitos
sofrem mais com as preocupações mundanas em busca de segurança, honra e prestígio do que a
maioria dos maridos piedosos e comuns.
7. O Evangelho
Não há dúvida de que os apóstolos atribuíram ao seu ensinamento uma apelação
singularmente doce e suave, de forma a destacar ainda mais a distinção entre a lei e a promessa
de reconciliação. Assim como os profetas frequentemente usaram uma palavra especial, Basar
( )ָבַּשׂ ר, que significa anunciar coisas novas e boas. Agora, evangelho (ε ὐ αγγέλιον) é uma
antiga palavra que, embora no contexto de Homero signifique uma mensagem alegremente
anunciada, em grego também se refere a um discurso que anuncia coisas boas e alegres, como os
apóstolos usaram, como há muitos testemunhos claros. Plutarco, em sua obra sobre a vida de
Artaxerxes, diz claramente “recompensa do evangelho” (ε ὐ αγγελίου μισθόν), onde é necessário
entender “evangelho” (ε ὐ αγγέλιον) como um discurso que anuncia coisas alegres. Há outros
testemunhos no mesmo trecho; existe também um testemunho na vida de Pompeu, “mensageiros
chegaram do mar trazendo as boas novas” (γραμματοφόροι προσήλαυνον ἐ κ πόντου κομιζόντες
ε ὐ αγγελία), onde claramente se fala de um discurso que anuncia boas novas. De fato, Cícero
também fala dessa maneira para Ático: “Admo neatur igitur pios appellationis suavitas” (que a
doçura do apelo seja recomendada aos piedosos). Assim, falamos do novo gênero de doutrina e
da distinção entre a lei e a promessa, sem inventar novas palavras mais sofisticadas do que
necessárias, para evitar que muitos hipócritas encontrem falhas. O apóstolo João, no início de seu
evangelho, faz uma clara distinção entre a lei dada por Moisés e a graça e a verdade trazidas por
Jesus Cristo. É importante distinguir os mandamentos e o perdão dos pecados, assim como as
promessas da lei das promessas da graça. A lei, como mencionado anteriormente, exige
obediência perfeita a Deus, não concede perdão gratuito dos pecados nem declara os justos, ou
seja, aceitos por Deus, a menos que se satisfaça a lei. Embora a lei também contenha promessas,
estas exigem o cumprimento da lei como condição. Por outro lado, o evangelho prega sobre o
arrependimento e as boas obras, mas traz a promessa do benefício de Cristo, que é a doutrina
central do evangelho e deve ser distinta da lei. O evangelho perdoa os pecados gratuitamente e
nos declara justos, mesmo quando não conseguimos cumprir a lei. Para entender como esses
elementos se harmonizam, sendo que o evangelho prega tanto o arrependimento quanto a lei, e,
no entanto, a promessa é gratuita, iremos explicar imediatamente. No entanto, é importante que o
leitor observe a distinção entre as promessas, pois a lei também as possui.
É importante esclarecer que existem dois tipos de promessas nas escrituras divinas:
I. As promessas da lei estão vinculadas à observância da lei como condição para serem
cumpridas. A lei ensina que Deus é bom e misericordioso, mas somente para aqueles que estão
sem pecado. Isso também é compreendido pela razão humana, pois temos uma noção da lei.
Quando cada pessoa se avalia, naturalmente percebe que considera Deus misericordioso apenas
para aqueles que são dignos, ou seja, aqueles que estão sem pecado. Além disso, não pode
afirmar que agrada a Deus, pois se considera indigna e impura. Portanto, devido à natureza
condicional da lei e suas promessas, as consciências ficam em dúvida.
II. A outra promessa é específica do evangelho, que não tem a condição da lei como causa,
ou seja, não promete por causa do cumprimento da lei, mas gratuitamente por causa de Cristo.
Essa é a promessa do perdão dos pecados, da reconciliação ou justificação, sobre a qual o
evangelho prega principalmente. Para que esses benefícios sejam certos, eles não dependem da
condição do cumprimento da lei. Se fosse necessário acreditar que só teríamos o perdão dos
pecados quando tivéssemos cumprido a lei, o perdão dos pecados seria desesperançado. Portanto,
o perdão, a reconciliação ou justificação são concedidos gratuitamente, ou seja, não por causa de
nossa dignidade. No entanto, foi necessário que houvesse um sacrifício por nós: por isso, Cristo
nos foi dado e se tornou uma oferta, para que, por meio d’Ele, afirmemos com certeza que
agradamos ao Pai.
Portanto, esta promessa evangélica de reconciliação é diferente das promessas da lei, pois é
feita gratuitamente por causa de Cristo. Por isso, Paulo enfatiza diligentemente e frequentemente
esta palavra “gratuitamente” para nós, como em Romanos 4. 16: “Portanto, é pela fé, para que
seja segundo a graça, a fim de que a promessa seja firme”. Pois essa palavra “gratuitamente” por
causa de Cristo faz a diferença entre a lei e o evangelho. Se não compreendermos essa
particularidade da promessa gratuita, a dúvida persistirá em nossas mentes, e o evangelho se
tornará uma lei, não trazendo uma certeza maior do perdão dos pecados ou da justificação do que
a lei ou o julgamento natural da razão. Portanto, mesmo que nossos oponentes afirmem estar
ensinando o evangelho, deixam as consciências em dúvida, pois não ensinam sobre a
reconciliação gratuita, mas ensinam a lei ou Hesíodo, ou seja, o julgamento natural da razão. Por
isso, devemos fixar nossa mente e nossos olhos nessa palavra: “gratuitamente”. É necessário
ensinar sobre essa promessa gratuita para estabelecer a certeza, remover a dúvida das
consciências e encontrar consolação sólida nos verdadeiros temores. Pois é nesses temores que a
necessidade dessa promessa gratuita pode ser verdadeiramente avaliada, e é para essa luta que
essa doutrina deve ser especialmente direcionada.
É importante compreender que a promessa do evangelho deve ser recebida pela fé. Paulo
ensina isso em Romanos 4. 16: “Portanto, é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a
promessa seja firme”. João também afirma: “Aquele que não crê em Deus o faz mentiroso”, entre
outros versículos. Portanto, a palavra “gratuitamente” não exclui a fé, mas exclui a condição de
nossa própria dignidade, transferindo a causa dos benefícios de nós para Cristo. Assim, não
exclui a nossa obediência, mas apenas muda a causa dos benefícios de nossa própria dignidade
para Cristo, garantindo assim a certeza desses benefícios. O evangelho prega o arrependimento,
mas, para assegurar a certeza da reconciliação, ensina que os pecados são perdoados e que somos
aceitos por Deus, não por causa da dignidade de nosso arrependimento ou de nossos esforços.
Isso proporciona uma consolação necessária para as consciências. A partir disso, podemos
entender como esses elementos se harmonizam: embora tenhamos dito que o evangelho prega o
arrependimento, ele também promete a reconciliação gratuitamente. Abordaremos essa
comparação de forma mais detalhada um pouco mais adiante.
Cristo definiu o evangelho como a mensagem final em Lucas, quando ordenou a pregação do
arrependimento e do perdão dos pecados em Seu nome. Portanto, o evangelho é a proclamação
do arrependimento e a promessa que a razão humana não pode compreender por si só, mas que é
revelada divinamente. Nessa promessa, Deus nos assegura que, por meio de Seu Filho Cristo, Ele
perdoará nossos pecados, nos declarará justos (ou seja, reconciliados ou aceitos), nos concederá
o Espírito Santo e a vida eterna, contanto que creiamos (ou seja, confiemos) que essas coisas
certamente nos serão concedidas por causa de Cristo. E Deus faz essas promessas gratuitamente,
para que sejam certas. Essa é a definição do evangelho, na qual se englobam três benefícios
específicos do evangelho: o perdão gratuito dos pecados por causa de Cristo, a justificação
gratuita (ou seja, a reconciliação ou aceitação) e a esperança da vida eterna. Discutiremos esses
três aspectos com mais detalhes posteriormente; por ora, basta lembrar que esses são os
benefícios próprios do evangelho, que podem ser resumidos em uma única palavra: justificação.
8. Graça e Justificação
Este trecho é essencial para compreender o evangelho, pois revela o benefício único de
Cristo, oferece consolo sólido para as mentes, ensina o verdadeiro culto a Deus, a verdadeira
invocação e, acima de tudo, distingue a igreja de Deus das outras nações, dos judeus, dos
muçulmanos e dos pelagianos. Estes últimos acreditam que a justiça do homem é alcançada pela
obediência à lei ou à disciplina, e fazem com que duvidemos do perdão dos pecados. No entanto,
há uma grande divergência de opiniões sobre esse assunto, com muitos seguindo julgamentos
humanos e negligenciando a simples doutrina dos profetas, de Cristo e dos apóstolos. Eles
transformam essa doutrina em filosofia, minimizando a gravidade do pecado em sua natureza, e
consideram que o conhecimento filosófico é igual ao conhecimento cristão.
Ao longo dos tempos, essas visões profanas e humanas distorceram a verdadeira doutrina da
igreja. Um exemplo disso são os fariseus, que acreditavam que eram justos por seguirem a lei.
Além disso, eles tinham uma concepção equivocada do Messias, imaginando que Ele viria para
estabelecer um reino terreno, sem compreenderem a necessidade de um sacrifício para aplacar a
ira de Deus contra o pecado e trazer uma justiça diferente. Essa tendência hipócrita também
existiu nas gerações anteriores aos fariseus, afetando a igreja dos pais.
Mas os profetas condenavam esses erros e proclamavam que a justiça da lei não era
suficiente para remover o pecado. Eles afirmavam que o pecado ainda persistia na natureza
humana, mas aqueles que têm fé são justificados, ouvidos e concedidos vida eterna por Deus,
devido à promessa do Salvador. Como Davi disse claramente: “Nenhum ser vivo será justificado
diante de ti”; e em outro lugar sobre o Filho: “Bem-aventurados todos os que n’Ele confiam”; e
Isaías também: “O conhecimento d’Ele justificará a muitos”. Quando Cristo e os apóstolos
renovaram essa doutrina, surgiram imediatamente opiniões humanas dispersas sobre a disciplina,
pois é uma questão importante governar os costumes externos. Surgiram também espíritos
fanáticos que transformaram completamente o evangelho em lei ou farisaísmo. Inventaram a
ideia de que as pessoas eram justas pela lei e, para evitar que Cristo parecesse ter trazido algo
novo, afirmaram que Ele estabeleceu algumas novas leis sobre o celibato e a não-retaliação.
Essas ideias delirantes surgiram logo após os apóstolos. Não é surpreendente, portanto, que uma
névoa escura tenha se estabelecido posteriormente. Embora alguns piedosos tenham mantido a
verdadeira opinião, há uma grande diversidade entre os escritores, com cada um expressando
melhor do que o outro. Agora, eu só quis mencionar isso para que o leitor piedoso entenda que
uma explicação sobre a justificação é necessária e que devemos abraçar com gratidão o benefício
de Deus, que reavivou a luz do evangelho. Não se pode negar que na doutrina dos monges há
erros, os quais, embora agora tenham sido corrigidos em certo grau, ainda são mantidos por eles
mesmos. Eles afirmam que não se ensina corretamente sobre o perdão dos pecados, que o perdão
é recebido gratuitamente pela fé em Cristo, e não aceitam que a fé signifique confiar na
misericórdia de Deus. Pelo contrário, eles sempre ordenam que duvidemos se estamos em graça.
Além disso, afirmam que merecemos o perdão devido ao arrependimento e ao amor. No entanto,
o arrependimento ou a dor ou o medo, sem a confiança na misericórdia, levam à desesperança,
como Paulo diz: “A lei produz ira”. Eles também afirmam que os regenerados devem obedecer à
lei de Deus, que são justos por cumprir a lei e que isso em si é o mérito e o caminho para a vida
eterna. Além disso, afirmam que os regenerados devem duvidar se estão em graça e que devem
permanecer nessa dúvida. Essa dúvida é claramente contrária à ética. Esses erros não são leves,
mas lançam trevas sobre o evangelho, obscurecem o benefício de Cristo, privam as consciências
da verdadeira consolação e distorcem a verdadeira invocação. Portanto, é necessário advertir a
igreja sobre essas questões importantes. Agora, explicarei clara e diretamente o resumo dessa
questão.
Em primeiro lugar, enfatizamos a importância da disciplina e afirmamos que todos os seres
humanos devem ser guiados por ela, ou seja, pela justiça que até mesmo aqueles que não foram
regenerados podem e devem exercer. Como Paulo diz: “A lei é dada para os injustos”. Deus pune
a transgressão da disciplina com punições temporais e eternas. Reconhecemos o valor da
disciplina, pois Paulo a descreve como um tutor que nos leva a Cristo, uma vez que o evangelho
não é eficaz para aqueles que continuam a agir contra sua consciência. Embora de fato nada
humano seja mais belo do que a disciplina, como verdadeiramente disse Aristóteles, que a justiça
é mais formosa do que a Estrela da Tarde e a Estrela da Manhã, não se deve adotar a opinião de
que ela seja o cumprimento da Lei, que mereça a remissão dos pecados, ou que através dela o
homem se torne justo, ou seja, reconciliado com Deus. Paulo diz que os judeus veem o rosto de
Moisés coberto, ou seja, não compreendem corretamente a lei de Deus, que é uma voz que acusa
o pecado na natureza humana e revela a ira de Deus contra o pecado, despertando um verdadeiro
senso de pecado.
No entanto, quando o evangelho ensina sobre a compreensão da lei e o reconhecimento do
pecado, muitos, inflados pela convicção de sua própria sabedoria, consideram isso como meras
exagerações desnecessárias, seguindo a filosofia estoica. Eles argumentam que a disciplina em si
já é bastante desafiadora e que não se requer mais nada, afirmando que qualquer esforço
adicional merece o perdão dos pecados e é considerado justiça aos olhos de Deus. Essas
concepções errôneas foram distorcidas por Orígenes e pelos monges. Portanto, é necessário
compreender a verdadeira convicção de Paulo diretamente através de suas próprias palavras e em
consonância com o restante das Escrituras proféticas e apostólicas, ao invés de se basear em
opiniões humanas.
Segundo: após termos discutido sobre a disciplina, agora voltamos nossa atenção para a
causa. A pregação da igreja tem sido a mesma desde o princípio, desde Adão até o fim. Já no
paraíso, foi estabelecido o ministério da pregação do arrependimento, juntamente com a
promessa de um Salvador vindouro, pela qual os primeiros pais entendiam que seriam aceitos
por Deus. Ao longo do tempo, essa promessa foi gradualmente revelada com maior clareza, até a
pregação de Cristo, que Ele mesmo exercia esse ministério. Ele também ordenou aos apóstolos
que continuassem com esse mesmo ministério, dizendo: “Vão e anunciem a necessidade de
arrependimento e a oferta do perdão dos pecados em Meu nome”[79]. Portanto, a pregação do
arrependimento deve sempre ressoar na igreja, sendo proclamada pela voz da lei, por meio da
qual Deus acusa nossos pecados, tanto os externos quanto os internos, como o temor a Deus, a
falta de amor a Deus e a falta de confiança em Deus. Além disso, a pregação também é feita pela
voz do evangelho, acusando o mundo por não ouvir o Filho de Deus, por não se comover com
Sua paixão e ressurreição, entre outras coisas. Por isso, Cristo disse: “O Espírito Santo
convencerá o mundo do pecado, porque não creem”; e em Romanos 1. 8: “Pois do céu é revelada
a ira de Deus contra toda impiedade e injustiça dos homens”, entre outros versículos.
Assim como Adão ou Davi se assustaram ao ouvir a voz acusadora de Deus, da mesma
forma, uma mente não endurecida ou obstinada se assusta e reconhece que Deus está
verdadeiramente irado com o pecado e o pune. Esses terrores são frequentemente descritos nos
Salmos, onde expressam a falta de saúde e paz devido à ira de Deus por causa dos pecados
cometidos. Além disso, todas as calamidades humanas podem ser entendidas como a voz da lei,
advertindo-nos sobre a ira divina e nos chamando ao arrependimento.
Agora, passamos ao terceiro ponto: quando a mente humana é aterrorizada pela voz
acusadora dos pecados, é necessário que ela ouça a promessa apresentada no evangelho e
reconheça que os pecados são perdoados gratuitamente pela misericórdia de Cristo, e não por
causa do arrependimento, amor ou quaisquer outras obras. Assim, quando a mente se eleva pela
fé, ocorre o perdão dos pecados e a reconciliação com Deus. Se tivéssemos que depender do
arrependimento ou amor suficientes para obter o perdão dos pecados, cairíamos em desespero.
Portanto, para obtermos um consolo certo e firme, é importante entender que o perdão de Deus
não depende de nossa própria dignidade ou mérito, mas é concedido por Sua misericórdia,
prometida em Cristo. Além disso, quando Deus perdoa os pecados, Ele também nos concede o
Espírito Santo, que começa a operar novas virtudes em nós, como é dito em Gálatas 3. 14: “Para
que recebamos a promessa do Espírito mediante a fé”. Essa compreensão não causa perplexidade
e é claramente entendida por mentes piedosas na igreja, que estão familiarizadas com os
exercícios espirituais, temores, consolações e invocações a Deus.
Para aprofundar nosso entendimento, devemos acrescentar testemunhos bíblicos sobre
justificação, fé e graça. Antes de fazer isso, é importante esclarecer cuidadosamente os termos
para evitar mal-entendidos e confusões.
Já foi tratado anteriormente sobre o pecado e a lei. Agora abordarei outros temas, como a
justificação, a fé e a graça.
A justificação implica o perdão dos pecados, a reconciliação ou a aceitação da pessoa para a
vida eterna. Na perspectiva dos hebreus, a justificação era um termo jurídico, similar a dizer: “O
povo romano justificou Cipião, acusado pelos tribunos”, ou seja, absolveu ou o declarou justo.
Paulo utilizou a palavra “justificar” de acordo com o costume hebraico, para se referir ao perdão
dos pecados, reconciliação ou aceitação. Todos os estudiosos reconhecem a força dessa
expressão hebraica, e existem inúmeros exemplos que a confirmam.
No entanto, como mencionei anteriormente, embora Deus conceda o perdão dos pecados e,
ao mesmo tempo, outorgue o Espírito Santo, que inicia a manifestação de novas virtudes, a
mente, atormentada, busca primeiramente o perdão dos pecados e a reconciliação. Ela se
angustia e luta contra esse medo real, sem entrar em discussões sobre quais virtudes são
infundidas, embora acompanhem a reconciliação. No entanto, não devemos julgar, de forma
alguma, que nossa dignidade ou pureza sejam a causa do perdão dos pecados. É por isso que a
palavra “gratuitamente” é repetida tantas vezes.
PRIMEIRA QUESTÃO
Quais obras devem ser feitas?
As boas obras que nos são ordenadas na Palavra de Deus são abrangidas pelos Dez
Mandamentos. É importante entender que essas obras não se limitam apenas às ações externas
descritas no Decálogo, que também podem ser imitadas pelos ímpios de certa forma, mas sim se
originam de uma obediência interna. São obras interiores que estão relacionadas ao primeiro
mandamento: crer na Palavra de Deus, temer a Deus, confiar em Deus. O temor a Deus se
manifesta na contrição, enquanto a fé se torna mais evidente quando é capaz de fortalecer os
temerosos. No entanto, essas virtudes devem ser duradouras e praticadas ao longo de toda a vida.
A fé, que nos assegura que fomos aceitos por Deus, pois reconhecemos Sua bondade para
conosco, gera o amor a Deus, que nos leva a submeter-nos à Sua vontade. A partir daí, seguem-
se as demais boas obras de acordo com todos os mandamentos.
Os oponentes desejam parecer que ensinam excelentemente a doutrina das boas obras, mas
geralmente falam apenas sobre hipocrisia externa ou cerimônias humanas. Ignoram e
obscurecem as obras da primeira tábua dos mandamentos e a fonte das boas obras. Nada dizem
sobre a fé, que é a confiança na misericórdia e na reconciliação gratuita, necessária em toda
invocação. Mas ao removerem essa fé, a dúvida prevalece, levando ao desprezo por Deus ou à
fuga d’Ele quando está irado, resultando em uma invocação vazia. Além disso, os hipócritas
aprovam e confirmam essa dúvida, negando que a fé deva ser entendida como confiança na
misericórdia de Deus, mas apenas como um conhecimento, como o que os demônios têm. De
fato, é lamentável que a doutrina dos profetas e apóstolos seja tão corrompida, e devemos
suportar com grande angústia e sofrimento do coração antes de conceder que a fé não significa
confiança na misericórdia. Por exemplo, “Abraão creu em Deus”, “sendo justificados pela fé,
temos paz”, “temos acesso a Cristo pela fé” e “agora vivo pela fé no Filho de Deus”. Não
podemos permitir que essas palavras sejam ridicularizadas e corrompidas, mas devemos
compreender claramente que elas nos ensinam sobre a confiança na misericórdia e que, em toda
invocação, aprendemos a nos aproximar de Deus confiando em Seu Filho, em vez de nos
aproximarmos d’Ele com base em nossa própria dignidade.
Portanto, essa mesma fé, ou seja, a confiança na misericórdia, é a obra boa mais importante,
que deve ser praticada em todos os perigos da vida e em toda invocação. Davi, ao enfrentar
desafios, crê que agrada a Deus por causa da promessa e porque sabe que foi chamado a
obedecer em seu ofício. Ele obedece, pede e espera que Deus cuide dos perigos. Essa adoração
interna distingue a verdadeira igreja de Deus da multidão restante. Cícero leva uma vida honrada,
é meritório para toda a humanidade em seu governo do Estado e, de fato, também entende que
Deus é uma mente eterna e a causa de tudo, como Platão definiu, e que as imagens adoradas pelo
povo não têm divindade. No entanto, a mente de Cícero é obscurecida pela dúvida em relação à
providência divina, porque ele desconhece as promessas de Deus e duvida se ele e os outros são
ouvidos e ajudados por Ele, especialmente em momentos de calamidade, quando ele se irrita com
Deus por tê-lo abandonado. O mesmo acontece com Saul. Portanto, há uma diferença entre
Cícero e Jeremias: Jeremias serve à sua república, mas a fé brilha nessa obra. Jeremias crê que
agrada a Deus, que é ouvido e preservado por Ele, mesmo quando vê a si mesmo sendo
envolvido por uma grande quantidade de calamidades, sua pátria sendo destruída, os cidadãos
sendo dispersos, muitos dos que foram claramente salvos pelo benefício divino abandonando
Deus, guerreando uns contra os outros e, por fim, sendo morto ele mesmo. Esses eventos
mergulharam Cícero nas trevas e na dúvida infinita, e a mente humana não pode pensar em nada
além do que é expresso por Lucano:
“Será que não há nada fixo, mas o destino vagueia incerto,
Trá-lo e leva-o em suas reviravoltas, e os mortais são governados pelo acaso?”[82].
Jeremias, com grande constância, superou essas dúvidas e sentiu que estava agradando a
Deus. Ele buscou e esperou bons resultados em seu governo, que se concretizaram após setenta
anos.
Jesus ordena esse culto interior, no qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em
espírito e em verdade. Isso significa que eles se aproximam de Deus por meio de movimentos
espirituais e verdadeiros, como o temor, o arrependimento, a fé e a invocação, entre outras coisas
semelhantes. Paulo chama esse culto de racional[83], significando que a mente compreende a
Deus, reconhece a ira de Deus e, novamente, se sustenta pela fé. Essa fé contempla o Filho de
Deus e reconhece que somos aceitos por Deus por meio de Cristo, o Mediador. Isaías também
prega sobre esse culto interior, repreendendo os hipócritas que consideram o culto como uma
mera disciplina externa e as cerimônias do templo. Ele declara: “Assim diz o Senhor: a quem
olharei? Aquele que é humilde e contrito de espírito e treme diante da minha palavra”. Da mesma
forma, no Salmo 49, ele critica a superstição dos cultos externos e exige o culto interior
verdadeiro e a verdadeira invocação: “Invoque-Me no dia da angústia”, etc.
Isso é o suficiente para resumidamente abordar a primeira questão e o culto interior. Agora,
como a fraqueza da mente humana é tão grande, e há tanta dúvida, uma vez que essa natureza
fraca dos seres humanos está sobrecarregada com um imenso fardo de calamidades, é comum
perguntar como podemos oferecer verdadeiros cultos.
SEGUNDA QUESTÃO
Como podem ser realizadas as boas obras?
Não devemos permitir a indulgência à preguiça humana. Já foi dito várias vezes que os
costumes externos podem ser governados pela diligência e força humana, e que Deus exige essa
diligência, como está escrito: “A lei é estabelecida para os injustos” e também: “Não entristeçam
o Espírito Santo”. No entanto, a obediência interior não pode ser iniciada sem o conhecimento do
evangelho e sem a atuação do Espírito Santo. O amor a Deus não pode surgir primeiro, a menos
que ouçamos a voz do evangelho sobre o perdão. Uma mente ignorante da reconciliação ou
despreza a Deus ou foge de Sua ira. Portanto, o amor não pode ser iniciado sem primeiro ouvir a
voz do evangelho sobre a reconciliação. Isso é bastante claro. Para que o amor surja, é necessário
que a fé, ou seja, a confiança na misericórdia da qual falamos, o preceda. Além disso, é
importante saber que quando as mentes perturbadas são elevadas pela fé, ao mesmo tempo o
Espírito Santo é dado, despertando novos movimentos no coração, de acordo com a lei de Deus.
O apóstolo Paulo claramente ensina em Gálatas 3. 14 que o Espírito Santo é dado pela fé: “Para
que recebêssemos pela fé a promessa do Espírito”. Zacarias também descreve essa concessão e
os principais afetos do Espírito Santo com palavras mais doces em Zacarias 12. 10: “Derramarei
sobre a casa de Davi o Espírito da graça e das súplicas”. Ele chama de “Espírito da graça” aquele
que testemunha em nossos corações que Deus está propício a nós, movendo nossos corações para
que concordemos com a promessa e nos consideremos aceitos por Deus. Em seguida, quando
reconhecemos a misericórdia de Deus, O invocamos, O amamos e nos submetemos a Ele. Por
isso, ele também o chama de “Espírito das súplicas”. Esses cultos principais, a fé e a invocação,
são as fontes de toda obediência. Portanto, devemos extrair tanto ensinamento quanto exortação
dessa declaração. Devemos lembrar que somos ordenados a oferecer esses cultos, a crer em Deus
e a invocá-Lo. Portanto, o Espírito Santo é entristecido e aflito, a fé se extingue e a invocação é
perturbada devido aos deslizes de uma má consciência.
Após a queda da humanidade, uma grande fraqueza se seguiu e as armadilhas do diabo se
aproximaram. Ele espalha ódio a Deus entre a humanidade, busca aumentar a desobediência,
incentiva insultos e blasfêmias, instiga a natureza humana fraca a cometer vários pecados e leva
mentes perversas a inventar opiniões contra a Palavra de Deus. Ele despedaça a igreja e os
reinos, tumultua o mundo com guerras injustas e busca expulsar a igreja de seus lares para
dissipá-la e destruí-la. Esses são exemplos dos tristes casos que ocorrem diariamente em toda a
humanidade, nos quais destinos miseráveis acometem homens ilustres, como Saul, Jônatas,
Heitor, Príamo, Aquiles, Ajax, Pompeu, César e muitos outros. As lamentações sobre a
inconstância da fortuna são bem conhecidas, sobre as quedas repentinas de uma fortuna
florescente. Por um acidente repentino, aqueles que eram valorosos caem.
Embora todo o gênero humano esteja sujeito a perigos constantes, a igreja é abalada de
forma ainda mais intensa, pois o diabo a ataca com grande violência. Como foi dito no Gênesis, a
serpente ferirá o calcanhar dela. Assim como um veneno mortal infligiu uma ferida considerável
a Davi, o diabo está à espreita como um leão rugindo, procurando a quem devorar. Sua fúria se
espalhou pela igreja especialmente nos últimos novecentos anos, com o crescimento do domínio
maometano. Isso resultou na ruína das igrejas e na aparência caótica dos reinos devido a tantas
dissensões entre os reis. É inevitável pensar que em breve os turcos conquistarão o resto da
Europa.
Portanto, quando as circunstâncias mostram claramente que o diabo está agindo e nos
atacando, e quando a fraqueza da natureza humana é evidente, devemos recorrer à ajuda que nos
é revelada no evangelho. Mas qual é essa ajuda?
Inicialmente, o Filho de Deus promete estar presente conosco e derrotar a violência do
diabo. João declara que o Filho de Deus se manifestou para destruir as obras do diabo, como o
pecado, a morte, as blasfêmias e as divisões promovidas por ele. Assim, Adão e Eva foram
salvos em meio à sua aflição, confiando na promessa e sustentados pela fé. Eles pediram a Deus
uma descendência que propagasse a verdadeira doutrina. O Filho de Deus os protegeu contra o
diabo e, pelo Espírito Santo, consolou suas almas aflitas. Jacó também menciona o Filho de Deus
como o anjo que o livrou de todo mal e abençoou seus filhos. Essas são funções específicas do
Filho de Deus: abençoar e libertar do mal, da ira de Deus, da morte eterna e de outras punições
acompanhadas da ira divina. Em Isaías, Cristo é chamado Emanuel, que significa “Deus
conosco”, pois Ele está presente para nos auxiliar, cuidar de nós e afastar o diabo.
Além disso, Ele derrama o Espírito Santo nos corações daqueles que invocam Seu nome.
Como Jesus disse em João 14. 18, não nos deixará órfãos, e se pedirmos algo em Seu nome, Ele
o fará. Ele também pedirá ao Pai, que nos dará outro Consolador, o Espírito da verdade. Se
resistirmos aos maus sentimentos e armadilhas do diabo e invocarmos a Deus confiantemente,
podemos realmente experimentar essas ajudas. No entanto, é importante fazer uma distinção
entre a verdadeira invocação do povo de Deus e a invocação judaica ou turca. Em toda
invocação, a fé deve estabelecer duas coisas desde o início: a crença e a invocação desse Deus
eterno, que é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que foi crucificado e ressuscitou por nós; e, em
seguida, as súplicas, para que nossas orações sejam verdadeiramente ouvidas e aceitas por meio
desse Mediador. Os piedosos devem observar diligentemente esses pontos, pois essa invocação é
o que distingue especialmente a igreja daquelas nações que lutam contra o evangelho.
Devemos sempre ter em mente a doutrina relacionada à segunda questão, reconhecendo que
o Filho de Deus é verdadeiramente nosso ajudador e defensor. Assim como Paulo menciona sua
presença com o povo no deserto, e sabendo que o Espírito Santo é verdadeiramente concedido
àqueles que O invocam, como está escrito: “Ele subiu; deu dons aos homens”. Dessa forma, Ele
governa, distribuindo seus dons, justiça, vida, orientação, governo, sucesso e outros benefícios.
A fim de experimentar essa ajuda de Deus, devemos nos firmar nos testemunhos do evangelho e
dissipar as trevas da mente humana, que muitas vezes imagina que Deus está ocioso e não se
importa com cada indivíduo, assim como Homero descreve Júpiter partindo para um banquete na
Etiópia. Essas fantasias revelam os pensamentos humanos equivocados sobre Deus, os quais eu
mencionei para que sejam eliminados e para que possamos obter um verdadeiro conhecimento de
Deus, reconhecendo verdadeiramente a ira e a misericórdia de Deus.
TERCEIRA QUESTÃO
Como as boas obras agradam a Deus?
As mentes piedosas enfrentam uma angústia constante e desejam agradar a Deus por meio da
obediência. No entanto, diante de nossa grande fraqueza, percebemos que nossa obediência é
imperfeita, limitada, impedida e contaminada, como bem expressou Paulo quando disse: “Não
faço o bem que quero, mas o mal que não quero”. Diante disso, surge a pergunta: como
podemos, então, agradar a Deus?
Por outro lado, os hipócritas e aqueles que são ansiosos e temerosos têm uma visão
distorcida sobre esse assunto. Os hipócritas acreditam que estão cumprindo a lei, que são justos e
aceitos por Deus devido à sua própria dignidade ou ao cumprimento rigoroso da lei, como o
fariseu em Lucas 18. Eles são aqueles que se admiram de suas virtudes, atribuem-se sabedoria e
justiça exageradas, especialmente quando estão em momentos de prosperidade e sucesso. Eles
acreditam que podem governar com base em seu próprio conselho e consideram que seus êxitos
são frutos de sua própria virtude e diligência, chegando a se colocar acima dos outros por conta
de sua sabedoria e justiça. Um exemplo disso é Nabucodonosor, que, diante de suas grandes
realizações, declarou: “Esta é a grande Babilônia que eu construí pelo meu poder”. Saul também
pensava que seu reinado em Israel era estabelecido por sua própria virtude, quando, na verdade,
deveria reconhecer que seus sucessos eram frutos da virtude de Deus e da benevolência divina, e
que ele não poderia governar nem realizar feitos grandiosos sem a graça de Deus. Ele deveria
servir a Deus com temor, para não ser abandonado por Ele. No entanto, Saul se tornou mais
confiante devido aos seus sucessos e acabou agindo com arrogância, chegando ao ponto de
atacar os sacerdotes. Essa imagem dos hipócritas é apresentada, e não são poucos aqueles que
estão confiantes, agradando a si mesmos por causa de suas qualidades, aplaudindo sua própria
sabedoria, diminuindo a doutrina divina e zombando do Evangelho do alto, usando artifício,
fraude e violência para oprimir aqueles aos quais são hostis, até mesmo assumindo títulos
honrosos, pois se vangloriam de lutar pela glória de Deus, pela verdade, de serem cidadãos fiéis
da igreja, membros do povo de Deus, porque defendem o poder ordinário e o consenso de longa
data. Esses são os mesmos tipos de pontífices que se opuseram aos apóstolos no passado, e
vemos muitos casos semelhantes, como o de Vicelio[84] e outros, nos últimos anos. No entanto,
também há aqueles que são temerosos, reconhecendo sua fraqueza e lutando com desespero,
como Pedro, que, consternado, disse: “Afaste-se de mim, Senhor” (Lucas 5. 8). Nesse contexto, é
necessário repreender a arrogância e oferecer verdadeiro consolo aos temerosos.
Primeiramente, é importante destacar que, mesmo nos indivíduos regenerados, ainda existem
pecados, ou seja, imperfeições que nascem conosco, dúvidas e muita ignorância. Além disso,
eles não temem a Deus tanto quanto deveriam e não possuem um amor fervoroso por Ele,
conforme a lei ordena. Há muitos pecados presentes, como o amor ilícito, ódio, desejo de
vingança, inveja, rivalidade e avareza. Também ocorrem quedas no chamado de Deus e
negligências evidentes, bem como raiva direcionada a Deus em momentos de aflição. Com
frequência, buscam-se ajuda humana com uma aparência de honestidade, mas devido à falta de
confiança em Deus. Muitas vezes, buscam-se coisas desnecessárias além do necessário,
confiando em sua própria sabedoria ou poder, assim como Josias, que iniciou uma guerra
desnecessária contra os egípcios.
Por fim, a carga do pecado que permanece nos regenerados é muito maior do que qualquer
ser humano pode compreender. E não devemos considerar levianamente a afirmação de “quem
entende seus próprios erros?”. Seria demasiado enumerar as várias formas de pecados que
persistem nos santos. Mas Paulo resumiu tudo quando, em Romanos 7, fala sobre a obstinação
interna contra todos os mandamentos. No entanto, os hipócritas orgulhosos não compreendem
esses pecados ocultos e, pelo contrário, os monges ensinam que essas dúvidas sobre a
providência, a ira de Deus, a misericórdia e afetos viciosos não são pecados, a menos que haja
consentimento. Eles não apenas debatem sobre as palavras, mas também negam que esses vícios
sejam contrários à lei de Deus. Essa minimização é falsa e insultuosa contra a lei de Deus,
obscurece a doutrina da graça e da justiça pela fé e confirma a falsa convicção de que os
regenerados satisfazem a lei de Deus.
Portanto, para repreender a arrogância, vou apresentar testemunhos que mostram que os
regenerados nesta vida não satisfazem a lei de Deus e permanecem com o pecado nesta natureza
mortal: Salmo 143. 2 diz: “Não entres em juízo com o seu servo, pois diante de você não será
justificado todo ser vivente”; 1 João 1. 8 afirma: “Se dissermos que não temos pecado,
enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós”; Salmo 19. 13 clama: “Quem pode
discernir os próprios erros? Purifica-me das faltas ocultas”; Romanos 7. 23 revela: “Vejo nos
meus membros outra lei que guerreia contra a lei da minha mente e me torna prisioneiro da lei do
pecado que está em meus membros”. Embora os sofistas menosprezem essas passagens e
afirmem que há uma metalepse na palavra “pecado” e que se refere à punição do pecado, à
inclinação proveniente da queda dos primeiros pais, Paulo refuta essa evasão quando define o
pecado em si mesmo, afirmando que é um mal presente em nossos corpos, lutando contra a lei de
Deus.
Além disso, neste ponto discutimos se o pecado remanescente na natureza humana é algo
que luta contra a lei de Deus. Embora os julgamentos humanos minimizem essa corrupção, Paulo
usa palavras fortes para destacar a gravidade da questão. Ele descreve como essa depravação luta
dentro de nós, opondo-se à lei da mente e alimentando sentimentos de segurança carnal e
desconfiança injusta. Essa depravação infla a mente com admiração própria e arrogância,
desperta desejos, ódio e vingança, levando a buscar proteções ilícitas. No final das contas, essa
depravação nos mantém cativos, pois abala os corações com medo e incita à desesperança e à
fuga de Deus. Esses não são males leves, como a filosofia humana crê, mas causam grande
tormento aos santos. Podemos ver exemplos disso em Moisés, que ficou abalado e perturbado
diante de uma agitação e dúvida súbitas, e em Davi, que ordenou a contagem do povo movido
pelo orgulho e planejou uma nova ordem no reino sem o mandato de Deus.
A oração ensinada por Jesus em Mateus 6. 12, “Perdoa-nos as nossas dívidas”, mostra que
existem pecados ao longo de toda a vida pelos quais precisamos buscar o perdão. Além disso,
somos ensinados a reconhecer nossa servidão e inutilidade diante de Deus, mesmo quando
cumprimos tudo o que nos foi ordenado (Lucas 17. 10). Paulo também reconhece essa realidade
ao afirmar que, embora nada sinta contra si mesmo, não se considera justificado (1 Coríntios 4.
4). Ele entende que é necessário ter uma justiça de boa consciência, mas reconhece que não tem a
certeza absoluta do perdão dos pecados e da reconciliação com Deus. No entanto, ele confia que
Deus o aceita por meio do Filho Mediador, pela fé. O Salmo 130. 3 expressa a compreensão de
que, se Deus considerar as iniquidades, ninguém poderá permanecer em pé. Essas palavras
reconhecem a presença do pecado e não o minimizam. Elas também revelam a magnitude da ira
de Deus, que não pode ser suportada a menos que Ele a aplaque por Sua imensa misericórdia por
meio do Filho. A natureza humana não pode suportar a ira e os castigos justos de Deus, como
confessado por Ezequias quando disse: “Como um leão, Ele quebrou todos os meus ossos”
(Isaías 38. 13), e por Jó quando declarou: “Deus, contra quem ninguém pode resistir” (Jó 9. 13).
Embora, portanto, existam pecados presentes e os piedosos reconheçam de alguma forma a
ira, eles creem que agradam a Deus por causa da prometida misericórdia e se sustentam nesse
consolo, como o mesmo Salmo diz: “Minha alma espera na Sua palavra; minha alma confia no
Senhor, porque com o Senhor há misericórdia” (Salmo 32. 5). “Eu disse: confessarei minhas
injustiças ao Senhor; e Tu perdoaste a impiedade do meu pecado” (Salmo 32. 5). Por isso, todo
santo ora a Ti. É dito claramente que os santos buscam o perdão dos pecados: “Diante de Ti não
há inocente”, ou seja, mesmo que alguém não possa ser acusado por um julgamento humano, Tu
podes acusá-lo (Êxodo 34. 7). “A Ti, Senhor, pertence a justiça, mas a nós a confusão”, ou seja,
reconhecemos que Tu és justo e que somos justamente punidos; “mas a misericórdia é Tua,
Senhor nosso Deus” (Daniel 9. 7,9). Portanto, oramos não por causa de nossa justiça, mas por
causa de Tuas muitas misericórdias; ouve-nos por causa do Senhor, ou seja, por causa do
Mediador enviado. Este trecho é um testemunho notável do consenso dos profetas e dos
apóstolos. De fato, Daniel ensina a mesma coisa que Paulo discute tão abundantemente: que
devemos estabelecer que a natureza humana é viciada e não satisfaz a lei, mas que somos
verdadeiramente aceitos por Deus por Sua misericórdia, por causa da promessa do Senhor. Pois
Daniel também acrescenta expressamente: “Por causa do Senhor”.
Comparemos essas evidências com Paulo, para que possamos ver que existe uma única e
contínua sentença da Igreja Católica de Deus, dos Pais, dos profetas, de Cristo e dos apóstolos, e
que abraçamos esse consenso e não nos afastamos dele, mesmo que a turbulência dos monges
recentes tenha transmitido uma doutrina diferente, que misturou erroneamente a filosofia diluída
com a doutrina do Evangelho.
1 Coríntios 1. 31: “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”, isto é, não podemos nos
gloriar por sermos sem pecado, mas nos gloriaremos no Senhor, especialmente na promessa da
misericórdia. Como também é dito em outro lugar: “De fato, Deus encerrou a todos na
desobediência, para que a todos tenha misericórdia” (Romanos 11. 32); também em Romanos 3.
9 é dito: “Já concluímos que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado”. E é
acrescentado um pouco depois uma afirmação enfática: “Para que toda boca esteja fechada e
todo o mundo seja culpável perante Deus”. Repete-se tantas vezes essa universalidade para que
não haja dúvida de que todos são acusados. Reconheçamos, portanto, nossa fraqueza e
admitamos também que há pecados nos regenerados, ou seja, a corrupção da natureza e muitos
afetos viciosos, e tremamos diante do conhecimento da ira de Deus contra esses males, e
lamentemos que ainda haja tantos vícios em nós contra a vontade de Deus, e que cresça em nós
um verdadeiro arrependimento, e o reconhecimento de nossa fraqueza extermine a arrogância,
nos submeta a Deus, nos encoraje ao temor de Deus, a implorar misericórdia e pedir ajuda.
Após repreender a arrogância, é importante instruir as mentes piedosas sobre a fé, a fim de
evitar que caiam em desespero. Além disso, é necessário ensinar-lhes como a obediência é
agradável a Deus. Neste ponto, sempre devemos unir essas três coisas.
Primeiro, que o regenerado reconheça que foi reconciliado com Deus pela fé, por causa do
Filho de Deus, ou como frequentemente se diz, que a pessoa é recebida por causa do Filho de
Deus, pela fé gratuita; segundo, que ele reconheça que, nesta vida, permanece a fraqueza e os
pecados nos regenerados e que ele verdadeiramente lamente ainda ter a escuridão, a depravação,
a desordem (άταξιαν), os afetos viciosos contra a lei de Deus; terceiro, que ele estabeleça que a
obediência e a justiça de uma boa consciência devem ser iniciadas, e que, embora estejam longe
da perfeição da lei, ainda assim agradam a Deus nos reconciliados, por causa do Filho Mediador,
que apresenta nossa vocação e nossos cultos ao Pai e perdoa a fraqueza. Assim, primeiro a
pessoa é reconciliada por causa de Cristo, depois as obras também são recebidas, e a fé brilha em
ambos. Portanto, Pedro diz: “Oferecei sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo”
(1 Pedro 2. 5).
Devemos, diariamente, ponderar sobre esses três elementos em relação às nossas obras. Não
devemos duvidar de que Deus valoriza as boas obras, pois Ele cuida delas e exige obediência. A
contumácia, por sua vez, é punida com penas terríveis, tanto nesta vida como na eternidade,
causando turbulência na consciência. Portanto, é essencial buscar uma consciência justa e saber
como agradar a Deus, pois uma consciência abalada ou cheia de dúvidas não pode se aproximar
d’Ele. Devemos diligentemente cultivar esses princípios em nossa mente, pois é através dessas
práticas que a fé brilha, o verdadeiro conhecimento de Deus se desenvolve e a nova vida
espiritual cresce.
A fé se manifesta de duas maneiras nas obras: primeiro, ao reconhecermos que a obediência
agrada a Deus, como mencionado anteriormente; em segundo lugar, ao buscarmos ajuda, assim
como Davi sabia que governar era uma tarefa difícil e perigosa, mas acreditava que suas ações
eram agradáveis a Deus devido à prometida misericórdia. Além disso, ele buscava auxílio e
trabalhava para proteger o povo e governar os costumes dos cidadãos da melhor maneira
possível. Essa exortação é especialmente reconfortante para as mentes piedosas que, embora se
esforcem para obedecer a Deus, reconhecem as fraquezas humanas, as falhas cometidas e se
entristecem com elas, chegando quase ao desespero. O que poderia ser mais doce do que ouvir as
palavras de Paulo: “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”?
Isso significa que, embora os regenerados não sejam perfeitos, Deus os acolhe e os declara justos
por meio da fé em Seu Filho. Assim, Ele também aceita a obediência deles por causa do Filho.
Assim como é declarado aos Colossenses: “Em Cristo, vocês foram aperfeiçoados”,
entendemos que, mesmo que os regenerados não alcancem a perfeição da lei, eles são
considerados justos e agradáveis a Deus por meio de Cristo. Nisso, devemos reconhecer e
celebrar a grandeza da misericórdia de Deus, que de fato recebe essa obediência imperfeita,
manchada e contaminada pelos afetos viciosos daqueles que foram reconciliados. Ele a recebe
não por causa da dignidade de nossas virtudes, mas por causa do Filho de Deus. Como Romanos
6. 14 afirma: “Pois vocês não estão debaixo da lei, mas debaixo da graça”. A questão aqui é se a
obediência agrada a Deus mesmo quando não satisfaz plenamente a lei. Paulo responde
afirmativamente, pois não estamos sob a condenação da lei, mas sim sob a graça, ou seja, fomos
reconciliados e acolhidos na graça. Romanos 8:34 nos diz: “Quem os condenará? Cristo Jesus,
que morreu; mais do que isso, que ressuscitou e está à direita de Deus, e também intercede por
nós”. Isso significa que os santos agradam a Deus por meio da intercessão de Cristo. E Romanos
3. 31 declara: “Estabelecemos a lei pela fé”. Embora seja uma afirmação breve, ela ensina o que
estamos destacando aqui: a obediência não pode começar nem agradar a Deus, a menos que a fé
seja acrescentada. É pela fé que nos tornamos agradáveis a Deus e a obediência se inicia, tudo
isso por causa do Mediador. Assim, ao dizer “Estabelecemos a lei”, não estamos anulando a
importância da obediência, mas enfatizando que exigimos, retemos e ensinamos como ela pode
ser cumprida e agradar a Deus.
Após explicar como essa obediência que todos experimentamos está longe de alcançar a
perfeição da lei, acrescentemos agora testemunhos claros que afirmam que as obras dos santos
ou a obediência incipiente são agradáveis a Deus. Com estas palavras, devemos acender o zelo
para fazer o bem e, ao mesmo tempo, nos lembrar da imensa misericórdia de Deus, que não
apenas aprova, mas também honra e recompensa essa obediência imperfeita. Observemos a nós
mesmos e reconheçamos quão rara é a virtude excelente. São como imagens, algumas virtudes,
em grau insignificante e passageiro nos seres humanos, que de forma alguma satisfazem a lei de
Deus, que requer uma luz e ordem muito maiores na natureza humana. Ainda assim, essas
imagens são aceitas, como já foi dito, por causa do Filho que intercede incessantemente por nós.
Por isso, em Romanos 10. 10, lemos: “Com o coração se crê para justiça, e com a boca se faz
confissão para a salvação”. Quando se exige a confissão, significa que toda a vida deve ser uma
confissão, pois a vida inteira deve ser direcionada para celebrar Deus, mostrar o que professamos
e glorificar o evangelho, como está dito: “Deixe a sua luz brilhar”. Assim como um líder mostra
o que pensa, invoca a Deus em perigos, demonstra sua obediência a Deus e rejeita cultos ímpios,
tornando-se sinais de confissão: assim também cada vocação deve ter os sinais da confissão. Um
estudioso deve mostrar sua crença, invocar a Deus em todos os momentos da vida cheia de
perigos, refutar opiniões ímpias e, ao governar seu comportamento, demonstrar obediência a
Deus para servir ao evangelho. De fato, a vida dos seres humanos está tão unida que a confissão
deve brilhar em sua conversa e no cumprimento de seus deveres.
Mas por que ele diz: “a confissão é para a salvação”? A resposta é simples: mesmo que
sejamos justificados pela fé em Cristo, isto é, aceitos para a vida eterna, ainda é necessário seguir
essa novidade, que ele quer que esteja presente quando diz: “a confissão é para a salvação”.
Assim como está escrito em 2 Coríntios 5. 2-3: “Pois, de fato, suspiramos enquanto estamos
vestidos, para que não sejamos encontrados nus”, ou seja, nesta vida, devemos passar por uma
conversão que é o início de uma nova vida. Essa conversão também foi iniciada pelo ladrão na
cruz; ele se arrependeu, reconhecendo que estava sendo justamente punido por Deus; depois,
pela fé, reconheceu o Salvador e pediu a Ele a salvação; e, assim, ouviu uma clara absolvição e
uma pregação sobre a vida eterna e a promessa; além disso, como sinal de sua confissão, refutou
o blasfemador de Cristo.
Esse exemplo memorável nos adverte sobre muitas questões importantes e indica que a
igreja é de grande preocupação para Deus, a ponto de Ele despertar alguns testemunhos de fé,
mesmo quando é abandonada pelos principais líderes. Os apóstolos, consternados, ficaram em
silêncio e mal conseguiam manter qualquer brilho de fé entre tantas dúvidas tumultuadas. Neste
momento, Deus traz novas evidências extraordinárias, como eclipses, terremotos e ressurreições
dos mortos, para que as pessoas não considerem o castigo como algo comum ou negligenciado
por Ele. O ladrão também é despertado espiritualmente e, após se tornar um apóstolo, começa a
pregar a partir da cruz, afirmando que Jesus é o Messias, o Restaurador da vida eterna.
Além disso, essa história nos ensina que devemos receber a fé em Deus por causa de Seu
Filho, mesmo que não possamos apresentar méritos próprios. Ela também nos ensina sobre a
natureza da fé, que não se limita apenas ao conhecimento histórico, mas é uma confiança que
busca a vida eterna através de Jesus. Quando essa chama da fé é acendida, nosso julgamento é
completamente diferente da lógica humana: o ladrão não é desencorajado pelo espetáculo de
corpos dilacerados e moribundos, e sim, ele crê que haverá vida após a morte e que aqueles que
buscarem refúgio no Senhor terão salvação eterna.
Por outro lado, aqueles que desprezam o Senhor enfrentarão punições eternas. E porque o
ladrão já sente que Deus está propício a ele, ele se submete ao Senhor e O ama. Ele reconhece
que não está sendo punido por acaso, agradece a Deus por ter sido chamado para conhecê-Lo e
ao Senhor. Ele deseja obedecer a Deus mesmo enquanto passa por essa punição e não fica irado
com o julgamento divino. Ele reconhece que as aflições não são resultados de acaso ou meras
calamidades, como os filósofos acreditam, mas são punições enviadas por Deus, devido ao peso
do pecado, para que possamos reconhecer a ira de Deus e buscar a salvação. Por isso, ele enfatiza
a importância da paciência e da obediência a Deus ao enfrentar aflições.
Dessa forma, o ladrão é instruído sobre a conversão do pecado, a ira de Deus, as punições, o
perdão e a justiça, a fim de compreender que a sabedoria dos santos é muito diferente da
sabedoria humana ou da sabedoria dos fariseus. Pois os piedosos aprendem muito durante suas
aflições, como está escrito no Salmo: “Foi bom para eu ter sido afligido, para que eu aprendesse
os Teus estatutos”.
Por fim, ele confessa que Jesus é o Messias, sem se intimidar com o espetáculo do suplício.
Ele até repreende o outro ladrão, que insulta e despreza Cristo com palavras amargas, assim
como o mundo desdenha Cristo e a igreja devido à sua fraqueza. A imagem desse co-criminoso
deve ser cuidadosamente contemplada, pois, assim como ele ri e insulta Cristo em meio à morte,
os ímpios não reconhecem suas próprias maldades e, com arrogância, são hostis a Cristo, mesmo
quando Ele oferece libertação.
Eu relatei um exemplo que, além de nos advertir sobre várias questões, mostra também que
na verdade a verdadeira conversão inicia uma nova obediência, que se manifesta em muitas
ações nobres, que, como eu disse, agradam a Deus. Assim como em Romanos 14. 17, Paulo diz:
“Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo, e
aquele que nisso serve a Cristo é agradável a Deus e aprovado pelos homens”. E em Hebreus 13.
16: “Não se esqueçam da beneficência e da liberalidade, pois com tais sacrifícios Deus se
agrada”. Assim, também se diz de Noé: “O Senhor aspirou o aroma agradável”, ou seja, Deus se
deleitou com o sacrifício de Noé, isto é, com sua invocação de ação de graças, louvor e adoração.
A metáfora é maravilhosa no termo “aspirou o aroma”, uma referência ao antigo ritual em
que os sacrifícios eram chamados de “odorosos” quando queimados divinamente, sendo um
testemunho singular de que eles eram agradáveis e aceitos por Deus. No entanto, de maneira
mais geral, os sacrifícios são comparados a aromas, e adicione-se fragrâncias, porque todas as
obras devem ser como perfumes, isto é, espalhando-se amplamente e exalando um bom cheiro,
ou seja, devem ser direcionadas para a celebração de Deus, para que outros sejam atraídos por
boa doutrina e bons exemplos.
QUARTA QUESTÃO
Por que devemos realizar boas obras?
Existem algumas razões: necessidade, dignidade e recompensas. Primeiramente, a
necessidade é multifacetada: a necessidade de cumprir mandamentos, de pagar dívidas, de
manter a fé e de evitar punições. Embora possamos aqui falar de coerção, ainda permanece a
imutável ordenação eterna de Deus para que a criatura obedeça à Sua vontade. Essa ordenação
imutável é a necessidade de cumprir mandamentos e dívidas, como Paulo disse: “Somos
devedores a Deus, não à carne”, e como Cristo disse: “Este é o Meu mandamento: que amem uns
aos outros”. E em 1 Tessalonicenses 4. 3, entre outros: “Esta é a vontade de Deus: que se
abstenham da fornicação, que cada um de vocês saiba possuir o seu próprio corpo em
santificação e honra, não na paixão da concupiscência, como os gentios que não conhecem a
Deus; e que ninguém iluda ou defraude a seu irmão em negócio algum, porque o Senhor é
vingador de todas estas coisas. Porque Deus não nos chamou para a impureza, mas para a
santificação. Portanto, aquele que rejeita isso, não rejeita os homens, mas a Deus, que também
lhes dá o Seu Espírito Santo”.
A necessidade de manter a fé é crucial, pois o Espírito Santo é expulso e perturbado quando
são cometidos pecados contra a consciência, como é claramente declarado em 1 João 3. 7:
“Ninguém se engane: aquele que pratica o pecado é do diabo”; e em Romanos 8. 13: “Se pelo
Espírito mortificarem as obras do corpo, viverão. Porque, se viverem segundo a carne,
morrerão”. A fé é negada pelas más ações, conforme o testemunho das palavras de Paulo em 1
Timóteo 5. 8: “Se alguém não cuida dos seus e especialmente dos da sua família, negou a fé e é
pior que um incrédulo”; e também: “A fé não pode habitar naqueles que se entregam a desejos
perversos e não se arrependem, pois está escrito: ‘Onde habita o Senhor? No coração contrito e
humilde Eu habito’”. Além disso, quando a fé traz paz à consciência, não pode coexistir com a
intenção de cometer um pecado, o que condena a própria consciência. Por isso, Paulo diz: “Tudo
o que não provém da fé é pecado”.
Portanto, Davi perdeu sua fé e o Espírito Santo quando se envolveu com a esposa de outro
homem. De fato, ele perturbou o Espírito Santo de várias maneiras: primeiro, em seu próprio
coração, o que o levou ao adultério; depois, em muitos santos, alguns dos quais foram
escandalizados e sofreram dor, enquanto outros foram levados à destruição; e também nas
mulheres miseráveis que foram violentadas por Absalão e seus seguidores.
A necessidade de evitar as punições deveria mover as mentes das pessoas, uma vez que
vemos toda a história do mundo cheia de eventos muito tristes, que certamente são punições
pelos pecados. No entanto, há tanta cegueira nos seres humanos que muitos acreditam que essas
coisas acontecem apenas por acaso. Essa insensatez precisa ser eliminada: devemos saber que
todos os eventos tristes na vida humana são realmente punições, tanto pelo primeiro pecado da
humanidade quanto pelos pecados de outras pessoas, como o Salmo 39. 12 diz: “Por causa das
iniquidades, Tu castigas o homem”. Além disso, como tudo o que é presente é passageiro, as
punições presentes não correspondem à ira de Deus eterna, mas são testemunhas do julgamento
vindouro. Deus nos adverte que haverá outro julgamento, no qual não se tratará de coisas
momentâneas e perecíveis, mas sim de coisas eternas. Esse julgamento deve estar sempre diante
de nós, e é sobre esse julgamento que devemos nos lembrar quando vemos as punições presentes.
E que seja rejeitada aquela fria zombaria em que as ações boas são censuradas por medo de
punição. A resposta é fácil para os piedosos, que sabem que há muitas causas e ordens para a
mesma ação; sabem que é feito corretamente por amor a Deus, não por medo de punição; mas
também sabem que Deus deseja que Sua vontade e ira sejam reconhecidas nas punições, que as
punições presentes e futuras sejam temidas. E todas as punições são amplamente divulgadas,
muitas vezes os pecados são punidos por outros pecados, e muitas pessoas são envolvidas em
pecados e calamidades. Muitas dessas desgraças têm apenas um culpado, assim como o pecado
de Davi: quantos crimes, desesperanças, blasfêmias e coisas muito tristes ele trouxe?
A admissão do culto ao ídolo por Salomão foi a causa da divisão do reino de Israel; essa
divisão causou discórdia religiosa e guerras contínuas. Deus quer que tais exemplos sejam
considerados para que realmente temamos Sua ira e consideremos a nossa e a salvação dos
outros; mas a mente cega do homem não percebe a magnitude do pecado nem da ira de Deus;
pelo contrário, mesmo diante das punições presentes, o ímpio ainda zomba de sua própria
desgraça e ridiculariza a Cristo.
Os piedosos devem aprender, como foi dito, a reconhecer a ira de Deus na imensidão das
calamidades humanas; devem também aprender a evitar as armadilhas do diabo, que
gradualmente os impulsiona através de etapas e tece uma longa trama de muitas misérias, para
finalmente levá-los à desesperança, como foi dito: “Ele anda em volta como um leão rugindo,
procurando a quem possa devorar”[85].
A seguir, vem a dignidade. Aqui, mais uma vez, enfatizo que a dignidade não deve ser
atribuída às virtudes pelo fato de, por meio delas, a pessoa receber o perdão dos pecados, de
satisfazer a lei de Deus ou de ser o preço da vida eterna; mas a fé deve brilhar, afirmando que
agradamos a Deus por causa do Filho de Deus, como foi dito acima; depois, também por causa
deste mesmo Mediador, tais cultos são agradáveis a Deus, que não deseja que toda a humanidade
pereça: portanto, Ele deseja que haja uma igreja em que Ele seja reconhecido, invocado e
adorado; Ele aceita essa obediência por causa do Filho e chama de “sacrifícios”, ou seja, as obras
pelas quais Deus julga que recebe honra. Por isso, Pedro diz: “Ofereçam sacrifícios espirituais”.
Essa é a dignidade do chamado, não da pessoa, assim como um magistrado ou apóstolo deve
glorificar suas obras e pensar que são de grande importância, pois por meio delas Deus governa a
vida, concede a vida eterna e, portanto, é governado e auxiliado por Deus, e por essa razão, faz
tudo com mais dedicação.
Assim, cada membro da igreja deve sentir que essa é a essência de todos os chamados: ser
um membro do povo de Deus, invocar a Deus por si mesmo e pelos outros, oferecer sacrifícios,
ou seja, todas as boas obras prescritas por Deus. Essa dignidade do chamado deve ser entendida e
considerada. Saiba que o seu estudo das letras e sua modéstia de vida são verdadeiramente uma
grande coisa, e estão relacionados à glória do chamado e à necessidade dos outros. Por isso,
Deus exige e aprova isso, como foi dito, Ele governa e ajuda. Portanto, faça as obrigações de seu
lugar com mais dedicação.
SOBRE AS RECOMPENSAS
Para que o perdão dos pecados e a reconciliação sejam certos, eles são concedidos
gratuitamente por causa do Filho de Deus, e devem ser recebidos pela fé. Se dependesse da
condição de nossos méritos, tornar-se-ia incerto. No entanto, após a reconciliação, as boas obras
realizadas pelos justificados, por meio da fé em Cristo como Mediador, como já foi dito,
merecem recompensas espirituais e corporais nesta vida e na vida futura, como é claramente
demonstrado na parábola dos negociantes: “A quem tem será dado”, etc. E em 1 Timóteo 4. 8,
diz-se: “A piedade tem promessas tanto para a vida presente como para a futura”, etc.; Marcos
10. 30: “Receberão cem vezes mais, já nesta vida, casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, e
com eles perseguição; e no mundo futuro receberão a vida eterna”; Mateus 10. 42: “E quem der
mesmo que seja apenas um copo de água fria a um destes pequeninos, por ser Meu discípulo,
com toda a certeza os afirmo que de modo algum perderá a sua recompensa”; Lucas 6. 38:
“Deem, e lhes serão dado”; Êxodo 20. 12: “Honra seu pai e sua mãe, para que se prolonguem os
seus dias na terra”; em Isaías 33. 16: “Ele terá pão garantido, e água não lhe faltará”; seus olhos
contemplarão o rei em toda a sua beleza, ou seja, por obediência e boas obras, Deus concede um
governo tranquilo, honroso e pacífico, etc.; e Isaías 58. 7: “Reparta o seu pão com o faminto,
acolha em casa os pobres desabrigados”, etc.
Em suma, as Escrituras estão repletas de tais promessas de recompensas espirituais e
corporais. Pois tanto nesta vida quanto na vida futura, ambas são necessárias. Nem os indivíduos
podem manter a fé sem exercitá-la, nem a doutrina pode ser iluminada na governança e a igreja e
a política podem ser preservadas sem os dons espirituais. Deus concede um ambiente favorável
para ensinar e aprender, como um “hospitium” (local de acolhimento) para mestres e estudantes,
protegendo-o de forma admirável, assim como preservou a nau que transportava Paulo para
Roma. Portanto, também promete benefícios na vida presente. Embora a igreja enfrente
dificuldades, Deus preserva um grupo piedoso, mesmo que alguns dos fiéis morram como
guerreiros vitoriosos no campo de batalha. A lição é que tanto as boas obras espirituais como as
materiais são necessárias, não sendo em vão as promessas de Deus, mas visando ao exercício e
crescimento de nossa fé, nos incentivando a trabalhar diligentemente em busca das recompensas
oferecidas.
A fé é exercitada de três maneiras: primeiro, ao buscar coisas, deve-se pensar inicialmente
na remissão dos pecados, pois assim como David não pode buscar a vitória a menos que
considere que Deus está reconciliado com ele.
Em segundo lugar, a fé deve estabelecer que não é por acaso que as coisas boas nos são
oferecidas, como os ímpios imaginaram que a nau de Paulo foi salva por acaso. Pelo contrário, a
fé verdadeiramente afirma que somos protegidos, defendidos e auxiliados por Deus, e essas
promessas de benefícios são apresentadas para que a imaginação epicurista seja expulsa das
mentes das pessoas, aquela que imagina que o bem e o mal acontecem por acaso. Aprendamos,
ao contrário, que os bens são verdadeiramente dados por Deus, e que devemos buscá-los d’Ele.
Em terceiro lugar, a fé é exercitada ao buscar ajuda e compensação, assim como aquele que
dá esmolas abre mão de algo seu e percebe que ficará carente se Deus não os assistir. Ele pede e
espera ajuda e compensação de Deus.
Para compreender isso, consideremos a antítese e examinemos nossos corações: você é
menos diligente em suas ações porque pensa que trabalha em vão, pois desagrada a Deus; essa
imaginação entra em conflito com o primeiro exercício da fé. Além disso, você é menos
generoso porque pensa que essas questões estão confiadas ao cuidado humano e não são
atendidas por Deus; esse erro entra em conflito com o segundo exercício da fé. Deus, de fato,
exige a diligência humana, mas quer que ela seja governada por Sua Palavra, assim como as
outras virtudes: que você seja diligente, ou seja, que trabalhe de acordo com o mandamento de
Deus, que não faça desperdícios inúteis, mas que contribua para os usos necessários da igreja e
dos pobres.
Além disso, você é menos generoso porque pensa que Deus não irá recompensá-lo, que seu
futuro será de penúria; essa falta de confiança entra em conflito com o terceiro exercício da fé.
Portanto, para fortalecer e aumentar a fé, Deus estabeleceu várias ações e adicionou promessas
de ajuda e recompensas, para que haja oportunidade para a oração. Como você espera a salvação
eterna de Deus e não espera sequer um pedaço de pão? Resistamos, portanto, à nossa falta de
confiança, e realizemos ações de acordo com os mandamentos, e quando elas parecerem difíceis,
despertemos fé e oração nelas. Consideremos também as recompensas, preocupemo-nos com a
igreja, com o bem-estar geral e com a nossa própria salvação. Por esses objetivos, sejamos mais
diligentes em nosso chamado, em nossos comportamentos, etc.
Todas essas coisas são ilustradas no exemplo da viúva de Sarepta e Elias. Quando Elias foi
chamado divinamente para ensinar e Deus garantiu que ele teria sustento enquanto
desempenhasse seu ministério, ele mesmo buscou e esperou pelo alimento com fé. Assim, ele
chegou à viúva, cansado do trabalho, e pediu-lhe comida. A viúva contou sobre sua pobreza, e o
profeta acrescentou uma promessa, crendo que Deus de fato é o Criador e Salvador de Israel, que
Ele concede bens e que providenciará alimento no futuro. Embora ela veja que o alimento
disponível será reduzido para ela e seu filho, que estava presente, ela ainda alimenta o profeta
primeiro. Essa fé e ação são seguidas por recompensas: por muito tempo, a família é sustentada,
sem dúvida, pelo benefício divino. Sua casa se torna uma hospedaria da igreja, onde o profeta
ensinou toda a vizinhança. Essa grande glória é seguida por aflição: o filho morre. Mas,
novamente, novas recompensas são acrescentadas, e o filho morto é ressuscitado.
Esse exemplo fortalece ainda mais a fé da mulher e a fama do ensino de Elias se espalha
amplamente. Agora, reflita sobre quantos bons frutos o primeiro ato de caridade prestado pela
mulher em alimentar o profeta produziu e considere também o acúmulo de recompensas: não
apenas sua família é sustentada, mas ela também é instruída pelo profeta sobre o verdadeiro culto
a Deus e a vida eterna, sendo protegida de várias maneiras contra o diabo. O filho ressuscitado se
torna discípulo do profeta, que sem dúvida posteriormente serviu utilmente à igreja. Mesmo as
obras insignificantes são recompensadas com recompensas muito maiores do que o devido; e é
necessário que todos os santos confessem o mesmo que Jacó disse em Gênesis 32. 10: “Sou
indigno de todas as Tuas misericórdias”.
Entretanto, embora seja necessário que a novidade da graça seja iniciada, como Paulo diz:
“seremos revestidos” e, no entanto, não sejamos encontrados nus, o coração sempre deve
reconhecer o que o Salmo diz: “Nem todo o ser vivente é justificado diante de Ti”; e também:
“Quem pode discernir seus próprios erros?”[86]. Além disso, deve saber que nossas virtudes não
são o preço da vida eterna, mas esta é certamente concedida por meio do Mediador, como Paulo
diz: “O dom de Deus é a vida eterna”; e Cristo diz em João 6: “Esta é a vontade do Pai: que todo
aquele que olha para o Filho e n’Ele crê tenha a vida eterna”. Nessa verdadeira penitência, a
mente piedosa deve fixar-se nessa promessa e, por meio do Mediador, aguardar com certeza a
vida eterna; a fé não pode depender de duas coisas, o Mediador e nossos méritos, como uma
consciência instruída pode discernir facilmente.
QUINTA QUESTÃO
Qual é a diferença entre os pecadores, uma vez que é necessário que os pecados
permaneçam nos santos nesta vida?
Embora seja afirmado que os pecados permanecem nos regenerados, é necessário fazer uma
distinção; pois é certo que aqueles que se entregam a transgressões contra a consciência não
permanecem na graça, nem mantêm a fé, a justiça e o Espírito Santo. A fé, ou seja, a confiança
na aceitação divina, não pode coexistir com uma má intenção contra a consciência, pois são
movimentos completamente opostos, e a invocação não pode ocorrer com uma má consciência
que foge de Deus, como é dito em 1 João 3. 21: “Se o nosso coração não nos condena, temos
confiança diante de Deus”.
Portanto, a regra deve ser mantida de que a justiça de uma boa consciência não cessa
naqueles que foram reconciliados, como é dito em 1 Timóteo 1. 5: “O fim do mandamento é o
amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé não fingida”. E no
mesmo capítulo: “Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual você
também foi chamado e de que fez a boa confissão diante de muitas testemunhas”. A testemunha
da nossa consciência é a nossa glória, como é dito em 2 Coríntios 1. 12, e tendo uma boa
consciência, como é dito em 1 Pedro 3. 16.
No entanto, as várias opiniões afirmam claramente que aqueles que cometem transgressões
contra a consciência caem da graça, perdem a fé e o Espírito Santo, e se tornam objeto da ira de
Deus e das penas eternas. Como está escrito em Gálatas 5. 19: “As obras da carne são
manifestas: adultério, fornicação, impureza, libertinagem, idolatria e outras semelhantes. Aqueles
que praticam tais coisas não herdarão o Reino de Deus”. Ele chama essas obras de manifestas,
porque são feitas contra a consciência. E em 1 Coríntios 6. 9: “Não se enganem! Nem impuros,
nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos,
nem bêbados, nem maldizentes, nem aqueles que roubam herdarão o Reino de Deus”. Aqui,
Paulo está pregando especificamente para aqueles que antes estavam sujeitos a esses vícios, mas
agora estavam corrigidos. Ele ordena que mantenham uma boa consciência e testemunha que
eles perecerão se persistirem nos vícios anteriores.
Romanos 8. 13: “Pois se viverem segundo a carne, haverão de morrer; mas, se pelo Espírito
mortificarem as obras do corpo, viverão”. Aqui, Paulo faz essa distinção: muitos males interiores
permanecem nos regenerados, ou seja, há certa escuridão e corrupção inata que nasce conosco.
Embora a luz e a obediência tenham começado, ainda assim a fé brilha como uma pequena faísca
nas densas trevas, lutando constantemente contra dúvidas e resistindo a elas. Nem o temor a
Deus é tão grande, nem a fé e o amor são tão intensos quanto deveriam ser. Além disso, existem
muitas paixões viciosas: admiração e confiança em si mesmo, diversos movimentos, chamas de
desejos desordenados e incêndios de ira injusta e inveja, como foram vistos em Maria[87] e Aarão
contra Moisés.
Finalmente, nos santos, ainda persistem muitos pecados de omissão, como são comumente
chamados, ou seja, negligências nos deveres e erros em questões domésticas, políticas e
eclesiásticas. No entanto, esses pecados não são cometidos conscientemente por aqueles
piedosos que demonstram fé e diligência, o quanto é praticamente possível. No entanto, porque
os santos resistem às paixões viciosas e creem que suas fraquezas são perdoadas por causa do
Filho de Deus, eles permanecem na graça e mantêm a fé e o Espírito Santo. Paulo expressa isso
quando diz: “Mas, se pelo Espírito mortificarem os feitos do corpo, viverão”.
Há uma ênfase singular quando ele diz “se pelo Espírito mortificarem”; pois nos chama a
uma acirrada luta, deseja que resistamos às paixões viciosas e, de fato, pelo Espírito, ou seja,
pelos verdadeiros movimentos, acesos pelo temor e fé na Palavra de Deus, que provêm do
Espírito Santo. Que a mente considere o mandamento de Deus e as punições, e que pense em
quão terrível é a ira de Deus. Que se observe os exemplos dos que caíram, como Saul e outros
que não foram restaurados. Que se saiba que a partir de uma única queda surgem infinitos
pecados e escândalos. Além disso, que se creia que a obediência agrada a Deus e busque auxílio
e orientação, como está escrito: “Sem Mim nada podem fazer”. E também: “Peçam, e vocês
receberão”. Quanto mais o seu Pai celestial dará o Espírito Santo àqueles que pedirem. E, como
tantas vezes é dito nos Salmos: “Ajuda-me, e serei salvo”. E ainda: “Faça com Vosso servo
segundo a Tua misericórdia, e ensina-me os Teus preceitos”. E também: “Cria em mim, ó Deus,
um coração puro”, isto é, uma purificação da fé que faz sentir corretamente sobre Deus; e
“renova em mim um espírito reto”, ou seja, firme, que não duvida. “Não me rejeites da Tua
presença e não retires de mim o Teu Espírito Santo”, isto é, o que governa todas as ações, para
que não me afaste de Ti. Restitui-me a alegria da Tua salvação e sustenta-me com um espírito
voluntário, ou seja, um espírito que não recua diante de lutas e perigos, para que eu seja
fortalecido.
Assim como José resistia aos encantos da esposa de Potifar; assim como Jonatas se fortalecia
para não ser consumido pela inveja contra Davi; assim como Davi se dominava para não matar
Saul; assim como se sustentava para não ser quebrantado pela desesperança quando foi expulso
para o exílio. Assim ensina Paulo: “Que o pecado não reine em seu corpo mortal”. E parece ter
tirado essa expressão do livro de Gênesis: “O seu desejo será para o seu marido, e ele lhe
dominará”. Pois, pelo termo “dominar”, não se entende ociosidade ou negligência, mas sim o
ímpeto do Espírito Santo e a diligência da vontade. José, ao considerar o mandamento de Deus e
antevendo as punições, escândalos e outras ruínas que adviriam, resistia às seduções. Também
buscava a orientação divina e acrescentava a sua própria diligência. Controlava seus olhos para
que não vagassem imprudentemente, evitava solidão e ocasiões para não cair nas armadilhas do
diabo. Que os piedosos aprendam e pratiquem essa diligência e percebam que não foi dito sem
razão: “Você dominará sobre ele, e ele não dominará sobre você”[88]. Pois, quando o pecado
domina, traz consigo múltiplas perdições e a ira de Deus, resultando em morte eterna. Pelo
contrário, quando não domina, os piedosos retêm a justiça concedida e a fé. Portanto, Paulo diz:
“Se mortificarem as obras da carne pelo Espírito, viverão”.
Eu mencionei que alguns pecados permanecem nos regenerados, isto é, certos males
interiores contra os quais eles mesmos lutam. No entanto, quando pecados são cometidos contra
a consciência, o Espírito Santo é derramado e perturbado, a graça é perdida e a fé, ou seja, a
confiança na misericórdia, é abalada. Isso é o que Paulo quer dizer quando diz: “Se viverem
segundo a carne, morrerão”, ou seja, se vocês obedecerem às concupiscências viciosas, estarão
sujeitos à ira de Deus e à morte eterna. No mesmo lugar, ele diz: “Os que são conduzidos pelo
Espírito de Deus são filhos de Deus”. Mas aqueles que vão contra a consciência derramam e
perturbam o Espírito Santo. Assim, deixam de ser filhos de Deus, como também testificam as
sentenças citadas anteriormente: “Não se enganem; nem os adúlteros, etc.”. E João diz: “Aquele
que pratica o pecado é do diabo”, ou seja, ele já está cativo do diabo, é culpado da ira de Deus e
da punição eterna, sendo impelido pelo diabo a cometer múltiplos pecados.
Essas ameaças tristemente nos exortam a reprimir os impulsos viciosos, para que não
caiamos da graça concedida. Não é necessário trazer aqui discussões sobre predestinação, mas
devemos julgar a vontade de Deus a partir da clareza da Palavra de Deus.
CONTRA OS DONATISTAS
Descrevemos a igreja visível, na qual afirmamos que há muitos não-regenerados e outros,
embora doutrinariamente incorretos, não são inimigos do evangelho ou hereges, mas apenas têm
certos defeitos morais. Tais indivíduos, se não forem excomungados, mesmo que sejam
chamados de membros mortos, ainda estão na comunhão externa da igreja e desempenham
funções de ensino ou administração dos sacramentos. Suas ações são válidas e eficazes, e é
permitido usá-las.
O erro dos Donatistas, que afirmavam que nem o evangelho nem qualquer ato realizado por
ministros com comportamento pecaminoso eram eficazes, deve ser prontamente rejeitado.
Em Mateus 13, Cristo compara a igreja a uma rede que apanha bons e maus peixes; Ele
também diz que o joio crescerá na igreja até a ressurreição, e compara a igreja aos dias de Noé,
entre outros. A partir dessas passagens, fica claro que sempre houve, há e haverá uma grande
multidão de pessoas más na igreja até a ressurreição.
Portanto, como existem pessoas más na igreja e a hipocrisia não pode ser discernida pelo
julgamento humano, pode haver hipócritas no ministério. Assim, a fé não seria firme se o poder
do evangelho e dos sacramentos dependesse da dignidade do ministro. Portanto, é importante
entender que o evangelho e os sacramentos são eficazes devido à promessa de Deus, não devido
à pessoa do ministro. Portanto, Cristo redireciona nossas mentes e nossa fé da pessoa do ministro
para Ele, dizendo: “Quem os ouve, a Mim ouve”, como se estivesse dizendo: o evangelho não é
de vocês, nem é o trabalho de vocês salvar os ouvintes, mas é a obra de Deus, que de forma
maravilhosa reúne Sua eterna igreja através da dispersão da voz do evangelho. Assim como João
diz: “Eu os batizo com água; mas eis que vem Aquele que é mais poderoso do que eu... Ele os
batizará com o Espírito Santo”, ou seja, o evangelho e os sacramentos são eficazes por causa de
Cristo e através de Cristo.
O dito de Cristo: “Os escribas e fariseus se sentam na cadeira de Moisés”, significa que,
mesmo que haja hipócritas no ministério, a função em si é válida, desde que se sentem na cadeira
de Moisés, ou seja, ensinem a doutrina transmitida por Deus. Não devem se sentar em outra
cadeira nem apresentar uma doutrina que entre em conflito com a fé.
Toda essa questão contra os Donatistas foi amplamente tratada por Agostinho em muitos
volumes, e a Carta 166 aborda esse argumento em detalhes: se o poder do evangelho e dos
sacramentos dependesse da dignidade do ministro, nossa fé seria incerta. Portanto, para que a fé
seja certa, é necessário rejeitar e condenar o delírio fanático dos Donatistas.
Este erro também é refutado por Nazianzeno, que usa a seguinte semelhança: a figura do
selo é a mesma, quer seja gravada num anel de ouro ou de ferro. Ele afirma que o ministério é o
mesmo, quer seja realizado por pessoas boas ou más. É necessário advertir sobre os Donatistas
para que os piedosos estejam preparados contra tais extremismos e compreendam a verdadeira
natureza do ministério. Pois, em nossa época, os anabatistas revivem os erros dos Donatistas,
rejeitando de forma ímpia os ministérios e, ao afirmar que estão estabelecendo uma igreja na
qual não há pessoas más, acabam atraindo uma grande multidão de malfeitores, como o exemplo
dos monasterienses demonstra[108]. É importante lembrar disso para que as mentes piedosas se
protejam com maior cuidado e diligência, não consentindo com falsas opiniões e compreendendo
que a partir de um erro, muitos erros múltiplos e incuráveis podem surgir gradualmente.
Então, o que deve ser feito? Devemos ignorar os crimes evidentes dos ministros do
evangelho? Respondo que aqueles que estão manchados com crimes flagrantes devem ser
excomungados pela voz unânime da igreja, como Paulo expulsou o incestuoso da igreja em 1
Coríntios 5. E Jesus, em Mateus 18. 17, diz: “Diga à igreja”. Essa severidade não deve ser
negligenciada, mas, mesmo que seja negligenciada, o ministério continua a ter validade, como
mencionado anteriormente. Além disso, as autoridades que portam a espada devem punir crimes
conforme suas leis, como adultério, assassinato e outros. No entanto, além dos crimes públicos,
existem fraquezas no comportamento de todas as pessoas. Alguns são mais temperamentais ou
indulgentes do que deveriam ser, enquanto outros são mais atenciosos aos negócios, mas podem
ser arrogantes ou preguiçosos em outras áreas. Todos têm suas próprias fraquezas.
Quando se trata desses comportamentos comuns que não se enquadram na categoria de
crimes, as mentes piedosas devem seguir a regra comum de “conhecer os hábitos do amigo, não
odiar” e a orientação de “perdoe, e será perdoado”. Acima de tudo, as fraquezas moderadas dos
líderes e mestres piedosos devem ser toleradas, como Cristo ordena, para que lavemos os pés uns
dos outros, ou seja, curemos essas fraquezas mútuas com gentileza recíproca.
É comum caluniar de forma injusta os governantes. Por essa razão, o Espírito Santo ordena
repetidamente que honremos aqueles que nos governam. Em Hebreus, é dito enfaticamente:
“Obedeçam aos seus guias e sejam submissos a eles; pois velam pela sua alma, como aqueles
que hão de prestar contas delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não
seria útil a vocês” (Hebreus 13. 17). Isso sugere que o ato de governar é, por si só, difícil e
trabalhoso, mas quando a obstinação dos liderados é adicionada, a aflição se duplica. Como
Heródoto disse: “A rebelião difere da guerra tanto quanto a guerra difere da paz”. Portanto, é
mais aflitivo para um governante lidar com seu próprio povo do que com inimigos estrangeiros,
especialmente quando são essas pessoas que deveriam estar apoiando-o em seu difícil cargo. Isso
é corroborado por Paulo em 1 Tessalonicenses 5. 12, onde ele diz: “Rogamos a vocês, irmãos,
que reconheçam os que trabalham entre vocês e que presidem sobre vocês no Senhor e os
admoestam; e que os tenham em grande estima e amor, por causa do seu trabalho”. Há muitas
instruções semelhantes sobre esse assunto nas Escrituras.
Assim como Cam foi punido por desrespeitar seu pai, todos devem estar cientes de que Deus
os punirá se causarem dificuldades aos ministros que ensinam corretamente, mesmo que haja
alguma imperfeição em seu comportamento. Da mesma forma que foi dito a Abraão:
“Abençoarei os que lhe abençoarem, e amaldiçoarei os que lhe amaldiçoarem”[109]. Essa regra,
sem dúvida, se aplica à igreja e aos que ensinam corretamente. Portanto, devemos entender que
não devemos nos afastar do restante da igreja devido ao comportamento dos mestres, e não
devemos criar cismas se não houver erro doutrinário.
Mas há outros que são maus, contaminados por falsas opiniões, que defendem uma doutrina
ímpia e se opõem à verdade, matando os piedosos por causa da profissão da verdadeira doutrina.
Assim como houve sacerdotes e seus seguidores nos tempos de Jeremias, dos Macabeus e
durante a época de Cristo, que abertamente contradiziam a verdadeira doutrina e matavam os
santos. Com esse grupo, mesmo que eles detenham o governo por meio da tirania, não há
comunhão com os piedosos, e a culpa pela cisma recai sobre eles, porque o mandamento de Deus
é “fugir da idolatria”, e também “aquele que ensinar outro evangelho seja anátema”. Os
apóstolos, portanto, se afastavam de Caifás e seu grupo.
É importante observar a diferença entre eles: o ministério não é alterado, mesmo quando
alguns têm maus comportamentos, mas quando uma doutrina falsa é defendida e a idolatria é
estabelecida, o ministério em si é alterado. Portanto, o ministério desses que corrompem a
doutrina deve ser abandonado. Embora a parte principal do ministério seja a doutrina, às vezes, a
administração de certos sacramentos está nas mãos daqueles que corrompem a doutrina. Como
os israelitas mantinham a circuncisão, mesmo que adotassem cultos ímpios, e Caifás e os fariseus
mantinham a circuncisão, embora tivessem graves erros em outras áreas. No entanto, a validade
da circuncisão não dependia dessas pessoas, mas sim porque ela era realizada em nome da igreja.
Da mesma forma, podemos falar sobre o batismo daqueles que foram batizados em igrejas
onde maus líderes estiveram no comando. O batismo era válido porque era realizado em nome da
verdadeira igreja, e as palavras da instituição e seu significado são preservados neste sacramento
sem idolatria. Mas o batismo dos samosatianos, dos maniqueístas e dos arianos não era válido,
pois eles não mantinham o significado das palavras: “Eu o batizo em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo”. Eu mencionei isso brevemente para fortalecer os piedosos contra os anabatistas
e para que eles pensem que os maus frequentemente dominam na igreja, assim como Cristo
comparou a igreja a uma rede, na qual há bons e maus peixes. Portanto, o ministério que eles
mantêm nestes sacramentos, que não são deliberadamente corrompidos, é válido.
No entanto, embora o batismo daqueles que mantêm a verdadeira doutrina seja válido, como
eu disse, porque eles mantêm o significado correto das palavras, ainda assim, porque ensinam
coisas ímpias sobre outras questões, eles fornecem uma razão pela qual a igreja deve
necessariamente se separar deles. Há também uma diferença entre pessoas que pecaram por
ignorância e aquelas que blasfemaram abertamente, como Caifás e outros após a ressurreição de
Cristo. Não há dúvida de que aqueles que defendem abertamente blasfêmias e ídolos devem ser
abandonados, como está escrito: “Fujam dos ídolos”.
CONFIRMAÇÃO
No passado, havia um exame da doutrina, no qual indivíduos recitavam um resumo da
doutrina e mostravam que discordavam dos pagãos e hereges. Era uma prática usada para educar
as pessoas e também para distinguir claramente entre os profanos e os piedosos, o que era muito
útil. Posteriormente, havia uma oração pública, e os apóstolos impunham as mãos sobre eles,
concedendo-lhes dons evidentes do Espírito Santo. No entanto, o atual ritual de confirmação
realizado pelos bispos é uma cerimônia totalmente sem utilidade. No entanto, seria benéfico que
a exploração e a confissão da doutrina fossem realizadas, juntamente com orações públicas em
favor dos piedosos, e que essas orações não fossem vazias.
UNÇÃO
A unção costumava ser uma forma de tratamento médico. Deus, para conferir alguma
autoridade aos patriarcas e profetas, desde o início os dotou com o dom da cura. Pessoas como
Abraão, Isaac, Jacó, Isaías e outros eram, em essência, médicos. Através desses indivíduos,
juntamente com a verdadeira doutrina religiosa, o conhecimento médico sobre plantas e muitos
aspectos da natureza foi transmitido.
Essa antiga prática foi renovada por Cristo quando enviou seus apóstolos, ordenando-lhes
que curassem os doentes e equipando-os com o dom da cura. Esse dom continuou a existir na
igreja mesmo depois desse período, e é certo que muitas pessoas ainda são curadas por meio das
orações da igreja. É útil lembrar que o dom de Deus inclui a preservação da saúde física, que é
dada para que possamos servir aos outros. Esse dom deve ser buscado e cuidadosamente
mantido. No entanto, o atual ritual de unção é apenas uma cerimônia supersticiosa, acrescida da
invocação dos mortos, o que é inaceitável. Portanto, essa forma de unção, juntamente com seus
apêndices, deve ser rejeitada.
BATISMO
O batismo é uma ação completa, que envolve a imersão na água e a pronúncia das palavras:
“Eu o batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. No entanto, o significado principal
e o propósito do batismo são aprendidos através da promessa associada a ele: “Aquele que crer e
for batizado será salvo”. Portanto, o batismo é apropriadamente chamado de sacramento, porque
é acompanhado por essa promessa que testemunha que a graça pertence verdadeiramente àquele
que está sendo batizado. Pode-se considerar esse testemunho da mesma forma que se Deus
testificasse com uma nova voz do céu que Ele o aceita. Portanto, depois de ser batizado, quando
alguém entende a doutrina, ele deve exercer essa fé, crer que é verdadeiramente aceito por Deus
por causa de Cristo e ser santificado pelo Espírito Santo. Deve-se, então, usar o batismo na vida
diária como um lembrete constante, reconhecendo que por meio deste sinal Deus testemunhou
que você foi aceito em Sua graça. Esse testemunho não deve ser desprezado, portanto, creia que
você foi verdadeiramente aceito e invoque Deus com essa fé. Esse é o uso contínuo do batismo.
É semelhante à circuncisão de Abraão, que era um testemunho perpétuo gravado em seu corpo,
lembrando-o da descendência futura e da bênção prometida por causa da descendência. Toda vez
que ele pensava na circuncisão, ele exercia a fé, crendo que estava agradando a Deus e
agradecendo a Ele, bem como O invocando.
Para compreender melhor a amplitude da promessa, consideremos as palavras do batismo,
que resumem o evangelho e estabelecem a bênção pela qual nos consagramos a Deus, invocando
o nome de Deus sobre nós. O ministro diz: “Eu, por mandato divino e em nome de Cristo, o
batizo. Com este sinal, testifico que seus pecados foram lavados e que você foi reconciliado com
o verdadeiro Deus, que é o Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele enviou Seu
Filho por um conselho maravilhoso e inefável para perdoar seus pecados e iniciar em você uma
nova justiça e uma vida eterna pelo Espírito Santo”. Esta bênção nos consagra a Deus e distingue
a Igreja de todas as nações, porque nenhuma outra nação invoca verdadeiramente o Deus que Ele
Se revelou, ou seja, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, aplacado pelo Filho e santificado pelo
Espírito Santo.
Visto que nestas palavras se incluem as verdades supremas do evangelho, elas nos oferecem
inúmeras consolações. Pois, quão grato é ouvir que agora se é verdadeiramente recebido por
Deus e pelo Pai eterno, agraciado com os benefícios de Seu Filho, governado por Deus através
do Espírito Santo e libertado da morte eterna e das amarras do diabo! Quanto mais
profundamente você considera as palavras do batismo, mais se inflama o seu coração com o
reconhecimento da misericórdia de Deus, a sua fé se fortalece e é mais estimulado a invocá-Lo.
Assim como as palavras apresentam promessa e consolação para nós, a fé exige este vínculo
para que reconheçamos o verdadeiro Deus, o Pai eterno de nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Filho
e o Espírito Santo. Sobre este pacto mútuo, 1 Pedro 3. 21 diz: “O batismo, que não é a remoção
das impurezas do corpo, mas o compromisso de uma boa consciência diante de Deus, através da
ressurreição de Cristo”. Aqui, entende-se uma mútua obrigação e uma aliança fiel. Deus promete
nos receber; a consciência, ao crer nesta promessa, a abraça e, assim, verdadeiramente reconhece
a Deus e O invoca. Esta concepção correta de Deus é chamada de “boa consciência”, que
reconhece e invoca Deus de maneira adequada. Também é acrescentada a frase “pela
ressurreição de Cristo”, pois o batismo opera eficazmente devido ao senhorio de Cristo e nos
ordena a ter fé no fato de que a reconciliação nos é concedida por meio de Cristo.
SIGNIFICADOS
Mencionado anteriormente que existem muitos significados nos sacramentos, mas que um é
considerado o principal, ou seja, a graça, o que deve ser preferido aos demais. O ritual também
retrata essa graça, uma vez que a lavagem representa a purificação dos pecados por causa de
Cristo, e o benefício do sofrimento de Cristo nos é aplicado quando somos mergulhados na água,
como se fosse na morte de Cristo. Em seguida, não é absurdo adicionar outros significados.
Assim como a jornada dos israelitas através do Mar Vermelho foi uma imagem das aflições e
libertação da igreja, o mergulho no batismo é uma imagem das aflições e da libertação. No
entanto, o significado principal, que nos lembra da promessa e da graça, deve ser preferido e
requer fé.
Da mesma forma que uma única circuncisão era suficiente quando a circuncisão era
ordenada, então o batismo deve ser administrado apenas uma vez, como esta razão importante
mostra. É pecado abusar do nome de Deus e rejeitar a verdadeira invocação. Aqueles que
rebatizam desaprovam o batismo anterior, indicam que ele é vazio e inútil, e assim desaprovam a
verdadeira invocação de Deus feita neste batismo. Portanto, a cerimônia em si não deve ser
repetida. Quanto aos anabatistas, discutiremos mais sobre eles em breve, pois introduzem muitos
erros perniciosos por meio de seu rebatismo.
Que os piedosos saibam que o batismo realizado uma vez é um testemunho e um pacto
perpétuo. No caso de Davi após seu pecado, não foi necessária uma nova circuncisão; ao
contrário, a circuncisão anterior o instruiu sobre dois aspectos: primeiramente, que ele foi
circuncidado por causa do pecado e, em segundo lugar, que ele deveria voltar à promessa de
reconciliação, destinada àqueles que caíssem. Assim, os que caíram devem perceber que não
precisam repetir a cerimônia, mas, em vez disso, devem ser lembrados do pacto anterior, no qual
se menciona o Filho, que é um testemunho do perdão dos pecados, e devem retornar à
reconciliação pretendida. Portanto, o batismo oferece grande ensinamento e consolação para
aqueles que caíram, pois a menção do Filho nos lembra do arrependimento e do perdão dos
pecados, testemunhando que aqueles que retornam são novamente feitos membros do povo de
Deus.
O BATISMO INFANTIL
Paulo insiste fortemente na necessidade de testar os espíritos, e Cristo nos fornece uma regra
dizendo (Mateus 7. 16): “Pelos seus frutos os conhecerão”. Um sinal certo de uma mente
fanática e atormentada por um espírito maligno é a defesa obstinada de erros flagrantes. Além
disso, os anabatistas não apenas abalam esse único artigo sobre o batismo de crianças, mas
misturam muitos erros extravagantes. Todo o seu delírio confuso é derivado das loucuras de
muitas antigas seitas, como os maniqueístas, entusiastas e das fábulas recentes dos judeus. Eles
não compreendem a distinção entre justiça espiritual e civil. Portanto, negam que os cristãos têm
permissão para ocupar cargos de governo, exercer autoridade, realizar julgamentos, prestar
juramentos legítimos e argumentam que as propriedades pessoais devem ser entregues em
comum, e afirmam que os cônjuges devem ser separados se discordarem do frenesi anabatista.
Essas insanidades não podem deixar de surgir do diabo e são tochas dos sediciosos. Como
não entendem o lugar proeminente do Evangelho na justiça pela fé, mas creem que o homem é
justificado principalmente por suas próprias obras e pelas duras aflições, eles inventam tais obras
monásticas para parecerem estar fazendo algo novo e difícil. Os anabatistas monásticos
fabricaram erros ainda mais estranhos. Por meio de sua imaginação, seguindo o costume judaico,
eles profetizaram que uma monarquia dos piedosos surgiria antes da ressurreição e começaram a
armar-se de maneira sediciosa para estabelecer essa monarquia. Esse claro delírio era uma marca
notória do diabo, que deveria convencer os sãos a fugir, compreender e não se contaminar com
os erros anabatistas.
Mesmo que alguns deles sejam mais moderados, eles ainda mantêm as sementes de erros
semelhantes. Em última análise, todos erram sobre o pecado original, a justiça pela fé e o
ministério externo, negando a manifesta insanidade do pecado original e não compreendendo que
o pecado é algo mais do que ações externas e ações que transgridem a lei de Deus. Agora ouço
novos delírios sendo promovidos por eles, afirmando que Cristo sofreu não para abolir o pecado,
mas para abolir a morte corporal. Isso não apenas é falso, mas também é dito de forma tola,
porque abolir a morte é abolir o pecado, como Paulo diz (Romanos 5. 12): “A morte passou a
todos os homens por causa do pecado”. Finalmente, ninguém nunca defende um erro flagrante
sozinho, mas geralmente o mistura com outros erros. Portanto, é fácil julgar as opiniões
fanáticas, desde que sejam conhecidos os sinais desse tipo. Visto que os sinais do espírito
maligno são evidentes nas confusões das doutrinas anabatistas, devemos fugir de sua
contaminação e não sermos movidos por sua hipocrisia.
Quanto ao batismo de crianças, a prática não é uma novidade, mas foi confirmada pelo
testemunho das primeiras e mais puras igrejas, como demonstram as seguintes passagens que
recitarei, pois não duvido que exemplos da igreja mais pura fortalecem os piedosos.
Orígenes, no Capítulo 6 da carta aos Romanos, escreve assim: “A igreja também recebeu a
tradição dos apóstolos de batizar até mesmo as crianças; pois aqueles a quem foram confiados os
segredos dos divinos mistérios sabiam que todas as pessoas nascem com as impurezas genuínas
do pecado, as quais devem ser removidas pela água e pelo Espírito”. Essas palavras de Orígenes
fornecem um claro testemunho de dois pontos: o pecado original e o batismo de crianças.
Cipriano escreve que, em um sínodo, uma opinião que não queria que as crianças fossem
batizadas antes do oitavo dia foi condenada. O sínodo decidiu que as crianças deveriam ser
batizadas e que não era necessário seguir o período prescrito do oitavo dia.
Agostinho, em seu livro “Sobre o Batismo Contra os Donatistas”, no quarto livro, diz o
seguinte sobre o batismo de crianças: “O que é observado pela igreja universal, que não foi
instituído por concílios, mas sempre foi mantido, acredita-se com grande justiça que não foi
transmitido senão pela autoridade apostólica”.
Argumento 1
Mas também tiraremos argumentos do Evangelho, que, porque seguem logicamente de suas
mais certas sentenças, são necessariamente válidos. Primeiramente, é absolutamente certo que o
Reino de Deus, ou seja, a promessa da graça e a vida eterna, não pertence apenas aos adultos,
mas também às crianças, que são incorporadas à igreja. Pois Cristo disse muito claramente sobre
as crianças (Mateus 19. 14): “De tais é o Reino dos céus” e também: “Não é a vontade do Pai
que pereça um destes pequeninos”. Essas palavras mais doces testemunham que uma grande
parte da igreja de Deus é composta por crianças sobre as quais o nome de Deus é invocado.
Portanto, amemos e protejamos essas palavras e não permitamos que elas sejam contornadas por
argumentos sofísticos, como afirmam os anabatistas, que alegam que nada é prometido às
crianças, mas que apenas preceitos são dados aos adultos, para que estes imitem a inocência das
crianças, que ainda não têm a inclinação para fazer o mal. Essa sofística não deve impedir que se
estabeleça que essas palavras são verdadeiramente promessas, testemunhando que essas crianças
das quais Ele fala, ou seja, as crianças incorporadas à igreja, são agradáveis a Deus.
Também é certo que fora da igreja, ou seja, entre aqueles sobre os quais o nome de Deus não
foi invocado por meio do batismo e que vivem sem o Evangelho, não há remissão dos pecados e
participação na vida eterna. Isso é claramente comprovado por estas palavras: “Não há outro
nome dado aos homens pelo qual devam ser salvos, senão o nome de Jesus Cristo”. Além disso,
na Epístola aos Efésios (5. 25), Paulo, ao falar da igreja, diz: “Cristo amou a igreja e a si mesmo
se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água”.
Paulo definiu a igreja como o reino de Cristo, que Ele santifica. E Ele atribuiu o batismo como o
sinal da igreja, pelo qual ela é distinguida das outras nações sobre as quais o nome de Cristo não
foi invocado. Além disso, na Epístola aos Romanos (8. 30), é dito: “A quem predestinou, a esses
também chamou”. Portanto, não há eleição daqueles que não são inseridos na igreja por meio da
vocação externa. Além disso, no Evangelho de Mateus (18. 20), Jesus diz: “Onde estiverem dois
ou três reunidos em Meu nome, ali estou Eu no meio deles”. Portanto, naquele grupo que não se
reúne em nome de Cristo, Cristo não está presente. Assim, a conclusão segue claramente desses
argumentos: as crianças devem ser necessariamente inseridas na igreja por meio do batismo, no
qual o nome de Deus é invocado sobre elas. A invocação do nome de Deus é uma questão de
grande importância, e isso é feito por meio do ministério. Portanto, Cristo uniu essas duas coisas:
“Deixai vir a Mim os pequeninos, pois deles é o Reino dos céus”, ou seja, daqueles que Me são
oferecidos, sobre os quais o Meu nome é invocado.
Portanto, não tenho dúvidas de que este argumento pode convencer a todos os sãos: Fora da
Igreja não há salvação, ou seja, onde nem o ministério do evangelho é proclamado, nem os
sacramentos são administrados. A promessa de salvação se aplica aos infantes; portanto, é
necessário que os infantes sejam incorporados à igreja através do batismo, no qual o nome do Pai
eterno, do Filho e do Espírito Santo é invocado sobre eles. Este argumento é tão sólido que não
pode ser refutado. De forma alguma pode ser afirmado que a salvação pertence aos infantes fora
da igreja, como os anabatistas afirmam sem nenhuma evidência convincente.
Argumento 2
Os infantes nascem com pecado e não se tornam herdeiros da vida eterna sem a remissão do
pecado. No entanto, Deus instituiu na igreja o ministério de perdoar pecados e distribuir o perdão
através dos sacramentos. Ele deseja que o perdão seja concedido dessa maneira quando
utilizamos o Seu ministério. Portanto, esse benefício deve ser concedido aos infantes por meio do
batismo.
Quanto ao fato de os anabatistas negarem completamente a doutrina do pecado original, isso
revela ainda mais sua loucura. Pois se eles estão sem pecado, Cristo não sofreu por eles.
Coletamos em outro lugar testemunhos proféticos e apostólicos que mostram que todos os que
nascem trazem consigo o pecado, como Romanos 5. 12: “A morte passou a todos os homens,
porque todos pecaram”, ou seja, eles são culpados. E Efésios 2. 3: “Éramos, por natureza, filhos
da ira”, ou seja, culpados ou condenados. Portanto, uma vez que não há dúvida de que há pecado
em bebês, deve haver uma diferença entre bebês pagãos, que permanecem culpados, e bebês na
igreja, que são recebidos por Deus por meio do ministério.
Argumento 3
Aqueles a quem pertence a promessa, pertence também o sinal. Pois o sinal foi instituído por
causa da promessa; é certo, porém, que a promessa da graça se aplica aos infantes: portanto, é
necessário que o sinal seja aplicado a eles por meio do ministério, no qual o nome de Deus é
invocado sobre eles.
Argumento 4
O mandamento do batismo é universal e pertence a toda a igreja (João 3. 3): “A menos que
alguém seja nascido da água e do Espírito, ele não entrará no reino dos céus”. Portanto, também
se aplica aos infantes, que se tornam parte da igreja. Não há dúvida de que sempre houve sinais
pelos quais os infantes foram apresentados a Deus na igreja, como a circuncisão dos meninos
desde os dias de Abraão e outras cerimônias nas quais meninos e meninas eram oferecidos a
Deus, isto é, em cerimônias nas quais o nome de Deus era invocado sobre eles e a bênção divina
prometida aos pais era aplicada a eles. Os pais tinham outros sinais dados por Deus antes de
Abraão. Portanto, esta suposição deve ser mantida: os infantes que estão na igreja, sobre os quais
o nome de Cristo foi invocado, são recebidos na graça, não os turcos, nem os judeus.
Mas os anabatistas protestam e negam que o batismo seja proveitoso para os infantes, pois
não compreendem a palavra, e consideram a cerimônia sem fé no receptor como inútil. A isso
respondo: É absolutamente verdade que em todos os adultos se requer arrependimento e fé. No
entanto, no caso dos infantes, é suficiente entender o seguinte: o Espírito Santo é dado a eles por
meio do batismo, o que produz neles novos movimentos e novas inclinações em direção a Deus,
de acordo com a medida deles. E isso não é afirmado sem fundamento, pois é certo que os
infantes são recebidos por Deus por meio deste ministério, e o Espírito Santo é dado a eles
juntamente com a remissão dos pecados. Além disso, ninguém pode agradar a Deus a menos que
seja santificado pelo Espírito Santo, como Cristo claramente afirma (João 3. 3): “A menos que
alguém seja nascido da água e do Espírito, ele não entrará no reino dos céus”. E também em 1
Coríntios 15. 50: “Carne e sangue, isto é, sem o Espírito Santo, não podem herdar o reino de
Deus”. E Romanos 8. 14: “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de
Deus”. Portanto, uma vez que é certo que esses infantes fazem parte da igreja e são agradáveis a
Deus, também é certo que Deus está agindo eficazmente neles, pois a vida eterna deve começar
nesta vida.
Todas essas coisas sobre o batismo devem ser consideradas com piedade e diligência por
todos nós, para que também nós, que somos mais velhos, nos consolemos com esse pacto e
aliança, como mencionei antes. Mas especialmente os adolescentes devem ter cuidado para não
desprezar o dom do batismo e não perder a grande glória que Cristo atribui às crianças na igreja
(Mateus 18. 14): “Não é a vontade do Pai que um destes pequeninos se perca”. Pois que maior
glória pode ser imaginada do que afirmar que eles certamente agradam a Deus e estão sob o Seu
cuidado? E que os pais, com fé no batismo, invoquem a Deus em nome dos filhos, os confiem a
Deus e, assim que puderem ser ensinados, os habituem a invocar a Deus e Seu Filho, e aos
poucos lhes transmitam a essência do evangelho. Em resumo, uma vez que as crianças são uma
grande parte da igreja, os pais e mestres devem saber que têm um tesouro inestimável confiado a
eles. Portanto, eles devem exercer fé e diligência ao ensinar e guiar a juventude.
A CEIA DO SENHOR.
Frequentemente se afirmou que o singular e imenso benefício de Deus é ainda mais
admirável do que a própria criação das coisas. Deus se revelou à humanidade com testemunhos
específicos e notáveis, e declarou Sua vontade quanto à nossa salvação por meio de promessas
claras. Pela voz dessas promessas, Ele fundou e reuniu Sua igreja desde o início, após os
primeiros pais terem caído. Essa revelação em si mesma convence claramente nossas mentes de
que somos objeto do cuidado de Deus e que Ele olha por nós. Portanto, todas as histórias das
revelações que foram escritas devem ser frequentemente lembradas. Desde quando Deus recebeu
nossos primeiros pais após a queda, proferiu a primeira promessa, deu mandamentos a Noé para
construir a arca, fez uma nova promessa a Abraão, tirou o povo do Egito, deu à Sua igreja uma
morada certa, por assim dizer, e um lugar fixo, enviou profetas e, finalmente, revelou, por meio
da ressurreição dos mortos e outros milagres, que Jesus Cristo, nosso Senhor, foi
verdadeiramente enviado por Deus.
Sempre que mencionamos as promessas e a fundação ou restauração da Igreja, devemos ao
mesmo tempo considerar os testemunhos que Deus adicionou, que são como selos[114] das
promessas que foram dadas.
Existem três grandes e principais razões pelas quais esses rituais externos foram
acrescentados à promessa.
Primeira causa: para lembrar individualmente aqueles que usam a promessa e a vontade de
Deus em relação a nós, de modo que a fé em Deus fosse despertada e fortalecida em nós por
meio deles.
A segunda causa foi e é que a memória seja mais duradoura publicamente e que a promessa
possa ser propagada com mais certeza para toda a posteridade. Pois os rituais são mais
duradouros aos olhos, como vemos que até mesmo os pagãos mantiveram rituais recebidos de
seus pais, embora tenham corrompido esses rituais quando inventaram novas opiniões e novos
ídolos. Além disso, é evidente que os rituais servem para lembrar e propagar. E muitos rituais
pintaram promessas, como a circuncisão lembrava a Abraão e seus descendentes da semente. O
sacrifício de animais lembrava os pais da morte do Senhor que estava por vir.
A terceira causa foi e é que esses rituais serviriam como os laços das reuniões públicas. Pois
Deus deseja que o ministério do evangelho seja público, Ele não deseja que a voz do evangelho
seja mantida em segredo, como os mistérios de Elêusis[115], mantendo a voz do evangelho restrita
apenas a um grupo seleto. Pelo contrário, Ele deseja que o evangelho seja ouvido por toda a
humanidade, quer ser reconhecido e invocado, e deseja que Sua voz seja ouvida publicamente.
Além disso, Ele deseja que essas reuniões públicas sirvam como testemunho da separação da
igreja de Deus das seitas, facções e opiniões de outras nações. Por exemplo, João, em Éfeso, se
reuniu com sua congregação e ensinou o evangelho, e todo o grupo demonstrou através do uso
do Sacramento que abraçava essa doutrina e invocava o Deus que entregou o evangelho. Eles se
distanciaram dos adoradores de Diana, Júpiter e outros ídolos. Deus quer que Sua igreja seja
vista e ouvida no mundo e deseja que ela seja distintamente separada de outras nações por meio
dessas reuniões públicas. Isso foi visto nas reuniões de Adão, Sete, Enoque, Noé, Sem, Abraão e,
posteriormente, na nação de Israel, que tinha muitos rituais para tornar visível essa separação das
nações circundantes.
Embora o diabo sempre tenha tentado e continue a tentar destruir o ministério do evangelho
e dispersar essas congregações e reuniões da igreja por meio de tiranos e hereges, Deus, em Sua
imensa misericórdia, sempre preservou e, de tempos em tempos, restaurou o ministério do
evangelho e as reuniões públicas da igreja. O que são as ameaças atuais dos turcos estão tentando
fazer, senão a tentativa de apagar a voz do evangelho e dispersar as reuniões da igreja de Deus?
No entanto, Deus prometeu que preservará Sua igreja e Ele o fará. E, na própria Ceia do Senhor,
está incluída essa promessa, que afirma que a igreja de Deus não será destruída neste mundo;
pois ordena que a morte do Senhor seja anunciada e que essa Ceia seja celebrada até que Ele
venha. Essa consolação deve ser querida para os piedosos. E aqueles que mantêm a pureza do
evangelho e o uso piedoso dos sacramentos, sem dúvida, estão se defendendo.
Isso eu mencionei para que possamos refletir sobre as razões pelas quais a Ceia do Senhor
foi instituída, que é em si mesma um testemunho notável da revelação de Deus. Não deveríamos
ouvir as palavras da Ceia do Senhor de outra maneira senão se estivéssemos ouvindo o próprio
Cristo falando conosco e, ao mesmo tempo, pensando em Sua ressurreição e nos outros milagres
pelos quais Deus verdadeiramente se revelou a nós. E devemos entender que este sacramento foi
instituído, em primeiro lugar, para nos lembrar individualmente e para despertar e fortalecer a
nossa fé. Além disso, para que a memória da paixão e ressurreição de Cristo seja perpetuamente
transmitida por meio deste ritual e, por fim, para que seja o nervo das reuniões públicas, nas
quais a igreja de Deus mostra que está separada das opiniões das outras nações.
Após essas introduções, consideremos esses quatro pontos:
Primeiro.
O ritual é descrito por Mateus, Marcos, Lucas e Paulo. Especificamente, Paulo diz: “Quando
vocês se reunirem”. Ele deseja que esta Ceia seja um evento público, onde o evangelho seja
ensinado, onde Deus seja invocado em menção e confiança no Senhor Jesus Cristo, e onde ações
de graças sejam oferecidas. Portanto, foi dito: “Façam isso em memória de Mim”.
Este não é um espetáculo vazio, mas Cristo está verdadeiramente presente, dando, por meio
deste ministério, Seu corpo e sangue àquele que come e bebe, como também afirmam os antigos
escritores. Como diz Cirilo sobre o Evangelho de João: “Devemos considerar que Cristo não está
apenas em nós por amor, mas também por participação natural, ou seja, Ele está presente não
apenas em eficácia, mas também em substância”.
E Hilário diz: “Sobre a verdade natural que dizemos em nós, a menos que a aprendamos com
Ele, estaríamos falando tola e impiedosamente”. Pois Ele mesmo diz: “Minha carne é
verdadeiramente comida e Meu sangue é verdadeiramente bebida”, e assim por diante. Receber e
beber essas coisas fazem com que tanto nós estejamos em Cristo quanto Cristo esteja em nós.
Não devemos imaginar que é apenas uma memória de um homem morto, como os espetáculos
sobre Hércules ou coisas semelhantes. Devemos abandonar esses pensamentos profanos e,
lembrados por este testemunho, crer verdadeiramente que Cristo se tornou uma oferta por nós e
morreu, mas ressuscitou e agora reina, e está presente em Sua igreja, e através deste ministério
realmente nos conectamos a Ele como membros.
Segundo.
Nas igrejas que são corretamente ensinadas, os ouvintes devem ser convidados e
acostumados a participar mais frequentemente da Ceia do corpo e do sangue de Cristo, para que,
ao fazê-lo, também seja despertada uma invocação mais fervorosa e ação de graças. Mas ao
mesmo tempo, as pessoas que se beneficiam da comunhão devem ser ensinadas. É repreensível e
lamentável que muitos que desejam ser considerados membros da Igreja raramente participem da
Ceia, talvez uma ou duas vezes em dez anos, e essa negligência muitas vezes abre caminho para
opiniões profanas e extingue a invocação, além de levar a outros vícios.
No início da Igreja, o uso da Ceia era muito mais frequente, como mostram os antigos
registros e cânones. Também é prejudicial que algumas pessoas, que vivem em pecado flagrante
e sem arrependimento, participem da comunhão.
Portanto, é um instituto útil e piedoso examinar primeiro cada indivíduo, entender o que eles
sabem e o que aprenderam, e, durante essa conversa, instruir os menos experientes sobre o que é
o Sacramento, como ele é usado e a quem beneficia.
Então, é evidente que nesta parte devemos frequentemente ensinar que a participação não é
benéfica para aqueles que não se arrependem, mas persistem em pecados conscientemente, como
Paulo claramente afirma: “Aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente
será réu do corpo e do sangue do Senhor”. Comem indignamente aqueles que não trazem o temor
de Deus e a fé, ou seja, o arrependimento e a fé, e que, cientes disso, continuam em seus pecados
conscientemente. Alguns se entregam à luxúria, outros ao ódio e à vingança injusta; alguns
sabem que estão manchados por outros crimes e não desistem de suas intenções maliciosas.
Esses males, por si só, ofendem a Deus. Mas Paulo acrescenta que essa ofensa é agravada por
uma ofensa ainda mais séria, que é o ultraje ao corpo e ao sangue do Senhor. Além disso, ele
acrescenta outra ameaça: “Aquele que comer e beber indignamente, come e bebe para sua
própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor”, ou seja, ele atrai não apenas a punição
por pecados anteriores, mas também por esse crime, que ultraja o corpo do Senhor. Portanto, o
arrependimento ou o temor de Deus é necessário para aqueles que se aproximam da comunhão.
E, de fato, nesta ação em si, que celebra a memória da morte de Cristo, é pregada e ensinada
sobre ambas as coisas: o arrependimento e a fé. Você ouve que o corpo de Cristo é dado por
você; você ouve que o sangue é derramado por você. Essas palavras primeiro nos lembram da
imensa ira de Deus contra nossos pecados, uma ira que não poderia ser aplacada pelas virtudes
ou méritos de nenhum homem ou anjo, mas que exigiu a morte de Seu Filho para ser aplacada. A
mente piedosa pode julgar que o pecado não é um mal leve quando ouvimos essas palavras.
Muitos grandes infortúnios humanos, doenças, exílios, torturas, fome, guerras, pestes e outras
aflições são sinais da ira de Deus contra o pecado e nos são impostos para que possamos ser
lembrados do julgamento e da ira de Deus; no entanto, um testemunho muito mais
impressionante da ira é o Filho de Deus derramando Seu sangue, lutando contra a ira de Deus,
sendo dilacerado e pendurado na cruz. Se alguém não é movido por esse testemunho e não fica
apreensivo com o pensamento da ira de Deus e da morte de Cristo nesta ação e na comunhão, ele
não entende o que está acontecendo aqui. Ó Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, crucificado e
ressuscitado por nós, acenda nossas mentes para que nos voltemos a Deus, para que não
desprezemos Sua ira e Sua morte, mas que verdadeiramente nos dobremos ao conhecimento de
Suas bênçãos e ao maravilhoso propósito de Sua morte.
Este plano supera em muito toda a sabedoria de todas as criaturas. Portanto, és Tu, Filho de
Deus, Jesus Cristo, que nos ensinas, pois disseste (Lucas 10. 22): “Ninguém conhece o Pai, senão
o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar”.
Além disso, a fé também é necessária, buscando e recebendo o perdão dos pecados. Pois
aqui o perdão dos pecados é oferecido e aplicado ao crente. Quando é dito aqui, “este é o sangue
da nova aliança”, somos lembrados do evangelho como um todo, de todo o benefício da nova
aliança. E essa promessa exige fé, como foi amplamente mencionado anteriormente. No entanto,
aqueles que não se arrependem não buscam nem recebem perdão. Então, com esta doutrina em
mente, despertemos nossos corações para o arrependimento e exercitemos nossa fé.
Consequentemente, aqueles que sinceramente se arrependem se aproximam dignamente da Ceia
do Senhor, a fim de fortalecer sua fé com este testemunho e promessa da nova aliança. Portanto,
a participação beneficia aqueles que estão se arrependendo, ou seja, fortalece sua fé, pela qual
aqueles que realmente participam obtêm o perdão dos pecados e o Espírito Santo. Se uma nova
voz de Deus soasse do céu, declarando que você foi reconciliado com Deus, então com grande
alegria você confessaria que crê em Deus e O agradeceria; assim deveríamos sentir neste uso do
Sacramento. Cristo testemunha que, por meio deste penhor tão grandioso, você está sendo
reconciliado com Ele e se tornando membro de Seu corpo. Impulsionado por este testemunho,
creia verdadeiramente que você está sendo reconciliado por Ele, invoque Deus com essa fé,
agradeça a Cristo por ter aplacado a ira de Deus com Sua morte, por nos ter dado o Evangelho e
Suas promessas.
Portanto, o erro dos monges e sacerdotes deve ser rejeitado, aqueles que inventaram que o
ato em si[116], como eles dizem, sem uma disposição de coração apropriada, pode trazer proveito.
Como essas ideias farisaicas conseguiram entrar na Igreja? É dito claramente (Romanos 1. 17):
“O justo viverá pela fé”. Portanto, na participação da Ceia do Senhor, é necessário acrescentar a
fé, considerando muitas coisas importantes: a ira de Deus contra o pecado, a morte do Filho de
Deus pela qual o Pai foi aplacado, a doação do Evangelho e dos Sacramentos, pelos quais a
prometida remissão dos pecados nos é aplicada. Os Sacramentos não concedem a promessa a
todos indiscriminadamente. E nesta ação, Cristo nos une a Si mesmo como membros.
Com essa reflexão e fé, quando invocamos a Deus e nos aproximamos d’Ele sob a liderança
de Cristo, nossos corações são inflamados pelo Espírito Santo. Portanto, a voz externa do
Evangelho ressoa para que nossos corações a recebam pela fé, como Paulo diz: “A fé vem pelo
ouvir”. Assim, a ação externa do Sacramento é apresentada para lembrar nossos corações e
despertar a fé, não como se fosse o fim e o mérito da reconciliação.
Depois de falar sobre o principal objetivo, ou seja, a confirmação da fé, é apropriado
acrescentar muitos outros objetivos; pois uma ação pode ter múltiplos objetivos, desde que sejam
ordenados.
No entanto, é necessário acrescentar como objetivo próximo à confirmação da fé a ação de
graças. É por isso que o nome atribuído a este ritual é “eucaristia”[117]. Aqui, tanto no ensino
quanto nas orações privadas, os benefícios de Cristo devem ser lembrados, e ação de graças deve
ser expressa em voz alta.
Deus Todo-Poderoso, Pai eterno de nosso Senhor Jesus Cristo, Criador de todas as coisas e
Preservador junto com Teu Filho eterno, nosso Senhor Jesus Cristo, e Teu Espírito Santo, tem
misericórdia de mim por intermédio de Jesus Cristo, Teu Filho, que Tu, em Teu conselho
maravilhoso e inexprimível, quiseste fazer uma oferta por nós. Ao mesmo tempo, Tu revelaste
Tua ira contra o pecado e Tua imensa misericórdia para com a humanidade. Santifica, guia e
auxilia-me com Teu Espírito Santo, governa e guarda Tua igreja e as autoridades que são os
hospedeiros das igrejas.
Também Te agradeço, Deus Todo-Poderoso, Pai eterno de nosso Senhor Jesus Cristo,
Criador de todas as coisas e Preservador junto com Teu Filho eterno, nosso Senhor Jesus Cristo,
e Teu Espírito Santo, por Tua imensa bondade revelada à Tua igreja. Enviaste Teu Filho, nosso
Senhor Jesus Cristo, para que Ele se tornasse uma oferta por nós, e através d’Ele nos fosse
concedido o perdão dos pecados e a vida eterna. E agradeço também por concederes a nós, por
meio do Evangelho e dos Teus Sacramentos, e por preservares o ministério do Evangelho e a
Igreja, sem permitir que sejam destruídos. Que possamos contemplar e celebrar com um coração
grato esta grande bondade e benefícios imensuráveis. No entanto, oro para que Tu nos acendas
com Teu Espírito Santo, para que nossos corações sejam verdadeiramente gratos, e que a
gratidão resplandeça em nossos comportamentos, etc.
Também agradeço a Ti, Jesus Cristo, Filho de Deus, crucificado por nós e ressuscitado, por
teres intercedido com grande amor por nós diante do Pai eterno em favor da humanidade e por
Te tornares uma vítima por nós. Em Ti, aplacaste a ira de Deus contra nossos pecados. Acende
nossos corações para que possamos compreender melhor este Teu grande benefício e celebrá-lo
com verdadeira gratidão, etc.
Que os mais simples conservem algum tipo de forma para que possam ser estimulados a
pensar nessas questões mais importantes. Pois a fé se alimenta e se acende através do
pensamento. O coração se move quando refletimos sobre a severa justiça de Deus, que não
perdoou o pecado sem penalidade, e, portanto, verdadeiramente se enfurece com o pecado, de
forma justa e terrível. E qual é o tamanho do amor do Filho, que intercede por nós e atrai sobre si
a ira? Quão profunda foi a sua humilhação? Ele se apresentou diante de Deus, sentindo a Sua ira
como se estivesse contaminado com os teus pecados e com as inúmeras infâmias dos piores
pecadores, os ídolos, a lascívia e outros ultrajes. Por que nos orgulharíamos, quando o Filho de
Deus se humilhou tanto? É útil pensar sobre essas coisas durante a ação de graças.
Um terceiro propósito deve ser acrescentado, ou seja, que o exemplo de Cristo seja útil para
manter a congregação pública. Pois se apenas alguns participassem da Ceia e as pessoas fossem
gradualmente afastadas desse encontro, com o tempo, as igrejas esqueceriam completamente a
congregação pública, os sermões e a Ceia, como aconteceu em grande parte do mundo, onde
apenas sacerdotes leem missas, o povo se afasta das igrejas, não ouve pregações e não entende o
uso da Ceia.
Mas este é o mandamento de Deus: que cada um, pelo seu exemplo, convide os outros para
esta congregação pública, como ensina o mandamento sobre o Sabá, porque Deus quer que o
ministério seja público, que o Evangelho seja proclamado publicamente, que todos ouçam e
aprendam. Ele também prometeu estar presente nessas reuniões e atender às orações, como é
claramente afirmado em Mateus 18. 20: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em Meu
nome, ali estou no meio deles. Se dois de vocês concordarem na terra em qualquer assunto que
pedirem, isso lhes será feito por Meu Pai que está nos céus”. Com esta doce promessa, Cristo nos
recomenda a congregação pública, Ele deseja que amemos a comunidade, que a igreja seja
comunitária[118], e Ele odeia dispersão e a dissolução.
O quarto objetivo é a Confissão da doutrina. Quando você recebe o Sacramento, está
mostrando que aprova a doutrina da Igreja e deseja ser membro da comunidade que compartilha
a refeição do Cordeiro.
O quinto objetivo é o vínculo da mútua afeição. Assim como era comum compartilhar a
mesma comida ao fazer acordos e tratados antigamente, Paulo nos lembra que essa comunhão é
um elo de amor mútuo: assim como o pão é um, nós somos muitos e formamos um único corpo.
Esses objetivos devem ser entendidos dessa forma, para que o objetivo principal não seja
deixado de lado e para que nada seja adicionado que entre em conflito com o objetivo principal e
obscureça a doutrina sobre o verdadeiro uso do Sacramento e o exercício da fé.
Terceiro.
Aqueles que devem ser admitidos ao Sacramento podem ser entendidos com base no que
Paulo disse (1 Coríntios 11. 29): “Aquele que come e bebe indignamente, come e bebe para sua
própria condenação”. Aqueles que comem indignamente são aqueles que persistem em pecados
conscientes, tanto públicos quanto secretos, e também aqueles que não trazem arrependimento e
fé.
No entanto, os ministros não podem julgar senão os pecados manifestos. Portanto, eles
devem afastar aqueles que, tendo cometido pecados manifestos, não se arrependem. E lembrem-
se do preceito (Mateus 7. 6): “Não deem aos cães o que é santo”.
Isso também pertence ao dever dos pastores: examinar a doutrina e a fé de cada pessoa na
congregação e professar a fé e mostrar o que pensamos sobre a doutrina. Cada um de nós deve
fazer isso diante dos pastores. Assim como Pedro aconselha que devemos estar prontos para dar
uma razão de nossa fé.
Aqueles que verdadeiramente se arrependem e têm temor sério não devem evitar o uso do
Sacramento por causa de pecados anteriores. Eles devem entender que este sinal foi instituído
apenas para acender e fortalecer a fé na remissão dos pecados e para que a mente, reconciliada
com Deus, O invoque novamente e O sirva com uma consciência boa. A mente não deve confiar
em sua própria dignidade e pureza, assim como o filho pródigo, ao retornar ao pai, não proclama
suas próprias obras e méritos, mas reconhece, acusa e lamenta sua culpa. Da mesma forma,
devemos reconhecer e confessar nossas impurezas e recorrer à misericórdia prometida por Cristo,
cujo penhor de misericórdia é a própria Ceia, na qual Cristo nos une a Ele como membros e
testemunha que a remissão dos pecados nos é concedida gratuitamente, ou seja, não por nossa
dignidade, mas porque Ele próprio se tornou a vítima por nós. Quando essas reflexões são feitas
de maneira piedosa durante o uso do Sacramento e a invocação, a compreensão da fé é
aprimorada mais do que por meio de longas discussões, e os abusos podem ser facilmente
identificados.
Quarto.
Contra o piedoso uso deste Sacramento, sobre o qual falei, ocorreram terríveis profanações
na Igreja, que precisam ser censuradas e evitadas, de acordo com a passagem (1 Coríntios 10.
14): “Fujam dos ídolos”. Primeiro, devemos manter uma regra clara e sólida: a cerimônia não
tem a natureza do Sacramento, ou seja, não é um sinal agradável a Deus da Sua graça, quando
algo é instituído fora e além da Palavra de Deus, ou quando a cerimônia é transformada em uma
ação de natureza diferente, ou seja, quando se estabelece um objetivo diferente daquele proposto
por Deus. Por exemplo, se alguém transportasse água do Batismo para ser observada e ensinasse
que o Espírito Santo estava contido nela, ou se alguém usasse o Batismo para curar a lepra. Da
mesma forma, a circuncisão judaica e muçulmana não tem qualquer natureza de Sacramento, ou
seja, não é agradável a Deus, mas é uma exibição ímpia e condenada por Deus, pois vai contra a
Palavra de Deus.
A partir deste exemplo, muitos abusos evidentes da Ceia do Senhor podem ser julgados. A
exibição em que o pão é carregado certamente não é uma refeição. No entanto, Jesus disse
(Mateus 26. 26): “Tomem, comam”. Nada se encaixa na natureza do Sacramento tirar uma parte
e prender o próprio Cristo ali sem nenhuma palavra divina. Assim, a cerimônia é transformada
em um ato completamente diferente quando afirmam estar oferecendo o Filho de Deus pelos
vivos e pelos mortos e merecendo para eles a remissão dos pecados. Vai-se ainda mais longe da
instituição quando se recorre a bens corporais a serem obtidos, à vitória, à felicidade no
comércio, à expulsão da doença. Quando o sacerdote oferece de tal forma para obter esses bens,
desvia-se da instituição. É ainda mais estranho quando sacerdotes ignorantes, sem saber o que
estão fazendo, realizam essa oferta (como eles chamam) apenas por causa de seus próprios
ventres.
Embora eu saiba que esses abusos são defendidos com grande teimosia e desculpados por
meio de artimanhas enganosamente elaboradas e vários disfarces; ainda assim, encorajo os
piedosos a fugirem dessa profanação horrenda, de acordo com a orientação: “Fuja da idolatria”, e
a aprenderem o uso piedoso do Sacramento. Assim como sempre houve calamidades públicas,
queda de reinos, guerras, destruições, tumultos, raiva de governantes, fome, pestes, como castigo
por esses pecados, especialmente a adoração de ídolos, assassinatos injustos e luxúria; acredito
que as ameaças turcas se intensificam, principalmente devido à introdução de ídolos na Igreja,
profanações das Missas, invocações aos mortos e devido às luxúrias errantes. Portanto, oremos
ao Filho de Deus para corrigir os erros e mitigar os castigos.
Na verdade, não é necessário uma longa discussão sobre algo tão evidente. Assim como os
sacerdotes fariseus costumavam fingir que mereciam a remissão dos pecados por meio de seus
sacrifícios, os monges e sacerdotes inventaram que poderiam merecer a remissão de pecados
para si mesmos e para os outros por meio de suas ofertas, vivos e mortos. Nesse erro estão
contidas muitas persuasões falsas e prejudiciais, ou seja, que a paixão de Cristo não teria sido
suficiente para toda a Igreja e que as pessoas obtêm reconciliação por causa da obra do sacerdote,
e não pela confiança na misericórdia prometida por meio do Filho de Deus crucificado por nós.
Além disso, surgem muitos outros erros.
Consequentemente, é necessário opor-se a essas ideias equivocadas com a verdadeira
doutrina sobre o mérito da paixão de Cristo, conforme está escrito em Hebreus 10. 14: “Por uma
única oferta, aperfeiçoou para sempre aqueles que estão sendo santificados”. Portanto, somente a
morte de Cristo foi o sacrifício por todos os nossos pecados, não sendo necessário nenhum outro
ritual levítico ou prática subsequente.
Além disso, é evidente que recebemos o perdão dos pecados pela fé em Cristo, não por meio
de nossas obras ou dos sacrifícios de sacerdotes, de acordo com a famosa e sólida doutrina: “O
justo viverá pela fé”. A partir disso, é fácil para todos os piedosos discernirem os terríveis abusos
que são defendidos por aqueles sacerdotes que buscam ganho pessoal com a Ceia do Senhor.
Por último, de onde vem a ideia de que eles afirmam oferecer o Filho de Deus? É uma
questão significativa oferecer, reconhecendo a ira de Deus contra os pecados da humanidade,
submetendo-se a essa ira, sendo um Mediador entre Deus e a humanidade e entrando no Santo
dos Santos diante de Deus. Portanto, em Hebreus 9. 12, é dito: “Não pelo sangue de bodes e
bezerros, mas pelo Seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, efetuando uma eterna
redenção”. Além disso, em Hebreus 9. 14: “Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito
eterno se ofereceu a Si mesmo imaculado a Deus, purificará das obras mortas a sua consciência,
para servirem ao Deus vivo?”.
Cristo Se ofereceu a Si mesmo. Portanto, é nosso dever reconhecer essa oferta feita por Ele e
crer que, por meio dela, o eterno Pai está reconciliado conosco e, por causa disso, agradecer. Que
os piedosos considerem isso e busquem as verdadeiras testemunhas da antiga Igreja. Eu sei que
muitos reunirão uma série de testemunhos fúteis dos autores recentes. No entanto, é necessário
que os piedosos exerçam discernimento para separar as testemunhas falsas e adulteradas das
genuínas. Portanto, mantenhamos o costume apostólico, que perdurou na Igreja por cerca de
trezentos anos desde os tempos dos Apóstolos. Leituras piedosas devem ser lidas, o povo deve
ser instruído através de sermões edificantes, orações devem ser oferecidas e, em seguida, as
palavras de Cristo sobre a Ceia devem ser lidas, e o Sacramento deve ser distribuído a alguns
piedosos examinados que o buscam. Depois disso, uma ação de graças deve ser oferecida. Não
devem ser feitas ofertas privadas por indivíduos.
E como este assunto exige uma explicação que mostre o que é um sacrifício e se há uma
única maneira de se referir a ele, adicionarei esta declaração, que eu considero necessária.
SOBRE O SACRIFÍCIO.
Embora possa parecer simplista distinguir entre os termos “Sacramento” e “Sacrifício”, a
natureza das cerimônias exige que se observe uma diferença em seus propósitos e fins. Algumas
são sinais e símbolos das promessas, através das quais Deus nos oferece algo, enquanto outras
são rituais ou ações que realizamos como uma forma de adoração a Deus.
É necessário manter essas distinções nas cerimônias, independentemente das palavras que
utilizamos. Dado que os termos “Sacramento” e “Sacrifício” estão em uso, continuaremos a usá-
los. Portanto, um “Sacramento” é uma cerimônia que é um sinal de uma promessa pela qual
Deus nos oferece ou nos concede algo. Por exemplo, a circuncisão era um sinal através do qual
Deus prometia receber os circuncidados. O batismo é um sinal pelo qual Deus age em relação a
nós e nos recebe em Sua graça; é como se Deus mesmo nos batizasse, pois o ministro do batismo
age em nome de Cristo.
Por outro lado, um “Sacrifício” é uma cerimônia ou uma ação que realizamos em direção a
Deus como uma forma de honrá-Lo. É uma maneira de testemunhar nosso reconhecimento de
que Deus é verdadeiramente Deus e, portanto, oferecemos a Ele essa obediência.
Existem apenas duas espécies de Sacrifício próximas, e não mais do que isso. Uma delas é o
Sacrifício propiciatório, ou seja, uma obra que obtém para outros a remissão da culpa e da pena
eterna, ou uma obra que reconcilia Deus e aplaca a ira divina em favor dos outros, e é satisfatória
pelos pecados e pena eterna. A outra espécie é o Sacrifício de ação de graças (εύχαριστικόν), que
não obtém remissão de pecados ou reconciliação, mas é oferecido pelos reconciliados como uma
maneira de agradecer a Deus pela remissão dos pecados e por outras bênçãos, expressando
gratidão a Deus por meio dessa obediência.
Essa distinção pode ser claramente comprovada pela Epístola aos Hebreus, que ensina que
havia apenas um Sacrifício Propiciatório no mundo. Portanto, conclui-se que todas as outras
ações são consideradas obras nas quais os reconciliados deveriam expressar sua obediência.
Além disso, todas as ofertas na Lei de Moisés podem ser classificadas em uma dessas duas
categorias que mencionei. Alguns sacrifícios levíticos eram chamados de “propiciatórios” devido
à sua semelhança ou significado, não porque eles obtivessem a remissão dos pecados diante de
Deus, mas porque apontavam para o futuro sacrifício de Cristo. No entanto, aqueles sacrifícios
mereciam a remissão dos pecados em termos de conduta externa, ou seja, para que as pessoas
não fossem excluídas da comunidade de Moisés. Portanto, esses sacrifícios eram chamados de
propiciação pelo pecado, pela transgressão, e também o holocausto. Em contraste, outros
sacrifícios eram ofertas de ação de graças (εύχαριστικά), ofertas de cereais, libações, ofertas
votivas, ofertas de retribuição, primícias e dízimos.
No entanto, na realidade, houve apenas um sacrifício verdadeiramente propiciatório no
mundo, ou seja, a paixão ou morte de Cristo, como ensinado na Epístola aos Hebreus (10. 4):
“Porque é impossível que o sangue de touros e de bodes tire pecados” e logo depois (versículo
10), fala da vontade de Cristo: “Estamos santificados pela oferta do corpo de Jesus Cristo feita
uma vez por todas”.
Pois até mesmo Cristo aplica Seu próprio sacrifício a nós quando Ele ora por nós. No
Evangelho de João 17 (versículos 20 e 21), Ele diz: “Não rogo somente por estes, mas também
por aqueles que pela Sua palavra hão de crer em Mim; para que todos sejam um, como Tu, ó Pai,
o és em Mim, e Eu em Ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que Tu
Me enviaste”.
Aqui estão as palavras de nosso Sumo Sacerdote e Pontífice, com as quais Ele Se oferece por
toda a Igreja e intercede por ela, o que sempre devemos manter em mente. O profeta Isaías
também interpreta a Lei, para que saibamos que a morte de Cristo é verdadeiramente uma
satisfação pelos nossos pecados ou expiação, não as cerimônias da Lei. Portanto, ele diz em
Isaías 53. 10: “Quando der a Sua alma como oferta pelo pecado, verá a Sua posteridade,
prolongará os Seus dias etc.”, como se dissesse: Outra oferta permanece, que verdadeiramente
removerá o pecado e a morte. Portanto, essas cerimônias comuns não removem o pecado e a
morte. Paulo também expressou essa ideia quando disse: “Ele se fez maldição” e “Ele condenou
o pecado no pecado”, ou seja, Ele puniu e removeu o pecado por meio da oferta pelo pecado. Os
hebreus chamavam essa oferta pelo pecado ou delito, assim como os latinos chamavam de
expiação. Portanto, devemos manter isso em mente: houve apenas um único sacrifício
propiciatório no mundo. As ofertas propiciatórias mencionadas na Lei, como mencionei antes,
eram chamadas assim por uma semelhança e, portanto, foram abolidas após a aparição de Cristo.
Além disso, uma vez que o Evangelho foi prometido para trazer a verdadeira propiciação, é
necessário que as cerimônias levíticas não fossem verdadeiras propiciações, porque foram
abolidas com a revelação do Evangelho.
O SACRIFÍCIO EUCARÍSTICO.
Agora restam os Sacrifícios Eucarísticos, também chamados de Sacrifícios de louvor, a
pregação do Evangelho, a fé, a invocação, a ação de graças, a confissão, as aflições dos santos, e,
na verdade, todas as boas obras dos santos. Esses Sacrifícios não são satisfações para aqueles que
os realizam ou podem ser aplicados a outros para merecer a remissão dos pecados ou
reconciliação por meio da obra em si. Portanto, além do único sacrifício propiciatório, ou seja, a
morte de Cristo, os outros sacrifícios no Novo Testamento são apenas de ação de graças, como
Pedro ensina em 1 Pedro 2. 5: “Vocês são também como pedras vivas edificados para casa
espiritual e sacerdócio santo, a fim de oferecerem sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por
Jesus Cristo”. Estes sacrifícios espirituais não se assemelham apenas aos sacrifícios de animais,
mas também às boas obras humanas oferecidas pelo trabalho em si, ou seja, sem fé e um coração
piedoso. Isso ocorre porque “espiritual” refere-se ao movimento do Espírito Santo em nós. A
Epístola aos Hebreus também fala sobre esses dois sacrifícios em Hebreus 13. 15: “Por Ele, pois,
ofereçamos sempre a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o Seu
nome”. E acrescenta uma interpretação: “o fruto dos lábios que confessam o Seu nome”, ou seja,
invocação, ação de graças, confissão e coisas semelhantes. Esses sacrifícios têm valor não por
causa do trabalho em si, mas por causa da fé. A partícula “por Ele” significa que oferecemos
esses sacrifícios por meio da fé em Cristo. É uma consolação notável para a mente cristã saber
que todas as boas obras e aflições são sacrifícios, isto é, obras agradáveis a Deus, pelas quais
Deus declara que deseja receber honra.
E quanto a esse tipo de sacrifícios, há muitos ensinamentos nos Salmos e nos Profetas. Por
exemplo, no Salmo 49. 14, lemos: “Oferece a Deus sacrifício de louvor e paga ao Altíssimo os
seus votos”. Da mesma forma, no Salmo 51. 17, encontramos: “Sacrifícios agradáveis a Deus são
o espírito quebrantado; coração quebrantado e contrito, não o desprezarás, ó Deus”.
Em segundo lugar, é importante entender que o culto no Novo Testamento é espiritual, o que
significa que é uma questão de justiça pela fé e dos frutos da fé. Isso ocorre porque o Novo
Testamento traz a justiça e a vida espiritual e eterna, como está escrito em Jeremias 31. 33: “Mas
este é o pacto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei a minha lei
no seu interior, e a escreverei no seu coração”. Além disso, Jesus disse em João 4. 23: “Mas a
hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade,
porque o Pai procura a tais que assim O adorem”. Isso significa que o culto verdadeiro deve ser
prestado com um coração sincero e em espírito. Portanto, o culto levítico foi abolido porque deve
ser substituído pelo culto espiritual da mente e pelos frutos e sinais desse culto.
Então, segue-se que não há nenhum sacrifício ou culto no Novo Testamento que, por obra
realizada (ex opere operato), mereça perdão dos pecados para quem o realiza ou para outros.
Essa ideia entra em conflito com a afirmação de que “os verdadeiros adoradores adorarão o Pai
em espírito e em verdade”. Além disso, essa crença se assemelha à perspectiva dos fariseus de
que algum tipo de culto pode merecer perdão dos pecados apenas por meio de obras. Os judeus,
influenciados por essa crença, multiplicaram seus cultos na esperança de acumular méritos, graça
e outros benefícios por meio desses rituais, algo que os profetas rejeitaram veementemente. O
Salmo 50 repudia esse entendimento e enfatiza a importância da verdadeira invocação a Deus em
vez de sacrifícios vazios. Isaías 1. 11 indaga: “Para que Me serve a Mim a multidão de seus
sacrifícios?”. Jeremias 7. 22 também declara: “Porque Eu não falei com seus pais, nem lhes dei
ordens no dia em que os tirei da terra do Egito, acerca dos holocaustos ou sacrifícios”.
No entanto, é claro que a Lei contém prescrições sobre sacrifícios. No entanto, os profetas
condenam a crença no valor intrínseco dos sacrifícios e obras feitas meramente por sua
realização. Tais sacrifícios não são o que Deus requer. Na verdade, na Igreja, uma opinião
semelhante se formou em torno das missas, considerando-as sacrifícios que agradam a Deus por
meio de obras realizadas e que merecem perdão dos pecados para aqueles que participam. Isso
ocorre porque ensinaram que a Missa aplicaria o sacrifício de Cristo. No entanto, na realidade,
cada pessoa aplica o sacrifício de Cristo a si mesma por meio de sua fé pessoal, e isso ocorre
gratuitamente, ou seja, não é devido a obras alheias.
No entanto, um único ato pode ter múltiplos propósitos. No caso da Ceia do Senhor, a
utilizamos como Sacramento, pois é um testemunho que fortalece a fé. Além disso, essa mesma
fé, quando acompanhada de uma ação externa, se torna um tipo de sacrifício, pois Deus aprova e
aceita essa fé. Também nos ensinamentos do Novo Testamento, esses exercícios de fé são
considerados sacrifícios de louvor e culto. Portanto, essa obediência espiritual se torna um tipo
de sacrifício no qual oferecemos honra a Deus, conforme Ele requer e aprova.
Além disso, a fé necessariamente está ligada à gratidão por esse grande benefício concedido
a nós e à Igreja como um todo, o que justifica a denominação de “ευχαριστίας” ou ação de
graças. Além disso, o mesmo ato é uma forma de confissão, pois mostramos que estamos
comprometidos com o Evangelho e convidamos outros com o nosso exemplo. Todas essas ações
são consideradas sacrifícios de ação de graças. Portanto, os antigos chamaram esse ritual de
“Sacrifício”.
A afirmação de alguns de que a natureza de qualquer sacrifício é a de ser aplicado em
benefício de outros é falsa. Afinal, nossos próprios sofrimentos são sacrifícios, mas não são
aplicados em benefício de outros, como diz em 1 Coríntios 3. 8: “Cada um receberá a sua
recompensa de acordo com o seu próprio trabalho”. Além disso, como nossas obras são uma
forma de culto devido a nós mesmos, como Paulo diz em Romanos 8. 12: “Somos devedores”, e
como são insuficientes por si mesmas e precisam da fé, que busca que nossa fraqueza não nos
seja imputada, seria uma arrogância considerar essas obras não apenas como méritos para nós,
mas também para outros. Isso vai contra o que Cristo ensinou em Lucas 17. 10: “Assim também
vocês, quando fizerem tudo o que lhes foi ordenado, digam: Somos servos inúteis”. Além disso,
no Salmo 49. 14 e seguintes, o salmista chama a ação de graças e a invocação de sacrifício em
tempos de tribulação. Portanto, é uma falsa crença que a natureza de qualquer sacrifício seja
aplicá-lo em benefício de outros. Apenas o sacrifício propiciatório de Cristo foi aplicado em
benefício de outros. Nossos outros sacrifícios, que são ações de graças, beneficiam aqueles que
os realizam da mesma forma que qualquer boa obra que fazemos beneficia a nós mesmos e não
precisam ser aplicados para merecer o perdão dos pecados de outros, etc.
No entanto, a oração em nome de outros é diferente da natureza das obras. Não estamos
oferecendo a Deus alguma obra como pagamento pelos outros, apenas estamos buscando receber
de Deus. Deus prometeu dar a nós e aos outros por quem estamos orando. Essas distinções
podem ser facilmente entendidas. Na oração, não estamos opondo ou oferecendo alguma obra
nossa a Deus como pagamento pelos outros; simplesmente buscamos receber de Deus,
especialmente por meio do Mediador Cristo, como está escrito em João 14. 13: “Tudo o que
pedirem em Meu nome, Eu o farei”. Uma coisa é agir com fé diante de Deus sem se apoiar em
nossas próprias obras; outra coisa é opor a Deus o mérito de alguma obra específica,
especialmente em benefício de outros. Portanto, a aplicação de nossas obras em benefício de
outros, especialmente para a remissão dos pecados, não deve ser concedida, porque está escrito:
“O justo viverá pela sua fé”.
Além disso, é importante saber que, assim como alguns são punidos pelos pecados de outros,
da mesma forma, a justiça de alguns pode garantir muitos benefícios para outros. Há muitos
testemunhos e exemplos para ambas as opiniões nas Escrituras. Por exemplo, em Jeremias 49.
12, diz: “Eis que aqueles a quem não pertencia o julgamento beberam do cálice; você beberá
totalmente impune?”. Isso mostra como a punição por alguns pecados afeta outros. Em relação
aos benefícios públicos e privados, Isaías 33. 15-17 diz: “Aquele que anda em justiça e fala com
sinceridade, que recusa o lucro da opressão, que sacode das suas mãos todo suborno, que tapa os
ouvidos para não ouvir falar de derramamento de sangue e fecha os olhos para não contemplar o
mal, este habitará nas alturas; fortalezas rochosas serão o seu refúgio; o seu pão lhe será dado e
água não lhe faltará”. Aqui, entre outras recompensas, Deus promete um estado público mais
pacífico, ou seja, um benefício comum para muitos. Também existem exemplos disso nas
Escrituras, como quando o povo foi punido devido ao pecado de Davi, quando Deus decidiu
poupar Sodoma por causa de poucos justos, ou quando Deus abençoou a Síria por causa de
Naamã. Portanto, devemos entender que as punições e recompensas podem afetar muitas
pessoas, e isso deve nos motivar a agir corretamente.
No entanto, é importante lembrar duas coisas em relação a essas passagens: Primeiro, que
esses versículos não se aplicam à justificação, ou seja, as boas obras dos santos não são úteis
para justificar os injustos. Em vez disso, essas boas obras dos santos impetram muitos bens
comuns para os justos, porque somos membros de um só corpo. Em segundo lugar, não cabe a
nós aplicar nossos méritos aos outros, pois isso seria uma forma de confiar em nosso próprio
trabalho. Em vez disso, devemos permitir a Deus decidir que recompensas comuns ou
individuais Ele concederá a nós. A oração, por outro lado, é aplicada aos outros porque se baseia
não em nossa própria dignidade, mas na promessa gratuita de Cristo. A partir disso, podemos
facilmente julgar o que se deve pensar sobre a aplicação. No que diz respeito à justificação,
nenhuma aplicação é possível sem a fé pessoal. A fé, por sua vez, utiliza instrumentos como a
Palavra e os Sacramentos, que testemunham que o benefício de Cristo pertence a nós e não
depende da dignidade do trabalho humano de outrem. Com isso, concluo modestamente minha
explicação sobre a Missa.
SOBRE PENITÊNCIA
Quando alguns contaram a Jesus sobre um ato cruel de Pilatos, no qual ele havia matado
alguns galileus e misturado seu sangue com os sacrifícios deles, Jesus não acusou diretamente
Pilatos. Em vez disso, Ele lembrou seus ouvintes de que também eram culpados e os exortou ao
arrependimento, dizendo (Lucas 13. 3): “Se não se arrependerem, todos igualmente perecerão”.
Dessa forma, entendemos que todas as calamidades do mundo devem servir como sermões de
arrependimento para todos nós.
Permanecem nesta vida muitos pecados até mesmo nos santos, que devem ser reconhecidos
e lamentados por meio de contínua penitência. Além disso, há outros que cometeram
transgressões conscientemente e estão fora da graça de Deus. A menos que se convertam a Deus
nesta vida, eles enfrentarão punições eternas e se tornarão inimigos eternos de Deus. Portanto, a
mensagem principal de Deus na Igreja é: Arrependam-se e creiam no Evangelho, para que alguns
sejam libertos da perdição eterna.
Essa foi a primeira pregação no Paraíso, quando Deus repreendeu os primeiros pais após a
queda e acrescentou o perdão por meio da promessa do Salvador vindouro. Assim,
posteriormente, na Igreja, os Pais, Profetas, Cristo, Apóstolos e todos os ministros fiéis da
Palavra abraçaram esses dois tipos de ensinamento. Eles declararam a ira de Deus contra o
pecado, mostraram que a humanidade estava sujeita a inúmeras calamidades devido ao pecado e
anunciaram punições eternas para todos que não se convertessem a Deus. Em seguida, eles
apresentaram o perdão para aqueles que estavam quebrantados e abraçaram o Filho de Deus,
começando a obedecer à Palavra de Deus.
Portanto, a fim de nos motivarmos para o arrependimento, devemos aprender a doutrina
completa sobre este assunto e meditar sobre ela constantemente. Reunamos todas as evidências
da ira de Deus contra o pecado, as calamidades privadas e públicas de todos os tempos, a ameaça
de punições eternas e, por fim, a morte do Filho de Deus. Pois esta última é o testemunho mais
notável da ira de Deus contra o pecado. Não devemos considerá-la como um espetáculo inútil. É
necessário compreender que a ira de Deus contra o pecado é séria, imensa e indescritível, uma
vez que só poderia ser aplacada pelo sacrifício de Seu Filho em nosso favor. Se a humanidade
entendesse verdadeiramente este testemunho, todos ficariam aterrorizados instantaneamente. No
entanto, o mundo, por enquanto, despreza todas essas evidências em sua profana segurança.
No entanto, devemos nos livrar dessa segurança e sermos movidos por essas obras terríveis
de Deus. Devemos, mais uma vez, considerar a magnitude de Sua misericórdia, pois Deus não
desejava que toda a humanidade perecesse. Ele se revelou a nós para que O reconheçamos e
invoquemos. Ele deu Seu Filho por nós, para que Ele seja Emanuel, ou seja, Deus conosco,
nosso Auxiliador e Salvador. Ele concedeu a promessa de graça e vida eterna, e Ele dá o Espírito
Santo como nosso Guia para aqueles que O buscam.
Contemplando todas essas bênçãos, devemos reconhecer e lamentar nossa dureza de coração
e pedir a Deus que nos converta a Ele. Ele prometeu certamente dar o Espírito Santo àqueles que
O buscam e nos ordena a crer que somos aceitos por causa de Seu Filho, como veremos mais
adiante.
Mencionei isso anteriormente para nos estimular a refletir constantemente sobre este artigo.
Agora, em relação ao nome, não quero discutir sobre palavras. Quando usamos o termo
Penitência (Poenitentiam) na Igreja, nos referimos à conversão a Deus, e para fins de ensino,
distingo as partes dessa conversão ou os diferentes movimentos nela. Refiro-me às partes como
Contrição e Fé. É necessário que a nova obediência siga essas partes, e se alguém quiser chamá-
la de terceira parte, não vou discordar. Não brigaremos sobre palavras, mas devemos ser
vigilantes na defesa das coisas que são necessárias para a igreja e na refutação dos erros que
lançam trevas sobre a verdadeira doutrina.
No entanto, antes de explicar as partes, é necessário refutar brevemente dois erros de
fanáticos que inventaram a ideia de que os regenerados não podem pecar e que, mesmo que
pequem contra a consciência, ainda são justos. Esse delírio deve ser condenado e oposto por
meio de exemplos e passagens das Escrituras Proféticas e Apostólicas. Como Saul e Davi, que
agradaram a Deus, foram justos e receberam o Espírito Santo, mas depois caíram, de forma que
um deles foi totalmente perdido e o outro se converteu novamente a Deus. Há muitos ditos a esse
respeito. Mateus 12. 44, por exemplo, diz: “Quando o espírito imundo sai de um homem, vagueia
por lugares áridos em busca de descanso e não o encontra. Então ele diz: ‘Vou voltar para a casa
de onde saí’. Quando chega, a encontra desocupada, varrida e em ordem”.
Uma pregação semelhante a essa pode ser encontrada em 2 Pedro 2. 20: “De fato, se, depois
de escaparem das corrupções do mundo, por meio do conhecimento do Senhor e Salvador Jesus
Cristo, são novamente envolvidos nelas e delas vêm a ser dominados, estão em pior estado do
que no princípio”. E também em 1 Coríntios 10. 12: “Portanto, aquele que pensa que está de pé é
melhor ter cuidado para que não caia”. Além disso, em Apocalipse 2. 5: “Lembre-se, pois, de
onde caiu, arrependa-se e volte à prática das primeiras obras...”.
Essas e outras passagens sobre os regenerados testemunham que eles podem cair e que,
quando caem contra a consciência, não agradam a Deus, a menos que se convertam novamente.
Portanto, não devemos nos iludir a ponto de não governar nossa própria fraqueza e negligenciar
nossos lapsos. Em vez disso, devemos permanecer vigilantes e atentos, resistir à nossa fraqueza
com firmeza e cuidar com extrema cautela das armadilhas do Diabo, como Pedro nos adverte em
1 Pedro 5. 8: “Sejam sóbrios, vigiem. O diabo, seu adversário, anda em derredor, rugindo como
leão, buscando a quem possa tragar”.
Não devemos, de maneira alguma, fortalecer o desespero, que gera ódio contra Deus.
Devemos lembrar o exemplo dos Novacianos e dos “Puros”[119], que negaram a possibilidade de
os que caíram após o batismo alcançarem novamente o perdão dos pecados. É surpreendente
como esse erro grosseiro e venenoso se espalhou amplamente nos tempos antigos, mesmo
durante o florescimento da Igreja.
Epifânio narra em seu trabalho (Haer. 68) que em Alexandria, sob a liderança do Bispo
Pedro, que mais tarde foi morto pelo tirano Maximino, havia um homem chamado Melécio. Este
Melécio, apesar dos protestos de Pedro, propagou a ideia de que os lapsos não deveriam receber
perdão. Epifânio acrescenta que essa hipocrisia era tão surpreendente que uma grande parte da
população no Egito e na Síria seguiu Melécio, desconsiderando o julgamento de Pedro. É notável
que Epifânio relate que Pedro, ao defender a verdade, citou tanto as Escrituras quanto os
exemplos transmitidos pelos discípulos dos Apóstolos. Há ainda um exemplo na história de João,
o Apóstolo, conforme registrado por Eusébio no livro 3, página 60 (capítulo 23), sobre um jovem
que havia caído, mas que João resgatou de um bando de criminosos. Portanto, fica evidente que a
doutrina errônea dos Cátaros surgiu da ignorância sobre a justiça pela fé. Pois, depois de
fingirem que homens hipócritas eram justos por sua própria dignidade e livres de pecado, eles
afirmaram que, uma vez perdida essa pureza, não havia mais esperança de perdão.
Mas oponhamos testemunhos das Escrituras. Davi, Manassés e Pedro, depois de cometerem
pecados graves, obtiveram novamente o perdão de seus pecados. A Igreja dos Gálatas também
caiu em erro, mas foi chamada ao arrependimento por Paulo. Além disso, Paulo mesmo ordenou
que a igreja em Corinto aceitasse de volta um homem envolvido em um caso de incesto após o
arrependimento (2 Coríntios 2. 6-8).
Também podemos adicionar os ensinamentos das Escrituras. Ezequiel 33. 11 diz: “Assim
como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não desejo a morte do pecador, mas que o ímpio se converta
do seu caminho e viva”. Outros profetas também proclamam mensagens semelhantes, como
Isaías 1. O que torna a passagem de Ezequiel ainda mais memorável é o juramento adicionado –
“Assim como Eu vivo” – para que nossas consciências sejam ainda mais levantadas ao ouvir não
apenas a promessa, mas também confirmada por um juramento. Portanto, gravemos essa
consolação em nossas mentes e pensem na imensa força do amor divino por nós, o quanto Ele
anseia pela nossa salvação, como é verdadeiro o que é dito no Livro de Tobias 3. 22: “Não Te
deleitas, ó Deus, na nossa perdição”. E, com esses pensamentos, nos estimulemos ao
arrependimento e à verdadeira invocação.
Não vale a pena argumentar que o benefício de converter os que caem no Antigo Testamento
é diferente do que acontece no Novo. Pois o discurso de Ezequiel se aplica à igreja de todos os
tempos, e a igreja é a mesma em todos os tempos, assim como o evangelho é o mesmo.
Mas busquemos evidências no Novo Testamento. Jesus diz em Mateus 18. 15: “Se seu irmão
pecar contra você, vai, e repreende-o entre você e ele apenas; se o ouvir, ganhou o seu irmão”.
Quando Ele diz “ganhou o seu irmão”, Ele claramente afirma que está falando daqueles para os
quais essa correção é benéfica. E ao falar de “irmãos”, ou seja, daqueles que caem após a
justificação, Ele também testemunha que deseja expulsá-los da igreja apenas quando não ouvem;
portanto, Ele está falando daqueles que antes estavam na igreja. E então, quando Pedro pergunta
em Mateus 18. 21: “Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei?
Até sete?”. Jesus responde: “Não lhe digo que até sete, mas até setenta vezes sete”. Portanto,
aqueles que caem após a justificação podem obter perdão. Pois quando Ele ordena à igreja que
perdoe, Ele deseja perdoar também àquele que pede e crê. Portanto, Ele disse anteriormente:
“Ganhou o seu irmão”.
Eu sei que alguns debatem se este trecho trata da reconciliação fraternal ou do ministério
público que anuncia o perdão divino, mas o argumento contra os Novacianos é válido, mesmo
que o texto seja apenas aplicado à reconciliação fraternal. Pois Ele diz: “Ganhou o seu irmão”
(Mateus 18. 15) e “Tudo o que ligarem na terra será ligado nos céus” (Mateus 18. 18). Além
disso, essas palavras mesmas testemunham que este trecho trata do ministério. Pois Cristo quis
estabelecer a disciplina da igreja e a correção daqueles que caem, e eles dizem que este costume
foi instituído na antiga sinagoga. Cristo também quis distinguir a correção da igreja da política;
Ele deseja que a admoestação preceda, para que primeiro se considere a salvação da pessoa. A
política é mais severa e apressada para impor punição, sem primeiro deliberar sobre a salvação
das pessoas. Além disso, Cristo estabelece o modo de punição, Ele quer que o obstinado seja
expulso da igreja, e Ele não acrescenta punições políticas, mas as deixa para os magistrados.
Mas voltemos às evidências. Em Gálatas 6. 1, está escrito: “Irmãos, se alguém for
surpreendido em alguma falta, vocês, que são espirituais, corrijam-no com espírito de mansidão”.
Aqui, Paulo instrui a chamar de volta aqueles que caíram ao arrependimento. Apocalipse 2. 5
diz: “Lembre-se, pois, de onde caiu, arrependa-se e volte à prática das primeiras obras”. Lucas
15. 7 diz: “Digo a vocês que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais
do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento”. E neste discurso,
Cristo fala sobre o arrependimento do filho perdido, ou seja, daqueles que anteriormente eram
piedosos.
Os Novacianos levantam duas passagens da Epístola aos Hebreus como objeção. Hebreus 6
(versículo 4) diz: “É impossível que aqueles que foram uma vez iluminados, provaram o dom
celestial, tornaram-se participantes do Espírito Santo”. Embora este trecho possa parecer bastante
difícil, quando consideramos conscientemente os testemunhos verdadeiros mencionados
anteriormente, não podemos ser perturbados por este trecho. Mas uma vez que se torna claro a
partir dos testemunhos anteriores que a indulgência não deve ser negada aos que caíram,
podemos facilmente julgar que a expressão τό φητόν[120] não pode ser retida aqui, mas requer
uma interpretação mais apropriada. Alguns suavizam essa passagem de outra maneira, como é
comum em textos obscuros e ambíguos, não soa tão inadequadamente em grego. Pois diz: “Não
é possível renovar aqueles que crucificam Cristo e o ridicularizam”. Eu entendo isso da maneira
mais simples possível: aqueles que não mais ouvem o Evangelho, mas o desprezam, e não
buscam manter os princípios da piedade mencionados, ou seja, a doutrina do Batismo e da
penitência, não podem ser renovados. Isso, ao que me parece, é a interpretação mais apropriada
dessa passagem e não tem desvantagens, desde que eles não ouçam o Evangelho, mas
crucifiquem Cristo e o ridicularizem.
É necessário admitir que existe algum pecado irremissível, porque Cristo o afirma
expressamente. Para isso, podemos usar também este trecho da Epístola aos Hebreus. No
entanto, alguns argumentam que a remissão se torna incerta se houver algum pecado
irremissível. Sempre que alguém discute esse assunto, a mente fica angustiada, pensando talvez
ter cometido tal pecado, e essa questão tem atormentado muitos. No entanto, para os piedosos, a
explicação é clara e simples.
Há de fato um pecado irremissível, mas o que ele é, só pode ser julgado posteriormente, ou
seja, deve ser atribuído àqueles que, por fim, persistem em sua rebeldia contra Deus, seja em um
desprezo epicurista, em um ódio farisaico, ou em desespero, como no caso de Nero, Faraó, Saul,
Judas e outros semelhantes. Não há outra maneira de julgar um pecado irremissível senão dessa
forma, porque em nossos corações, antes que esse julgamento seja revelado, devemos sempre
reter três coisas: a Promessa da graça, o Mandamento de crer no Filho e o Mandamento de
entregar à Igreja (Mateus 18. 18): “Tudo o que ligarem na terra será ligado nos céus”. A
Promessa é lindamente ilustrada por Paulo com as palavras: “Onde abundou o pecado,
superabundou a graça” (Romanos 5. 20). É uma blasfêmia supor que Cristo está abaixo do
pecado e diminuir o Seu mérito. Além disso, o mandamento de crer em Cristo é eterno, imutável
e muito superior à Lei. Estas são verdades universais, promessa e mandamento, como está escrito
em Mateus 11. 28: “Venham a Mim, todos os que estão cansados e oprimidos, e Eu os aliviarei”.
Cada um deve se incluir nesta universalidade.
Após a mente estar devidamente preparada e entender que o mandamento de Deus é crer que
todos os nossos pecados são perdoados, deve-se então aprender que não é possível julgar um
pecado irremissível, a menos que seja feito posteriormente, ou seja, após o julgamento de Deus
ter sido declarado. Faraó e Judas cometeram tal pecado, pois a realidade mostra que eles não se
voltaram para Deus. Agostinho afirmou de forma bastante adequada que a blasfêmia é a
impenitência final ou o desespero, porque esses pecados estão em extremo conflito com a graça.
Pois os outros pecados são perdoados quando buscamos a graça, mas o desprezo epicurista ou o
desespero rejeita a graça. Portanto, a declaração de Cristo é interpretada da seguinte forma
(Mateus 12. 32): “Aquele que proferir uma palavra contra o Espírito Santo, isto é, aquele que,
teimosamente até o fim, rejeitar a palavra pregada e confirmada pelos testemunhos do Espírito,
terá um pecado irremissível”. Essa sentença de Agostinho é bastante apropriada.
Pois nem todo desvio após o reconhecimento da verdade deve ser julgado como um pecado
irremissível, como os Novacianos afirmaram. Pois acima mencionamos exemplos e testemunhos
que ensinam que tais desvios podem ser perdoados, e nem toda perseguição ao Evangelho deve
ser considerada um pecado irremissível, pois Manassés, Nabucodonosor, Paulo, Justino,
Agostinho e, finalmente, inúmeros perseguidores foram curados, como Pedro também diz (Atos
4. 10): “Aquele a quem crucificaram”. No entanto, há alguns indivíduos com um furor singular,
que reconhecem a verdade, mas, quando advertidos e convencidos, condenam verdadeiras
doutrinas contra a sua consciência, embora sem fé, e exercem ou confirmam sua violência. Sobre
tais pessoas, é dito em Romanos 11. 8: “Os demais foram endurecidos, deu-lhes um espírito
endurecido, olhos para que não vejam e ouvidos para que não ouçam”. Com essas palavras e
outras semelhantes, aqueles que perseveram na perseguição do Evangelho são descritos, que são
punidos com cegueira, depois de terem sido repetidamente avisados e não voltarem para Deus.
Tal foi a fúria dos anabatistas em Münster.
Portanto, ao sermos advertidos por tais palavras e exemplos, devemos tomar cuidado para
não defender teimosamente erros. Cair e errar são comuns a todos os seres humanos, mas a
teimosia que gera argumentos sofisticados intermináveis é um pecado maior e mais complexo,
do qual não muitos conseguem se libertar. Por isso, Paulo diz em Tito 3. 10: “Rejeite o homem
herege, depois de uma e outra admoestação, sabendo que esse tal está pervertido, e peca, estando
já em si mesmo condenado”, ou seja, sua teimosia o torna presa das armadilhas do Diabo.
No entanto, devemos sempre ter em mente esta doutrina: devemos obedecer ao mandamento
e à promessa do Evangelho. O mandamento que nos ordena arrepender-nos, ouvir o Filho e crer
que somos aceitos por causa do Filho de Deus é eterno e imutável. Devemos também lembrar as
palavras de Paulo em Romanos 5. 20: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”.
De acordo com esses mandamentos, devemos julgar a nós mesmos e obedecê-los, pois
quando o fazemos, é certo que não temos um pecado irremissível.
Também pode ser citada outra passagem da Epístola aos Hebreus (10. 26): “Porque, se
pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta
mais sacrifício pelos pecados”. Se interpretarmos isso corretamente, este trecho não nega a
possibilidade de os que caíram se levantarem, mas faz uma comparação imediata entre o
benefício de Cristo e as penalidades. Esses dois extremos são imediatos: aquele que retém o
benefício de Cristo é salvo, aquele que não o retém cai na perdição. Esta passagem não nega que
os que caíram possam retornar ao benefício de Cristo, mas exclui outros sacrifícios e novos
rituais. Na Lei, havia numerosas expiações para impurezas, e os fariseus ensinavam que essas
expiações mereciam a remissão dos pecados. Posteriormente, muitos na Igreja inventaram
penitências e missas, não apenas inventaram práticas religiosas falsas, mas também alimentaram
a crença na expiação por meio desses sacrifícios, levando à complacência e indulgência. A
Epístola aos Hebreus critica severamente essas noções farisaicas. Ela certamente deseja que o
benefício de Cristo seja retido, como posteriormente afirma: “Ele não deseja que o sangue de
Cristo seja profanado, nem que o Espírito da graça seja ultrajado”. Esses severos avisos nos
advertem a não perder o benefício de Cristo, mas não proíbem, ao mesmo tempo, que os que
caíram retornem a Cristo. Esta é uma sentença simples e genuína.
SOBRE A CONTRIÇÃO.
Embora nenhuma criatura possa realmente compreender plenamente a magnitude da ira de
Deus contra o pecado, e nem mesmo suportar o sentido da ira de Deus, como é dito em
Deuteronômio 4. 24: “Deus é um fogo consumidor”, ainda assim Deus deseja que Sua ira contra
o pecado seja de alguma forma reconhecida em Sua Igreja. Ele não quer que o pecado seja
desprezado, Ele não quer corações de ferro e insensíveis, como mencionado em Efésios 4, a
respeito dos ímpios. Portanto, sempre na Igreja, o início das pregações foi: “Arrependam-se”.
Assim começou Cristo e, antes dele, João Batista. Assim Paulo diz em Romanos 1. 18: “A ira de
Deus se revela do céu contra toda impiedade”. Assim começaram os profetas, como em Isaías 1.
4: “Ai da nação pecadora”. Na verdade, no Paraíso, após a queda, a primeira pregação foi a
repreensão do pecado e a declaração da ira de Deus.
Todas as calamidades que afetam a humanidade, como a morte, doenças, escassez, fome,
assassinatos, guerras, destruições e desastres múltiplos, são verdadeiramente sermões sobre a ira
de Deus contra o pecado, como está escrito no Salmo 38. 12: “Por causa da iniquidade, Tu
castigas os homens”.
Por fim, o testemunho supremo da ira de Deus é que o Filho teve que se tornar uma vítima.
Certamente, Deus deseja que de alguma forma reconheçamos essa ira e que sejamos movidos por
Seu julgamento e indignação. Portanto, é necessário que haja em nós um certo estado de
contrição. Chamamos isso de “Contrição”, como a Igreja costuma falar, o temor da consciência
que reconhece a ira de Deus contra nossos pecados e que lamenta por causa do pecado. Estas
palavras nos ordenam a contrição: “Arrependam-se”. E em 2 Coríntios 7. 9: “Foram contristados
para arrependimento”. Em 1 Coríntios 11. 31: “Se julgássemos a nós mesmos, não seríamos
julgados pelo Senhor”, ou seja, se realmente fôssemos afligidos pela dor ao reconhecer a ira de
Deus. Em Joel 2. 13: “Rasguem os seus corações, e não as suas vestes”. Jeremias 31. 19: “Depois
de terem dado a conhecer isso, fui ferido em meu coração; lamentei-me e envergonhei-me”.
Naum 1. 6: “Quem subsistirá diante do ardor da Sua ira? E quem se manterá de pé na ira do Seu
furor? A Sua indignação se derrama como fogo, e as rochas são por Ele derrubadas”. Da mesma
forma, Isaías 66. 2: “A quem olharei, senão para o humilde e contrito de espírito, que treme
diante da Minha palavra?”. Isaías 1. 16: “Deixem de fazer o mal”. Salmo 37. 5: “As minhas
iniquidades sobrepujaram a minha cabeça”. Além disso, “O temor do Senhor é o princípio da
sabedoria”, e em muitos Salmos, o temor e a fé estão unidos (Salmo 146. 11): “O Senhor se
agrada dos que O temem e esperam na Sua misericórdia”. Muitas declarações de Paulo também
se relacionam a isso (Romanos 6. 6): “O nosso velho homem foi com Ele crucificado, para que o
corpo do pecado seja destruído”.
Adicionemos exemplos para ilustrar isso. Adão e Eva, repreendidos por Deus, ficaram
terrivelmente perturbados. A pecadora mencionada em Lucas 7 também lamentou
profundamente seu pecado. E em Lucas 22, vemos Pedro derramar lágrimas amargas. Esses e
outros testemunhos semelhantes mostram que uma certa contrição é necessária. Essa contrição
deve crescer para que não apenas reconheçamos pecados externos, mas também reconheçamos
impurezas internas, como a dúvida em relação a Deus, a segurança excessiva, o orgulho, o
desprezo pelos outros, a malícia, a ganância, o fogo do amor maligno e outros afetos viciosos.
A verdadeira penitência não está presente nos hipócritas, que não sentem nenhum pesar ou
temor. Descrevendo-os, Jeremias (6. 15) diz que eles são incapazes de se envergonhar. E Paulo,
em sua carta aos Efésios, menciona aqueles que estão destituídos de tristeza.
Para nos livrarmos dessa segurança prejudicial, devemos frequentemente contemplar e
ponderar sobre a Contrição, a Ira de Deus, as penas presentes e eternas, e até mesmo considerar
os exemplos das punições, nossos próprios infortúnios e os dos outros. Além disso, devemos
meditar sobre a morte do Filho de Deus, para que possamos reconhecer nossa miséria e o furor
de Deus, e sermos tomados pelo temor. O papel desempenhado pelo ministério na Igreja,
instituído por Cristo, é uma parte necessária disso, que inclui repreender os pecados, como Paulo
claramente afirma em Romanos 1. 18, quando diz: “A ira de Deus se revela do céu contra toda
impiedade”. O uso da voz da Lei moral, como é chamada, é apropriado para esta parte do
ministério. Essa lei é a expressão eterna e imutável do julgamento de Deus sobre o pecado.
Embora Deus aceite o homem que busca refúgio em Cristo, Ele não aprova o pecado. Portanto,
Paulo afirma em Romanos 3. 20: “Pela lei vem o pleno conhecimento do pecado”. Essa
mensagem ressoa continuamente na Igreja desde o início após a queda, como podemos ver em
Gênesis 4 e em diante.
No entanto, é completamente falso, absurdo e prejudicial imaginar que a Lei não existe ou
que não deve ser pregada. Ela foi proclamada pelos patriarcas, revelada de forma terrível no
Monte Sinai e reiterada constantemente pelos profetas, por Cristo e pelos apóstolos. Tudo isso
foi feito para que saibamos que a Lei é a expressão eterna e imutável do julgamento de Deus
sobre o pecado. Devemos entender que todos os seres humanos estão condenados por essa
sentença divina devido à sua natureza corrompida e, assim, estão sob a Lei. Como Paulo afirma
em Romanos 3. 9: “Estamos todos debaixo do pecado”, ou seja, condenados e culpados perante
Deus. Assim como a mente divina permanece constante, a Lei também deve permanecer
constante. A consciência da Lei permanece em nossas mentes e é explicada pela voz de Deus,
dos Pais, dos Profetas, de Cristo e dos Apóstolos. Portanto, Cristo enfatiza a Lei repetidas vezes,
como em Mateus 5, e acrescenta uma interpretação mais profunda, para que saibamos que a Lei
nos acusa não apenas por pecados externos, mas também por pecados internos, como cegueira
espiritual, ódio injusto, paixões lascivas, e assim por diante. Deus deseja que, na Igreja, a voz da
Lei ressoe continuamente, pregando sobre a obediência do coração.
Devemos também fazer uso da voz do Evangelho, que acusa o mundo pelo desprezo da ira
da misericórdia, que é manifestada na oferta do Filho. Portanto, Jesus diz em João 16. 8: “E,
quando Ele (o Espírito Santo) vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo”. Ora,
devemos considerar o quão abrangente é essa pregação que acusa e condena os pecados. Ela
abrange toda a raça humana; todos nós estamos cheios de dúvidas, segurança falsa, negligência
ou erro na invocação, contaminados com desejos corruptos, frequentemente não levamos a sério
a ira de Deus, abusamos de Suas bênçãos, todos somos ingratos ao Filho de Deus. Portanto, não
devemos nos surpreender quando vemos o mundo inteiro sobrecarregado com punições fatídicas,
que são sinais da ira de Deus. Pelo contrário, devemos considerar, como Paulo diz, que todos
estão sob o pecado e que o mundo inteiro é culpado diante de Deus. Cada um de nós deve acusar
e lamentar seus próprios pecados.
Deveríamos pensar muito e frequentemente sobre todas essas coisas, porque o que é dito, “O
Espírito Santo convencerá o mundo”, é realizado através da palavra que declara a ira de Deus, e
na contemplação dessa palavra, o Espírito Santo é eficaz. Como 2 Timóteo 2. 25 afirma
claramente, Paulo ordena que ensinemos e instruamos aqueles que se opõem, na esperança de
que Deus possa conceder-lhes o arrependimento. E em Jeremias 31. 19, lemos: “Depois que me
mostrou, fiquei envergonhado e confuso”. 1 Samuel 2. 6 diz: “O Senhor dá a morte e a vida”.
Tudo isso acontece por meio da palavra de Deus, como Hebreus 4. 12 diz: “Porque a palavra de
Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes”. Portanto, para
aqueles que negligenciam e desprezam a palavra de Deus, o Espírito Santo não é eficaz, mas a
obstinação deles é confirmada. Como é dito em Gênesis 6. 3: “O Meu Espírito não contenderá
com o homem para sempre”, como se dissesse: depois que eles começam a desprezar a palavra, o
julgamento do espírito cessa. O reconhecimento do pecado, a invocação, etc.
SOBRE A FÉ.
Mas em relação à Contrição, ou seja, a esses temores, é necessário buscar consolação, ou
seja, a Fé, que nos assegura que os pecados são perdoados por causa do Filho de Deus e, pela
consciência dessa grande misericórdia, nos ergue novamente, para que não sejamos abatidos pela
desesperança e caiamos na perdição eterna. Pois, se a Fé não fosse acrescentada, a Contrição se
tornaria morte eterna. Portanto, a outra parte é a Fé, que não é apenas o conhecimento da história
ou da lei, mas a confiança pela qual cada um crê verdadeiramente que seus pecados são
perdoados por Deus gratuitamente, ou seja, não por nossa dignidade ou méritos.
Sobre essa parte, ou seja, a Fé que recebe o perdão dos pecados, os livros dos monges são
mudos. Mas nós devemos reconhecer que esta é a voz principal e distintiva do Evangelho e que
esta doutrina da Fé é absolutamente necessária para a Igreja e deve ser incluída sempre que se
fala de penitência.
Muitos aqui debatem sobre a diferença entre a contrição de Pedro e Judas, de Davi e Saul.
Também surgem discussões espinhosas sobre o amor à Justiça e o Temor do castigo. No entanto,
essa diferença é clara e evidente. Na contrição de Judas, a fé não foi adicionada, portanto,
subjugado pelo terror, ele caiu na perdição eterna. Por outro lado, na contrição de Pedro, a fé foi
acrescentada, e por isso ele se reergueu de suas imensas dores. E quando somos elevados pela fé,
surge o reconhecimento da bondade de Deus, e não somos apenas atormentados pelo medo do
castigo, mas também por um pesar mais puro por termos ofendido a Deus, a quem devemos
obediência e gratidão. No entanto, não é necessário separar esses sentimentos de forma
minuciosa. Deus deseja que temamos Sua ira e que a vejamos nas punições. A fé deve ser
acrescentada para que não fujamos de Deus, mas retornemos a Ele, suplicando que sejamos
perdoados e estabelecendo que a vontade eterna e imutável de Deus é perdoar aqueles que,
aterrorizados, creem que lhes é concedido perdão por meio do Mediador. Isso nos é ordenado
crer e estabelecer firmemente.
Essa fé estabelece uma distinção clara entre o Temor servil e o Temor filial. O Temor servil
é o pavor sem fé, que, na realidade, foge de Deus. Por outro lado, o Temor filial é o pavor ao
qual se junta a fé. A fé, no meio dos medos, eleva e consola a mente e se aproxima de Deus,
buscando e obtendo o perdão. Essas descrições são claras e podem ser entendidas em nossos
exercícios espirituais. A Contrição sem fé é um terrível pavor e dor de uma mente que foge de
Deus, como no caso de Saul e Judas; portanto, não é uma boa obra. Mas a Contrição com fé é o
pavor e a dor de uma mente que não foge de Deus, mas reconhece a justa ira de Deus, está
verdadeiramente arrependida por ter negligenciado ou desprezado a Deus e, no entanto, se
aproxima de Deus buscando perdão. Esse tipo de dor se torna uma boa obra e um sacrifício,
como o Salmo nos diz (Salmos 50. 19): “O sacrifício aceitável a Deus é o espírito quebrantado;
ao coração quebrantado e contrito, ó Deus, Tu não desprezarás”.
No entanto, é necessário rejeitar e abandonar a opinião que afirma que os seres humanos
podem merecer a remissão dos pecados por meio da contrição, ou que a remissão é concedida
devido à dignidade da contrição. Devemos manter a palavra do Evangelho, que proclama que os
pecados são perdoados gratuitamente por causa do Filho de Deus. Essa exclusividade deve ser
mantida para que a devida honra seja atribuída a Cristo e para que as mentes aterrorizadas
tenham uma consolação certa. Pois seriam levadas à desesperança se cressem que não tinham
remissão a menos que sua dor fosse digna e suficiente. Essa simples declaração elimina muitos
labirintos de disputas.
Portanto, estabelecemos que é necessário haver algum tipo de contrição, verdadeiros temores
e dores, mas ainda assim a remissão dos pecados não é concedida devido à nossa contrição ou
qualquer dignidade nossa, mas somente por causa do Filho de Deus, que, por um plano
maravilhoso, se tornou uma vítima, um Mediador e um Intercessor em nosso favor.
Mas para que possamos manter em mente a doutrina da Contrição, vamos apresentar esses
tópicos diante de nós:
Pensemos nos exemplos de Saul e Davi, que desfrutaram dos benefícios que mencionei antes
de sua queda e, após a queda, sofreram as pesadas punições que enumerei. Saul, de fato, pereceu
sob as penas eternas; Davi, por outro lado, voltou-se novamente para Deus, mas ainda assim
sentiu o peso das punições corporais e dos escândalos por toda a vida. E consideremos quão
grande ruína um único pecado pode causar, observando o exemplo de Adão e Eva, assim como o
adultério de Davi e a loucura de Salomão, cujo culto idólatra levou à divisão posterior do reino
de Israel; e essa divisão resultou em inúmeras calamidades, dissoluções religiosas e guerras civis.
Refletindo sobre isso, não devemos considerar nossas quedas como pequenas e triviais ou
pertinentes apenas a alguns, mas devemos ser mais diligentes em governar nossos
comportamentos.
É mais útil ponderar sobre essas questões do que debater sobre a trivialidade de uma punição
infinita para uma ação finita. Devemos evitar essas questões frívolas e reconhecer que no ato de
cometer um delito, estamos desconsiderando um bem infinito. Essa desconsideração e violação
de um bem infinito merece uma punição infinita.
Após nossa discussão sobre contrição, é importante agora abordar a outra parte desse
assunto. O ministério na Igreja não se limita apenas a repreender os pecados; ele também
proclama o perdão dos pecados para aqueles que estão cheios de apreensão e creem em Cristo.
Portanto, é crucial que as mentes preocupadas saibam com certeza que podem receber o perdão
dos pecados gratuitamente, por meio da fé em Cristo. Não devemos encarar a fé simplesmente
como o conhecimento histórico; precisamos considerar o artigo do Credo que diz: “Creio no
perdão dos pecados”. Não é suficiente crer genericamente que Deus perdoa alguns, pois até
mesmo o Diabo crê nisso. Ele não ignora a existência da reconciliação na Igreja, mas cada um de
nós deve pessoalmente reconhecer que é perdoado e acolhido por Deus. Essa fé específica, por
assim dizer, permite que cada um aplique a si mesmo os benefícios de Cristo.
Embora possa parecer estranho, aos olhos humanos, afirmar que somos aceitáveis a Deus e
que O agradamos, devemos lembrar que Deus se revelou para nos mostrar Sua vontade e
prometeu o perdão. Ele enviou Seu Filho e espalhou o Evangelho pelo mundo para revelar essa
verdade que nenhuma criatura poderia compreender por si só. A Reconciliação Divina é um bem
de valor inestimável, e é por isso que concordamos com dificuldade.
Portanto, devemos nos encorajar a crer no Evangelho e lembrar que, nesta vida, devemos nos
sustentar pela Palavra de Deus, assim como um feto está envolto no ventre materno ou na
placenta. Não devemos romper essa “envoltura” que é o Evangelho, pois ele declara a vontade de
Deus. Quando chegarmos à vida e à luz eterna, compreenderemos diante de nós a vontade de
Deus e Seu plano maravilhoso.
Testemunhos.
Atos 10 (versículo 43): “A todos os profetas dão testemunho de que, por meio do Seu nome,
todo aquele que n’Ele crê recebe remissão dos pecados”. Esta é uma declaração clara e evidente
na qual Pedro afirma que está expondo a essência das Escrituras Proféticas. Ele contrapõe essa
declaração à crença popular que o povo tinha sobre o Messias e afirma que Ele foi enviado pelo
Pai para ser a oferta pelo pecado e que, por meio d’Ele, o perdão dos pecados é concedido
àqueles que creem n’Ele, ou seja, àqueles que abraçam o Messias de tal forma que creem que são
aceitos por causa d’Ele. E porque ele alega que este dito é apoiado por todos os profetas,
devemos entender que ele está citando o verdadeiro consenso da Igreja Católica aqui.
Romanos 5 (versículo 1): “Justificados pela fé, temos paz com Deus”, ou seja, temos a
certeza de que Deus está propício a nós, fomos reconciliados com Ele e libertados da ira e dos
terrores eternos.
No entanto, essas afirmações são contestadas pelos adversários. Eles concordam que a fé, ou
seja, a profissão da história, é necessária, como é o caso dos demônios, mas negam que os
pecados sejam perdoados gratuitamente e insistem que devemos duvidar se eles foram
perdoados. Esses erros já foram refutados anteriormente no contexto da justificação, então aqui
vou apenas relembrar brevemente o leitor. É útil conhecer esses exercícios de fé em nossa oração
diária. Ninguém duvida que Deus seja misericordioso, e as pessoas não questionam se Deus está
disposto a perdoar a alguém, mas elas pensam que o perdão é merecido, não para aqueles que são
indignos, e todos nós reconhecemos nossa múltipla indignidade em nós mesmos. Além disso,
outra questão que perturba as mentes diz respeito à especificidade. Portanto, é necessário ter
diante de nós as testemunhas que nos confirmam, para que saibamos estas duas coisas, a saber,
que a promessa é universal e gratuita. Há testemunhos sobre ambos em Romanos 3. Sobre a
promessa universal, diz (versículo 22): “A justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e
sobre todos os que creem”. Ele acrescenta (versículo 24 em diante): “Sendo justificados
gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs como
propiciação, pela fé no seu sangue”. Portanto, devemos manter essa exclusividade e opor-nos à
tentação constante sobre a dignidade. Pois a voz da Lei sempre nos impede de crer que somos
aceitos porque somos indignos. Contra essa mesma voz, devemos saber que o Evangelho foi
revelado do seio do eterno Pai, o que testifica que somos aceitos por causa do Filho Mediador,
não por nossa própria dignidade.
Isso deve ser lembrado diariamente em nossas orações, e devemos entender que isso não
exclui a contrição e outras virtudes, para que estejam presentes. Certamente, a penitência é
necessária, mas a causa do perdão dos pecados não deve ser atribuída à nossa dignidade, mas a
Cristo. Portanto, devemos estabelecer que o perdão dos pecados não ocorre devido à dignidade
de nossa contrição ou de nossas obras, mas apenas pela confiança na graça de Cristo, como é
afirmado em Efésios 2 (versículo 8): “Porque pela graça vocês são salvos, por meio da fé; e isto
não vem de vós, é dom de Deus”.
Romanos 4 (versículo 10) trata do argumento principal derivado das causas e do poder da
promessa: “Portanto, ela é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a promessa seja
firme”. Isso significa que, se a reconciliação dependesse da dignidade de nossa contrição ou de
nossas obras, uma vez que nunca satisfazemos plenamente à Lei, ela se tornaria incerta, e a
promessa de reconciliação seria anulada. Paulo aborda esse silogismo da seguinte maneira:
1. A promessa de reconciliação deve ser certa.
2. Uma promessa condicionada pela Lei se torna incerta.
3. Portanto, a promessa de reconciliação não depende da condição da Lei.
Paulo comprova a menor premissa ao dizer (Romanos 4. 15): “Porque a lei opera a ira.
Porque onde não há lei, também não há transgressão”. E observe a essência da discussão de
Paulo aqui. Ele argumenta com veemência que Cristo é a vítima pelos nossos pecados, a fim de
estabelecer firmemente a exclusão de que nossas obras não são mérito para o perdão dos
pecados. Outros testemunhos podem ser extraídos do contexto da Justificação, onde também foi
mencionada a palavra “fé”, que pode ser compreendida de forma mais clara na luta interior
quando a mente piedosa experimenta a aceitação da misericórdia prometida por Cristo e entende
que essa misericórdia deve ser apreendida pela fé, ou seja, confiança. Nesse contexto, a fé não
apenas considera a história, mas contempla também este artigo específico: “Eu creio na remissão
dos pecados”, e abraça a promessa, como é claramente declarado em Romanos 4, versículo 10.
Além disso, a fé que concorda com a promessa é uma fé na misericórdia.
Por último, nestes testemunhos, comparemos as palavras dos Apóstolos e dos Profetas para
vermos o consenso contínuo de toda a Igreja desde o início. Portanto, Paulo cita alguns salmos e
muitas passagens que apoiam essa sentença, ocorrendo em muitos lugares. Por exemplo, em
Salmos 31, versículo 5: “Eu disse, confessarei contra mim a minha injustiça ao Senhor; e Tu
perdoaste a maldade do meu pecado”. Em Salmos 142, versículo 2: “Nenhum vivente será
justificado diante de Ti”. E em Salmos 51, versículo 6: “Eis que Tu amas a verdade no íntimo, e
no oculto me fazes conhecer a sabedoria”. Essas sentenças e outras semelhantes testemunham
que, ao nos aproximarmos de Deus, não trazemos nossa própria justiça, nem podemos alegar
nossos méritos no julgamento e na ira de Deus. Pelo contrário, devemos recorrer ao Mediador
Cristo e reconhecer que realmente somos perdoados gratuitamente por causa d’Ele, e somos
recebidos na graça.
No entanto, muitos escritores omitiram esta parte sobre a Fé porque parece absurdo aos
olhos da razão humana afirmar que Deus está propício a você. No entanto, aqui devemos nos
afastar do julgamento da nossa razão e buscar a vontade de Deus em Seu próprio Evangelho.
Quando lemos que a remissão foi anunciada a Davi por um mandamento especial de Deus, nos
maravilhamos com esse benefício singular e cada um de nós pensa que creria voluntariamente, se
uma voz semelhante viesse do céu para nós. No entanto, devemos saber que esta voz já nos foi
anunciada. A remissão é concedida a você com a mesma certeza, se você crê no Evangelho,
como foi concedida a Davi, e é exigido de você que creia na voz do Evangelho que anuncia a
remissão, assim como foi exigido de Davi que cresse na voz de Natã.
Até o momento, abordei os conceitos de Contrição e Fé. No entanto, é igualmente
importante iniciar imediatamente uma nova fase de obediência, como é mencionado em
Romanos 6. 12: “Que o pecado não reine em seu corpo mortal”. O versículo em Romanos 8. 1
diz: “Agora, pois, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”. E em Lucas 3. 8,
João Batista exorta as pessoas a “Produzir, pois, frutos dignos de arrependimento”, ou seja,
manifestar uma mudança de comportamento adequada ao arrependimento. Essa nova etapa de
obediência é frequentemente denominada “Bom Propósito” e envolve verdadeiramente e sem
falsidade estabelecer o desejo de obedecer a Deus, mantendo a retidão de uma boa consciência.
Para fortalecer essa determinação, contamos com a ajuda do Espírito Santo, que é concedido
quando mantemos a fé, conforme mencionado em Gálatas 3. 14: “A fim de que recebêssemos a
promessa do Espírito pela fé”. Da mesma forma, em Romanos 8. 15, é afirmado: “Pois não
receberam um espírito de escravidão, para viverem, outra vez, atemorizados, mas receberam um
Espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai”. Quando consentimos pela fé na
promessa de Deus, reconhecemos Sua misericórdia e Sua presença em nossas vidas, cuidando de
nós e nos acolhendo. Isso nos leva a invocá-Lo sinceramente, a nos submeter a Ele, a temê-Lo e
a obedecê-Lo.
Portanto, em Zacarias, duas partes fundamentais estão habilmente unidas: Graça e Invocação
(12. 10): “Derramarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de
graça e súplicas”. Primeiro, somos movidos pelo Espírito Santo para reconhecer e estabelecer
que somos recebidos na graça. No entanto, a verdadeira invocação é o culto principal a Deus e a
obra exclusiva da Igreja, que surge do conhecimento da graça. Pois uma mente que não conhece
a reconciliação foge de Deus e não O invoca. Mas aqueles que foram recebidos na graça se
aproximam e invocam, como é dito em Romanos 5. 12: “Por meio de quem temos igualmente
acesso, pela fé”. Efésios 3. 12 também afirma: “em quem, por meio da fé, temos ousadia e
acesso”. Entretanto, como a nova etapa de obediência está longe de atingir a perfeição requerida
pela Lei, e vestígios de pecado ainda persistem na vida daqueles que foram reconciliados, isso
foi abordado anteriormente.
SOBRE A CONFISSÃO.
É relevante para estudiosos observar como o termo “Confissão” é empregado em diversos
contextos. Em geral, o público costuma entender “Confissão” como a prática de enumerar
individualmente os pecados perante os ministros da Igreja, buscando obter a absolvição.
Possivelmente, a tradição de listar os pecados individualmente teve origem entre aqueles que
confessavam publicamente seus pecados diante dos ministros ou da congregação. Antigamente,
tais pecadores não eram admitidos a menos que confessassem seus pecados perante os ministros,
solicitassem perdão e se comprometessem a se corrigir.
O termo “Confissão” é frequentemente mencionado, inclusive pelos Apóstolos e Profetas,
como encontrado em Mateus 3. 6, onde se relata que as pessoas foram batizadas no rio Jordão,
confessando seus pecados. Da mesma forma, em Neemias 9. 1 e seguintes, os filhos de Israel se
reuniram em um jejum e confessaram seus pecados. Em Levítico 16. 21, descreve-se o ritual
público em que o sumo sacerdote confessava todas as iniquidades dos filhos de Israel. Nesses
contextos, “Confissão” não apenas denota o reconhecimento interno da culpa perante Deus, mas
também a confissão pública geral diante de Deus e da igreja, na qual aqueles que se declaram
culpados e buscam perdão fazem uma profissão pública de seus pecados.
Assim, fica claro que essa profissão pública e geral é uma prática muito antiga. No entanto,
quando Davi diz em Salmos 31. 5: “Digo: confessarei contra mim as minhas transgressões ao
Senhor”, nesse contexto, a confissão significa o reconhecimento interno da culpa perante Deus, o
que é a própria contrição, juntamente com o pedido de perdão. Tiago também usou o termo
“confissão” ao falar sobre Reconciliação em Tiago 5. 16: “Confessem, pois, os seus pecados uns
aos outros”, ou seja, aqueles entre os quais houve desavenças devem confessar seus próprios
pecados mutuamente e reconciliar-se. Como também é dito em Provérbios 18. 17: “O justo é o
primeiro a se acusar, mas logo vem alguém e o examina”, ou seja, Deus não quer que ignoremos
nossos erros e censuremos os outros com rigor, mas sim que primeiro examinemos nossa
consciência, confessemos nossos erros e os corrijamos, como Mateus 7. 5 afirma: “Hipócrita, tire
primeiro a trave do seu olho, e então verá claramente para tirar o argueiro do olho de seu irmão”.
Portanto, após observarmos os diversos usos da palavra, devemos distinguir os significados
antigos da prática recente de enumeração.
Há, portanto, dois tipos de Confissão: uma é pública, onde diante da igreja os réus devem
confessar abertamente que caíram em pecado, expressar tristeza por terem ofendido a Deus e
contaminado a igreja. Neste caso, é evidente que, quando o crime é público, a enumeração ou
recitação dos pecados não deve ser omitida. No entanto, existe a Confissão privada ou secreta,
onde afirmamos que a enumeração não é necessária. Embora muitos argumentem que o
relaxamento deste vínculo pode solapar a disciplina, também é importante garantir que a luz da
fé não seja obscurecida e que laços não sejam impostos às consciências. Como a disciplina deve
ser administrada, discutiremos posteriormente.
Há três razões pelas quais é necessário ensinar que a enumeração não é necessária: Primeiro,
porque os monges inventaram que a enumeração era um culto e um mérito para obter a remissão;
Segundo, porque eles a exigem para que possa ser imposto um ato de satisfação; Terceiro,
porque a consciência é levada à dúvida e a uma escrupulosa desesperação pela enumeração.
Esses erros precisam ser corrigidos, pois o perdão não depende da condição da enumeração, e a
palavra do Evangelho sobre o perdão gratuito deve ser mantida. Além disso, os delírios sobre a
satisfação também devem ser repreendidos. Por fim, deve-se reconhecer que a enumeração era
uma tortura para os piedosos, que, ao verem que não podiam listar todos os seus pecados, nunca
encontravam paz, e a fé era apagada por essa dúvida. Era necessário que os doutores piedosos
remediassem esse mal.
Portanto, é evidente que não há um mandamento divino para enumerar todos ou alguns dos
pecados na confissão privada, porque nem Cristo nem os Apóstolos em algum lugar o
prescreveram. Além disso, a enumeração de todos os pecados é impossível, como diz o Salmo
19. 13: “Quem pode discernir os próprios erros?”. Pois há muitos erros de ignorância nas
decisões mais importantes, como no caso de Josias movendo uma guerra desnecessária, e em
outras questões, como erros doutrinários, onde as pessoas constroem palhas sobre verdades,
obscurecendo-as. Além disso, existem muitos pecados de omissão que não compreendemos.
Portanto, é absurdo afirmar que a enumeração de todos os pecados é necessária, uma vez que é
impossível. No entanto, essas questões devem ser esclarecidas para que a doutrina do perdão
gratuito e da fé não seja obscurecida.
No entanto, em relação à absolvição privada, que deve ser mantida nas igrejas, o costume de
buscar a absolvição também deve ser mantido. Existem muitos outros benefícios em manter esse
diálogo privado, mesmo que a enumeração dos pecados não seja feita.
O primeiro benefício é buscar a absolvição.
O segundo benefício é que o pastor possa questionar seus ouvintes sobre a doutrina. Pois
ambos os mandamentos são para o pastor: explorar os julgamentos dos ouvintes sobre a doutrina
e saber se estão progredindo, corrigir e educar os mais lentos. Por outro lado, é para o povo que
ele deve expor o que pensa.
O terceiro benefício é que, certamente, antes que os inexperientes sejam admitidos aos
sacramentos, devem ser instruídos sobre a doutrina, e esta conversa serve como um substituto
para o Catecismo.
Quarto. Embora o pastor não deva forçar ninguém a revelar fatos privados, ele pode
perguntar sobre o comportamento e a moral de acordo com a idade e a situação de vida das
pessoas e dar conselhos úteis. Por exemplo, se alguém for um comerciante, ele pode perguntar
que tipo de negócios estão envolvidos.
Quinto. Assim como é dito em Neemias e Mateus, eles confessaram seus pecados, ou seja,
reconheceram que eram pecadores em geral, se submeteram a Deus e mostraram tristeza. Da
mesma forma, na busca pela absolvição, mesmo quando a enumeração individual é omitida, é
necessário indicar em geral que admitimos ser pecadores, nos submetemos a Deus, sentimos
verdadeira tristeza por termos ofendido a Deus, poluído a Igreja e acumulado punições públicas.
Dessa forma, de maneira sensata e séria, essa prática é mantida e é benéfica para a disciplina.
Sexta. Essa é uma razão que pode mover a consciência de todos, principalmente os
prudentes. O costume de buscar absolvição é uma testemunha deste artigo, que os pecadores que
se arrependem são recebidos por Deus e devem ser aceitos pela Igreja. É útil conservar esse claro
testemunho na Igreja. Pois até mesmo Pedro de Alexandria refutou Melécio, que propagava os
delírios dos Cátaros, citando o costume comum na Igreja e apresentando exemplos de
absolvição. Os corações de todas as pessoas são muito influenciados por rituais que estão
constantemente diante de seus olhos, confirmados não apenas pela antiguidade, mas também
pelo uso de tais governantes cuja piedade e ensinamentos foram comprovados por testemunhos
confiáveis. Portanto, naquela época, o costume foi útil para confirmar a verdadeira opinião de
Pedro, e podemos pensar que a consideração desse costume perpétuo também pode ser benéfica
para nós. Além disso, como Jesus claramente diz (Mateus 18. 18): “Tudo o que vocês ligarem na
terra, será ligado no céu”, certamente é dada uma ordem para absolver. Embora a absolvição ou a
recepção dos que caíram também seja entendida quando são novamente admitidos à comunhão,
essa absolvição expressa não deve ser abolida.
Entre os pagãos, a doutrina do perdão dos pecados por meio do Mediador Filho de Deus foi
completamente perdida, mas a doutrina da Lei ainda era mantida de alguma forma. Pois a
natureza humana facilmente esquece o Evangelho, já que é uma doutrina não inata na mente
humana. Da mesma forma, os monges suprimiram a luz do Evangelho sobre o perdão gratuito,
inventando delírios sobre a satisfação e outros assuntos. Portanto, se o costume de absolver fosse
abolido, as trevas da ignorância retornariam à cultura, e a doutrina sobre a recepção dos caídos se
tornaria mais obscura. Logo, é útil manter esse costume, pois ele sempre existiu na Igreja. E que
os piedosos saibam que, ao manterem esse costume, estão servindo não apenas às suas próprias
necessidades, mas também às gerações futuras.
Espero que essa causa tão piedosa e útil seja valorizada por muitos, de modo que busquem
manter o costume de buscar a absolvição com mais amor e disposição. Quando você se aproxima
para buscar a absolvição, considere estas três coisas: assim como sempre houve na Igreja uma
confissão geral, na qual os piedosos mostraram que reconhecem seus lapsos e se declararam
culpados da ira de Deus, da mesma forma, você também lamenta sua culpa; você também
confessa ser culpado, como Daniel diz (9. 7 e seguintes): “A nós pertence a confusão”. Em
segundo lugar, busque que a voz do Evangelho, que anuncia o perdão dos pecados, seja aplicada
a você. E por meio dessa voz, console-se a si mesmo e estimule sua fé. Em terceiro lugar,
lembre-se de que esse costume deve ser mantido, para que até mesmo as gerações futuras saibam
que, quando os caídos se arrependem, são recebidos por Deus e pela Igreja.
É útil, no entanto, acostumar os menos instruídos a uma enumeração geral, seguindo a ordem
dos Dez Mandamentos. Esse cuidado é benéfico não apenas porque serve como catequese,
lembrando aos que recitam quais são as enfermidades e os lapsos do pecado, quais são os graus
dos pecados e qual é a diferença entre o julgamento secular e o julgamento do Evangelho sobre
os pecados. Mas também porque leva as pessoas a se autoexaminarem e a reconhecerem suas
enfermidades e quedas, das quais muitos sequer pensam ao buscar a absolvição. Afinal, como
pode haver contrição ou dor genuína sem uma considerável reflexão sobre nossas quedas, a ira
de Deus e as punições presentes e eternas?
Além disso, uma grande parte das pessoas só entende que os pecados são apenas aqueles
crimes atrozes que são punidos com castigos públicos, não compreendendo nada sobre a falsa
invocação ou os vícios do coração. Portanto, as pessoas devem ser ensinadas sobre os Dez
Mandamentos, que, embora frequentemente devam ser explicados e ilustrados pelos instrutores,
são mais bem compreendidos pelo público quando cada pessoa compara sua própria vida com
esse espelho e percebe seus próprios erros.
O primeiro mandamento: Devemos pensar corretamente sobre Deus e estabelecer com uma
fé firme que Ele é o único criador de todas as coisas e o juiz de todos os homens que se revelou
por meio de Sua Palavra e ao enviar Seu Filho. Devemos obedecer a Ele com reverência, temer
Sua ira e julgamento, invocá-Lo verdadeiramente por causa do Filho, amá-Lo e sentir um
movimento de gratidão no coração em relação a Deus.
Devemos nos impressionar com a grandeza da misericórdia que Ele nos revelou, com o fato
de que Ele realmente ama a humanidade, e que Ele genuinamente deseja que sejamos salvos.
Devemos ser movidos pelos benefícios do Filho, pelo fato de que Ele sofreu por nós, que Ele nos
deu o Evangelho e que Ele promete o Espírito Santo como nosso guia e a vida eterna.
O segundo mandamento: Mas todas essas coisas afetam meu coração menos do que
deveriam. Não tenho temor suficiente, muitas vezes tenho dúvidas e busco os bens de Deus de
forma hesitante, invoco-O de forma hesitante, confio nas coisas presentes e busco assegurar
minha vida, negligenciando a ordem que Deus prescreveu. Muitas vezes, até mesmo com
invocações erradas, eu desvio e ofendo a Deus, invocando os mortos, pensando que essa estátua
deve ser mais digna de invocação como Deus ou Santo do que em outro lugar. Muitas vezes
ainda me desvio agora, evitando pensar no verdadeiro Deus, que se revelou por meio do Filho, e
negligenciando o Filho e Sua promessa. Em resumo, não estou fervoroso na invocação, como
deveria estar.
O terceiro mandamento: Muitas vezes, negligencio as reuniões públicas e cerimônias no Dia
do Senhor, não sendo impedido por razões válidas, e, com meu exemplo, levo outros a fazer o
mesmo. Não sou grato a Deus pelo instituído ministério, pela preservação da Igreja, pela
preservação das Escrituras Proféticas e Apostólicas, não ajudo a Igreja a orar pelo estado público
em congregação, sou muito superficial em minha preocupação com as misérias comuns, que são
dissipadas na Igreja e na política devido à ignorância, às discordâncias e às guerras, levando à
perda de almas e corpos de muitos. Não auxilio o ministério da Igreja com meus deveres, não
temo, como deveria, os piedosos ministros; às vezes, falo mal deles e, com meu exemplo,
fortaleço o desprezo ou ódio por eles, não lhes pago os salários devidos; muitas vezes, gasto os
dias santos em atividades vergonhosas, provocando a ira de Deus contra muitos.
O quarto mandamento: Sou negligente em minha vocação, em meus estudos e na
administração de minha família. Sou ingrato a Deus pelos benefícios da ordem política. Às
vezes, irrito-me injustamente com as autoridades e as difamo, não lhes dando a devida reverência
de coração; ocasionalmente, incito controvérsias contra as leis e violo a ordem política com
escândalo e prejuízo para os outros, interrompendo com minhas tolices tumultos públicos
necessários. Não estou disposto a me controlar e a tomar cuidado em meu próprio estado, a fim
de não perturbar a harmonia geral do estado público, sou ganancioso[121] e sirvo mais aos meus
interesses do que ao bem público, aproveitando oportunidades para causar perturbações.
O quinto mandamento: Frequentemente, sou inflamado por indignação injusta e pelo desejo
de vingança. Acrescento palavras de maldição ruins que brotam do desejo de prejudicar; sou
movido pela inveja, fico triste quando vejo o poder ou a autoridade de outra pessoa aumentar e
desejo suprimi-los; sou orgulhoso, desprezo meus iguais e exijo ser colocado à frente deles; sou
suspeito e, com base em suspeitas infundadas, às vezes concebo ódios injustos, espalho e
fortaleço discórdias, muitas vezes espalho rumores e boatos que ferem as pessoas e inflamam
ódios; tenho um pouco de inveja e malícia, deleitando-me em difamar os outros. Às vezes,
distorço de forma caluniosa as palavras e ações alheias, não me esforço para curar
desentendimentos e reconciliar vontades, permito que ódios cresçam devido à inveja pessoal ou
outras causas pessoais, e difamo aqueles que estão ausentes. De vez em quando, ofendo aqueles
que estão presentes com insultos, prejudicando minha própria oração e estimulando ódios ou
dissensões.
O sexto mandamento: Tenho impulsos desordenados e chamas variadas de luxúria, cedendo
a olhares e pensamentos impuros, contaminando assim meu corpo. Aumento esses males com
intemperança e excessos na comida e bebida. Devido a essas chamas ardentes e excessos na
alimentação e bebida, obstruo minhas meditações e orações piedosas, e chamo sobre mim a ira
de Deus, aumentando minha impureza em relação a mim mesmo, minha família e minha cidade.
O sétimo mandamento: Aproveito da generosidade dos meus pais ou do salário público e não
uso adequadamente esses recursos. Engano meus irmãos ou outros necessitados, sou injusto em
contratos, não busco manter a equidade por amor a Deus, desonestamente estabeleço preços
injustos, busco de maneira injusta acumular riquezas, pego empréstimos sob vários pretextos e
nem mesmo me preocupo em pagar, retenho propriedades alheias, não sou fiel e diligente em
meu trabalho, vendo produtos defeituosos e danificados.
O oitavo mandamento: Não mantenho a sinceridade e a verdade que Deus requer em minhas
palavras e ações; misturo sofismas em meus conselhos e negócios, ou ensino falsidades; às vezes
defendo coisas falsas por raiva, ira injusta, obstinação ou lisonja, ou por medo; em meu
comportamento, também há hipocrisia, simulação de virtude ou falsa arrogância.
Por fim, reconheço-me miserável em minha cegueira e segurança terríveis, negligenciando
horrivelmente a ira de Deus e desviando-me de Seus mandamentos de muitas maneiras, causando
escândalos a outros e atraindo punições para mim e para os outros. Não consigo compreender a
magnitude ou a quantidade de meus próprios vícios e quedas, mas admito que mereço punições
presentes e eternas. Com verdadeira tristeza, clamo: “Sou apenas um pecador diante de Ti,
pequei contra Ti”. Sinto verdadeiramente a mágoa de ter ofendido a Deus, manchado e
prejudicado a Igreja e o restante da humanidade. Refugio-me no Filho de Deus, nosso Senhor
Jesus Cristo, como meu Mediador, e por meio d’Ele oro a Deus, o Pai Eterno de nosso Senhor
Jesus Cristo, o bom, o sábio juiz e o poderoso, para que Ele afaste Sua ira de mim, perdoe meus
pecados por causa do Filho e me receba em Sua imensa misericórdia. Assim como Ele declarou:
“Assim como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não desejo a morte do pecador, mas que o ímpio se
converta do seu caminho e viva” (Ezequiel 33. 11). Prometo resistir ao pecado e não agir contra
minha consciência, e oro a Deus para que Ele me guie com Seu Espírito Santo. A vocês, como
ministros de Cristo, peço que anunciem a Palavra do Evangelho, na qual creio. Ao mesmo
tempo, prometo à Igreja que melhorarei meu comportamento e evitarei escândalos.
Os mais inexperientes devem ser orientados a seguir uma forma geral como essa, para que
considerem o que estão fazendo quando buscam a absolvição. Eles devem se examinar,
reconhecendo que têm muitos e graves lapsos, e considerar os vários graus de pecado. A partir da
própria série dos Dez Mandamentos, eles devem aprender a discernir os pecados ocultos, para
que possam começar a resistir aos seus vícios e se controlar.
Por fim, como pode haver dor na alma sem algum pensamento sobre nossa miséria? Não
sem razão, Jesus disse (João 16. 8): “O Espírito Santo convencerá o mundo do pecado”. Isso é
feito pela meditação da Palavra de Deus e da ira de Deus, juntamente com a consciência de nossa
impureza. Portanto, para que o Espírito Santo possa convencê-lo, inspirar verdadeiros temores e
corrigir sua segurança e orgulho, para que você trema e se submeta a Deus e se coloque abaixo
dos outros homens, olhe para ambos, ou seja, a Palavra de Deus e suas próprias raivas. Não se
aproxime da busca pela absolvição de forma segura e sem gemer, como o fariseu que disse: “Não
sou como os outros homens” (Lucas 18. 11). Seria útil apresentar uma confissão geral desse tipo
frequentemente em sermões ou ensinamentos catequéticos.
Agora volto à discussão sobre a enumeração de cada pecado, que alguns afirmam ser
necessária com base nesses dois pretextos:
1. A absolvição não pode ocorrer sem conhecimento.
2. A absolvição deve ser buscada aqui.
3. Portanto, o conhecimento é necessário.
14. Predestinação
Quando não há uma ordem política humana perfeita, nenhum grande grupo está isento de
muitos vícios e todas as nações enfrentam suas próprias adversidades, frequentemente as mentes
humanas se questionam se alguma parte da humanidade é especialmente cuidada por Deus e qual
é essa parte. Elas questionam se Deus ouve algumas pessoas, presta auxílio a certos indivíduos
ou interfere com alguém, exceto como causa secundária em movimento. Além disso, surge a
questão mais complexa, já que a própria realidade atesta que não há impérios perpétuos e que
grandes desintegrações ocorrem em todas as nações. Diante disso, surge a questão de onde a
igreja de Deus permanecerá neste mundo.
O apóstolo João testemunhou isso em Éfeso, Esmirna e em lugares próximos. Atualmente,
nesses mesmos lugares, tudo está repleto de fúria turca que condena o evangelho, e não há sede
permanente da igreja de Deus nesta vida mortal. Mas Deus nos fortaleceu contra essas questões
com testemunhos sólidos e evidentes. Ele demonstrou por meio de milagres claros para onde
devemos olhar, a fim de nos fortalecer: como a preservação de Noé durante o dilúvio, a
libertação do povo do Egito, as missões e feitos dos profetas, a ressurreição dos mortos realizada
por Cristo, os profetas e apóstolos. Todas essas evidências testemunham que Deus cuida do
grupo ao qual esses benefícios são concedidos, e que Ele está verdadeiramente presente para
eles, realizando muitas coisas fora da ordem e movimento das causas secundárias. Portanto,
existe uma igreja de Deus, e a humanidade não foi destinada apenas à perdição e às adversidades
atuais, como frutos ou animais cuja matéria se desintegra continuamente, assumindo formas
diferentes nas sucessivas gerações e corrupções. Embora os olhos vejam que os corpos humanos
estão sujeitos à morte da mesma forma, esses milagres e a ressurreição dos mortos testemunham
que a humanidade foi concebida de maneira diferente, com propósitos distintos, e a origem do
ser humano foi revelada à igreja, assim como a causa da morte e a restauração da raça humana.
Essa doutrina deve ser contrastada com as opiniões humanas e as especulações sobre a
matéria, e devemos considerar que o benefício que Deus concedeu à raça humana ao revelar-se
através de tantas e tão ilustres evidências é tão grande quanto a própria criação do universo.
Embora as quedas constantes e significativas dos reinos sejam frequentes, devemos saber a
partir dos próprios testemunhos de Deus que a igreja de Deus perdurará. Para manter essa
consolação, é útil entender algo sobre a eleição ou predestinação.
Cristo diz em João 10. 27: “As minhas ovelhas ouvem a Minha voz, e Eu as conheço, e elas
Me seguem; e dou-lhes a vida eterna, e jamais perecerão; e ninguém as arrebatará das Minhas
mãos”. E em Efésios 1. 4 está escrito que fomos escolhidos em Cristo antes da criação do
mundo. Em 2 Timóteo 2. 19 é dito: “O fundamento de Deus está firme, tendo este selo: O Senhor
conhece os que Lhe pertencem”. Portanto, sempre haverá uma igreja dos eleitos, que Deus de
maneira maravilhosa mantém, defende e governa mesmo nesta vida, como está escrito em Isaías
46. 3-4: “Vocês foram carregados desde o ventre, suportados desde o seio materno. Até a sua
velhice Eu serei o mesmo e, ainda na idade grisalha, Eu os carregarei”. Devemos nos consolar
com essas afirmações e promessas, quando, preocupados com essas confusões e quedas dos
impérios, buscamos saber onde a igreja permanecerá.
No entanto, sempre se discutiu sobre a causa da eleição, assim como os dois irmãos Caim e
Abel discutiram sobre por que um foi preferido ao outro. O mesmo ocorreu entre Esaú e Jacó, e
frequentemente aqueles que conhecem apenas a doutrina da razão ou da lei pensam em relação à
eleição como se fosse um juiz humano, baseado na lei ou em nossos méritos e dignidade. Assim
pensavam os judeus, assim escreveram muitos escolásticos. Mas mantenhamos estas três
hipóteses.
A primeira é a seguinte: a eleição não deve ser julgada pela razão nem pela lei, mas pelo
evangelho.
A segunda é: o número total dos salvos foi eleito por causa de Cristo; portanto, a menos que
abracemos o conhecimento de Cristo, não se pode falar sobre eleição.
A terceira é: não busquemos uma causa diferente para a justificação e para a eleição. Pedro
foi eleito porque é membro de Cristo, assim como ele é justo, ou seja, agradável a Deus, porque
se tornou membro de Cristo pela fé. Portanto, assim como, quando falamos de justificação,
começamos com o evangelho ou o conhecimento da palavra do evangelho, da mesma forma, ao
falar sobre eleição, abordamos a palavra do evangelho. Devemos julgar assim, pois devemos
começar pelo conhecimento de Cristo e do evangelho.
Busquemos, portanto, a promessa na qual Deus expressou sua vontade, e saibamos que não
há outra vontade a ser buscada pela graça fora da palavra, mas que o mandamento de Deus é
imutável, para que possamos ouvir o Filho, como Ele disse: “A Ele ouçam”[124]. Essa voz abrange
todas as promessas. Portanto, que esta verdade esteja gravada em nossas mentes e que sempre
consideremos, na invocação diária, o mandamento eterno e imutável de Deus, a fim de crermos
na promessa da graça, que é a essência do Evangelho, como profetas, Cristo e apóstolos ensinam
de maneira unânime. Como está escrito em João 3. 16: “Porque Deus amou o mundo de tal
maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que n’Ele crê não pereça”; e em
João 6. 40: “Esta é a vontade do Pai, para que todo aquele que vê o Filho e crê n’Ele tenha a vida
eterna”. De fato, esta é a voz própria e principal do Evangelho.
Da mesma forma que a pregação do arrependimento é universal e condena todos, como
claramente é dito em Romanos 3: “Não há um justo sequer”, assim também a promessa da graça
é universal, como muitos testemunhos indicam.
Mateus 11. 28: “Venham a Mim todos os que estão cansados e oprimidos”; João 3. 16: “Para
que todo aquele que n’Ele crê não pereça”; Romanos 3. 22: “A justiça de Deus pela fé em Jesus
Cristo para todos e sobre todos os que creem”; Romanos 10. 12: “O mesmo Senhor de todos é
rico para com todos os que O invocam”; Romanos 11. 32: “Deus encerrou a todos na
desobediência, para com todos usar de misericórdia”; assim também Isaías em diferentes trechos
coloca as partículas universais: “Todos nós andamos desgarrados como ovelhas”, e assim por
diante. Atos 10. 43: “D’Ele todos os profetas dão testemunho de que, por meio de Seu nome,
todo aquele que n’Ele crê receberá a remissão dos pecados”. Atos 13. 39: “Por meio d’Ele é
justificado todo aquele que crê”. Essas palavras devem ser compreendidas de maneira simples:
Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Deus não
faz acepção de pessoas. Como está escrito em Deuteronômio 10. 17: “Porque o Senhor seu Deus
é Deus dos deuses, e Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz
acepção de pessoas, nem aceita recompensas”. Pois, sendo Deus justo, Ele trata igualmente os
iguais: todos são acusados por causa do pecado, mas todos os que se refugiam no Filho são
recebidos.
Depois de ter sido estabelecido que a promessa é universal, é importante também
compreender que ela é gratuita, ou seja, somos recebidos por causa do Filho de Deus, devido à
nossa dignidade, etc. Todos nós estamos envolvidos, e para usar as palavras de Paulo, todos
estão debaixo do pecado, e Paulo frequentemente enfatiza a palavra “gratuita”. Assim, Deus
entregou essa promessa aos primeiros pais imediatamente e muitas vezes a renovou e espalhou
amplamente. Na verdade, Ele a transmitiu a todas as nações através dos apóstolos, pois Ele
deseja reunir uma igreja eterna para Seu Filho. Portanto, a causa da reprovação é certamente o
pecado nos seres humanos, aqueles que não ouvem nem recebem o evangelho de forma alguma,
ou aqueles que rejeitam a fé antes de partir deste mundo. Nos casos de reprovação, a causa é o
próprio pecado deles e a vontade humana. Pois é verdade que Deus não é a causa do pecado, nem
deseja o pecado. O Salmo declara: “Tu não és um Deus que deseja a iniquidade” e em Oseias 13.
9 está escrito: “Sua destruição, ó Israel, está em Mim; mas em Mim está o seu socorro”. Saul
quis rejeitar o Espírito Santo, resistindo à Sua influência. Portanto, a causa da rejeição ou
reprovação é clara. A promessa requer fé. Por outro lado, é correto afirmar que a causa da eleição
é a misericórdia na vontade de Deus, que não deseja que toda a humanidade pereça, mas reúne e
preserva a igreja por causa do Filho. Paulo expressa isso quando cita em Romanos 9. 15: “Terei
misericórdia de quem Me aprouver ter misericórdia”. Ele nega que a eleição dos seres humanos
ocorra devido à lei ou à preeminência de sua linhagem, para que a eleição da igreja, eleita e
estabelecida por causa do Filho, seja mais evidente. No entanto, é necessário que aquele que
recebe também compreenda a promessa ou reconheça Cristo. Assim como dissemos sobre a
justificação, há uma causa no receptor, não em termos de mérito, mas porque ele apreende a
promessa, junto com a eficácia do Espírito Santo. Como Paulo afirma: “A fé vem pelo ouvir”.
Da mesma forma, sobre a eleição, julgamos a partir do posterior, ou seja, sem dúvida, aqueles
que pela fé apreendem a misericórdia prometida por Cristo são eleitos, e eles não abandonam
essa confiança até o fim.
Assim, quando foi dito em João 6. 44: “Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que Me enviou,
não o trouxer”, imediatamente segue: “Todo aquele que ouve do Pai e aprende, vem a Mim”.
Deus começa e atrai com a Sua palavra e o Espírito Santo, mas é necessário que ouçamos e
aprendamos, ou seja, compreendamos a promessa e concordemos, não resistindo, não cedendo à
desconfiança e à dúvida.
Embora muitas discussões sejam realizadas de maneira áspera, no entanto, não importa quão
grande seja o montante de debates acumulados, é necessário recorrer a esta fortaleza no
verdadeiro combate, a saber, que devemos julgar a vontade de Deus a partir da palavra expressa,
e que a promessa é universal, um mandamento eterno e imutável de Deus, ouvir o Filho e
concordar com a promessa: portanto, obedeçamos, não nos desviemos da mente, nem nos
afundemos nas trevas, buscando a eleição fora da Palavra, abandonando Cristo e negligenciando
o mandamento de abraçar a promessa. Mas tenhamos certeza, não duvidemos, que Deus
verdadeiramente revelou Sua vontade na promessa e verdadeiramente cumpre o que prometeu;
afirmemos que a promessa da graça não é uma fábula vazia, mas erguemo-nos com fé verdadeira
buscando os benefícios e consideramos que nos são concedidos os que foram propostos na
promessa. Que esta fé cresça na invocação diária, como está escrito: “Pedi, e lhes será dado”;
também: “Quanto mais seu Pai celestial dará o Espírito Santo aos que pedirem a Ele”, não
dizendo aos que desprezam ou resistem, mas aos que reconhecem a miséria e buscam auxílio;
também: “A quem tem será dado”; também: “Confirma, ó Deus, o que operaste em nós”[125]; e
Filipenses 1:6: “Aquele que começou boa obra em vocês há de completá-la até ao dia de Cristo”,
ou seja, somos auxiliados por Deus, mas devemos ouvir a palavra de Deus, não resistindo ao Seu
chamado.
Assim também a mais doce promessa é transmitida aos Filipenses 2. 13: “Porque Deus é o
que opera em vocês tanto o querer como o efetuar, segundo a Sua boa vontade”. Deus move as
mentes para que queiram, mas é necessário que não resistamos, mas sim que concordemos; e Ele
promete estar presente para que a salvação iniciada seja aperfeiçoada, para que algumas boas
obras sejam agradáveis entre os próprios seres humanos. Como que dizendo: No mundo, os
demônios e seus instrumentos se precipitam furiosamente para fazer coisas desagradáveis a
Deus, para reforçar os furores dos epicuristas, os ídolos, a opressão do evangelho, guerras
injustas, luxúrias escandalosas, roubos e mentiras que provocam a ira de Deus. E para que toda a
raça humana não seja destruída, é necessário que algumas coisas agradáveis a Deus sejam feitas.
Isso é feito pelos piedosos na igreja, ou seja, a verdadeira invocação de Deus, a confiança em
Cristo, a ação de graças, a propagação do evangelho, a tolerância da cruz, a justiça para com os
próximos, o amor à castidade, à verdade, à paz e outras virtudes. E essas boas ações são
realizadas por aqueles que buscam, como foi dito: “Ele dará o Espírito Santo aos que pedirem”.
Em Efésios 1. 4, diz: “E nos elegeu n’Ele”, para ensinar que a causa da eleição não é a nossa
dignidade, mas Cristo, para que não pensemos na eleição excluindo Cristo e o evangelho, mas
busquemos a causa da eleição na promessa de Cristo. Da mesma forma, Romanos 8. 30 diz: “E
aos que predestinou, a esses também chamou”. Essa sentença contém consolo doce, salutar e
múltiplo, mas é frequentemente negligenciada por leitores ociosos. O primeiro consolo é que
afirma que os eleitos não estão em nenhum lugar além do grupo dos chamados; somente aqueles
que ouvem, aprendem e professam o evangelho são chamados. Este grupo visível é a igreja, na
qual sempre é necessário que outros sejam eleitos e herdeiros da vida eterna. No entanto, é muito
útil para os piedosos saberem que a igreja dos eleitos está colocada dentro desta igreja visível,
para que saibamos que todos nós estamos ligados à voz e ao ministério do evangelho, e que não
devemos buscar a eleição ou revelações especiais em outro lugar. Portanto, este dito nos encoraja
a prestar atenção e aprender o evangelho, a cuidar do ministério e a amar a comunhão da igreja; e
afirma que os eleitos estão neste grupo visível.
A segunda consolação é que esta sentença adverte que a vocação não é separada do conselho
da eleição. Deus escolhe porque decidiu nos chamar para o conhecimento do Filho e deseja que
Sua vontade e benefícios sejam conhecidos pela humanidade. Ele, portanto, aprova e escolhe
aqueles que obedecem à vocação. Portanto, devemos considerar a vocação, concordar com o
evangelho e não resistir a ele; pois através disso, Deus nos atrai e, ao concordarmos, nos recebe e
ajuda de maneira certa. Como já foi dito tantas vezes, Deus age eficazmente através do
evangelho. Portanto, Agostinho, embora seja rígido nesse debate, escreveu no livro “Sobre a
Predestinação e a Graça”: “Aqueles que receberam o dom da vocação com a devida piedade e,
tanto quanto está no poder humano, mantêm em si os dons de Deus, Ele ajuda”.
Uma terceira consolação reside no fato de que esta declaração testemunha que há
verdadeiramente Deus presente neste conjunto visível de chamados, e que Ele é eficaz dentro
deste grupo chamado e visível. Na verdade, essas palavras nos convencem disso: “Aqueles a
quem Ele chama, Ele também justifica; e aqueles a quem Ele justifica, Ele também glorifica”[126].
Portanto, o leitor deve observar nesta doutrina a respeito da igreja, da presença de Deus nesta
igreja visível e da conexão entre eleição e chamado.
Portanto, por que não desviamos nossos olhos e mentes da promessa universal e nos
incluímos nela? Devemos reconhecer que a vontade de Deus está verdadeiramente expressa nela,
como Paulo nos leva a entender ao dizer: “Não digas no seu coração: Quem subirá ao céu?”[127].
Não precisamos procurar sem a palavra de Deus a Sua vontade, pois a palavra está próxima de
nós, em nossos lábios e corações. O capítulo 9 de Romanos não difere dessa ideia que apresentei,
e essa consolação é docemente amparadora para as mentes piedosas. Assim como os pontífices
judaicos da época condenavam os apóstolos devido à sucessão e à lei ordinária, assim também os
pontífices e outros que defendem os erros deles, se vangloriam de ser a verdadeira igreja de Deus
devido ao título ou à chamada “sucessão ordinária”. Eles transferem para si as promessas e
afirmam que a igreja não pode errar, condenam e perseguem os outros, abraçam a pureza do
evangelho e afirmam que estão enriquecidos e guerreiam contra a igreja. Contra essa aparência
de sucessão ordinária, a doutrina e a consolação apresentadas no capítulo 9 de Romanos são
necessárias.
E uma dupla consolação é apresentada: Aprendemos o que é a verdadeira Igreja, ou seja, a
congregação que crê no Filho de Deus. Além disso, somos advertidos de que essa verdadeira
igreja não está vinculada ao título ou à sucessão ordinária dos pontífices e colégios. Então
entendemos que a lei não é a causa da eleição, mas que a misericórdia é oferecida a todos que
aceitam o Filho de Deus; além disso, é declarado explicitamente que a causa da reprovação é a
obstinação contra o Filho. Por que Israel, seguindo a lei da justiça, não se aproximou da lei da
justiça? Porque, diz ele, eles não o fizeram pela fé, mas como pelas obras da lei, ou seja, eles são
rejeitados porque não querem ouvir o Filho e concordar com a promessa, e alegam como motivo
que defendem a justiça da lei, parecendo que a glória é tirada das obras.
Portanto, quando, cegos em seu erro, resistem ao evangelho, a causa da reprovação está
neles, como é claramente afirmado no capítulo 10 de Romanos: “Todo o dia estendi as minhas
mãos a um povo rebelde”. Aqui Deus confirma que oferece o benefício a todos, mas os rebeldes
não o recebem. Mas, ao contrário, diz suavemente: “Não depende do que quer, nem do que corre,
mas de Deus, que se compadece”. Ou seja, a misericórdia é a causa da eleição, e isso deve ser
revelado pela Palavra e aceito. Portanto, a universalidade é expressamente apresentada, a mesma
ideia repetida em ambos os capítulos: “Todo aquele que crê no Filho não será confundido”.
Portanto, deseja-se que, ao consentirmos com a misericórdia, também recebamos a apreensão da
promessa.
Que também os estudiosos saibam que a expressão hebraica nas palavras “Eu endurecerei o
coração de Faraó” significa permissão; “Eu permitirei que endureça”, como na oração diária:
“Não nos deixes cair em tentação”. E há exemplos em abundância que testemunham que essa
frase hebraica frequentemente significa permissão.
Há uma grande obscuridade nas mentes dos seres humanos quando pensam em Deus;
frequentemente as pessoas têm imaginações epicuristas ou estoicas. Muitos imaginam que Deus
não se importa com os seres humanos; outros imaginam que Deus está sentado no céu
escrevendo leis fatais, como nas tábuas das Parcas, distribuindo virtudes e vícios de acordo com
Sua vontade, como os estoicos acreditavam em seu destino, e imaginam que Páris e outros são
impelidos por um movimento fatal. No entanto, deixando de lado esses delírios da escuridão
humana, devemos direcionar nossos olhos e mentes para os testemunhos sobre Deus
apresentados. Devemos compreender que Deus age verdadeiramente com liberdade e deseja
apenas coisas boas, não deseja o pecado, e Ele expressou e revelou essa vontade por meio de
testemunhos claros e impressionantes, como a ressurreição dos mortos e outros, e nos ligou ao
Seu evangelho, no qual Cristo diz (Mateus 11. 28): “Venham a Mim todos os que estão cansados
e oprimidos, e Eu os aliviarei”. Ele recebe livre e verdadeiramente aqueles que se refugiam no
Filho, cumprindo Sua promessa, e permite que aqueles que rejeitam o Filho caiam na terrível ira.
Portanto, vamos afastar as discussões estoicas de Paulo, que subvertem a fé e a invocação.
Como pode Saul crer ou invocar quando ele duvida que a promessa se aplica a ele, ou quando
aquela tábua das Parcas intervém? Já foi decretado que você deve ser rejeitado, você não está
escrito no número dos eleitos, etc. Contra essas imaginações, aprendamos a vontade de Deus a
partir do evangelho, reconhecendo que a promessa é universal, para que a fé e a invocação
possam ser acendidas.
Além disso, sobre o efeito da eleição, retenhamos esta consolação: Deus, que deseja que
todo o gênero humano não pereça, está sempre chamando, atraindo e reunindo a igreja por
misericórdia, por causa do Filho, e recebendo aqueles que assentem, e Ele sempre quer que haja
algo de Sua igreja, a qual Ele ajuda e salva, como Cristo diz: “Minhas ovelhas ouvem a Minha
voz; Eu as conheço, e elas Me seguem; dou-lhes a vida eterna, e jamais perecerão”. É útil saber
sobre o efeito da eleição para que possamos afirmar que somos ouvidos e ajudados, e para
sabermos que a igreja não pode ser destruída pelo diabo. Essa afirmação indica um grande
conflito: “ninguém as arrebatará da Minha mão”. Portanto, despertemos a fé e invoquemos o
Filho de Deus, que serve Suas ovelhas, pois Ele diz ao mesmo tempo: “Elas Me ouvem e Me
seguem”.
Primeiro, é importante responder à premissa menor, que afirma que a Igreja é justa,
especificamente em termos de imputação e início de justiça nesta vida mortal. No entanto, ainda
existe uma grande escuridão dentro dela, com muitas dúvidas sobre Deus e muitos afetos
prejudiciais. Além disso, muitos lapsos notáveis ocorreram dentro da própria Igreja, como os de
Arão e Davi, que provocaram a ira de Deus. Como mencionei anteriormente, a Igreja é mais
severamente testada do que outras partes da humanidade que não invocam adequadamente Deus,
porque Deus na Sua Igreja deseja principalmente que Sua ira contra o pecado seja reconhecida.
Pessoas como Tibério e outros que desdenham a Deus, embora possam enfrentar punições após
esta vida, não são tão severamente testadas aqui quanto a Igreja, porque Deus na Igreja deseja
que Seu julgamento seja visível e temido, como está escrito (1 Pedro 4. 17): “Pois o tempo é
chegado para o julgamento começar pela casa de Deus”. Além disso, há outras razões que
mencionei anteriormente.
Agora, vou responder à premissa maior: “O que é justo deve ser bom”, o que está de acordo
com a ordem divina e é assim que a Lei estabelece (Levítico 18. 5): “Aquele que os cumprir,
viverá por eles”. Além disso, em Deuteronômio 4. 1, está escrito: “Obedeça e viva”. E em
Deuteronômio 28. 1,6: “Se ouvirem a voz do Senhor, seu Deus, e cumprir todos os Seus
mandamentos, serão abençoados ao entrarem e saírem”, ou seja, em todos os aspectos da
governação política e económica, em guerras, paz, na procriação, governo e sucessão de filhos,
na manutenção da pureza da Igreja e na disciplina adequada, entre outros. Portanto, a voz da Lei
é verdadeira e a regra da ordem divina é: “Aos justos está reservada a felicidade”. Mas o
Evangelho fornece a interpretação dessa regra: “Os justos ficarão bem quando a Igreja for
glorificada”. No entanto, Deus adia as recompensas, pois a Igreja ainda não está livre de pecado.
Como todos os bens e males desta vida são curtos e passageiros, Deus não deseja adornar os
justos com bens fugazes nem punir os injustos com tormentos breves, mas deseja manifestar Sua
justiça nas coisas eternas. Portanto, Ele adia principalmente as punições para a vida eterna.
Enquanto isso, nesta vida, Ele regularmente pune crimes atrozes com punições corporais
evidentes, não apenas para nos advertir de Sua ira e do julgamento eterno, mas também por causa
da paz política.
Os filósofos ficam perplexos com a aparente confusão, como eles a veem, quando percebem
que os bons, como Palamedes e Sócrates, sofrem, enquanto os maus, como Tibério, prosperam.
Eles buscam entender as causas disso e tentam associar recompensas à virtude. Daí surgem
questões como se a virtude é suficiente para a felicidade e se Sócrates é feliz, mesmo que as
recompensas não correspondam à virtude. Essas questões são intratáveis na filosofia, mas na
Igreja são resolvidas com sabedoria: Paulo é feliz, pois agrada a Deus e tem Deus como seu
guardião e governante. Embora saiba que nesta vida está sujeito à cruz por razões específicas, ele
também sabe que a Igreja deve ser adornada, não com bens passageiros e de curta duração, como
o curso desta vida mortal, mas sim com recompensas que estão por vir. Portanto, no devido
tempo, as recompensas são unidas à virtude, e são recompensas eternas, não passageiras como os
bens desta vida terrena.
Essa explicação do argumento comum no qual se discute se os justos devem estar bem, foi
apresentada não apenas para alertar o leitor sobre a questão comum dos filósofos, mas também
para que possamos considerar mais atentamente as nossas próprias misérias, suas causas e
remédios.
Portanto, quando você pensa em si mesmo como vivendo em uma cidade cercada e
ferozmente sitiada, experimentando aflições, as próprias circunstâncias nos lembram de procurar
um libertador. É por isso que as coisas a serem buscadas, como mencionei antes, são incluídas na
oração e seu ordenamento é compreendido.
Primeiro, o perdão dos pecados e a reconciliação devem ser buscados, juntamente com os
bens da luz do Espírito Santo que acende e fortalece em nós o conhecimento de Deus, a fé, o
temor, a paciência, o amor e, finalmente, nos guia na vocação e em todos os conselhos, no ensino
e na governança da república.
Em segundo lugar, é importante que na oração se peçam tanto bens corporais comuns quanto
privados. Que se busque a paz nas regiões que acolhem as igrejas e os estudos piedosos, que haja
disciplina justa nas cidades, fertilidade nos campos, climas favoráveis, saúde, sustento adequado,
sucesso em suas responsabilidades políticas e econômicas, proteção para os filhos, prosperidade
nos negócios, boa reputação e prosperidade material. Devemos rejeitar completamente a tolice
daqueles hipócritas ociosos que afirmam ser indigno pedir a Deus bens materiais. Esses
devaneios estão cheios de impiedade. Como mencionei anteriormente, é importante por três
razões fundamentais:
A primeira razão é para que reconheçamos e afirmemos com convicção que os bens
materiais não são dissipados entre os seres humanos por acaso ou sem propósito, mas que Deus é
verdadeiramente o autor dessas coisas e que Ele as concede e as preserva para Sua Igreja de
acordo com Seu maravilhoso plano. Deus preservou a vida de Abraão, Elias e Paulo,
providenciando-lhes abrigo em suas jornadas por várias regiões, enfrentando perigos iminentes,
como Cristo claramente afirma em Mateus 6. 32: “Pois seu Pai celestial sabe que necessitam de
todas essas coisas”. Além disso, as promessas desses bens foram mencionadas anteriormente.
A segunda razão pela qual Deus deseja que busquemos essas coisas é para que saibamos que
Ele preservará Sua Igreja nesta vida. Quanto tempo Paulo poderia continuar ensinando se fosse
morto imediatamente? Portanto, para que ele pudesse continuar ensinando por algum tempo, ele
pede por vida, sustento e abrigo. Como podemos servir a Igreja de Deus se nossos corpos
estiverem enfraquecidos pela dor? Portanto, devemos buscar tranquilidade ou alívio das misérias,
a fim de que possamos servir a Igreja, e por essa razão sabemos que Deus deseja conceder esses
bens, como Ele frequentemente testemunha. Como Cristo disse em Mateus 6. 33: “Busquem
primeiro o Reino de Deus, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas”.
A terceira razão é que Deus deseja, por meio desses exercícios de pedir por bens corporais,
fortalecer a fé na Reconciliação. Sempre deve transparecer nesses pedidos a fé na Reconciliação.
Reforço essas razões para que estejam em nossa mente e nos incentivem à oração. Muitos,
como Crisóstomo e outros, distorcem de forma tola a oração que Cristo nos ensinou, recusando-
se a interpretar o “pão cotidiano” como referindo-se ao pão físico. Pelo contrário, devemos
reconhecer que as necessidades do corpo, como vida, sustento, colheitas, governo civil, são obras
grandiosas e maravilhosas de Deus, não distribuídas entre os seres humanos por acaso, mas
concedidas com um propósito divino. Elas são destinadas a apoiar a vida da Igreja e devem ser
preservadas.
Os estoicos não devem ser ouvidos quando proclamam que devemos servir a Deus sem
esperar bens corporais como recompensa. Essa é uma tolice que surge das trevas profundas. Os
estoicos não consideram a fragilidade da vida terrena. Esses bens corporais não são solicitados
como recompensas ou compensações, embora também possam ser solicitados dessa maneira em
seu devido tempo, mas são solicitados como apoio para nossas vocações. Moisés não poderia
governar o povo se estivesse consumido pela dor mental ou física. Portanto, a vida, o consolo e o
sustento são buscados para que ele possa servir em sua vocação, e ainda assim ele o faz de bom
grado. Ele não murmura contra Deus, mesmo que seja chamado deste curso de vida ou mesmo
que tenha que suportar dificuldades maiores do que as que ele suplica para serem aliviadas.
Quando buscamos nessa ordem, priorizando os bens eternos e não abandonando Deus,
mesmo que os bens corporais sejam adiados ou não concedidos, essa petição é agradável a Deus,
e Ele afirma ser honrado por ela. Não é necessário um longo debate. Pois os mandamentos são
conhecidos, as promessas são conhecidas, e também são conhecidos os exemplos dos grandes
pais e profetas que, deixando de lado a filosofia estoica ou, melhor dizendo, cínica, sabiam que
todos os bens foram maravilhosamente ordenados por Deus. Eles reconheciam que essas eram
coisas importantes e não desprezíveis, e que era preciso reconhecer Deus como autor e buscar a
vida, seus sustentos e defesa d’Ele.
Quando Jacó viu o Senhor na escada, ele ouviu promessas tanto para as bênçãos eternas
quanto para os bens corporais. Ele chamou Jacó e sua descendência para estabelecer a Igreja, que
não pode existir nesta vida sem refúgio, vida e sustento para aqueles que ensinam. Sobre as
bênçãos eternas, Deus disse: “Por meio da sua descendência, todas as famílias da terra serão
abençoadas”. Sobre a defesa do corpo, Ele disse: “Serei o seu guardião por onde quer que for”.
Portanto, sempre que a voz divina promete a permanência da Igreja de Cristo (o que é
frequentemente e de forma clara prometido), devemos abraçar o argumento da conexão, ou seja,
que a provisão de alimento e o lar da Igreja são prometidos simultaneamente. Finalmente, é
impiedade e loucura afastar nossos corações da petição pelos bens corporais, quando Deus deseja
ser honrado com isso e nossa fé é fortalecida por esses exercícios.
Portanto, como foi dito, devemos orar pelas bênçãos eternas e pelos bens corporais, e
embora a oração possa ser feita com uma simples súplica, é útil para jovens e idosos manterem
uma forma de oração habilmente composta, sem cair em superstições, que nos leve a invocar o
verdadeiro Deus e diferenciar nossa oração das práticas dos pagãos, muçulmanos e judeus, nos
lembrando ao mesmo tempo das promessas divinas e pedindo coisas específicas. Muitas das
orações dos primeiros Patriarcas e do povo de Israel fazem exatamente isso. Cuidadosamente,
eles distinguem o verdadeiro Deus através da invocação e mencionam as promessas pelas quais
Deus se revelou. Às vezes, eles apresentam a promessa como parte de sua súplica, como Jacó fez
em Gênesis 32: “Ó Deus de meu pai Abraão e Deus de meu pai Isaque, ó Senhor, que me
disseste: ‘Volta para a sua terra e para a sua parentela, e o farei bem’. Não sou digno de todas as
misericórdias e de toda a fidelidade que tens mostrado ao Teu servo; pois com meu cajado só
passei este Jordão; e agora me tornei em duas tropas. Livra-me, peço-Te, da mão de meu irmão,
da mão de Esaú, porque eu o temo; para que não venha, e me fira, e a mãe com os filhos. Pois Tu
disseste: Certamente o farei bem e tornarei a sua descendência como a areia do mar, que pela
multidão não se pode contar”. É proveitoso considerar cuidadosamente as partes dessa oração. A
invocação é: “A Ti, o verdadeiro Deus, revelado aos meus pais Abraão e Isaque, eu invoco e
recorro, não confiando na minha própria dignidade, mas nas Tuas preciosas promessas; pois
reconheço que sou muito inferior às Tuas misericórdias, mas Tu disseste que me ajudarias”.
Observe como ele sustenta seus pensamentos com a promessa e descansa nela; então, ele
apresenta sua petição e a razão pela qual a Igreja não deve ser destruída; proteja-me para que as
mães e os filhos não sejam mortos.
E frequentemente os Pais e Profetas fazem essas petições da seguinte forma: “Deus dos
nossos pais, Abraão, Isaque e Jacó”, ou seja, eles invocam o Deus que se revelou de maneira
específica aos nossos pais, Abraão, Isaque e Jacó, e entregou a eles as promessas. Além disso,
eles usam a forma dada nos Dez Mandamentos (Êxodo 20. 2): “Eu sou o Senhor, seu Deus, que
lhe tirei da terra do Egito”. Essas formas são frequentemente repetidas nos Salmos. Além disso,
tanto os Pais como os descendentes acrescentam o nome peculiar de Deus à invocação comum.
“Elohim” é o nome comum usado pelas nações, enquanto “Yahweh” é o nome exclusivo pelo
qual somente a Igreja dos pais e os israelitas chamavam a Deus. Assim, Jacó fala aqui dessa
maneira. No Salmo 19. 8, lemos: “Nós invocaremos o nome do nosso Deus, o Senhor”. Há
exemplos disso em toda parte, e eu acredito que essa prática era tão comum entre os piedosos
que esses dois nomes eram recitados, como Tomé fez em João 20. 28, quando disse a Jesus:
“Meu Senhor e meu Deus”[141].
Portanto, devemos nos acostumar a recitar alguma forma de oração e usá-la de maneira
piedosa e bem composta, evitando superstição ou magia. Não devemos recitar hinos de Orfeu,
Homero ou Calímaco, mas, com verdadeira devoção, devemos nos voltar para Deus com
confiança, revelado através de Cristo. Que nossa mente seja direcionada a esse Deus Criador,
que se revelou enviando Seu Filho, Cristo, e nos dando o Seu Evangelho.
Muitos preguiçosos, bêbados e indiferentes desdenham a recitação. No entanto, os piedosos
devem ser incentivados a se habituarem a alguma forma de recitação, como mencionei, e há
muitas razões graves para isso. Pois essa mesma recitação é uma confissão pela qual a Igreja se
separa dos ídolos individual e publicamente, e cada um se educa e é lembrado do verdadeiro
Deus e do verdadeiro culto. Além disso, a meditação sobre a revelação e as promessas acende os
afetos, a fé se torna mais ardente quando se pensa na grande bondade de Deus, em como Ele se
revelou, em como deseja ser invocado, em como propôs um Mediador e em como sempre
apresentou muitos exemplos e realmente ouve aqueles que O invocam. Esses movimentos da
alma, essa fé, precisam ser despertados durante a oração, para o que a recitação instruída
contribui. Pois a fé vem pelo ouvir, e o ouvir vem pela palavra de Deus. Portanto, é necessário
que a fé seja inflamada pela meditação na Palavra divina.
Alguns eremitas afirmam que não há tarefa mais difícil do que falar as orações a Deus. No
entanto, geralmente é considerada uma tarefa fácil e comum. Mas, quando Jesus diz que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade (João 4. 23), a dificuldade se
torna clara. A oração deve ser realizada com o espírito, ou seja, sem hipocrisia, sem palavras
vazias, mas com uma disposição sincera do coração, e deve ser feita com verdade, ou seja, com
um verdadeiro conhecimento de Deus, direcionada ao verdadeiro Deus e ao Mediador. Portanto,
é necessário que haja uma reflexão genuína sobre Deus e um movimento do coração. É por isso
que Deus se revelou através da voz e enviou Seu Filho para que pudesse ser visto em carne. Para
que possamos contemplar este Filho na oração e ser lembrados do Pai. Não despreze a visível
presença deste Filho de Deus entre nós e não pense que ela foi em vão. Deus atendeu à nossa
fraqueza, deseja ser reconhecido dessa forma e nos convida a contemplar este Filho de Deus que
Ele enviou, que foi visto por tantos, que foi pendurado na cruz e ressuscitou dos mortos.
Mas porque a atenção na recitação é difícil, os preguiçosos evitam as recitações; no entanto,
a Igreja sempre as prescreveu, tanto em público quanto em particular. É por isso que os Salmos
foram compostos com grande cuidado. E Cristo Ele mesmo apresenta uma forma de oração e diz
explicitamente em Lucas 11. 2: “Quando orarem, digam”. Ele prescreve palavras e uma recitação
específica, como João já havia registrado. Portanto, devemos manter e recitar a forma prescrita
pelo conselho divino.
Pai Nosso que estais no céu.
Isso significa que, “Tu que estás em toda parte, observas tudo e ouves em todos os lugares,
todo-poderoso Criador de todas as coisas”. Mas quando esta parte for recitada, deixe que o apelo
do Pai restrinja sua mente. Por que você chama Deus de Pai? E por que O nomeia assim? Por
meio de quem o acesso a Ele foi concedido a você? Aqui, vêm à mente as palavras de Cristo em
João 14. 6: “Ninguém vem ao Pai senão por Mim”. E (ibid., v. 9): “Quem Me vê, vê o Pai”. E
João 16. 23: “Em verdade, em verdade lhes digo, tudo o que pedirem ao Pai em Meu nome, Ele
os dará”. Portanto, você chama Deus de Pai, aquele que se revelou através do envio deste Filho,
Jesus Cristo, ressuscitado e dado como Evangelho. E você O chama, portanto, de nosso Pai,
porque Ele foi apaziguado por meio do Filho, e por meio deste sacerdote, Ele aceita nossas
preces. Para me lembrar disso, acrescento estas palavras: Onipotente, eterno e vivo Deus, eterno
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que Te revelaste com imensa bondade e proclamaste por meio
de Teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo: “A Ele ouçam”; Criador de todas as coisas e seu
Conservador e Auxiliador, juntamente com Teu Filho coeterno, nosso Senhor Jesus Cristo,
reinando Contigo e revelado em Jerusalém e Teu Espírito Santo derramado sobre os Apóstolos,
sábio, bom, misericordioso, juiz e poderoso; Pai nosso, que estás nos céus. Dessa forma, a
invocação é distinguida das práticas éticas, turcas e judaicas, e a mente é lembrada das
promessas.
Santificado seja o Teu nome.
Isto é, apague qualquer falsidade, para que Tu possas ser reconhecido verdadeiramente, para
que as verdades pelas quais a Tua glória é verdadeiramente revelada sejam ensinadas, para que
as pessoas possam Te invocar e Te adorar corretamente. O nome aqui se refere ao conhecimento
ou reconhecimento e à celebração do nome de Deus e à invocação. Portanto, a primeira coisa a
ser pedida, que é recitada no início, é o maior e o primeiro bem, sobre o qual os primeiros e
segundos mandamentos pregam principalmente, ou seja, que Deus seja conhecido corretamente,
que a verdadeira doutrina sobre Deus seja amplamente difundida através da voz do Evangelho e
compreendida corretamente, e que muitas pessoas adorem a Deus com verdadeira invocação e
obediência.
Venha o Teu reino.
Ele fala principalmente sobre o efeito da primeira petição. Reges-nos através da voz
disseminada pelo Evangelho e também nos guias com o Teu Espírito Santo. Faz-nos crer na Tua
palavra, começa em nós o Teu reino, para que nos tornemos herdeiros do Teu reino. Destrói o
terrível reino de Satanás que se propaga horrivelmente entre a humanidade, levando as pessoas
ao desprezo epicurista por Deus, à adoração de ídolos, a homicídios, luxúria, mentiras e outros
furores. Defende-nos contra esses males, ó Pai eterno do nosso Senhor Jesus Cristo, e guia-nos
com o Teu Espírito Santo, como Tu disseste: “Derramarei do Meu Espírito”.
Seja feita a Tua vontade.
Isso significa conceder que todos Te obedeçam na Terra. Dá-nos pastores da Igreja, reis,
magistrados, mestres, discípulos, cidadãos, para que cada um cumpra o seu dever corretamente e
com sucesso. Que todos Te obedeçam como os anjos no céu Te obedecem e Te agradam. É Tua
obra efetivar isso, para que, apesar de nossa miséria, estupidez e fraqueza, possamos realizar
ações boas e benéficas, sejamos instrumentos não da ira, mas da misericórdia, sejamos úteis à
Igreja e não flagelos. A política de Ezequias foi bem-sucedida com Tua ajuda; a política de
Zedequias foi malsucedida, pois rejeitou Tua ajuda. Não Te rejeitamos, mas com corações
sinceros e verdadeiras lágrimas, oramos para que Tu governes nossas igrejas, mestres, escolas,
líderes, governantes e o povo, para que algo seja agradável a Ti, como Paulo disse: “Aquele que
efetua em vocês tanto o querer como o realizar, segundo a Sua boa vontade”. Pois os ímpios, sob
a influência de Satanás, se esforçam muito para fazer o que desagrada a Deus, alimentam fúrias
epicuristas, ídolos, luxúria, provocam guerras injustas e causam devastação triste. Mas para que a
raça humana não seja criada em vão, para que não façam tudo o que desagrada a Deus, Deus
chamou a Igreja e a atraiu com o Seu Espírito Santo para fazer o bem e agradar a Deus,
proclamar a verdadeira doutrina sobre Deus, ouvir, invocar corretamente a Deus, agradecer a Ele,
obedecer a Ele, afastar muitos com sucesso de Satanás, governar outros com conselhos piedosos
e benéficos, preservar a paz e uma disciplina honrosa.
Até agora, as petições abordaram assuntos elevados e bens que se relacionam mais com o
espírito do que com o corpo, sejam eles comuns ou privados. E a ordem foi sabiamente
estabelecida: Primeiro, busca-se o conhecimento verdadeiro de Deus; em segundo lugar, busca-
se o efeito desse conhecimento para sermos guiados pelo Espírito Santo; em terceiro lugar,
busca-se que cada um, em sua própria vocação ou função, cumpra adequadamente e com sucesso
seu dever. Agora vem a petição das coisas corporais.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje.
Isso significa que estamos pedindo por alimento, paz, proteção, boa saúde para que
possamos suportar as dificuldades de nossas vocações, sucesso em nossas responsabilidades de
acordo com nossas vocações, educação para nossos filhos, um grau razoável de tranquilidade,
abrigo, boas autoridades políticas, a manutenção da disciplina, da justiça e dos tribunais, e que
não sejamos atormentados por tumultos, relaxamento da disciplina ou guerras.
E perdoe-nos as nossas dívidas.
Já foi dito tantas vezes que em todas as preces a remissão dos pecados deve ser a primeira
coisa a ser pedida e que a fé na reconciliação deve sempre brilhar antes de todas as outras
petições. Sempre devemos começar olhando para o Mediador Cristo e crer que somos aceitos e
ouvidos por causa d’Ele. Devemos saber que este sacerdote intercede por nós e, com essa
confiança, nos aproximamos de Deus, como já foi dito (Romanos 5. 1): “Justificados pela fé,
temos paz com Deus” e “acesso à graça”. Portanto, quando em nossa invocação, nossa
indignidade nos acusar e nos afastar de Deus, fazendo com que nossas mentes temerosas evitem
Deus, aqui Cristo também nos ordena que peçamos reconciliação, e Ele não nos ordenaria a pedir
se não estivesse disposto a dar. Portanto, a mente atenta deve pensar cuidadosamente sobre o
perdão dos pecados e sobre o Mediador Cristo. Aqui, a Igreja faz uma confissão notável ao
admitir que carrega consigo pecados e múltiplas fraquezas. Mas aqui também é oferecido
consolo. Pois quando o próprio Cristo nos ordena buscar o perdão, sem dúvida Ele o concederá.
E nesta recitação, a mente também deve se lembrar das promessas expressas, como em 1 João 1.
8-9: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em
nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados”.
O que é acrescentado aqui, “ASSIM COMO TAMBÉM PERDOAMOS”, nos lembra sobre
o arrependimento, para que não persistamos em pecados contra a consciência, porque quando a
mente mantém o desprezo por Deus, não é ouvida, de acordo com o dito: “Deus não ouve os
pecadores”, isto é, aqueles que persistem em pecados contra a consciência. E em 1 João 3. 21-22
diz: “Se o nosso coração nos não condena, temos confiança para com Deus; e aquilo que
pedimos, d’Ele recebemos, porque guardamos os Seus mandamentos”, ou seja, se não
persistirmos em pecados contra a consciência. O mesmo princípio está ligado à declaração em
Mateus 5. 23: “Se, pois, ao trazer ao altar a sua oferta, ali se lembrar de que seu irmão tem
alguma coisa contra você”, e os profetas frequentemente enfatizam essa sentença, que os rituais e
orações daqueles que persistem em pecados contra a consciência não agradam a Deus, como
Isaías 1 e 58, por exemplo.
Pensamos, no entanto, em quão verdadeiramente miserável é não poder recorrer a Deus, não
ter Deus como protetor, governante ou auxiliador, e estar sujeito à opressão do Diabo ou à ruína
causada pelos erros humanos. Em meio a tantos infortúnios e perigos, todos aqueles que
persistem em pecados contra a consciência enfrentam essa situação, não conseguindo invocar a
Deus. Portanto, devemos nos motivar a nos arrepender e melhorar nosso comportamento. Além
disso, devemos estar cientes de que, para aqueles que se arrependem, o pecado é perdoado
gratuitamente por causa de Cristo, como mencionado anteriormente várias vezes.
E não nos deixe cair em tentação.
Isso significa que não nos permitas ser arrastados pelo Diabo para a impiedade e outros
crimes; defende-nos contra as artimanhas do Diabo, guia-nos com a Tua luz e os Teus conselhos,
para que não nos deixes cair enganados pelos nossos erros ou influenciados pela fraqueza da
carne. A sabedoria e a virtude de Davi foram grandes e admiráveis; no entanto, vemos que ele
foi, por vezes, levado pelo Diabo ou por erros humanos, como quando ordenou a contagem do
povo. Portanto, visto que todos somos frágeis, dirige-nos, ó Deus eterno, Pai do nosso Senhor
Jesus Cristo, e mostra-nos conselhos salutares nas nossas questões privadas e públicas. Fortalece
os nossos corações com o Teu Espírito Santo, para que possamos Te obedecer e ser instrumentos
não da ira, mas da misericórdia, úteis para a Igreja.
Livrai-nos do mal.
A petição geral é aquela que busca libertação de todas as misérias e aflições desta vida, dos
pecados, da tirania do Diabo, dos escândalos, das calamidades públicas e privadas. Ou seja,
busca que, juntamente com toda a Igreja, sejamos resgatados das misérias presentes e agraciados
com luz, justiça e vida eterna, para que possamos desfrutar da doce comunhão com Deus eterno e
nosso Senhor Jesus Cristo; Amém.
Portanto, você vê que as coisas a serem solicitadas são abrangentes e estão dispostas na
melhor ordem possível, conforme Cristo nos instruiu a recitar. Pois ele expressamente diz:
“Assim digam quando orarem”, e menciona coisas eternas, espirituais, corporais, presentes e
futuras. Ele quer que você considere toda a vida, na verdade, toda a eternidade, pensando nas
ameaças presentes e futuras, cuja reflexão certamente deve despertar os corações para a Oração.
O que mencionei no início, sobre pensar em quem você está invocando, onde esse Deus se
revelou, se Ele tem razão para ouvi-lo, deve ser considerado com atenção, para que as mentes
não se desviem na Oração, como as mentes dos pagãos costumam fazer. Portanto, o Filho Eterno
de Deus assumiu a natureza humana e conviveu conosco de maneira íntima, para que aqueles que
O invocam pensem n’Ele como verdadeiro Deus, Aquele que se revelou através deste Filho com
testemunhos claros, e O abordem como o Pai Eterno, testemunhando sobre este Filho. Portanto,
apresento novamente a forma:
“Todo-Poderoso, Deus eterno e vivo, eterno Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que se revelou
com imensa bondade e clamou através de teu Filho, o Senhor, o Criador e Conservador, com teu
Filho, coeterno, nosso Senhor Jesus Cristo, reinando contigo e revelando-se em Jerusalém, e com
teu Espírito Santo derramado nos Apóstolos, sábio, bom, misericordioso, juiz e poderoso, que
disseste: “Assim como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não desejo a morte do pecador, mas que o
ímpio se converta do seu caminho e viva”. E também disseste: “Invoque-Me no dia da angústia,
e Eu o livrarei”. Tem misericórdia de mim por causa de Jesus Cristo, Teu filho, a quem Tu
quiseste ser nosso sacrifício, mediador e intercessor, e santifica-me e dirige-me com Teu Espírito
Santo. Guia e defende Tua Igreja e os governos, que são moradas da Igreja.”
Essa forma piedosa também se dirige a Cristo, o Filho de Deus: “Eu Te invoco, Jesus Cristo,
Filho do Deus vivo, crucificado por nós e ressuscitado, Palavra e Imagem do Pai eterno[142], que
disseste: “Venham a Mim, todos os que estão cansados e oprimidos, e Eu os aliviarei”. Tem
misericórdia de mim e intercede por mim diante do Teu Pai eterno, santifica-me e dirige-me com
o Teu Espírito Santo, defende-me contra os demônios, espíritos mentirosos e assassinos, Teus
inimigos”.
Essa invocação a Cristo é uma confissão de Sua onipotência, pois ao invocá-Lo dessa forma,
a pessoa sente que Cristo vê os movimentos dos corações de todos os seres humanos e é um
auxiliador onipotente, concedendo o Espírito Santo e ajudando-nos em perigos corporais e
espirituais. Além disso, essa forma abrange as três pessoas da Trindade, pois dirige-se ao Filho,
O chama de intercessor diante do Pai eterno e reconhece que é do Filho que recebemos o Espírito
Santo.
Da mesma forma, essa expressa invocação a Cristo é apresentada em diversas passagens das
Escrituras Proféticas e Apostólicas. Em Atos 7. 58, Estêvão, no momento de sua morte, clama:
“Senhor Jesus, recebe o meu espírito”. Na Primeira Epístola aos Tessalonicenses 3. 11,
encontramos a invocação: “Ele mesmo, nosso Deus e Pai, e nosso Senhor Jesus Cristo, guie o
nosso caminho até vocês”. Não há dúvida de que em Gênesis 48. 16, Jacó faz referência a Cristo
quando diz: “Que Deus abençoe estes meninos, e que o Anjo que me livrou de todo o mal os
abençoe”. E no Salmo 71. 15, lemos: “E Ele será adorado continuamente”.
Esta forma de invocação serve como um testemunho claro de que Cristo é Deus por natureza
e Todo-Poderoso. Não se deve misturar essa invocação com a invocação de pessoas mortas, o
que obscurece e corrompe a verdadeira invocação. Devemos seguir a regra de que “Adorará o
Senhor seu Deus e só a Ele servirá”. É um grave erro estabelecer a invocação de pessoas mortas,
já que não há evidências divinas para isso e porque isso obscurece claramente o papel de Cristo
como Mediador. Além disso, a invocação de seres invisíveis concede poder aos invocados para
julgar os movimentos dos corações, o que é próprio apenas da natureza onipotente, como é dito
em 1 Crônicas 28. 9: “O Senhor sonda todos os corações e compreende todos os pensamentos
das mentes”. E em Jeremias 17. 11: “Eu, o Senhor, sondo os corações”. Este ato de adoração não
deve ser transferido para profetas, apóstolos ou Maria.
No entanto, deixando de lado a invocação a Maria, outros atos piedosos, úteis e gloriosos
podem ser realizados em relação a eles. Devemos agradecer a Deus por ter se revelado através
deles, por ter transmitido Sua doutrina por meio deles. Devemos considerar o tipo de doutrina
que cada um ensinou, agradecer a Deus por ter fornecido evidências claras por meio de suas
ações, como os milagres de Moisés, Elias e Eliseu. Devemos reconhecer que Deus
frequentemente restaurou Sua Igreja por meio de alguns deles, e que eles nos deram exemplos de
misericórdia, como o arrependimento de Davi e Maria Madalena. Devemos observar exemplos
que mostram que nossas orações são ouvidas em tempos de perigo, como Agar obtendo água
para seu filho, Jacó, Davi e Ezequias obtendo proteção. Esses exemplos devem nos inspirar a
invocar Deus e seguir o exemplo de arrependimento e fé desses homens. Por fim, também
devemos louvar esses indivíduos por terem obedecido ao chamado de Deus e por terem se
esforçado para manter os dons de Deus com diligência. Há muito o que se pode dizer em orações
longas e piedosas sobre essas luzes da Igreja, os profetas, apóstolos e muitos outros piedosos, se
suas histórias forem sabiamente narradas para nosso ensino e imitação, de acordo com nossa
capacidade.
Isso foi brevemente adicionado para que os leitores piedosos saibam que as invocações de
pessoas mortas devem ser reprovadas e evitadas. O costume pagão era invocar não apenas
muitos deuses, mas também pessoas mortas que se destacavam por suas virtudes ou proezas,
chamadas de “heróis”, como Hércules, Quirino e outros. Não há dúvida de que essas práticas são
originárias do Diabo, que tenta destruir o conhecimento do verdadeiro Deus. Portanto, devemos
evitar exemplos semelhantes de loucura pagã e aprender corretamente o que as Escrituras nos
ensinam sobre a suprema virtude da invocação de Deus. Devemos invocar o verdadeiro Deus
eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo crucificado e
ressuscitado, e o Espírito Santo derramado sobre os apóstolos, com sinceridade e gratidão
verdadeiras.
Depois de falarmos sobre o pedido de benefícios e auxílio, devemos lembrar a todos sobre a
gratidão, como Paulo menciona em 1 Tessalonicenses 5. 16-18: “Alegrem-se sempre. Orem sem
cessar. Em tudo, deem graças”[143]. No entanto, aqui é necessário que todos confessem sua culpa.
Todos nós somos ingratos com Deus, e quanto mais tranquilas são as circunstâncias, menos
pensamos em Deus. Na verdade, muitos, quando tudo está indo bem, se esquecem
completamente de Deus e permitem que seus desejos os guiem, como mostram os exemplos de
homens notáveis e a experiência nos ensina (Ovídio, “Ars Amatoria”, Livro II, 437-38):
“As mentes se tornam em luxúria quando tudo está indo bem,
E não é fácil suportar a boa sorte com uma mente equilibrada.”
Quando Sodoma, protegida por Deus de maneira evidente através da intervenção de Abraão,
foi posteriormente destruída por Deus devido à sua depravação, como é narrado no livro de
Gênesis, as cidades seguras logo se entregaram ao luxo e à decadência moral. Este é um exemplo
claro de como a ingratidão pode levar à destruição, mesmo depois de receber bênçãos notáveis
de Deus.
A ingratidão é um grande e vergonhoso defeito de todos os seres humanos. Recebemos de
Deus a vida, talentos, educação, sustento, conhecimento das escrituras, a Igreja, governos que
nos defendem e auxiliam, e muitas vezes somos protegidos e ajudados por Ele, mesmo quando
não pedimos ajuda. No entanto, em nossa segurança, muitas vezes nos entregamos a distrações e
prazeres, discutimos se as bênçãos que recebemos são meros acasos e não reconhecemos Deus
como o autor delas. Não nos esforçamos para retribuir a Sua benevolência, mas, ao contrário,
nossa petulância pode acender a Sua ira.
Devemos lamentar esses males e nos corrigir. Quando reconhecemos os benefícios de Deus,
devemos admitir que os recebemos d’Ele, não rejeitando de maneira petulante a Sua proteção e
ajuda. Devemos nos esforçar para agradá-Lo e expressar nossa gratidão a Ele com atos
verdadeiros e palavras. Isso não só nos lembra de que nossas bênçãos não são mero acaso, mas
também reforça a ideia de que Deus realmente cuida de nós, ouve nossas orações e nos ajuda.
Portanto, é importante que, diariamente, nos acostumemos a lembrar dos benefícios recebidos de
Deus e agradecer por eles.
Muitas pessoas, ao acordarem de manhã, ao irem dormir, ao sentarem para uma refeição, ao
levantarem da mesa e em outros momentos, como se fossem animais, nem sequer pensam em
Deus e em todas as bênçãos diárias que recebem. Essa negligência é vergonhosa e deve ser
corrigida. Antes de pedir novas bênçãos, devemos lembrar e agradecer pelas que já recebemos,
todos os dias. Além disso, devemos testemunhar nossa gratidão a Deus, seja publicamente, por
meio de palavras, cartas ou exemplos de vida. Você pode usar a seguinte forma para expressar
sua gratidão:
“Desejo expressar minha gratidão a Ti, Deus Todo-Poderoso, eterno e vivo, eterno Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, Criador de todas as coisas, Protetor e Preservador, juntamente com
Teu Filho eterno, nosso Senhor Jesus Cristo, revelado em Jerusalém, e com o derramamento de
Teu Espírito Santo sobre os Apóstolos. Agradeço-Te por Tua imensa bondade, que nos revelaste
por meio de testemunhos claros e notáveis. Agradeço por teres estabelecido e escolhido para Ti
uma Igreja perpétua. Agradeço por teres permitido que Teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, se
tornasse a vítima por nós, por nos ter dado Teu Evangelho e Teu Espírito Santo. Agradeço por
perdoares nossos pecados, nos libertares do poder do Diabo e da morte eterna, e por nos
concederes a vida eterna. Até agora, nesta vida, concedeste-me muitas bênçãos significativas: a
dádiva da vida, sustento, conhecimento, paz nos lugares onde vivi, e aliviaste as penas que
mereci.”
Após a expressão de gratidão, prossigamos com a petição, conforme mencionei
anteriormente. Também é importante agradecer especificamente por qualquer benefício recebido
naquele momento. Essa recitação é uma confissão do benefício recebido, como certamente Deus
exige, e deve estar em harmonia com nossos corações e mentes. Devemos verdadeiramente sentir
que não escapamos do perigo por acaso, mas que fomos ajudados e salvos por Deus. Nossas
orações foram ouvidas. Nossa mente deve celebrar a Deus, reconhecendo que Seu nome não é
vão, que Ele não negligencia as pessoas, mas ouve verdadeiramente aqueles que O invocam na
igreja. Deve haver uma distinção real entre a igreja e os não crentes, aqueles que blasfemam
contra Cristo, demonstrando que Deus realmente olha e auxilia Sua igreja e cumpre Suas
promessas. Isso deve ser impresso em nossas próprias mentes e comunicado aos outros, para que
narremos onde fomos ajudados e libertados, a fim de convidar outros a reconhecerem Deus.
A gratidão é um ato grato a Deus em si, mas também é um exemplo importante para os
outros. Portanto, Paulo nos encoraja calorosamente a orar uns pelos outros, para que muitos
possam agradecer por nós. Ele afirma que a ação de graças é o sacrifício supremo e mais
agradável a Deus e deve ser praticada por muitos, porque Deus exige ser reconhecido e celebrado
por muitos. Quando muitos celebram um benefício recebido, o exemplo se torna mais destacado
e convida mais pessoas a orarem, a temer e a ter fé.
A ingratidão é um terrível defeito na natureza humana, como testemunham as queixas ao
longo de todos os tempos. A omissão do dever da gratidão é condenada tanto pelas sentenças
divinas quanto pelas humanas. No entanto, é mais comum entre as pessoas expressar gratidão
umas às outras do que a Deus. A ingratidão para com Deus é ainda mais cruel do que a
ingratidão para com os seres humanos. Mesmo Saul, embora ingrato a Davi, não pode negar que
Davi o beneficiou. Mas os ingratos para com Deus negam que Deus seja o autor do benefício e
afirmam que os perigos foram afastados por acaso. Para combater essas trevas e essa loucura,
fortaleçamos nossas mentes com testemunhos divinos e aprendamos a verdadeira realidade de
que Deus nos observa, nos ajuda e ouve nossas orações. Quando somos ajudados, reconheçamos,
confessemos e preguemos a nós mesmos e aos outros que Deus é o autor do benefício, conforme
mencionei em várias passagens.
É, de fato, um grande desafio para mentes piedosas manter a convicção de que fomos
verdadeiramente ajudados e salvos por Deus, mesmo após recebermos um benefício. No entanto,
devemos nos fortalecer com os testemunhos que mencionei anteriormente e agora repito, a fim
de estabelecer firmemente em nossos corações que os perigos foram afastados não por acaso,
mas com a ajuda de Deus. Devemos proclamar os benefícios de Deus para nós e para os outros.
Falei brevemente sobre o principal sacrifício, ou seja, a ação de graças, para lembrar o leitor
piedoso, a quem peço que considere cuidadosamente esse assunto e reúna passagens das
Escrituras Proféticas e Apostólicas para estimular a mente em direção à Fé, à verdadeira
invocação e à verdadeira gratidão.
É difícil manter a verdadeira crença na presença de Deus em nossa grande fraqueza, mesmo
quando vemos evidências claras. Assim como os israelitas no deserto, embora tenham visto
muitas evidências da presença de Deus, muitas vezes duvidaram de quem os havia tirado do
Egito. E os apóstolos viram as obras de Cristo, viram os mortos serem ressuscitados muitas
vezes, e ainda assim havia uma grande fraqueza na fé. Portanto, quando somos livrados dos
perigos pelos benefícios de Deus, como frequentemente acontece, devemos manter diante de nós
as convicções que nos fortalecem, para que possamos reconhecer que fomos ajudados por Deus.
Não devemos permitir que essa convicção seja sufocada em nossas mentes. Como é difícil essa
luta para as mentes, como a experiência mostra e como os exemplos escritos dos israelitas no
deserto nos advertem, devemos ser mais diligentes em meditar nas passagens das Escrituras
Proféticas e Apostólicas que nos foram transmitidas, para que nossa fé e o reconhecimento da
presença de Deus em nós sejam confirmados e cresçam. Que a confissão de Jacó esteja diante de
nós, como está em Gênesis 48. 15, onde ele declara que foi criado e protegido por Deus desde a
infância, mencionando também o Anjo, ou seja, o Filho de Deus, por meio do qual ele diz ter
sido libertado de todos os males. E que o exemplo de Davi, em seu agradecimento enquanto
estava à beira da morte, seja um modelo para nós, como está em 2 Samuel 22. 18: “Ele me
libertou daqueles que me odiavam”.
Reconheçamos que não podemos resolver todos os perigos com conselhos e recursos
humanos, como claramente diz Jeremias no capítulo 10, versículo 23: “Eu sei, Senhor, que não
está no poder do homem o dirigir os seus passos”. Quantos problemas inextricáveis aconteceram
com Moisés, Samuel, Davi, Ezequias e, finalmente, com todos os governantes por meio de
conselhos humanos? Portanto, como eles, devemos buscar a ajuda e a proteção de Deus e,
quando os resultados forem tranquilos, devemos admitir que fomos ajudados e defendidos por
Deus. Esta era também viu exemplos que devemos pregar, para que os benefícios de Deus sejam
celebrados. Deus deu paz às nossas igrejas por tantos anos; Ele não apenas deu paz, não apenas
impediu os esforços dos inimigos, mas também suprimiu escândalos que surgiram em muitos
lugares, e em grande parte dirigiu os esforços e julgamentos daqueles que lideram as igrejas, de
modo que a doutrina em nossas igrejas seja amplamente transmitida de maneira sincera. “Por
esses enormes benefícios, a Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, agradeço e oro com
todo o coração, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor crucificado por nós e ressuscitado, para
que Ele nos governe continuamente com o Espírito Santo: Amém”.
20. Os Ofícios Civis e Assuntos de
Influência
Até agora, descrevi e delineei a Igreja, que é o principal e desconhecido tipo de doutrina para
a razão humana, e como ela invoca a Deus. Agora, porque é necessário que ela viva entre os
seres humanos em economias, políticas, impérios, onde Deus deseja ouvir a confissão da
verdadeira doutrina, na verdade onde Ele reúne Sua Igreja, ela deve ser estabelecida nas
economias e na sociedade civil, e deve ensinar o que se deve pensar sobre o casamento e os
impérios.
É necessário que as pessoas sejam adequadamente instruídas sobre esses assuntos,
esclarecendo-os corretamente com base nas evidências fornecidas pelas Escrituras dos Profetas e
dos Apóstolos. Isso ocorre porque, ao longo da história, tem havido hipócritas supersticiosos e
fanáticos que condenaram casamentos ordenados por Deus, bem como funções de magistrados,
julgamentos, leis civis, punições legítimas, governos, guerras justas e serviço militar. Tais
delírios foram espalhados no passado por indivíduos como Marcião e os maniqueístas, cujas
ideias insensatas vagaram pela Ásia e pela África por muito tempo. Além disso, cerca de
trezentos anos atrás, houve grupos conhecidos como “Flageliferi” que propagaram erros
semelhantes, e nos dias de hoje, os anabatistas, que ainda disseminam esses erros em várias
partes.
E o Diabo nunca cessa de inflamar mentes distorcidas para que abracem opiniões falsas
sobre assuntos políticos, pois, ao mesmo tempo, ele provoca dois grandes males: incita tumultos
nas cidades, resultando em muitos assassinatos injustos e distúrbios, e obscurece o Evangelho.
Pois, enquanto eles imaginam que a justiça é uma espécie de política bárbara nova, na qual as
pessoas vivem sem distinção de domínios e sem governantes, a verdadeira luz sobre a justiça
interior e eterna no coração é perdida. A justiça da qual o Evangelho prega é uma luz no coração
que acende mentes com a verdadeira invocação de Deus, a fé em Cristo e outros movimentos
piedosos compatíveis com a Lei de Deus, e inicia a vida eterna. Pois, assim como em diferentes
estações do ano, Deus ordena políticas e governos para sujeitar cada pessoa ao seu lugar, tal
como José quando carregava em seu coração o verdadeiro conhecimento e a invocação de Deus,
o Mediador prometido e o início da vida eterna; fora, no entanto, na corte, nos tribunais, em
contratos e na posse de bens, ele usava as leis do Egito. Daniel carregava uma luz semelhante em
seu coração e o início da vida eterna, como José; fora, na corte, nos tribunais, em contratos, na
posse de bens e na administração da província, ele usava as leis do reino babilônico.
O que realmente importa nas leis e políticas é que elas não entrem em conflito com a lei
natural, mas, como Paulo disse, que sejam para a promoção do bem e para amedrontar aqueles
que fazem o mal. Além disso, mesmo que as formas das leis, dos julgamentos e das penalidades
possam ter algumas diferenças, como as leis feudais alemãs sendo diferentes das leis francesas,
cada pessoa deve obedecer às leis do seu próprio lugar. Essa diferença não tem mais a ver com a
justiça do Evangelho do que as diferenças nos comprimentos dos dias e das noites. O dia mais
longo no solstício na Macedônia é mais longo do que na Judeia nos dias de Cristo. Essa diferença
não afeta a justiça no coração de ninguém. Mas o Diabo, a fim de lançar trevas sobre os olhos e
as mentes das pessoas para que não vejam a verdadeira luz do Evangelho sobre a fé e o
conhecimento de Cristo, espalha essas estranhas opiniões sobre uma política bárbara, afirmando
que ela possui grande virtude, não tem propriedade, evita julgamentos e funções civis, que, no
entanto, são necessárias para a humanidade e ordenadas por Deus para que nossa fé, invocação e
confissão brilhem nelas. São exercícios de obediência exigidos pela lei de Deus e de mútuo
amor, como direi em breve.
Portanto, é importante que as pessoas sejam cuidadosamente instruídas sobre a importância
dos assuntos políticos em templos e escolas e que sejam preparadas para resistir aos tumultos
causados por figuras como Marcião, maniqueus e anabatistas. Eu sei que as pessoas são
frequentemente influenciadas por distorções e confusões que ocorrem em governos, ganância e
sistemas judiciais. Muitas vezes, os líderes negligenciam suas responsabilidades, não enxergam
os erros e injustiças, e há muita fraude e corrupção nos tribunais. Nas cortes, há ambições
desmedidas, ganância e outras más influências, e muitas fraudes em contratos. Isso acontece
porque a fraqueza da natureza humana e a influência do Diabo levam a desejos corruptos em
muitos líderes, governantes, juízes, funcionários públicos e cidadãos comuns. Não é
surpreendente que essa situação resulte em muita confusão e desordem[144]. Essa confusão afeta
as mentes despreparadas, levando muitas pessoas a condenarem todo o sistema político e a
acreditarem que o governo é apenas uma forma de opressão criada por pessoas gananciosas ou
pelo Diabo.
Muitas vezes, os filósofos também questionam a origem dos impérios, já que a realidade
mostra que nenhum reino é estabelecido sem grandes calamidades para a humanidade, e nenhum
deles está isento de terríveis confusões e, eventualmente, de sua queda. Pense na quantidade de
sangue, tanto de seus próprios cidadãos quanto de estrangeiros, que Roma derramou até
conquistar o domínio do mundo! Logo após, houve as guerras civis entre Sila, Mário, Cina,
César, Pompeu, Bruto, Antônio e Augusto, que causaram fúria e devastação por todo o mundo.
Elas também resultaram em perturbações nas leis e na ordem. Posteriormente, na Itália, Egito,
África e Ásia, nações bárbaras como os godos, vândalos, hunos, árabes e turcos invadiram e
despedaçaram completamente o Império Romano. Finalmente, a realidade mostra que a queixa
que está em Ovídio (Metamorfoses, XV, 420-422) é verdadeira:
“Assim tudo vemos mudar,
E outras nações assumirem o peso,
E estas perecerem.”
Também:
“Aos mais altos é negado
Durar muito.”
E eles afirmam que Cipião, ao contemplar o incêndio da cidade de Cartago após sua
conquista, derramou lágrimas e disse que a instabilidade do destino nas coisas humanas é digna
de lamento. Ele lamentou não apenas o destino de Cartago, que outrora florescera em virtude,
riqueza e poder, mas que agora estava saqueada e destruída pelo fogo, mas também ponderou
sobre o destino de Roma, que estava destinada a perecer em um futuro não muito distante de uma
calamidade semelhante, porque nenhum império é eterno. Os filósofos, portanto, ficam surpresos
e questionam por que, se os impérios são estabelecidos por Deus, há tanta abundância de crimes
e misérias.
No entanto, a doutrina da Igreja considera isso profundamente e faz uma distinção
significativa entre a ordem política, as pessoas e as misérias humanas.
A doutrina celestial ensina universalmente sobre a ordem política, afirmando que essa ordem
é instituída por Deus e é uma obra de Deus, desde que permaneça o bem na governança. Isso
significa que as pessoas estão unidas por leis específicas em uma sociedade civil, que a multidão
é governada por magistrados, julgamentos e penalidades, que os magistrados são guardiões da
disciplina e da paz, que a propriedade é distinta e segura para cada um, que as propriedades são
transferidas por contratos legítimos para ajudar na vida comum e que os crimes são reprimidos
ou punidos com armas.
E logo em seguida apresentarei testemunhos das Escrituras Proféticas e Apostólicas que
ensinam ambas as coisas: que a ordem política é instituída pela Palavra de Deus e que, na medida
em que houver bondade no governo, é verdadeiramente uma obra de Deus. Isso não ocorre
apenas por permissão divina, mas porque é verdadeiramente preservado e apoiado por Deus, da
mesma forma que a ordem dos movimentos celestiais e a fertilidade da terra. Primeiro, explicarei
essa distinção na ordem, nas pessoas e nas misérias humanas, para que, àqueles que questionam
de onde vêm tantas confusões e calamidades, eu possa responder.
Portanto, como mencionei, a ordem política é uma coisa boa, bela e benéfica para a
humanidade, uma obra singular de Deus. É aquela em que as pessoas, unidas por leis, vivem em
sociedade civil. Nessa ordem, a multidão é governada por magistrados, que são os guardiões da
disciplina, exercem julgamentos, asseguram que os cidadãos sejam instruídos corretamente sobre
Deus, reprimem os excessos dos epicuristas e a adoração de ídolos, evitam os juramentos falsos,
promovem a moderação nas paixões, protegem a integridade física e, em resumo, cuidam para
que a cidade seja uma escola extremamente virtuosa, onde brilhe o conhecimento de Deus, onde
as obrigações da virtude sejam praticadas, onde a defesa comum e o compartilhamento dos
benefícios para com os outros sejam cultivados.
Mas você pode argumentar que estou descrevendo uma ideia platônica. Afinal, qual foi ou
qual é a cidade em que não há vícios? No entanto, estou apresentando esses exemplos para
distinguir a ordem política dos vícios. Embora não haja cidade sem vícios, há uma governança
que é mais honrosa, outra que é mais turbulenta, e algumas retêm mais virtude de acordo com
essa ideia, enquanto outras retêm menos. No tempo de Davi e Salomão, Jerusalém prosperou
mais e a ordem política era mais íntegra do que no tempo de Herodes. No entanto, o que restou
de bom no tempo de Herodes ainda era uma obra de Deus. Com a ajuda de Deus, o refúgio de
Zacarias, Simeão, Isabel e muitos outros piedosos era preservado. Entre tantos saques, guerras e
fúrias do Diabo e de Herodes, Deus ainda protegeu Maria, Isabel e muitos outros santos
incontáveis.
Agora, vamos falar sobre as pessoas. Embora a instituição, ou seja, a ordem política, seja de
Deus, o casamento frequentemente envolve pessoas que não são inspiradas por Deus, e muitas
vezes essas pessoas perturbam a ordem divina que é preservada ou ornamentada. Por exemplo,
Calígula, Nero e muitos outros tiranos cruéis que governaram em impérios divinamente
ordenados agiram como se estivessem em um jardim selvagem. Paulo respeitava as leis e a
ordem do Império Romano, mas odiava e amaldiçoava Nero como um instrumento do Diabo que
dilacerava a boa ordem. Portanto, é importante distinguir entre líderes de impérios. Pessoas como
Davi, Salomão, Josafá, Ezequias, Josias, Nabucodonosor, Ciro, Constantino, Teodósio e Carlos
foram líderes benéficos, inspirados e ajudados por Deus para restaurar impérios e, de alguma
forma, apoiar a Igreja de Deus. Além disso, houve líderes divinamente inspirados e ajudados,
como Temístocles, Aristides, Alexandre, o Grande, Fábio, Marcelo, Cipião, Paulo Emílio e
Augusto, que estabeleceram políticas que beneficiaram a humanidade e permitiram que as
instituições políticas florescessem por algum tempo. Portanto, o trabalho deles contribuiu para
que as gerações futuras, das quais a Igreja foi formada, persistissem.
No entanto, todos os governantes benéficos são testemunhados como sendo inspirados e
ajudados por Deus, como frequentemente afirmam as Escrituras. Por exemplo, o Salmo 126 (v.
1) diz: “Se o Senhor não guardar a cidade...”. E no Salmo 143 (v. 10): “Tu que dás a salvação
aos reis...”. Como Salomão disse em Provérbios 20. 12: “O ouvido que ouve e o olho que vê, o
Senhor os fez a ambos”, ou seja, para que um governante esteja atento e tenha conselhos felizes,
e para que o povo o siga de bom grado, isso é obra de Deus. Portanto, os conselhos felizes de
líderes como Cipião e o amor e a dedicação do exército a esse líder são bênçãos de Deus. Outros
imitadores não realizam feitos semelhantes nem são amados por seus exércitos. Da mesma
forma, João Batista, embora estivesse falando sobre o governo da Igreja, expressou uma verdade
universal sobre o governo. Ninguém pode assumir algo para si mesmo a menos que lhe seja dado
por Deus, ou seja, nenhum governo é bem-sucedido e benéfico a menos que o seja com a ajuda
de Deus. Os planos de Temístocles foram benéficos para a pátria. Mas as políticas de Péricles e
Demóstenes eram excessivamente ambiciosas, levando a guerras desnecessárias que foram
prejudiciais para a Grécia.
No entanto, mesmo quando a ordem e as pessoas são ajudadas por Deus, os governos
frequentemente enfrentam desafios e têm defeitos. Isso ocorre porque o Diabo tenta perturbar os
governos de várias maneiras, e a fraqueza humana é significativa. Além disso, Deus muitas vezes
permite que líderes levantados por Ele punam tiranos e mudem os governos, o que geralmente
envolve grandes desastres. Mesmo o mais bem-sucedido e benevolente dos reis, como Davi em
Israel ou Augusto em Roma, experimentam uma mistura de calamidades e falhas.
Um exemplo disso é o rei Ciro, que foi extremamente bem-sucedido e ameno, mas suas
conquistas resultaram na devastação terrível de partes da Grécia, como a Jônia, como uma forma
de Deus punir os excessos. Da mesma forma, quando heróis são levantados, como Ciro,
Alexandre e os romanos, as mudanças frequentemente envolvem a queda de grandes cidades e
reinos. Heróis como esses podem destruir cidades e reinos inteiros em suas conquistas.
Portanto, em terceiro lugar, destaco a necessidade de distinguir as misérias humanas da
ordem política. A política de Davi nem sempre é tranquila, pois frequentemente é perturbada
pelo Diabo, e as fraquezas humanas desempenham um grande papel. Já o governo de Ciro pode
ser visto como mais severo, uma vez que Deus usou um exemplo terrível para punir a Jônia por
seus comportamentos pecaminosos. No entanto, essas punições aparentemente severas estão
relacionadas ao funcionamento da ordem política, uma vez que Deus, como justo juiz, manifesta
Sua ira através dessas punições horríveis, como vemos nos casos de Sodoma ou quando nações
inteiras são dizimadas pela fome ou pela peste.
Portanto, muitos dos males encontrados nos impérios devem ser considerados como
punições fatais e exemplos da justa ira de Deus contra os pecados humanos. Na verdade, desde o
início, os impérios têm declinado, e a servidão aumentou à medida que os pecados dos seres
humanos cresceram. A primeira monarquia é retratada na estátua de Daniel como sendo de ouro,
a segunda de prata, a terceira de bronze e a quarta de ferro. Os pés são uma mistura de ferro e
barro, o que significa que, em uma era posterior, haverá impérios cruéis, como o Império Turco,
bem como impérios fracos, repletos de apatia. A preguiça, como demonstrado em muitas regiões
da Alemanha, contribui para grande parte da confusão.
Certamente, o estado do Reino de Judá durante o tempo de Josafá foi muito mais bonito do
que após o retorno da Babilônia, e ainda mais tarde, quando foi afligido por reis da Síria, do
Egito e, finalmente, pelos Romanos. No entanto, alguns elementos da política ainda
permaneciam. Os piedosos reconheciam que isso era um benefício de Deus. Enquanto
suportavam os males que aconteciam, compreendiam que eram permitidos divinamente como
punições fatais. Eles sofriam com tristeza e lamento, e suavizavam a situação com a modéstia e
diligência em todos os deveres. Não provocavam com rebeldia ou sedição, e também oravam a
Deus para aliviar sua servidão.
Quando ouviram que Ptolemeu Látiro havia matado vinte mil judeus e forçado os cativos a
se alimentarem com a carne de seus parentes e irmãos mortos, eles viam que o Diabo estava
enfurecido contra esse povo, mais do que contra outras nações. Isso os levou a pensar na
necessidade de arrependimento e invocação a Deus. No entanto, eles também conheciam as
profecias divinas que indicavam que o sistema político permaneceria até que o Messias viesse
pregar. É importante mencionar essa diferença entre a ordem política e as confusões que a
perturbam, como se, durante uma melodia, alguém perturbasse a harmonia de músicos
habilidosos com seus gritos. Isso ajuda a preparar o leitor para o restante do texto, sem condenar
os benefícios divinos devido às confusões que surgem de outras fontes. Em diferentes situações,
a ordem política pode ser mais ou menos intacta, com mais ou menos confusão. No entanto,
nesta vida miserável e repleta de dificuldades, tanto o Diabo, que busca causar mais tumultos,
quanto a natureza humana, que é intrinsecamente fraca e inclinada a erros e cobiças, contribuem
para injustiças e perturbações no equilíbrio. Além disso, muitas punições fatais ocorrem,
resultando em grandes distúrbios na ordem dos reinos e na disciplina. Todas essas causas
convergem, especialmente na última era da humanidade.
É inegável que a natureza humana está consideravelmente mais enfraquecida do que era no
início. De acordo com a sabedoria dos estudiosos, as eras humanas podem ser divididas em três
partes. Inicialmente, eles dizem que a razão reinava, e as artes foram inventadas pelos primeiros
pais. Os seres humanos eram governados mais pela sabedoria do que pela força. Posteriormente,
ocorreu a era guerreira, na qual os impérios passaram a ser estabelecidos pela força das armas.
Quatro impérios governaram o mundo desde a época de Abraão até a era de Teodósio. Por fim,
chegou a última era, na qual, dizem eles, a luxúria passou a dominar. A natureza humana
enfraquecida já não busca o conhecimento com a mesma intensidade de antes, nem se envolve
em batalhas tão árduas como as travadas por valentes como Davi, Aquiles, Ciro, Alexandre,
Aníbal, Marcelo, Cipião, ou Júlio César. Em vez disso, a natureza humana parece buscar
prazeres e deleites, enfraquecendo-se. Além disso, à medida que o pecado acumulou-se ao longo
do tempo, também aumentaram as punições. Nessas circunstâncias, o Diabo aproveita-se das
fraquezas humanas e as pressiona com ainda mais fúria. Sabendo do ódio divino e de Cristo, que
ele sabe que em breve se manifestará para julgar e conceder à Igreja as recompensas eternas,
enquanto lançará os demônios e ímpios em tormentos eternos, ele age de forma mais cruel no
auge de seu poder.
Devemos considerar tudo isso quando observamos o aumento das perturbações nos reinos,
tumultos, desperdício e exaustão dos governantes, a exploração do povo e outras misérias da
servidão. Devemos aprender a suportar essas aflições com paciência e orar a Deus para que Ele
proteja e guie alguma morada para Sua Igreja.
Ao longo da história, todos os reinos, em todas as eras, tornaram-se mais tumultuados no
final de seus ciclos. Quantas vezes vimos vários reis da Síria lutando pelo trono ao mesmo
tempo, como Antíoco, Trifão, Demétrio e outros! Basta pensar na série de guerras civis entre os
líderes romanos desde Severo, sem mencionar as antigas guerras civis! Também testemunhamos,
nesta era, dois reis da Panônia lutando de forma extremamente infeliz. Portanto, é essencial que a
sabedoria da Igreja seja usada para enfrentar essas misérias, que Cristo nos alertou previamente,
ao predizer que nos últimos tempos haveria grandes guerras, quedas de grandes reinos e
angústias para as pessoas.
Agora, voltando à questão principal de onde vêm os governos, se as funções políticas são
coisas boas e se é permitido aos cristãos ocupar cargos públicos, comprar, vender, atuar como
juízes, levar suas causas aos tribunais, participar do exército e lutar em guerras justas, em relação
a isso, respondo em primeiro lugar: Tanto o casamento quanto a ordem política são instituídos
por Deus eterno e aprovados pela Sua expressa vontade divina. Tudo o que é bom na ordem
política é preservado com a ajuda de Deus. Por “ordem política”, como mencionei antes, estou
me referindo não às perturbações injustas, mas sim às leis em conformidade com a razão, que
unem a sociedade civil, fornecendo líderes para a multidão, bem como contratos, tribunais,
punições legais, repressão de crimes e serviço militar.
Sobre o casamento, existem testemunhos bastante conhecidos. O casamento é a união
permanente do marido e da esposa, estabelecida por leis divinas específicas que mostram quais
pessoas podem se unir e como isso é permitido, como visto em Gênesis 2, Levítico 18, Mateus
19 e 1 Coríntios 7. Nestes lugares, a instituição, aprovação e ordenação do casamento são
claramente evidentes, sobre os quais falaremos mais detalhadamente posteriormente. Agora, vou
acrescentar testemunhos sobre os magistrados ou o governo civil.
Paludanus[145] afirma que a ordem política tem sua origem apenas em Deus, porque a razão
foi dada ao homem e o conhecimento das leis naturais, que julga ser necessária essa ordem entre
os seres humanos. Embora essa opinião seja verdadeira, ainda não disse o suficiente sobre a
causa da sociedade civil ou dos governos. Pois as leis justas e a sociedade civil não podem ser
mantidas apenas pelos conselhos e esforços humanos. Portanto, saibamos que essa ordem foi
instituída e comprovada pela voz de Deus e, verdadeiramente, é sustentada por Ele.
A clara evidência dessa voz de Deus é toda a Lei de Moisés, que, embora tenha sido dada a
uma nação específica, é uma demonstração da vontade de Deus sobre a vida política. A Lei
Moral, em particular, é a própria ordem da sociedade civil, se for compreendida corretamente.
Essas mesmas leis foram transmitidas desde o início do mundo e frequentemente repetidas. No
Paraíso, os desejos desordenados foram proibidos. Em Gênesis 4, o assassinato injusto foi
proibido e condenado. E em Gênesis 9, é estabelecido expressamente o governo com a
promulgação desta lei: “Aquele que derramar o sangue do homem, pelo homem seu sangue será
derramado, porque o homem foi feito à imagem de Deus”.
Não há dúvida de que esta lei é a base da ordem política e não devemos considerar em vão
que essa voz tenha vindo de Deus. Quando, de maneira específica, diz que o sangue do homicida
deve ser derramado pelo homem, Deus instituiu o governo humano, que, em uma ordem
específica, julga o réu e administra a justiça de Deus. Portanto, existem evidências claras da
instituição desse ordenamento político.
E quando Paulo ensina a doutrina sobre a ordem política em Romanos 13, ele
simultaneamente testemunha que esta ordem é estabelecida por Deus e é confirmada e auxiliada
por Ele. Este capítulo é apresentado com grande sabedoria pelo Espírito Santo às igrejas, a fim
de refutar de forma evidente os delírios fanáticos que condenam a ordem política, isto é, as
autoridades civis e os governos. As autoridades, que são ordenadas por Deus, ou seja, que em
cada tempo e lugar devem obedecer às autoridades legítimas presentes, estão expressas aqui,
como se ele dissesse: não busque o governo de Ciro ou Alexandre. Pois Deus, como justo juiz, já
destituiu esses governos muito antes e estabeleceu outros governos. Portanto, o que são
autoridades, isto é, aquelas que governam em qualquer época, saiba que são ordenadas por Deus.
E mais adiante ele chama as autoridades de ordenação de Deus. Deve-se notar a ênfase da
palavra, que chama as autoridades de ordenação. Primeiramente, ele distingue claramente as
autoridades dos pecados. Pois o pecado não é a ordenação de Deus, mas sim confusão e
perturbação terrível da ordem divina, a qual Deus sempre detesta e execra. Em seguida, ele nos
adverte sobre como é o estado civil ou o governo. Ele diz que é uma ordem, ou seja, uma
sequência de pessoas e coisas, que estão de acordo com a regra da mente divina, que brilha
dentro de nós conforme a Lei da Natureza, como costumamos dizer.
Que o governo seja uma ordem de pessoas, com autoridades, cidadãos obedecendo
apropriadamente às autoridades em seu devido lugar, que haja uma ordem certa entre marido e
esposa, entre pais e filhos, que haja uma ordem nos tribunais; que as leis apresentem e sancionem
uma ordem de deveres e contratos, que mostrem a ordem da humanidade em relação a Deus, que
proíbam desejos vagos e desordenados, que são contrários à ordem divina estabelecida na
natureza humana, e que ordenem igualdade em contratos. Que o comprador pague o valor
acordado. Que o cidadão não prejudique o seu vizinho, mas que todos saibam que estão ligados
uns aos outros para defesa mútua e bem comum, que consiste em uma compensação equitativa
de vontades, deveres e bens. E se alguém violar esta ordem, que seja punido.
Não há ordem intelectual nas bestas, mas nos seres humanos está impresso o conhecimento
da ordem, com o qual, se a natureza humana não estivesse corrompida pelo pecado, também
haveria um amor verdadeiro e ardente em relação à manutenção da ordem em relação a Deus e
aos outros. No entanto, agora, as pessoas frequentemente se opõem à ordem natural. Alguns
amam mais a ordem, outros menos, como Eurípides diz dos Ciclopes: “Nenhum ouve leis,
ninguém ouve nada”[146]. Muitas mentes selvagens acreditam que a felicidade reside em viver
sem ser controlado por leis, ordem ou disciplina, como se fossem uma prisão, mas em vagar
livremente e ceder às suas paixões sem restrições. É difícil convencer mentes assim de que a
ordem é uma grande virtude ou explicar o quanto Paulo enfatiza isso, e como ele claramente
testemunha que o governo e o estado civil são coisas boas que agradam a Deus, e não pecados.
Na verdade, os espartanos tinham uma lei que permitia aos homens ter relações com a
esposa de outro homem, desde que o marido consentisse. Portanto, se um espartano
testemunhasse alguém na Judeia sendo levado para o castigo por adultério, ele diria que isso era
uma crueldade indigna de seres humanos. No entanto, Paulo aqui enfatiza que as punições legais
fazem parte da ordem política e estão de acordo com a norma na mente divina. Mas as pessoas
muitas vezes não veem imediatamente o que Paulo está dizendo, especialmente porque ele usou
tanta brevidade.
Portanto, aqueles que leem o texto de Paulo devem trazer mentes atentas e ponderar este
trecho. Eles devem analisar as palavras, o que a ordem significa, dividir a ordem das pessoas e
das coisas, dos governantes, dos cidadãos, das leis, dos julgamentos, dos contratos, dos crimes e
das penas. Em seguida, eles devem reconhecer que a norma da ordem é a Lei eterna na mente
divina, da qual ele diz: “As autoridades devem elogiar as boas obras e punir as más”[147]. É
extremamente certo que a ordem que está em conformidade com a mente divina seja uma coisa
boa e agradável a Deus. Portanto, esse testemunho de Paulo satisfaz mentes boas e atentas. Ele
usa o mesmo testemunho que Irineu usou contra os fanáticos, que espalhavam seus delírios
semelhantes aos dos anabatistas naqueles primeiros tempos. Mas muitas coisas semelhantes
podem ser encontradas nas escrituras dos profetas.
Lucas 3: João Batista pregava aos publicanos e militares, entregando excelentes instruções
políticas. Portanto, ele aprova a função deles quando ensina como administrá-la adequadamente
(versículo 13): “Não exijam mais do que é estabelecido”. Ele reconhece que o Estado não pode
sustentar suas despesas sem impostos necessários. Assim, ele deseja que os impostos sejam
pagos, mas não quer que sejam feitas extorsões excessivas além dos impostos legítimos
(versículo 14): “Não pratiquem extorsão a ninguém; e contentem-se com o seu salário”. Ele
deseja que haja julgamentos, mas sem subornos e calúnias. Essa pregação abrange todo o estado
político, julgamentos e serviço militar, e distingue as falhas e corrupções introduzidas pela
maldade humana. Devemos rejeitar as críticas fúteis e insensatas dos anabatistas, que afirmam
que João Batista permitiu essas práticas aos imperfeitos e que Cristo ensinou de forma diferente
posteriormente. As pregações de João Batista e Cristo não são contraditórias. Não devemos
subestimar a autoridade de João Batista. Sua vocação e função são grandiosas, como
testemunhado por Cristo e confirmado por Deus com um testemunho notável durante o batismo
de Cristo. No entanto, os anabatistas furiosos não prestam atenção ao que dizem ao falar de
forma insultuosa sobre o ministério de João Batista.
Salmo 81 (versículo 76): “Eu disse: ‘Vocês são deuses; todos vocês são filhos do
Altíssimo’”. Isso significa que aqueles que ocupam cargos divinos, sustentando a defesa da
justiça e da paz, que são bens divinos, têm esse título de Deus conferido a eles por Deus, porque
Ele deseja que eles compartilhem esses bens com o povo. Portanto, Deus aprova a função
quando ela atende a ordem divina. Salmo 101 (versículo 13): “Quando o Senhor tiver reunido os
cativos de Sião, então se verá em Sua glória”. E Isaías 49 (versículo 23): “Reis serão os Teus
aios, e Suas rainhas, as Tuas amas de leite”. Essas passagens e muitas outras semelhantes
testemunham que reis e magistrados são membros da Igreja de Deus e agradam a Deus. Portanto,
Deus aprova os governos e a ordem política. Fortalecidos por essas evidências, devemos
condenar firmemente a loucura dos anabatistas, que argumentam que os cristãos não devem
ocupar cargos políticos, rejeitam julgamentos, leis, serviços militares e outras funções políticas,
como se essas coisas fossem pecados em si mesmas e entrassem em conflito com o Evangelho.
Tive muitas discussões sobre essa controvérsia com Karlstadt, Pelargus, Struthio[148] e outros.
Muitos, ao reconhecerem as fontes dessa disputa, que já mencionei, abandonaram as ideias
insensatas dos anabatistas e retornaram ao caminho da razão.
Além das passagens que mencionei, acrescentem-se os inúmeros exemplos de pessoas que
invocaram verdadeiramente Deus e governaram grandes reinos em diferentes épocas. Deus
permitiu que, por meio de Seus servos, a política fosse frequentemente usada para benefício das
nações. Isso foi feito para que a confissão de fé brilhasse na adoração deles, para que a
verdadeira doutrina fosse mais amplamente divulgada e para que a Igreja tivesse lugares onde
pudesse encontrar abrigo. Não há dúvida de que os primeiros patriarcas, como Adão, Enoque e
Noé, também foram governantes políticos em seu tempo. Isso é evidenciado, por exemplo, pela
lei dada a Noé sobre o castigo de homicídios. Além disso, Melquisedeque é explicitamente
chamado de rei. Mesmo Abraão, embora tenha sido um estrangeiro em impérios alheios, nomeou
reis entre os membros de sua família e liderou seu próprio clã sob uma estrutura política,
chegando até mesmo a participar de batalhas. Mais tarde, José não apenas governou, mas
também estabeleceu novas leis no reino do Egito. Não há dúvida de que a forma como José
organizou o reino do Egito, durante seu auge, superou todas as formas de governo que surgiram
posteriormente em todo o mundo, na Caldeia, na Jônia, na Grécia e em Roma.
Aqueles que atribuem maior sabedoria política a líderes como Sólon ou Augusto do que aos
homens que eram iluminados pela divina luz e invocavam verdadeiramente a Deus, como José,
Daniel, Esdras e outros, estão gravemente enganados. José não apenas invocava corretamente a
Deus entre os príncipes do Egito, mas sua liderança influenciou o próprio rei de sua época e
muitos outros governantes que, juntos, governavam o Estado, a reconhecerem o verdadeiro Deus.
Posteriormente, não há dúvida de que Deus se agradou de Moisés e de muitos outros líderes que
guiaram o povo de Israel.
O que os anabatistas enfurecidos afirmam, de que o estabelecimento político e o lar foram
concedidos ao povo de Israel devido à sua imperfeição, é uma resposta repleta de insensatez. Foi
um benefício singular de Deus ter dado ao povo de Israel um local específico e protegido por
mais de quatorze séculos. Deus queria que houvesse um local definido onde as promessas
divinas pudessem ser testemunhadas, e onde Cristo pudesse nascer, como já foi amplamente
discutido anteriormente em relação ao Antigo Testamento.
No entanto, quando Deus aprovou a lei e a ordem política dentro do povo de Israel e
testemunhou frequentemente que essas funções eram necessárias para inflamar a adoração,
divulgar a luz, promover a confissão e o amor pela igreja, Ele indicou que também aprovava a lei
e a ordem política em outras nações, conforme evidenciado em exemplos. Pois José, Daniel e
muitos outros governaram políticas entre as nações não-israelitas. Portanto, ao examinar as
histórias de outros reinos além do israelita, vemos que Daniel governou uma província não-
israelita e, por meio de seu ministério, influenciou poderosos reis a reconhecer o verdadeiro
Deus, incluindo Nabucodonosor, seu filho Belsazar, Dario, o medo, Ciro, o persa e muitos outros
líderes. Portanto, Deus espalhou o povo de Israel por outros reinos, para que a verdadeira
doutrina sobre Deus pudesse ser mais amplamente divulgada.
Nas histórias do Novo Testamento, mencionam-se vários centuriões que creram no
Evangelho, e até mesmo toda a família de Cornélio, um soldado romano, recebeu o Espírito
Santo por meio de um grande milagre, da mesma forma que os apóstolos.
Portanto, considerando todas as extensas e notáveis testemunhas e exemplos que mostram
que o estabelecimento político é do agrado de Deus, e que os deveres do governo são obras
piedosas e culto principal a Deus para aqueles que O invocam corretamente, devemos aprender a
honrar as instituições políticas, governos, autoridades, leis, julgamentos, divisões de poder,
contratos, como dons de Deus. Devemos direcionar todas as atividades da vida civil a esses
propósitos, a fim de obedecer a Deus em todas essas ordenanças e para que nossa adoração e
confissão brilhem nessa sociedade, exercitando também o amor mútuo.
Mencionei exemplos de governantes que agradaram a Deus, como José, Daniel, Naamã, o
sírio, e outros. Como está claro que foram ajudados por Deus, fica evidente que o governo é uma
obra e uma bênção divina. Além disso, considerarei exemplos de heróis pagãos que, embora não
tenham conhecido o verdadeiro Deus, foram instigados por impulsos ardentes a buscar a virtude
e foram ajudados em suas ações. Pode-se citar Alexandre, o Grande, Cipião Africano e Augusto.
Os feitos notáveis desses homens moveram todos os sábios a reconhecer que eles tinham
qualidades superiores e obtiveram sucesso mais abençoado do que a maioria dos outros. Cícero
afirmou que nenhum grande homem havia surgido sem inspiração divina. Quando Deus infundia
a esses líderes ou artífices motivações excepcionais para estabelecer ou reformar impérios,
restaurar cidades e artes, Ele fornecia um testemunho evidente de Sua presença na política, como
Platão disse em suas “Leis”, que o poder humano é mais fraco do que poderia se autogovernar.
Portanto, Deus nomeou para as cidades não meros mortais, mas um tipo mais nobre e divino,
heróis. Embora eles próprios tivessem sucesso, o governo deles era agradável e fácil para nós.
Cuidavam de preservar a paz, a moral e a liberdade. Além disso, Platão disse que “onde não é
Deus, mas um ser humano que governa, não há escape de males e sofrimentos”[149]. Estas
palavras de Platão são extremamente sábias e verdadeiras. Portanto, nós devemos aplicar essas
palavras a nossas circunstâncias atuais e refletir sobre elas: “Agora mesmo, então, devemos usar
a verdade, pois, quando não é Deus, mas algum ser humano mortal que governa cidades, não há
escape dos males e dos sofrimentos”. A história de todas as épocas fornece exemplos disso.
Durante o reinado de Augusto, houve paz e tranquilidade no império, porque Deus permitiu um
período de restauração da paz, justiça, leis e disciplina. No entanto, durante o reinado de
Valentiniano, Augústulo e outros semelhantes, houve frequentes convulsões e crescentes
desordens.
Finalmente, temos o testemunho da presença de Deus nos impérios, que é evidenciado pelo
fato de que crimes atrozes são frequentemente punidos com castigos corporais visíveis enviados
por divina providência. Aqueles que cometem perjúrio, roubo, tirania, incesto e muitos outros
crimes acabam sofrendo punições. Embora as penas possam variar, geralmente, no final, os
culpados são punidos, e apenas alguns alcançam um fim tranquilo. Existem tantos exemplos de
tiranos assassinados que foi escrito por Juvenal (Sat. X. 112. 113):
“Alguns poucos, sem derramamento de sangue, descendem ao Reino de Ceres[150],
Mas os Tiranos são condenados à morte seca.”
Diariamente, testemunhamos exemplos de homicídios. Mesmo que inicialmente esses crimes
sejam ocultados, eles frequentemente vêm à tona de maneira surpreendente. Embora aqueles que
cometeram assassinato tenham escapado impunes no início, mais tarde são levados à punição. Da
mesma forma, os criminosos incestuosos não escapam do castigo, como Édipo, Egisto, Herodes
e outros. Jesus Cristo fala sobre essas punições (Mateus 26. 52): “Aqueles que tomarem a
espada” — ou seja, aqueles que recorrem à violência não justificada pelas leis — “morrerão pela
espada”. O profeta Isaías também adverte (Isaías 33. 1): “Ai de você que despoja, porque será
despojado”. Jó afirma (Jó 9. 28): “Temia todas as minhas obras, sabendo que Tu não poupas o
delinquente”. E o Eclesiastes diz (Eclesiastes 8. 8): “O ímpio não escapará no combate”, ou seja,
Deus pune crimes graves e atrozes com diversas calamidades.
Dessa forma, Deus mantém a justiça civil no mundo, regularmente punindo aqueles que
violam a ordem civil nesta vida. Assim como as estações do ano seguem regularidades, a justiça
civil é preservada por Deus. Embora ocasionalmente, assim como no clima, Deus possa agir fora
do comum e adiar recompensas e punições de acordo com Seu plano oculto, devemos lembrar a
regra geral e agir com temor à ira de Deus, evitando impulsos temerários.
Existem duas razões pelas quais, regularmente, nessa vida, as punições acompanham crimes
graves: em primeiro lugar, porque Deus, como juiz justo, deseja que Sua ira contra o pecado seja
visível e nos lembra de Sua vontade nesse sentido. Em segundo lugar, essas punições mantêm a
ordem na sociedade civil, que se desintegraria completamente se não houvesse contenção contra
roubos, tiranias e outros excessos. Portanto, mesmo que Tibério morra em paz, não devemos
negligenciar a regra que ameaça castigos e tormentos nesta vida para tiranos e outros que
cometem crimes hediondos, com base em um ou dois exemplos.
Posteriormente, outros imperadores, como Calígula, Cláudio, Nero, Domiciano, Cômodo e
muitos outros, sofreram punições. As maldições contidas na Lei de Deus, que não são vãs, são
confirmadas pela história mundial. Na verdade, na sequência de graves guerras e tumultos
públicos, nações inteiras perecem devido aos pecados de muitos. Além disso, na esfera privada,
inúmeras pessoas são afligidas diariamente por grandes sofrimentos e dores. Precisamos
examinar quais são as causas desses males. Isaías nos lembra disso com grande veemência e, de
forma memorável, aponta a causa, como que indicando com o dedo, no capítulo 64, versículo 6:
“E as nossas iniquidades, como o vento, nos levaram embora”.
Essa experiência universal também influenciou os não cristãos a reconhecerem a providência
e o julgamento de Deus. Isócrates, em um discurso sobre a paz, opôs-se fortemente à insanidade
dos epicuristas, que desprezavam a regra por causa de alguns exemplos e esperavam impunidade
por seus crimes. Embora ele dissesse que os ímpios nem sempre são punidos, ele enfatizou que
geralmente sofrem as consequências. Como o futuro é sempre incerto, ele afirmou que é
prudente adotar o que normalmente é mais vantajoso. E, uma vez que entendemos que a justiça
agrada mais a Deus, seria extremamente tolo presumir que os justos estariam em pior situação do
que os injustos. Portanto, dado que a experiência contínua atesta que crimes graves são punidos,
reconhecemos que Deus é um juiz e vingador, devemos temê-Lo e admitir que os governos são
protegidos, mantidos e transformados por Ele.
Até aqui, eu apresentei argumentos e declarações que mostram que a ordem política é uma
coisa boa e agradável a Deus. Além disso, um argumento adicional a ser acrescentado é o
seguinte: uma vez que Deus frequentemente instrui que orações pelo governo sejam feitas, para
que o governo permaneça firme e seja fortalecido, é necessário que seja algo bom e agradável a
Deus, não um pecado. Afinal, não estamos pedindo que os pecados se fortaleçam.
Além disso, existem preceitos sobre essa oração. Jeremias 29. 7 ordena: “Orem pela paz da
cidade, onde lhes fiz transportar e nela possuem paz, porque, se ela prosperar, vocês também
prosperarão”. Isso instrui a fazer orações pelo império babilônico, que naquele momento era o lar
da igreja. Devido a essas orações, não apenas os sofrimentos do exílio e da servidão foram
amenizados, mas Deus também inclinou os corações dos reis para o reconhecimento da
verdadeira doutrina. Abraão ora pelo rei Abimeleque, e Jacó abençoa o rei do Egito, que recebeu
a doutrina da verdadeira invocação de Deus de José. 1 Timóteo 2. 1 apresenta uma instrução rica
em conhecimento: “Recomendo, pois, antes de tudo, que se façam súplicas, orações, intercessões
e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que têm autoridade, para que
tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade”. Este versículo ensina
sobre oração e orienta como deve ser a governança e a quais objetivos principais os planos de um
governante devem se referir.
Devemos pedir a Deus para conceder paz às nossas cidades e reger a disciplina. Bons líderes
devem se esforçar para alcançar esses objetivos: em primeiro lugar, assegurar a paz e
tranquilidade internas, proteger contra inimigos externos na medida do possível e conter roubos e
sedições em casa. No entanto, o objetivo da paz não deve ser permitir que os cidadãos busquem
prazeres e se entreguem ao luxo. Há objetivos mais amplos para a paz, como permitir a
disseminação da doutrina religiosa verdadeira, proteger escolas e permitir que a juventude seja
educada, além de evitar a destruição da igreja e das suas instituições. Além disso, a paz deve
servir para regular os costumes com uma disciplina honesta.
Desse modo, o rei Davi sabia que ao liderar guerras, ele não estava buscando esses trabalhos
e labores apenas para si, mas também para cumprir objetivos nobres. Ele estava ciente de que os
esforços e dificuldades enfrentados nas batalhas não eram em vão, mas tinham um propósito
maior. Seu objetivo era assegurar a preservação da Igreja de Deus ao afastar os inimigos,
permitir que a família fosse criada em paz e que as crianças fossem educadas na verdade sobre
Deus e orientadas para condutas honestas. Ele visava que as escolas fossem preservadas,
permitindo que a juventude e o público em geral se reunissem com segurança. Além disso,
buscava garantir que a verdadeira doutrina sobre Deus, o nome do Messias e a invocação correta
a Deus não fossem apagados. Davi mantinha esses objetivos em mente sempre que liderava um
exército, formava suas fileiras e avançava contra as forças inimigas. Alexandre, Cipião e Júlio
César não compreendiam esses objetivos, mas sabiam que a defesa da pátria era essencial para
garantir que as pessoas fossem governadas por uma disciplina honesta em tempos de paz,
evitando a destruição da humanidade ou a degeneração de costumes em algo selvagem e bárbaro.
Paulo, portanto, acrescenta a necessidade de orarmos não apenas pela paz, mas também para
vivermos em paz com piedade e honestidade. Isso significa que a verdadeira doutrina sobre Deus
deve ser propagada, que Deus deve ser invocado corretamente e que as condutas devem ser
virtuosas. Assim, em poucas palavras, Paulo delineou a forma ideal de governança política.
Após destacar que a ordem política é algo bom e agradável a Deus, acrescentarei algumas
regras úteis para promover a paz e nutrir o respeito pelas autoridades em mentes bem-
intencionadas em relação aos Magistrados e à ordem da sociedade civil como um todo. Esta
ordem, quando referida à glória de Deus, é um culto agradável a Ele.
A primeira regra: assim como o Evangelho não abole nem desaprova as artes da Aritmética,
Arquitetura ou Medicina, mas, pelo contrário, incentiva o reconhecimento de que essas áreas são
dons de Deus essenciais para a vida corporal, da mesma forma, o Evangelho não abole nem
desaprova a ordem Econômica e Política. Pelo contrário, ele instrui que reconheçamos que essas
instituições são presentes de Deus, sem os quais a vida terrena seria insustentável. Deus deseja
preservar a humanidade, permitindo a formação de Sua Igreja neste mundo. E Ele faz isso ao
manter as instituições de sustento, como comida, bebida, casamento, ordem política e várias
profissões, como agricultura, arquitetura e medicina, que sustentam a vida corporal.
Assim como a comida, a bebida, a agricultura, a arquitetura e a medicina não contradizem o
Evangelho, que prega a reconciliação com Deus e traz a nova e eterna luz às mentes, da mesma
forma, a governança política não entra em conflito com o Evangelho. No entanto, aqueles que
desconhecem a verdadeira doutrina do Evangelho sobre justiça interior, fé e invocação correta de
Deus são facilmente enganados nesta discussão e tendem a imaginar que o Evangelho implica
em uma nova e bárbara forma de governo. Da mesma forma, os hipócritas enaltecem a solidão e
os ritos monásticos, ou melhor, o ócio epicurista desfrutado por aqueles que não participam dos
labores comuns, especialmente os que envolvem a complexa tarefa de governar, e não enfrentam
os perigos e tempestades que frequentemente afligem gravemente os líderes, como Moisés, Arão,
Samuel, Davi, Jeremias e inúmeros exemplos que a vida cotidiana comprova.
Eles também não se opõem a esta primeira regra as proibições de vingança que estão
dispersas no Evangelho. De fato, essas doutrinas reforçam as instituições de governo, uma vez
que Deus estabeleceu a autoridade civil para administrar a justiça. Assim como nas outras
instruções divinas, Ele deseja que obedeçamos à ordem divina ao proibir o livre exercício das
paixões, da mesma forma, Ele nos impede de nos deixar levar pela ira. Ele deseja que
obedeçamos à ordem divina sem ceder ao incêndio da raiva, e para que peçamos que as
autoridades exerçam suas funções, defendam os inocentes e punam aqueles que agem de forma
imprudente. Se os governantes cumprem suas responsabilidades, devemos agradecer a Deus e às
autoridades, e nos regozijarmos pelo fato de sermos governados de maneira justa, resultando em
cidades mais pacíficas. Se os governantes não cumprem suas obrigações, os cidadãos não devem
perturbar a ordem divina ou incitar a sedição. Eles devem conter sua raiva e mágoa e se consolar
com a certeza de que a Igreja, em certas circunstâncias, é chamada a suportar a cruz e, ainda
assim, agradar a Deus. Na verdade, a tolerância às injúrias e à crueldade alheia é um sacrifício
aceitável a Deus.
Portanto, foi dito anteriormente que a vingança tem duas formas. Uma delas é ordenada, ou
seja, pública, administrada pelas autoridades segundo uma ordem e leis definidas. O Evangelho,
ou seja, a Lei de Deus, não proíbe de forma alguma essa vingança ordenada. Pelo contrário,
como mencionado várias vezes, ela é divinamente instituída e aprovada, e é apoiada por Deus.
Essa vingança faz parte da ordem civil ou das funções das autoridades, como Paulo chama
explicitamente a autoridade civil de “vingadora”. Portanto, não há dúvidas quanto à aprovação
da autoridade civil no Evangelho, assim como é evidente a aprovação dessa vingança que ela
exerce de acordo com as leis. Essa vingança se alinha com a passagem bíblica que diz: “A Mim
pertence a vingança, Eu retribuirei” (Hebreus 10. 30). Deus, como juiz justo, se ira com o pecado
e pode punir sem a intervenção humana, como fez ao destruir Sodoma ou os egípcios no Mar
Vermelho, ou Ele pode agir através de punições ordinárias, que Ele recomendou que fossem
executadas pelas autoridades. Essas ações estão de acordo com o princípio “A Mim pertence a
vingança, Eu retribuirei”. Isso pode ser facilmente compreendido por pessoas sãs que usam
discernimento e habilidade no julgamento.
A outra forma de vingança é aquela que se afasta da ordem divina, que chamo de vingança
privada. Isso acontece quando, movidos pela ira ou pelo ódio, pegamos em armas por conta
própria, sem a orientação das leis, e agimos de acordo com nosso próprio furor, não seguindo as
ordenanças de Deus para a punição de outros. Isso é servir à nossa própria raiva, não à ordenação
de Deus, como no caso de Joabe matando Abner por seu próprio desejo, em vez de obedecer à lei
de Deus para a punição.
Embora haja uma grande chama no coração e um desejo ardente de vingança, poucas
pessoas estão tão focadas a ponto de reconhecer sua própria ferida. Geralmente, elas tentam
encobrir essa ferida com alguma aparência de justiça, enquanto se envolvem em conflitos
injustos e prejudiciais para si mesmas e para o Estado. Um exemplo disso é Saul, que, movido
por inveja e rancor, alega falsamente que Davi é um agitador e tenta eliminar um amigo bem-
intencionado. Da mesma forma, Pompeu, inflamado pela inveja, tenta destruir Júlio César.
Essa praga é comum e se espalha amplamente em todas as nações, cidades e famílias.
Portanto, as pessoas devem ser conscientes e evitar ceder a essa fúria. O amor distorcido, que se
afasta da lei de Deus, é um mal comum e conhecido, e é a causa de muitos grandes males, como
a queda de Troia devido ao amor de Páris e os graves danos infligidos aos gregos. Por outro lado,
o desejo de vingança e a ira, quando surgem, frequentemente desencadeiam grandes guerras e
tumultos prejudiciais, tanto a nível pessoal quanto público, como ilustram as histórias de Caim,
Saul, Pompeu, Ário e muitos outros.
Portanto, ao considerar a magnitude desta praga, ou seja, a vingança privada que corre contra
a ordem divina, os sábios compreenderão a necessidade e a utilidade do preceito de Cristo, que
frequentemente pregava de forma severa contra esse impulso. Ele próprio entendia
verdadeiramente que, na Igreja e em toda a sociedade humana, terríveis perturbações surgiam
desse manancial. Pompeu viu César crescer em poder e se incomodou com sua glória, então
procurou oportunidades e pretextos para pressioná-lo. E outros se juntaram a ele, inflamados por
desejos semelhantes. Eu mesmo vi muitas pessoas perturbarem doutrinas verdadeiras na teologia,
motivadas pela inveja e pela competição.
Em resumo, todas as pessoas sensatas reconhecem o alcance desse mal. Portanto, devemos
internalizar profundamente as palavras de Cristo e dos Apóstolos e conter o desejo de vingança.
Uma vez que Cristo endossa a vingança ordenada, confiada aos magistrados, e, ao mesmo tempo,
proíbe a crueldade e a sedição privada, é evidente que esses ensinamentos fortalecem
adequadamente a ordem política e capacitam os magistrados. Portanto, a acusação de que o
Evangelho, feita por Celso, Juliano e outros, deseja abolir a vingança e, com isso, remover os
magistrados, a disciplina, as leis e os alicerces de toda a sociedade civil, concedendo liberdade
irrestrita para cometer qualquer tipo de pecado, é falsa. Essa calúnia é refutada de maneira
bastante convincente por Orígenes e Nazianzeno, que afirmam que a vingança é permitida, mas
que a virtude superior consiste em não buscar vingança. Esses absurdos foram refutados
anteriormente, quando tratamos dos mandamentos e conselhos. E quanto a como responder às
calúnias de Celso e Juliano, fica claro a partir dessa nossa distinção que a vingança privada é
proibida, enquanto a autoridade dos magistrados e do governo é confirmada. Essa é uma crença
verdadeira, piedosa e benéfica, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade.
Portanto, os governos são fortalecidos e enobrecidos pela voz do Evangelho. O mais belo
sistema é aquele estabelecido por Deus para todas as áreas da vida, tanto na esfera privada
quanto no governo. No entanto, as mentes humanas muitas vezes estão ocupadas com ideias
absurdas, hipocrisia, maus exemplos e, finalmente, são enfeitiçadas pelo Diabo, de modo que se
recusam a enxergar a ordem divina. Vimos muitos anabatistas, por exemplo, que com pertinácia
defendiam suas opiniões, mesmo quando claramente refutados nesta questão. Não há escuridão
neste assunto, desde que o ouvinte traga uma mente receptiva. Falei de maneira mais detalhada
para lembrar os jovens de que devem se acostumar a amar a ordem política e entender que nela
brilha a sabedoria, justiça e bondade de Deus em relação à humanidade. É comum que os jovens
mostrem seu intelecto ao criticar leis e costumes civis. No entanto, devemos evitar e condenar
essa sabedoria e insolência cínicas.
Além disso, há a objeção de que os governos frequentemente caem nas mãos de ímpios e que
há muita corrupção e confusão nos governos. Por esse argumento, espíritos céticos sustentam
que, de maneira geral, os governos são coisas más e condenadas por Deus.
Deve-se responder que esse raciocínio não é verdadeiro nem sólido, uma vez que é uma
generalização baseada em casos particulares. Na geração humana, surgem muitos desejos
viciosos, mas isso não significa que a geração como um todo seja condenada por Deus. Como
mencionei anteriormente, é importante distinguir a ordem política das confusões que podem
surgir de várias fontes, como a influência do Diabo, a maldade humana e a fraqueza comum da
humanidade. Isso também se aplica a outros aspectos da vida e governança que Deus
estabeleceu. Por exemplo, ninguém duvida que o governo da Igreja tenha sido instituído por
Deus, mesmo que haja confusões causadas por outras fontes. No entanto, a voz do Evangelho é
eficaz e reúne a Igreja eterna, e é para ser ouvida e respeitada. No caso do casamento e da
procriação, embora todos reconheçam que o casamento foi instituído por Deus e que a procriação
é uma bênção divina, muitos maridos podem ser cruéis e pais negligentes em relação aos filhos,
negligenciando sua educação sobre o conhecimento de Deus. Portanto, é necessário distinguir
entre esses vícios que surgem de outras fontes e a instituição divina do casamento e da
procriação. Devemos evitar os extremos dos maniqueus e dos anabatistas, e aprender a atribuir a
Deus as coisas que Ele verdadeiramente estabeleceu e ordenou. Isso será mais agradável quando
os vícios forem separados, uma vez que esses vícios não surgem de Deus, mas do Diabo, da
maldade humana ou da fraqueza humana. Além disso, devemos lembrar as consolações que Deus
nos deu, especialmente para aqueles piedosos que estão oprimidos pelo domínio turco ou por
outros governos que se desviam da moderação legítima. Precisamos aprender como enfrentar
essas dificuldades e quais mandamentos seguir.
Agora, mais do que nunca, é crucial lembrar as pessoas de mente boa que nos tempos atuais
os impérios mundiais, como previsto na estátua da visão de Daniel, estarão mais propensos a
confusões do que em seu início. A estátua composta por quatro metais diferentes simboliza a
progressiva decadência e enfraquecimento dos impérios ao longo do tempo. Isso nos diz que, à
medida que o tempo avança, a força dos governantes enfraquecerá e a virtude será
menosprezada. O mesmo é indicado na planta, que é parcialmente feita de ferro e parcialmente
de barro, simbolizando uma mistura frágil. A virtude será menosprezada em comparação com a
força. Platão também ponderou sobre isso, falando sobre o ciclo natural das civilizações que,
após atingirem um certo ponto, não podem mais progredir.
Ele atribuiu essa ideia às Musas, acreditando que a principal causa da mudança nos impérios
era um ciclo natural e misterioso que variava a matéria, em vez dos pecados dos homens. No
entanto, a sabedoria celestial frequentemente aponta para o declínio dos impérios devido às
paixões humanas e à punição por atrocidades e iniquidades, como registrado na Bíblia. As
Escrituras nos lembram que os impérios mudam de nação para nação devido à injustiça e à
astúcia dos seres humanos. Portanto, em resposta à objeção que mencionei anteriormente,
devemos lembrar que a ordem estabelecida por Deus deve ser distinguida das confusões que
surgem de outras fontes, e que devemos aprender a suportar a servidão, que é como uma punição
que atua como um cárcere para os erros humanos.
A segunda regra: É concedido aos cristãos se envolverem em assuntos econômicos e
políticos, e é necessário que eles sirvam a sociedade civil em suas funções de acordo com sua
vocação. Quando os piedosos desempenham essas funções, a fim de obedecer a Deus, eles
agradam a Deus e seu trabalho se torna um ato de culto a Ele. Além disso, essas atividades
envolvem muitas virtudes significativas. Portanto, os cristãos agem corretamente e piedosamente
ao exercerem funções de autoridade, judiciais, militares, ao acusarem criminosos em tribunais,
defenderem casos legítimos e aplicarem punições justas a condenados.
É necessário que os magistrados e juízes que não desprezam Deus compreendam isso.
Existem evidências claras da necessidade de cidadãos, mesmo aqueles que verdadeiramente
creem no Evangelho, cumprirem funções políticas de acordo com sua vocação. Romanos 13. 5
declara: “Portanto, é necessário que se sujeitem, não apenas por causa da ira, mas também por
questão de consciência”. Em Lucas 3. 14, lemos: “Nem tampouco a ninguém tratem
injustamente, nem deem denúncia falsa; e contentem-se com o seu salário”. E Isaías 1. 17 nos
instrui: “Aprendam a fazer o bem; busquem o juízo, reparem o oprimido, lutem pelo órfão,
defendam a causa da viúva”. O leitor diligente observará palavras semelhantes em muitos outros
lugares, pois esses preceitos são frequentemente reiterados.
Sobre o que constitui o culto a Deus, os profetas frequentemente fazem advertências. Eles
criticam a superstição, que considera apenas as cerimônias como o culto a Deus, e que resulta na
negligência das responsabilidades civis. Além disso, os monges consideravam que a vida
econômica e política dificilmente agradava a Deus. Os profetas priorizam as responsabilidades
políticas em relação às cerimônias religiosas e afirmam que recompensas estão ligadas a essas
ações. Em Isaías 1. 17, encontramos a instrução: “As suas festas da lua nova e as suas
solenidades as aborrece a Minha alma; já Me são pesadas; estou cansado de as sofrer”. E Isaías
58. 7 nos lembra: “Não é partilhar o Teu pão com o faminto, e recolher em casa os pobres
desamparados?”. Miqueias 6. 7 questiona: “O Senhor se agradará de milhares de carneiros, ou de
dez mil ribeiros de azeite?”. E continua dizendo: “Ele lhe declarou, ó homem, o que é bom; e que
é o que o Senhor pede de você, senão que pratique a justiça, e ame a misericórdia, e ande
humildemente com o seu Deus?”. Zacarias 7. 6 reforça a importância dessas ações: “Quando
comeram, e quando beberam, não era para vocês mesmos que comiam e bebiam?”. E Deus
declara: “Assim diz o Senhor dos Exércitos: Administrem a verdadeira justiça, mostrem
misericórdia e compaixão cada um a seu irmão”.
A beleza dessas ações é melhor compreendida quando se considera a própria ordem política
e as razões para a existência dela. Deus criou a humanidade para viver em sociedade e desejou
que as amarras dessa sociedade fossem a geração, a educação, o governo, os contratos e as artes.
Nenhum indivíduo gera outro por si só, nem uma única mulher, e uma criança recém-nascida não
pode sobreviver sem a ajuda dos outros. Assim, a natureza humana está intrinsecamente ligada
por laços eternos. Qual é o propósito principal disso? É para que, assim como a sociedade é
necessária para a geração e educação, a comunidade seja fundamental para o ensino. Deus deseja
ser reconhecido e adorado, e, para que as pessoas possam ensinar outras sobre Deus e outras
coisas boas, os seres humanos foram criados para viver em sociedade, cujas amarras são
representadas pelos magistrados, leis e cargos políticos.
Em primeiro lugar, nestas responsabilidades, nossa obediência a Deus deve ser evidente.
Em segundo lugar, nossa confissão deve brilhar na sociedade. Fomos especialmente criados
para a sociedade para que o conhecimento de Deus e de Seu Filho, nosso Senhor, Jesus Cristo,
seja amplamente propagado. Mostre o que você pensa sobre Deus e testemunhe que você se
compromete a professar a verdade e a fazer o que é justo em nome de Deus.
Em terceiro lugar, uma vez que a economia e a política estão repletas de dificuldades e
perigos enormes, quão desumano é ignorar os perigos da geração e da educação, bem como a
imensa carga de responsabilidades nos tribunais e nos campos de batalha! Nestas aflições e
perigos, a fé e a invocação de Deus devem brilhar. Portanto, dada a natureza frágil da
humanidade sobrecarregada por essas dificuldades, devemos usar esses desafios como uma
oportunidade para espalhar amplamente o conhecimento de Deus. Os trabalhos econômicos e
políticos se tornam, portanto, atos de culto a Deus, porque se destinam a prestar obediência a
Deus e porque, nesses mesmos trabalhos, a invocação de Deus deve estar presente. Assim como
Davi, prestes a lutar, e Salomão, ao iniciar seu reinado, invocavam a Deus, como está escrito no
Salmo 20. 8: “Uns confiam em carros e outros em cavalos; nós, porém, faremos menção do
nome do Senhor, nosso Deus”.
Em quarto lugar, nestes trabalhos, o amor ao próximo, a tolerância e a devoção na
preservação da verdade sobre Deus são exercidos. Portanto, muitas virtudes estão envolvidas nos
trabalhos econômicos e políticos, e é por meio dessas virtudes que nossas ações se tornam
sacrifícios ou culto a Deus, ou seja, obras pelas quais Deus julga ser honrado.
O que Davi faz quando ele está em batalha?
Em primeiro lugar, ele reconhece que deve obediência a Deus em sua vocação, ou seja, no
cargo político no qual foi colocado. Em segundo lugar, ele professa ser um cidadão do povo de
Israel e invoca o Deus eterno, que Se revelou a ele e confiou Sua Palavra ao povo de Israel por
meio de testemunhos específicos. Em terceiro lugar, ele exercita sua fé em tempos de perigo e
invoca a Deus. Quarto, ele presta serviço a seus concidadãos com esse trabalho, e até luta por
essas paredes, dentro das quais crianças aprendem a leitura das Escrituras dos Profetas, para que
a doutrina divina seja preservada e propagada. Além disso, muitas outras virtudes são cultivadas,
como justiça, tolerância, mansidão e outras virtudes necessárias a um governante. Quinto, em
relação a essas virtudes mencionadas, algo de grande valor surge nesses trabalhos: o testemunho
da presença de Deus, que fortalece o temor e a fé. Vemos ladrões e tiranos sendo punidos,
experimentamos Deus protegendo o governo, que é o refúgio da Igreja. Isaías e Ezequias
experimentam suas preces sendo ouvidas em favor do governo que eles lideram. E Davi
testemunha a presença de Deus com os governantes, dizendo (Salmo 144. 1): “Bendito seja o
Senhor, minha Rocha, que treina minhas mãos para a batalha” e (Salmo 144. 10): “Ele dá vitória
aos reis”.
Essas são as razões e os objetivos por trás do trabalho na esfera econômica e política, que
devem ser frequentemente considerados pelos piedosos. Devem ser feitas comparações entre a
vida política e a vida monástica, bem como entre o governante piedoso e o ímpio.
A causa fundamental que demanda obediência na esfera política é Deus. Aqui é feita menção
da causa eficiente. A causa final é que a confissão seja evidente na sociedade. A causa final mais
ampla é que o próximo seja servido e que a posse da doutrina divina seja defendida. Os efeitos
são testemunhos da presença de Deus, que aumentam o temor e a fé. Refletir sobre essas causas e
efeitos enriquece a vida política e conforta os piedosos diante da grandeza dos trabalhos, além de
avivar o temor a Deus e a fé em suas mentes.
Agora, comparemos um eremita com o Rei Davi. O eremita, como se estivesse fugindo do
campo de batalha, sai da ordem política e não cumpre a obediência devida a Deus que ele deve à
sociedade comum. Ele foge para a solidão a fim de evitar o trabalho árduo, perigos, resultados
incertos de negócios, injúrias, ingratidões e, finalmente, o fardo de preocupações e dores. Ao
fazer isso, ele também evita o exercício da fé, da invocação a Deus e da confissão. Ele não serve
ao próximo, não ensina, nem contribui para a preservação do conhecimento. Qual seria a
qualidade de vida, como as artes seriam desenvolvidas e como seria a geração, incluindo a
proteção de mães e bebês, se todos optassem por ser eremitas? Portanto, devemos rejeitar o tipo
de vida que negligencia a obediência a Deus devida na ajuda e proteção da sociedade em geral.
Aqui também podemos comparar o soldado piedoso com o soldado mundano. Quando Celso
caluniou o Evangelho por proibir a vingança e alegou que a militância estava proibida, Orígenes
respondeu que a militância cristã era pedir a Deus por ordens. Embora Orígenes tenha
respondido corretamente sobre nossas funções, ele não disse o suficiente. Ambos os aspectos
devem ser abraçados, pois o cristão luta no campo de batalha de acordo com sua vocação e usa a
oração a Deus para auxiliá-lo, assim como Davi se preparou com orações e uma funda antes de
enfrentar Golias. Portanto, o soldado cristão supera o mundano. Além disso, os propósitos são
diferentes. Davi luta para defender o conhecimento divino, enquanto Júlio luta para defender sua
própria dignidade. Assim, o governante Josafá supera Cícero: Cícero traz apenas seu próprio
julgamento, habilidade e diligência para a administração, enquanto Josafá traz orações, sabedoria
e muitas vezes clama a Deus quando diz 2 Crônicas 20. 12: “Não sabemos o que fazer; os nossos
olhos estão voltados para Ti”.
Essas são algumas observações breves sobre a segunda regra, que os leitores piedosos devem
considerar cuidadosamente para entender a dignidade da vida política e para discernir a diferença
entre uma pessoa piedosa envolvida em assuntos políticos e alguém profano.
A terceira regra é que o Evangelho não ordena que nossa política seja governada pelas leis
civis de Moisés, nem estabelece um novo sistema político terreno. Pelo contrário, instrui-nos a
obedecer às autoridades civis e às leis existentes, desde que essas leis não entrem em conflito
com a lei natural. O Evangelho nos encoraja a apoiar e enriquecer as estruturas políticas
existentes. O apóstolo Paulo expressou isso claramente quando disse em Romanos 13. 1: “Toda
alma esteja sujeita às potestades superiores”. Incluí essa regra porque lembro-me de muitos,
como os monasterienses, Struthius e outros, que argumentaram que os cristãos deveriam resolver
disputas legais com base nas leis de Moisés e que a lei romana que usamos atualmente nos
tribunais deveria ser abolida. Isso não era nada além de tentar restaurar o sistema político
mosaico, que Deus claramente demonstrou não ser necessário, ao excluí-lo completamente como
um exemplo terrível.
Já foi dito muitas vezes que o Evangelho prega a justiça espiritual e eterna, como Paulo
disse: “O Evangelho é o ministério do espírito” e não estabelece um sistema político terreno
específico. Em vez disso, ele nos permite usar as diversas estruturas políticas das nações, de
acordo com os tempos, desde que essas leis não entrem em conflito com a lei natural, mas em
vez disso, aprovem o que é honesto e punam o que é desonesto. Pois um juiz cristão deve seguir
essa regra, como Paulo também a citou em Romanos 13. 2-4: “As autoridades são encarregadas
de premiar o que é bom e punir o que é mau, e o que é bom e o que é mau em questões morais é
determinado pela lei da natureza”.
Em seguida, não importa para a Igreja questões relacionadas às leis positivas, seja a
diferença entre as leis francesas em termos de punições, divisão de heranças em comparação com
as leis germânicas. Um cristão pode seguir as leis políticas de sua nação, seja na Armênia, na
França ou na cidade de Veneza, ele segue as leis locais. Lembro-me de pessoas que não queriam
que nenhum ladrão fosse punido com a pena de morte porque a lei de Moisés punia o ladrão com
restituição de quatro vezes o valor roubado. Embora em culturas onde os ladrões agissem com
violência, como bandidos, as leis antigas também punissem com a pena de morte. E, por esse
motivo, alguns argumentavam a favor do uso dessas leis antigas, pois em muitas culturas
bárbaras, os ladrões frequentemente agiam como bandidos, armados com armas e intenções de
causar danos, como verdadeiros criminosos. Entretanto, um juiz cristão deve considerar que o
principal é que a lei cumpra a regra de punir ações más. Além disso, ele deve lembrar que a
severidade da pena deve ser adaptada às circunstâncias locais, de acordo com a legislação local, e
que em algumas culturas, onde a disciplina é mais frouxa, pode ser necessária uma punição mais
rigorosa para os ladrões do que em outras culturas onde existem outras formas de controle
disciplinar. Isso não significa que Deus desaprova a severidade, porque nossos pecados, sem
dúvida, merecem a morte pelas leis divinas. A Lei de Moisés também exigia que um filho
rebelde fosse levado aos juízes e apedrejado até a morte. Embora agora consideremos essa lei
excessivamente rígida, ela demonstra que Deus valoriza a disciplina rigorosa. Não entrarei em
uma discussão mais longa sobre isso, pois mencionei isso apenas para lembrar os leitores mais
leigos de que não devemos permitir que os clamores daqueles que argumentam pela introdução
das leis mosaicas e a abolição das leis romanas no tribunal nos perturbem.
E quanto ao costume de jovens e suas inquietações[151], de criticar as antigas instituições
como medíocres, promulgar novas leis, prescrever uma ordem mais eficiente nos tribunais,
regular os tribunais como magistrados através de editais, estabelecer os preços dos bens
negociáveis, como eu me lembro, Mustela ensinou nas aulas sobre a ordem dos julgamentos.
Não estou agora querendo criticar o zelo dos sábios governantes, mas sim a inquietação juvenil,
que é útil frear, especialmente para aqueles que servem no ministério do Evangelho. Eles devem
promover o ensino sobre a verdadeira invocação de Deus e outros deveres de piedade. Deixem a
gestão de tribunais e julgamentos para outros especialistas e lembrem-se dos preceitos usuais de
que cada um deve se contentar com o seu domínio. Como Cleon diz em Aristófanes, “um pé na
corte e o outro no acampamento”, essas pessoas agitadas têm um pé na corte e o outro na igreja,
e às vezes confundem a cidade da mesma forma que um macaco em uma fábula de Hermogenes,
que, tendo visto cidades, casas, encontros humanos, teatros, espetáculos, jogos, após ser
capturado por humanos, volta para os macacos e conta o que viu, os encorajando a construir
casas para se abrigarem de tempestades e a erguer muralhas para se proteger dos leões, lobos e
outros humanos. A ideia parecia boa, não só pela utilidade, mas também pela possibilidade de
reproduzir os teatros e os espetáculos. Assim, o plano foi aprovado, e as macacas mais jovens
foram enviadas para cortar madeira ou carregar pedras. No entanto, elas perceberam sua própria
estupidez, pois estavam sem machados e não tinham ideia de como cortar madeira ou construir
com pedras, em resumo, faltava-lhes completamente a habilidade arquitetônica. Portanto, as
circunstâncias as forçaram a abandonar o projeto tolo que haviam iniciado. Muitos arquitetos de
cidades se encaixam nessa descrição, incluindo Struthius, Mustela e outros. Portanto, eles devem
lembrar o preceito mais sensato apresentado nesta terceira regra e não se aventurar em reformas
políticas a menos que elas envolvam óbvios atos de depravação.
A quarta regra estabelece que a doutrina do Evangelho ordena a obediência de maneira tão
rígida que afirma que desobedecer aos mandamentos de uma autoridade legítima é um pecado
mortal, desde que esses mandamentos não se oponham aos mandamentos de Deus.
Essa regra é explicitamente apresentada em Romanos 13. 5, que diz: “Portanto, é necessário
que sejamos submissos, não apenas por causa da ira, mas também por causa da consciência”.
Primeiro, ensina a necessidade da obediência e, em seguida, esclarece essa necessidade. Não
apenas por causa da ira, significa que a punição corporal imposta pelas autoridades aos
desobedientes não é a única razão para obedecer, mas também por causa da consciência, é
necessário obedecer. Portanto, isso atesta que a desobediência ofende a Deus e torna a
consciência culpada, porque Deus exige essa obediência.
Refletindo sobre isso, perceba a gravidade de ter uma consciência culpada perante Deus, que
resulta no abandono por parte de Deus, a falta de orientação e proteção divina, e torna a pessoa
sujeita a punições nesta vida e, a menos que se arrependa, à ira eterna após a morte. Pois Deus
segue essa regra para punir a obstinação, mesmo nesta vida, com exemplos terríveis, como se
pode ver nas histórias de Absalão, Simei, Joabe e muitos outros.
O leitor atento pode comparar a filosofia política com essa pregação de Paulo. Até que ponto
as filosofias políticas se fortalecem com base na pregação de Paulo? Essa é a mais sólida defesa
das autoridades. Pois as almas dos justos e dos medianos não são convencidas pelo medo ou pela
autoridade das autoridades, mas sim por essa doutrina celestial, que os leva a obedecer
respeitosamente às leis, autoridades e governantes.
As próprias leis dos governantes demandam principalmente obediência externa, tanto em
tempos de paz quanto de guerra, requisitando que as pessoas cumpram tarefas corporais, paguem
impostos e cumpram deveres externos em toda a vida civil. No entanto, a doutrina celestial exige
mais do que isso; ela ordena que os magistrados sejam honrados. Este é o mais alto grau de
obediência, que não se limita apenas a prestar serviços externos, mas envolve também uma
opinião honrosa na mente e benevolência. De fato, esses são os principais significados da palavra
“honra”. A opinião honrosa inclui a noção de que a ordem política, as autoridades e os
magistrados são instituições divinamente estabelecidas e aprovadas por Deus, e que são
sustentadas pela intervenção divina. Além disso, significa que Deus deseja que a humanidade
seja governada por essa forma de vida civil, limitando sua liberdade e proporcionando exemplos
claros de Seu julgamento sobre os crimes humanos, como as punições para homicídios, incestos,
tiranos e perjúrios, que demonstram claramente que Deus se indigna com tais pecados. Portanto,
uma opinião honrosa pressupõe que a ordem política, autoridades, magistrados, leis, tribunais e
punições são as obras de Deus, nas quais se manifesta a sabedoria, justiça e bondade divina em
relação à humanidade. A outra parte da honra deriva do fato de que essas instituições são divinas.
Portanto, devemos nos submeter de boa vontade e de forma verdadeira às autoridades por amor a
Deus e amar essas instituições e os próprios magistrados, que são os guardiões da ordem política.
Este é o significado do mandamento que ordena honrar os magistrados.
No entanto, como mencionei anteriormente, é importante fazer uma distinção entre coisas e
pessoas. O apóstolo Paulo reconhecia e sabia com certeza que o Império Romano havia sido
estabelecido pelo desígnio singular de Deus e com o apoio divino. Ele amava e reverenciava a
ordem e as leis romanas, mas odiava e abominava Nero como uma terrível praga e um
instrumento do Diabo. Ele orava a Deus para que Nero fosse removido, e isso acabou
acontecendo. Embora Paulo tenha sido martirizado por Nero anteriormente, permitindo que ele,
um apóstolo querido de Deus e dotado de dons abundantes, fosse morto por um governante tão
terrível, naquele mesmo ano Nero cometeu suicídio.
Este é o cerne da honra: invocar a Deus em oração por causa da nação e pelas autoridades.
Isso certamente é feito com fervor por aqueles que realmente acreditam que a ordem política é
uma obra e um dom de Deus, e que bons magistrados são estabelecidos e auxiliados por Deus,
como é o caso. As civilizações e as artes não sobreviveriam sem que, de tempos em tempos,
Deus levantasse reformadores, como Josias, que restaurou o reino após a decadência durante o
governo de Manassés. Aqueles que reconhecem essas bênçãos de Deus, oram fervorosamente
pelas autoridades, como Paulo instrui em 1 Timóteo 2. 2: “Rogo, pois, antes de tudo, que se
façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por
todos os que exercem autoridade”. O propósito disso é garantir uma vida tranquila, não para nos
entregarmos ao ócio e ao prazer, mas para que haja ordem moral, para que o Evangelho seja
ensinado e propagado, para que a Igreja cresça e o nome de Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo
seja celebrado. Jeremias também instruiu as pessoas a orar pela paz e bem-estar da Babilônia, a
nação onde os israelitas haviam sido exilados, pois, ao buscar a paz da cidade onde estavam no
exílio, eles encontrariam paz para si mesmos.
Acrescento a esta discussão a regra transmitida pela voz dos Apóstolos em Atos 5. 29: “Mais
importa obedecer a Deus do que aos homens”. Portanto, quando os seres humanos, seja o rei, o
príncipe ou o sumo sacerdote, ordenam que façamos algo em desacordo com os mandamentos de
Deus, não devemos obedecer a eles, mas devemos dar prioridade aos mandamentos de Deus,
como ensinado na história de Daniel, capítulo 3.
Agora, mencionei as principais coisas que a igreja precisa saber sobre as razões e a
dignidade da ordem política e das autoridades. Muitas coisas poderiam ser ditas sobre os deveres
dos governantes, mas não é nossa intenção abranger toda a doutrina política. Existem livros de
filósofos e juristas que tratam dos deveres dos governantes. No entanto, em resumo, fornecerei
uma regra geral. Aristóteles apresentou uma definição instrutiva de governantes em poucas
palavras que, quando analisadas, contêm uma ampla doutrina: “O governante é o guardião da
lei”[152]. Quando você pergunta quais são os deveres dos governantes, considere esta definição. E
imagine um governante com duas tábuas da lei de Moisés penduradas do pescoço. Deve ser o
guardião dessas leis para regular a disciplina pública. Pois essas leis são os princípios
fundamentais a partir dos quais todas as leis corretas (uma vez que é necessário haver várias leis
para governar a vida pública e os tribunais) são derivadas, como de fontes.
Portanto, como o governante é o guardião das leis, ele mesmo deve obedecer a elas, obrigar
os outros a obedecer e defender a autoridade delas vigorosamente. É por isso que ele é investido
com a espada por Deus. Para entender a distinção entre o governante na Igreja e o governante
político e ao mesmo tempo perceber seus deveres, apresento a seguinte definição de um
governante político: “O governante político é o ministro de Deus que guarda a disciplina externa
adequada ao seu governo, mantém a paz e coage e pune os desobedientes com punições
corporais legítimas”.
Aqui estão as diferenças entre o mestre do Evangelho e o governante político. O mestre do
Evangelho apresenta a palavra de Deus e administra os sacramentos pelos quais Deus chama
aqueles que ouvem para a vida eterna, e é eficaz na ação deles. Além disso, ele apenas coage e
pune com a palavra de Deus, ou seja, com a voz do Evangelho e com a excomunhão, sem o uso
de força física. Por outro lado, o governante político é o guardião da disciplina externa e da paz,
e com uma espada ele coage e pune os desobedientes com punições corporais legítimas.
Quando digo que o governante é o guardião da disciplina, entenda que ambas as tábuas dos
Dez Mandamentos devem ser mantidas por ele. Isso significa que ele não é apenas um guardião
da paz, como um pastor, nem apenas do sustento, mas deve, antes de tudo, servir à glória de
Deus no que diz respeito aos comportamentos externos. Como todas as nações estabeleceram
punições contra juramentos falsos, muitas delas também estabeleceram punições contra aqueles
que professam o ateísmo ou o ceticismo, como os epicuristas ou os ateus que afirmam
publicamente que não há Deus ou que Deus não se importa. No entanto, nós seguimos a lei de
Deus, que diz: “Fujam dos ídolos” (Levítico 19. 4). Da mesma forma, “Aquele que blasfemar o
nome do Senhor deverá ser morto” (Levítico 24. 10). E “Derrubem os altares dos ídolos”
(Deuteronômio 12. 3). Além disso, “Não deve haver entre vocês quem pratique adivinhação, ou
se dedique à magia, ou faça presságios, ou pratique feitiçaria” (Deuteronômio 18. 10).
Esses preceitos fazem parte da lei natural e estão relacionados ao segundo mandamento:
“Não tomará o nome do Senhor seu Deus em vão”. Pois o Senhor não deixará impune aquele que
profanar o Seu nome. Essa regra se aplica a todos os seres humanos e, na verdade, a todas as
criaturas inteligentes. Cada um deve proibir manifestas blasfêmias contra Deus em seu próprio
lugar. Portanto, as autoridades têm o dever de proibir e punir discursos epicuristas, adoração de
ídolos, juramentos falsos, alianças com demônios e a propagação de dogmas ímpios. O Salmo 2.
10 em diante diz: “E agora, ó reis, sejam prudentes; deixem-se advertir, juízes da terra. Sirvam
ao Senhor...”. E Provérbios 25. 5: “Tire de sua presença o ímpio, e o trono se firmará na justiça”.
E 1 Samuel 2. 30: “Aqueles que me honram, honrarei, mas os que me desprezam serão
desprezados”.
Logo, não apenas os reis piedosos de Judá, mas também reis de outras nações, depois de
aprenderem a verdadeira doutrina sobre Deus, proibiram blasfêmias contra o verdadeiro Deus,
como Nabucodonosor e Dario, o Medo. Da mesma forma, Constantino e Teodósio agiram
corretamente ao destruir ídolos. Embora o magistrado não julgue nem altere crenças secretas na
mente, ele deve proibir delitos externos em prol da glória de Deus e para evitar que a
licenciosidade e exemplos corrompam mais pessoas.
Portanto, reis, príncipes e magistrados devem continuar a supervisionar as igrejas neste
tempo e garantir que sejam ensinadas corretamente. Isso é fundamental para direcionar as mentes
das pessoas para a verdadeira invocação a Deus e outros deveres de piedade. Eles devem proibir
a adoração de ídolos e a propagação de falsas crenças que estejam em conflito com o Evangelho,
não importando de que grupo de pessoas essas práticas se originem. Devemos obedecer à voz do
Pai Eterno, que nos ordena a ouvir nosso Senhor Jesus Cristo: “Este é o Meu Filho, o escolhido;
a Ele ouçam!” (Lucas 9. 35). Portanto, abracemos e iluminemos o Evangelho de nosso Senhor
Jesus Cristo, rejeitando a fúria dos pagãos, dos judeus, dos muçulmanos e dos hereges.
Que os líderes da Igreja eliminem a doutrina pagã do Papa, os rituais pagãos de invocação
dos mortos e as terríveis profanações da Ceia do Senhor. Isso é o que os mandamentos eternos e
imutáveis de Deus ordenam: “Não tomará o nome do Senhor, seu Deus, em vão” e “A Ele
ouçam”. Deus confiou aos magistrados a responsabilidade de proteger os assuntos divinos, ou
seja, o conhecimento e a invocação verdadeira de Deus, bem como a justiça e a paz. Como
podem ser chamados de representantes de Deus se nem mesmo reconhecem o Senhor e não
fazem com que Ele seja reconhecido por outros?
Em outra discussão mais detalhada, mostrei que a reforma das igrejas está relacionada ao
dever dos magistrados, especialmente quando os bispos estão ausentes ou se opõem ao
Evangelho. Alguns argumentam que o magistrado secular não deve julgar disputas sobre
doutrinas religiosas. No entanto, a verdadeira e clara resposta a isso é que a Igreja deve ser a
juíza e seguir a norma do Evangelho no julgamento. E, uma vez que o magistrado piedoso seja
realmente um membro da Igreja, ele também deve julgar junto com outros piedosos e eruditos de
acordo com a norma que mencionei. Todos os membros da Igreja foram instruídos a “cuidar dos
falsos profetas” e que “se alguém os anunciar outro evangelho além do que já receberam, seja
anátema” (Gálatas 1. 9). Portanto, assim como outros piedosos, os magistrados devem considerar
as doutrinas e, se alguém estiver espalhando ou defendendo opiniões falsas e ímpias, devem
considerá-lo amaldiçoado ou contê-lo. Os líderes estão muito enganados se acham que esse
cuidado não lhes diz respeito.
Quanto aos outros deveres dos magistrados, como governar a moral civil, defender a paz,
exercer funções judiciais ou administrativas, demonstrar rigor e justiça, exercer a misericórdia,
lidar com assuntos econômicos e financeiros, esses assuntos devem ser tratados por outros
especialistas, ou seja, pelos juristas. O Evangelho mostra as causas e a dignidade da ordem
política e, em termos gerais, ensina que os magistrados devem obedecer aos mandamentos de
Deus, porque Deus também dá comandos aos reis, príncipes e ao povo. Igualmente, Deus julgará
reis, príncipes e o povo, como está escrito (Marcos 16. 15): “Vão e preguem o evangelho a toda
criatura”. E em Zacarias 10. 3, diz: “Sobre os pastores se acendeu a Minha ira”. E em Miqueias
3. 9 e 12: “Ouçam, vocês, chefes da casa de Jacó, não é para vocês que está o reto proceder?”.
Ezequiel 33. 34-7-9 também diz: “Por isso, ó pastores, ouçam a palavra do Senhor...”.
Adicionarei apenas um aviso. Não é permitido aos reis, príncipes e magistrados agir contra o
direito divino e o direito natural. Este preceito faz parte do direito divino e natural, conforme
expresso no mandamento “Não furtarás” (Êxodo 20. 15). Essa proibição distingue as
propriedades e bens de cada indivíduo, cercando-os como um muro. O povo também possui bens
próprios por direito divino e humano. E a lei “Não furtarás” limita os governantes, impedindo
que tomem das propriedades de seus súditos quanto desejarem ou acreditem que nada pertence
aos cidadãos.
Deus, em Sua Lei, estabeleceu distinções nas propriedades dos israelitas e sancionou a
liberdade. Portanto, não era permitido a Acabe coagir Nabote a vender sua vinha ou expulsá-lo
de sua propriedade. A lei “Não furtarás” os protegia contra a apropriação indevida. Deus
identifica esta injustiça especificamente e a puniu com um exemplo memorável para que os
governantes entendam que devem respeitar os bens de seus cidadãos.
Deve ficar claro que os cidadãos têm obrigações tributárias normais, como ensina Paulo em
Romanos 13. 6, que João Batista chama de “stipendia”. Quando a defesa do Estado ou uma causa
justa exigir contribuições adicionais, é justo que os cidadãos ajudem suas igrejas e sua pátria. O
trecho na história de Samuel (1 Samuel 8. 11-18) discute a questão dos salários. Ele não concede
uma licença ilimitada aos governantes para retirar dos bens dos cidadãos o quanto desejarem,
pois alguns bens são considerados propriedades divinas e humanas.
Restam também as questões sobre contratos, das quais os piedosos devem estar cientes.
Contratos são uma parte da ordem política e coisas ordenadas por Deus. Na verdade, nos
contratos, está impressa uma imagem magnífica do julgamento e da vontade de Deus. Através
deles, Deus nos ensina que a justiça é igualdade, para que, ao considerar a vontade de Deus,
saibamos que ela é justa, isto é, igual para aqueles que são iguais. Os tiranos não tratam seus
súditos como iguais, mas favorecem alguns com interesses particulares, enquanto negligenciam
outros, ou seja, aqueles que são seus pares ou até superiores. Essa desigualdade é chamada de
acepção de pessoas (προσωπολήψια), que não está em Deus, pois saiba que Deus é igual tanto a
você quanto ao ladrão na cruz, a Moisés e a Elias. Ele estabeleceu uma regra segundo a qual
mantém a igualdade, irando-se com o pecado de todos, e novamente acolhendo a todos que
buscam refúgio no Mediador, Jesus Cristo.
Podemos ver o exemplo da justiça e igualdade de Deus na expiação da Sua ira. Os pecados
não seriam perdoados a menos que houvesse um resgate (λυτρον) igual por nós, ou seja, o Filho
de Deus. Os contratos cotidianos, como compras, vendas, trocas, aluguéis e acordos de
compensação por ofensas, nos lembram dessa igualdade.
Por fim, essa igualdade requerida nos contratos nos ensina a interpretação do mandamento
“Ame o próximo como a si mesmo” (Mateus 19. 19). Isso significa que deve haver igualdade
entre você e o próximo; você não deve buscar seu próprio benefício à custa do prejuízo do outro,
não deve oprimir o próximo para aumentar sua própria estima, não deve tirar dos recursos do
próximo para enriquecer a si mesmo. Em suma, não deve buscar vantagem injusta
(πλεσνεκτηματα), mas sim amar a igualdade, dando ao próximo o que você acredita que deve
receber.
Já falei anteriormente sobre contratos e agora estou apresentando essa regra. Ela pode ser
entendida a partir das fontes da doutrina jurídica, que recomendam a aprovação dos contratos,
mantendo a igualdade que um sábio e justo jurista considera necessária.
Aqui, embora nossas exortações tenham pouca autoridade, acrescentarei que é
particularmente incumbência dos governantes cuidar da educação e das instituições de ensino,
nas quais as letras e as artes necessárias para a igreja são transmitidas e auxiliadas. Por isso, em
Isaías 49. 23, é dito que “reis serão seus protetores e rainhas suas amas”, isto é, reis e príncipes,
bem como as repúblicas ou cidades, devem oferecer abrigo e sustento às igrejas e nutrir mestres
e alunos nas doutrinas de Deus e nas artes que são necessárias para a igreja.
Para este dever, grandes recompensas são prometidas. Mateus 10. 42 diz: “E quem der de
beber, ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este Meu discípulo,
em verdade lhes digo que de modo algum perderá a sua recompensa”.
Que esses preceitos e promessas possam mover e incentivar os governantes a apoiar o estudo
das letras. Que nosso Senhor Jesus Cristo, que com certeza em algum lugar preservará algumas
escolas e relíquias literárias, ajude aqueles que estão envolvidos na promoção do estudo e na
educação. Portanto, devemos nutrir a esperança de que a igreja permanecerá, mesmo que no
último estágio da existência terrena haja mais confusão, mas é certo que haverá escolas,
comunidades e instituições literárias. Com essa esperança, continuemos nosso estudo das letras e
roguemos ao Deus eterno, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, para que Ele guie e apoie nossos
esforços de ensino e aprendizado, nos torne instrumentos de misericórdia benéfica para a igreja
de Deus e para nós.
21. Os Preceitos Humanos na Igreja
A parte superior deste trabalho primeiro apresenta os dogmas próprios da Igreja sobre Deus
e questões eternas, sobre a lei de Deus, sobre o pecado, o Evangelho, a graça, a justiça e os
sacramentos. Em seguida, aborda também a doutrina sobre a vida civil. Agora, falaremos sobre o
grau das obras, que está muito abaixo da doutrina e das obras mencionadas anteriormente, ou
seja, sobre as cerimônias instituídas na Igreja por autoridade humana, das quais existem grandes
distinções. Algumas delas são úteis para manter uma boa ordem. Assim como nas escolas, as
horas e os assuntos das lições são distribuídos e as classes dos alunos são organizadas, ou como
um chefe de família prescreve uma ordem para as crianças, onde eles começam o dia com
orações, depois tomam o café da manhã, aprendem a ler e depois fazem algumas tarefas
domésticas, da mesma forma, em reuniões públicas da Igreja, a natureza humana requer algum
tipo de ordem.
Partes da definição:
A primeira parte da definição inclui a partícula “legítima união”, que abrange quatro
restrições discutidas pelas leis divinas e humanas. Sua autoridade é verdadeira e digna de
reverência, e trata das questões de pessoas, consentimento, condições e erro.
PESSOAS
É notável o capítulo 18 do livro de Levítico, onde são listadas as pessoas que não podem se
casar. Pois Deus, em Sua sabedoria, quis que a castidade fosse entendida e para que fosse
compreendida, Ele não permitiu de forma alguma que os desejos lascivos se espalhassem. Em
vez disso, Ele estabeleceu o número e o grau das pessoas que não podem se casar e, nesta vida,
pune universalmente os desejos lascivos com penalidades evidentes. É importante notar que as
leis em Levítico que proíbem a mistura de pessoas são leis naturais e vinculam todas as nações,
como o texto expressamente afirma. Os egípcios e cananeus foram punidos por causa de desejos
incestuosos, então também os desejos incestuosos foram proibidos para outras nações fora da
comunidade de Moisés.
Os parentes ou parentes consanguíneos, como diz um jurisconsulto, são aqueles que
descendem e se originam do mesmo tronco. A consanguinidade é um vínculo entre pessoas que,
por terem surgido do mesmo tronco, estão mais intimamente ligadas pelo sangue e pela natureza.
No entanto, eles são distinguíveis por linhas e graus.
Existem três linhas: ascendente, descendente e colateral.
Os graus são as distâncias pelas quais se determina qual pessoa está mais próxima do tronco.
A prática comum de contar os graus atualmente e mais conveniente é iniciar a série a partir de
um tronco, como Abraão. Os ancestrais mais velhos dele são colocados acima, e os filhos e netos
são colocados a seguir:
Terá
Harã Abraão Naor
Isaque
Jacó
José
1 - A primeira regra é transmitida sobre a linha reta, a força dos ascendentes e dos
descendentes.
Tantas são as pessoas, tantos são os graus, começando com um único tronco, a partir do qual
o cálculo deve ser iniciado. Por exemplo, José está a três graus de distância de Abraão, Jacó a
dois e Isaque a um. Portanto, um filho representa o primeiro grau, um neto o segundo, um
bisneto o terceiro e um trineto o quarto. E uma antiga opinião é transmitida sobre a linha reta:
nenhuma pessoa ascendente ou descendente pode contrair casamento entre si. Portanto, se Adão
estivesse vivo hoje, ele não poderia se casar.
2 - A segunda regra sobre garantias.
Na mesma linha, cada grau difere um do outro por um grau comum. No total, eles estão
separados por um único grau entre si. Portanto, dois irmãos, ou um irmão e uma irmã, constituem
apenas um grau, ou seja, o primeiro grau, como Jacó estava ligado a Esaú no primeiro grau.
Éaco
Peleu Telamão Foco
Aquiles Ajax Epeu
Pírro Eurísaces
Portanto, se você deseja saber a que grau Aquiles e Ajax estão conectados entre si, examine
uma única linha e observe a que grau Aquiles está distante do tronco; ele está separado por dois
graus. Portanto, Aquiles e Ajax também estão separados entre si por dois graus. Desta forma, é
fácil calcular a relação entre as pessoas seguintes.
Outro exemplo:
Pelope
Piteu Lisídice
Etra Alcmena
Teseu Hércules
Portanto, Teseu e Hércules eram parentes de origem materna, primos-irmãos ligados pelo
terceiro grau de parentesco.
Outro:
Agora, os casamentos entre parentes colaterais até o quarto grau são proibidos. No passado,
era permitido que os filhos de irmãos e irmãs se casassem entre si, inclusive pelas leis romanas,
como quando Orestes casou-se com sua prima Hermíone:
Atreu
Agamêmnon Menelau
Orestes Hermíone
Há um exemplo semelhante em Gênesis:
Betuel
Rebeca Labão
Raquel e
Jacó
Lia
Jacó juntou-se à sua prima Raquel no segundo degrau.
Outro exemplo:
Jefoné
Calebe Cenas
Acsa Otoniel
3 - Terceira regra: Em uma linha desigual, eles estão separados por um número igual de
graus em relação ao tronco comum e, portanto, estão igualmente distantes entre si.
Terá
Abraão Harã
Sara
Sara está a dois graus de distância do ancestral comum: portanto, ela estava unida a Abraão
no segundo grau. Neste grau em uma linha desigual, os casamentos são proibidos pelo direito
divino, porque Deus deseja universalmente que um grau superior seja mais respeitado do que um
igual.
Portaon
Eneu Agrios
Tideu Tersites
Diomedes
Diomedes foi ligado a Tersites pelo terceiro grau em uma linha desigual.
Terá
Abraão Naor
Isaque Betuel
Rebeca
Rebeca está a três graus de distância do tronco, portanto, também está a três graus de
distância de Isaque.
Parentesco.
O parentesco (ou afinidade) é a proximidade entre pessoas que não estão ligadas por vínculo
carnal, como no caso de Davi, que não tinha afinidade direta com Jônatas, mas se tornou parente
de Jônatas porque casou com a irmã dele.
Regra.
O grau de parentesco consanguíneo indica o quão próximo alguém é de mim pelo sangue.
Da mesma forma, o grau de afinidade se estende a esposa desse alguém. Por exemplo, se um
irmão e eu estamos ligados por um parentesco consanguíneo de primeiro grau, então a esposa do
meu irmão é ligada a mim por afinidade de primeiro grau.
Príamo
Heleno Heitor, esposo de Andrômaca
Portanto, Andrômaca estava ligada a Heleno por parentesco de primeiro grau por afinidade.
Herodes
Filipe, esposo de
Herodes
Herodias
Portanto, Herodias estava ligada a Herodes por parentesco de primeiro grau por afinidade.
Jacó Bila
Rúben
Pelope
Atreu Tiestes
Clitemnestra Agamêmnon Egisto
Portanto, Egisto estava relacionado a Clitemnestra por afinidade de segundo grau.
Casimiro da
Polônia
Sigismundo, rei da Barbara, esposa do
Polônia duque George
Edwiges, segunda Filha, primeira
esposa do marquês esposa do marquês
Portanto, a filha de Sigismundo era parente de segundo grau da filha do duque George, e,
portanto, era parente do marquês no segundo grau.
A afinidade não se estende amplamente; pois meus parentes não são parentes por afinidade
dos parentes de minha esposa. Eu devo me abster da parente de minha esposa, assim como meus
parentes devem se abster de minha esposa, não dos parentes de minha esposa. Portanto, dois
irmãos podem se casar com duas irmãs; pois eles não são impedidos pela afinidade. Pai e filho,
mãe e filha podem se casar. No entanto, algumas pessoas têm nomes para isso.
Sogro Sogra
έκυρος, Cunhado (pai do έκυρα, Cunhada (mãe do
marido) marido)
πενθερος, Sogro (pai da esposa) πενθερα, Sogra (mãe da esposa)
Genro Nora
Padrasto Madrasta
Enteado
Cunhada (irmã do marido),
Cunhado (irmão do marido)
Cunhada (esposa do irmão)
Esposas de dois irmãos (ambas
as esposas de irmãos)
Esses termos aparecem na Ilíada, Livro 6, onde Helena chama Heitor de “δαερα” (cunhado).
Mais tarde, Hector pergunta se Andrômaca foi a algum lugar visitar as irmãs do marido ou as
esposas dos irmãos: “ήε πη ές γαλοαν η εινατερων ευπεπλων” (ou se ela foi para a casa das irmãs
do meu marido ou das esposas dos meus irmãos).
Otávio
Augusto Irmã de Otávio
Agripa Julia Marcelo
Portanto, Augusto era parente de Agripa no primeiro grau, mas não era parente do irmão de
Agripa.
Matã
Jacó En
Maria José
Embora o sistema legal de Moisés não se aplique a nós, a regra de que os mandamentos
naturais são para todos os seres humanos e para todas as épocas deve ser mantida. Isso ocorre
porque são normas de justiça imutáveis na mente e na vontade divina. Portanto, imediatamente
no paraíso, na primeira geração ascendente e descendente, uma proibição foi estabelecida: “O
homem deixará pai e mãe e se unirá à sua esposa”. Posteriormente, a vontade de Deus foi
declarada por meio da voz do pai, como no caso de Jacó amaldiçoando seu filho que tocou em
sua própria madrasta. O texto em Levítico também afirma que os cananeus foram punidos por
suas lascívias incestuosas.
Quando Deus pune as nações que estão fora do sistema de Moisés e que existiram antes de
Moisés, fica claro que essas proibições são mandamentos eternos e imutáveis, aplicáveis a todos
os seres humanos. Portanto, o apóstolo Paulo também repreendeu os coríntios, por conta de um
envolvimento impróprio com uma madrasta.
Além disso, devemos considerar os exemplos de punições que são encontrados ao longo da
história de todas as épocas. Portanto, é importante reconhecer que as dispensações que permitem
a união em graus proibidos no texto de Levítico 18 não têm validade.
Além das proibições divinas, também existem algumas proibições humanas em graus
próximos, como no segundo grau em linha igual e no terceiro grau. Portanto, é prudente manter
essas proibições humanas com respeito às proibições divinas, com reverência à sua autoridade
divina.
No entanto, é importante que todos os líderes entendam a diferença entre proibições divinas
e proibições humanas. As proibições divinas não podem ser revogadas por autoridade humana,
embora, às vezes, uma razão plausível possa justificar a flexibilização das proibições humanas.
Isso deve ser feito com cuidado e sabedoria pelos pastores e governantes, e não por iniciativa
particular.
Além disso, as proibições relacionadas à afinidade espiritual devem ser rejeitadas, como a
proibição de casar com alguém que tenha sido batizado junto. Cabe aos magistrados, em cada
localidade, tomar decisões sábias e bem fundamentadas sobre quais proibições humanas desejam
manter.
CONSENTIMENTO
Foi dito na definição: casamento é a união legítima. Essa restrição ensina a distinção entre as
pessoas e também ordena o consentimento.
Portanto, primeiro deve haver um consentimento expresso do noivo e da noiva, como a regra
frequentemente repetida na lei ensina que casamentos são unidos por consentimento mútuo.
Nesse consentimento, erros e violência devem estar ausentes. Em relação à violência, deve-se
entender que não há consentimento nem casamento quando uma pessoa é forçada a prometer
casamento por meio da violência. Nesse assunto, muitos erros tristes ocorrem.
CONDIÇÕES.
Existem diferentes condições relacionadas ao casamento, algumas são dignas e relevantes
para o casamento, outras são estranhas e não relacionadas ao casamento, algumas são
vergonhosas e outras impossíveis.
Outra regra.
Se, no entanto, a condição for estranha e não relacionada ao casamento, como: “Vou casar
com você se você me der cem moedas de ouro”, onde não há menção de dote, essa condição é
considerada sem efeito e o casamento é considerado válido. O mesmo ocorre quando são
acrescentadas condições indecentes ou impossíveis, como: “Vou me casar com você se você
permanecer virgem”, ou ainda: “Vou me casar com você se você me der Bizâncio”. Essas
condições são rejeitadas, talvez porque as autoridades quisessem evitar sofisma, petulância e
enganos em relação ao sexo feminino frágil e vulnerável.
ERRO
A regra é transmitida.
Os esponsais e o casamento podem ser dissolvidos devido a um erro na identidade da pessoa,
não devido a um erro nas circunstâncias, ou seja, quando o engano envolve a pessoa em si, como
no caso de Jacó, a quem foi dada Lia em vez de Raquel. No entanto, Jacó optou por seguir
adiante com o casamento e, portanto, não tinha base legal para dissolver o contrato.
Em relação a um erro nas circunstâncias, como alguém acreditar que o cônjuge é rico, nobre
ou não tem filhos, esse tipo de erro não afeta a validade essencial do casamento.
Um erro particularmente difícil de resolver é quando alguém casa com uma pessoa que foi
violada (que teve relações sexuais) ou forçada a fazê-lo, seja por outra pessoa ou pelo próprio
cônjuge. A questão de se os esponsais e o casamento podem ser dissolvidos nesses casos é
debatida, e muitas vezes é decidida de acordo com a lei local e os costumes. Em muitas
jurisdições, a prática é permitir que o noivo ou o cônjuge mantenha uma pessoa que tenha sido
violada, consciente ou inconscientemente. Em algumas jurisdições mais recentes, as leis podem
ter sido estabelecidas para tornar mais difícil a dissolução do casamento e para evitar a leveza
daqueles que descartam facilmente suas esposas por qualquer motivo.
Deve-se observar a prática atual, para a qual existem regulamentos claros no direito
canônico. No entanto, no livro de Deuteronômio, capítulo 22, encontramos uma regra diferente
que prescreve apedrejar uma mulher que foi violada por outro homem, mas que posteriormente
se casou com outro. Se a mulher for acusada e o marido buscar o divórcio, essa era a antiga
severidade estabelecida na lei divina. Alguns grupos, incluindo os gregos, seguiram essa prática
por um tempo, como evidenciado na história de Creusa, que se casou grávida de Xuto, e
posteriormente deu à luz a Ion. A mãe inicialmente abandonou a criança, mas depois a redimiu,
temendo punição, e ela foi salva por Palas Atena. Em outra história, em “Hécira”, o personagem
Pânfilo se recusa a aceitar sua esposa, acreditando que ela engravidou de outro homem. Portanto,
divórcios eram comuns nesses casos.
No entanto, devemos abordar agora algumas situações específicas que podem exigir
aconselhamento adequado.
Primeiro.
A lei de Moisés ordenava que aquele que tivesse violado uma jovem deveria casar com ela e
dar-lhe um dote, quer tivesse prometido o casamento ou não. No entanto, nossas leis não
obrigam que você case com a pessoa que violou, a menos que tenha prometido casamento, mas
ainda assim mencionam a obrigação de fornecer um dote. Isso também era uma prática comum
no direito ateniense.
Um segundo lembrete.
Talvez por isso, devido à antiga tradição, tenhamos aprendido uma abordagem mais recente
que busca manter a pessoa que sofreu violência sexual pelo autor do ato. Isso ocorre porque, se
permitíssemos acusações frequentes de recém-casados, muitas vezes inocentes correriam o risco
de enfrentar suspeitas ou ofensas injustas. Além disso, segredos criminosos seriam
frequentemente revelados, e é muito mais honroso e útil mantê-los em sigilo, como diz o ditado:
“O amor cobre todas as faltas”. Portanto, os governantes decidiram desencorajar acusações, e
essa decisão não deve ser censurada.
Embora eu não aprove a criação de novas leis, posso modestamente sugerir o que parece ser
benéfico: primeiro, deve-se tentar a reconciliação, de modo que aquele que cometeu o erro de
violar (que teve relações sexuais com) uma mulher mantenha um relacionamento com ela,
especialmente se ela for modesta. Isso ocorre porque, frequentemente, divórcios acarretam
grandes consequências, pelas quais o juiz e o autor do ato devem prestar contas. No entanto, se a
reconciliação não for possível, um juiz sábio, com autoridade para isso, pode seguir o exemplo
da lei mosaica e permitir o divórcio, desde que seja anunciado de antemão. Como é sabido, as
leis mosaicas não se aplicam às nossas sociedades, mas elas nos mostram o que Deus aprova.
Portanto, os legisladores podem promulgar essa lei em seu devido lugar, para que, em tais
casos, se a reconciliação não for bem-sucedida, o divórcio possa ocorrer. O erro neste caso é
muito mais intolerável do que se alguém, sem saber, casasse com uma serva. Pode haver outras
razões honestas para isso, mas o exemplo da lei mosaica fortalece mais as consciências do que
outros argumentos, porque o testemunho da lei divina deixa os legisladores e juízes
absolutamente certos de que não estão agindo contra a vontade de Deus.
Outro caso.
Muitas vezes, também se questiona sobre este caso: se alguém que já é casado, como Davi,
pode depois de seus primeiros cônjuges falecerem, casar-se com uma mulher que manteve
relações com outro enquanto era casada com seu primeiro marido, ou se a mulher em questão era
esposa de outro homem. As leis canônicas proíbem o casamento nesse caso e também proíbem se
houver uma conspiração para assassinar o cônjuge do outro. Essas decisões foram tomadas com
sabedoria para desencorajar a prática de adultério. No entanto, o exemplo de Davi mostra que,
neste caso, o casamento pode ser permitido, e um juiz pode usar seu discernimento,
especialmente quando as autoridades civis não punem o adultério e Deus desaprova fortemente
uniões adúlteras.
Outra pergunta.
Quanto à questão de um cristão se casar com uma pessoa de outra religião ou alguém que
discorda da sua religião, os cânones proíbem o casamento com não-cristãos e hereges, o que foi
estabelecido com sabedoria. Isso porque a lei divina também proíbe casamentos com filisteus.
No entanto, é importante entender que o evangelho não abole as políticas do mundo, mas prega a
justiça do coração. Portanto, na vida externa, podemos seguir as leis políticas desde que não
entrem em conflito com as leis naturais, assim como usamos diferentes períodos do dia. Paulo,
por exemplo, instrui explicitamente os cristãos a manterem seus cônjuges, mesmo que eles não
compartilhem da mesma religião, e acrescenta consolo: “O marido descrente é santificado pela
mulher, e a mulher descrente é santificada pelo marido”, ou seja, o casamento de um crente com
um não-crente é aceito e não desagrada a Deus, assim como o uso de alimentos é aceitável
quando acompanhado de oração. Portanto, exemplos de casamentos entre cônjuges de diferentes
religiões, nos quais um deles se converteu posteriormente, são comuns na história, o que é
relevante também nos dias atuais para evitar que casais se separem devido às diferenças
religiosas quando desejam permanecer juntos no matrimônio, assim como frequentemente é
difícil separar famílias devido à descendência, e o cônjuge cristão deve buscar manter a afeição
do cônjuge não-cristão por meio de atos de bondade, mesmo que pareça que ele está buscando
uma oportunidade para o divórcio.
Divórcio.
Foi dito na definição que o casamento é uma união legítima e indissolúvel entre um homem
e uma mulher, e não há dúvida de que essas restrições se aplicam à primeira instituição. Deus
queria que a humanidade não se assemelhasse a animais vagando em suas uniões, mas que
homens e mulheres fossem unidos de acordo com uma ordem específica e observassem essa
ordem como uma obediência devida a Ele. Ele estabeleceu essa ordem com leis rigorosas e
punições severas, e em todos os tempos da história humana, Ele puniu as transgressões a essa
ordem com castigos, como evidenciado no Dilúvio, na destruição de Sodoma, nas quedas de
civilizações como Síbaris, Tebas e Troia, e em muitas outras situações. A razão para essa
severidade é que Deus deseja que a humanidade compreenda o significado da castidade,
reconhecendo que Ele mesmo é puro de mente e ama a castidade, e mencionando essa virtude,
podemos distingui-Lo da impureza natural.
Portanto, desde o início, Deus estabeleceu que os casamentos não deveriam ser dissolvidos,
como é dito: “serão dois em uma só carne”, ou seja, unidos inseparavelmente. O próprio Senhor
cita essa sentença em Mateus 19. Essa ordem foi obedecida sem dúvida pelos primeiros pais,
Adão, Sete e outros, que a transmitiram a outros.
No entanto, mais tarde, a disciplina antiga foi relaxada e o divórcio foi permitido, e embora
fossem práticas comuns antes de Moisés, foram permitidas pela voz da lei mosaica. No entanto,
cercou-se de limitações para que não fossem realizadas com leviandade, mas primeiro as causas
eram consideradas em julgamentos.
A lei também proibiu que uma mulher repudiada voltasse a se casar depois de ter se casado
com outro, pois Deus detesta a confusão sexual. Entre os antigos atenienses, costumava-se julgar
casos de divórcio nos tribunais. Mas mais tarde, entre judeus e outras nações, prevaleceu uma
maior laxidão e licença, e o divórcio foi concedido com base em caprichos particulares, fossem
as causas graves ou leves, ou mesmo inexistentes. Alguns divórcios também foram revertidos,
como o caso de Catão, que inicialmente cedeu sua esposa Marcia a Hortênsio, mas depois ela se
juntou novamente a ele após a morte de Hortênsio. Essa leviandade deu origem à questão que foi
apresentada a Jesus em Mateus 19, onde Ele proibiu o divórcio, exceto em um caso, ou seja,
adultério, onde a pessoa com seu próprio pecado dissolve o casamento e deve ser removida.
Nesse caso, a pessoa inocente não é a causa da dissolução, e a palavra do Filho de Deus absolve
o inocente devido às ações do culpado. Também existe outro caso mencionado em 1 Coríntios 7
sobre abandono.
O caminho para prosseguir.
No entanto, o divórcio não deve ser concedido sem o conhecimento de juízes legítimos. A
pessoa inocente, se desejar obter o divórcio, deve pedir ao juiz que chame a pessoa que cometeu
o erro. Quando ambas as partes comparecem perante o juiz, primeiro devem ser exortadas a se
reconciliarem mutuamente. Se a reconciliação não for possível, a parte inocente não pode ser
forçada a receber de volta a parte culpada.
Portanto, após ouvir as partes e confirmada a acusação, se o acusador tiver vivido
honestamente e solicitar uma sentença, o juiz deve declarar da seguinte forma: “Visto que a
pessoa que cometeu o erro dissolveu o casamento por seu próprio pecado, o juiz, com a
autoridade do evangelho, declara que a pessoa inocente é livre e expressamente permite que ela,
em boa consciência, contraia outro casamento”.
Os cânones pontifícios permitem o divórcio apenas no nome, não na realidade, ou seja, não
permitem que a pessoa inocente contraia outro casamento. No entanto, quando o evangelho
concede o divórcio nesses casos, entende-se que ele se refere a uma verdadeira libertação, na
qual a pessoa inocente não está mais vinculada. Essa foi a prática antiga na igreja, conforme
registrado por Orígenes no comentário de Mateus e também por Eusébio em sua história
eclesiástica, onde ele menciona um relato de Justino Mártir sobre uma mulher piedosa que
obteve um divórcio devido aos pecados flagrantes de seu marido e recebeu publicamente uma
certidão de divórcio. Além disso, Jerônimo relata a história de Fabíola, uma nobre matrona
romana, que obteve um divórcio devido aos pecados de seu marido e se casou novamente.
Lembrar esses exemplos é útil para confirmar a prática dos tribunais em nossas igrejas.
Se a pessoa que cometeu o erro não comparecer perante o tribunal, seja por contumácia ou
por não poder ser encontrada, e se o acusador apresentar uma acusação confirmada junto com
testemunhas que atestem sua boa reputação e solicitar sua liberação, o juiz deve declarar que a
pessoa é livre, conforme mencionado anteriormente.
Mas o que será do condenado? Ou será concedido a ele, se estiver presente, viver nos
mesmos lugares?
Respondo: O magistrado político deve punir o adultério; portanto, a pessoa condenada, se
não for punida com rigor, deve ser expulsa dos lugares onde a pessoa inocente reside. A pessoa
condenada deve ser tratada como se estivesse morta, e essa severidade é da competência do
magistrado político.
Deserção.
Na questão do divórcio, a voz divina liberta a pessoa inocente quando o cônjuge quebrou o
vínculo matrimonial através do adultério. A pessoa inocente, como mencionei, é permitida a
contrair um novo casamento, e isso é mantido dessa maneira em nossos tribunais eclesiásticos. O
mesmo é aplicado à pessoa injustamente abandonada, pois Paulo diz em 1 Coríntios 7. 15: “Se o
descrente se separar, que se separe; o irmão ou a irmã não está sujeito à escravidão em tais
casos”. Paulo declara expressamente que a pessoa injustamente abandonada é livre, ou seja, não
deve ser forçada a seguir o cônjuge desertor.
Embora algumas pessoas restrinjam essa declaração ao caso da diferença religiosa, ela se
aplica verdadeiramente a qualquer abandono injusto, pois não há motivo para fazer essa
distinção. É razoável supor que os desertores que não conseguem suportar o jugo conjugal
subsequentemente não se abstenham de outros relacionamentos com mulheres. Dado que existem
várias razões para abandonos, é necessário definir o que constitui um desertor, e o casamento da
pessoa abandonada não deve ser permitido sem a avaliação de juízes. Portanto, um desertor é
alguém que se separa do cônjuge ou fica ausente por um período prolongado sem uma causa
justa, seja por leviandade, impaciência injusta em relação ao vínculo conjugal ou outras causas
não necessárias que o levam a vagar. Há muitos que são tão dominados pelos demônios que
negligenciam até mesmo seus filhos. Um desertor desse tipo, devido à sua traição e perversidade,
deveria ser punido com uma pena pública.
Portanto, é justo prestar assistência à pessoa inocente que foi abandonada. Além disso, como
mencionei, a avaliação de juízes é necessária. Portanto, a pessoa abandonada deve ser convocada
a comparecer perante o tribunal, e se ela não comparecer, os testemunhos sobre a integridade da
pessoa inocente devem ser ouvidos, e ela deve ser declarada livre, etc.
No entanto, não é considerado desertor aquele que está ausente por razões legítimas, como
um enviado especial, um soldado convocado legalmente para o serviço militar, ou se um marido
está ausente devido a negócios legítimos, como uma viagem de negócios ou outras atividades
honrosas. Nem a captura em cativeiro nem o exílio forçado dissolvem o vínculo matrimonial,
como afirmou a lei de Alexandre Severo no Código de Divórcio: “O matrimônio não é
dissolvido pelo exílio ou pela proibição de água e fogo, se o comportamento do marido não tenha
mudado o afeto da esposa, isto é, se não ocorreu um delito que, de outra forma, dissolveria o
casamento”.
Sobre o soldado, uma constituição de Justiniano nas Autênticas menciona que antigamente,
se um marido não desse notícias significativas à sua esposa durante um período de quatro anos,
permitia-se que a mulher contraísse outro casamento. Justiniano criticou essa brevidade de
tempo, afirmando que era mais triste para um soldado perder sua esposa em casa por causa do
serviço militar do que ser capturado por inimigos. Portanto, ele estabeleceu um prazo mais longo
e exigiu uma investigação cuidadosa sobre a vontade do marido. No entanto, essa lei se refere a
soldados legítimos, não a homens levianos que, para vagar livremente, assumem o título de
soldados sem motivo de coragem ou serviço militar. Esse é outro ponto que o juiz deve
considerar.
O tempo após o qual outros casamentos poderão ser concebidos.
Se o divórcio ocorreu devido a adultério, não há prescrição de tempo para a parte inocente
após o julgamento do caso. No entanto, na questão da deserção, é necessário considerar um
período de anos para determinar se a pessoa foi verdadeiramente abandonada, não apenas
pretextando leveza ou perfídia como abandono.
Uma lei em um código permite que uma noiva se case com outra pessoa após dois anos se o
noivo, que ainda está na mesma província, adiar a celebração pública do casamento contra a
vontade dela. Outra lei fala sobre um noivo estrangeiro, permitindo que a noiva se case com
outra pessoa após três anos, a menos que ele, com o consentimento dela, permaneça ausente por
mais tempo.
As constituições pontifícias não concedem o casamento à parte abandonada, mesmo que seja
inocente, em nenhum momento, a menos que seja comprovado que a pessoa desertora está
morta. No entanto, mencionei anteriormente o ensinamento de Paulo aos Coríntios, que liberta a
parte inocente, e frequentemente a pessoa que abandona é simultaneamente culpada de adultério.
Portanto, não se deve, de forma alguma, prejudicar a parte inocente devido aos erros alheios. A
liberação neste caso não deve ser apenas uma palavra vazia, mas deve conceder o casamento à
pessoa liberada.
Justiniano expressamente permite o casamento da pessoa abandonada após dez anos. Uma
glosa em um capítulo afirma: “Onde após sete anos presume-se provavelmente a morte do
marido, a mulher é desculpada se se casar”. Esta glosa é mais branda do que o texto original, mas
quando um juiz investiga o caso e descobre que a queixa de abandono não é uma mera desculpa
e vê que o comportamento da parte inocente é respeitável, ele pode seguir a lei de Constantino de
quatro anos ou o ditame de cinco anos nos Digestos sobre divórcio. Essa moderação não parece
absurda; no entanto, não prescrevo um período fixo, mas sugiro que um juiz sábio considere o
que é apropriado por uma questão de exemplo e evite armar armadilhas para a consciência da
parte inocente.
É possível divorciar-se dele por causa de doenças contagiosas e incuráveis, como a lepra?
Respondo claramente e afirmo que nunca se deve realizar divórcios devido a doenças, nem
deve-se abandonar um cônjuge doente. Sempre deve ser mantida a firme e imutável regra: “O
que Deus uniu, o homem não separe”. Portanto, qualquer pessoa viva que, de livre vontade,
inicie um processo de separação, está, sem dúvida, cometendo um pecado terrível, semelhante a
alguém que comete adultério ou abandona o cônjuge, indo contra a ordem divinamente
estabelecida pela voz de Deus e pela lei.
Se uma pessoa saudável iniciar um processo de separação, ela será semelhante a alguém que
comete adultério ou abandono e será culpada de um grande pecado. A adversidade que ocorre
durante a vida, sem culpa, nunca dissolve o vínculo conjugal. Portanto, todas as declarações que
proíbem a separação devem ser consideradas por aqueles que temem a Deus. A Bíblia diz:
“Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher; e eles serão uma só
carne” (Gênesis 2. 24). Além disso, “O marido deve cumprir os seus deveres conjugais para com
a esposa, e da mesma forma a esposa para com o marido” (1 Coríntios 7. 4). Portanto, é claro que
uma pessoa doente não deve ser abandonada, mas deve receber amor e apoio como se fosse o
próprio corpo do cônjuge.
O casamento é o mais alto grau de amizade, e é extremamente injusto abandonar um amigo
necessitado de ajuda em tempos difíceis, buscando a bondade e a lealdade do amigo. É injusto e
pecaminoso abandonar o cônjuge em tempos de aflição, quando não há culpa envolvida. Alguns
podem argumentar cruelmente que, se alguém contrair uma doença contagiosa como a lepra, o
cônjuge saudável pode buscar o divórcio. Esse argumento é refutado pela clara crueldade. Os
mortos não precisam da ajuda de outras pessoas, mas uma pessoa doente ainda precisa. Portanto,
em termos de deveres de verdadeira amizade, a pessoa doente ainda está viva. É a sua carne e a
lei divina continua sendo aplicável: “Ninguém jamais odiou o seu próprio corpo”[164].
Portanto, uma pessoa saudável deve ser obrigada pelas autoridades a não abandonar uma
pessoa doente e a prestar assistência a esta pessoa. Embora essa opinião possa parecer dura para
alguns, todas as mentes justas entendem que é legítma. Se um marido piedoso precisar de
orientação, ele deve consultar pastores instruídos e respeitáveis que compreendem a doutrina da
igreja. Isso pode evitar que sua consciência fique confusa e que sua fé e devoção sejam
prejudicadas ao buscar aconselhamento sobre a questão.
O casamento de jovens.
É crucial compreender corretamente o antigo direito das promessas de casamento,
conhecidas como “sponsalia”. A antiguidade menciona as promessas de casamento apenas como
aquelas em que são feitos acordos para um casamento futuro, que não é o começo do casamento
atual. Por exemplo, isso ocorre quando um jovem como Otavio faz uma promessa de casamento
com Servília, que ainda é uma criança. Nesse caso, o objetivo é apenas estabelecer, por meio de
palavras, um casamento que ocorrerá algum tempo depois.
As leis antigas afirmam que, de acordo com o desejo das partes envolvidas, as promessas de
casamento podem ser dissolvidas, como quando Otavio não se casou com Servília. Aqui, é
importante observar como a antiguidade se expressou. Tempos posteriores introduziram
ambiguidade: eles mencionam promessas de casamento para o futuro e outras para o presente,
quando o contrato, no qual o casamento é prometido categoricamente, já é o início de um
casamento atual.
É sábio considerar cuidadosamente quando as promessas são feitas para o futuro, e não
julgar isso apenas pelas palavras, mas sim pelas muitas circunstâncias que cercam o acordo e se
as partes envolvidas pretendiam estabelecer algo que não poderia ser mudado posteriormente
devido a uma causa séria, para a qual possivelmente houve uma razão naquela época.
As promessas de casamento para o futuro são todas aquelas em que uma condição honesta é
acrescentada, e a razão para isso deve ser considerada ao fazer o julgamento. Por exemplo,
quando alguém diz: “Vou me casar com você se seus pais concordarem”. Foi mencionado
anteriormente que tais promessas são consideradas nulas se a condição não for cumprida.
Também existem promessas de casamento para o futuro quando os pais ou tutores fazem
uma promessa de casamento entre menores, quando eles estiverem maduros o suficiente, ou
quando os próprios menores, ou outra pessoa cuja idade ainda não é apropriada, fazem uma
promessa de casamento para o futuro. É certo que essas promessas podem ser dissolvidas quando
a vontade dos menores não se concretiza, e nenhuma das partes envolvidas deve ser forçada se
ela mesma não se comprometeu posteriormente quando já estava em idade para casar e podia
tomar sua própria decisão.
Assim como as pessoas muitas vezes abusam de muitos outros bens, a instituição do
casamento também é frequentemente obscurecida por desejos insensatos ou más inclinações.
Muitas vezes, acordos são feitos com base em dinheiro ou interesses, quando, nesse sagrado
compromisso, deve prevalecer o julgamento correto e a mútua benevolência daqueles que estão
unidos. Não é apropriado que os destinos dos filhos sejam vendidos por dinheiro ou outros
ganhos mesquinhos. Deus pune claramente essa corrupção da ordem divina com punições
evidentes. Portanto, pais dignos, ao considerar a ordem divina, devem agir de acordo com o bem-
estar de seus filhos e filhas e não devem forçá-los a casamentos que vão contra sua inclinação
natural. Grandes razões devem ser removidas nesse assunto. Quando não há amor mútuo entre os
cônjuges, a discórdia reina nas mentes, interrompe a invocação de Deus, perturba a vida
doméstica e leva a muitos pecados. Às vezes, quando as vontades estão divididas, ocorrem
adultérios e punições, e muitos caem em novos crimes e tragédias terríveis.
Os pais, que podem de alguma forma compreender essas más consequências, devem
considerar e temer esses males e evitar que ocorram com seus filhos e filhas. Eles devem recorrer
a Deus com ferventes orações para que Ele os guie. Além disso, devem tomar cuidado para não
tomar decisões tolas ou ímpias.
Em muitas deliberações, os pais são negligentes demais e fúteis quando se trata do
casamento de seus filhos. Isso leva a calamidades terríveis e faz com que suas famílias não sejam
a verdadeira igreja de Deus, como deveriam ser, mas sim lugares de corrupção. Muitas pessoas
aflitas em meio a essas calamidades caem na indignação contra Deus, na desesperança e na
destruição eterna.
Portanto, eu oro ao Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Criador da raça
humana e o guardião da sociedade honesta, para que Ele mesmo nos governe e faça com que
nossos casamentos e nossas famílias sejam verdadeiramente parte da igreja doméstica. Que
possamos invocá-Lo corretamente e obedecer a Ele ao preservar a ordem que Ele estabeleceu.
Que Ele não permita que as discórdias domésticas atrapalhem nossa invocação e outros deveres
necessários. Amém.
Diversas outras obras, cartas e tratados podem ser encontrados no compêndio “Corpus
Reformatorum”.
Sobre o Repositório Cristão
O Repositório Cristão surgiu em 2019 como um projeto para armazenar e divulgar conteúdo
cristão clássico e novo. Nosso objetivo é proporcionar acesso a bibliografias confiáveis para
pesquisa, levando em conta originalidade e fidelidade da informação. Por conta dessa missão
laboriosa, necessitamos sempre de ajuda com relação às traduções realizadas e de quesitos
técnico-históricos pertinentes, para que as pesquisas obtenham o máximo de certeza quanto ao
conteúdo.
Estamos comprometidos em fornecer subsídios gratuitos para nossos leitores, incluindo
artigos, guias de estudo e outras ferramentas úteis para aprofundar o conhecimento sobre esses
tópicos.
Nós valorizamos a conexão com nossos leitores e estamos comprometidos em fornecer um
excelente atendimento aos que aqui buscam conteúdo. Se você tiver alguma dúvida sobre nossos
livros, artigos ou subsídios, por favor, não hesite em nos contatar.
Nosso trabalho visa a divulgação da maior parte deste material de forma gratuita. Para isso,
dentro do que está à disposição sem custos, obtemos o material para divulgação e tradução
principalmente nos portais que possuam preferencialmente arquivos gratuitos ou em domínio
público. No momento, o projeto possui mais de 500 publicações, entre artigos, capítulos de livros
e biografias. Além disso, já foram vendidos mais de 1500 livros dentre o material que
publicamos.
Toda ajuda ao projeto será bem-vinda. Acima de tudo, que Deus possa ser glorificado, e que
Ele abençoe sua vida com este material.
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