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PHILIPP MELANCHTHON

Conceitos Básicos da Teologia

PHILIPP MELANCHTHON

Conceitos Básicos da Teologia


Loci Praecipui Theologici 1559
Tradução de Paulo Matheus Souza de Souza

Porto Alegre, 2023.


Conceitos Básicos da Teologia.
Copyright © 2023 por Paulo Matheus Souza de Souza, Repositório Cristão.
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A obra original, “Loci Praecipui Theologici 1559” de Philipp Melanchthon (1497-1560), está no domínio público de acordo com
as leis de direitos autorais e é disponibilizada livremente para o público.
ISBN: 9786500839807
Capa: Portrait of Melanchthon, early 18th century, engraving and etching.
1ª edição (2023)
Tradução: Paulo Matheus Souza de Souza
Revisão: Daniele L. F. Souza

Repositório Cristão
Expandindo a sabedoria cristã para transformar vidas.
repositoriocristao.com
contato@repositoriocristao.com
Índice
Nota Introdutória
Prefácio da Edição Francesa de 1546
Do Autor
Aos Leitores Piedosos
Prefácio
1. Deus
2. A Criação
3. A Causa do Pecado e Contingência
4. A Força Humana e o Livre Arbítrio
5. O Pecado
6. A Lei Divina
7. O Evangelho
8. Graça e Justificação
9. As Boas Obras
10. A Diferença Entre o Antigo e o Novo Testamento
11. A Diferença Entre o Pecado Mortal e Venial.
12. A Igreja
13. Os Sacramentos
14. Predestinação
15. O Reino de Cristo
16. A Ressurreição dos Mortos
17. O Espírito e a Letra
18. As Calamidades da Cruz e o Verdadeiro Consolo
19. A Invocação de Deus, ou Oração
20. Os Ofícios Civis e Assuntos de Influência
21. Os Preceitos Humanos na Igreja
22. A Mortificação da Carne
23. Escândalo
24. A Liberdade Cristã
Apêndice I. Sobre o Casamento
Apêndice II. Definições de Termos
Phillipp Melanchthon
Sobre o Repositório Cristão
Nota Introdutória
Ao apresentar esta edição final latina de 1559 dos “Loci Praecipui Theologici”, intitulados
aqui como “Conceitos Básicos da Teologia,” é imperativo destacar algumas considerações
históricas acerca das edições anteriores, seu contexto e notas relevantes referentes a esta
tradução. A iniciativa de traduzir esta obra surgiu concomitantemente com o surgimento do
Repositório Cristão, em 2019. Inicialmente, contemplou-se a tradução da segunda versão alemã
de 1553 (publicada em 1555), e após verificar a disponibilidade e ferramentas adequadas, optou-
se por traduzir a versão latina final de 1559. No entanto, antes de adentrar nos detalhes dessa
obra, é apropriado uma breve apresentação do autor e uma análise das características do livro.
Primeiramente, é relevante situar o leitor a respeito da figura de Melanchthon. Apesar de
ainda ser conhecido como “o outro reformador de Wittenberg,” Philipp Melanchthon possuía um
pensamento distintivo. Embora tenha enfrentado desafios em manter suas posições, em
decorrência do amadurecimento ao longo de sua vida, seu comprometimento à causa da Reforma
e seus escritos abordando diversas temáticas e preocupações conferem a Melanchthon uma
importância singular no contexto do século XVI, que transcende o âmbito teológico.
No que concerne ao autor dos “Loci,” é importante salientar a abordagem que Melanchthon
adotou ao sistematizar os conceitos teológicos. Em relação a esse desafio, Sven Grosse oferece
uma perspicaz síntese na tradução desta mesma obra para o alemão, realizada em 2018[1]. Grosse
enfatiza o caráter filológico de Melanchthon, com ampla formação, ressaltando que ele não era
um indivíduo cuja educação se restringiu à teologia. Em seu cerne, encontramos o espanto
perante a vastidão do conhecimento e a transmissão desse saber como um ato de ensino. O
objetivo de Melanchthon era fortalecer a consciência humana, abordando questões de cunho
universal. Dessa forma, ele incorpora uma riqueza de experiências humanas da literatura clássica
pagã da Antiguidade a suas reflexões, fornecendo respostas cristãs. Isso confere à sua obra uma
amplitude na abordagem dos problemas e das questões, o que a torna relevante mesmo nos dias
de hoje para quem busca compreender a teologia cristã em sua essência. O escopo de sua obra é
tão abrangente que as questões abordadas pela teologia desde então, especialmente nos últimos
250 anos, podem ser interpretadas como objeções ou extensões do pensamento de Melanchthon.
Embora Melanchthon tenha se ligado inicialmente à causa luterana, notadamente por sua
autoria na Confissão de Augsburgo e na Apologia dessa confissão, sua influência se estendeu em
diversas direções. Seu impacto é evidente na tradição reformada, por meio da influência exercida
no Catecismo de Heidelberg, redigido por seu aluno Zacharias Ursinus, na tradição anglicana,
que se reflete nos Treze Artigos, posteriormente incorporados nos Trinta e Nove Artigos, e em
eventos como o Sínodo de Dort e a Confissão de Westminster, entre outros. Melanchthon
elaborou diversas declarações de fé e confissões, participou de várias disputas teológicas,
frequentemente representando Lutero, e manteve um esforço constante pela causa protestante.
Ele procurou manter relações cordiais com outros reformadores e também deixou seu legado nas
reformas educacionais na Alemanha. O metodista Clyde L. Manschreck, a quem devemos a
tradução inglesa dos “Loci” de 1555 para o inglês[2], lembrou-nos desta observação de Lutero:
“Martinho Lutero o aclamou como o maior teólogo que já existiu, e os ‘Loci’, disse Lutero,
devem ser estimados ao lado da Bíblia.”
É importante notar que Melanchthon não gozou de consenso entre os reformadores
posteriores, seus contemporâneos, ou mesmo com Lutero, embora este último nunca tenha o
contradito publicamente. De fato, sua reputação foi mais prejudicada do que elogiada pela
posteridade, especialmente no campo da teologia, como ilustra o luterano J.A.O. Preus em sua
nota introdutória à tradução inglesa dos “Locis” de 1543[3]. Isso se tornou evidente logo após a
morte de Melanchthon, quando seu nome não foi incluído como autor da Confissão de
Augsburgo e sua Apologia na Fórmula de Concórdia. Suas várias controvérsias, a maioria delas
ocorrendo dentro do próprio luteranismo, são alvo de diversas interpretações, mas suas
contribuições parecem receber uma avaliação mais positiva no contexto atual, principalmente
entre aqueles que consideram seu espírito como defensor da unidade da igreja e da ortodoxia
protestante.
Os “Loci Praecipui Theologici” são baseados nos estudos elaborados por Melanchthon a
partir de suas palestras sobre a Carta aos Romanos. Essas palestras foram inicialmente impressas
e distribuídas sem autorização, levando Melanchthon a revisar o conteúdo. A obra foi publicada
em 1521, marcando o surgimento da primeira teologia sistemática da Reforma.
Para compreender as edições latinas dos “Locis,” podemos adotar a classificação
apresentada por Michiel[4] (que consta no Corpus Reformatorum), que divide as edições em três
Eras (ou aetates): 1521 (prima aetas), 1535 (secunda aetas) e 1543 (tertia aetas). Vale ressaltar
que existem mais traduções disponíveis da versão de 1521, que é o texto mais curto e juvenil de
Melanchthon, em comparação com a versão de 1543, que é mais madura e refinada. Além disso,
existem duas versões em alemão, uma traduzida por Justus Jonas em 1535 e outra escrita pelo
próprio Melanchthon em 1555, conhecida como Heubtartikel Christlicher Lere, que representa,
de certa forma, um tratado diferente das versões em latim.
Portanto, a pressente edição possui similaridade com a versão de 1543, tertia aetas,
apresentando uma organização mais estruturada, com uma sequência mais lógica e clara em
comparação com as edições anteriores. Melanchthon reorganizou o conteúdo em tópicos
específicos e classificou-os de acordo com a doutrina da trindade, da criação, da redenção, da fé,
dos sacramentos e outros temas, refletindo o desejo de Melanchthon de responder às críticas de
oponentes católicos e reformados, bem como de esclarecer as posições teológicas luteranas em
questões diversas. Ele acrescentou seções inteiras sobre temas como predestinação e autoridade
da igreja, além de ampliar a discussão sobre tópicos como pecado original, justificação e
santificação.
É importante notar que, apesar do pioneirismo dos “Locis” em 1521, outras obras surgiram
na mesma época, como “Christianae religionis Institutio” de João Calvino (com sua última
versão em 1559) e “De vera ac falsa religione commentarius” de Zuínglio (1525). Além disso,
outros dois “Loci communes” foram escritos por Wolfgang Musculus em 1560 e por Peter
Martyr Vermigli em 1576. Também vale mencionar o comentário de Martin Chemnitz sobre os
“Locis” de Melanchthon.
O texto apresentado nesta edição busca adotar uma abordagem mais fluente, empregando
termos alinhados com a linguagem contemporânea. Isso é particularmente evidente no
tratamento das relações entre as pessoas da Trindade, refletindo nossa prática em traduções
anteriores das Escrituras. No entanto, respeitamos integralmente a estrutura original da escrita
adotada pelo autor. É importante observar que, embora a linguagem original seja geralmente bem
organizada e distintiva, ela pode, em alguns momentos, parecer um tanto condensada e
elaborada. No entanto, isso não deve constituir um obstáculo significativo para a compreensão
por parte do leitor comum.
Dado o paralelismo com a versão de 1543, nesta edição dos “Locis” foi incorporado o
prefácio da edição francesa de 1546, preparada por João Calvino. Além disso, incluímos mais de
150 notas de rodapé e dois apêndices abordando temas relacionados ao casamento e definições
de termos. Procuramos também destacar referências a figuras da antiguidade cristã e pagã, bem
como citar fontes sempre que possível.

Paulo Matheus Souza de Souza


Porto Alegre, outubro de 2023.
Prefácio da Edição Francesa de 1546[5]
Se este livro fosse impresso em latim, seria uma tarefa supérflua para eu incluir alguma
recomendação, e até mesmo poderiam me acusar de presunção e temeridade, visto que o autor é
tão conhecido entre os eruditos quanto qualquer pessoa no mundo hoje em dia. E, de acordo com
sua fama por seu conhecimento excelente, ele tem todo o crédito para dar testemunho dos livros
dos outros. Longe de precisar que recomendemos os dele. Mas, como ele não é tão conhecido
entre aqueles de nossa nação que não foram instruídos nas escolas, pareceu-nos aconselhável,
tanto para mim quanto para meus irmãos, informar os leitores sobre o fruto que podem colher do
presente livro, a fim de incentivá-los e dar-lhes coragem para aplicar seu estudo a ele. Deixarei
de falar sobre o homem e as graças singulares com as quais ele é adornado, pelas quais ele é
digno de ser honrado por todos aqueles que valorizam o que é de Deus. Apenas mencionarei o
livro. E, para resumir, o que é: você encontrará aqui um breve compêndio das coisas que um
cristão deve saber para se guiar no caminho da salvação. Pois aqui está declarado o que devemos
conhecer sobre Deus; como devemos servi-Lo; o que devemos crer em relação à Jesus Cristo;
por que Ele foi enviado por Deus, Seu Pai; que graça temos por meio d’Ele; onde devemos
fundar nossa esperança de salvação; como devemos invocar a Deus; o que é a verdadeira fé; o
que é o arrependimento; como devemos ser pacientes nas adversidades e onde está o consolo dos
cristãos; onde devemos procurar a Igreja; como ela deve ser governada e quem são seus
verdadeiros prelados; para que servem os sacramentos e como devemos usá-los; qual é o dever
que temos uns para com os outros, tanto com nossos superiores quanto com nossos súditos e
nossos semelhantes.
Eis em que o homem cristão deve se exercitar durante toda a sua vida, se deseja empregar
seu tempo em uma doutrina proveitosa. Ora, tudo isso está contido neste presente livro e é
exposto de tal maneira que tanto os grandes quanto os pequenos podem obter boa instrução e
benefício dele, desde que venham com um desejo sincero de aprender.
E, de fato, o que é louvável é que vejo que o autor, sendo um homem de profundo
conhecimento, não quis se envolver em disputas sutis nem tratar os assuntos com uma habilidade
tão elevada quanto lhe teria sido possível, mas se rebaixou o quanto pôde, atendendo apenas à
edificação. Certamente, essa é a maneira e o estilo que todos nós deveríamos adotar, a menos que
nossos oponentes nos obriguem com suas objeções a nos afastarmos desse curso. A simplicidade
é a maior virtude ao tratar da doutrina cristã. Esta é também a razão pela qual ele se absteve de
explorar certos pontos até o fim, para resolver o que muitos poderiam requerer. Pois ele se
contentou em dizer o que julgava necessário para a salvação das pessoas, deixando como que em
suspenso ou omitindo o que a ignorância ou a dúvida não tornariam perigosos. Como a questão
do livre arbítrio: sei muito bem que ele não dá uma resolução completa para satisfazer a todos.
Pois parece que ele reserva algo para o homem. A razão é que, tendo demonstrado o principal,
ele prefere suspender a discussão de questões que não lhe parecem tão necessárias para a
salvação dos cristãos. Ele tem isso como resolvido: que o entendimento humano é cego, de modo
que nossa razão não pode nos guiar a Deus ou ao conhecimento d’Ele, até que Deus nos ilumine
pela graça do Seu Espírito Santo. Da mesma forma, que a vontade humana é perversa e
corrompida, de modo que dela só podem emanar afetos maus, rebeldes a Deus e à Sua justiça, e,
portanto, desagradáveis a Ele, até que o Espírito Santo a reforme. Assim, vemos que todo bem
espiritual relacionado com nossa salvação é atribuído por ele apenas à graça de Deus, sem que o
homem tenha do que se gloriar em nada. No entanto, ele concede ao homem alguma liberdade no
que não ultrapassa a vida terrena, como se levantar e deitar, andar, seguir alguma ocupação, seja
de trabalho, estudo ou comércio. Por quê? Porque ele se contentou com o essencial, ou seja, em
ter humilhado o homem, mostrando-lhe que, por si mesmo, ele só pode errar e pecar, caindo em
confusão, e que todo o poder que ele tem para fazer o bem não é de sua natureza, mas da graça
de Deus. Embora ainda restrinja essa liberdade, que ele chama de civil, para mantê-la sob
controle, dizendo que Deus sempre reina supremo. Portanto, não há muito a se requerer nisso.
Mas foi bom informar os leitores sobre isso, para que ninguém se escandalizasse com coisas
triviais, compreendendo a intenção do autor.
Isso também se aplica à predestinação: visto que hoje em dia há muitos espíritos volúveis
que se entregam demais à curiosidade e não têm medida nesse assunto, ele preferiu prevenir esse
perigo, optando por tocar apenas no que era necessário para compreender, deixando o restante
como que enterrado, ao invés de se envolver em disputas confusas e complicadas das quais
geralmente não resulta nenhum benefício real para a instrução. Confesso que nada do que Deus
revelou por meio das Escrituras deve ser suprimido, aconteça o que acontecer. No entanto,
aquele que busca ensinar em benefício dos leitores merece ser desculpado se se detém no que ele
considera mais útil, passando rapidamente ou deixando de lado o que ele não espera trazer muito
proveito.
Quanto aos sacramentos, sua modéstia o levou a mencionar o Batismo e a Santa Ceia e, em
terceiro lugar, a absolvição. Porque o nome “absolvição” é comum onde ele está, temendo
provocar controvérsia, ele se ajustou ao uso comum. No entanto, não é sua intenção colocar a
absolvição no mesmo nível que a Ceia e o Batismo, atribuir-lhe o mesmo poder, impor a mesma
necessidade aos cristãos de observá-la, como se fosse um sacramento estabelecido por Jesus
Cristo. Em vez disso, ele quis usar uma permissão ou tolerância em relação a isso. Isso pode ser
percebido pela razão que ele alega. É porque ele o considera um bom e útil regulamento. Sim,
mas isso não é suficiente para torná-lo um sacramento.
Se os leitores mantiverem tanta modéstia ao julgar o livro quanto o autor teve ao escrevê-lo,
tudo ficará bem, e nada os impedirá de se beneficiar muito com ele. Mas o problema é que a
maioria das pessoas, ao ler um livro, não busca tanto a instrução quanto a oportunidade de
criticar. Se encontrarem apenas uma palavra fora do lugar, isso para eles é como um soluço que
os impede de colher qualquer fruto. Além disso, esquecem todo o bem que está nele e triunfam
sobre o que lhes causa tropeço. Pior ainda, os mais ignorantes são os mais audaciosos. Outros
são tão delicados que basta um pequeno detalhe para tirar completamente o gosto deles. De
modo que, por uma sentença que não lhes agrade, rejeitarão um livro inteiro, mesmo que haja
mil boas sentenças nele, das quais seria muito benéfico para eles se detivessem. Não há dúvida
de que isso é uma artimanha do diabo para desviá-los de receber a boa doutrina que lhes é
apresentada. Portanto, aquele que deseja ser ensinado por este livro deve ser dócil, desculpando o
que poderia impedi-lo de prosseguir na busca da pura verdade de Deus, à qual somos chamados a
aderir, usando as obras dos homens como auxílio para alcançá-la.
João Calvino,
Genebra, 1546.
Do Autor

Aos Leitores Piedosos


É proveitoso ter testemunhos sólidos e claros de cada um dos artigos da doutrina cristã,
dispostos de maneira organizada, como se fossem propostos em uma tabela. Isso permite que,
quando as mentes debatem entre si ou são assoladas por dúvidas, as convicções se tornem
evidentes diante delas, para instruir, elevar, fortalecer e consolar aqueles que estão perturbados.
Estes testemunhos são exercícios de fé piedosa e necessários, e são bem conhecidos. O Salmo
119. 105 diz: “Lâmpada para os meus pés é a Tua palavra e luz para o meu caminho”.
Para este uso doméstico, eu inicialmente compilei essas passagens e, vendo que, em tempos
turbulentos, uma explicação ocasional era necessária, ocasionalmente adicionei algumas
descrições ou divisões. Quando essas compilações se espalharam nas mãos de muitos, elas
precisaram ser revisadas e expandidas. Não as criei ou compilei com ambição, desavenças,
emulação ou com o objetivo de promover controvérsias. A princípio, eu fiz isso para minha
própria instrução e, em seguida, para auxiliar os estudos honestos e piedosos daqueles que liam
essas passagens. No entanto, não direi mais nada sobre minha intenção, exceto que espero que
tenha sido aprovada por Deus e que minha consciência a coloque acima das acusações de Eck,
Cochlaeus, Alphonso[6] e muitos outros que aplaudiram essas passagens.
Mas, de fato, por várias razões, percebi que uma explicação da doutrina da Igreja era
extremamente necessária. E, embora seja necessário, é repleta de perigos iminentes. Com
cuidado e diligência moderada, consultei os eruditos, procurei a doutrina da Igreja e esforcei-me
para expor a verdade com a maior clareza possível. Não inventei novas opiniões, e sinto que não
há pecado maior na Igreja de Deus do que brincar com novas opiniões imaginárias, afastando-se
das Escrituras Proféticas e Apostólicas e do verdadeiro consenso da Igreja de Deus. No entanto,
sigo e abraço a doutrina da Igreja de Wittenberg e daquelas conectadas a ela, que
indiscutivelmente constituem o consenso da Igreja universal de Cristo, isto é, de todos os
eruditos na Igreja de Cristo. Paulo deseja que haja julgamentos sobre a doutrina na Igreja para
que a verdade seja mantida incorrupta e que a harmonia não seja perturbada sem razão.
Reconheço, no entanto, a fraqueza e imperfeição de meus escritos. Embora eu me esforce para
falar de maneira adequada e clara, às vezes, em meio a um volume tão grande e em um espaço
tão limitado, algo pode ser dito de maneira obscura ou inconveniente. Portanto, não fujo das
críticas de nossas igrejas.
Por essa razão, eu realmente considero essas passagens como a verdadeira Igreja de Deus e
as reverencio com sinceridade de coração. Não me separarei delas e submeto meus discursos,
escritos e ações ao julgamento delas. Muitas vezes, desejei que outros, que se destacam em
erudição e discernimento, em conselho comum e comparação de opiniões sobre os próprios
assuntos e formas de expressão, elaborassem com autoridade apropriada uma obra que
abrangesse as principais matérias da doutrina da Igreja em ordem. Eu diria que esse assunto
deveria ser incumbido aos príncipes piedosos e sábios, especialmente em meio à confusão dos
tempos. No entanto, vemos que a Igreja não é governada por conselhos humanos. Portanto, eu
oro ao Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, por amor a Seu Filho, nosso Senhor
Jesus Cristo, que quis ser uma oferta por nós, reúna, governe e preserve para si a Igreja. Que Ele
dirija as mentes dos que ensinam e aprendem, fortaleça os estudos e incline muitos a amar a
verdade e a paz. Tendo Cristo orado por isso em Sua agonia, unamo-nos às orações e gemidos
d’Ele, para que nossos pedidos e suspiros sejam acrescentados às petições do nosso Pontífice,
que disse: “Santifica-os na verdade; a Tua palavra é a verdade” (João 17. 17). Que a luz da
verdade, ou seja, do Teu Evangelho, não seja extinta. E Ele acrescenta (João 17. 21): “Que todos
sejam um, assim como nós somos um”. Primeiro, que eles se unam a nós, depois, que estejam em
harmonia uns com os outros e consultem o verdadeiro bem da Igreja, com ações justas. Exorto o
rebanho de pastores e estudantes a pensar na posição que Deus os colocou e a reconhecer que são
seminários da Igreja de Deus. Pois, dentre eles, o Filho de Deus que reina à direita do Pai eterno,
dá dons aos homens, ou seja, pastores e mestres, especialmente para preparar ministros do
Evangelho nas escolas. Ele quer que esses ministros sejam guardiões das Escrituras Proféticas e
Apostólicas e dos verdadeiros ensinamentos da Igreja. Portanto, prestemos o máximo de
diligência e fé em todas as coisas, e ofereçamos a Deus, à Igreja e às gerações futuras o cultivo, o
amor, a proteção e a transmissão da verdade incorrupta.
Wittenberg, ano de 1543.

Prefácio
Os seres humanos são criados por Deus de tal forma que entendem os números e a ordem, e
são grandemente auxiliados no aprendizado de ambas as coisas, números e ordem. Portanto, a
ordem das partes é exibida com atenção especial no ensino das artes, e os inícios, progressões e
objetivos são indicados. Eles chamam essa forma de análise de método em filosofia, mas é no
modo como se estabelece no ensino da Igreja naquelas artes que são construídas sobre
demonstrações. Pois o método demonstrativo procede daqueles que estão sujeitos aos sentidos e
dos primeiros dados, que se chamam princípios. Aqui no ensinamento da Igreja só se busca a
ordem, não aquele método demonstrativo. Pois esta doutrina da Igreja não é derivada de
demonstrações, mas do que foi dito, que Deus entregou ao gênero humano por testemunhos
definidos e claros, pelos quais ele se revelou e sua vontade com imensa bondade.
Assim como na filosofia certas coisas são procuradas e distinguidas das incertezas, e as
causas da certeza são a Experiência, os Princípios e as Demonstrações universais; assim, na
doutrina da Igreja, a certeza da revelação de Deus é a causa, e devemos considerar quais opiniões
foram emitidas por Deus. Como é certo para qualquer um, esta frase: “Duas vezes quatro são
oito”, pois é natural conhecer como princípios; tenhamos, pois, certos e inabaláveis artigos de
fé, as ameaças e promessas divinas, para que tenhamos a certeza de que, quando ele faz
penitência, os pecados são perdoados por amor do Filho de Deus, que ele é ouvido e se torna
herdeiro de vida eterna. Mas as causas da certeza são diversas. A mente vê o julgamento dos
números em seu próprio julgamento. Mas os artigos de fé são certos por causa da revelação, que
foi confirmada por certos e claros testemunhos de Deus, como a ressurreição dos mortos e
muitos outros milagres. Mas como as coisas são colocadas fora do julgamento da mente humana,
o consentimento é mais fraco, o que ocorre porque a mente é movida por esses testemunhos e
milagres, e é auxiliada pelo Espírito Santo a concordar.
Mas, embora a filosofia ensine que não há dúvida sobre as coisas que não são descobertas
pelos sentidos, elas não são princípios, nem são confirmadas por demonstração, de modo que
aqui é permitido duvidar ou reter[7], se a cavidade da nuvem sozinha é a razão pela qual o arco-
íris é o arco; mas saibamos que a doutrina da Igreja transmitida por Deus é certa e imutável,
embora não seja detectada pelos sentidos, nem tenha nascido conosco como princípios, nem deve
ser encontrada por demonstrações, mas por uma questão de certeza é a revelação de Deus, que é
verdadeira.
Portanto, não devemos admitir essa dúvida filosófica ou efêmera[8] à doutrina da Igreja
transmitida por Deus. Caso contrário, fica em nossas mentes nessa corrupção da natureza
humana uma grande confusão de dúvidas sobre Deus, e tais opiniões devem ser resistidas e
combatidas. Não há dúvida aqui para ser apoiada ou elogiada, mas que há certo assentimento à
fé, uma evidência[9], isto é, certeza, pela qual a mente, convencida pelos testemunhos divinos,
abraça com mais firmeza a voz divina sobre coisas que não são visíveis, como diz a Epístola aos
Hebreus.
Estas coisas devem ser ditas de antemão, para que possamos pensar desde o início que certas
coisas, firmes e inalteradas, são ensinadas na Igreja, como diz o Filho de Deus (Marcos 13. 31):
“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão”. Então pensemos também que a
fé é um assentimento firme, que abarca toda a doutrina do Evangelho, que não é, como na
Academia de Arcesilau[10], jogos de opiniões ambíguas e disputas, cujas blasfêmias Deus pune
com castigos presentes e eternos.
Algo não deve ser dito sobre a ordem das partes da doutrina. Os próprios livros proféticos e
apostólicos são escritos na melhor ordem e entregam os artigos de fé na ordem mais adequada.
Pois há uma série histórica nos livros proféticos e apostólicos; eles se originam da primeira
criação e condição da Igreja, e a sequência de eventos de todos os tempos, desde a criação da
monarquia até o reinado de Ciro, está contida nesses livros proféticos. Nesta série são relatadas
muitas reconstruções da Igreja, e a doutrina da lei e a promessa do Evangelho estão espalhadas
nas narrativas. Então os Apóstolos são testemunhas de Cristo sendo apresentado, nascido,
crucificado e ressuscitado. São eventos históricos. E nos sermões de Cristo estão contidos os
artigos de fé, a explicação da Lei e do Evangelho. Há também as disputas de Paulo, que, como
artesão, organizou a discussão na Epístola aos Romanos sobre a diferença entre a Lei e o
Evangelho, no que diz respeito ao Pecado, e a Graça ou Reconciliação, pela qual somos
restaurados à vida eterna.
Mas mesmo que se perceba esta ordem, não há necessidade de comentários, ou nossos livros,
ou similares, mas sim porque Deus quer que a voz daqueles que ensinam na Igreja soe, como se
diz do Ministério do Evangelho, em Efésios 4, que o trabalho de ensino não é em vão. Nós não
produzimos coisas novas ou materiais, como Hesíodo[11] entregou de outra forma, mas
consideramos os pais Sem, Jafé; os hereges inventam coisas novas não transmitidas pelos
apóstolos, mas intérpretes piedosos recitam de boa fé as sentenças recebidas por Deus no relatos
proféticos e apostólicos. E como os iletrados não entendem o gênero da fala em toda parte e não
veem imediatamente a ordem das coisas, eles devem ser lembrados pela voz dos intérpretes
sobre o gênero da fala e a ordem das coisas. E como muitas corrupções foram inventadas e
concebidas de tempos em tempos, pastores e doutores piedosos são testemunhas de opiniões
verdadeiras, aceitas com certa autoridade e refutando falsas interpretações. Por essas causas,
Deus preserva e restaura o ministério do Evangelho e os estudos nas igrejas e nas escolas, para
que sejamos guardiões dos livros dos Profetas e Apóstolos e testemunhas da verdadeira
interpretação; do Evangelho, e como Efésios 4 (v. 14) diz, pois, as igrejas, como que impelidas
pelos ventos e dispersas, tendo perdido sua verdade, podem ser enredadas em vários erros, como
é frequentemente o caso. Os pagãos, tendo perdido a luz da doutrina de seus pais, agitaram-se
com fúrias horríveis e variadas; praticaram sacrifícios humanos, adoraram seus sacerdotes e
prostituíram suas esposas e virgens para aplacar os ídolos. Então, quantos tipos de fúria havia na
seita de Marcião e maniqueístas, quanta blasfêmia, luxúria e sedições! Que variedade de frenesi
há agora com os anabatistas, que têm muito contato com os maniqueus! De Ário surgiu a loucura
dos maometanos. Que tipo de frenesi há na invocação dos mortos, na adoração de estátuas, na
venda da missa, na defesa da lei sobre o celibato e muitas outras coisas que são defendidas por
Maier, Pígio[12] e parasitas semelhantes dos pontífices!
Que os piedosos considerem estes exemplos da fúria de todos os tempos e, sendo lembrados
pela voz daqueles que são corretamente ensinados, abracem com ambas as mãos e com todo o
coração os livros proféticos e apostólicos entregues por Deus e anexem os comentários e
testemunhos de uma Igreja mais pura, como os Credos Apostólico e Niceno, para que retenham a
luz do Evangelho, e não caiam em tal frenesi; deixe-os cair, pois, como eu disse, eles seguem a
luz apagada do Evangelho. Aqueles que com zelo piedoso lerem os livros e credos proféticos e
apostólicos, e buscarem a opinião da Igreja mais pura, julgarão facilmente por quais narrativas
humanas podem ser auxiliados e entenderão que vantagem trazem às explicações dos piedosos,
corretamente e habilmente escritos e testemunhos retirados de fontes. Se estes forem piedosos,
Deus guiará o Espírito Santo neste estudo e julgamento, para que não sejam enganados pelos
truques do diabo, mas sejam influenciados a reconhecer, abraçar e reter opiniões verdadeiras.
Como Paulo diz (Filipenses 2. 13 - KJL): “Pois é Deus quem opera em vocês tanto o querer
como o efetuar, segundo a Sua boa vontade”. Quando se é inflamado pela vontade de buscar a
verdade com zelo piedoso, ela também a ajudará e a guiará, para que a obra seja bem-sucedida
para nós e para os outros.
1. Deus
A humanidade foi criada e, desde então, redimida para ser a imagem e o templo de Deus,
celebrando-O. Pois Deus deseja ser reconhecido e louvado, e uma clara e sólida compreensão de
Deus teria florescido nas mentes humanas se a natureza humana tivesse permanecido íntegra.
Além disso, após a queda de Adão e Eva, não há obra maior e melhor para a humanidade do que
o conhecimento verdadeiro de Deus, a invocação e a pregação. Como o Salmo 149: “Seu louvor
está na congregação dos santos”, e o Salmo 118: “Não morrerei, mas viverei e contarei as obras
do Senhor”. Portanto, a preocupação primordial e suprema do ser humano deve ser aprender a
verdadeira doutrina sobre Deus, como o primeiro mandamento exige em particular. No entanto,
as mentes humanas vagueiam nas profundezas sombrias dessa corrupção da natureza,
questionando se Deus existe, se há providência divina e qual é a vontade de Deus. Embora haja
testemunhos claros e sólidos que mostrem que Deus existe, que Ele ordena a obediência e que
castiga os crimes atrozes com severidade nesta vida, as mentes humanas são atormentadas por
dúvidas terríveis. Isso ocorre porque muitas vezes vemos que tanto os justos quanto os ímpios
são afligidos por grandes calamidades.
E por mais que a mente humana reconheça que Deus está punindo, ela não conhece nada de
reconciliação sem a revelação da promessa divina. Portanto, quando estamos sobrecarregados
com punições, as pessoas argumentam que elas acontecem por acaso ou se perguntam por que
Deus sobrecarrega essa natureza fraca com tantas misérias. Péricles pensa que a peste ática
surgiu principalmente por acaso ou por contágio material, mas não reconhece que é um castigo
divino. Édipo reconhece que está sendo punido por Deus, mas não sabe absolutamente nada
sobre o perdão dos pecados.
Portanto, sendo tão grande a escuridão da mente humana, reconheçamos que é um imenso
benefício que Deus se revelou com uma voz clara e com certos testemunhos desde o início,
depois que o gênero humano foi fundado e depois que sua igreja foi fundada: que Ele entregou
com Sua voz a lei e a promessa de reconciliação, e acrescentou enormes milagres, como a
salvação no dilúvio, a destruição de Sodoma, a saída do povo de Israel do Egito e muitas
ressurreições dos mortos.
Por esses ilustres testemunhos, busquemos Deus revelado, e nos separemos dos pagãos e de
todos os ignorantes do Evangelho, e em nossa invocação consideremos qual Deus invocaremos,
onde e por que Ele se revelou; não vamos vagar em nossas mentes, como os pagãos ou os que
correm para as estátuas, não pensemos negligentemente ou com frieza na revelação de Deus, mas
reconheçamos que é um grande benefício e um testemunho certo que Ele quer nos conceder.
Assim nos leva à revelação de Paulo em 1 Coríntios 1 (v. 21): “Quando o mundo não conheceu o
Deus sábio por meio da sabedoria, aprouve a Deus salvar aqueles que creram por meio de
pregações insensatas”, isto é: Porque suas mentes estão vagando e eles não estão familiarizados
com esta ordem tão bela, que foi instituída com muita sabedoria nas criaturas, nos lembrando de
Sua obra, mas ainda assim duvidam se isso é providência, se somos recebidos por Deus, ouvidos,
consolados; a voz do Evangelho foi emitida, pela qual Deus se revelou, e ainda assim a maior
parte dos homens trata isso também como um mito. Mas alguns são alcançados, e estes
aprendem a reconhecer corretamente e a invocar Deus corretamente, e recebem vida eterna,
justiça, glória etc.
Assim Cristo nos conduz ao Deus revelado. Quando Filipe pediu para ser mostrado o Pai,
Ele o repreendeu severamente e o retirou daquela especulação e disse (João 14. 9): “Quem Me
vê, vê o Pai”. Ele não quer que busquemos a Deus com especulações errantes, mas quer que
nossos olhos se fixem nesse Filho revelado e dirija nossa invocação a esse eterno Deus Pai, que
se revelou enviando esse Filho e dado o Evangelho e que, por causa deste Filho Mediador, nos
recebe e nos ouve. Assim, desde o princípio, Deus, procedendo de sua sede secreta para nossa
salvação, revelando-se e conversando familiarmente conosco, deu algumas palavras e
testemunhos, aos quais Ele ligou as mentes dos homens de tal maneira que eles determinaram
que isso era verdadeiramente Deus, o eterno criador, que se revelou por esta voz e este
testemunho. Assim, no primeiro mandamento, ele liga o povo à palavra que soou no monte Sinai
e à saída do Egito (Êxodo 20. 2): “Eu sou o Senhor, seu Deus, que lhe tirei da terra do Egito”.
Todas as coisas maravilhosas que aconteceram no êxodo, que eram evidências da presença de
Deus, estão completas. Este mesmo Deus deu promessas sobre o Mediador, por causa de quem
os Pais da Igreja desde o princípio sabiam que seriam ouvidos. Assim foi vinculada sua
invocação a este Deus, que se manifestou na libertação do Egito, e deu as promessas do
Mediador, como Davi diz (Salmo 110. 1): “O Senhor disse ao meu Senhor, sente-se à minha
direita. Tu és um sacerdote para sempre” etc. Assim, já tendo nos apresentado, crucificado e
ressuscitado Cristo e reconhecido à luz do Evangelho, apresentemos este testemunho a nós
mesmos, olhemos para este Filho e aprendamos estas duas coisas: Quem é Deus e qual é a sua
vontade, e separemos com sabedoria e fervor a nossa invocação do pagão, do turco, do judeu.
Pois, sobretudo, a verdadeira invocação difere da falsa em duas questões gravíssimas: a questão
da essência e a questão da vontade. Embora os turcos digam que invocam um Deus, o fundador
do Céu e da Terra, eles se desviam do Deus verdadeiro, porque negam que este seja o Deus que
enviou o Filho Mediador; portanto, eles não invocam corretamente. Pois é uma regra eterna e
imóvel, João 5 (v. 23): “Quem não honra o Filho não honra o Pai”. Primeiro, portanto, os turcos
estão enganados sobre a essência de Deus, porque imaginam seu próprio Deus, que não é o Pai
de Jesus Cristo.
Em segundo lugar, eles se enganam sobre a vontade: quando ignoram as promessas e negam
que o Filho é o Mediador, permanecem em perpétua dúvida e não podem determinar que serão
recebidos por Deus e ouvidos. Mas aqueles que vivem nessa dúvida não invocam, mas fogem de
Deus e se precipitam para o desprezo de Deus ou para o eterno desespero e blasfêmia.
Ao contrário, a Igreja de Deus afirma que este é Deus, o criador das coisas, que se revelou
enviando este Filho, dando o Evangelho e publicando os enormes testemunhos que estão listados
na história profética e evangélica. Ele primeiro julga a essência de Deus, não pela imaginação
humana, mas pela palavra de Deus transmitida por certas evidências. Então da vontade sabemos
com certeza que o Filho de Deus foi designado Mediador por um plano maravilhoso e
indescritível, e que temos certeza de receber e ouvir nossas petições por causa desse Mediador.
Considerando essas diferenças de início, que devem ser pensadas diariamente na invocação,
entender-se-á mais corretamente como Deus deve ser buscado, reconhecido e invocado, do que
por especulações ociosas, que muitos acumularam sem caminho nos comentários de Lombardo.
Agora que podemos ter alguma descrição de Deus, vou comparar duas: uma mutilada por
Platão, a outra completa, que foi transmitida na Igreja e é aprendida pelas palavras do batismo.
Isto é platônico: DEUS É A MENTE ETERNA, A CAUSA DO BEM NA NATUREZA. E
embora essa descrição platônica seja composta de maneira tão erudita, que é difícil para o olho
destreinado julgar o que está faltando, mesmo porque ela ainda não descreve Deus da maneira
que ele mesmo se revelou, outra descrição mais clara e mais próxima é necessária. Estas são as
palavras: “Deus é a mente eterna”, isto é, a essência espiritual, inteligente, eterna, “a causa do
bem na natureza”, isto é, o verdadeiro, bom, justo, onipotente fundador de todas as coisas boas e
de toda a ordem na natureza e da natureza humana a uma certa ordem, isto é, a uma certa
obediência. Este todo complexo pertence a Platão. Mas esses ainda são os pensamentos da mente
humana, que, embora verdadeiros e eruditos, e nascidos de demonstrações firmes, ainda assim
devem ser acrescidos, como o próprio Deus se revelou. Seja este o segundo registro:
“Deus é uma essência espiritual, inteligente, eterna, verdadeira, boa, pura, justa,
misericordiosa, livre, de imenso poder e sabedoria, o Pai eterno, que desde a eternidade gerou o
Filho à sua imagem, e o Filho é a imagem coeterna do Pai, e o Espírito Santo procede do Pai e do
Filho, assim como a divindade foi revelada por uma certa palavra, que o Pai eterno com o Filho e
o Espírito Santo fundou e preserva o céu e a terra e todas as criaturas, escolheu para si a Igreja,
para que por ela esta única e verdadeira divindade seja reconhecida por certos testemunhos e pela
palavra transmitida aos profetas e apóstolos, invocado e adorado de acordo com essa palavra
transmitida por Deus, e todos os adoradores de outros deuses são condenados, e que esta
verdadeira divindade deve ser celebrada na vida eterna”.
Essa descrição recita mais de perto quem é Deus e nos leva à revelação divina, pois essa
doutrina sempre foi transmitida na Igreja. O primeiro capítulo de Gênesis testifica que Deus
compreendeu esta essência, pois diz: “Deus disse”. Agora concorda-se em dizer que existe uma
essência inteligente, não bruta, e que é uma essência boa, pura, justa, e o livre arbítrio é
testemunhado pela criação do homem, sobre o qual, tendo sido criado à imagem do divino, Deus
imprimiu a informação que prescreve o bom, justo e ordenado, e acrescentou a liberdade da
vontade, ainda que esses bens depois da queda de seus primeiros pais tenham sido deformados.
Além disso, que a essência é eterna e onipotente, a própria criação testifica, da qual se diz
(Gênesis 1. 1): “No princípio Deus criou o céu e a terra”.
Mas as três pessoas, embora sejam mostradas mais obscuramente no mesmo capítulo, são,
no entanto, gradualmente reveladas com mais clareza. É dito que o Pai gerou o Verbo, que é a
imagem do Pai eterno. E do Espírito Santo é expressamente dito: “E o Espírito do Senhor se
movia sobre as águas”. Mas depois uma doutrina mais ilusória foi apresentada aos Pais e
profetas. Davi e Isaías colocam claramente o Messias acima dos Anjos e de todas as criaturas e O
chamam de Deus, como no Salmo 2 (v. 7): “Tu és Meu filho”, etc. E no Salmo 45 (v. 12): “E o
Rei desejará a sua formosura, porque Ele é o seu Deus, e você O adorarás”. E Isaías 9 (v. 6):
“Um menino nos nasceu, e um Filho nos foi dado, e Seu nome será Deus Forte, Pai da
eternidade”.
Finalmente, no Novo Testamento, as três pessoas ficaram muito claras, como quando no
batismo de Cristo o Pai disse: “Este é Meu Filho amado”. O filho é visto de pé abertamente no
rio. Mas o Espírito Santo habita no Filho de forma manifesta. Olhemos para esta revelação, e
separemos nossos pensamentos sobre Deus e nossa invocação do pagão, turco, judeu, e
invoquemos este Pai eterno, que se revelou ali enviando seu Filho Jesus Cristo e manifestado
pelo Espírito Santo, juntamente com o Filho e o Espírito Santo, o criador e sustentador das
coisas. Com frequências essas coisas devem ser lembradas para a invocação. Mas como as
pessoas devem ser distinguidas será dito mais tarde; primeiramente, de alguma forma, o restante
da descrição deve ser esclarecido.
Eu disse que as criaturas foram criadas pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo, e isso
também é transmitido aqui e ali no Antigo e no Novo Testamento, como em João 1 (v. 3) do
Verbo: “Todas as coisas foram feitas por meio d’Ele”. E do Espírito Santo: “O Espírito do
Senhor pairava sobre as águas”. Portanto, deve-se manter sempre arraigada na mente a regra de
que a criação e a preservação das coisas é obra de toda a Trindade, o eterno Pai, Filho e Espírito
Santo.
Finalmente, na descrição de Deus, menciona-se a Igreja, para que nossas mentes fiquem
conectadas a esse Deus, que se revelou na Igreja, e saibam que Ele é verdadeiramente o fundador
das coisas, que, por Sua palavra, se revelou por certos testemunhos desde o princípio do mundo.
Deixe-os também saber que esta é a maneira de sentir sobre Ele, a forma como Ele se revelou.
Os pagãos e os turcos também se gloriam de invocar aquele Deus que criou o céu e a terra, mas
se gloriam falsamente, porque suas mentes estão vagando e não querem ouvir o fundador se
revelar por sua Palavra e por Seu Filho enviado. Portanto, eles se desviaram do verdadeiro
fundador e imaginaram fundadores para si mesmos em suas especulações. Então, em cada
pensamento sobre Deus e em cada invocação, que as mentes olhem para Cristo enviado em
carne, crucificado e ressurreto, e decidam que este é verdadeiramente o Deus fundador, que
enviou este Filho e deu o Evangelho à Sua igreja.
Percorramos os detalhes da descrição, na qual também podemos saber que essas virtudes,
que atribuímos a Deus, não são acidentes nele, assim como a sabedoria, a justiça e a bondade são
acidentes e coisas mutáveis em um homem ou em um anjo; mas, assim como o poder de Deus
não se distingue da essência, nem é outra coisa, assim também a sabedoria, a verdade, a justiça e
a bondade de Deus não são outras coisas, mas são a própria essência, que é algo vivo que
subsiste em si mesmo, inteligente, eterno, onipotente, bom, justo.
Para que a Igreja tenha à vista esta descrição de Deus e distinta das opiniões pagãs, Cristo
nos recomendou na primeira e mais conhecida cerimônia: “Eu te batizo em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo”, isto é: “Dou testemunho, por meio deste batismo, do mandamento de
Cristo, que sejais recebidos por Deus, o criador de todas as coisas, o Pai eterno, seu Filho Jesus
Cristo e o Espírito Santo, a quem reconhecereis ser Deus apaziguado por Jesus Cristo, o Filho do
Pai eterno, e com esta confiança invocareis aquele que vos governará com o Espírito Santo e vos
vivificará para a vida eterna”, como registram as promessas divinas (Joel 2. 28): “Derramarei o
Meu Espírito sobre toda a carne”, etc. E Cristo disse em João 14 (v. 16): “Eu pedirei ao Pai, e ele
vos dará outro Intercessor, o Espírito da verdade”.
Portanto, pensando em Deus, seja ensinando ou invocando, proponhamos a nós mesmos a
doutrina e o testemunho do Batismo, e não apenas reflitamos sobre o número, mas sobre as
razões pelas quais o Filho foi enviado, sobre a promessa de reconciliação, sobre o maravilhoso
governo dos santos, que são defendidos por Cristo contra o diabo e são milagrosamente
vivificados pelo Espírito Santo. Pois, embora o diabo, que é um assassino, ataque cada um com
tramas assombrosos, a fim de derrubar aqueles que são arrancados de Deus, contudo, Cristo, por
outro lado, defende suas ovelhas, por mais fracas e aflitas que sejam, como Ele diz (João 10. 27):
“Minhas ovelhas ouvem Minha voz, e ninguém as arrebatará da Minha mão”. Ao mesmo tempo,
portanto, pensemos nos maravilhosos favores de Deus concedidos por causa do Filho, sempre
que recitamos as palavras do Batismo.

Testemunho da unidade de Deus


Há uma essência divina eterna, de acordo com a descrição, o Pai eterno, o Filho, a imagem
do Pai e o Espírito Santo. E as pessoas são distinguidas sempre que a divindade é descrita em si
mesma. Mas quando as criaturas são pensadas, menciona-se a unidade da essência eterna, como
em Deuteronômio 6 (v. 4): “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. Que os
piedosos observem o apelo. Eu disse que a invocação da Igreja deve ser distinguida da pagã. É
por isso que o povo de Israel dá a Deus a denominação especial Jeová, a fim de distinguir o
verdadeiro Deus criador, que se revelou neste povo, dos ídolos e divindades fictícias dos pagãos.
Deuteronômio 4 (v. 35): “Para que vocês saibam que o Senhor é Deus, e não há outro além
d’Ele”, isto é, este Deus revelado neste povo de Israel é o único Deus. Deuteronômio 32 (v. 39):
“Vejam que sou eu apenas e não há outro além de mim”. Isaías 44 (v. 6): “Assim diz o Senhor,
rei de Israel e seu redentor, o Senhor dos exércitos: Eu sou o primeiro e o último, e além de mim
não há Deus”. Isaías 45 (v. 5, 7): “Eu sou Deus, e não há outro além, não há Deus além de mim”;
“Eu sou Deus, e não há outro, formando a luz e criando as trevas”. Também: “Não há outro Deus
além de Mim, não há Deus justo e salvador além de Mim. Voltem-se para Mim e serão salvos,
todos os confins da terra, pois Eu sou Deus, e não há outro”. 1 Coríntios 8 (v. 4): “Sabemos que
não há ídolo no mundo e que não há outro Deus senão um”. Pois, embora existam aqueles que
são chamados deuses, seja no céu ou na terra, assim como há muitos deuses e muitos senhores;
contudo para nós há um Deus Pai, de quem todas as coisas vêm, e nós n’Ele; e um só Senhor
Jesus Cristo, por quem são todas as coisas, e nós por Ele. Efésios 4 (v. 6): “Um Deus e pai de
todos, que está acima de tudo e por meio de todos”.

SOBRE AS TRÊS PESSOAS DA DIVINDADE


Neste artigo devo ter estabelecido o que significa o termo Pessoa. Em primeiro lugar,
portanto, dou esta definição adequada a este artigo: Uma pessoa, como a Igreja fala neste artigo,
é uma substância individual, inteligente e incomunicável. É bastante evidente que os antigos
escritores da Igreja costumavam distinguir entre esses dois termos, essência e substância[13], e
dizer que a essência é um, ou seja, a essência do eterno Pai, Filho e Espírito Santo, mas três
únicos, isto é, três verdadeiramente subsistentes, não fictícios, não perecíveis, não confusos, mas
distintos ou singularmente inteligentes. Em vez dessa palavra, os latinos usavam o nome
Personae (Pessoas), e embora a palavra grega ὑ πόστασις (Hipóstase)[14] seja ilustre, ainda
assim, porque a impetuosidade dos temperamentos muitas vezes perturba o que é dito com razão,
também surgiram brigas sobre este termo. Os gregos, portanto, cessaram e, seguindo os latinos,
começaram a dizer os três πρόςωπα[15] também neste lugar. Mas deixando de lado as disputas
sobre os termos da Igreja, mantenhamos fielmente a opinião da Igreja e usemos as palavras que
já são costumeiras e aceitas na Igreja sem ambiguidade. Serveto, um homem fanático, brincou
com a palavra Personae, e argumentou que ela significava para os latinos uma distinção de
hábito ou ofício, pois dizemos que Roscium (Orvalho) às vezes apoia a pessoa de Aquiles, e às
vezes apoia a pessoa de Ulisses, ou a pessoa do cônsul é diferente da pessoa do servo, como diz
Cícero: “É ótimo em uma república proteger a pessoa do príncipe”. E este antigo significado do
termo é colocado de forma rasteira para o artigo sobre as três pessoas da Divindade. Mas
evitemos e detestemos esses truques ímpios, e saibamos que neste artigo falamos da Igreja de
maneira diferente, e que uma pessoa é chamada de substância individual, inteligente e
incomunicável. E é útil neste pensamento olhar frequentemente na mente para o batismo de
Cristo, onde as três pessoas são mostradas em ilustre discriminação. O pai soa esta voz: “Este é
Meu filho amado”. O Filho é visto de pé no rio, e o Espírito Santo é enviado em forma visível. A
esta demonstração devem ser adaptados os testemunhos firmes que nos dizem quem e o que é o
Filho, e quem e o que é o Espírito Santo.
Primeiro, portanto, que esta distinção seja mantida: o Pai eterno é uma pessoa não gerada,
mas que gerou a imagem de si mesmo do Filho Eterno. O Filho é a imagem do Pai, gerado desde
a eternidade pelo Pai; que mais tarde assumiu a natureza humana em determinado momento no
ventre de Maria, como será dito a seguir. O Espírito Santo é o motor que procede do Pai e do
Filho, e é enviado para santificar as mentes, isto é, para gerar nova luz, justiça e vida agradável a
Deus e eterna naqueles que se tornam herdeiros da vida eterna. Há, portanto, três pessoas da
Divindade, imensa, coeterna, consubstancial[16], o pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho, que
é chamado de Logos[17] e imagem do Pai eterno e do Espírito Santo. Não existem mais pessoas da
Divindade.
E embora todas as mentes angélicas e humanas estejam admiradas com a maravilha deste
mistério, que Deus gerou o Filho e que o Espírito santificador procede do Pai e do Filho, ainda
assim é necessário sentir assim, porque, como já foi dito muitas vezes, devemos sentir sobre
Deus como Ele se revelou. Os pagãos vagavam em busca de Deus com suas próprias
especulações; mas a Igreja reconhece Deus como o fundador eterno e onipotente, como Ele se
revelou; e embora não percebamos plenamente esses mistérios, ainda assim em nossa vida Deus
quer que comecemos esse reconhecimento e nossa invocação seja distinguida das falsidades, e
Ele propôs uma revelação com certas evidências em Sua palavra, na qual, como um feto em do
ventre de sua mãe, alimentando-se através do umbigo e dos cotilédones, nós também nos
sentamos calados e obtemos conhecimento de Deus e vida da palavra de Deus, para que
possamos invocá-lo como Ele se revelou.

SOBRE O FILHO
E assim o Filho é descrito. Em João 1 (v. 1) é nomeado Logos. Na Epístola aos Colossenses
(1. 15) é chamado a imagem de Deus. Na epístola aos Hebreus (1. 7) é chamado o esplendor da
glória, isto é, a efígie ou imagem da substância do Pai; e é claro que o texto fala da natureza
divina do Filho, porque diz: “Todas as coisas foram criadas por meio d’Ele”. No Símbolo está
dito: “Luz da luz”. A combinação desses recursos os esclarece. O Filho é chamado a imagem e a
Palavra. Há, portanto, uma imagem nascida da união do Pai, que, para que possa ser considerada
de alguma forma, tomemos exemplos de nossas mentes.
Pois Deus quis que seus passos fossem vistos no homem, e se a natureza do homem tivesse
retido a primeira luz, o espelho da natureza divina teria sido menos obscuro. Agora, porém,
alguns vestígios podem ser notados nessa escuridão. Ao pensar, a mente humana logo traça uma
imagem do pensamento, mas não derramamos nossa essência nessas imagens, e esses
pensamentos são ações repentinas e evanescentes. Mas o eterno Pai olhando para si mesmo cria o
pensamento de si mesmo, que é a imagem de si mesmo, não desaparecendo, mas subsistindo na
essência compartilhada de si mesmo.
Então esta imagem está na segunda pessoa, e os apelos concordam. É chamado Logos
porque é gerado pelo pensamento. Chama-se imagem porque o pensamento é a imagem da coisa
pensada. É chamado o esplendor da glória, que em grego é mais significativamente escrito
resplendor[18], ou seja, o esplendor emitido de outra luz. Assim, o filho é o resplendor da luz
paterna; como se lê no Símbolo: “Luz da luz”. Também: “A efígie da substância do pai”, ou seja,
a imagem não desaparecendo, mas a essência compartilhada subsistindo.
Portanto, como na natureza dos homens, dizemos o Filho, gerado da substância do Pai, como
o Pai; Assim, a segunda pessoa é chamada de Filho, porque nasceu da substância do Pai e é sua
imagem. Então, a característica que distingue o Filho das outras pessoas é esta, que Ele é gerado
e que é uma imagem. E a diferença fica mais clara quando acrescentamos que esta segunda
pessoa assumiu uma natureza humana em determinado momento no ventre de Maria, pois o Pai
não assumiu uma natureza humana, nem o Espírito Santo assumiu uma natureza humana, mas o
Filho é Cristo, isto é, o Redentor prometido, uma pessoa com duas naturezas maravilhosamente
unidas, a saber, aquela imagem eterna do Pai ou Palavra[19] e a natureza humana. Pois é do
costume comum da Igreja usar a palavra união neste artigo.
Essas coisas são maravilhosas e colocadas muito acima de todo o cativeiro das criaturas.
Mas sabemos que esses mistérios da Igreja foram revelados, para que possamos invocar
corretamente a Deus e considerar as causas desse maravilhoso favor, que Deus uniu a si em uma
aliança eterna com a natureza humana. Portanto, em relação à natureza humana, Ele realmente se
importa com ela e a ama, e enviou este filho para ser um redentor e aplacar sua ira contra os
pecados, como será dito muitas vezes depois.
Diz-se que a terceira pessoa, o Espírito Santo, procede do Pai e do Filho. Esta propriedade é
atribuída a este terceiro. Essa característica é atribuída ao fato de ser uma pessoa que é enviada
ao coração dos renascidos, ou seja, pela qual o Pai e o Filho acendem nova luz, novos
movimentos agradáveis a Deus, Justiça e vida nos corações dos renascidos. E verdadeiramente
então o Espírito Santo está presente nos corações, quando os governa, os move e os incendeia,
como em 1 Coríntios 3 (v. 16) é dito: “Você é o templo de Deus, e o espírito de Deus habita em
você”. Este governo e santificação é chamado de ação especial de Deus. Mas como o Filho nasce
pelo pensamento, assim o Espírito Santo procede da vontade do Pai e do Filho; pois é da vontade
de mover, de amar, assim como o coração humano não cria imagens, senão pelo espírito ou
inspiração.

Testemunhos
Mateus por último (28. 19) diz: “Batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo”. Aqui ele lista três pessoas em particular e lhes dá igual poder e honra. Pois Cristo quis
abraçar a essência do Evangelho nesta primeira cerimônia. Portanto, ao mesmo tempo, ele
testifica que somos recebidos por Deus e nos ensina quem é Deus, a quem chamamos de Deus e
o que Ele nos dá. “Eu os batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, isto é:
“Testifico que são recebidos pelo eterno Pai e pelo Filho e pelo Espírito Santo, para que a
misericórdia e o poder destes os libertem do pecado e da morte eterna, e os deem justiça e vida
eterna”. Portanto, você não chamará os gentios como desviados do verdadeiro Deus, que se
revelou, mas estabelecerá que Ele é o Deus, o fundador das coisas, que se revelou por esta
palavra por meio de alguns testemunhos desde o princípio do mundo, faz uma aliança com você
no batismo, afirma que Ele é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e estabeleceu o Filho
propiciatório, e enviou o Espírito Santo para começar a justiça e a vida eterna em você.
Vocês reconhecem que a suma do Evangelho se compreende com sabedoria nas palavras do
Batismo e de mostrar quem é Deus: “Eu os batizo em nome”, isto é, na invocação e no
mandamento. Também em reconhecimento e invocação do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Invoco o Pai, o Filho e o Espírito Santo, para que recebam vocês, para que sejam ouvidos etc.
Esta é a consistência das palavras do batismo.
E quando essas palavras declaram que o Pai é Deus, que Ele é onipotente, que Ele deve ser
invocado, e que o Filho e o Espírito Santo são adicionados à companhia desta honra, é necessário
que haja um poder igual. E quando o poder é igual, significa que são o mesmo[20]. Além disso, é
evidente que o Pai e o Filho, Cristo, são pessoas distintas; por isso também pelo nome do
Espírito Santo é significada uma pessoa distinta. Pois se o Espírito significasse apenas o próprio
Pai mexendo ou movendo coisas, Ele teria mencionado o Pai duas vezes e a tantologia[21] teria
sido ociosa. A esta opinião também Basílio raciocinou com sabedoria e gravidade a partir deste
dito de Cristo: O Pai e o Filho e o Espírito Santo são consubstanciais (ομοούσιος); devemos ser
batizados, como recebemos, e crer, como somos batizados, e glorificar, como cremos no Pai e no
Filho e no Espírito Santo.
Mas como as evidências estão espalhadas aqui e ali nos escritos proféticos e apostólicos,
alguns dos quais falam apenas do Filho, outros do Espírito Santo, as evidências do Filho serão
primeiro coletadas. Há, no entanto, a principal prova no primeiro capítulo de João, que
provavelmente é o escritor deste Evangelho, e que Ebion e depois Cerinto espalharam a opinião
judaica e removeram a natureza divina de Cristo, fingindo que n’Ele havia apenas uma natureza
humana.
Mas antes de ir a João, vou expor duas razões tiradas das Escrituras, que, em minha opinião,
tanto ensinam como confortam os piedosos.
Primeiro: É necessário confessar que Cristo é o Filho de Deus por nascimento, porque o
Evangelho distingue os filhos de adoção do Filho Cristo. Pois João chama Cristo de Filho
unigênito, em João 1 (v. 14): “Vimos Sua glória como o unigênito do Pai”. Além disso, como
não há dúvida de que o Filho o é por natureza, é necessário que a natureza divina esteja
substancialmente presente n’Ele. Mas tudo o que está fora da pessoa do Pai, no qual está a
natureza divina, deve necessariamente ser uma pessoa. Assim Paulo (Colossenses 2. 9) diz de
Cristo: “Em quem a plenitude da divindade habita corporalmente”, isto é, o qual Cristo é a
pessoa divina, como se dissesse que a divindade habita n’Ele, não tanto quanto em Davi,
efetivamente, de forma separável; mas para que a própria existência[22] de Cristo seja divina. Pois
os gregos dizem “corpo” (σωμα), como comumente nos referimos a uma pessoa.
Segundo: Todas os escritos proféticos e apostólicos ordenam com grande concordância que
Cristo seja adorado e invocado, e ordenam confiar n’Ele; portanto, Lhe é dado poder infinito,
para que esteja em toda parte, para que possa olhar nos corações, para que ouça, para que possa
dar justiça e vida eterna. Portanto, é necessário que haja uma natureza divina em Cristo.
Agora há testemunhos claros sobre invocar e confiar em Cristo. Mateus 11 (v. 28): “Venham
a Mim todos os que estão cansados e oprimidos, e Eu os aliviarei”. João 3 (v. 36): “Aquele que
crê no Filho tem a vida eterna”. Isaías 11 (v. 10): “Naquele dia a raiz de Jessé será um sinal para
os povos, as nações pleitearão por Ele”. Salmo 45 (v. 12): “E o Rei desejará a sua formosura,
porque Ele é o seu Deus, e eles O adorarão”. Salmo 72 (v. 5): “E eles O temerão tanto quanto
duram o Sol e a Lua”. Também: “Suplicarão diante d’Ele sempre”. Atos 7 (v. 58): “Senhor Jesus,
receba meu espírito”. 1 Tessalonicenses 3 (v. 11): “Que o próprio Deus e nosso Pai, e nosso
Senhor Jesus Cristo, dirija nosso caminho até vocês”. 2 Tessalonicenses 2 (v. 16): “Nosso
Senhor Jesus Cristo, e Deus nosso Pai, que nos amou e nos deu eterna consolação e boa
esperança na graça, fortaleça-os”. Gênesis 48 (v. 16): “Que o Deus de Abraão, e o Anjo que me
livrou de todo mal, abençoe esses filhos”.
Nestes e semelhantes testemunhos se fala da perpétua invocação de Cristo, mesmo quando
Ele não está visivelmente comprometido com os homens. Portanto, essa adoração não pode ser
entendida, como os judeus zombam, do significado externo de honra, que é apresentado até o
presente como um rei que detém domínio civil; mas que estas frases sejam pregadas sobre o
Messias ouvindo, alimentando e salvando sua Igreja em todo o mundo e em todos os tempos.
Essas coisas são características da natureza do Todo-Poderoso. Portanto, é útil considerar este
ensinamento nos Profetas sobre a invocação do Messias. E parece que os Pais, Profetas e outras
pessoas piedosas do Antigo Testamento professavam a divindade do Messias pela própria
invocação, e essas palavras não apenas nos ensinam sobre a natureza do Filho, mas também nos
confortam e nos despertam para a invocação.
Portanto, que esta razão esteja sempre em vista, quando a invocação de Cristo é ordenada
com tanta frequência. Deve-se admitir que há uma natureza divina em Cristo, porque a invocação
do ausente, que não se vê visivelmente, confere onipotência. Pois ele sente que vê o movimento
dos corações de todos os homens em todo o mundo. Aqui recordamos também o exemplo da
Igreja, que muitas vezes repete a sua oração: Senhor da misericórdia[23]. Esta oração é uma
profissão da divindade de Cristo.
Agora chego a João, que está prestes a descrever as naturezas em Cristo que se originam do
divino: “No princípio era a Palavra”. Assim, ele chama o Filho de Deus, que depois assumiu a
natureza humana, como diz ali: “E a Palavra se fez carne”. Mas falando primeiro daquela
natureza, que era antes da encarnação, ele afirma que a palavra[24] é eterna, porque ele diz que era
antes da criação, e diz: “Todas as coisas foram feitas por Ele”.
E esta palavra ele chama de Deus, dizendo: “E a Palavra era Deus”. Pois o artigo grego
atesta que Logos (λόγον) deve ser colocado no lugar do sujeito e Deus no lugar do predicado.
Tampouco há qualquer ambiguidade no apelo de Deus. Pois a narrativa foi instituída para
descrever a essência divina. Portanto, o nome de Deus não deve ser entendido pelos ofícios
divinos que os homens realizam, como é dito em outro lugar (João 10. 34 e Salmo 81. 6: “Eu
disse, vocês são deuses”), mas mais apropriadamente do eterno, onipotente, inteligente, de boa
essência, fundador, assim como João afirma mais tarde: “Todas as coisas foram fundadas por
esta palavra”; ele, portanto, diz que Logos (λόγον) é o eterno Deus e criador.
As boas mentes entendem que este testemunho é firme, que repousa na voz do Evangelho e
não acede à zombaria e corrupção do Evangelho. Mas algumas pessoas astutas e ímpias, como
Samósata e depois Fotino e o recente Serveto[25], ousaram evadir e corromper as palavras de
João, e sustentaram que λόγον não significa uma pessoa, mas assim como no homem não
dizemos o pensamento de uma pessoa ou fala como sendo uma pessoa, mas uma qualidade
passageira ou movimento. Assim, eles queriam entender em João que λόγον não é uma pessoa,
mas o pensamento ou propósito do Pai, que é o próprio Pai, assim como dizemos que a mente ou
bondade do Pai é o próprio Pai.
Por fim, adaptaram a narrativa de João ao exemplo de um homem arquiteto: como no
arquiteto está a ideia da obra futura, que não é uma pessoa, mas um propósito e pensamento na
mente do arquiteto, então eles disseram que no Deus criador havia uma ideia e um propósito, que
Ele mesmo quis revelar através da condição do mundo e através do excelente mestre Cristo, ele
entregaria a doutrina da salvação e publicaria testemunhos sobre Deus. Eles disseram que este
pensamento ou este propósito era o próprio pai, e eles falam deste pensamento em Gênesis (cap.
1) que está escrito: “Disse Deus”, isto é, ele decidiu, propôs; e em João 1. 3: “Todas as coisas
foram feitas por Ele”, isto é, todas as coisas foram estabelecidas pelo pensamento do arquiteto ou
pelo discurso de comando, para que as coisas fossem feitas.
Mas o que João diz (1. 14), “A Palavra se fez carne”, então eles o corromperam, finalmente,
de acordo com esse propósito, de que Cristo nasceu de uma virgem, e sendo assim eles afirmam
que João veio para avisar que o Evangelho foi não uma invenção humana, mas que era o
propósito divino de Deus enviar este mestre, Cristo, e por meio dele dar evidência de doutrina.
Essa bajulação é corrupta, porque alude a um exemplo humano, e é lisonjeada por
personagens ímpios por causa de sua modéstia e muitas vezes causou grandes quedas; portanto,
evidências firmes devem ser coletadas, que mostram que é necessário aqui entender λόγον em
pessoa; e a principal controvérsia na narrativa de João é se λόγος aqui significa uma pessoa,
como a Igreja Católica de Deus sempre sentiu e defendeu. Pois mesmo naquela época, quando
Samósata estava tumultuando, os anciãos do bispo de Antioquia se reuniram das regiões
vizinhas, que ouviram os discípulos dos apóstolos, e refutaram Samósata e expulsaram da Igreja
aquele que havia sido condenado.
O velho bispo Gregório de Neocesareia, cuja doutrina a Igreja de seu tempo julgava a mais
pura, decidiu conhecê-la e deixou uma confissão escrita muito antes do Sínodo de Niceia. Esta
confissão está no livro 7 de Eusébio, página 173. Um Deus, o pai da palavra viva, da sabedoria
subsistente, e gera a imagem inteira e completa de si mesmo, o Pai do filho unigênito; um só
Senhor da terra, a imagem do Pai, a palavra eficaz, o Filho eterno da eternidade; um Espírito
Santo que tem a substância de Deus, que se manifestou pelo Filho, santificador, pelo qual Deus é
conhecido sobre todos e em todos.
Recitei esta confissão não só porque contém um testemunho ilustre da Igreja antiga e mais
pura, mas também porque transmite eloquentemente as distinções das pessoas. Ele diz que o
Filho é a imagem; Ele diz que o Espírito Santo é o santificador por meio do qual Deus é
conhecido, ou seja, a nova luz que começa nos corações, conforme é dito em 2 Coríntios 3 (v.
18): “Somos transformados à mesma imagem pelo Espírito do Senhor”.
Que na narração de João, λόγος (Logos) significa uma pessoa, é mostrado primeiro a partir
dessa própria narrativa, porque depois João diz de Cristo: “Ele estava no mundo, e o mundo foi
feito por meio d’Ele”. Agora, concorda-se que o mundo não foi fundado pela natureza humana
de Cristo; portanto, é necessário em Cristo, nascido de uma virgem, ser e permanecer a segunda
natureza co-criando com o Pai.
Assim e em outros lugares, ditos semelhantes mostram que há duas naturezas em Cristo.
Colossenses 1 (v. 16, 17): “Todas as coisas foram criadas por meio d’Ele e n’Ele, e Ele é antes
de todas as coisas, todas as coisas existem por meio d’Ele”. E Hebreus. 1 (v. 2,3): “Por meio do
Filho, a quem constituiu herdeiro de todos, por meio de quem também fez os séculos, que é o
resplendor do Seu resplendor e a imagem da Sua substância, sustentando todas as coisas pela
palavra do seu poder”. Essas palavras testificam claramente que a natureza divina coexiste com o
Pai e permanece em Cristo. Portanto λόγος não significa um propósito ou pensamento fora de
Cristo, nem significa uma voz passageira, mas uma natureza de advertência em Cristo, co-criador
com o Pai. Portanto λόγος é uma pessoa.
Assim é dito na Epístola de 1 João 1 (v. 1): “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o
que vimos, o que nossas mãos tocaram, a palavra da vida, isso nós declaramos”. Aqui também é
testemunhado que no próprio Cristo, nascido de uma virgem, a palavra que era no princípio é e
permanece. O mesmo é mostrado abaixo por vários testemunhos que falam da natureza divina
em Cristo, como: “Antes de Abraão nascer, Eu sou”[26].
Mentes piedosas, que sabem que Deus, como Ele se revelou, deve ser sentido, quando veem
que esses testemunhos do Evangelho são claros, reconhecem que essa opinião deve ser abraçada
com mais consistência, que em Cristo está a natureza divina e que o Logos nesta narrativa
significa uma pessoa, e olhando para esses testemunhos Eles invocam o Filho de Deus.
Agora procuremos também os ditos dos antigos escritores que viveram antes do Sínodo de
Niceia, dos quais Serveto calunia perfidamente os leitores, citando ditos mutilados de Irineu e
Tertuliano, como se desejassem que λόγον não fosse uma Pessoa ou Hipóstase[27], antes que
Cristo fosse nascido de uma virgem; mas ele causa um dano manifesto a ambos. Pois Tertuliano
levanta expressamente essa questão contra Práxeas, se λόγος é uma natureza subsistente ou
(como agora dizemos) uma pessoa, e ele responde afirmando que é uma Pessoa ou Hipóstase, e
expõe essa opinião em um longo discurso, no qual estas palavras são: “Eu digo uma pessoa, e
reivindico o nome do Filho, e eu O reconheço como o Filho, e eu O defendo segundo o Pai.
Irineu também afirma claramente que λόγον era uma pessoa antes de assumir a natureza
humana. Assim: ele diz capítulo 2, livro 3: “Mostrei claramente que no princípio o λόγος
existente com Deus, por meio de quem todas as coisas foram feitas, que sempre esteve presente
ao gênero humano, enviou este segundo tempo predestinado do Pai, unido à sua imagem, e
enviado como homem suscetível”.
E Orígenes afirma, eloquentemente, em De Principii[28], que λόγον é uma pessoa. “Ninguém
pensa”, diz ele, “que nós inapropriadamente[29] queremos dizer algo quando mencionamos a
sabedoria de Deus”. E depois: “Se, então, uma vez for aceito corretamente que o Filho unigênito
de Deus é sua sabedoria substancialmente subsistente”. Ele afirma a mesma coisa mais tarde,
quando discute a encarnação. Mas os testemunhos de Gregório de Neocesareia e Irineu, que citei
acima, são mais ilustres e mais firmes.
Agora volto a João, que, quando diz: “A Palavra se fez carne”, primeiro testifica que o Pai e
a Palavra não são a mesma pessoa; o Pai não se revestiu da natureza humana; pois Ele se
distingue do Filho, dizendo: “Este é meu Filho amado”[30]. Então, quando se diz: “A Palavra se
fez carne”, é preciso entender a pessoa. Pois, como mostramos acima, em Cristo nascido de uma
virgem, a natureza divina da criação permanece. Portanto λόγος é uma pessoa. Da mesma forma,
se o Logos fosse apenas pensamento, que é o próprio Pai, esse pensamento não se tornaria carne.
Pois o Pai não se torna carne, nem se pode dizer da voz passageira que se torna carne, pois passa
e desaparece; mas a palavra permanece em Cristo nascido de uma virgem.
Portanto, em Cristo nascido da virgem Maria há duas naturezas, o Logos e a natureza
humana, tão unidas que Cristo é uma pessoa. Pois a Igreja usou este termo de união, cujo
discurso também seguimos. Pois o fato de que os antigos às vezes usavam o termo de mistura,
deve ser entendido com prudência, para que não se pense em uma confusão de naturezas.
Orígenes, embora negue que uma semelhança adequada dessa conjunção possa ser dada, no
entanto a compara a um ferro em chamas. Como o fogo penetra o ferro e se mistura com ele por
todos os lados, assim o λόγος assumindo a natureza humana brilha nele como um todo, e a
natureza humana está unida à palavra como se fosse acesa pela luz.
Refutamos com bastante clareza a fúria de Samósata, Fotino e Serveto, quando decidimos
que λόγον deve ser entendido como uma pessoa. Então a refutação de Ário é fácil, que admite
que λόγον significa uma pessoa em João, mas depois afirma que essa pessoa não é Deus por
natureza; mas João refuta com mais firmeza Ário, quando afirma expressamente que λόγον é
Deus, e para que não haja qualquer ambiguidade no termo Deus, ele atribui a palavra[31], que
através dessa pessoa todas as coisas foram criadas. Portanto, sendo Ele um criador e uma pessoa
todo-poderosa, Deus é verdadeiramente natureza, não apenas de nome.
Agora, ambas as refutações, de Samósata e de Ário, são apoiadas pelos seguintes
testemunhos, que mostram que em Cristo nascido de uma virgem existem e permanecem duas
naturezas, a divina criadora das coisas e a humana.
Em João 20 (v. 28), Tomé chama abertamente a Cristo Deus, dizendo: “Meu Senhor e meu
Deus”, que se diz na usual frase hebraica, à qual se junta o nome próprio de Deus, distinguindo a
verdadeira invocação da pagã, como no Salmo 19 (v. 8): “E invocaremos o nome do Senhor
nosso Deus”. Portanto, havia uma luz maravilhosa e nova em Tomé dando a Cristo o nome do
verdadeiro Deus e reconhecendo que n’Ele havia não apenas uma natureza humana, mas também
divina. Romanos 9 (v. 5): “De quem é Cristo segundo a carne, que é o Deus supremo, bendito
para sempre”. E para que ninguém zombe do uso do nome de Deus aqui metaforicamente,
acrescentemos os testemunhos que atribuem a Cristo as coisas que são próprias da natureza
divina, a saber, criar, dar vida aos mortos, santificar, ouvir, dar a vida eterna, e assim por diante.
João 5 (v. 17, 21): “Meu pai ainda trabalha, e Eu trabalho. O que Ele faz, o Filho também faz”.
Também: “Assim como o Pai ressuscita os mortos e dá vida, assim também o Filho dá vida a
quem Ele quer”. Neste sermão, Cristo afirma claramente que cria junto com o Pai, sustenta a
criação, preserva a Igreja e dá vida aos mortos, que são, sem dúvida, a natureza própria do Todo-
Poderoso. João 10 (v. 28): “Eu lhes dou a vida eterna, e ninguém as arrebatará da Minha mão”.
João 14 (v. 13): “Tudo o que você pedir em Meu nome, isso Eu farei”. Aqui Ele testemunha
claramente que ouve e faz o que pedimos, ambos próprios da natureza divina e infinita. João 15
(v. 5): “Sem Mim você não pode fazer nada”. Esta frase testemunha que Cristo está presente,
para proteger, para ajudar, para guiar aqueles que invocam, que são próprios de Deus. Mateus 18
(v. 20): “Onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome, ali estou no meio deles”. Estar
presente em todos os lugares, ouvir e ser favorecido em todos os lugares, são características da
natureza divina. João 20 (v. 22): Cristo dá o Espírito Santo, que também pertence apenas à
natureza divina. João 10 (v. 17): “Entrego minha alma e a tomo novamente”. João 6 (v. 40): “Eu
o ressuscitarei no último dia”. Da mesma forma (v. 62): “Se vocês virem o Filho do homem
subindo, para onde Ele estava antes”. João 8 (v. 58): “Antes de Abraão nascer, Eu sou”. Aqui Ele
testemunha que existia antes de assumir a natureza humana. João 17 (v. 5): “Glorifica-me, Pai,
contigo com aquela glória que Eu tinha contigo antes que o mundo existisse”. Colossenses 1 (v.
16): “Todas as coisas foram estabelecidas por Ele e n’Ele, e todas as coisas consistem n’Ele”.
Portanto, em Cristo, a natureza divina é a criadora das coisas. Então, mais adiante no cap. 2 (v. 9)
é dito: “N’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade”, como se dissesse: “Em
outros Deus habita com seu espírito, acendendo nova luz e novos movimentos, mas em Cristo ele
habita não só em espírito, mas também para que pela união pessoal a natureza humana se una à
divina”. Pois como agora costumamos dizer pessoas, os gregos antigos diziam corpos (σωματα).
Hebreus 1 (v. 2): A quem Ele fez herdeiro de todos, por meio de quem também fez os séculos,
que é o resplendor de Sua glória e a imagem de Sua substância sustentando todas as coisas” etc.
Atos 7 (v. 58): “Senhor Jesus, receba meu espírito”. Esta petição é atribuída a Cristo para
guardar as almas dos moribundos e reunir almas e corpos. 1 Tessalonicenses 3 (v. 11): “Que o
próprio Deus e nosso Pai, e nosso Senhor Jesus Cristo dirija nosso caminho”. 2 Tessalonicenses
2 (v. 16, 17): “Que nosso Senhor Jesus Cristo, e Deus e nosso Pai fortaleçam vocês”.

Do Antigo Testamento
Jeremias 33 (v. 16): “E este é o nome pelo qual O chamarão, Senhor nosso Justificador”.
Aqui ele dá a Cristo o nome próprio de Deus e afirma que Ele é o justificador, portanto, ele lhe
dá a glória que pertence somente a Deus. Novamente, para justificar, remover o pecado e a ira de
Deus, e restaurar a justiça e a vida eterna, ninguém o pode senão Deus. E embora os judeus
evitassem esse testemunho por muito tempo, sua refutação é fácil. O Profeta diz claramente que
o próprio Messias deve ser chamado, isto é, Ele deve ser invocado por essa fé, que Ele é Deus,
nosso justificador. O apelo pertence a esta mesma pessoa do Messias. Isaías 7 (v. 14): “Seu nome
será Emanuel, isto é, Deus conosco”. Mas é mais certo o que se segue no cap. 9 (v. 6): “Seu
nome será Maravilhoso, Conselheiro, Deus forte, Pai da vida eterna”. Aqui também os judeus
zombam da palavra EL, mas é certo que Deus é significado por esta palavra, e o próprio texto,
que segue: “Pai da vida eterna”, refuta suas artimanhas. Uma vez que Cristo é o autor e doador
da vida eterna após esta vida (como Ele diz em João 10. 28: “Eu lhes dou a vida eterna”), é
necessário que Ele seja Deus por natureza. Miqueias 5 (v. 2): “Sua vinda desde o princípio antes
dos dias do mundo”. Este testemunho é curto, no entanto afirma que o Messias existia antes da
condição do mundo. Ele é, portanto, eterno e Deus. E, portanto, os padres o conheciam desde o
início, e sabiam que ele estava presente na Igreja, como mostra o dito de Jacó citado acima; e
Daniel conversa com Ele e o aterrorizado é fortalecido, e nova luz e vida são infundidas por Ele.
E em 1 Coríntios 10 (v. 4) é dito que Ele esteve com o povo no deserto. Eles bebiam da rocha
espiritual que os acompanhava, e a rocha era Cristo. Salmo 45 (v. 12): “E o Rei desejará a sua
formosura, porque Ele é o seu Deus”. Aqui ele dá o nome próprio de Deus ao Rei Messias. E há
uma doce promessa. Embora a Igreja nesta vida seja deformada por grandes sofrimentos e ainda
seja fraca, ainda assim o rei Messias a ama e a declara bela. Por esta promessa, as mentes
piedosas que lutam com sua enfermidade se sustentarão.
Salmo 72 diz que o Messias é eterno e sempre deve ser adorado: “Seu nome sempre foi,
diante do Sol Seu nome permanecerá, e todas as nações dirão bem d’Ele”. Também: “E eles O
temerão tanto quanto duram o Sol e a Lua”. A adoração confere divindade. Pois é certo que se
diz da adoração perpétua, pela qual o Messias é invocado mesmo quando os olhos não estão à
vista, e não apenas do gesto pelo qual as honras são dadas aos reis presentes. A eternidade
também é descrita no mesmo lugar: “Antes que ‘sol’ fosse seu nome”, ou seja, antes que o sol
fosse criado, havia este Filho. Pois o salmo hebraico aqui usa uma palavra significativa,
significando que o Filho sem dúvida nasceu antes da condição do Sol.
Salmo 110 (v. 1): “O Senhor disse ao Meu Senhor”. A partir disso, Cristo argumenta que Ele
não é apenas o filho de Davi, mas também o Senhor. Já no mesmo reino político e na mesma
natureza, o filho ou sucessor nunca é senhor do pai ou avô do rei, assim como Augusto não é de
modo algum senhor de Júlio César. Portanto, o reino do Messias não será uma mera destruição,
mas vida eterna e justiça eterna, e em Cristo estará a natureza divina dando a vida eterna. Assim
como o restante dos Salmos ensina, todas as coisas devem ser incluídas (v. 4): “Tu és um
sacerdote para sempre”. Ele diz que há um sacerdote perpétuo que nos conduz ao Pai e dá a vida
eterna (v. 1): “Sente-se à minha direita”, isto é, reinando em igual poder com o pai eterno. Mas
como o poder é infinito, é necessário que haja uma natureza divina em Cristo.
Salmo 2 (v. 7): “Eu O gerei hoje”. Isto se refere somente a Cristo. Como também por João
(1. 18), Cristo é chamado o filho unigênito de Deus, isto é, não por adoção, mas por natureza, a
quem a substância do Pai foi propagada.
Se a objeção é levantada de que a natureza divina não pode sofrer nem morrer, enquanto
Cristo está morto; a resposta usual, verdadeira e necessária é a seguinte: Como em Cristo existem
duas naturezas, certas características próprias de uma natureza não impedem a presença da outra
natureza. As características próprias da natureza humana são estas: ter membros feridos, sofrer e
morrer. Portanto, Pedro afirmou claramente (1ª epístola, 4. 1) que Cristo sofreu na carne. E
Irineu[32], com erudição e piedade, afirma que Cristo foi crucificado e morreu com a Palavra em
repouso, para que Ele pudesse ser crucificado e morrer, ou seja, a natureza divina não foi
dilacerada ou morta, mas foi obediente ao Pai, repousou e suportou a ira eterna do Pai contra o
pecado da raça humana, não usando Seu poder, não exercendo Sua força. Se você considerar
cuidadosamente esta afirmação de Irineu, entenderá que as diferenças entre as naturezas são
reverentemente descritas e, ao mesmo tempo, lança luz sobre a magnitude da ira de Deus contra
o pecado derramada sobre Cristo, bem como sobre a humildade do Filho que repousou e foi
obediente ao Pai, não exercendo Seu poder.
Agora, esta afirmação corresponde à de Filipenses 2 (v. 6): “Aquele que era em forma de
Deus”, isto é, sabedoria e poder iguais ao Pai, “não usurpou a igualdade de Deus”, isto é, quando
foi enviado para obedecer a Deus em Sua paixão, não agiu contrariamente à Sua vocação, não
agiu contra a vocação, não usando Seu próprio poder contra à sua vocação, mas esvaziou-se, isto
é, não exerceu o Seu poder, e humilhou-se assumindo a forma de servo, isto é, pondo-se sobre a
mortalidade com a natureza humana, encontrado habitando como homem, isto é, com paixões,
medo, tristeza, dor. Mantenha-se a distinção entre as naturezas, mas ao mesmo tempo, saiba-se
que essas proposições são verdadeiras por causa da união pessoal: Deus sofreu, foi crucificado,
morreu; não pense que somente a natureza humana é redentora, e não todo o Filho de Deus. Pois
embora a natureza divina não seja dilacerada, não morrendo, saibamos que este mesmo Filho é o
Redentor coeterno com o Pai. Por isso, nesta doutrina, são ditadas regras sobre a comunicação de
expressões idiomáticas, isto é, sobre a predicação de propriedades, que se dizem de ambas as
naturezas em comum, mas concretamente, isto é, que podem ser entendidas como propriedades
de uma pessoa.
A diligência é digna dos piedosos, por causa da concórdia com a Igreja, e não sem causas
eruditas. A velha igreja aprovou alguns métodos e rejeitou outros. Mas evitemos a tendência ao
ridículo e retenhamos as formas recebidas com autoridade séria e verdadeira. Esta afirmação não
é verdadeira: “a natureza divina é humana”. Mas esta é a verdade: “Deus é homem, a Palavra é
homem, Cristo é homem, Cristo é Deus, Deus nasceu de uma virgem, sofreu”; porque esta
pessoa, na qual a natureza humana divina está unida pela união pessoal, nasce e é crucificada.
Essa forma de falar em termos concretos é chamada de comunicação idiomática, ou seja,
pregação, na qual as propriedades da natureza da pessoa são corretamente atribuídas, de modo
que o Filho de Deus é o redentor, e não apenas a natureza humana é redentora. Da mesma forma,
essas proposições são verdadeiras e aceitas: “A Palavra se fez carne, a Palavra se fez homem,
Deus começou a ser homem”. Ao contrário, essas proposições foram rejeitadas: “O Verbo é uma
criatura, Cristo é uma criatura, Cristo começou a ser, Cristo se tornou”. A ambiguidade foi
sabiamente evitada e as armadilhas foram evitadas. Pois os arianos falando dessa maneira não
falavam da suposta natureza humana de Cristo, mas afirmavam que a segunda natureza em
Cristo, o primeiro humano, foi criada do nada, que Ele não era a imagem do Pai eterno nascido
de sua substância, “mesmo em essência”[33] e coeterno com o Pai.
“A Palavra é homem”, é recebida, porque se entende que a palavra assumiu uma natureza
humana. “A Palavra é criatura”, rejeita-se, porque não se entende a suposição de outra natureza,
mas o predicado significando que λόγον foi criado, o que é falso. Li estas coisas para aconselhar
os estudiosos para que, ao falarem, tenham um cuidado digno de mentes piedosas e reproduzam
o discurso ortodoxo da Igreja.
E essa resposta deve ser mantida: alguns ditos falam de essência, outros de deveres. Os
arianos citaram este dito (João 14. 28): “O Pai é maior do que Eu”. Isso fala claramente da
diferença entre o remetente e o enviado, não da essência. Pois quando os judeus acusaram Cristo
de ensinar contra a autoridade de Deus, era necessário alegar a Cristo a autoridade do Pai, de
quem Ele afirma que foi enviado e lhe transmitiu a doutrina e o mandamento de ensinar, e Ele
diz que o Pai é maior como o remetente, a fonte da doutrina, o aprovador e defensor desta
doutrina e de Sua igreja. O Filho que aqui foi enviado sofre a cruz e a Igreja está cheia de
fraquezas, mas Cristo clama sobre o Pai: “O Pai é maior do que Eu, Ele trabalha comigo, Ele
defenderá esta doutrina da Sua Igreja”.
Então em outro lugar (João 17. 5) é dito: “Pai, glorifica-Me”. Este dito poderia ter sido
citado pelos arianos tanto quanto o outro, mas faz uma distinção entre deveres, não fala da
essência: “Agora Sou enviado sujeito à cruz e sirvo à Minha vocação, mas depois Me devolva a
glória que Eu tinha contigo antes da fundação do mundo”. Mas esta declaração fala da essência
em João 1 (v. 1): “Deus era a Palavra”.
Essa resposta é frequentemente o caso, e certamente é necessário notá-la nos Profetas.
Outros ditos falam do Cristo reinante tal como em João 5. 19: “O que o Pai faz, o Filho também
faz”. Outros ditos falam do Cristo humilde e paciente, como Mateus 27. 46: “Deus, por que me
abandonaste?”. Não é dito da essência, mas é descrita a obediência daquele tempo, em que a ira
de Deus contra os pecados da raça humana foi derramada sobre o Filho. E a regra deve ser
mantida, que o Filho de Deus assumiu uma natureza humana inteira e incorrupta, tendo todos os
poderes e desejos próprios e ordenados à natureza; novamente, sem vícios, mas ainda passível,
sem pecado e mortal. Tais enfermidades Ele assumiu de bom grado por nós, para que pudesse se
tornar uma vítima. Então, em Hebreus 4 (v. 15), é dito: “Não temos um Sumo Sacerdote que não
possa compadecer-se das nossas enfermidades, mas que foi tentado em todas as coisas, segundo
nossa semelhança, mas sem pecado”.
Portanto, embora Cristo contemplasse o Pai e fosse bem-aventurado, ainda assim a natureza
humana tinha seus desejos, mas ordenados. E estes ditos são frequentemente recitados: “Ele está
com fome, Ele está com sede, Ele está feliz, Ele está com raiva, Ele está com dor, Ele está em
prantos, Ele luta com grande tristeza”, tal como Ele diz (Mateus 26. 38): “Minha alma é triste até
a morte”. E porque a emoção do coração nos leva à tristeza, como todos nós experimentamos, há
tal emoção em Cristo que o sangue é expelido e o suor é como uma gota de sangue grosso e
coagulado; pois é isso que significa a trombose[34]. Ninguém mais poderia ter apoiado tal
resolução. Esses sentimentos em Cristo não eram fingidos, mas emoções reais e grandiosas.
E não pensemos que Cristo era uma pedra ou um estoico, mas Ele estava verdadeiramente
bem-aventurado, verdadeiramente em conflito com a dor, e essa grande dor na agonia tinha
muitas causas, Ele não temia tanto a dilaceração de Seu corpo, mas Ele sentiu um fardo maior, a
saber, a ira de Deus contra os pecados da raça humana, que foi derramado em si mesmo, como se
Ele mesmo tivesse se contaminado com todos os seus crimes horríveis. Ele também lamentou
que uma grande parte da raça humana perecesse desafiando esse favor de Deus. Essas imensas
dores não podem ser compreendidas nem suportadas por nós. No entanto, é necessário que a
Igreja pense algo sobre essas grandes coisas, que é, portanto, sobrecarregada com a cruz, para
que reconheça que a ira de Deus contra os pecados é algo grande.
Quando, portanto, a principal ira foi derramada sobre o Filho, deve ter havido grande
tristeza, com a qual Ele se entristeceu por Deus ter sido ofendido pela raça humana, e Ele lutou
contra a tentação da rejeição. Portanto, um anjo é enviado para confirmá-lo. Essas coisas devem
ser pensadas, para que possamos de alguma forma apreciar a grandeza do nosso pecado e
agradecer a Cristo por sofrer o castigo por nós e, ao mesmo tempo, tornar-se um intercessor por
nós, e por esse pensamento possamos despertar a fé, invocação e temor.
O que é discutido, no entanto, é se a fuga da morte em Cristo foi defeituosa, quando a parte
inferior não obedeceu à superior; em primeiro lugar, respondo que as lacerações na carne
naturalmente causam dor mesmo sem pecado, e também que algumas dores são naturais no
coração e na vontade, que estavam em Cristo sem culpa; Ele se entristeceu, mas não
desordenadamente, como nós.
Então, acima dessa dor natural, há em Cristo o sentido da ira de Deus contra o pecado do
gênero humano, no qual Ele reconhece e se entristece que Deus está verdadeira e terrivelmente
ofendido por causa dos pecados do gênero humano, e luta contra a tentação de rejeição. Portanto,
embora haja uma espécie de trepidação nessa luta, porque a natureza universalmente geme
quando sobrecarregada além de suas forças, essa trepidação ou esse gemido é diferente em Cristo
e em outros homens. Cristo suporta os terrores contra o Pai sem indignação e reconhece que o
Pai deve ser obedecido. Portanto, esta trepidação é sem pecado e não é sujeita a vícios. Mas no
resto dos homens, quando eles fogem, há um rugido contra o julgamento de Deus, e naqueles que
não lutam, fugindo para a vitória de Cristo, aproximam-se horríveis blasfêmias. Não adicionarei
uma discussão mais longa; pois os piedosos serão levados por seus sofrimentos à contemplação
dessas coisas. No entanto, é útil nos lembrar, e a comparação de eventos semelhantes nos Salmos
e nos Profetas esclarece isso de alguma forma.
Mas o que dizem sobre a luta é que o bem-aventurado, quando está em excelente felicidade,
não está ao mesmo tempo em grande consternação; devemos responder que houve um certo
período de sofrimento, no qual aquela glória das bem-aventuranças não brilhou tanto quanto em
outro tempo. Pois havia um tempo marcado para esta luta, em que Cristo se tornaria
verdadeiramente vítima, repousando na Palavra, como diz Irineu. Estamos satisfeitos com esta
distinção de tempos. Outros buscam outras respostas, sobre as quais deixo o julgamento para os
leitores.

SOBRE O ESPÍRITO SANTO


O nome Espírito em geral significa agitação ou natureza ou força de agitação, e a variedade
deve ser observada nos próprios escritos proféticos e apostólicos, e todos os ditos em que a
palavra Espírito se encontra não devem ser misturados aleatoriamente. Muitas vezes significa os
ventos, muitas vezes a vida do homem, muitas vezes os movimentos ou impulsos criados pelos
homens, bons e maus. Aqui significa a essência espiritual, isto é, viva, inteligente, incorpórea,
eficaz (João 4. 24): “Deus é Espírito”. Usado neste sentido se torna um nome comum ao Pai e a
outras pessoas. O nome escolhido deve, portanto, é usado para reunir evidências e julgar com
sabedoria, onde a Escritura fala corretamente do Espírito Santo, que o Evangelho proclama ser
dado por Cristo, para santificar e vivificar nossos corações, e a quem a Igreja reconhece ser uma
pessoa divina, vivificante e santificadora. E isso deve ser confirmado, que o Espírito Santo é uma
pessoa. Pois muitos homens ímpios e ousados sustentaram nas dissensões eclesiásticas que o
Espírito Santo não é uma pessoa, mas significa apenas uma agitação criada nos homens, ou pelo
menos significa o próprio Pai poderoso ou movimentado sem outra pessoa.
Mas, a este ímpio sofisma, a Igreja opõe os verdadeiros testemunhos transmitidos nas
Escrituras, o primeiro e mais ilustre dos quais é a revelação da divindade, feita no batismo de
Cristo, onde três pessoas são claramente distinguidas. O pai diz (Mateus 3. 17): “Este é Meu
Filho amado”. Há, portanto, uma pessoa do Pai, outra do Filho. E o Espírito Santo desceu em
forma de pomba. Ora, se o Espírito Santo fosse uma agitação criada nas almas, Ele não
apareceria em uma determinada forma corpórea, ou se fosse o próprio Pai, não discerniria o
Espírito Santo.
Assim também no Pentecostes o Espírito Santo aparece em uma forma corpórea particular.
Essas revelações não foram feitas em vão, pelo contrário, são excelentes benefícios de Deus, em
que Deus se revelou à Igreja e testificou que o Espírito Santo é uma pessoa.
A estes testemunhos acrescenta-se a declaração sobre o Batismo: “Eu lhe batizo em nome do
Pai e do Filho e do Espírito Santo”, isto é, dou testemunho de que são recebidos por Deus, a
quem invoco sobre vocês, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Mas quando a invocação é dirigida
ao Espírito Santo, como ao Pai e ao Filho, é necessário que Ele seja uma pessoa e não um
movimento ou agitação criada no homem. Pois Cristo não ensina de modo algum a invocar um
movimento ou agitação criada no homem. Quando, portanto, a invocação é dirigida igualmente
ao Espírito Santo, como ao Pai e ao Filho, esta frase ensina que o Espírito Santo não é apenas
uma pessoa, mas também onipotente, ouvinte e salvador. Pois tudo isso está incluído na
invocação, que dá igualmente honra ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. Há, portanto, uma
terceira pessoa, o Espírito Santo, e Ele se distingue do Pai e do Filho, como eu disse acima,
porque Ele procede do Pai e do Filho, e é enviado aos corações que são regenerados pela voz do
Evangelho, para que reconheçam e invoquem a Deus numa nova luz, e neles comece a vida
eterna, enquanto se consolam na fé.
João 14 (v. 16): “Eu pedirei ao Pai, e Ele lhe dará outro Paráclito (Consolador)”. Quando Ele
diz, outro, Ele distingue este Paráclito do Pai e do Filho. Portanto, não significa que o Espírito
move o próprio Pai, pois não haveria outro; nem significa uma agitação criada, pois não seria
enviada pelo Filho se fosse o Pai fazendo a agitação, ou apenas uma agitação criada pelo Pai.
Mas quando Cristo diz em João 15 (v. 26): “Quando vier o Paráclito, que Eu os enviarei do Pai, o
Espírito da verdade, que procede do Pai”, Ele diz de si mesmo sobre enviar o Espírito Santo.
Portanto, não é o Pai agitando ou apenas uma agitação criada pelo Pai.
Há também essas pessoas próprias: Outro Paráclito, que lhe ensinará, e o que Ele ouvir, Ele
falará. Se o Espírito significasse um movimento criado, seria ensinando, não um mestre além do
Pai e do Filho, ouvindo e recebendo.
Assim também Paulo em 1 Coríntios 12 (v. 11) distingue claramente o Espírito Santo dos
dons criados, o autor dos efeitos: “Todas essas coisas”, diz ele, “são feitas por um e o mesmo
Espírito”.
Romanos fala da mesma maneira, no capítulo 8 (v. 16): “O próprio Espírito dá testemunho
do nosso espírito”. Ele também distingue aqui o mover e consolar do Espírito Santo Consolador,
pela qual o coração é elevado e vivificado.
2 Coríntios 3 (v. 18): “Somos transformados como que pelo Espírito do Senhor”. Onde ele
também distingue o criador do direito criado para nós pela luz, como é dito ali, ou seja, do
conhecimento claro e firme, ou seja, fé firme e invocação.
No mesmo lugar, ele diz expressamente que o Espírito é o Senhor, isto é, Deus; pois quando
ele diz: “O Senhor é Espírito”, o artigo dá o lugar e a compreensão do assunto ao nome Espírito.
Basílio cita este lugar desta forma.
Agora, que o Espírito Santo estava diante do Filho de Deus encarnado, Pedro testifica
claramente quando fala dos profetas (1 Pedro 1. 11): “O Espírito de Cristo neles predizendo que
Cristo sofreria”. É claramente chamado de Espírito de Cristo aquele que estava no período dos
profetas. Portanto, pelo mesmo Espírito Santo, tanto os Pais da Igreja como os Apóstolos e os
piedosos depois disso, isto é, todos os eleitos foram santificados em todos os tempos.
E as palavras de Isaías 59 ensinam isso muito mais claramente (v. 21): “Esta é a minha
aliança com eles”, diz o Senhor, “o Meu Espírito que está em você, e as Minhas palavras que pus
na sua boca não se apartarão, nem da boca da sua descendência, diz o Senhor, desde agora e para
sempre”. Ele diz que o mesmo Espírito está em Isaías e em toda a Igreja por toda a eternidade.
Portanto, não foi somente após a ressurreição de Cristo que o Espírito Santo foi derramado no
peito dos santos, mas todos os eleitos foram sempre santificados pelo mesmo Espírito Santo. E,
de fato, as palavras de Isaías apresentam o mais doce ensinamento e consolação: afirma que a
Igreja de Deus sempre permanecerá, e que permanecerá onde quer que soe a voz do Evangelho, e
que o Espírito Santo é eficaz com essa voz. E em Zacarias 7 (v. 12) está dito: “As palavras que o
Senhor dos Exércitos enviou no Espírito Santo pela mão dos profetas anteriores”. Por esta
palavra, ambos são afirmados, que os Profetas foram guiados pelo Espírito Santo, e que a palavra
de Deus não era um som vazio, mas que o Espírito Santo estava presente, e com essa voz moveu
e acendeu as mentes, que deve ser firmemente estabelecido para os piedosos, para que saibam
que Deus é verdadeiramente eficaz por meio de sua palavra na mente daqueles que creem e que
neles se acende a vida eterna, como em Gálatas 3 (v. 14) é dito: “Para que possamos receber a
promessa do Espírito pela fé”, como direi novamente abaixo.
Assim também Isaías capítulo 63 (v. 11) afirma que o Espírito Santo era o líder e governador
de Moisés e do povo no deserto. Com isso ele quer dizer que Espírito Santo sempre estará na
Igreja de Deus. Assim Cristo diz claramente em João 14 (v. 16): “Ele os dará outro Paráclito,
para permanecer com vocês para sempre, o Espírito da verdade”. Estas são as palavras de Isaías:
“Onde está Aquele que os tirou do mar com o pastor do Seu rebanho? Onde está aquele que pôs
neles o Seu Espírito Santo, que guiou a Moisés à destra de Sua majestade, que dividiu as águas
diante deles?”. E então acrescenta: “O Espírito do Senhor foi seu guia”[35].
Esses ditos mostram que a doutrina do Espírito Santo existia nos Pais da igreja e profetas. É
por isso que até os antigos entenderam esta afirmação em Gênesis sobre o Espírito Santo, que é a
pessoa da divindade. “E o Espírito do Senhor se movia sobre as águas”. Pois Basílio assim diz:
“Se é mais verdadeiro e narrado por aqueles que foram antes de nós”, ele fala do Espírito Santo
de Deus, porque a Escritura observa isso, de modo que quando ele diz: “Espírito de Deus”, ele
entende o Espírito Santo, que é a terceira pessoa da Trindade divina. E se você entender as
palavras de Moisés dessa maneira, você terá maior vantagem. Como ele foi carregado nas águas?
Vou contar o discurso de um sírio, que disse: “A palavra usada aqui significa a mesma coisa,
‘que aquece com calor vital’, como uma ave em incubação aquece seus ovos”. Até agora é
Basílio. Mas os testemunhos citados do Novo Testamento são mais ilustres. No entanto, de
qualquer maneira que você explique esta afirmação em Gênesis, ela ainda significa nutrir a Igreja
incubando, ensinando e acendendo nela a luz e a invocação do Espírito Santo. Isso deve ser
mantido na fé mais firme, como em Atos capítulo 2 (v. 33), quando se diz que Cristo estava
sentado à direita do Pai, ao dar o Espírito. O mesmo é transmitido naquele dito: “Ele ascende e
dá dons aos homens”[36]. Com esta fé, portanto, pedimos que o Filho de Deus nos governe pelo
Seu Espírito Santo.
Revisei as evidências que nos convencem de que o Espírito Santo é uma pessoa, às quais
também acrescentarei 1 João 5 (v. 7): “Três são os que testificam no céu, o Pai, a Palavra
(Logos) e o Espírito Santo, e estes três são um”. O que ele diz eloquentemente, “Eles dão
testemunho”, nos lembra da revelação de Deus de que devemos reconhecer Deus como Ele se
revelou. Deus testemunha sobre si mesmo, quem e o que Ele é, o verdadeiro Deus, criador das
coisas, preservador e provedor. Ele testifica tanto de Sua doutrina quanto de Sua vontade para
conosco, e afirma que há três no céu que deram testemunho.
Portanto, as provas de discriminação de pessoas devem ser mantidas. O Pai revelou-se e
distinguiu-se ao clamar: “Este é o meu Filho amado”. Também em João 12 (v. 18): “E Eu
glorifiquei e glorificarei”. O Filho testifica do Pai, de si mesmo e do Espírito Santo em Sua
doutrina, que Ele conferiu por milagres e Sua própria ressurreição. O Espírito Santo se distingue
porque é derramado de maneira especial sobre Cristo e os Apóstolos, e depois é testemunhado
em invocação, confissão, milagres, coragem para suportar castigos, etc. Não é em vão, portanto,
que João menciona o testemunho; mas por essa razão ele fala dessa maneira, para nos lembrar
que devemos reconhecer Deus como Ele se revelou e que podemos ser confirmados pela
publicação da própria evidência.
Embora as declarações do Novo Testamento sejam mais claras, os testemunhos dos Profetas
são consistentes com elas. A pessoa divina é significada nas palavras de Joel (2. 28), quando
Deus diz: “Derramarei do Meu Espírito sobre toda a carne”. Ao dizer: “Meu”, Ele testifica que
não está enviando uma agitação criada, mas algo da essência de Deus. Agora é necessário que
haja uma pessoa distinta, que é algo de Deus, e ainda não é o Pai. Mas quanta misericórdia,
quanto amor há pelo gênero humano, que Deus derrame esse fogo de amor que é co-essencial a
si mesmo?
Basílio também recolheu os testemunhos de muitos que, antes de seu tempo, tinham sido de
grande autoridade na Isso é útil para lembrar, pois os fiéis se fortalecem ao saber que a doutrina
foi transmitida por meio dos testemunhos da verdadeira e pura Igreja, conforme está escrito
sobre a Igreja, que deve ser ouvida (Juízes 14. 18): “A não ser que vocês tivessem pastado com
meu bezerro, não teriam encontrado meu enigma”.
E entre outras coisas ele cita este dito de Eusébio da Palestina[37]: “Invocando o Deus Santo,
o criador da luz por meio de nosso salvador Jesus com o Espírito Santo”. Estas palavras mostram
que os antigos usavam eloquentemente três pessoas na invocação, e que eles usavam essa forma
de falar do Filho, para lembrar a mente ao mesmo tempo da intercessão do Mediador e das
promessas. O testemunho que recitamos no Símbolo também pertence a este: “creio no Espírito
Santo”. Pois, como foi dito acima, creio em Deus Pai e em Jesus Cristo, (nesta forma de falar nos
dirigimos às pessoas e lhes pedimos o bem, e ganhamos confiança na ajuda do Pai e do Filho;) é
dito aqui, “creio no Espírito Santo”, a pessoa é compreendida e pedimos, que este Paráclito
(παρ ἀ χλητος) seja enviado aos nossos corações, nos governe e nos conduza em tantos perigos
da vida, como conduziu Moisés pelo Mar Vermelho, como diz Isaías.
Até agora revisei a verdadeira e salutar doutrina sobre as pessoas, e já que disse que os
testemunhos da verdadeira Igreja não devem ser negligenciados, que os piedosos também leiam
as histórias, e vejam que esta doutrina foi fielmente defendida e ilustrada pelos Sínodos.
Antioquia (Sínodos) refutou Samósata. Niceia (Primeiro Concílio) fundou o Credo Niceno, e
enfatizou particularmente a visão das duas naturezas em Cristo. Constantinopla defende este
artigo, que o Espírito Santo é uma pessoa procedente do Pai e do Filho. Éfeso (Primeiro Sínodo)
condenou Nestório, que havia imaginado que as duas naturezas não estavam unidas em Cristo,
mas que o Logos (λόγον) deveria ajudar a Cristo, como um amigo ajuda um outro amigo.
Calcedônia (Concílio) condenou Eutiques, que confundiu as naturezas e imaginou que o humano
se transformou no divino, como quando o vinho era feito da água, e que as duas naturezas não
estavam unidas. Estes são especialmente os Sínodos cujos julgamentos lembramos e abraçamos.
Pelo contrário, consideremos também na história aqueles que muitas vezes foram ultrajados
contra a verdadeira doutrina da essência de Deus. Marcião e os maniqueus imaginaram dois
deuses igualmente eternos lutando entre si, o bem e o mal; e eles chamaram a luz como sendo
boa, e as trevas más; e eles disseram que as boas naturezas são compostas do bem, e a matéria é
viciosa do mal.
Aprendamos a refutar esses presságios. Pois há um Criador de todas as coisas, e de fato bom,
como foi dito acima na definição de Deus, e em Isaías 45 (v. 6,7) é dito: Além de mim não há
outro Deus que forma a luz e crio trevas ou corpos escuros, que dá paz e cria o mal”, isto é,
corpos pecaminosos.
Evitemos também os prodígios dos valentinianos, que inventaram inúmeros deuses, ou
apenas acumulam nomes alegoricamente (como Hesíodo acumula Noite do Caos, Érebo,
Saturno, Júpiter e outros), ou mesmo pensam que existem inúmeros deuses eternos, porque
parece estranho pensar em alguém em eterna solidão. Desde os primórdios do mundo, o diabo
espalhou e espalha terríveis cóleras, para insultar o verdadeiro Deus e insultar a fraqueza
humana. Diante dessas fúrias, Deus nos deu um certo ensinamento por meio dos Pais, dos
Profetas, de Cristo e dos Apóstolos: Ele quer que a Igreja seja governada por essa luz e não
admite outras crenças. Como um feto está no ventre de sua mãe cercado pelo ventre, assim
saibamos que estamos encerrados pela palavra de Deus, até que, por assim dizer, veremos Deus
abertamente na vida eterna; enquanto isso, agradeçamos a Deus por Ele ter se revelado a nós, e
consintamos reverentemente com Sua revelação.
Deixe-nos saber que não há mais pessoas na divindade do que três: que há um Pai co-eterno
de nosso Senhor Jesus Cristo; um Filho, a imagem do Pai Eterno, Jesus Cristo; um Espírito
Santo; e, no entanto, vamos aprender que essas três pessoas são o mesmo (ομοουσιους), e que
Eles criaram todas as coisas ao mesmo tempo, e as distinções, como recitamos acima, e entender
os benefícios próprios de cada pessoa. Porque Deus se revelou dessa maneira, Ele quer que as
pessoas sejam reconhecidas e distinguidas dessa maneira. O Pai é a fonte de todos os benefícios.
Mas o Filho é propriamente o Mediador e Reconciliador, e se tornou uma vítima para nós
quando assumiu a natureza humana. O Espírito Santo é enviado aos corações dos crentes para
acender nova luz, justiça e vida eterna, como Zacarias O chama (12. 10), “o Espírito da graça e
da paz”, isto é, testificando em nós que fomos recebidos na graça, e comovendo o coração, pois
isso o fez crer e decidir; também nos empurrando para a invocação, porque cremos que já somos
ouvidos.
Essa doutrina das três pessoas é recitada diariamente na oração, sendo a primeira invocação
mais fervorosa. O objetivo é permitir que Deus governe nossos corações, para que possamos
sentir uma conexão profunda com Ele, invocando-O com sinceridade. Essa prática visa nos
manter próximos de Deus, diferenciando-nos daqueles que seguem diferentes crenças, como os
pagãos, judeus não convertidos, muçulmanos, hereges, como Marcião, maniqueus, valentinianos,
samosatianos, arianos e outros grupos fanáticos. Portanto, é essencial preservar uma formulação
precisa e verdadeira dessa doutrina, cuja repetição constante nos lembra da verdadeira fé.
“Deus todo-poderoso, eterno e vivo, eterno Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que se revelou
com imensa bondade e clamou por Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, ouça isto: Criador de
todas as coisas e preservador e provedor com Seu coeterno Filho, nosso Senhor Jesus Cristo,
reinando convosco e manifestando-se em Jerusalém, e derramando o Vosso Espírito Santo sobre
os apóstolos, sábios, bons, misericordiosos, justos e fortes; que disse: ‘Eu vivo, não quero a
morte do pecador, mas que ele se converta’[38]: e ele vive; e disseste: ‘Invoca-me no dia da
angústia, e eu te livrarei’[39]; tem piedade de mim por amor de Jesus Cristo, Teu filho, nosso
Senhor, a quem quiseste que fosse vítima por nós, Mediador e Intercessor[40], e santifica, rei,
ajuda, ilumina meu coração e minha alma com o Teu Espírito Santo, para que Eu possa
verdadeiramente reconhecer e invocar a Ti, para que eu possa realmente crer em Ti, obrigado, eu
farei e obedecerei, governarei e guardarei Tua Igreja, como Tu prometeste, dizendo: ‘Esta é a
minha aliança com eles, meu Espírito, que está em você, e as minhas palavras, que pus na sua
boca, não se afastarão da boca da sua descendência para sempre’[41]. Que seu Evangelho sempre
brilhe em nós, e governe e fortaleça nossos corações com seu Espírito Santo, para que não nos
precipitemos na fúria de epicuristas ou fanáticos, guie os estudos da Igreja e proteja as políticas
que oferecem hospitalidade às Igrejas”.
Em tal invocação pensemos todos os dias na essência de Deus, na revelação, nos benefícios,
nas promessas. Pois ao mesmo tempo, com este pensamento, somos educados sobre as pessoas e
nossa fé é acesa, e nossa invocação é separada do pagão, judaico e turco, o que deve ser feito.
Pois nenhuma invocação agrada a Deus, a menos que seja feita com pensamento e confiança em
Cristo, o Mediador, como está escrito (João 16. 23): Tudo o que você pedir ao Pai em Meu nome
(isto é, Me nomeando, apontando para Mim como o Intercessor), Ele dará a você”. Da mesma
forma (João 14. 6): “Ninguém vem ao Pai senão por Mim”. Mas provemos que esta verdadeira
invocação transmitida no Evangelho não é vã.
E que a mente e os olhos olhem para as gloriosas evidências da revelação, como o batismo
de Cristo, Cristo ressuscitando os mortos, e depois de Sua ressurreição, mostrando-se a muitos
em conversas familiares, e o envio do Espírito Santo. Essas evidências visíveis foram
apresentadas com o propósito de ensinar e fortalecer a Igreja, e porque foram apresentadas, Deus
quer que sejam vistas e pensadas. Não foi apenas por causa de João Batista que a divindade se
revelou então, mas por este testemunho Deus quis que toda a Igreja de seu tempo e posteridade
fosse fortalecida. Sim, e os anjos aprendem aquele admirável espetáculo de Deus saindo de seus
esconderijos e se mostrando à Sua Igreja. Quando pensarmos nesses testemunhos, uma luz se
acenderá em nossos corações, para que possamos determinar com firmeza que Deus está
realmente presente, e que Ele receberá nossas orações e proverá para nós, como prometeu. Pois
esta fé deve ser levada à oração.
Também usaremos esta forma de piedade dirigida ao Mediador, que também inclui três
pessoas:
“Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, crucificado por nós e ressurreto, que reina à direita do Pai,
para dar dons aos homens, foi designado como Intercessor por nós, tenha misericórdia de mim e
intercede por mim com Seu eterno Pai, e santifica-me com o Teu Espírito Santo, como
prometeste, dizendo: ‘não os deixarei órfãos’, etc”.
Também usamos esta forma piedosa: “Espírito Santo, derramado sobre os Apóstolos, a quem
o Filho de Deus, nosso Redentor, nos prometeu, para ascender em nós o verdadeiro
reconhecimento e invocação de Deus, como está escrito: ‘Eu derramarei sobre vocês o Espírito
de graça e paz’; desperte em nossos corações o verdadeiro temor de Deus, e a verdadeira fé e
reconhecimento da misericórdia que o eterno Pai de nosso Senhor Jesus Cristo nos prometeu por
amor de Seu Filho, seja nosso Paráclito em todos os conselhos e perigos, e acenda nossas mentes
para que a verdadeira obediência ao Pai do Senhor Jesus Cristo e Seu Filho, nosso Redentor, e
nós Te louvaremos para sempre”.
Se assim pensarmos na invocação de pessoas e benefícios, as mentes avançarão no
aprendizado e na piedade. Além disso, que os estudiosos saibam que as denominações de poder e
virtude são comuns a todas as pessoas, isto é, nomeadamente a sabedoria, bondade, justiça,
misericórdia, fortaleza e pureza. Tampouco essas virtudes separam as coisas da própria essência.
Como o poder do Pai é o Pai, assim é a justiça do Pai. Pai, então a justiça do Filho é o Filho.
Deve-se considerar como essas nomeações são usurpadas nos escritos proféticos, e deve-se
tomar cuidado para tratá-las correta e adequadamente.
2. A Criação

Deus queria ser conhecido e visto. Por isso, Ele criou todas as criaturas e usou uma arte
maravilhosa para nos convencer de que as coisas não existiam por acaso, mas sim que existe uma
mente eterna, arquiteta, boa, justa, olhando as ações dos homens e julgando. Embora esta
consideração de toda a natureza nos lembre de Deus (como direi novamente mais tarde);
contudo, no início, refiramos nossa mente e nossos olhos a todos os testemunhos em que o Deus
da Igreja se revelou, à saída do Egito, ao soar da voz no Sinai, a Cristo ressuscitando os mortos, e
ressuscitando e subindo ao céu, à voz do Pai eterno que soa sobre Cristo: atente-se à missão do
Espírito Santo. Estes testemunhos foram emitidos e propostos para educar, convencer e
confirmar-nos mais claramente na fraqueza da natureza; portanto, que suas mentes estejam
sempre fixadas na contemplação desses testemunhos, e fortalecidos por eles, meditem sobre o
artigo da criação, e então consideram também os traços de Deus impressos na natureza.
Ora, há um artigo sobre a Criação em Gênesis 1, e em outros lugares é frequentemente
expresso que o Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, juntamente com o Filho co-
eterno e o Espírito Santo, criou do nada céu e terra, anjos e homens e todos os outros corpos.
Assim em João é dito do Filho (1. 3): “Todas as coisas foram feitas por Ele” (isto é, o Filho). E
do Espírito Santo criando, diz-se no Salmo 33 (v. 6): “Pela palavra do Senhor os céus foram
estabelecidos, e pelo Espírito de Sua boca toda a Sua força”. Mas esta frase ensina que as coisas
foram criadas do nada (v. 9): “Ele disse e tudo se fez, Ele ordenou e tudo foi criado”, isto é, as
coisas vieram a existir por palavra ou mandamento de Deus. Não é que tenham sido construídos
a partir de matéria anterior (como os estoicos imaginavam duas coisas eternas, mente e matéria);
mas quando Deus disse, quando as coisas ainda não existiam, elas começaram a existir, e quando
João diz: “Todas as coisas foram feitas por Ele”, ele refuta o pensamento estoico, que imagina
que a matéria não é feita. É necessário ser advertido sobre o artigo da criação na Igreja.
No entanto, ainda não discutimos este tópico de maneira abrangente. A condição humana,
mesmo que consideremos que Deus a tenha originado, muitas vezes é percebida como algo que
ocorre independentemente Dele, assim como um carpinteiro que, após construir um navio, o
entrega aos marinheiros e se afasta da criação. Isso leva a uma separação entre Deus e Suas
criaturas, criando dúvidas e obscurecendo nossos pensamentos.
Alguns, como os estoicos, acreditam que Deus está restrito às causas secundárias e que tudo
ocorre somente por meio do conhecimento dessas causas. Outros, como os epicuristas, veem o
mundo como regido pelo acaso, misturando todos os eventos. Essas concepções errôneas
frequentemente geram perplexidade nas mentes humanas. Quando enfrentamos situações de
perigo que ultrapassam nossa compreensão, tendemos a atribuir o acontecimento a causas
naturais, levando-nos a acreditar que o mal é incurável, pois acreditamos que a natureza opera
independentemente de Deus.
Frente a essas incertezas, é essencial fortalecer a mente por meio de uma reflexão mais
profunda sobre o artigo da criação. Deve-se compreender não apenas que Deus é o Criador de
todas as coisas, mas também que Ele constantemente preserva e sustenta as substâncias das
coisas criadas. Anualmente, Deus torna a terra fértil, permitindo que ela produza colheitas e
conceda vida aos seres vivos. Esse ato contínuo de preservação e manutenção é conhecido como
a ação geral de Deus, embora isso não o vincule às causas secundárias de forma a impedi-Lo de
agir de maneira independente. Deus age livremente, mantendo a ordem de Sua criação, mas
também intervém em diversos eventos para o benefício da humanidade. A natureza das coisas
responde às orações de indivíduos justos, como Moisés, Elias, Eliseu e Isaías, como Cristo
afirma em Mateus 21:22: “Tudo o que pedirem, crendo, receberão”. Da mesma forma, o Salmo
55:23 nos diz para “lançar nossas preocupações sobre Deus, e Ele nos sustentará”.
Deus está presente às suas criaturas, mas não está presente como um deus estoico, mas como
um agente muito livre, sustentando a criatura e a controlando com Sua imensa misericórdia,
dando dons, ajudando ou dificultando causas secundárias. É necessário que os piedosos sejam
lembrados dessa distinção. Apeguemo-nos, portanto, às evidências que ensinam que há um Deus
das coisas naturais, e que Ele é seu governador e diretor, para que em nossos perigos não
sejamos quebrados pelos pensamentos de epicuristas ou estoicos, não pensemos que por acaso
somos oprimidos pelas adversidades, ou que a ordem fatal das causas é imutável, nem que as
coisas são secundárias ao acaso, ou apenas nos refiramos às causas físicas, mas reconheçamos
mais verdadeiramente a Deus como doador das coisas boas e controlador da natureza. Atos 17
(v. 28): “N’Ele vivemos, nos movemos e existimos”, ou seja, por meio d’Ele nossa vida é dada,
sustentada e encorajada. Hebreus 1 (v. 3): “Trazendo todas as coisas pela palavra do Seu poder”.
Colossenses 1 (v. 17): “Todas as coisas consistem n’Ele”. Em 1 Timóteo 6 (v. 13) acrescenta-se
a descrição de Deus: “Quem dá vida a todas as coisas”. 1 Timóteo 4 (v. 10): “Esperemos no
Deus vivo, que é o salvador de todos os homens, especialmente os fiéis”, ou seja, faz o bem a
todos, favorecendo a vida, produzindo colheitas, preservando o gênero humano, para que possa
reunir a Igreja para si a partir daí, mas sobretudo ajudando a Igreja, na qual não só anima os
corpos, mas também concede bens eternos. 1 Timóteo 6 (v. 17): “Viver em Deus, que nos provê
abundantemente em todas as coisas para desfrutar”. Mateus 10 (v. 29, 30): “Dois pardais estão
chegando, e nenhum deles não cairá no chão sem o seu Pai”; e “todos os cabelos de sua cabeça
estão contados”. Salmo 104 (v. 27-30): “Todas as coisas dependem de Ti, que Tu lhes dês o
alimento a seu tempo; quando Tu os deres, eles ajuntarão; quando Tu abrires a Tua mão, todas as
coisas serão cheias de bondade; quando Tu virares o teu rosto, eles se perturbam, tirar-lhes-á o
espírito, e eles desfalecerão, e voltarão ao pó da terra. Envia o Teu espírito, e eles serão criados, e
renovarás a face da terra”. Salmo 145 (v. 15, 16): “Os olhos de todos esperam em Ti, e Tu lhes
dás de comer no tempo certo, abres a mão e enches de bênçãos todos os seres”. Salmo 33 (v. 13-
15): “O Senhor olhou do céu, Ele vê todos os filhos dos homens, Ele molda seus corações com
um selo, Ele entende todas as suas obras”. Salmo 147 (v. 8): “Aquele que cobre o céu de nuvens
e prepara a chuva para a terra; que produz feno nas montanhas; que dá de comer aos animais e
aos filhos dos corvos que O invocam”. Salmo 36 (v. 6): “Tu ajudarás os homens e os animais,
Senhor”. Houve muitas promessas especiais da Igreja sobre a vida, o alimento e a defesa do
corpo, que também testemunham que Deus está presente nas criaturas, de que nos sustenta e
controla as causas naturais. Salmo 33 (v. 18, 19): “O Senhor se compraz com aqueles que O
temem, resgatando suas almas da morte e os alimentando em meio a fome”. Salmo 34 (v. 10):
“Não há falta para aqueles que O temem”. Salmo 37 (v. 19): “Eles não serão confundidos no
tempo mau, e serão saciados nos dias de fome”. Oseias 2 (v. 8, 9): “E não sabia estas coisas, que
Eu lhe dera trigo; portanto, tirarei Meu trigo novamente”. Estas promessas ensinam o mesmo
sobre bênçãos e maldições. Deuteronômio 28 (v. 11): “O Senhor fará com que você abunde com
o fruto da sua terra”. Da mesma forma (v. 23): “Haverá um céu eterno”. Deuteronômio 30 (v.
20): “Ele é a sua vida e a duração dos seus dias”. E Provérbios 3 (v. 33): “A necessidade do
Senhor está na casa dos ímpios, mas as moradas dos justos serão abençoadas”. Provérbios 10 (v.
22): “A bênção do Senhor enriquece”. Salmo 127 (v. 1): “A não ser que o Senhor edifique a
casa, quem a constrói trabalha em vão”. Aqui é afirmado claramente que as causas secundárias
são nulas, a menos que sejam ajudadas por Deus. Salmo 100 (v. 3): “Saiba que o próprio Senhor
é Deus, Ele mesmo nos fez, e não nós mesmos”; mas nós, seu povo e as ovelhas de seu pasto, ou
seja, não nascemos por acaso, nem vivemos apenas por causas secundárias, por nossos próprios
planos e poderes, mas por Deus nos dando vida e nos guardando.
Finalmente, a oração dominical ensina a mesma coisa, quando nos ordena a pedir a Deus o
pão nosso de cada dia. Portanto, confessemos que Deus concede a vida e que a terra não é
frutífera a não ser que Deus a ajude.
Coletei uma quantidade moderada de evidências que narra o artigo sobre a Criação e afirma
que Deus está presente como sustentador e controlador da criação, e refuta as crenças epicuristas
e estoicas. Pois, como Deus promete coisas boas aos piedosos e aos que O invocam, e ameaça
punir os ímpios, é claro que Ele age livremente e não está vinculado a causas secundárias, mas
atenua muitas coisas por causa dos piedosos e exaspera muitas coisas por causa dos ímpios.
Como os exemplos mostram. Por causa da adoração de ídolos não choveu durante o reinado de
Acabe por três anos, mas as chuvas foram devolvidas a pedido de Elias. Por tais evidências, a
mente deve ser fortalecida na invocação. Pois não podem pedir a Deus o sustento e a defesa da
vida, se se sentem fascinados pelas opiniões dos epicuristas ou dos estoicos, ou pensam que tudo
acontece por acaso, ou que Deus não controla as causas secundárias. Sim, é por isso que Deus
entrega colheitas aos homens, porque eles pensam que nascem por alguma força natural, mesmo
que Deus não os encoraje, e eles não usam o dom que lhes foi dado com reverência, nem temem
o doador, como o dito de Oseias, que citei acima, nos adverte.
A mente humana é convencida por demonstrações a admitir que este mundo foi fundado por
Deus. Mas a presença de Deus como controlador, mesmo que essa opinião também tenha alguns
argumentos, como as punições de crimes atrozes, ainda assim é mais obscura. Portanto, porque o
assentimento é mais difícil, a fé deve ser despertada e fortalecida nos corações pelos testemunhos
divinos, para que possamos invocar a Deus e pedir com fervor e esperar d’Ele coisas boas, como
Ele ordena (Salmo 50. 15): “Invoque-Me no dia da angústia e Eu o livrarei”. Também (Salmo
37. 5): “Entregue o seu caminho ao Senhor, e Ele o fará”.
Mas, depois que a mente foi confirmada na opinião verdadeira e correta sobre Deus e sobre a
criação e a presença de Deus nas criaturas, e sobre o controle das causas secundárias da palavra
de Deus e dos testemunhos ilustres em que Deus se revelou ao gênero humano de modo
particular, como na saída do povo do Egito, na ressurreição dos mortos e por outros feitos
surpreendentes dos Profetas, Cristo e dos Apóstolos; então também é útil e deleitoso olhar para a
obra do mundo e buscar nela vestígios de Deus e coletar demonstrações que atestem que este
mundo não veio à existência por acaso, mas que Deus é a mente eterna, o Criador das coisas.
Pois é por isso que toda a natureza foi criada: para mostrar Deus. E se as mentes humanas
tivessem retido a primeira luz, essas informações sobre Deus teriam sido muito mais claras. Ora,
eles estão perturbados por muitas dúvidas. Mas é útil para as boas mentes realizar algumas
demonstrações que mostram que existe um Deus; assim como Paulo nos leva a olhar para os
trabalhadores do mundo, em Romanos 1 (v. 20) e em Atos (17. 27) ele diz, “Deus estava tão
perto que quase podia ser tateado com as mãos”. Vou, portanto, recitar brevemente algumas
demonstrações, cuja consideração é útil para treinar e confirmar opiniões honestas nas mentes.
A primeira é tirada da própria ordem da natureza, isto é, dos efeitos que mostram um criador.
É impossível que uma ordem permanente na natureza tenha surgido por acaso e permaneça por
acaso, ou que tenha surgido apenas da matéria. As partes principais são ordenadas na natureza,
de modo que permanece uma ordem perpétua dos movimentos celestes, em que o homem nasce
do homem, e o gado nasce dos bois, da fertilidade da terra, da perpetuidade dos rios, do
conhecimento natural na mente dos homens. Portanto, a natureza não surgiu por acaso, mas sim
de alguma mente que compreende a ordem.
A segunda é da natureza do ser humano. A matéria bruta não é a causa da natureza
inteligente; as mentes dos homens têm alguma causa, porque o homem não tem existência por si
mesmo, mas começa e surge de outro lugar; portanto, é necessário que alguma natureza
inteligente seja a causa da mente humana. Portanto, é necessário que haja um Deus.
A terceira é da discriminação de honrosos e profanos, e outros fatos naturais, como ordem e
números. É impossível que a distinção entre o honesto e o profano na mente tenha surgido do
acaso ou da matéria, assim como os dados da ordem e dos números sejam acidentais. Portanto, é
necessário ter alguma mente arquitetônica. E essas duas razões são as mais ilustres de todas. É
digno de consideração que a mente humana e essa luz inata da mente é a evidência mais
importante de Deus na natureza, e de fato isso também está entre as informações naturais, que
Deus, como Paulo diz, se revelou a nós, isto é, Deus revelou isso à mente humana, o
conhecimento de que Ele é Deus, e ao mesmo tempo introduziu esses raciocínios a partir de
efeitos.
Em quarto lugar, o conhecimento natural é verdadeiro: todos naturalmente admitem que
existe um Deus; portanto, esse conhecimento é verdadeiro. Isso seria menos claro se a natureza
não tivesse sido corrompida, mas deve ser confirmada pelos outros argumentos que recitei.
A quinta: de Xenofonte (Memor. Socr. 1. 4, 16) é tirado os terrores da consciência.
Concorda-se que assassinos e outros que cometeram grandes crimes sofrem horríveis torturas
mentais, mesmo que não temam julgamentos humanos. Há, portanto, uma certa mente que
ordenou o julgamento nas almas, que aprova o que é feito corretamente e desaprova o que é feito
de outra forma.
Sexto: a sociedade política. Uma sociedade política não é uma reunião aleatória de homens,
mas uma multidão unida por ordem e lei definidas; nem poderia ser restringido apenas pela ajuda
humana, mas a experiência testemunha que aqueles que violam essa ordem, como assassinos,
incestuosos e tiranos, são levados por alguma divindade à punição. Portanto, há uma mente
eterna que deu aos homens a compreensão da ordem, para que possam louvar a sociedade
política; também, que preserva e defende com Sua ajuda.
A sétima é aprendida sendo tirada de uma série de causas eficientes. Não é um processo
infinito em causas eficientes; portanto, é necessário que haja resistência em um dos primeiros
casos. Os físicos explicam claramente essa razão. Pois se houvesse uma progressão infinita, não
haveria ordem de causas e nenhuma causa estaria necessariamente conectada.
Oitavo: sobre as causas finais. Todas as coisas na natureza são projetadas para determinados
propósitos. É impossível que essa distribuição de limites tenha existido por acaso, mas deve ter
sido feita pelo projeto de um arquiteto.
Nono: sobre sinais de eventos futuros. Os eventos futuros são certamente indicados, não
apenas pelos prodígios que moveram as nações, alguns dos quais têm outras causas, mas muito
mais pelas profecias da Igreja, como Balaão, Isaías, Jeremias, Daniel predisseram mudanças e
sucessões de reinos. Portanto, é necessário que haja alguma mente que preveja e anteveja essas
mudanças.
Essas evidências não apenas testemunham a existência de Deus, mas também são evidências
da providência, de que Deus olha para os homens, pune crimes atrozes e favorece alguns, pois a
fertilidade da terra mostra que Deus examina a vida dos homens. Os castigos dos ímpios indicam
que Deus exige que adoremos a justiça. As profecias também sobre impérios, bem como o fato
de que homens heroicos são enviados para restaurar as civilidades e as artes, indicam que Deus
se preocupa com as civilidades. Estes exemplos são claros e sempre movem boas mentes.
Muitas outras coisas poderiam de fato ser coletadas, mas por serem mais obscuras, deixo-as
de fora. Não foi em vão que o conhecimento da lei foi dado ao homem, pelo qual Deus quer ser
adorado. Mas teria sido em vão, a menos que existisse algum julgamento em que houvesse uma
distinção entre o bem e o mal. Mas essas coisas devem ser explicadas em outro lugar. Voltemos
à primeira admoestação, a saber, que aqueles testemunhos especiais em que o Deus da Igreja se
revelou, como na saída do povo de Israel do Egito, na ressurreição dos mortos, e nos outros
milagres que foram operados pelos Profetas, Cristo e os Apóstolos, e então acrescentemos a
palavra proferida por eles, e decidamos que esta é verdadeiramente a vontade de Deus, que foi
exposta nessa palavra, e vamos discernir a Filosofia ou informação natural do Evangelho, isto é,
da promessa de perdão gratuito dos pecados por intermédio do Filho de Deus, como é dito em
lugar pertinente sobre a diferença entre a Lei e o Evangelho.
3. A Causa do Pecado e Contingência
Todos os sábios sempre se perguntaram, sabendo que há uma ordem tão grande da natureza
na maioria das coisas, de onde na raça humana há tanta confusão, tantos crimes e calamidades,
doenças e morte. E os filósofos colocam as causas em parte na matéria, em parte na vontade e em
parte as transferindo para o destino, porque dizem que há uma conexão necessária entre a causa
primeira e todas as causas secundárias, físicas e vontades. E os maniqueus, nascidos de uma
filosofia corrompida, incitaram um frenesi horrível, prejudicial a Deus, e uma moral perigosa em
relação aos dois deuses, o bom e o mal, e da necessidade; e naqueles tempos antigos a Igreja não
foi pouco abalada por esta questão da causa do mal e da contingência. É dever de uma mente
piedosa pensar e falar respeitosamente de Deus, com honestidade verdadeira, benigna, aprovada
pelos severos julgamentos dos piedosos na Igreja, de moral útil, e não procurar um número
infinito de labirintos de astúcia com curiosidade e zelo por disputas.
E esta é uma opinião verdadeira e piedosa, a ser mantida com as duas mãos e mais
verdadeira em todo o peito, que Deus não é a causa do pecado, nem quer o pecado, nem impeliu
a vontade de pecar, nem aprova o pecado. Ele está verdadeira e terrivelmente irado com o
pecado, mas muitas vezes por Sua palavra, Ele declara pelos incessantes castigos e calamidades
do mundo a ameaça da ira eterna. De fato, o Filho de Deus, que apareceu e foi feito vítima do
pecado, mostrou Sua ira contra o pecado acima de tudo, mostrou que o diabo era o autor do
pecado, e que por Sua morte Ele poderia aplacar a grande ira do Pai.
Portanto, Deus não é a causa do pecado, nem o pecado é algo fundado ou ordenado por
Deus, mas é uma terrível destruição da obra e ordem de Deus.
A causa do pecado são a vontade do Diabo e a vontade do homem, que se afastaram
livremente de Deus, sem o desejo ou aprovação d’Ele por essa aversão, e se perderam ao seguir
caminhos contrários aos mandamentos de Deus, assim como a vontade de Eva, que se afastou da
voz de Deus e se perdeu ao se apegar à maçã.
Embora pessoas perspicazes possam levantar muitas questões intrincadas aqui, nós,
deixando de lado as artimanhas das disputas, abraçamos com todo o coração a verdadeira
doutrina que expus, e mantemos os testemunhos divinamente entregues a essa doutrina, mesmo
que não possamos resolver todas as objeções complicadas que são apresentadas. Os testemunhos
são estes:
Gênesis 1. 31: “Deus viu tudo o que tinha feito, e eis que era muito bom”. Isso significa que
tudo estava agradável a Deus, organizado, de acordo com o plano divino, e adaptado para os usos
específicos que seriam benéficos para a humanidade.
Salmo 5. 5: “Tu não és um Deus que tenha prazer na iniquidade”. Ou seja, Deus
verdadeiramente e não de forma simulada odeia o pecado.
João 8. 44: “Quando ele fala a mentira, ele fala do que lhe é próprio, pois ele é mentiroso e
pai da mentira”. Aqui, “pai” significa a fonte e a causa original da mentira. Cristo está
distinguido a mentira da substância, como se dissesse: “A substância é de fato recebida de outro
lugar por parte do Diabo. Pois todos os anjos foram criados por Deus, e alguns deles caíram mais
tarde. Mas o Diabo tem algo próprio, não recebido de Deus, a saber, a mentira, ou seja, o pecado,
que a livre vontade do Diabo gerou”. Estas coisas não entram em contradição, como
explicaremos mais adiante, ou seja, que a substância foi criada e sustentada por Deus, enquanto a
vontade do Diabo e a vontade do homem são as causas do pecado, porque a vontade tinha a
liberdade de se afastar de Deus.
Zacarias 8. 17: “Não planejem o mal em seus corações, e não amem um juramento falso;
pois todas essas coisas Eu odeio, diz o Senhor”. Portanto, visto que não há ódio fingido pelo
pecado na vontade divina, de modo algum devemos concluir que Deus deseja o pecado.
1 João 2:16 - “Pois tudo o que está no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência
dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas é do mundo”. Isso também evidencia que a
vontade de Deus não deseja o pecado.
1 João 3. 8: “Aquele que comete pecado é do Diabo; porque o Diabo peca desde o
princípio”. Ou seja, o Diabo é o primeiro autor do pecado.
Romanos 5. 12: “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a
morte, assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”. Isso significa que o
pecado não é uma coisa criada por Deus, mas o homem, por sua livre vontade, se afastou de
Deus, rejeitou os dons de Deus e trouxe a destruição sobre si mesmo e sua posteridade.
É útil lembrar que as figuras de linguagem hebraicas não entram em conflito com a doutrina
que expus (“endurecerei o coração do Faraó” e coisas semelhantes), ou seja, que essas figuras
indicam permissão, não uma vontade eficaz. Por exemplo, “Não nos deixeis cair em tentação”
significa “Não nos permitas cair em tentação ou não permitas que nos desviemos e caiamos
quando somos tentados”.
Além disso, é útil para os estudiosos entenderem o que é pecado, para que possam discernir
entre as coisas criadas por Deus e o pecado, que é a perturbação ou confusão da ordem divina.
Portanto, é correto dizer que o pecado é uma deficiência ou privação, como os dialéticos
costumam dizer.
A explicação do pecado original é bastante simples. Consiste na falta de iluminação na
mente, ou seja, a ausência de conhecimento claro e uma crença sólida na providência, nas
ameaças e promessas divinas. Também envolve uma aversão na vontade, ou seja, uma falta de
temor, confiança e amor a Deus. No coração, significa a ausência de obediência à lei da natureza,
sendo levado por inclinações vagas e errantes que nos afastam da ordem de Deus.
É evidente que esses males são defeitos, não coisas criadas por Deus, mas sim uma terrível
destruição da natureza humana. Portanto, Deus não é a causa do pecado. Embora Ele auxilie e
preserve a existência da substância humana, Ele permite que a massa humana permaneça como
ela é agora. Assim, se um artesão fizer um copo de chumbo em vez de ouro, é uma justa punição
para a massa deformada, e Deus realmente se ira com essa deformidade. É por isso que Ele
enviou Seu Filho para aplacar Sua ira e curar a ferida da natureza.
Portanto, pode-se entender que Deus não é a causa do pecado que nasce conosco, Ele não o
deseja e não o aprova. A objeção de que Deus se ira com o nada é dissipada quando se
compreende que há uma grande diferença entre a falta de algo privativo e a falta de algo
negativo. A falta privativa exige um sujeito e é uma destruição desse sujeito, como a ruína de um
edifício é a destruição da estrutura. O pecado original é uma mancha e uma confusão nas
próprias partes humanas, e é por isso que Deus o abomina e se ira com ele. Logo, a comparação
com o nada não é válida. Quando se diz que o cavalo de Alexandre “nada é negativo”, isso
significa que ele não tem nenhum defeito ou falta, mas é perfeito em sua condição. Portanto, a ira
de Deus não é direcionada ao “nada” no sentido negativo, mas ao “nada” no sentido de uma
privação ou ausência de uma qualidade que deveria estar presente.
Esta explicação traz alguma luz à próxima explicação sobre o pecado atual, que é o tema de
muitas questões complexas. No entanto, também é fácil entender os defeitos aqui, se você
considerar não apenas as ações, mas a mente que as governa. Quando Eva comeu o fruto, não
estava guiada pela luz de Deus, ficou claro que não estava seguindo a luz de Deus e que sua
vontade estava afastada de Deus, e isso é um defeito. Mesmo que haja movimentos externos e
internos que ocorram, eles são coisas positivas, embora sejam movimentos errantes e causem
alguma confusão na ordem, como um navio sendo impelido de várias maneiras pelo vento e
pelas tempestades. Essa imagem, de certa forma, descreve esses defeitos.
Assim como enquanto um navio está intacto, há alguns movimentos, da mesma forma,
enquanto uma pessoa está viva, de qualquer maneira, há alguns movimentos, por mais errantes e
confusos que sejam. No entanto, Deus não é a causa do pecado. Mesmo que Ele sustente
temporariamente a natureza, os defeitos na mente não são causados por Ele, e a vontade livre de
Eva foi a verdadeira causa de suas ações, pois ela se afastou voluntariamente de Deus.
Com essa doutrina estabelecida, que Deus não é a causa do pecado e não deseja o pecado,
segue-se que há contingência, ou seja, nem tudo o que acontece necessariamente. Porque o
pecado se originou na vontade do Diabo e do homem, e não foi feito por vontade de Deus, as
vontades foram criadas de forma que poderiam escolher não pecar. A causa da contingência de
nossas ações humanas é a liberdade da vontade. E aqui estamos falando sobre a contingência das
ações humanas, não dos movimentos de outras coisas, que são discutidos na física.
Em seguida, devemos reconhecer - e isso é importante - que a Escritura Apostólica concede
ao homem, mesmo após a queda, alguma liberdade de escolher o que está sujeito à razão e de
realizar ações externas de acordo com os mandamentos da lei de Deus. Portanto, a justiça que é
atribuída à lei é chamada de “justiça da carne”, porque o controle externo pode, de alguma
forma, ser mantido pelas forças dessa natureza, como Paulo diz (1 Timóteo 1. 9): “A lei é feita
para os ímpios”, isto é, para conter os não-renascidos e punir os obstinados. Da mesma forma,
(Gálatas 3. 24): “A lei foi nosso tutor”. E se não houvesse alguma liberdade restante na natureza,
não haveria utilidade nas leis, nos mandamentos e no governo civil como um todo. Portanto, há
alguma liberdade que, como mencionei, é a fonte da contingência.
No entanto, quando se afirma que Deus determina a contingência, é importante fazer uma
distinção. Deus determina de maneira diferente as coisas que Ele deseja e as coisas que Ele não
deseja; Ele determina de maneira diferente aquelas que dependem apenas de Sua vontade e
aquelas que dependem parcialmente de Sua vontade e parcialmente da vontade humana.
Deus prevê os pecados de Saul, mas não os quer, nem impele a vontade dele, mas permite
que ele aja de forma contrária; no entanto, Ele ainda decreta como irá punir Saul. Portanto, essa
previsão não impõe necessidade, nem altera o modo de agir na vontade do homem, que ainda
permanece na natureza, ou seja, essa liberdade que ainda está presente.
E isso não contradiz a contingência ou a liberdade, pois Deus sustenta a natureza. No
entanto, a vontade de Eva ainda era a causa de suas ações, porque a liberdade foi um dom dado à
humanidade na Criação, e a sustentação divina não impede esse dom. Assim, no que diz respeito
à liberdade, ela não é impedida pela sustentação divina, mas Deus permite que Saul permaneça
como ele é, e a vontade de Saul é a verdadeira causa de sua ação pecaminosa.
Quanto às passagens mencionadas, como Jeremias 10. 23: “Eu sei, Senhor, que não está no
homem o dirigir os seus passos”, e outras que serão explicadas posteriormente no título sobre
livre-arbítrio, é importante notar que há uma diferença entre falar sobre a escolha da vontade e
falar sobre o resultado ou o sucesso. Pompeu, por exemplo, queria fazer guerra contra César e
queria isso livremente, mas muitos outros fatores influenciaram o resultado, não apenas a
vontade de Pompeu. Portanto, a declaração de Jeremias contém uma doutrina e uma consolação
muito doce. A via do homem, ou seja, a direção das vidas públicas e privadas do homem, ou a
vocação, não pode ser sustentada apenas pelo poder humano. A mente não pode prever e evitar
todos os perigos, muitas vezes se engana, como Josias errou ao iniciar uma guerra contra o Egito.
Existem muitos erros tristes cometidos por aqueles que se consideram sábios, como exclama
Cícero: “Ah, eu nunca sou sábio”[42]. Muitos erros acontecem e criam dificuldades inexplicáveis
para os conselhos humanos, e um único erro muitas vezes leva a uma grande ruína, como o
adultério de Davi. Além disso, mesmo em boas intenções e boas causas, muitas vezes o resultado
não é o esperado. Grandes calamidades podem ocorrer repentinamente, derrubando aqueles que
estavam no auge de sua prosperidade, como é verdadeiramente dito:
“Todos os homens estão pendurados por um fio fino
E o que parece ser forte de repente cai e afunda em ruínas”[43].
Jeremias está pregando sobre essas grandes dificuldades, a fraqueza humana e a instabilidade
das coisas humanas, que têm muitas causas ocultas. Ele também ensina a recorrer a Deus, a pedir
a Ele e a esperar por Sua orientação e ajuda.
Neste ponto, as seguintes passagens devem ser mantidas em mente (Mateus 10. 20): “Não é
você quem está falando, mas o Espírito de seu Pai celestial que está em você”. Da mesma forma
(João 14. 18): “Não os deixarei órfãos”. Da mesma forma (Filipenses 2. 13): “É Deus quem
permite que você queira e alcance”. Da mesma forma (Lucas 11. 13): “Quanto mais Ele dará o
Espírito Santo para aqueles que pedirem”. Da mesma forma, Salmo 36 (v. 23): “Os atos do
homem serão dirigidos pelo Senhor”. Com base nessas promessas, devemos pedir e esperar ajuda
de Deus, reconhecendo que não podemos agir sem a ajuda d’Ele, como disse Jesus em João 15.
5: “Sem Mim nada podem fazer”. E João Batista (João 3. 27): “Um homem não pode tomar nada
para si, a menos que lhe seja dado do céu”.
Pompeu, Brutus, Antônio e muitos outros fizeram grandes esforços, mas Deus elevou outros.
Portanto, embora essas palavras se refiram à ajuda de Deus em boas e salutares ações, não se
deve concluir que não existe liberdade de escolha humana. Muito menos se segue que todas as
coisas boas e más aconteçam necessariamente e sejam feitas por Deus. Portanto, a declaração de
Jeremias deve ser entendida corretamente, ou seja, que a orientação e a ajuda humanas por si só
não podem realizar o que é salutar.
Aprendamos que é um grande e generoso dom de Deus sermos auxiliados para que
possamos ser instrumentos da salvação de Deus em todo o serviço, e não desertemos como
flagelos da humanidade, como Faraó, Nero, Mani e outros semelhantes. E que a declaração de
Cristo, “Sem Mim nada podem fazer”, nos desperte a orar com fervor, pedindo sermos
governados por Deus. É evidente, porém, que isso não implica que Deus seja a causa eficaz do
pecado. Pelo contrário, a Igreja de Deus, sabendo que Deus verdadeiramente e seriamente odeia
as luxúrias de Nero, nunca dirá que elas aconteceram necessariamente ou que aconteceram com a
vontade de Deus.
Estas passagens são frequentemente citadas: Efésios 1. 11: “Eleitos segundo o propósito
d’Aquele que faz todas as coisas segundo o conselho da Sua vontade”, e 1 Coríntios 12. 6: “E há
diversidades de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos”. É certo que essas
passagens, quando colocadas em seus contextos, falam apenas da Igreja e das ações salutares que
Deus desperta e governa em Sua Igreja; elas não se referem à sustentação universal das coisas ou
aos movimentos individuais de todas as criaturas vivas. Portanto, essas passagens devem ser
interpretadas corretamente e não devem ser aplicadas além de seu contexto original.
Paulo nos lembra que a Igreja não é preservada e governada por conselhos humanos ou pela
força humana, mas sim pelos maravilhosos atos de Deus. A preservação de Noé no dilúvio, a
defesa do povo no Egito e no deserto, as ações de Moisés, Josué, Samuel, Davi e outros piedosos
foram e são obras de Deus despertadas neles para ajudar a Igreja e promover a verdadeira
doutrina.
Portanto, essas palavras são consoladoras, testemunhando que Deus está presente com os
membros de Sua Igreja e ajuda os Seus em perigos e aflições. Deus ajudou Davi na batalha;
ajudou Lourenço à beira da morte para que não renunciasse à sua confissão, apesar do medo[44].
Portanto, confiemos nessas palavras e promessas, e peçamos que Deus nos governe, como
frequentemente clama o Profeta: “Guia-me na Tua verdade e ensina-me, etc.”[45]. “Tu fazes todas
as coisas salutares em Tua Igreja; sê eficaz em mim também, como membro de Tua Igreja; faze
de mim um instrumento de salvação e um vaso de misericórdia, etc.”. A explicação dessas
palavras traz luz a muitos outros ditos semelhantes.
Por fim, deve ser acrescentado que é correto dizer que há dois tipos de necessidade. Uma é a
necessidade absoluta, quando algo ou uma proposição é necessária em si, e colocar o oposto é
absolutamente impossível e destruiria todas as coisas. Exemplos de proposições que são
necessárias por necessidade absoluta são: Deus existe, Deus é essência, inteligente, eterno, de
sabedoria infinita, poder infinito, justiça, bondade, deseja o que é justo, é casto, não deseja o que
é contrário à Sua mente, nem injustiça cruel ou lascívia incestuosa, etc.
No entanto, há outra necessidade, chamada de necessidade de consequência, que se refere a
coisas ou proposições que poderiam, por sua natureza, ser diferentes, mas que se tornam
necessárias devido a causas anteriores ou porque foram determinadas. Existem grandes
diferenças entre esses dois tipos de necessidade. Por um lado, Deus determina coisas boas que
Ele deseja, muitas das quais Ele expressou claramente, como a ressurreição dos mortos em um
dia específico; isso é uma necessidade de consequência. Por outro lado, Ele determina coisas
ruins que Ele não deseja, quando estabelece limites e não permite que o mal progrida mais além.
Isso também se torna necessário, como no caso de Faraó perseguindo os israelitas. Não é
naturalmente necessário, mas acontece devido às circunstâncias. Seria possível que acontecesse
de forma diferente, mas, porque ocorre assim, é considerado necessário por necessidade de
consequência. Essa distinção pode parecer simplista, mas é útil, e frequentemente ensinada em
escolas, para que possamos entender quais eventos realmente dependem da vontade de Deus e
quais ocorrem por outras razões.
Neste contexto, também é importante mencionar a necessidade física, como o fato de o fogo
aquecer necessariamente ou o sol se mover necessariamente. Mas a doutrina da Igreja afirma que
essa é uma necessidade de consequência. O sol se move dessa maneira porque Deus estabeleceu
essa ordem, mas Ele pode mudá-la, como demonstram as histórias de Josué e Ezequias na
Bíblia[46]. Esses conceitos são discutidos de forma mais detalhada em outros lugares.
Li os principais tópicos que costumam ser debatidos nesta questão, e após uma análise
cuidadosa deles, os estudiosos poderão julgar corretamente toda essa controvérsia e
compreenderão claramente que as opiniões estoicas não devem ser introduzidas na Igreja. Como
alguém pode invocar a Deus se acredita que tudo acontece necessariamente? Além disso, é
moralmente prejudicial acreditar naquilo que é dito na tragédia: “A culpa é do destino, ninguém
se torna culpado pelo destino”[47]. Assim como o servo de Zenão alegou estar sendo punido
injustamente porque foi forçado pelo destino a pecar. Portanto, devemos evitar tais discursos e
opiniões. Pão se expressa de maneira mais nobre, como se lê em seu segundo livro da República
(πολιτειών): “Devemos lutar com todas as nossas forças para que ninguém na cidade que
desejamos governar, seja velho ou jovem, em poesia ou em qualquer outra narrativa, diga ou
ouça que Deus é a causa de algum mal. Isso não pode ser dito de forma santa, não é benéfico
para a cidade e não concorda com a explicação”.
Acrescentarei uma explicação que, ao meu ver, é adequada para mentes piedosas, embora a
objeção seja comum e perturbe às vezes as mentes e as leve a opiniões absurdas. Embora haja
uma resposta mais sutil e elaborada para essa objeção, apresentarei uma explicação mais simples
e evidente, baseada na ideia de que Deus está presente nas criaturas não como o Deus estoico,
vinculado às causas secundárias, movendo-as simplesmente como elas movem, mas como um
agente supremamente livre, sustentando a natureza e agindo de forma diferente em diferentes
situações, de acordo com Seu propósito.
Assim como no mundo físico, embora Deus sustente a natureza, Ele às vezes ordena que o
sol retroceda, impede a chuva por três anos e depois a concede abundantemente, torna as
mulheres estéreis fecundas, para que saibamos que muitas coisas acontecem no mundo físico
para além do poder das causas secundárias, e ainda assim Deus as sustenta. Muitas pessoas são
salvas de vários perigos, seja em doenças, em batalhas, ou na água, onde as causas secundárias as
abandonam. Portanto, para que a invocação a Deus seja verdadeira, devemos entender que Deus
está presente em Sua obra não como os estoicos imaginam, vinculado às causas secundárias, mas
sustentando a natureza e governando muitas coisas de acordo com Seu conselho supremamente
livre.
Deus age da mesma maneira com a vontade, sustentando e auxiliando aqueles que agem de
acordo com a ordem, mas não ajudando aqueles que se desviam dela, embora Ele os sustente. Ele
criou a vontade de Eva de tal forma que ela fosse uma agente livre, capaz de manter a ordem ou
de se afastar dela. Portanto, esta é a explicação mais simples: a segunda causa não age sem a
primeira, ou seja, sem a sustentação. Isso é verdade universalmente, mas nem sempre envolve
ajuda; pois a primeira causa não ajuda a produzir um efeito que Deus não deseja. Portanto, a
vontade de Eva é a causa imediata de seus atos quando ela se afasta de Deus.
Não é da mesma maneira que o estoico e o cristão entendem esta proposição: “A segunda
causa não age sem a primeira”. Os estoicos acreditam que há uma conexão semelhante em todas
as coisas, seja no bem ou no mal, como a conexão essencial entre o macho e a fêmea na
procriação. No entanto, os cristãos precisam distinguir entre o bem e o mal: “A segunda não age
sem a primeira”, ou seja, sem a sustentação; mas muitas vezes a primeira causa age sem a
segunda, porque é um agente livre. E a segunda também é livre, como a vontade de Eva age
erroneamente sem a ajuda da primeira, porque tal é a natureza da liberdade. Esta é uma
explicação clara, sem ser excessivamente sutil.
Outros dizem assim: “A segunda não age sem a primeira, produzindo algo de positivo; a
segunda, como a vontade de Eva, age cometendo um erro”. Nesse caso, a resposta é que ela age
não de forma positiva, mas desviada e falha. Se essa solução for explicada com a primeira, será
mais clara, e é apropriado pensar que a conexão entre a primeira e a segunda causa é do tipo que
Deus, como agente livre, deseja, não como a conexão entre macho e fêmea que imaginamos.
Essas discussões são difíceis, então quando pensamos em Deus, devemos direcionar nossa
mente e nossos olhos para a revelação de Deus, para que possamos reconhecê-Lo como Ele se
revelou, e então afirmamos que Deus está presente livremente e ajuda aqueles que O invocam,
como Ele prometeu: “O Senhor está perto de todos os que O invocam”[48].
As palavras sobre a ação individual e a ajuda devem ser impressas em nossas mentes. Agora,
essa discussão obscura sobre a sustentação geral não pode ser completamente compreendida,
assim como a própria criação não pode ser compreendida. Em resumo, devemos aceitar esta
proposição: “Deus está presente em Sua obra, não como o Deus estoico, mas verdadeiramente
como um agente livre, sustentando a criação e governando muitas coisas”.

4. A Força Humana e o Livre Arbítrio


Valla[49] e muitos outros diminuíram a liberdade da vontade humana porque acreditam que
tudo acontece de acordo com a vontade de Deus. Essa ideia, derivada das discussões estoicas, os
leva a negar a contingência das ações boas e más, até mesmo de todos os movimentos em
animais e elementos. No entanto, como mencionei anteriormente, essas opiniões estoicas não
devem ser adotadas na doutrina da Igreja, e a necessidade fatal de tudo não deve ser defendida,
mas deve-se conceder alguma contingência. Alexandre, por exemplo, não precisava matar
Clito[50].
Quando se trata da vontade humana e outras faculdades humanas, estamos discutindo
principalmente a fraqueza humana, não todos os movimentos na natureza como um todo.
Devemos considerar nossa própria fraqueza mental, bem como a fraqueza de nossa vontade e
coração. A Igreja apresenta essa doutrina sobre nossas fraquezas não para promover as opiniões
estoicas, não para envolver as mentes em discussões confusas e insolúveis, mas para nos mostrar
os benefícios do Filho de Deus, que foi enviado para destruir as obras do Diabo, que causou uma
triste ferida na natureza humana.
É importante, no entanto, instruir os menos instruídos a compreender as distinções e os
termos usados pelas ciências naturais e a relacioná-los com as expressões dos Profetas e
Apóstolos.
No ser humano, há uma parte que conhece e julga, chamada mente, intelecto ou razão, e
nesta parte estão as noções. A outra parte, chamada vontade, é a que obedece ou se opõe ao
julgamento, e sob a vontade estão as inclinações dos sentidos ou afetos, cujo sujeito e fonte é o
coração, que às vezes está de acordo e às vezes entra em conflito com a vontade. Há também um
lugar na vontade para as motivações. A explicação disso pode ser obtida a partir das ciências
naturais.
Essas duas partes, mente e vontade, juntas, são chamadas livre-arbítrio. Ou seja, o livre-
arbítrio é a faculdade da vontade para escolher e desejar as coisas que foram mencionadas e
também para rejeitá-las, embora essa faculdade, que na natureza original era muito superior,
agora esteja de várias maneiras prejudicada, como discutirei posteriormente. Mas por enquanto,
quero esclarecer a terminologia mais comum. O livre-arbítrio é exemplificado pelo fato de que
Fabrício recusou aceitar o ouro oferecido por Pirro ou que Antígono se recusou a olhar para a
cabeça de Pirro que lhe foi trazida após sua morte[51]. No entanto, nas escrituras dos Profetas e
Apóstolos, esses termos são a mente e o coração, que são usados genuinamente para intelecto e
vontade, não de forma simulada, abrangendo julgamento e desejos verdadeiros, não simulados,
não apenas ações externas. Há longas discussões sobre o termo “livre-arbítrio” que podem ser
facilmente discernidas por aqueles que se aprofundam. Deixando isso de lado, discutiremos o
tópico em questão.
Por que, então, alguém duvidaria se a vontade humana é livre, como se pergunta na Igreja, e
até que ponto a vontade humana pode obedecer à lei de Deus? Sobre essa questão, não podemos
julgar a menos que consideremos a grandeza do pecado que nasce conosco, ou seja, nossa
fraqueza natural. Além disso, não podemos julgar a menos que saibamos que a lei de Deus exige
não apenas ações civis externas, mas também uma obediência completa e perfeita de toda a
natureza humana, de acordo com a passagem: “Amará o Senhor seu Deus de todo o seu coração,
etc.”. Pois se a natureza humana não estivesse corrompida pelo pecado, ela teria um
conhecimento mais claro e firme de Deus, não duvidaria da vontade de Deus, teria um
verdadeiro temor, uma verdadeira confiança n’Ele, e finalmente renderia uma obediência integral
à lei, isto é, a natureza humana teria uma luz mais firme sobre Deus e todos os movimentos
estariam de acordo com a lei de Deus. No entanto, agora, uma vez que é evidente que a natureza
humana não pode satisfazer a lei de Deus, pergunta-se o que e quanto a vontade pode fazer.
Portanto, em primeiro lugar, eu respondo: Como na natureza humana permanece o
julgamento e a escolha de coisas que estão sujeitas à razão ou aos sentidos, também permanece a
escolha de ações externas civis. Portanto, a vontade humana, com suas próprias forças, pode
realizar de alguma forma obras externas da lei sem nenhuma renovação. Esta é a liberdade da
vontade que os filósofos corretamente atribuem ao homem. Pois, Paulo, distinguindo a justiça da
carne da justiça espiritual, admite que os não regenerados têm algum tipo de escolha e realizam
algumas ações externas. Obras da lei, como não matar, não roubar, não sequestrar, ele chama de
justiça da carne.
Na verdade, Deus ordena esta disciplina até mesmo para os não regenerados, e a violação
dela é punida com as mais severas penalidades, como homicídio e incesto. Portanto, diz-se (1
Timóteo 1. 9): “A lei foi dada para os injustos”, isto é, para restringir os não regenerados e punir
os obstinados. Além disso, diz-se (Gálatas 3. 24): “A lei é o tutor”, isto é, restringe e ensina, e
também é adicionada (em Cristo): por meio deste ensinamento, a disciplina é ornamentada com
honra. Pois, embora a disciplina não mereça o perdão dos pecados nem seja a justiça pela qual
somos chamados justos diante de Deus, ainda é necessária para que possamos aprender sobre
Cristo no momento. E o Espírito Santo não é eficaz nos obstinados que persistem em pecados
contra a consciência. Mas sobre as razões pelas quais a disciplina é necessária, falaremos mais
tarde; agora apenas mostramos isso com base nos testemunhos que falam sobre a justiça da carne
envolvendo alguma escolha, ou seja, a liberdade nos não regenerados, para a realização das obras
externas da lei.
No entanto, deve-se notar aqui que essa mesma liberdade é muito prejudicada por duas
causas, ou seja, pela fraqueza inerente que trazemos conosco e pelo Diabo. Pois, uma vez que os
afetos viciosos nos seres humanos são estímulos agudos e incendiários das almas, muitas vezes
as pessoas obedecem a eles contra o conselho da mente, mesmo quando poderiam se conter,
como Medeia diz: “Vejo o melhor e o aprovo, mas sigo o pior”[52]. E Paulo diz em Efésios 2. 2
que o Diabo é eficaz entre os ímpios. Aqui também, a correção da disciplina é multiplicadamente
prejudicada ao longo da vida e impulsiona muitos a se precipitarem em eventos desastrosos.
Como está claramente escrito sobre Saul e Judas: “Satanás entrou neles”. E aqueles surtos de
loucura nos cultos idolátricos, a crueldade dos tiranos e as guerras civis, onde muitos queimaram
suas próprias cidades, lançaram-se a si mesmos, suas esposas e seus filhos pequenos ao fogo, são
obras evidentes do Diabo. Portanto, a fraqueza da raça humana é notável; como demonstram
todas as histórias de todos os tempos e a experiência diária, que é cheia de tantas misérias
terríveis que todos os sábios etruscos ficam muito surpresos, questionando de onde vem tanta
confusão e tantos casos terríveis nessa natureza sublime. No entanto, mesmo entre esses
impedimentos, permanece algum julgamento, alguma liberdade nas pessoas moderadamente
saudáveis, para governar os comportamentos externos.
Em segundo lugar, na Igreja de Deus, não se trata apenas de comportamento externo, mas
também da completa observância da Lei no coração. Nas pessoas não regeneradas, a mente está
cheia de dúvidas sobre Deus, os corações estão sem o verdadeiro temor de Deus, sem a
verdadeira confiança, e estão cheios de uma grande aversão à Lei de Deus. Em última análise, a
natureza humana está oprimida pelo pecado e pela morte, e a magnitude desse mal não é
claramente percebida pelo julgamento humano, mas sim através da revelação da Palavra de
Deus. Aqui, é certo que os seres humanos não têm a liberdade de se livrar dessa maldade inata
que trazemos conosco desde o nascimento, nem de se livrar da morte. Consideremos esses
grandes e principais males da humanidade, quando discutimos a liberdade da vontade. A vontade
não pode se libertar do pecado inato que trazemos desde o nascimento e, portanto, não pode
satisfazer a Lei de Deus, porque a Lei de Deus não trata apenas da disciplina externa e da sombra
das obras, mas exige obediência total do coração, como a Lei declara (Deuteronômio 6, 5):
“Amará ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todas as suas
forças, etc.”.
A Lei julga e condena o pecado na natureza humana, mas não o remove. Assim como não
podemos evitar a morte, também não podemos nos livrar da inerente depravação que trazemos
conosco, a qual está em conflito com a Lei de Deus. Esses males precisam ser reconhecidos para
que possamos enxergar claramente os benefícios de Cristo, que remove o pecado e a morte, e
restaura a natureza humana. Eu já falei sobre os principais males que a vontade humana não pode
remover. Portanto, a vontade está cativa, não livre, especificamente para remover a corrupção da
natureza e a morte.
Terceiro, devemos considerar os dons espirituais. Desde o início do mundo, houve membros
vivos da Igreja que são governados não apenas pelo esforço humano ou pela diligência humana,
mas nos quais o Espírito Santo acende movimentos espirituais, incluindo o conhecimento de
Deus, o temor, a fé, o amor e outras virtudes, com maior ou menor intensidade em diferentes
indivíduos. Filósofos e pelagianos podem zombar disso, mas é a mais pura verdade que o
Espírito Santo é derramado nos corações dos crentes. Como está escrito em Zacarias (12. 10):
“Derramarei sobre a casa de Davi o espírito de graça e de súplicas”. E devemos reconhecer a
abundante consolação que nos é oferecida, a qual deve estar sempre diante de nós, especialmente
diante de nossa grande fraqueza.
Um benefício incrível e inexprimível de Deus que nos é prometido é o auxílio do Espírito
Santo. Como Jesus disse em Lucas 11. 13: “Pois se vocês, que são maus, sabem dar coisas boas
aos seus filhos, quanto mais o Pai celestial dará o Espírito Santo àqueles que pedirem a Ele?”.
Sem a ajuda do Espírito Santo, nossos deslizes seriam muito mais tristes e nossas confusões
morais seriam ainda mais atrozes, como foram nos tumultos dos pagãos e dos anabatistas. Deve-
se manter e aceitar a seguinte sentença como verdadeira: a vontade humana não pode produzir os
efeitos espirituais que Deus requer, a saber, o verdadeiro temor de Deus, a verdadeira confiança
na misericórdia de Deus, o verdadeiro amor a Deus, a paciência e a coragem nas aflições e na
face da morte, como demonstrado com grande coragem por Estêvão, Lourenço, Inês e muitos
outros incontáveis.
Devemos reunir testemunhos para refutar os pelagianos e para nos encorajar a buscar a ajuda
do Espírito Santo. Além disso, devemos aprender que aqueles que não são guiados pelo Espírito
Santo não são membros vivos da Igreja.
Romanos 8 (v. 14): “Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de
Deus”. E também (v. 6): “Quem não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele”.
Essas duas sentenças são bastante claras e afirmam manifestamente que os herdeiros da vida
eterna são dados e guiados pelo Espírito Santo. E é certo que o Espírito de Deus, nessas palavras,
não significa a razão, mas o Espírito Santo que procede de Deus Pai e de nosso Senhor Jesus
Cristo, que habita nos corações dos piedosos e os ilumina com o conhecimento de Deus através
do Evangelho, e produz movimentos de acordo com a Lei de Deus.
1 Coríntios 2 (v. 14): “O homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe
são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”. Isso significa
que o homem natural, vivendo uma vida meramente natural, baseada apenas em seus sentidos e
razão naturais e desprovido do Espírito Santo, não pode compreender as coisas do Espírito de
Deus. Pois mesmo que haja uma certa noção da Lei Divina impressa naturalmente no homem, há
ainda grandes dúvidas sobre a providência de Deus, e a dúvida mais triste é sobre o Evangelho,
se seremos aceitos ou não, e em meio a essas trevas, cada um consulta seu próprio coração, se
Deus realmente se ira com os pecados, se Ele realmente nos aceitará, nos ouvirá, nos ajudará em
nossas aflições. Nessa consideração, as pessoas de ânimo tranquilo e ociosas ou aquelas que
estão fugindo de Deus entendem a afirmação de Paulo: “O homem natural não aceita as coisas do
Espírito de Deus”, ou seja, ele não considera verdadeiramente que Deus se ira com o pecado, não
sente a ira de Deus, nem tem um verdadeiro temor de Deus, assim como Davi quando cometeu
adultério ainda não sentia a ira de Deus, mas depois a sentiu, sendo novamente inflamado pelo
Espírito Santo. Da mesma forma, Saulo fugiu de Deus, não O invocou, não considerou que
poderia ser ajudado por Deus e não confiou em Deus.
João 3 (v. 5): “Ninguém pode entrar no Reino de Deus, se não nascer da água e do Espírito”.
João 6 (v. 44): “Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que Me enviou, não o trouxer”. Também está
escrito em João 15 (v. 5): “Porque sem Mim nada podem fazer”. E em Isaías 59 (v. 20): “E o
Redentor virá a Sião e aos que em Jacó se converterem da transgressão, diz o Senhor”.
Estas palavras são uma descrição preciosa da Igreja e nos ensinam o que é e onde está a
Igreja, bem como os benefícios especiais que ela possui da parte de Deus. Esse grupo é a Igreja,
que proclama o Evangelho transmitido pelos Profetas e Apóstolos. Nela estão os membros vivos
da Igreja, que têm o Espírito Santo. E esses membros desfrutam de benefícios especiais, como a
Palavra de Deus, o perdão dos pecados, o Espírito Santo e a vida eterna.
Deve-se entender que o Espírito Santo opera de forma eficaz por meio da audição ou
consideração do Evangelho, como é dito em Gálatas 3 (v. 14): “A fim de que, pela fé,
recebêssemos a promessa do Espírito”. Como mencionado anteriormente, é crucial começar com
a Palavra de Deus ao pensar sobre Deus, em vez de buscar a Deus sem a Sua Palavra. Quando
nos lançamos na Palavra, três causas contribuem para uma ação virtuosa: a Palavra de Deus, o
Espírito Santo e a vontade humana que concorda e não se opõe à Palavra de Deus. A vontade
humana poderia resistir, assim como Saul resistiu por sua própria vontade. No entanto, quando a
mente ouve e se sustenta, não resiste, não cede à dúvida, mas, com a ajuda do Espírito Santo, se
esforça para consentir. Nessa luta, a vontade não fica inativa.
Os antigos disseram: “Boas ações são realizadas com a graça que precede e a vontade que
coopera”. Basílio afirmou: “Deseje apenas e Deus preencherá tudo”[53]. Deus nos antecede,
chama, move, ajuda, mas cabe a nós não resistir. Pois o pecado surge de nós, não da vontade de
Deus. Como disse Crisóstomo: “Aquele que atrai, atrai a vontade que quer ser atraída”[54]. Da
mesma forma, no próprio livro de João (6. 44), está escrito: “Todo aquele que ouve do Pai e
aprende vem a Mim”. Ele nos exorta a aprender, ou seja, a ouvir a Palavra, não resistir, mas
concordar com a Palavra de Deus, não ceder à dúvida.
Isso se torna claro quando experimentamos dores reais e fazemos invocações sinceras.
Nesses momentos, compreendemos a luta da vontade, que, se fosse inabalável como uma estátua,
não haveria absolutamente nenhuma luta, nenhuma angústia para os santos. No entanto, como
essa luta é imensa e difícil, a vontade não está inerte, mas concorda de maneira enfraquecida. Se
não fosse lembrada e ajudada pelo Espírito Santo por meio de promessas e exemplos durante a
invocação, poderia cair em desespero.
Tenho visto muitas pessoas, que não são epicuristas, debatendo quando estão em algum tipo
de tristeza devido aos seus próprios erros. Eles questionam como podem esperar serem
reconciliados com Deus quando não sentem que uma nova luz e novas virtudes estão sendo
derramadas sobre eles. Além disso, argumentam que, se o livre arbítrio não está fazendo nada,
eles podem facilmente cair na descrença e em outros afetos viciosos enquanto esperam sentir
essa regeneração da qual você fala. Essa visão maniqueísta é uma terrível mentira, e as mentes
devem ser afastadas desse erro e ensinadas que o livre arbítrio está em ação. Faraó e Saul não
resistiram a Deus por coerção, mas voluntariamente e livremente, apesar das claras
manifestações da presença de Deus.
Os delírios dos maniqueus, que afirmam que existe um número de pessoas que eles chamam
de “materiais” e “carnais”[55] que não podem ser convertidas, não devem ser aceitos. Não ocorre
uma conversão como se uma pedra fosse transformada em uma figueira; mas o livre arbítrio está
envolvido na experiência de Davi, quando ouviu a repreensão e a promessa, e agora voluntária e
livremente confessa seu pecado. Sua vontade também está ativa quando ele se sustenta com estas
palavras: “O Senhor tirou o seu pecado”. E enquanto ele se esforça para se apoiar nessas
palavras, ele é assistido pelo Espírito Santo, de acordo com as palavras de Paulo (Romanos 1.
18): “O evangelho é o poder de Deus para salvação daqueles que creem”, isto é, não para aqueles
que desprezam a promessa, mas para aqueles que consentem e creem. Além disso: “O evangelho
é o ministério do Espírito”. E também: “Para que recebêssemos o Espírito pela fé”.
Se a infusão de qualidades fosse apenas uma questão de esperar, como os entusiastas e
maniqueus imaginaram, o ministério evangélico não seria necessário, e não haveria luta nas
almas. Mas Deus instituiu o ministério para que a palavra fosse ouvida, para que a promessa
fosse considerada e abraçada pela mente, e enquanto resistimos à descrença, o Espírito Santo está
atuando em nós ao mesmo tempo.
Portanto, àqueles que desistem de sua busca porque acreditam que o livre arbítrio não tem
efeito, eu respondo: Na verdade, o mandamento eterno e imutável de Deus é que você obedeça à
voz do Evangelho, ouça o Filho de Deus, reconheça o Mediador. Quão terríveis são esses
pecados, não querer olhar para o Mediador, o Filho de Deus dado à humanidade? Você pode não
conseguir, você diz. De fato, de alguma forma você pode, e quando se sustenta pela voz do
Evangelho, você pode buscar ajuda de Deus, e saiba que o Espírito Santo é eficaz nessa
consolação. Saiba que Deus não está agindo de maneira diferente ao nos converter, quando nos
alegramos com a promessa e a invocamos, resistindo à nossa descrença e a outros afetos
viciosos.
Por isso, alguns antigos disseram que o livre arbítrio no homem é a capacidade de se aplicar
à graça, ou seja, ele ouve a promessa, tenta consentir e rejeita os pecados contra a consciência.
Tais coisas não acontecem com os demônios. Portanto, considere a diferença entre os demônios e
a raça humana. Essas diferenças se tornam mais evidentes quando consideramos a promessa.
Como a promessa é universal e não existem vontades contraditórias em Deus, deve haver alguma
causa de discriminação em nós, pela qual Saul seja rejeitado e Davi seja recebido, ou seja, deve
haver alguma ação diferente em ambos. Quando esses conceitos são entendidos corretamente,
eles são verdadeiros e, quando são aplicados na prática da fé e na verdadeira consolação, quando
nossas almas se aquietam ao Filho de Deus revelado na promessa, eles esclarecem essa conexão
entre as causas: a Palavra de Deus, o Espírito Santo e a vontade.
Além disso, se falarmos sobre a vida de pessoas piedosas em sua totalidade, mesmo que haja
grande fraqueza, ainda existe alguma liberdade de vontade, pois já é auxiliada pelo Espírito
Santo e pode fazer algo para evitar quedas externas. Quando José resistiu às tentações da
adúltera, várias causas estavam em jogo: a Palavra de Deus e o Espírito Santo movendo sua
mente para pensar mais profundamente na Palavra; sua mente ponderando sobre as terríveis
consequências que se seguiriam se ele cedesse às tentações, ou seja, a perda dos dons divinos, a
ira eterna de Deus, sofrimentos nesta vida e na vida futura, além de muitas quedas e escândalos.
Movida por essas reflexões, a vontade assentiu e, embora enfraquecida, foi fortalecida pelo
Espírito Santo. Ele reprimiu as chamas em seu coração e instigou o temor de Deus e a fé, que
confiava em Deus, enfrentava perigos e buscava orientação e resultados positivos. Nesse caso, a
vontade não estava ociosa, mas resistia às tentações e dava ordens aos olhos e aos pés para evitar
situações que levassem a quedas. Esses exemplos ilustram as causas das boas ações.
Por conseguinte, todas essas coisas foram ditas para que ambos, ou seja, o auxílio do
Espírito Santo e nossa diligência, sejam ampliados e aprimorados. Como Cristo disse (Lucas 11.
13): “Dará o Espírito Santo aos que pedirem”, Ele não disse aos que rejeitam, aos ociosos, aos
que resistem, ou aos que pulam precipitadamente de um vício para outro. E em outro lugar, Ele
diz (Mateus 25. 29): “Aquele que tem, receberá, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será
tirado”. Paulo também nos adverte para não recebermos a graça em vão.
Portanto, repita muitas vezes em sua mente a declaração de Cristo: “Ele dará o Espírito
Santo aos que pedirem”, e pense cuidadosamente sobre o grande dom que está sendo prometido e
quão fortemente Ele nos ordena que peçamos. Ele diz (João 16. 24): “Peçam, e vocês receberão”.
Se fizermos isso, veremos um aumento na nossa fé em relação à nossa petição e perceberemos
que pedimos com menos negligência devido à nossa falta de fé. E a falta de fé é alimentada
porque negligenciamos meditar nesse mandamento e na promessa de Cristo.
Quarto. Também devemos considerar as queixas sobre eventos e sucessos que estão além de
nosso controle; é uma coisa falar sobre eles, e outra falar sobre a escolha da vontade naquilo que
ela contempla. Muitos eventos inextricáveis ocorrem na vida humana que não são inteiramente
originados por nós, como quando Davi é forçado ao exílio por causa das ações pecaminosas de
seu filho. Além disso, muitos erros humanos ocorrem nas deliberações, como Josias acreditando
que está fazendo o certo ao entrar em guerra contra o Egito.
Sobre esses perigos, muitos ensinamentos são encontrados nos Profetas, como em Jeremias
10 (v. 23), onde está escrito: “Sei, Senhor, que não está no poder do homem o dirigir os seus
passos”. Aqui, “caminho” se refere à vocação, mostrando claramente que não podemos prever
todos os perigos e que os resultados e sucessos não estão sob nosso controle. Moisés é chamado
para liderar o povo para fora do Egito, mas ele não prevê que a multidão vagaria por quarenta
anos em lugares desérticos onde faltaria água e comida. Ele também sabia que não teria sucesso
apenas com suas próprias mãos, mas que Deus o guiará. Portanto, Jeremias afirma que o
caminho humano não está em nosso poder, ou seja, a vocação não pode ser totalmente guiada por
conselhos humanos ou diligência, e a governança não será bem-sucedida a menos que Deus nos
auxilie.
Assim também, João Batista diz (João 3. 27): “O homem não pode receber coisa alguma se
não lhe for dada do céu”. Ezequias teve sucesso em seu governo porque foi ajudado por Deus.
Acaz não teve sucesso porque não foi ajudado por Deus. Antônio queria dominar sozinho, mas
essa não era a vontade do céu, e César Augusto foi escolhido. Essas palavras não negam a
liberdade da vontade, pelo menos no que diz respeito às escolhas feitas com base no que é
previsto; mas elas falam sobre eventos externos e circunstâncias nas quais muitas outras causas,
além de nossa vontade, estão envolvidas, como no caso em que a vontade de Pompeu não
poderia ser a única causa de sua vitória.
Portanto, embora haja alguma liberdade na escolha, devemos considerar esses obstáculos
para aprender a não confiar em nós mesmos e buscar ajuda de Deus. Muitas coisas inextricáveis
acontecem nas vidas humanas por causa de conselhos humanos. A respeito disso, aprendamos
com a oração de Josafá em 2 Crônicas 20. 12: “Não sabemos o que fazer; mas os nossos olhos
estão postos em Ti, Senhor”. E Jesus disse (João 14. 18): “Não lhes deixarei órfãos”, e (João 14.
16): “Eu rogarei ao Pai, e Ele lhes dará outro Consolador”. Deus está presente para resolver o
que é inextricável e corrigir nossos erros, como diz o Salmo 145. 18: “O Senhor está perto de
todos os que O invocam, de todos os que O invocam em verdade”. E também (Salmo 36. 5):
“Entrega o seu caminho ao Senhor; confie n’Ele, e Ele o fará”.
E Paulo diz (Filipenses 2. 13): “Deus é quem efetua em vocês tanto o querer como o efetuar,
segundo a Sua boa vontade”. Essa advertência e consolação devem ser constantemente
lembradas em nossos corações: se você é um magistrado, governa a igreja, orienta a juventude,
ou lidera uma família, você planejará certas coisas e administrará com diligência moderada, mas
reconhecerá que o sucesso dependerá de Deus ajudando-o, como é dito no Salmo 127. 1: “Se o
Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam”. Além disso, muitos perigos
inesperados surgirão, que você não poderá evitar; peça a Deus que os resolva. Também haverá
erros que ocorrerão; peça a Deus que os corrija, assim como Ele corrigiu o erro de Jonas de
maneira surpreendente. Esses são obstáculos à liberdade que experimentamos diariamente.
No entanto, a confusão em torno dessa questão ocorre porque muitas pessoas vivem sem
disciplina, sem diligência e sem qualquer prática de fé e oração, como se estivessem bêbadas.
Como podem discernir os diferentes níveis de ação ou as diferenças nas circunstâncias?
O propósito de Paulo é evitar que ele mesmo convocasse o ministério pastoral, consciente
das corrupções na doutrina motivadas pela ambição ou avareza. Essas corrupções estão de certa
forma sob seu controle. No entanto, para que o chamado seja bem-sucedido e eficaz, ele
reconhece que isso depende exclusivamente do dom de Deus. Também é um dom de Deus que
ele não seja ignorante ou envolva-se em erros nas corrupções da doutrina ou em outros vícios;
por isso, ele ora fervorosamente para ser guiado e ajudado por Deus.
Agora, quero mencionar a passagem do livro de Eclesiástico (15. 14): “Deus deixou o
homem no poder de seu próprio conselho”. Essa frase merece grande louvor, desde que seja
entendida com moderação. Certamente, devido à nossa fraqueza natural, existem muitos
obstáculos à liberdade.
Primeiro, a corrupção da natureza, que torna a compreensão de Deus em nossas mentes
obscura, faz com que a vontade e o coração se desviem de Deus, privando-nos de um profundo
temor e de uma confiança ardente e amorosa em Deus. Em vez disso, somos arrastados por
muitos impulsos pecaminosos.
O segundo obstáculo é o Diabo, que odeia ferozmente Cristo e coloca ocasiões diante de nós
para nos enredar em várias armadilhas e pecados. Ele aumenta as chamas de nossos desejos,
como fez com Caim, Saul, Judas e outros.
O terceiro obstáculo reside na própria confusão da vida e na massa de negócios e perigos,
onde muitos eventos imprevistos e inextricáveis surgem diariamente, como no caso de Davi, que
não previu a rebelião de seu filho. E comumente se diz: “Você não sabe o que a noite trará”.
Dado que existem tantos obstáculos à liberdade devido a essa corrupção da natureza, esse
glorioso discurso: “Deus deixou o homem no poder de seu próprio conselho” não pode ser
entendido de forma literal. Ele certamente é verdadeiro quando se trata da liberdade original da
natureza humana. Nesse caso, o homem estaria no controle de seu próprio conselho, o que
significa que a liberdade não seria impedida pelas trevas e perversidade naturais, pelo Diabo ou
pelas complexidades das questões mundanas. A capacidade de escolha e a faculdade de agir
corretamente seriam então completamente livres. No entanto, dada nossa fraqueza atual, os
impulsos internos em conformidade com a Lei de Deus nem sempre são acionados sem o auxílio
do Espírito Santo, e até mesmo a disciplina externa frequentemente é prejudicada, como
mencionado anteriormente. Portanto, se alguém argumentar que a passagem de Eclesiástico deve
ser interpretada literalmente em relação à natureza atual, será necessário adicionar uma grande
restrição, a saber: “Deus deixou o homem no poder de seu próprio conselho”, ou seja, permitindo
que ele siga o caminho do mal por si mesmo e, então com a ajuda do Espírito Santo, fazer o que
é certo. Nesse caso, a vontade não fica ociosa e não age como uma estátua, como é
experimentado por José, que luta consigo mesmo e não recebe movimentos espirituais como uma
estátua. No entanto, a vontade se torna mais livre com a ajuda do Espírito Santo, ou seja, ela age
com mais circunspecção e constância, e invoca a Deus com mais fervor.
Por fim, aqui devem ser mencionadas duas declarações de Jerônimo que são frequentemente
citadas e precisam de interpretação. Uma delas é: “Maldito seja aquele que disser que Deus
ordenou o impossível”. Qualquer que tenha sido a ocasião dessa declaração, aqueles que a citam
e a enfatizam parecem não considerar as razões pelas quais a Lei de Deus foi promulgada. A
sabedoria política[56] julga que as leis são feitas apenas para serem cumpridas. No entanto, a Lei
de Deus foi promulgada principalmente com o propósito de expor o julgamento de Deus contra o
pecado. Deus deseja que sua ira seja reconhecida, e, pela voz da Lei, ele nos mostra nossos
pecados. Era justo amar a Deus com todo o coração, mas porque não somos assim, a Lei julga e
nos acusa, denunciando-nos a ira.
Outra razão para a promulgação da Lei é para começar a Lei de Deus naqueles que já
reconhecem o Mediador, estão reconciliados e, com a ajuda de Deus, começam a obedecer.
Portanto, quando ouvimos a afirmação de que a Lei é impossível, não devemos buscar sabedoria
política ou considerar disciplina externa. Paulo nega que a ira de Deus seja removida pela Lei e
também nega que a Lei seja satisfeita nesta fraqueza da natureza.
Da mesma forma, Romanos 3 (versículo 20) diz: “Ninguém será justificado diante d’Ele
pelas obras da lei”. Aqui, ele reconhece que as obras são realizadas. Portanto, no que diz respeito
a essas obras externas, a Lei é possível, mas nega que, devido a essas obras, alguém seja
justificado ou que a Lei seja suficiente. Pois essas obras não removem o pecado e a ira de Deus,
nem dissipam as trevas na mente e a aversão a Deus na vontade e no coração.
Portanto, embora os políticos possam se ofender quando a Lei de Deus é chamada de
impossível, essa afirmação é verdadeira em relação a esta natureza corrompida. É necessário
ensinar a Igreja dessa forma para que a diferença entre a Lei de Deus, que julga os pecados
internos, e as leis humanas, que se ocupam apenas da disciplina externa, seja clara. Além disso,
isso permite que a grandeza dos benefícios de Cristo seja reconhecida. Ele remove o pecado
porque a Lei não pode fazê-lo. Ele é o Mediador para que possamos ser justificados por meio
d’Ele, porque não somos justos pela Lei. Ele nos concede o Espírito Santo para que, mesmo em
nossa grande fraqueza, a Lei seja iniciada e que sejamos abençoados de alguma forma, assim
como para restringir o Diabo que espreita toda a humanidade.
Agora, consideremos outra afirmação: “Maldito seja aquele que disser que a Lei pode ser
cumprida sem a graça”. A brevidade desta afirmação também exige uma explicação. Pois a graça
não deve ser entendida apenas como o auxílio do Espírito Santo, mas ambas as formas de graça
devem ser abrangidas: a imputação gratuita, que é feita por causa de Cristo, e o auxílio do
Espírito Santo. Primeiro, devemos brilhar a luz da graça sobre as obras, ou seja, a compreensão
de Cristo e a fé em Cristo.
Portanto, o primeiro entendimento da graça é o seguinte: “A Lei de Deus é cumprida pela
graça”, ou seja, porque somos aceitos e feitos membros de Cristo pela fé em Cristo, agora,
certamente, agradamos a Deus, da mesma forma como se cumpríssemos inteiramente a Lei. Este
é um grande ato de bondade, pois sepulta o pecado e nos aceita, apesar de sermos indignos.
Então, a graça também deve ser entendida como ajuda, que é necessária em várias maneiras.
As mentes precisam ser iluminadas com a verdadeira luz e mantidas na Palavra de Deus. Os
movimentos da fé precisam ser despertados no coração. As mentes também devem ser movidas
para que possam receber coisas benéficas para nós e para os outros. Por exemplo, Davi foi
movido a tomar decisões destrutivas quando confiou em seu próprio conselho humano, como
quando decidiu contar o povo. Portanto, sempre devemos pedir a Deus que façamos coisas que
agradem a Ele e sejam úteis para nós e para a Igreja. E nada disso pode ser alcançado sem a
ajuda e orientação de Deus. É certo que Ele quer estar presente e nos ajudar quando pedimos,
como claramente afirmou Jesus: “Pois se vocês, mesmo sendo maus, sabem dar coisas boas aos
seus filhos, quanto mais o Pai celestial dará o Espírito Santo àqueles que pedirem a Ele!” (Lucas
11. 13).
Se vivêssemos isso em nossas vidas, a doutrina se tornaria muito mais clara. No entanto,
porque poucos buscam ajuda e, na verdade, fogem de Deus em desespero, buscando soluções
humanas, eles não alcançam o conhecimento dessas promessas e dos benefícios de Cristo.
Portanto, devemos rejeitar essa preguiça e falta de confiança e, ao reconhecer a grandeza de
nossas misérias e perigos, devemos nos estimular a uma verdadeira oração. Nesse contexto,
experimentaremos que as promessas de Deus são verdadeiras, como está escrito: “Peçam, e
vocês receberão” (João 16. 24). Além disso, “O Senhor está perto de todos os que O invocam, de
todos os que O invocam com sinceridade” (Salmo 145. 18).
Para resumir, no que diz respeito ao dito de Jerônimo, “A Lei é estabelecida pela graça”,
devemos entender que isso inclui tanto a imputação devido a Cristo quanto a ajuda do Espírito
Santo. Primeiro, a fé nos torna aceitáveis a Deus por meio de Cristo, como se tivéssemos
cumprido totalmente a Lei. Este é um grande ato de bondade, pois apaga nossos pecados e nos
aceita, apesar de nossa indignidade. Segundo, a fé é o meio pelo qual recebemos o Espírito
Santo, e através dela começamos a obedecer a Deus por causa de Cristo e agradá-Lo.

5. O Pecado
Embora todas as nações vejam a terrível confusão, vícios e mais tristes calamidades da raça
humana, e sintam o peso do pecado, a Igreja de Deus sozinha ensina tanto de onde vem o pecado
quanto o que ele é, e se atenta à palavra de Deus sobre a ira divina e sobre castigos presentes e
eternos. E embora a sabedoria humana nos ensine a controlar o comportamento, condena e pune
as ações contrárias à razão, ainda assim não reconhece o que é próprio da natureza do pecado, ou
seja, a culpa diante de Deus ou a ira de Deus. Alexandre vê que agiu vergonhosamente quando
matou Clito, e se aflige porque agiu contra o julgamento da natureza, mas não se aflige por ter
ofendido a Deus, não se afligindo por ser culpado diante de Deus. Mas a Igreja mostra a ira de
Deus e ensina que o pecado é um mal muito maior do que a razão humana pensa. A Igreja
também não acusa apenas as ações externas, que estão em conflito com a Lei de Deus ou a razão,
como a Filosofia, mas acusa a raiz e os frutos, as trevas interiores da mente, as dúvidas sobre a
vontade de Deus, a aversão da vontade humana em relação à Deus e o desafio do coração contra
a Lei de Deus. Está atrelado a isso a ignorância e desprezo pelo Filho de Deus. Estes são males
tristes e terríveis, cuja magnitude não pode ser contada. Portanto, Cristo disse (João 16. 8-11):
“O Espírito Santo convencerá o mundo do pecado, porque não creem em Mim, e da justiça,
porque Eu vou para o Pai, e do juízo, porque o príncipe deste mundo já foi julgado”.
Este é um sermão completamente alheio aos julgamentos políticos. Portanto, é dito que o
mundo deve ser repreendido pelo Espírito Santo, pela voz do Evangelho, não por julgamentos
humanos e civis, e acusado deste pecado, isto é, de desprezo pelo Filho de Deus, que os homens
desprezam o Evangelho e os benefícios de Cristo, e não se aproximam de Deus com a confiança
do Filho de Deus, mas permanecem em dúvidas perpétuas e fogem de Deus, ou então adoram e
cultuam ídolos com audácia horrível.
Então Ele diz (João 16. 8): “Ele também convencerá o mundo de justiça”. Pois os sábios
pensam que a justiça é qualquer tipo de disciplina, ou obediência universal, como eles chamam,
de acordo com as leis. Mas o Evangelho traz uma justiça muito diferente. Pois essa disciplina
humana não tira nem o pecado nem a morte, mas a justiça diante de Deus, pela qual Deus nos
considera justos, aceitos e herdeiros da vida eterna, elimina o pecado e a morte, como Ele diz:
“Esta é a minha transição para o Pai”, isto é, “Minha oferta por vocês e satisfação, e passagem
para o Reino, no qual Eu sou perpétuo Mediador para vocês, santifico e vivifico para a vida
eterna, retiro o pecado e a morte”. Esta transição para o Pai e este reino de Cristo nos justifica.
Em terceiro lugar, ele acrescenta sobre o julgamento. O mundo sempre incitou e incitará
grandes lutas contra esta doutrina, e condenou e condenará o Filho de Deus, e o diabo incita seus
órgãos a julgamentos blasfemos e crueldades, como as heresias, blasfêmias e crueldades que
todos os tempos mostram. Mas essas fúrias do diabo não destruirão a Igreja. Pois o Espírito
Santo sempre fortalecerá a Igreja, para que ela se oponha a julgamentos ímpios, e a Igreja
finalmente vencerá, porque o diabo foi condenado; portanto, Deus o confunde e enfurece em
seus julgamentos.
Quando, portanto, o Espírito Santo reprova o mundo com a voz do ministério evangélico, e
mostra onde e o que é o pecado e quão ruim ele é, é necessário ouvir o ensino do Espírito Santo,
pois os benefícios de Cristo não podem ser entendidos se não se sabe o que é o pecado. Sim, por
isso mesmo, Deus está pregando à Igreja tanto com a voz do ministério quanto com as imensas
calamidades, para que reconheçamos a ira contra o pecado e nos refugiemos no Filho Mediador.
E Cristo compreendeu assim a soma dos ensinamentos da Igreja (Lucas 24. 47): “Vão, preguem
o arrependimento para remissão dos pecados em Meu nome”. Mas o reconhecimento do pecado
está completo, isto é, os terrores que existem quando a ira de Deus contra o pecado é
reconhecida. E Paulo demonstra isso especialmente em sua Epístola aos Romanos, declarando
essas três passagens: o que é o pecado, o que a Lei realiza e o que a graça de Cristo é e realiza.
Saibamos, portanto, que o ensinamento desses conceitos deve ser claro, sincero e explicado na
Igreja.
É costume no ensino começar com definições; portanto, a definição de pecado tinha primeiro
que ser estabelecida. Mas vejo que os escritores que publicaram as questões em longobardo[57]
não deram uma definição comum, apropriada para pecado original e pecado real, talvez porque
pensassem que nenhuma definição comum poderia ser dada; pois o pecado real nos torna
culpados por causa do que fizemos, mas o pecado original nos considera culpados tanto por
causa da queda de outro quanto por causa de nossa própria impureza, que nasce conosco.
Então eles também alegam que a Lei de Deus condena apenas os pecados reais, o que é
evidente a partir do sétimo capítulo de Romanos como sendo falso.
A razão para o nome nas Escrituras é clara, que o pecado significa propriamente
culpabilidade e condenação por Deus, a menos que haja remissão. Esta descrição geral
corresponde ao pecado original e real. Mas como só se menciona a relação, isto é, a culpa, a
mente também procura aquilo pelo qual o homem é culpado. É por isso que uso esta definição, e
espero que haja uma na Igreja, composta pelos julgamentos de muitos mestres e piedosos: “O
pecado é uma deficiência ou inclinação ou ação que conflita com a Lei de Deus, ofende a Deus, é
condenado por Deus e nos torna culpados da ira eterna e do castigo eterno, a menos que a
remissão seja feita”. Nesta definição, existem tipos de deficiência e inclinação que correspondem
ao mal original. Ação inclui todo o interior e exterior reais.
É uma diferença comum: lutar com a Lei de Deus. Pois a Lei não é apenas pregada sobre as
ações, como dizem os adversários, mas também condena as trevas, os defeitos e as inclinações
erradas na natureza do homem, como em Romanos 7, onde Paulo afirma mais seriamente.
Em seguida, são acrescentados os seus próprios atos, condenados por Deus, que ofendem a
Deus e tornam os homens culpados de ira e castigos, etc. A Igreja enfatiza especialmente esta
propriedade. Pois a razão entende que os vícios são contra a Lei de Deus, ainda que
posteriormente se negligencie a ira de Deus. Esta propriedade particular deve, portanto, ser
considerada sempre que o pecado é mencionado, para que possamos saber o que se refere como
algo culpado e condenado por Deus.
E esta definição é tirada destas palavras: “Maldito aquele que não permanecer em todas as
coisas que estão escritas na Lei”[58]. O pecado define a desobediência como amaldiçoada por
Deus. E entende-se que a desobediência não é apenas real, mas universal, que está na natureza do
homem contra Deus. Ora, há um acréscimo terrível, a ser chamado de “amaldiçoado por Deus”,
isto é, algo que Deus rejeita com ira e por causa do qual Ele lança a criatura em terríveis castigos.
As palavras de Paulo em Romanos 1 também concordam com esta definição: “A ira de Deus
é revelada do céu sobre toda impiedade, etc”. E em Romanos 7 Paulo diz: “Pela Lei, o pecado se
torna notavelmente um pecado”, ou seja: A Lei mostra a ira de Deus, pela qual entendemos que
nossa impureza não é um mal leve, mas que é algo que demonstra culpa, condenação, maldição
por Deus, que é acompanhado por terríveis castigos. Sempre que, portanto, o pecado é
mencionado, essa denominação é distinguida na Igreja da denominação filosófica de vício; pois a
Igreja prega sobre o julgamento e a ira de Deus.
Se alguém imagina que o pecado original é apenas um passivo devido à queda de Adão, sem
depravação em nós, está enganado. Mas se alguém afirma que aqueles que nascem são culpados
tanto por causa da queda de Adão quanto por causa da depravação nascida conosco, eu não o
impeço de adicionar essa partícula à definição, de que o pecado é tanto uma culpa por causa da
queda de Adão, quanto uma deficiência, inclinação ou ação que gera conflito com a Lei de Deus,
etc. Eu não conseguirei definir isso tão apropriadamente. Mas é evidente, que por causa da queda
de Adão, a posteridade carece daquela luz que brilha em toda a natureza, e retidão de vontade e
coração, e por causa desses males é que os homens nascem culpados.
Agora, tendo estabelecido a definição do pecado em geral, vamos então falar da espécie, do
original e do atual, e não sejamos contenciosos[59] e arrogantes de palavras, mas mantenhamos as
coisas necessárias proferidas nos escritos proféticos e apostólicos Escrituras, e também de certos
testemunhos dos escritores antigos, que, se explicam melhor, de bom grado usamos sua
linguagem. Pois não brigamos por palavras, mas explicamos as coisas necessárias. Não
desaprovo a manutenção da descrição de Anselmo.

SOBRE O PECADO ORIGINAL


O pecado original é a falta de justiça original devida. Mas essa breve e obscura descrição
precisa de uma narrativa mais longa. Pois é necessário indagar o que significa a justiça original.
Portanto, é necessário acrescentar esta declaração: A justiça original foi a aceitação da raça
humana diante de Deus, e na própria natureza dos homens uma luz na mente, pela qual ela
poderia concordar firmemente com a palavra de Deus, e a conversão da vontade de Deus, e a
obediência do coração de acordo com o julgamento da Lei de Deus, que estava enraizado na
mente.
Que tudo isso é uma complexa justiça de origem pode ser entendido a partir deste dito: “O
homem foi criado à imagem e semelhança de Deus”, que Paulo interpreta e ensina que a imagem
de Deus é uma mente que reconhece Deus e um livre arbítrio, justo e coerente com a Lei de
Deus, como em Efésios 4 (v. 24) é dito: “Um homem fundado em verdadeira justiça e
santidade”. Ele chama todas as virtudes de verdadeira santidade, mas aquelas ligadas ao coração
para este fim, que a obediência a Deus pode ser concedida, que Deus pode ser amado e
glorificado. Depois de estabelecido o que significa a justiça original, então o oposto da privação
pode ser explicado de qualquer maneira.
O pecado original é a falta de justiça original, ou seja, há nos nascidos da semente masculina
uma perda de luz na mente e uma aversão à vontade de Deus e um desafio do coração, de modo
que não podem obedecer verdadeiramente a Lei de Deus, após a queda de Adão, por causa da
corrupção da qual nasceram os filhos do mal e da ira, isto é, eles são condenados por Deus, a
menos que a remissão seja feita. Se alguém quiser acrescentar que as crianças também foram
culpadas da queda de Adão, não o impeço. Mas na verdade é uma opinião perpétua da Igreja, dos
Profetas, Apóstolos e escritores antigos. O pecado original não é tanto imputação, mas escuridão
e perversidade na própria natureza dos homens, como eu disse. E explicarei isso mais
abundantemente na evidência, e os ditos de Agostinho, Hugo e Boaventura[60] concordam com
essa opinião, embora outras mais recentes, mais profanas, tenham se afastado um pouco da
antiga opinião e inventado sarcasmos inextricáveis. Mas Hugo diz claramente que o pecado
original é a ignorância na mente e a desobediência na vontade.
Testemunhos
Depois que a definição foi dada, vamos acrescentar as evidências que afirmam que todos os
homens nascidos da semente masculina trazem pecado com eles, para que os piedosos saibam
que esta doutrina não nasceu das discussões de escritores recentes, mas foi verdadeiramente
transmitida pelo Espírito Santo através dos Profetas e Apóstolos.
E há um lugar apropriado para esta doutrina no cap. 5 (v. 12) de Romanos: “Por uma ofensa
todos morreram”, portanto outros são responsáveis pela queda de Adão. E para que não se
entenda que os outros eram apenas culpados sem qualquer propagação de corrupção, ele
acrescenta: “A morte se espalhou para todos, porque todos pecaram”. A frase hebraica é: “Eles
pecaram”, isto é, eles são reais e têm pecado, uma coisa má e maldita. Se apenas as ofensas reais
fossem pecados, cada pessoa seria culpada apenas pelo que fez. Agora, quando ele diz
claramente que somos culpados por causa da ofensa de Adão, ele testifica que há algo mais na
natureza do pecado além das ofensas reais. E para que o pecado não seja entendido apenas como
imputação ou culpa, os pesos das palavras devem ser observados. Todos pecaram, ou seja, o mal,
que é o pecado, se espalhou para todos.
Também: “reinou o pecado, reinou a morte”, ou seja, os homens são oprimidos pela ira de
Deus, estão sem luz divina e se precipitam em fúria terrível e destruição eterna. Como em
Romanos 3 (v. 23) é dito: “A todos falta a glória de Deus”, isto é, aquela glória que Deus julga
ser glória e com a qual Ele dá a vida.
Mas aprendemos muito mais claramente nos capítulos sétimo e oitavo de Romanos que o
pecado original não é apenas uma imputação ou escravidão pela qual estamos condenados à
morte, mas também um mal propagado na própria natureza do homem. Romanos 7 (v. 23): “Eu
vejo outra lei em meus membros contrária à lei da minha mente”. Pois a lei dos membros clama
algo em nós contrário à lei de Deus, isto é, defeitos e inclinações erradas.
E Romanos 8 (v. 7): “O sentimento da carne é inimizade contra Deus”. Pois a Lei de Deus
não está sujeita e não pode estar sujeita. Esta é uma descrição triste e horrível da raça humana.
Pois as palavras mostram claramente que isso não deve ser dito apenas do mal real, mas também
do mal inerente à própria natureza, que é chamada de inimizade contra Deus. O que pode ser dito
de mais atroz do que a natureza do homem ser hostil a Deus? Isto é, carregar consigo uma
escuridão constante e dúvidas sobre Deus, uma segurança que negligencia Deus, uma
desconfiança que preocupa Deus e um desafio múltiplo. Esses males secretos não são
compreendidos pelos ignorantes e profanos, mas a Igreja em seu quebrantamento de alguma
forma os conhece.
Efésios 2 (v. 3): “Éramos por natureza filhos da ira, como os demais”. A frase hebraica é:
“Filhos da ira”, isto é, dos ímpios ou condenados. Afirma, então, que tanto os descendentes de
Abraão quanto os demais homens foram condenados não apenas por seus crimes reais, mas
também por causa da maldade da natureza, que trazemos conosco desde a própria propagação,
não a possuindo como exemplo. E de que natureza é esse mal, os trechos que citei dos capítulos
sétimo e oitavo deixam claro.
João 3 (v. 5): A não ser que alguém nasça de novo da água e do espírito, ele não pode entrar
no Reino de Deus”. Uma vez que a regeneração é necessária, é claro que a velha natureza é
culpada e impura.
Os ditos dos Profetas também são adicionados, Salmo 50 (v. 7): “Eis que em iniquidades fui
concebido, e em pecados me concebeu minha mãe”. Pois ele lamenta não o pecado de sua mãe,
mas o seu próprio. Fui concebido de tal maneira que, logo ao ser formado em minha massa, e em
mim, havia pecado, ou seja, não só culpa, mas uma aversão a Deus e uma inclinação errada que
nasceu em mim. Testifica-se, então, que há pecado nos homens, e que eles o trazem consigo
quando nascem.
Gênesis 8 (v. 21): “O pensamento do coração humano é mau desde a infância”. Ele afirma
que não apenas as ofensas são cometidas por costume, mas que há uma perversidade no próprio
coração que já está nas crianças ao nascer. Pois as palavras são mais ilustres na leitura hebraica:
A obra do coração humano, seja criada[61] ou fabricada, é má, isto é, a massa do próprio coração
está corrompida, ou pelo menos todos os movimentos ou impulsos, ou quaisquer coisas que
estejam no coração que são más, isto é, avessas a Deus.
Assim também o Salmo (24. 7) chama os pecados da juventude toda aquela massa que
trazemos quando as crianças nascem: escuridão na mente, aversão a Deus na vontade e teimosia
no coração.
Jeremias 17 (v. 9): “O coração humano é perverso acima de todas as coisas, miserável e
inescrutável”, isto é, afastado de Deus e cheio de dores que dele surgem, porque as mentes
humanas não conhecem e fogem de Deus; ninguém compreende bem a extensão desses males.
Esses versículos mostram que os ditos dos Profetas e Apóstolos correspondem. Mas a
brevidade parece escapar aos ouvidos dos homens, sobretudo quando nesta nossa escuridão e
segurança não vemos a grandeza da nossa miséria: homens ociosos, embriagados de prazeres ou
exaltados de glória, que tratam levianamente a ira de Deus e, lisonjeando-se, diminuem esses
males; dúvidas e negligência de Deus, confiança em sua própria sabedoria e poder, orgulho,
ambição e outras chamas de desejo. Portanto, esses curtos sermões comovem um pouco os
corações, e, no entanto, contêm toda a doutrina sobre o pecado e as causas das calamidades
humanas. Pois era uma velha prática de ensino incluir em frases tão curtas, por assim dizer,
importantes artigos de doutrina, que a Igreja deve desenvolver e explicar no ministério do
Evangelho, a fim de mostrar de alguma forma a amplitude das coisas que estão contidos neles.
Como foi brevemente dito (Gênesis 3. 15): “A semente da mulher pisará a cabeça da serpente”.
Mas a Igreja, explicando-o, vê de alguma forma quantas coisas ele contém. Assim, também com
relação a este artigo, sobre o pecado e as causas das calamidades humanas, muitos
pensamentos[62] breves foram transmitidos, os quais são extremamente complexos, e nos quais a
propriedade e o peso das palavras devem ser cuidadosamente considerados.
Preste atenção em quão bem as palavras de Jeremias e Paulo correspondem (Romanos 8. 7):
“O sentido da carne é inimizade contra Deus”; pois a Lei de Deus não é submetida, nem pode ser
submetida. É uma frase simples e clara, que afirma que existe no homem e permanece nesta vida
mortal algo que negligencia ou rejeita Deus e se ira contra Ele, e que por sua vez Deus
desaprova, e um esclarecimento foi adicionado. Essa natureza fraca, diz ele, não pode estar
sujeita à lei de Deus, nunca a satisfaz, sempre definha de dúvida, segurança, desconfiança e
várias chamas de desejo. O que pode ser dito de mais triste do que dizer que há inimizade no
homem contra Deus? Mas nosso Senhor Jesus Cristo, o Mediador dos crentes, enterra isso, para
que seja dito em seu lugar. A magnitude do discurso de Paulo não pode ser explicada em
palavras. Mas que o pensamento cesse e olhemos para nós mesmos, reconheçamos e lamentemos
nossa imundície, e busquemos o Evangelho do Mediador.
Agora compare as palavras de Jeremias (17. 9): “O coração do homem é perverso acima de
todas as coisas, miserável e insondável”. Primeiramente, é chamado de pervertido, isto é,
afastado de Deus. Isso concorda exatamente com Paulo, que diz ser inimigo de Deus. Pois ser
avesso não é à luz real de Deus, ser perturbado por dúvidas, não reconhecer ira e misericórdia,
não ter temor de Deus, confiança e amor, amar a si mesmo, deleitar-se e confiar em nossa
sabedoria, formar opiniões sobre Deus e ter impulsos vagos, desviando-se da Lei de Deus, ter
ambição, desejo de vingança e outras chamas. Em seguida, são descritos os castigos do fracasso,
quando ele diz: “Miserável ou cheio de tristezas”. Um coração privado da luz e do conforto de
Deus é dominado por tristezas, desespero e tristeza eterna. Implícitos nessas punições estão
muitos pecados horríveis, e há tanto mal que nem nós nem outras criaturas podemos entender
suficientemente tal magnitude.
É da mesma opinião (Salmo 116. 11): “Eu disse em meu excesso”, isto é, em minha
consternação ou terror, “Todo homem é um mentiroso”, isto é, quando fiquei apavorado com o
reconhecimento de minha sujeira e a ira de Deus, reconheci que todos os homens são mentirosos,
isto é, não estão certos sobre sentir Deus, duvidar de Deus, não temer a ira o suficiente, nem
confiar o suficiente na misericórdia.
Eu revisei as evidências e toquei em breves explicações, a fim de lembrar o leitor de não
permitir que elas sejam evitadas por causa da brevidade, mas manter uma opinião simples e
natural contra os pelagianos e muitos outros espíritos levianos. Os pelagianos negam toda a
doutrina do pecado original, mesmo pelo nome. Os modernos, como Ockham e muitos outros,
retêm o nome do pecado original, mas diminuem o assunto. Deixe-os negar que essas coisas más
estão em conflito com a Lei de Deus, uma escuridão na mente, uma obstinação na vontade e no
coração, que se chama concupiscência. Mas eles são claramente refutados pelo testemunho de
Paulo em Romanos 7 (v. 23) e 8 (v. 7) como direi novamente abaixo. Eles chamam esses males
apenas de castigos do pecado original, pois são ao mesmo tempo os castigos da primeira queda e
os pecados nascidos em cada indivíduo. Para que todo o assunto fique mais claro, recitarei as
causas e os efeitos.
As causas eficientes da primeira queda são o Diabo e a vontade de Adão e Eva concordando
com o Diabo e se afastando em sua liberdade do comando de Deus.
Mas também são chamadas de causas eficientes as que merecem algo. Assim, Adão e Eva
são causas eficientes, que mereceram a culpa para si e para sua posteridade, e esses mesmos
defeitos ou perversidade, que se seguiram à queda, foram abalados pela luz de Deus. Pois depois
que os primeiros pais pecaram, eles perderam aquele firme conhecimento de Deus, que havia
sido implantado em suas mentes, e a retidão da vontade, e a harmonia do coração com a Lei de
Deus; e como eles próprios se tornaram depois da queda, assim eles geraram.
Onde está o pecado original? Na alma e nas potências sencientes e seus órgãos; porque há
uma nuvem na mente, um afastamento de Deus na vontade, nosso amor sendo desordenado e
complicado, uma inclinação errada e um desafio no coração contra o julgamento correto da
mente. Assim, no lugar da doença, por assim dizer, ou mesmo o sujeito por si mesmo, que eles
chamam de matéria, é onde o mal pode ser olhado mais de perto.
Para os eruditos formais, é fácil julgar, embora os incultos se agitem em torno dessa questão.
No entanto, não quero semear debates na Igreja, mas expor a verdadeira opinião de maneira
clara, sem sofismas e sem perplexidade. Os eruditos bem instruídos sabem que o pecado formal
universalmente é a culpa ou condenação da pessoa que é culpada. Mas essa relação acontece
devido a algo ruim que aconteceu com alguém. Portanto, é necessário procurar a base mais
próxima dessa relação ou, como eles chamam, a base material próxima. A base desse crime é o
vício inato no homem, que é chamado de defeito, ou más inclinações, ou concupiscência. Pois
todas essas denominações significam o mesmo mal, ou melhor, grande confusão de males. A
concupiscência deve ser entendida não como apetites estabelecidos na natureza, mas como a
inquietação[63] de todos os apetites. No estudo desses vícios, o Dialético sabe que há uma forma
formal própria do vício, ou seja, um defeito de retidão que se desvia da Lei de Deus, ou
desordem[64].
Ignorar a Deus, duvidar, não temer a Deus ou não se deleitar n’Ele, é claramente uma falha.
Há também uma falta de relacionamento em nosso amor, porque na ordem perturbada Saulo ama
mais a si mesmo do que a Deus. Da mesma forma, ele é julgado por outras más inclinações. Essa
desordem de todos os apetites os escritores chamaram de concupiscência.
E é necessário discernir com sabedoria a inquietação em si dos próprios apetites, como
explicarei mais detalhadamente abaixo. Portanto, quando se pergunta qual é o formal do pecado
original, a resposta correta é a culpa. Em seguida, é necessário procurar a base dessa relação.
Essa base é, como eu disse, o vício inato em nós, que é um mal que luta contra a lei de Deus. E,
como é uma grande confusão de males, pode ser facilmente entendido como um defeito formal
dessas confusões, como se alguém dissesse que há muitas doenças ao mesmo tempo. Além disso,
há a culpa quando o pecado não é perdoado. Mas quando é perdoado, a grande confusão em
grande parte ainda persiste nesta vida, portanto, os defeitos permanecem, que são formais dessa
confusão.
Estas coisas são claras e não contêm nenhuma perplexidade. Os monges ignorantes deixaram
de fora a culpa e disseram que o formal do pecado é o defeito, e que isso é removido nos
renascidos, permanecendo apenas o material, que entendiam como apetites criados por Deus, que
são coisas boas. Mas eles não entenderam o que estavam dizendo. Pois, como as doenças
persistem, ou seja, as dúvidas, negligências e contumácias, é fácil entender que os defeitos
permanecem. Pois esses nomes de doenças que persistem significam defeitos.
O Espírito Santo começa a curar a natureza, mas não imediatamente todo o mal é removido.
Assim como o samaritano no capítulo 10 (versículo 34) de Lucas não cura imediatamente o
ferido, mas primeiro derrama vinho nas feridas para lavar o sangue, depois derrama bálsamo para
aliviar a dor e começar a cicatrização da ferida, então amarra a ferida do doente e o coloca em
um animal e o manda ser tratado em uma hospedaria, assim também Cristo nos coloca em seu
corpo, porque Ele suportou o castigo de nossos pecados e, derramando o Evangelho sobre nossas
feridas, as amarra, as cobre e perdoa nossos pecados. Mas ainda assim, as doenças na Igreja
devem ser curadas com exercícios constantes da cruz e da invocação. Essa imagem mostra que,
com o perdão do pecado original, a culpa é removida, mas as feridas não são curadas
imediatamente. Assim como a ferida formal é a laceração das partes que deveriam estar intactas,
assim também nesta depravação da mente, vontade e coração, existem certas lacerações, por
assim dizer, certamente tristes e cruéis, cujos formais o Dialético entende claramente como
deficiências, ou privações, ou distúrbios, ou seja, anseios que se afastam da lei de Deus.
Quando se fala sobre a causa final deste lugar, devem ser mencionadas as punições e os
efeitos. As punições pelo pecado original são a morte do corpo e outras grandes calamidades que
surgem da ignorância humana e da fragilidade de todas as forças; também a ira de Deus e a
condenação eterna. Como Paulo diz (Efésios 2. 3): “Éramos, por natureza, filhos da ira”. Além
disso, a tirania do Diabo, que impulsiona terrivelmente as naturezas fracas para caírem de um
mal para outro, como no caso de Édipo, que se tornou sem saber o assassino de seu pai e depois
sem saber casou-se com sua mãe; daí nasceram filhos que lutam pelo trono e são mortos por
ferimentos mútuos; o pai é expulso da cidade com os olhos furados e depois é engolido pelo
abismo da terra. Coisas tão terríveis acontecem ao homem, que não é defendido contra o Diabo
que o ronda. Não há nenhum homem que não sinta alguma mordida notável e terrível do Diabo,
de onde deve ser aprendida esta sentença: “A serpente se esconderá em seu calcanhar”. Mas, por
outro lado, aprendamos a promessa: “A cabeça da serpente será esmagada por nosso Senhor
Jesus Cristo”.
As punições pelo primeiro pecado são a multiplicidade da ignorância humana e essa
obstinação dos desejos, que é chamado de concupiscência. Mas isso, ao mesmo tempo, é punição
pelo primeiro pecado e, nos que nascem, o próprio pecado, ou seja, algo culpado e condenado
por Deus. Nem corretamente os monges disseram que essa inclinação perversa, que chamam de
combustível, é apenas punição. Essa enumeração de causas e efeitos ajudará os estudiosos a
entenderem, sem perplexidade, a doutrina da Igreja sobre o pecado original.
O leitor agora deve ser lembrado de algumas palavras: “Nenhum pecado é pecado, a menos
que seja voluntário”. Esta sentença se refere a delitos civis. Pois, no julgamento forense, apenas
os delitos voluntários são punidos, como o homicídio não intencional não é punido pelo pretor.
Mas não se deve aplicar esta frase à doutrina do Evangelho sobre o pecado e ao julgamento de
Deus.
Agostinho sagazmente diz que o pecado original é voluntário, pois dele gostamos. Mas essa
interpretação astuta se afasta daquela sentença forense. É melhor não misturar intempestivamente
opiniões políticas e o Evangelho. É suficiente responder que essa sentença se refere ao
julgamento forense.
Este dito também é proclamado: “A natureza é boa”. Isso é verdade no que resta da obra de
Deus. Mas a natureza humana foi terrivelmente ferida e contaminada. Como a imagem do
homem ferido desenhada em Lucas 10. Fomos privados dos dons da natureza íntegra, ou seja, do
conhecimento firme de Deus, da sabedoria e da justiça, e além disso, o restante da natureza foi
ferido, ou seja, pela concupiscência perversa, pela morte e por várias enfermidades da alma e do
corpo.
No entanto, devem ser discernidas as coisas que são as obras restantes de Deus no homem,
das coisas inerentemente viciosas, como o conhecimento dos números, que é uma coisa boa,
porque é inerente ao homem por Deus. Isso deve ser considerado para todos os verdadeiros
conhecimentos em sua ordem. Portanto, a Lei Natural é uma coisa boa e também o conhecimento
dela. Embora, após a queda de Adão, tenha ficado mais obscuro e a aceitação esteja perturbada
por dúvidas, ainda é uma coisa boa e uma obra de Deus, enquanto a sua luz permanece. As artes
e as leis verdadeiras, construídas a partir disso, são coisas boas. No entanto, muitas dúvidas
surgem sobre se Deus cuida de nós, se nos pune, se nos ouve, se quer nos ajudar, nos receber,
nos dar glória eterna, etc. Essas dúvidas são inerentemente viciosas porque são más e estão em
conflito com a Lei de Deus.
Assim, existem dois tipos de afetos: uns ordenados pela Lei de Deus, como o amor pelos
filhos, cônjuges e pais; outros proibidos pela Lei de Deus, como o desprezo por Deus, a revolta
contra Deus, a inveja e o amor pelo cônjuge de outro.
Embora, nesta corrupção da natureza, até mesmo os afetos ordenados pela Lei de Deus
sejam contaminados e se tornem acidentalmente viciosos porque não são governados pelo amor
de Deus, como muitas vezes os homens pecam contra Deus por causa dos filhos, no entanto, a
filosofia[65] em si é um mandamento dado por Deus e deve permanecer nos renascidos e se tornar
mais pura. Abraão ama ardentemente os filhos Ismael e Isaque, mas ainda assim ele prefere o
mandamento de Deus.
Portanto, não se deve imaginar que todos os afetos devam ser eliminados do ser humano ou
condenados da mesma maneira, como afirmam os fanáticos anabatistas que se gabam da
imperturbabilidade[66] estoica. Na verdade, não há vida sem movimento, sem desejo, sem alguns
afetos, e a Lei de Deus prescreve sobre os afetos: “Amará ao Senhor seu Deus de todo o
coração”, etc. “Amará o seu próximo como a si mesmo”. E em Romanos 1 (v. 31), entre os
crimes hediondos, é mencionada o desamor[67].
Portanto, se houvessem afetos na natureza íntegra, eles seriam ordenados e puros: amor a
Deus, aos pais, aos filhos, aos cônjuges, aos irmãos e a outros homens, alegria no conhecimento
de Deus e em sua ordem no uso das criaturas, ódio ao Diabo; e haverá na vida eterna uma grande
alegria na contemplação de Deus e amor a Deus e a todos os seres celestiais. Assim foram os
afetos verdadeiros em Cristo, mas ordenados e puros: amor a Deus, amor pela mãe, pelos
discípulos, pelos amigos, alegria, tristeza, raiva, como diz em Marcos 3 (v. 5): “Ele olhou em
volta com indignação”; e significativamente é dito sobre a misericórdia, que as entranhas de
Cristo foram movidas; e sobre uma grande tristeza é dito em Mateus 26 (v. 38): “Minha alma
está triste até a morte”. Portanto, é preciso reconhecer que os afetos foram colocados por Deus na
natureza dos seres humanos, os quais Deus também quis que fossem imagens e sinais de Sua
vontade. Deus nos ama verdadeiramente, e, assim como a natureza humana ama seus filhos,
Deus se compadece de nós quando vê que caímos na miséria eterna, que Ele mesmo entende;
assim como somos movidos pela natureza a sentir compaixão pelos filhos em aflição. Como
Cristo disse (João 3. 16): “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu filho
unigênito para que todo aquele que n’Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. E João disse
(1 João 4. 16): “Deus é amor”, ou seja, cheio de verdadeiro amor por nós, não querendo a
perdição. E Paulo disse a Tito 3 (v. 4): “Mas quando apareceu a bondade e o amor[68] ao homem
por parte de Deus, nosso Salvador”. Assim, Deus quis que os afetos[69] fossem impressos em nós
como lembrança de Sua vontade.
Os afetos devem ser considerados cuidadosamente e governados corretamente. Ora, após a
queda, eles vagueiam sem direção e se contaminam, o que é ainda mais lamentável, porque
foram dados para nos lembrar da vontade de Deus. No entanto, os afetos proibidos devem ser
discernidos: o amor familiar (στοργαί), o desprezo a Deus, a raiva contra Deus, a inveja, a alegria
no mal, como a alegria de Herodias na vingança, Fulvia, etc., e outras fúrias que não podem ser
enumeradas. E deve-se saber que os afetos proibidos pela Lei de Deus são, por si só, viciosos e
devem ser extintos.
Sobre o ditado comum de que a natureza é boa, eu respondi que é necessário distinguir entre
as coisas criadas e a corrupção não criada. Na ira heroica de Aquiles, há algo de bom, pois é
verdadeiramente uma obra de Deus, mas é contaminada porque não é governada pelo
conhecimento de Deus, e envolve confiança em si mesmo sem destaque para a invocação e
confiança divina. Esses defeitos não são pequenos pecados, e por isso até mesmo uma coisa boa
que é contaminada é rejeitada e se torna culpada.
A ira semelhante em Davi é mais pura, na qual se acrescentam conhecimento, temor,
invocação e confiança em Deus. Assim, saibamos que a afeição (στοργαί) permanece nos
renascidos, mas é mais correto que sejam governadas e trazidas de volta à ordem e aos seus
limites, e se tornem mais puras. Resta, então, falar da questão comum de se é correto afirmar que
o pecado existe em crianças batizadas, ou se a concupiscência é um pecado; bem como se é
correto afirmar que há pecado nos adultos batizados. Em relação aos adultos batizados, todos são
obrigados a admitir que há outros pecados. Por isso, João diz (1 João 1. 8): “Se dissermos que
não temos pecado, nós mesmos nos enganamos e a verdade não está em nós”. Eles confessam,
portanto, que há muitas chamas de desejos nos renascidos, as quais eles dizem ser pecados
porque elas arrastam algum consentimento repentino da vontade, que muitas vezes é difícil de se
livrar. Embora confessem isso, eles ainda minimizam esses males e afirmam que estão falando
apenas de pecados atuais, os quais negam ser mortais por natureza. E eles dizem que a raiz
dessas ações, ou seja, a doença que surge, que permanece nos renascidos, ou seja, a inclinação
perversa, não é de forma alguma pecado, nem é um mal que esteja em conflito com a lei de
Deus.
Considere, no entanto, quão audacioso é negligenciar esses males, ou seja, dúvidas sobre
Deus, segurança negligente, raiva contra Deus e muitas outras pragas, que mesmo que não sejam
sempre visíveis, estão presentes e muitas vezes irrompem, de modo que, na calamidade, Catão[70]
é completamente submerso na escuridão e nega a providência. Saul fica tão zangado com Deus
por puni-lo severamente. Esses pecados devem ser reconhecidos, não obscurecidos, para que
possamos aprender a resistir a eles e buscar ajuda contra eles.
Portanto, respondemos da seguinte forma: No batismo, o pecado é removido em relação à
sua culpa ou imputação, mas o próprio mal, que é a doença que luta contra a Lei de Deus,
permanece e é digno da morte eterna, a menos que seja perdoado, como é dito (Salmo 31. 1):
“Bem-aventurados aqueles cujas transgressões são perdoadas”. Não estamos discutindo o nome
do pecado, mas a divergência dos assuntos. Os adversários argumentam que essa doença que
permanece nos regenerados não é um mal que luta contra a Lei de Deus. É necessário condenar
esse erro. No entanto, os testemunhos claros de Paulo em Romanos 7 e 8 mostram que a lei está
lutando nos membros, juntamente com a lei da mente e a Lei de Deus. Esses testemunhos não
podem ser corrompidos por nenhuma artimanha.
Mas os adversários apresentam muitas falsas hipóteses. Primeiro, não falam nada sobre a
cegueira da mente e os vícios da vontade. Em segundo lugar, entendem apenas o desejo dos
sentidos como concupiscência, quando deveriam entender que é a desordem[71] das paixões, além
de incluir a cegueira da mente e a má vontade. Em terceiro lugar, acrescentam a esta falsa
hipótese que a Lei de Deus condena apenas os pecados atuais. Essa opinião transforma a Lei de
Deus em Filosofia, que fala apenas sobre nossa disciplina. Depois, essas ilusões obscurecem a
doutrina da graça. Eles imaginam que uma pessoa é justa por cumprir a lei e perdem a luz da
doutrina da fé.
Mas toda a doutrina dos Profetas e Apóstolos clama que os homens não satisfazem a Lei de
Deus e permanecem no pecado em todas as coisas, e aponta para o Mediador, dizendo que somos
recebidos e declarados justos por meio da nossa fé n’Ele. Portanto, nossa miséria deve ser
reconhecida para que os benefícios de Cristo sejam compreendidos.
Mas essa dissensão não pode ser resolvida pelos julgamentos dos hipócritas. Os hipócritas
sempre discordaram e continuarão discordando da verdadeira Igreja nessa questão, porque a
razão humana sem a luz divina não pode discernir quão maléficos são esses pecados interiores,
embora devesse avaliá-los de alguma forma a partir da grande confusão da vida e da magnitude
das calamidades.

SOBRE OS PECADOS ATUAIS


O mal original é, como eu disse, a escuridão na mente, a aversão da vontade a Deus, a
obstinação do coração contra a lei de Deus. Esses males não são chamados de ações, mas a partir
deles surgem pecados atuais internos e externos, como dúvidas persistentes na mente,
blasfêmias, segurança e negligência na vontade, desconfiança em Deus, admiração própria e o
ato de colocar nossas vidas e vontades acima do mandamento de Deus; logo, há uma grande
confusão e uma massa de afetos viciosos. Não devemos imaginar que o mal original é uma
questão ociosa. Pois, embora alguns poucos homens sejam controlados por uma boa disciplina, é
evidente que há grandes dúvidas e muitos movimentos desviados de Deus em suas mentes, que
caem em diferentes direções contra a lei de Deus, como Jeremias diz: “Enganoso é o coração
humano, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?” (Jeremias 17. 9).
Portanto, sempre junto com o mal original estão os pecados atuais, que em todos os não-
renascidos são mortais. E toda a pessoa é condenada com dois frutos, como João diz (3. 36):
“Quem não crê no Filho, a ira de Deus permanece sobre ele”. Embora haja grandes virtudes em
Aristides, Fabio, Pompónio Ático e similares, saibamos que neles também permaneceu o mal
original, e os corações estavam cheios de dúvidas e muitos afetos viciosos, e faltava o
conhecimento de Cristo, não havendo neles a verdadeira invocação de Deus.
Então, consideremos também que muitos homens de grande virtude foram manchados por
notáveis escândalos, o que nos permite entender que eles estavam sob o poder do Diabo. Quão
grande foi o comportamento torpe nos modos de Hércules, Temístocles, Pausânias, Alexandre e
muitos outros, depois de terem sido tão modestos no começo. Esses exemplos nos lembram para
não minimizar o conhecimento de Cristo, como muitos fazem, que elevam os pagãos ao céu; na
verdade, temos ainda mais temor da ira de Deus quando vemos que eles foram rejeitados e
contaminados de várias maneiras terríveis, embora tivessem muitas virtudes excelentes. Não
desprezemos o filho de Deus, não imaginemos que os homens são salvos sem o filho de Deus,
nem pisemos no sangue do filho de Deus. Tudo isso foi dito sobre os que não nasceram de novo,
em quem todos os pecados atuais são mortais, como o pecado original.
Mas quando se fala dos reconciliados, logo distinguem-se os pecados veniais e mortais, e os
pecados veniais são chamados de mal original em si mesmos; muitos pecados interiores que
entram em conflito contra a lei de Deus, aos quais, no entanto, os renascidos resistem; além dos
muitos pecados de ignorância e omissão. Não devemos minimizar esses males, como os
Sentenciosos fingiram que o pecado venial é algo além da Lei de Deus, não contra a Lei de Deus.
Esse erro deve ser necessariamente condenado. Pois esses pecados que são chamados de veniais
são enormes males que lutam contra a lei de Deus e que, por sua natureza, seriam mortais, ou
seja, pelos quais o homem seria condenado à ira eterna, se não fossem os reconciliados
perdoados por causa do Filho de Deus. Mas é necessário distinguir os pecados que permanecem
nos renascidos nesta vida daqueles pecados pelos quais perdem a graça, o Espírito Santo e a fé.
Portanto, a ação atual e mortal é aquela que luta contra a lei de Deus, seja interior ou exterior,
feita contra a consciência, em queda após a reconciliação; porque tal ação torna o homem
culpado da ira eterna. O que alguns imaginam sobre os eleitos caindo contra a consciência sem
derramar o Espírito Santo é um erro manifesto e necessariamente repreensível. Não julguemos a
eleição a partir do pecado, mas olhemos para a Palavra de Deus que nos foi entregue, para que
nos mostre a vontade de Deus, e tremamos, reconhecendo o julgamento de Deus proposto na
Palavra e nos exemplos, e não confirmemos a segurança e a cegueira dos tolos.
Adão e Eva eram eleitos, mas de fato perderam o Espírito Santo quando caíram em
desobediência a Deus, tornando-se assim objetos da ira eterna. Como Paulo diz (Romanos 5. 18):
“Assim, como por uma só transgressão resultou condenação para todos os homens”.
E em Deuteronômio 9. 20, diz-se que o Senhor ficou muito irado contra Arão e queria
destruí-lo, mas Moisés intercedeu por ele. Não desconsideremos as palavras muito tristes do
Espírito Santo, quando diz que Deus ficou muito irado, nem imaginemos Deus como uma pedra
ou um estoico. Embora Deus se irrite de maneira diferente do homem, devemos reconhecer que
Deus ficou realmente irado com Arão e que ele não estava então em graça, mas era culpado de
punições eternas. O pecado de Arão foi terrível, pois ele cedeu ao medo dos furiosos que
estavam instituindo o culto egípcio. Alertados por este exemplo, não devemos nos tornar seguros
de si, mas reconhecer que os eleitos e renascidos podem cair terrivelmente, mas que os que
caíram devem reconhecer a ira de Deus e voltar-se para Ele novamente. Não devemos ser
desencorajados pela gravidade de nossas quedas, de modo a não retornarmos a Deus. Pois a
graça excede o pecado, como será dito em seu devido lugar. E esta história de Arão testemunha
que grandes e atrozes pecados são perdoados quando os arrependidos os confessam. Da mesma
forma, devemos pensar sobre as quedas de Davi, Salomão e Manassés.
João diz claramente (1 João 3. 7-8): “Não se deixem enganar: quem pratica a justiça é justo,
assim como Ele é justo. Quem comete o pecado é do diabo”.
E em Efésios 5 (v. 6): “Por causa dessas coisas, a ira de Deus vem sobre os desobedientes”.
É evidente, portanto, que os eleitos e renascidos podem perder a graça, e que é necessário
discernir os pecados que permanecem em todos os renascidos nesta vida, que não expulsam o
Espírito Santo, dos outros pecados, pelos quais a graça é perdida.
Paulo deixou claro em Romanos 8 (versículos 12-14) que se você viver de acordo com a
carne, você morrerá; mas se pelo Espírito você mortificar as obras da carne, você viverá. Ele
reconhece que existem ações da carne nos santos, ou seja, muitas inclinações viciosas, dúvidas,
seguranças equivocadas, falta de confiança, confianças errôneas e afetos corruptos. No entanto,
ele afirma que é necessário resistir pelo espírito, ou seja, por meio de movimentos espirituais,
invocação a Deus, temor, fé, paciência espiritual ao contemplar Deus, castidade ao contemplar
Deus. Aqueles que são renascidos na graça permanecem nela, mesmo que tenham esses afetos
viciosos, desde que resistam e reconheçam pela fé o perdão por causa de Cristo. Mas ele diz que
se não resistirem, eles morrerão.
Para que possamos entender quem são aqueles que não resistem, ele estabelece um critério,
ou seja, aqueles que transgridem contra a consciência, ou seja, aqueles que sabendo e desejando,
se entregam ou até obedecem externamente a esses movimentos e chamas viciosas. Portanto, as
pessoas devem ser cuidadosamente ensinadas sobre essa distinção, para que evitem cair em
transgressões contra a consciência e, caso caiam, se voltem novamente para Deus.
Essas disputas estoicas execráveis são mantidas por alguns debatedores, afirmando que todos
os pecados são iguais e que os eleitos sempre retêm o Espírito Santo, mesmo quando cometem
quedas graves. Embora eu não queira iniciar discussões sobre terminologia, é útil advertir os
estudiosos de que o pecado comumente chamado de “pecado mortal” pode ser chamado de
“pecado reinante” ou “pecado dominante”. Pois quando Paulo diz em Romanos 6. 12: “O pecado
não reine em seu corpo mortal”, ele estabelece precisamente essa distinção dos pecados sobre os
quais foi falado aqui. Ele reconhece que há pecado nos renascidos, mas não como um
governante, não como um dominante, desde que eles mantenham a fé e uma boa consciência, ou
seja, desde que não obedeçam ao pecado, mas o resistam. Porém, se o pecado governar, traz
consigo a perdição eterna, e o enfatizar do termo indica a gravidade e a eficácia do pecado.
O pecado governa quando a culpa não é perdoada, mas inflama a ira de Deus e afasta o
homem d’Ele. O homem, abandonado por Deus, é impelido por sua própria fraqueza e pelo
diabo, para que caia de um mal para outro, e afunde em crimes e punições, como Saul, que havia
sido agraciado com o Espírito Santo, adornado com belas virtudes e notáveis vitórias, mas
sucumbiu às primeiras chamas da inveja, que no início poderia ter sido facilmente reprimida,
assim como Aarão reprimiu a inveja contra seu irmão. O pecado, portanto, começou a governar
quando Saul se entregou, ou seja, a culpa permanece e a ira de Deus é inflamada, o Espírito
Santo é expulso e perturbado, a mente, abandonada por Deus, se torna mais fraca e cede mais aos
afetos, e o diabo aumenta sua fúria. Isso resulta em assassinatos de sacerdotes e muitas
calamidades públicas, até que, finalmente, com seu exército perdido, Saul é morto e mergulha
em punições eternas. Essa imagem muito triste deve ser frequentemente contemplada para que
possamos refletir sobre a magnitude da ira de Deus contra o pecado.
Todas as histórias estão cheias de exemplos muito tristes, que, quando lemos ou ouvimos,
nos lembram de que somos ensinados por esses exemplos sobre o que é o pecado dominante.
O rei anabatista incita a sedição sob o pretexto da religião, vangloriando-se falsamente de
inspirações divinas, entregando-se a prazeres lascivos, assassinando cônjuges e, finalmente, é
capturado e dilacerado com ferro em brasa. Esses são exemplos do pecado dominante.
No entanto, parece que a expressão mais antiga é a seguinte. Pois também é dito no Salmo
118 (ou 119, versículo 133): “Dirige os meus passos pela Tua palavra, para que nenhuma
iniquidade tenha domínio sobre mim”. Essas palavras devem ser usadas em nossa oração diária
e, ao mesmo tempo, devemos refletir sobre como é terrível o pecado dominante. “Dirige os meus
passos, para que o pecado não tenha domínio sobre mim, para que eu não me torne um vaso de
ira, para que eu não seja rejeitado como Caim, Saul, Judas, Acabe, Édipo, Atreu, Tiestes, Nero e
outras pragas da humanidade”.
No entanto, eu considero que a designação de “dominação” foi tirada de Moisés. Pois, em
Gênesis 4 (v. 7), está escrito: “Se você fizer o bem, será aceito; mas se não fizer o bem, o pecado
espreita à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo”. Este sermão da Lei deve ser
cuidadosamente considerado. Pois contém ensinamentos sobre três pontos importantes. Primeiro,
ensina a distinção entre a justiça interna e os sacrifícios. Os sacrifícios agradam a Deus se você
for bom, ou seja, se a mente for piedosa; mas se a mente for ímpia, eles não agradam a Deus. Em
segundo lugar, prega sobre o julgamento vindouro e descreve a segurança do mundo, quando diz:
“O pecado espreita à porta”, ou seja, não é reconhecido, não inspira temores, até que a mente seja
afetada pelo sentimento da ira de Deus e do castigo. Assim, Nero, Calígula e uma infinidade de
pessoas vivem despreocupadamente em sua fúria até que a punição chegue. Este sermão é
universal, pois ensina que haverá um julgamento universal. Pois, uma vez que os crimes dos
ímpios não são punidos nesta vida, é necessário que haja outra vida e outro julgamento, no qual
todos serão punidos. Portanto, neste primeiro sermão, o ensinamento sobre o julgamento
vindouro é transmitido. Em terceiro lugar, é ordenado o início da obediência (Gênesis 4. 7): “Ele
deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo”.
Quando antes ele falou sobre o julgamento de Deus, pode-se perguntar: “O que devo fazer,
então, quando há uma cobiça perversa acesa dentro de mim?”. Aqui ele responde e
primeiramente apresenta a lei, ordenando-nos a resistir aos afetos viciosos. Mas não é suficiente
conhecer a lei, também devemos saber se esse esforço em reprimir os afetos agrada a Deus, e
como o Diabo pode ser reprimido e a fraqueza natural pode ser superada. Essas coisas são
aprendidas em conexão com a promessa (Gênesis 3. 15): “A semente da mulher esmagará a
cabeça da serpente”. Assim como é indubitável que os pais transmitiram a promessa a este
sermão da lei e ensinaram aos filhos a origem da obstinação dos afetos e que a reconciliação foi
prometida por causa da futura semente, e que Deus ajudará e reprimirá o Diabo por causa dessa
semente, em auxílio de nossa fraqueza.
Assim como João interpretou de forma muito erudita a promessa, dizendo: “O Filho de Deus
veio para destruir as obras do Diabo”, isto é, para nos libertar do pecado e nos ajudar a obedecer
a Deus, e para nos proteger contra o Diabo. Na verdade, Ele finalmente aboliu completamente o
pecado e a morte, e restaurou a justiça e a vida eterna. Assim, os Pais ensinaram não apenas a
Lei, para restringir as paixões, mas também apresentaram a doutrina de como a obediência pode
ser realizada em tamanha fraqueza, como podemos agradar a Deus, o que tudo é indicado pela
palavra “Dominandi” (dominar). Pois não podemos dominar sem a ajuda do Mediador, isto é,
sermos libertados da culpa e vencer o Diabo e a nossa própria fraqueza.
Portanto, a esta parte da doutrina devem ser adicionadas as que são mencionadas no
Evangelho sobre o perdão dos pecados, sobre a fé e sobre a ajuda do Espírito Santo. Assim como
em outros lugares a doutrina da nova obediência é explicada de forma mais detalhada, da mesma
forma, quando a questão central é comparada com essas passagens do Gênesis, essas breves
palavras se tornam mais claras. É suficiente ter observado sobre a expressão “Dominante do
pecado”. Além disso, em outros momentos é dito de forma mais detalhada que a ignorância e a
omissão afetada também são pecados mortais. Desde o início, foi feita a promessa de um
libertador vindouro, cuja memória todas as nações deveriam preservar. Posteriormente, essa
promessa foi amplamente divulgada entre as nações. Então, o Evangelho foi espalhado por todo
o mundo com muitas testemunhas notáveis, e a voz do céu ressoou: “A Ele ouçam” (Mateus 17.
5). Portanto, ninguém pode ser desculpado pela ignorância do Evangelho, na verdade, esse
pecado é particularmente condenado pelo Espírito Santo, como Cristo disse: “O Espírito Santo
convencerá o mundo do pecado, porque não creem em Mim” (João 16. 8 e seguintes).

6. A Lei Divina
A lei de Deus é uma doutrina transmitida por Deus, ordenando o que devemos ser, o que
devemos fazer e o que devemos omitir, e exige perfeita obediência a Deus, a declaração da ira de
Deus e a punição, daqueles que não demonstrarem obediência perfeita, com morte eterna. Esta
definição é tirada da própria lei de Deus e muitos sermões de Cristo. Pois a Lei contém preceitos
e promessas, aos quais se acrescenta a condição de que a Lei seja cumprida; também ameaças.
Preceitos são pregados sobre obediência completa (Mateus 22. 37): “Amará ao Senhor seu Deus
de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças”. Também (ibid. v. 39):
“Amará o seu próximo como a si mesmo”. Também (Êxodo 20. 17): “Não cobiçará”. A ameaça
diz: “Maldito aquele que não permanece nas palavras desta Lei, e não as cumpre com suas
obras”. Também em Mateus 25 (v. 41): “Afaste-se de mim malditos para o fogo eterno”, etc.
É necessário primeiro advertir que há uma enorme e infinita diferença entre as leis humanas
e a lei divina. Assim como o povo não podia contemplar o rosto resplandecente de Moisés e só o
via velado, da mesma forma as mentes e os olhos de todos os homens contemplam a Lei de Deus
à distância, sem compreender o verdadeiro julgamento, mas consideram-na apenas como uma
doutrina sobre obras externas, como os preceitos de Fócilo ou Teógnis. Porém, existem muitas e
maiores razões e propósitos revelados da Lei divina, como será explicado a seguir. Não devemos
encarar a Lei de Deus como as tábuas decemvirais romanas, que pereceram há muitos séculos
juntamente com seu tribunal e tribuna. Mas a Lei de Deus é a regra eterna e imutável da mente
divina e o juízo contra o pecado, que está impresso nas mentes humanas e frequentemente
pregado pela voz de Deus, conforme Cristo diz (Mateus 5. 17): “Não pensem que vim destruir a
Lei ou os Profetas; não vim destruir, mas cumprir”.
Portanto, considere-se essa distinção: as leis humanas apenas exigem ou proíbem ações
externas.
A filosofia ensina algo mais, ou seja, que a ação honesta não é apenas uma obra externa ou
simulada, mas um julgamento correto da mente e uma livre escolha ou volição (προαίρεσιν) para
fazer o que é correto. Ela requer uma certa moderação interna dos afetos e ações, que são
propriamente chamadas de éticas (ηθικη). No entanto, ela não acusa a impureza natural, nem
considera que esses vícios extremos estejam em conflito com a primeira tábua, a dúvida sobre
Deus, o coração vazio de temor e amor a Deus, a falta de confiança e outras doenças que são
inerentes à natureza humana.
A Lei de Deus não exige apenas ações externas ou o controle dos afetos, como falam os
filósofos, mas ordena que a natureza obedeça a Deus integralmente, tenha um conhecimento
verdadeiro e constante de Deus, um temor verdadeiro e perpétuo, uma confiança firme em Deus
e um amor ardente. No entanto, como a natureza humana não é assim, a voz da Lei é o juízo de
Deus condenando o pecado em nossa natureza. Paulo expressa isso ao dizer (Romanos 7. 14): “A
lei é espiritual”, ou seja, não é apenas uma sabedoria política que ordena ações externas na vida
civil, mas é uma doutrina muito diferente que exige movimentos espirituais, um conhecimento
firme de Deus e um amor ardente e perfeito, como a Lei diz (Deuteronômio 6. 5): “Amará ao
Senhor seu Deus de todo o seu coração”.
No entanto, os monges, em relação à Lei de Deus, como falaram sobre a disciplina civil,
afirmaram que a Lei de Deus é satisfeita por meio dessa disciplina civil ou filosófica, isto é, por
meio de obras exteriores e de qualquer esforço da vontade, mesmo que na mente haja dúvidas e
no coração e na vontade haja muitas inclinações malignas. E ensinaram que essas dúvidas e
inclinações malignas não são pecados.
Portanto, eles afirmaram que os homens são justos e agradáveis a Deus por causa de suas
obras, pois acreditavam que a Lei de Deus era satisfeita. Eles não ensinaram que os homens são
justos, ou seja, reconciliados com Deus e agradáveis a Ele pela fé em Cristo, o Mediador. Mas
Paulo refuta esses erros dos fariseus em relação à Lei, afirmando que a natureza fraca dos seres
humanos não pode satisfazer a Lei de Deus, nem apaziguar a ira de Deus, nem remover o pecado
por meio das obras da Lei. Em vez disso, ele afirma que Deus enviou seu Filho, nosso Senhor
Jesus Cristo, para tirar o pecado e nos conceder justiça e vida eterna através d’Ele, tanto nas
questões civis quanto nas cerimônias. Discutiremos isso mais detalhadamente em seu devido
lugar.
A DIVISÃO DAS LEIS
Primeiramente, mencionaremos as seguintes categorias: a Lei divina, a Lei da natureza e as
leis humanas. As leis divinas são aquelas que foram entregues por Deus em qualquer época e
estão registradas em diversos lugares, tanto nos escritos de Moisés como nos livros do
Evangelho. A Lei da natureza, como explicarei a seguir, é o conhecimento natural sobre Deus e
sobre a governança dos costumes, ou seja, a distinção entre o que é honesto e o que é indigno,
inerente à humanidade e implantada divinamente em cada ser humano, assim como o
conhecimento dos números é divinamente implantado nas mentes humanas. Portanto, ela está em
harmonia com aquela parte da Lei divina chamada Lei Moral, como demonstrarei
posteriormente. Primeiramente, devemos distinguir as categorias da Lei divina.
Embora desde o início do mundo tenham soado na Igreja de Deus a voz da Lei e a voz da
promessa da graça, foi somente com um propósito específico que a política israelita foi
estabelecida e a Lei de Deus foi promulgada. Pois Deus quis restabelecer por meio de um
testemunho público e manifesto aquele conhecimento que Ele havia implantado nas mentes
humanas durante a criação, a fim de revelar o Seu julgamento contra o pecado. Uma vez que toda
a política estava sendo estabelecida, não foram apenas apresentadas leis individuais sobre os
costumes, mas também foram acrescentadas leis forenses e cerimoniais.
Portanto, existem três partes na lei mosaica como um todo: as Leis morais, as Cerimoniais e
as Forenses ou Judiciais. É importante considerar cuidadosamente essa distinção, pois embora a
política de Moisés tenha sido abolida, é necessário considerar a distinção entre as leis. As
cerimônias mosaicas e as leis aplicadas nos tribunais não foram destinadas a outras nações e não
nos obrigam. Elas foram transmitidas ao povo de Israel por um período específico, porque a
política tinha uma duração determinada. Isso ocorreu para que houvesse um lugar adequado onde
Cristo pudesse nascer, se manifestar, pregar, se tornar o sacrifício e iniciar abertamente a vida
eterna.
No entanto, existem leis morais que são a vontade eterna de Deus e constituem uma regra
imutável ao longo do tempo. Desde o princípio, Deus desejou que as criaturas O amassem e
temessem, que as criaturas racionais fossem castas. Essas leis morais incluem o conhecimento de
Deus na mente, a obediência a Ele no coração e virtudes em relação aos outros, como justiça,
castidade, verdade e temperança. Essas leis morais foram maravilhosamente reunidas em uma
tabela conhecida como Decálogo, por um sábio conselho de Deus. Portanto, quando nos
referimos ao Decálogo, estamos falando da Lei moral, e devemos entendê-la corretamente, sem
disputas de palavras.
Além das leis morais, há repetições e explicações do Decálogo encontradas nas Escrituras
proféticas e apostólicas. Essas leis são as regras eternas estabelecidas na mente divina e sempre
foram reconhecidas pela Igreja, mesmo antes de Moisés. Elas permanecem relevantes para todas
as nações.
Por outro lado, existem elementos naturais presentes nas leis forenses e cerimoniais, que
também possuem uma natureza perpétua. Por exemplo, a proibição de práticas abomináveis,
conforme mencionado em Levítico 18 (versículos 6 e seguintes), está relacionada à reverência
pelo sangue. Deus deixou claro que os cananeus foram exterminados devido às suas práticas
incestuosas. Portanto, quando as nações são acusadas desses crimes antes da lei de Moisés, estão
sendo condenadas por essa lei eterna de Deus e por um julgamento natural.

EXPOSIÇÃO DO DECÁLOGO
A meditação sobre o Decálogo é extremamente útil e benéfica; ela contém um ensinamento
tão amplo e elevado que nunca pode ser plenamente compreendido ou esgotado. Quanto mais
detestável é a loucura daqueles que afirmam poder satisfazer a Lei de Deus e até mesmo
aprimorá-la. Essas palavras não são humanas, mas foram espalhadas pelo Diabo, que, por meio
dessa zombaria, engana a humanidade caída de sua dignidade e pureza. Quando Deus revelou
nesta Lei a razão pela qual a natureza humana foi criada, de onde caímos e em quais misérias e
trevas caímos, o Diabo espalhou, como que zombando de nós, palavras irônicas que diminuem a
Lei de Deus. Portanto, que os piedosos saibam que esses erros dos fariseus e monges não são
leves, e que eles busquem a Deus para que o véu seja removido de nossos corações, o véu que
impede que vejamos a Lei de Deus mais de perto, e que consideremos seriamente que ela contém
a voz de Deus, muito maior do que podemos compreender completamente.
Primeiro, devemos refletir sobre essas quatro coisas em relação à Lei.
Primeiramente, a lei adverte sobre a finalidade para a qual a natureza humana foi criada e
qual era a dignidade e pureza do ser humano em sua criação. A natureza humana deveria ser da
forma descrita por esta Lei, plenamente consciente de Deus, sempre glorificando-O, sempre
obedecendo-O, sempre reconhecendo Sua presença e governo em todas as obras, observando a
ordem justa em todas as ações, sem qualquer desejo maligno, sem qualquer calamidade, sem a
morte.
Em segundo lugar, a lei nos adverte sobre a atual miséria. Pois agora vemos a natureza caída
lutando contra a lei, cheia de trevas e desprezo por Deus, sem ordem, repleta de más paixões de
todos os tipos, e o pecado é a causa da morte e de inúmeras calamidades. No entanto, não
compreendemos plenamente a nossa miséria, nem ouvimos verdadeiramente a Lei, a menos que
reconheçamos a ira de Deus contra o pecado em verdadeiros terrores ou punições. É aqui que
começamos a entender um pouco a lei de Deus e a miséria humana. Como Davi clama, a ira de
Deus não pode ser suportada se Deus quiser punir os pecados conforme o merecimento (Salmo
129. 3): “Se observares as iniquidades, Senhor, Senhor, quem subsistirá?”. E há mais e maiores
pecados em cada um de nós do que podemos perceber. Mas observe a ênfase desta afirmação:
“Quem subsistirá?”. Não há força humana capaz de suportar as calamidades humanas, que são as
punições dos pecados. Assim como Davi experimentou as punições por seu adultério, o
assassinato de seus filhos, a revolta de seus filhos, as esposas manchadas pelo incesto, o exílio, a
destruição dos cidadãos e inúmeros outros males. Nessas punições, ele aprendeu este versículo:
“Quem subsistirá?”. E ainda assim, esses males presentes nem sequer podem ser comparados às
punições eternas. Portanto, toda vez que recitamos este versículo: “Se observares as iniquidades,
Senhor, Senhor, quem subsistirá?”, devemos pensar na verdadeira e incompreensível ira de Deus
contra o pecado, devemos contemplar a Lei e reconhecer nossa impureza em conflito com toda a
Lei, devemos pensar na imensa carga de punições imposta à humanidade, devemos contemplar
nossas calamidades pessoais e comuns, e devemos orar a Deus para que Ele aplaque Sua ira, que
ninguém pode tolerar e suportar. Se Ele a exercer, é necessário que os seres humanos sucumbam
e pereçam nas punições presentes e eternas. Assim, expressões semelhantes nos Salmos nos
advertem sobre o verdadeiro entendimento da Lei, o reconhecimento de nosso pecado, a ira de
Deus e as punições.
Em terceiro lugar, a lei nos admoesta silenciosamente sobre a reparação do mediador, a
salvação da humanidade e a vida eterna; ela também indica a que altura somos chamados
novamente. Pois, quando Deus repete a voz da lei após a queda da natureza, certamente quer que
a lei seja cumprida em algum momento; haverá, portanto, a reparação da humanidade e haverá
vida eterna, pois nesta vida vemos que a lei não é satisfeita. No entanto, a doutrina da reparação é
apresentada de forma mais clara nas promessas.
Em quarto lugar, ao considerarmos a grande miséria da raça humana, oprimida pelo pecado,
pela ira de Deus e pela morte, e compreendermos que a voz da lei é um anúncio, um vínculo,
uma testemunha e um mensageiro dessa terrível ira que sempre se aproxima de nós, voltemos
nosso olhar para o Filho de Deus e consideremos a vítima que sofreu sozinha a ira em nosso
lugar. Ele assumiu o fardo da lei, aplacou o Pai e proporcionou-nos benefícios que excedem
abundantemente o peso do pecado. Compreendamos também que somos chamados por Ele, o
próprio Filho de Deus, e que é por meio d’Ele que essa pureza descrita na Lei começa a se
manifestar em nós, como discutiremos posteriormente em seu devido lugar.

DECÁLOGO
Existem duas tábuas: A primeira contém as ações pelas quais agimos imediata ou
propriamente com Deus, ou seja, o culto a Deus, interno e externo. A segunda contém as ações
em relação aos seres humanos, que, embora sejam os laços da sociedade humana, também são
consideradas culto a Deus: pois Deus ordena e declara por Sua palavra que essas ações são culto
a Ele, se forem feitas por mandamento de Deus, como ensina Isaías no capítulo 1, também no
capítulo 58, e Samuel (1 Samuel 15. 22): “Obedecer é melhor do que sacrificar”. Oseias 6. 6 diz:
“Quero misericórdia e não sacrifício”. E Cristo diz (Mateus 22. 39): “O segundo mandamento é
semelhante ao primeiro”, ou seja, exige obediência necessária, assim como a obediência ao
primeiro mandamento é necessária. Devemos observar isso para aprendermos o verdadeiro culto
a Deus e que todas as ações dos mandamentos devem ser referidas ao primeiro mandamento, e o
objetivo a ser estabelecido em cada ação é fazer com que a obediência e a honra sejam prestadas
a Deus. O culto a Deus é uma atividade que Deus nos ordenou a fazer. É uma forma de
demonstrar nossa obediência e honra a Deus. O culto é realizado com o conhecimento de Cristo
e através da nossa fé n’Ele. O objetivo é agradar a Deus, nosso Pai, por causa de Jesus Cristo.
Assim como Pedro nos ensina a oferecer sacrifícios espirituais que são aceitos por Deus por
meio de Jesus Cristo.

O PRIMEIRO MANDAMENTO
O primeiro mandamento ordena sobre a obra que é suprema e principal, a saber, o
conhecimento verdadeiro de Deus, a obediência verdadeira e perfeita para com Deus, o temor
perfeito, a confiança e o amor perfeito a Deus. Ele abrange duas coisas principais, ou seja, o
modo de conhecer a Deus e o verdadeiro culto. O modo é tal que Deus seja conhecido através de
Sua palavra e testemunho. Pois, uma vez que Deus é invisível, é necessário que haja algum
testemunho por meio do qual Ele seja reconhecido e compreendido. Assim, quando a mente
humana contempla a obra do mundo, ela pensa no autor dessa obra, ou seja, Deus. No entanto,
esse conhecimento não é suficiente, pois mesmo os pagãos e muçulmanos também têm essa
noção, embora muitas vezes seja suprimida por Satanás. Mesmo que haja uma compreensão
considerável, ainda persiste a dúvida se esse Deus criador cuida de nós, se nos ouve, se deseja ser
adorado e como deseja ser adorado. É nesse ponto que precisamos da Palavra de Deus e de Seu
testemunho. Portanto, é apresentada uma palavra e um testemunho específicos: “Eu sou o
Senhor, seu Deus, que lhe tirei da terra do Egito”. Assim, a mente deve reconhecer que este é o
Deus que se revelou ao dar essa palavra no monte Sinai e que se declarou como nosso Deus, ou
seja, aquele que cuida de nós, nos julga, nos defende e nos pune.
Também foi acrescentado um testemunho, que é a gloriosa libertação e defesa do povo
quando foi tirado do Egito, entre outros eventos. Embora Deus seja invisível, a mente humana
reconhece que Ele é o verdadeiro Deus, revelado em Sua palavra e em testemunhos admiráveis,
mostrando como Ele deseja ser adorado. No início, Adão recebeu a palavra no Paraíso e toda a
natureza testemunhava sobre Deus. No entanto, após a queda, era necessário consolo em relação
ao perdão do pecado. Por isso, foi acrescentada outra palavra, a promessa da graça, e sinais
foram dados, com ofertas consumidas pelo fogo celestial. Da mesma forma, o Evangelho nos
apresenta a palavra e o testemunho certos, o Filho de Deus crucificado e ressuscitado, que nos
revela o Pai. Ao reconhecer esse Filho, invocamos o Pai eterno, revelado no Filho, conforme
escrito em João 1. 18: “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho unigênito, que está no seio do Pai,
esse O revelou”. E também em João 14. 9: “Quem Me vê, vê o Pai”. E novamente em Mateus 11.
27: “Ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e Aquele a quem o Filho O revelar”. É através desse
Filho que o Pai é satisfeito e ouvido, como Jesus afirma em João 14. 13: “E tudo o que pedirdes
em Meu nome, Eu o farei, para que o Pai seja glorificado”. Portanto, afirmamos que este é o
Deus que se revelou enviando o Filho para ser a vítima e ressuscitando-O para ser o Mediador,
Intercessor, Auxiliador e Salvador. Foi Ele quem deu a este Filho o Evangelho do perdão dos
pecados e da vida eterna. Ao reconhecer essa invocação ao Deus eterno e todo-poderoso,
confiando em Cristo através do Evangelho dado por Ele, podemos distinguir a verdadeira
invocação da Igreja das invocações de outras nações. Assim, sempre que a mente clama a Deus,
ela invoca o Deus que é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, e, pela fé,
contempla o Evangelho dado por esse Filho: “E tudo o que pedirem ao Pai em Meu nome, Ele os
dará”. Paulo nos recomenda frequentemente esse modo de conhecer a Deus, como em 1
Coríntios 1. 21: “Porque, visto que na sabedoria de Deus o mundo não O conheceu por sua
própria sabedoria, aprouve a Deus salvar aqueles que creem pela loucura da pregação”. Da
mesma forma, a doutrina sobre o Sumo Sacerdote Cristo, que entrou no Santo dos Santos, ensina
a mesma verdade. As outras pessoas não conhecem o Deus invisível, mas apenas o Filho de Deus
entra nesse mistério sagrado. Portanto, ao nos aproximarmos de Deus, reconheçamos esse Sumo
Sacerdote, que nos conduz ao Pai e apresenta nossas preces, conforme a Epístola aos Hebreus 4.
15-16 diz: “Porque não temos um sumo sacerdote que não possa se compadecer das nossas
fraquezas, antes, foi Ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado.
Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e
achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno”. Essas coisas sobre como conhecer a
Deus devem ser ensinadas aos seres humanos, para que eles possam invocar a Deus
corretamente.
Os cultos aos quais se faz menção aqui são: o conhecimento de Deus, crer na Palavra de
Deus, verdadeiro temor, verdadeira fé ou confiança e verdadeiro amor. O temor é necessário,
como está escrito: “Eu sou o Deus zeloso, que visito a iniquidade” (Êxodo 20. 5). Também está
escrito: “Ao Senhor, seu Deus, temerá e a Ele servirá” (Deuteronômio 6. 13). A confiança e o
amor também são exigidos, como está escrito: “Eu sou o seu Deus Todo-Poderoso, que olho por
você, cuido de você, defendo-o, salvo-o”, etc. Também está escrito: “Fazendo misericórdia aos
que Me amam” (Êxodo 20. 6). E ainda: “Amará ao Senhor seu Deus de todo o seu coração”
(Deuteronômio 6. 5). Pois essas palavras, onde quer que sejam lidas, são explicações do primeiro
mandamento.
Mas quanto à exigência de uma obediência perfeita, estas palavras testemunham: “Amará ao
Senhor seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma, com todas as suas forças”
(Deuteronômio 6. 5). Portanto, exige-se temor, confiança e amor a Deus acima de tudo, e que
essas virtudes sejam puras, ardentes e perfeitas, não misturadas com desejos viciosos. No
entanto, esta natureza corrupta dos seres humanos não pode oferecer essa obediência perfeita. Ela
está enraizada na mente a dúvida sobre a ira de Deus e a misericórdia: ninguém teme tanto
quanto deveria; ninguém queima de amor como deveria, e muitos desejos perversos estão
misturados. Portanto, Paulo diz: “A inclinação da carne é inimizade contra Deus”, e entende-se
que ele está falando de uma inimizade séria contra Deus. Assim, a lei sempre acusa e condena
todos os seres humanos nesta natureza corrupta, porque eles não podem e não conseguem
oferecer obediência perfeita.
Agora alguém pode dizer: “Mas é necessário que aqueles que agradam a Deus cumpram esta
Lei”. Respondo: Primeiramente, isso não pode ser realizado sem o conhecimento de Cristo e do
Evangelho. Pois, uma vez que a Lei acusa e condena a todos, e reconhecemos que somos
culpados e cheios de obstinação contra essa Lei, nossos corações se afastam de Deus, não O
amam e não ousam buscar o bem de Deus. Mas ao ouvir o Evangelho, quando reconhecemos que
nossos pecados são perdoados por causa de Cristo e somos aceitos em Sua graça, tornando-nos
filhos de Deus, embora indignos, com essa presença reconhecida e a misericórdia de Deus,
invocamos a Ele e começamos a nos submeter, temê-Lo e confiar em Sua prometida
misericórdia, e não O amamos de maneira ociosa, mas sim como um Pai que realmente cuida e
nos salva, como Ele diz: “Eu sou o seu Deus”. Portanto, o preceito é iniciado com o
conhecimento de Cristo. Em seguida, embora a obediência deva crescer, aqueles que renasceram
nunca satisfazem completamente esta Lei, mas o restante do pecado é perdoado a eles, como será
mencionado em seu devido lugar, e eles são considerados justos por causa do Mediador, Cristo.
Como está escrito: “Cristo é o cumprimento da Lei”. E, sendo justificados por meio dessa
imputação por serem filhos de Deus, a obediência iniciada é agradável, mesmo que não seja
perfeita. Portanto, aqueles que são renascidos cumprem esta Lei ao iniciar e crer que são
considerados justos por causa de Cristo e que o restante do pecado é perdoado por Ele.
No entanto, para fins de ensino, é conveniente abranger todas as obras do primeiro
mandamento com essas duas palavras, ou seja, o chamado do temor e da fé, pois, embora o amor
necessariamente acompanhe a fé ou confiança na misericórdia, o termo “amor” é mais obscuro
do que as palavras “temor” ou “fé”. Pois devemos experimentar frequentemente o temor na
penitência e também devemos experimentar confiança no consolo.
Descrevi as obras do primeiro mandamento: o conhecimento de Deus, crer na Palavra de
Deus, o temor, a fé ou confiança e o amor a Deus. Além disso, deve ser acrescentada a Paciência
nas aflições, seja quando somos afligidos pela violência injusta dos tiranos ou de outros, ou
quando enfrentamos adversidades comuns, como doenças, morte, perdas materiais, entre outros.
Em ambos os casos, Deus requer obediência do coração. Faz parte da obra do primeiro
mandamento o culto a Deus e a obediência da Igreja em ambos os tipos de aflições; tal como a
obediência de Abel na morte, a obediência de todos os mártires nos tormentos, a obediência de
Jó, Davi, nas calamidades domésticas, e assim por diante. Pois sobre o primeiro tipo está escrito
claramente: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-Me”
(Mateus 16. 24). Também está escrito: “Porque os que dantes conheceu, também os predestinou
para serem conformes à imagem de seu Filho” (Romanos 8. 29). E ainda: “Preciosa é aos olhos
do Senhor a morte dos Seus santos” (Salmos 116. 15). Existem, portanto, claros mandamentos
sobre essa obediência. E Deus quer ser mais temido do que os tiranos; além disso, Ele quer que,
nas próprias aflições, não caiamos em desespero, não pensemos que somos negligenciados por
Deus, mas que mantenhamos a consolação de que Deus é favorável a nós e governará o
resultado.
Quanto ao segundo tipo, ou seja, as calamidades comuns, está escrito: “Porque já é tempo
que comece o julgamento pela casa de Deus” (1 Pedro 4. 17). Portanto, tanto nos casos de
punição quanto nos exercícios, Deus deseja que a Igreja esteja sujeita a essas aflições. Isso
ocorre porque a natureza humana, devido ao pecado, está sujeita à morte física, e muitos pecados
atuais da Igreja, inclusive dos santos, são punidos. Assim, Deus deseja que a Igreja seja advertida
por meio dessas aflições para se arrepender, prestar obediência, exercer fé, invocação e
esperança, não cair em desespero, não pensar que somos rejeitados ou negligenciados por Deus,
mas manter a consolação de que Deus é favorável a nós e governará o resultado. Aqui se aplicam
os ensinamentos que ordenam tanto a obediência a ser prestada em meio às calamidades comuns
quanto a manutenção da consolação por meio da fé. “Não murmurem entre vocês”, ou seja, não
fiquem irritados com Deus, como se Ele nos tratasse com crueldade ou nos negligenciasse.
Também está escrito: “Humilhem-se, pois, debaixo da poderosa mão de Deus” (1 Pedro 5. 6).
Além disso, “O sacrifício agradável a Deus é um espírito quebrantado” (Salmos 51. 17). E ainda:
“Entregue o seu caminho ao Senhor, confie n’Ele” (Salmos 37. 5). E também: “Ofereça
sacrifícios de justiça e confie no Senhor” (Salmos 4. 5).
Veja como há uma grande convergência de boas obras nesta obediência, todas relacionadas
ao primeiro mandamento. Primeiramente, a própria obediência, ao considerar a Deus, é uma boa
obra por si só, e neste mandamento está o chamado para temer a Deus mais do que os tiranos.
Também nos ordena suportar as punições divinamente impostas, como a morte e outras
semelhantes, como está escrito: “O julgamento começa pela casa de Deus” ou “Somos
disciplinados pelo Senhor para não sermos condenados com o mundo”. Além disso, para essa
obediência é necessário acrescentar a fé, que nos assegura que Deus não despreza nem rejeita os
aflitos, mas olha para eles com favor e governa seus destinos, assim como Davi experimentou
quando estava no exílio. Essa fé e esperança são obras do primeiro mandamento.
De todas essas coisas, surge a virtude chamada Paciência, que é a obediência prestada a
Deus com tranquilidade de espírito e uma vontade de obedecer. Essa tranquilidade surge da
consolação da fé. Paulo chama todas essas coisas de paz, como em Filipenses 4. 7: “E a paz de
Deus, que excede todo o entendimento, guardará os seus corações e os seus sentimentos”, ou
seja, haverá uma paz ou tranquilidade de espírito em vocês para que possam obedecer a Deus,
sustentar e fortalecer suas almas pela consolação da fé, e suportar as adversidades, olhando para
a promessa divina. Ao contemplar a admirável bondade e misericórdia de Deus, também se
encontra o amor.

Antítese
Consideremos agora a teimosia da humanidade contra o primeiro mandamento, a fim de
reconhecer nossa fraqueza e discernir os diferentes níveis de pecado contra este mandamento. O
primeiro nível é o dos Epicuristas e Acadêmicos, que negam ou duvidam da existência de Deus,
questionam se Ele se preocupa com os assuntos humanos ou se a palavra transmitida pela Igreja
é de fato de origem divina. Esse é, de fato, o grupo mais numeroso de pessoas em todos os
lugares, que apagaram completamente de seus corações qualquer senso de Deus, entregando-se à
dúvida e fortalecendo-a. Assim, as trevas se espalharam desde a queda dos primeiros pais e
foram posteriormente confirmadas pela maldade dos seres humanos, alimentadas pelo Diabo.
O segundo nível é o daqueles que adoram ídolos, ou seja, aqueles que inventam vários
deuses e atribuem a cada um poderes diferentes, como os pagãos, ou aqueles que prestam honras
divinas, ou seja, invocam criaturas, como aqueles que invocam os santos falecidos. A invocação,
na verdade, atribui onipotência ou amarra Deus a certas imagens, quando Ele não deseja ser
vinculado a nada sem Sua Palavra. É evidente que sempre existiram e ainda existem práticas que
ordenam a obediência a esses ídolos. A invocação dos santos e o culto às imagens não diferem
dos costumes pagãos.
O terceiro nível é o dos magos, que praticam rituais com demônios, inimigos de Deus, assim
como aqueles que consultam os magos e aqueles que se entregam a outras práticas
supersticiosas, atribuindo poder a elas sem a ordenação divina. Se houver consequências dessas
práticas, o responsável é o Diabo, e a confiança é baseada nos demônios. Todas essas coisas são
proibidas em Levítico 20. 6, que diz: “Aquele que se voltar para os necromantes e feiticeiros,
para se prostituir com eles, Eu Me voltarei contra ele e o eliminarei do meio do seu povo”.
O quarto nível é o dos judeus, filósofos, hereges e muçulmanos, que inventam seus próprios
deuses e não reconhecem o Deus que se revelou em Sua Palavra por meio de Jesus Cristo, que
deseja ser conhecido e invocado dessa maneira. Eles violam o primeiro mandamento. Os
maniqueístas também violaram este mandamento, pois afirmavam a existência de dois deuses,
um bom e um mau, ambos eternos. O mesmo ocorre com os samosatenianos, que afirmavam que
Cristo possuía apenas natureza humana. Os muçulmanos também têm visões ímpias sobre o
assunto. Os arianos negaram que o Filho de Deus fosse da mesma substância do Pai. E houve
outros que afirmaram que o Espírito Santo era apenas um movimento criado nos seres humanos.
O quinto nível inclui aqueles que não invocam a Deus por meio do Mediador Cristo, mas
inventam outros mediadores, como santos, missas, satisfações ou outras obras. Também estão
incluídos aqueles que duvidam da graça de Deus.
O sexto nível são os desertores, aqueles que se afastam da verdadeira doutrina do Evangelho
por medo ou ódio, como Judas, Juliano, entre outros.
O sétimo nível são os desesperados, como Saul; todos aqueles que não conhecem o
Evangelho da fé em Cristo estão fadados a cair nesse desespero.
O oitavo nível é não buscar o aprendizado do Evangelho, não se motivar a ouvir e conhecer
a doutrina de Cristo, mesmo quando o Pai celestial ordena, como está escrito em Mateus 17. 5:
“Este é o Meu Filho amado, em quem Me comprazo; a Ele ouçam”.
O nono nível são os hipócritas, que, embora professem a verdade e não se contaminem com
ídolos externos, ainda assim em seus corações não têm temor de Deus, não têm fé e amam mais
seus prazeres ou riquezas do que a Deus, como Nabal. Essa grande multidão sempre existe na
Igreja, mesmo quando ela tem uma doutrina pura, como a parábola do semeador adverte (Mateus
13. 24 e seguintes).
O décimo nível representa o orgulho, que é quando alguém admira e confia em sua própria
força, sabedoria e virtudes, sem reconhecer suas próprias fraquezas e sem buscar ajuda divina.
Um exemplo disso é Alexandre, que acreditava que seu reino era magnífico devido às suas
estratégias e batalhas, desdenhando dos mais fracos e não reconhecendo que suas conquistas
foram possíveis graças à ajuda de Deus, que o protegia dos persas para puni-los.
Consequentemente, Alexandre se tornou mais perverso e é punido. Essa dinâmica também pode
ser observada em Nabucodonosor, que reconheceu seu orgulho e se arrependeu, mas
Senaqueribe, cheio da mesma confiança em si mesmo, não se arrependeu e acabou morto. A
história frequentemente mostra que os heróis são oprimidos por eventos trágicos, pois pecam ao
se admirarem e confiarem em seus próprios dons, sem reconhecer a fragilidade humana e buscar
a ajuda divina. Eles muitas vezes se envolvem em assuntos perigosos ou injustos, impulsionados
por seus sentimentos pessoais e confiança em sua própria força, como no caso de Pompeu. Além
disso, outros vícios como luxúria, desprezo e opressão dos outros se manifestam, como ocorreu
com Alexandre, que se entregou ao luxo sem preocupações, matou líderes respeitados e sofreu as
consequências. Os próprios poemas retratam essas situações, como o exemplo de Ajax, castigado
com loucura por ter desafiado a vontade de Deus ao responder a seu pai, Telamon, que lhe disse
para lutar com coragem, mas buscar a vitória com a ajuda divina. Ajax respondeu que até mesmo
os covardes podem vencer com a ajuda de Deus, mas ele pode vencer sem Ele. Esses exemplos
ilustram por que os heróis acabam sofrendo eventos terríveis e são descritos como “abominação
diante de Deus é tudo o que é elevado diante dos homens” (Lucas 16. 15). Embora esse mal seja
mais evidente em figuras heroicas, todos os seres humanos possuem um pouco dessa
contaminação. Portanto, devemos reconhecer esses problemas em nós mesmos e corrigi-los,
depositando verdadeira confiança em Deus, assim como Davi clama em Salmos 25. 16: “Olha
para mim e tem piedade de mim, pois estou desamparado e aflito”, e também em Salmos 27. 10:
“Pois meu pai e minha mãe me abandonaram, mas o Senhor me acolheu”.
Também devemos mencionar os hipócritas, que confiam em sua própria justiça diante de
Deus, assim como o fariseu mencionado em Lucas 18. Essas pessoas cometem vários pecados:
não reconhecem sua fraqueza, não aceitam que merecem punição divina, têm uma confiança
vazia e não invocam o Mediador Cristo. Em vez disso, apresentam suas obras como substitutas
do Mediador perante Deus. Esses hipócritas são classificados no quinto nível mencionado
anteriormente.
O décimo primeiro nível é a impaciência, que vai contra o primeiro mandamento, pois a
vontade se recusa a obedecer a Deus durante as aflições. Às vezes, até mesmo ficam irritados
com Deus, como se Ele fosse um Senhor severo ou um juiz injusto. A Escritura nos adverte
sobre esse sentimento frequentemente, como vemos em Salmos 4. 5 e Efésios 4. 26: “Indignem-
se, mas não pequem”. Isso significa que devemos resistir à dor e submeter nossas mentes para
obedecer a Deus voluntariamente durante as tribulações, como já mencionado anteriormente.
Agora, vamos agrupar os níveis de pecados que são diretamente contrários ao primeiro
mandamento e que podem ser facilmente reconhecidos e julgados. Como os Dez Mandamentos
resumem o ensinamento de todas as virtudes, também vamos distribuir essas mesmas virtudes
em cada mandamento. A primeira virtude relacionada a isso é chamada de piedade ou religião,
embora seja mais fácil compreendê-la como temor de Deus, fé ou confiança e amor a Deus. Na
verdade, a virtude da piedade engloba necessariamente essas partes. A paciência também se
encaixa aqui. Além disso, o termo piedade quase corresponde à justiça universal, se a
entendermos como a obediência a Deus em todos os Seus mandamentos, como explicaremos
mais adiante, com o objetivo de que todas as nossas obras sejam referidas a Deus. Portanto, a
virtude da justiça universal também deve ser incluída aqui.

O SEGUNDO MANDAMENTO
Após ter abordado no primeiro mandamento os sentimentos do coração em relação a Deus,
que constituem a adoração principal e interior, uma vez que Deus requer obediência sincera do
coração, como expresso no versículo (Deuteronômio 6. 5): “Amará ao Senhor seu Deus de todo
o seu coração”. E também (João 4. 23): “Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade”; em seguida, no segundo mandamento, é
destacada a dimensão externa da profissão de fé: pois Deus deseja ser conhecido, ser invocado
por meio de nossa voz; assim como Ele se revelou por meio da Palavra, Ele deseja que essa
Palavra seja proclamada em voz alta. Portanto, depois de ter tratado dos movimentos do coração,
Ele agora ordena a respeito daquela voz na qual o nome de Deus e a Palavra de Deus ressoam:
“Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão.”
No primeiro mandamento, são apresentadas frases afirmativas e negativas. “Eu sou o
Senhor, seu Deus, que lhe tirei da terra do Egito”. Esta é a afirmativa, à qual devem ser
adicionadas outras afirmativas: “Amará ao Senhor seu Deus de todo o seu coração”. E também:
“Temerá ao Senhor seu Deus”. Após estabelecer as afirmativas, também devem ser adicionadas
as negativas ou exclusivas: “Não terá outros deuses diante de mim”. Assim, nos mandamentos
seguintes, quando ouvimos frases negativas, devemos sempre ter em mente a afirmativa expressa
no primeiro mandamento. No caso específico do uso do nome divino, Deus proíbe seu uso
indevido, mas ainda deseja que Seu nome seja propagado e conhecido: “Eu sou o seu Deus”.
Existem usos apropriados do nome divino, como pregação verdadeira, invocação sincera, ação
de graças e confissão. Devemos entender que esses quatro tipos de obras são prescritos e, ao
discutir essas obras, podemos mencionar afirmações encontradas em outros trechos da Bíblia,
como “Vão, ensinem todas as nações” (Mateus 28. 19), “Invoque-Me no dia da angústia; Eu o
livrarei, e você Me glorificará, ou Me dará graças” (Salmos 50. 15) e “Porque com o coração se
crê para justiça, e com a boca se faz confissão para salvação” (Romanos 10. 10). Essas passagens
são relevantes para ambos os sexos (gêneros) e demonstram como essas obras são importantes. O
juramento está relacionado à invocação, pois quando alguém jura, está invocando a Deus como
testemunha de sua promessa de não enganar e pedindo a Deus que puna o enganador. Assim, a
pessoa se compromete com essa punição. Podemos entender o quanto o juramento é um vínculo,
pois quando invocamos a Deus em um juramento, estamos aceitando a possibilidade de Sua ira
recair sobre nós se falharmos. Não há obrigação mais séria que um indivíduo possa impor a si
mesmo ou uma punição mais severa a que ele possa se submeter. Portanto, os eventos
comprovam isso, pois essa obrigação é sancionada e confirmada pelo direito divino, como está
escrito: “Deus não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão”. Nesta vida, os
perjuros são frequentemente acompanhados de punições terríveis.

Como pode ser cumprido este mandamento.


Como já mencionamos antes, para cumprir o primeiro mandamento, é essencial ter
conhecimento do Filho de Deus e ter fé. Essa mesma consideração se aplica a todos os
mandamentos. É bem sabido que não podemos invocar o nome de Deus sem reconhecer Cristo
como o Mediador, assim como a ação de graças deve ser feita com essa compreensão. Além
disso, no ministério, é necessário ensinar o Evangelho do Filho de Deus. Antes de tudo, devemos
compreender a reconciliação que o Filho de Deus nos concedeu e, então, agradar a Deus
obedecendo aos mandamentos. O mesmo princípio se aplica aos outros mandamentos. Obras que
seguem os mandamentos subsequentes, ou seja, o temor e a fé, também agradam a Deus e se
tornam um culto a Ele. Portanto, os sacrifícios de louvor são oferecidos a Deus e lhe agradam,
especialmente as obras do segundo mandamento. Isso é afirmado explicitamente no Salmo 115.
17: “Oferecerei a Ti o sacrifício de louvor e invocarei o nome do Senhor”.

Pecados contra o segundo mandamento


A antítese é a mesma do mandamento anterior, pois os vícios do coração que mencionamos
anteriormente são expostos. Entram em conflito com este mandamento as crenças dos
Epicuristas, que defendem práticas externas ímpias, invocações ímpias a demônios, ídolos e
espíritos dos mortos, doutrinas falsas, perjúrios, maldições injustas e palavras que revelam
arrogância ou impaciência, como a crença de Ajax de que poderia vencer sem a ajuda de Deus.
Também é comum usar o nome de Deus e a religião do Evangelho para encobrir desejos injustos,
ambição, avareza, luxúria e ódio. Sob o pretexto do ministério, até mesmo o Papa buscou poder,
instigou guerras injustas, incentivou a busca por riquezas infinitas e promoveu a adoração de
ídolos e outras práticas questionáveis. Até hoje, nesta era, muitas vezes as ambições pessoais são
encobertas sob o título do Evangelho. Além disso, também estão incluídos aqui todos os
escândalos que abalam as mentes frágeis, enfraquecem a fé ou desviam a vontade de algumas
pessoas do Evangelho.
Ambos os mandamentos são acompanhados de ameaças terríveis, que, embora mencionem
punições corporais, também indicam a ira eterna. A Lei não oferece perdão pelos pecados, mas
no Evangelho fica claro que há uma ira eterna reservada para aqueles que não se arrependem
(Mateus 25. 41): “Apartem-se de Mim, malditos, para o fogo eterno, etc.”. As punições
mencionadas que se estendem até a terceira e quarta gerações estão relacionadas a punições
corporais. Assim como foram acrescentadas punições a esses mandamentos anteriores, devemos
entender que também são acrescentadas punições aos mandamentos seguintes, assim como
ocorre em Deuteronômio 27, onde maldições são adicionadas a todos os mandamentos. Não há
dúvida de que as calamidades que ocorrem no mundo são punições por uma variedade de
transgressões, como diz o Salmo (38. 12): “Por causa da iniquidade, castigas os filhos dos
homens”.

O TERCEIRO MANDAMENTO
Assim como o primeiro mandamento ensina as obras interiores da mente, vontade e coração
em relação a Deus, e o segundo mandamento ensina a profissão externa da fé, o terceiro
mandamento trata dos preceitos relacionados às cerimônias divinamente instituídas. No entanto,
é importante compreender o propósito principal dessas cerimônias. Elas foram instituídas para o
ministério de ensino e servem como auxílios para essa função. Portanto, o preceito do descanso
do Sabá se refere especialmente ao ministério de ensino e à administração das cerimônias
divinamente instituídas. O texto não trata apenas do descanso, mas especificamente da
santificação. Ele deseja que sejam realizadas obras sagradas nesse dia, ou seja, ações dedicadas
exclusivamente a Deus, como ensinar o povo e realizar as cerimônias instituídas. Para cumprir
esse propósito, um dia específico deve ser designado. Essa regra se aplica a todas as pessoas em
todos os tempos, pois é uma lei natural. No entanto, em relação à observância do sétimo dia em
particular, é evidente que, com a abolição das cerimônias levíticas, até mesmo essa cerimônia foi
alterada, como afirmado claramente em Colossenses 2. 16: “Portanto, ninguém os julgue por
causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados”. Podemos afirmar, então,
que no terceiro mandamento existem duas partes distintas: uma parte natural ou moral, que é o
gênero, e outra parte específica para o povo de Israel, que é a espécie do sétimo dia. Sobre a
primeira parte, é dito que é um mandamento perpétuo e não pode ser abolido, referindo-se
especificamente ao mandamento de manter o ministério público, para que o povo seja ensinado
em algum dia e as cerimônias divinamente instituídas sejam praticadas. No entanto, a cerimônia
específica relacionada ao sétimo dia foi abolida.
Portanto, aprendamos verdadeiramente aqui o preceito de preservar o ministério público e as
cerimônias que Deus instituiu. Deus deseja que isso seja mantido para a permanência e
propagação da Igreja, como está escrito em Efésios 4. 11: “E Ele mesmo deu uns para apóstolos,
outros para profetas, outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, tendo em vista o
aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para a edificação do corpo de Cristo”.
Para não sermos levados por doutrinas instáveis, Deus deu uma palavra segura por meio dos
profetas e apóstolos, transmitida publicamente com testemunhos fidedignos, e instituiu
ministérios públicos nos quais essa palavra é proclamada, para que tenhamos um ensino
confiável sobre Deus e não inventemos novas religiões como os pagãos, nem cultos novos, entre
outras coisas. Devemos amar, honrar e apoiar esse dom divino em seu devido lugar. Como Cristo
disse em Lucas 10. 16: “Quem os ouve, a Mim ouve; quem os rejeita, a Mim rejeita”. E os
profetas, lamentando a solidão no Sabá, reclamavam que o ministério de ensino havia sido
abolido.
Logo, as obras deste mandamento são cumprir com piedade esse ministério, ouvir
corretamente os ensinamentos, participar devotadamente dos Sacramentos e promover seu uso
por meio do nosso exemplo e frequência, obedecer devidamente aos instrutores, sustentar, honrar
e defender os mestres piedosos, e apoiar os estudos necessários para a Igreja. Não estou
buscando uma interpretação figurada deste mandamento, mas transmitindo seu significado
próprio e principal. Pois preservar o ministério divinamente instituído não é uma tarefa leve ou
insignificante.
Os pecados contra este mandamento incluem omitir ou abolir o dever de ensinar
corretamente, disseminar falsidades, corromper as cerimônias divinas, estar ausente do ministério
público ou raramente comparecer às reuniões onde a Igreja é ensinada corretamente. Além disso,
também está o ato de desviar outras pessoas do ministério público, seja através do exemplo ou de
outras formas, que não esteja contaminado pela impiedade, como os donatistas desviavam suas
congregações. Desobedecer ao ensino da verdadeira doutrina, realizar trabalhos servis que
impeçam a participação no ministério no dia designado para o ministério público, passar esses
dias envolvido em jogos, diversões ou outros vícios, desrespeitar e desonrar os ministros
piedosos, recusar-se a contribuir para seu sustento e defesa, não cobrir suas fraquezas, mesmo
que sejam saudáveis na doutrina, como Cam debochava de seu pai nu, e não apoiar os estudos da
Igreja.
Como já foi mencionado anteriormente, o primeiro mandamento deve ser incluído em todos
os outros, pois, sendo mandamentos de Deus, é necessário reconhecer o autor e obedecer a Ele.
Portanto, o temor a Deus e a fé são como a vida das outras obras e devem estar presentes em
todas as obras dos outros mandamentos. Para realizar as obras deste mandamento, é necessário
adquirir o conhecimento do Filho de Deus, para que possamos obedecer a este mandamento com
fé e invocação a Deus. Além disso, quando este mandamento trata do ministério e das
cerimônias, é necessário abraçar o Evangelho, pois o ministério da Lei é apenas o ministério da
morte, mas o Evangelho anuncia o perdão dos pecados e a vida eterna através do Filho de Deus.
As cerimônias divinamente instituídas também são tipológicas de Cristo. Portanto, nem os judeus
poderiam realizar corretamente as obras deste mandamento sem o verdadeiro conhecimento de
Cristo. Entre monges e supersticiosos, muitos pecados se misturam em suas cerimônias porque
desconhecem a doutrina da fé, da verdadeira invocação e dos verdadeiros cultos. Eles
erroneamente consideram como culto as obras de tradições humanas, corrompem a Ceia do
Senhor de várias maneiras e usam essas mesmas cerimônias viciosas para obter lucro. Esses
pecados também são contrários e contaminam o Sabá.
As virtudes mencionadas no primeiro mandamento também se aplicam aos dois
mandamentos seguintes.

A SEGUNDA TÁBUA
Embora este texto trate principalmente da vida política, é importante reconhecer a razão
humana e apresentar o melhor sistema de governo. Primeiramente, é estabelecido o poder e a
obediência é ordenada. Em seguida, são protegidos a paz (não matará) e os casamentos (não
cometerá adultério). Posteriormente, os tribunais são estabelecidos e é exigida a veracidade nos
contratos e acordos (não dirá falso testemunho). Esses são os fundamentos das leis políticas. No
entanto, devemos entender que a vida política não é apenas ensinada; existem dois elementos
adicionais. Primeiro, devemos lembrar que Deus é o autor tanto dessas leis quanto da vida
política. Portanto, a obediência é prestada em virtude de Deus, e devemos incluir o primeiro
mandamento em tudo, para que o temor de Deus e a fé também governem a obediência aos
outros mandamentos. Em segundo lugar, devemos compreender que não apenas ações externas
são exigidas, mas também a obediência interna. Assim, a natureza humana deve ser ordenada de
modo que não tenha inclinações, afetos ou ações contrárias à ordem estabelecida na qual ela foi
criada, como é declarado e ordenado na Lei.
No entanto, é evidente a teimosia e a confusão da ordem na natureza humana, especialmente
na vida política. Onde está a teimosia no governo? Quantos assassinatos injustos, guerras
injustas! Quanta ódio e inveja! Além disso, há desejos desenfreados, paixões e fúrias
incontroláveis dos amantes. Também há inúmeros roubos por meio de fraudes comerciais, usura
e outros meios. Além disso, quem não sofre com a ganância? Quem fica satisfeito com o que tem
e age de maneira justa e piedosa com suas posses? Por fim, todos lamentam a sofisticação e as
mentiras nos contratos, acordos e julgamentos. Nessas situações, percebemos claramente a
confusão da ordem estabelecida por Deus. Portanto, devemos aprender com a Lei de Deus que
não se trata apenas de ações externas, mas também de condenar toda a teimosia da natureza
humana, ou seja, a confusão interna e externa da ordem; assim, nos mandamentos finais são
adicionadas instruções sobre a concupiscência, que tratam claramente da teimosia interna.
Analisemos agora os demais mandamentos, que são de natureza política. Primeiramente,
devemos compreender que Deus nos ordena viver nessa sociedade política na qual Ele deseja ser
conhecido. Ele quer que exerçamos nossa fé e invoquemos Seu nome em meio a perigos e
dificuldades comuns. Ele deseja que pratiquemos o amor ao próximo e que cada um esteja
sujeito a uma servidão comum por causa d’Ele. Ele deseja que, por meio da nossa confissão
pública, brilhemos como luz para que outros sejam ensinados e convidados a conhecer e temer a
Deus, como está escrito em Mateus 5. 16: “Assim brilhe também a sua luz diante dos homens”.
Deus não quer que nos escondamos em solidão ou em algum retiro espiritual, ocupados apenas
com rituais secretos. Pelo contrário, Ele quer que enfrentemos os desafios e as tempestades do
governo, proclamando ali a doutrina divina que nos foi transmitida. Ele deseja exercitar nossa fé
nessas adversidades, ensinar os outros e tornar visíveis as evidências da doutrina que Deus revela
por meio de nós. Ele quer que estejamos sujeitos a uma servidão comum em obediência a Ele.
Assim, a Lei nos iguala a todos, estabelecendo deveres nos quais cada um serve aos outros ao
cumprir suas próprias obrigações. Dessa forma, nos tornamos membros de um corpo unido pelo
amor mútuo e pelos deveres mútuos, e obedecemos a Deus. Portanto, devemos aprender a
suportar os fardos comuns da vida e a servidão comum, contribuindo com nosso trabalho e
lembrando que fomos criados por Deus para viver nessa sociedade política. Pois a primeira Lei
não diz: “Busque a solidão, seus prazeres, crie momentos de lazer para si mesmo”. Em vez disso,
ela diz: “Honra seu pai e sua mãe, estabelece o poder e a obediência”. Devemos aprender que as
obras da segunda tábua de mandamentos são verdadeiro culto a Deus, como mencionei
anteriormente, ou seja, quando são realizadas com o temor de Deus e a fé. É por isso que muitas
vezes, nos profetas, quando ocorre a comparação entre cultos, os deveres políticos são colocados
antes dos rituais. Isaías 1. 17 diz: “Façam justiça ao órfão, defendam a causa da viúva”. E em
Isaías 58. 7: “Reparta o seu pão com o faminto”. Oseias 6. 5 e Zacarias 7. 9 também dizem:
“Pratiquem a justiça verdadeira”. E, acima de tudo, Cristo exalta esses deveres quando afirma
que o mandamento do amor ao próximo é semelhante ao primeiro, ou seja, exige obediência a
Deus em ambos os aspectos simultaneamente, e que os deveres de ambos os aspectos são culto a
Deus.

O QUARTO MANDAMENTO
O quarto mandamento se baseia na autoridade primordial, ou seja, dos pais, que devem ser
uma referência para outros governantes, como é mencionado em outros lugares, como Romanos
13. Ele exige o mais alto grau de obediência, ou seja, honra, que abrange três aspectos principais.
Primeiro, reconhecemos Deus como o autor da sociedade humana, tanto no âmbito familiar
quanto no político. Nessas ordens, podemos observar a sabedoria de Deus, Sua bondade para
conosco, Sua justiça, Sua ira contra os ímpios e Sua proteção aos inocentes. Portanto, é uma
forma de honra reconhecer que essa sociedade é uma obra divina, um testemunho da
providência, um benefício para a humanidade, um bem e uma virtude, e amar essa ordem por
causa de Deus e por seu valor, buscando, por meio de orações piedosas, que Deus a preserve. Em
segundo lugar, a honra inclui a obediência externa, cuidando das instituições políticas através do
cumprimento de nossos deveres comuns e evitando a desordem. Em terceiro lugar, a honra
implica em agir com justiça, perdoando certos erros dos governantes devido à nossa própria
fragilidade humana e, com moderação, diligência e justiça, corrigindo e reparando esses erros,
sempre em conformidade com os mandamentos de Deus.
No entanto, é importante fazer uma distinção entre as coisas e as pessoas. Esse triplo grau de
honra que mencionei é sempre devido às autoridades, ou seja, à própria instituição do casamento
e à ordem política, que estão fundamentadas nas leis honestas que Deus imprimiu na mente
humana, assim como em outras leis justas. Os pais, profetas, Cristo e os apóstolos reconheceram
que o casamento e a ordem política são obras e benefícios de Deus, observando os ciclos
sucessivos e eventos notáveis na política, a partir dos quais eles inferiam que Deus cuida da
humanidade. No entanto, eles também faziam uma distinção entre essas instituições e as obras do
Diabo. Quanto maiores forem as obras de Deus, mais o Diabo tentará deformá-las, abalá-las e
derrubá-las. Portanto, Paulo amava a ordem política, ou seja, as leis do Império Romano, e as
obedecia. No entanto, ele não amava os governantes como Calígula e Nero; pelo contrário, ele os
considerava instrumentos do Diabo, amaldiçoados por Deus. Ele via os crimes deles
contaminando toda a natureza das coisas. Essa distinção entre as instituições e as pessoas é
essencial para discernir as obras de Deus das obras do Diabo. Aqueles que são capazes de fazer
essa distinção amarão e reverenciarão ainda mais as instituições políticas e as leis. Ao
testemunhar a confusão presente nos governos, que é resultado das ações do Diabo e suas
organizações, eles sentirão uma tristeza ainda maior diante do poder do Diabo, que, nos mais
altos cargos de governo, manifesta ódio a Deus, desprezo pela humanidade e crueldade. Pois o
que pode ser mais monstruoso, vergonhoso e abominável do que os tiranos ao longo da história?
Quantos príncipes medíocres existem? Esses males devem ser reconhecidos e lamentados, e
devemos buscar a correção e a preservação das instituições por parte de Deus. Não devemos
desculpar ou defender vícios sob o pretexto de serem obras divinas, nem tolerar abusos
flagrantes e atrozes, impiedades e lascívias por parte dos tiranos, que ocorrem sem fim. No
entanto, devemos reconhecer que a política em si, à qual Deus confiou a espada, age
corretamente quando remove do governo governantes como Calígula, Nero e outras aberrações
semelhantes. Assim como Trajano, de forma honrosa, disse ao mestre dos cavaleiros,
entregando-lhe a espada: “Use esta espada em meu nome se eu ordenar algo justo; mas, se eu
ordenar algo injusto, use-a contra mim”. No entanto, se os governantes forem fiéis, ou seja, se se
esforçarem moderadamente para cumprir seu dever, agirem principalmente de forma justa e
corrigirem seus erros quando os cometerem, devemos tolerá-los e encobrir ou corrigir seus erros.
Exemplos disso foram Davi, Salomão e Josafá, que foram excelentes príncipes, mas também
tiveram suas quedas, descritas para nos alertar que governar é uma tarefa extremamente difícil e
perigosa. O Diabo, sendo homicida, conspira para destruir as instituições políticas e derrubar os
governantes, ou tem seus instrumentos infiltrados no povo. Assim como ele destruiu
completamente Saul, que no entanto realizou grandes e úteis feitos no início, ele lançou laços
para Davi, dos quais ele mal conseguiu escapar. Em seguida, ele incitou o filho de Davi,
Absalão, cujo crime causou grande ruína. Portanto, o Diabo perturba as instituições políticas, e a
natureza humana, já fraca por si só, tanto nos governantes quanto no povo, tem uma inclinação
natural para a licenciosidade e uma aversão às restrições das leis e disciplinas. Manter um estado
mediano no meio dessas artimanhas do Diabo e da múltipla fraqueza humana é uma grande e
singular obra de Deus, como Salomão claramente diz em Provérbios 20. 12: “O ouvido que ouve
e o olho que vê, o Senhor os fez a ambos”, ou seja, Deus capacita o governante a receber
conselhos sábios e a obter a obediência dos súditos. Essas obras são realizadas por Deus por
meio de governantes fiéis, alguns dos quais se destacam mais que outros. Nenhuma sabedoria
humana, vigilância ou virtude é suficiente para enfrentar tais desafios. Portanto, Paulo diz em 2
Coríntios 3. 5: “A nossa suficiência vem de Deus”. Ele também diz: “Não somos capazes, por
nós mesmos, de pensar alguma coisa”. No entanto, é exigida fidelidade das próprias pessoas, ou
seja, esforçar-se para fazer o que é certo, como é requerido em 1 Coríntios 4. 2: “Além disso, os
despenseiros devem ser encontrados fiéis”. Portanto, quando vemos um estado mediano nas
instituições políticas, reconheçamos que isso é um benefício concedido por Deus, por meio de
alguns ministros fiéis, e obedeçamos a Deus, o autor dessas instituições políticas.
Em seguida, devemos atribuir honra aos próprios governantes por sua fidelidade e pelo
imenso trabalho que acompanha toda a governança, ou seja, reconhecê-los como sendo
divinamente ajudados, como instrumentos pelos quais Deus nos fornece benefícios. Devemos
amá-los, nos submeter a eles e reconhecer que devemos agradecer-lhes pela sua diligência e
perdoar alguns de seus lapsos, desde que não violem os mandamentos de Deus. Essa equidade é
uma grande virtude e difícil de praticar. Eu brevemente mencionei o que o termo “honra”
abrange, o qual deve ser cuidadosamente considerado, e falei sobre a distinção entre as coisas e
as pessoas.
Este preceito refere-se às responsabilidades mútuas entre superiores e inferiores. Os deveres
dos superiores são expressos nos termos de pai e mãe, bem como no Decálogo em sua totalidade,
que serve como uma forma universal de governo, abrangendo todas as virtudes e deveres de um
bom pai e governante. Como foi corretamente dito por Xenofonte (Ciro, o Grande, Livro VIII,
início): “Um bom príncipe não difere de um bom pai”. Portanto, a principal preocupação do
governante deve ser com a primeira tábua, garantindo que as igrejas sejam ensinadas
corretamente. O pai deve assegurar que seus filhos sejam instruídos sobre Deus e, em seguida,
ser justo e corajoso na defesa, casto, benevolente em ajudar a promover o bem, ter zelo e uma
aversão intensa à imoralidade, ser verdadeiro em palavras e ações, ser sincero, não desconfiado,
etc. Além disso, deve ser diligente em administrar adequadamente os recursos para não faltar
despesas necessárias. Em resumo, como mencionei anteriormente, o Decálogo representa a
forma de governar, e se o governante tiver um afeto paternal, ele terá zelo por essas virtudes.
Da mesma forma, é responsabilidade do inferior honrar o superior, reconhecendo que as
instituições políticas são estabelecidas por Deus. Isso implica em obedecer por causa de Deus e
estar disposto a perdoar alguns erros. Nessa atitude, são demonstradas as virtudes da justiça
universal, que envolvem a obediência legítima às autoridades, o cuidado com a própria vocação e
a equidade ao lidar com os erros dos superiores, buscando dissimulá-los ou corrigi-los de
maneira a preservar a paz pública. No entanto, é mais evidente quando essas virtudes são
violadas por vícios ou pecados, como a insubordinação contra os superiores, conhecida como
desobediência, que é uma injustiça universal. Além disso, a sedição, a negligência em cumprir a
própria vocação e a intromissão excessiva na vocação alheia também são comportamentos que
devem ser evitados, tanto por superiores como por inferiores, pois podem causar conflitos e
perturbar a ordem pública. Portanto, é importante lembrar as palavras de Pedro, que nos adverte
contra sermos “buscadores de problemas”[72], ou seja, não devemos nos intrometer na governança
alheia.
Além disso, como mencionei anteriormente, assim como é necessário fazer distinção entre
coisas e pessoas nos governos, também devemos observar a distinção entre as próprias questões
em si. Nas monarquias e outros tipos de governos, a principal preocupação está na defesa da
sociedade civil e na promoção da honestidade, mesmo que a religião possa não ser conhecida.
No entanto, no reino do Anticristo, as leis perpétuas e fundamentais desse reino são direcionadas
a um novo culto ultrajante a Cristo, que é condenado por Deus, e o objetivo principal desse reino
é extinguir o nome de Cristo. Sob o pretexto de glorificar a Deus, esse reino é estabelecido, mas,
na realidade, sua intenção é erradicar o nome e a doutrina de Cristo. Isso pode ser observado no
caso do reino de Maomé: A própria lei de Maomé é uma clara afronta a Cristo; além disso, há o
mandamento do roubo, pois ele ordena matar aqueles que acreditam que Cristo é o Filho de
Deus, e também ordena a propagação de seus erros pela espada. Esses eventos foram
profetizados no capítulo 7 de Daniel (versículos 8 em diante) referente ao pequeno chifre: Ele
falará contra o Altíssimo e oprimirá os santos do Altíssimo. Em terceiro lugar, é permitido por lei
uma multiplicidade de práticas lascivas, e na verdade não existem casamentos legítimos entre os
maometanos, pois eles permitem que as mulheres sejam levadas, repudiadas e recebidas
novamente por decisões privadas, sem qualquer motivo justificável. Eles também permitem
práticas lascivas por lei, que são semelhantes àquelas que levaram à destruição de Sodoma e de
muitas outras cidades. Portanto, nesse reino, não há observância da lei de Deus, mas sim uma
fúria diabólica que Deus permite que se espalhe nos últimos tempos como forma de punir o
mundo. Assim como os pecados têm aumentado desde o início, também tem crescido a
escravidão, a aspereza dos governos e a confusão. Portanto, devemos observar a diferença entre
as outras monarquias e o reino de Maomé. Enquanto Daniel poderia servir como magistrado no
reino babilônico, os judeus poderiam servir no exército de Alexandre e os cristãos poderiam
servir sob os príncipes romanos, como foi o caso da grande vitória dos cristãos sob Marco
Aurélio nas Panônias, pois o objetivo da milícia era o estabelecimento de um governo político
justo. No entanto, não é permitido lutar com os turcos, cujo objetivo não é um governo político,
mas sim a consolidação e propagação da lei que eles professam. Enquanto é permitido aos
cristãos suportar a escravidão, não é permitido lutar com os turcos, pois está claramente escrito
(Daniel 7. 25): “O Santo dos Santos será oprimido”.

O QUINTO MANDAMENTO
“Não matarás”.
É proibido não apenas causar danos físicos externos e buscar vingança externa privada, mas
também nutrir sentimentos de malevolência, ódio, inveja e o desejo privado de vingança em
nossos corações. Cristo expõe claramente esse preceito em Mateus 5, nos versículos 21 e
seguintes. Por outro lado, somos chamados a praticar a benevolência, a misericórdia, o zelo, a
sinceridade em oposição à malevolência, a mansidão, a paciência e a equidade em relação a
todos os seres humanos. Devemos renunciar a parte de nossos direitos supremos por causas
justas, a fim de conduzir aqueles que podem ser recuperados para o caminho certo. Além disso,
devemos evitar que as discórdias privadas se transformem em conflitos públicos, pois sabemos
que há uma rigorosa prescrição em relação aos agravos pessoais, conforme expresso em Lucas 6.
37: “Perdoem, e serão perdoados”. Também é importante lembrar que a vingança não é uma
questão de impulsos individuais, mas Deus nos instrui a deixá-la em Suas mãos e estabeleceu
limites para ela. Ele declara em Romanos 12. 19: “A Mim pertence a vingança”. Devemos,
portanto, compreender e obedecer ao mandamento divino em relação à vingança, reconhecendo
quão prejudicial pode ser a cobiça privada de vingança.
Além disso, devemos acrescentar que os magistrados políticos têm uma autoridade divina
para exercer uma vingança legítima. É responsabilidade deles executar a declaração divina: “A
Mim pertence a vingança, Eu retribuirei, Eu punirei”, seja pela própria mão do magistrado, por
sua permissão ou através do exercício legítimo de seu cargo. Isso ocorre porque Deus estabelece,
mantém e altera impérios e governos, conforme declarado no livro de Daniel, capítulo 2,
versículo 21: “Ele muda os tempos e as estações; destrona reis e os estabelece”. Portanto, a
vingança divina é uma forma justa de punição, na qual os magistrados castigam ladrões,
adúlteros, perjuros e todos aqueles condenados por crimes.
O ofício do magistrado está intrinsecamente ligado às guerras legítimas, como quando
Constantino usou a força militar para reprimir a crueldade de Licínio. No entanto, assim como a
guerra é a manifestação máxima do poder político, também pode ser um abuso extremo. Guerras
justas e legítimas são raras. O Diabo, sendo assassino e inimigo da ordem política e disciplina,
muitas vezes incita grandes guerras com base em pretextos insignificantes, inflamando ambos os
lados com cobiça injusta. Deus permite essas consequências para punir os crimes cometidos por
ambas as partes. Um exemplo disso é a Guerra do Peloponeso, que trouxe desastre para toda a
Grécia e teve como origem causas triviais, como a destruição de uma floresta sagrada de acordo
com rituais pagãos e a ofensa pessoal de Péricles aos insultos dirigidos a Aspásia.
No entanto, o direito supremo, especialmente em uma questão leve, não é uma justificativa
suficiente para iniciar uma guerra. Como se diz: “Muitas vezes, o direito supremo é a maior
injustiça”[73]. É necessário acrescentar a equidade, de modo que, mesmo diante de uma ofensa,
busque-se a cura em vez de se enfurecer contra os inocentes devido aos erros de alguns. É
preciso evitar causar danos irreparáveis às igrejas e ao estado. Os governantes devem ter em
mente que as guerras devem ser uma expressão da vingança divina, não devendo ser motivadas
pela ganância humana ou pela ira temerária. Como Abigail disse a Davi em 1 Samuel 25. 28:
“Pois você combate as batalhas do Senhor, e não se encontrou mal em você”.

O SEXTO MANDAMENTO
“Não cometerás adultério”.
Existe uma grande confusão na ordem pública estabelecida divinamente neste preceito, que
todos compreendem estar proibido. No entanto, Cristo oferece uma explicação adicional em
Mateus 5 (versículo 27), mostrando que não apenas as transgressões externas são proibidas, mas
também inclinações perversas e pensamentos desviados contrários a esse preceito. Como
mencionado anteriormente, as proibições abrangem certas afirmações. Portanto, também é
estabelecido e reafirmado o casamento legítimo, pois ele é protegido por essa lei que aprova a
união conjugal e condena qualquer relação sexual fora do casamento legítimo, ameaçando
punições nesta vida e tormentos eternos após a morte. Conforme escrito na Epístola aos Hebreus
(13. 4): “Deus julgará os impuros e os adúlteros”. Também em Efésios 5 (versículo 5): “Porque
bem sabem isto: que nenhum devasso, ou impuro, ou avarento, o qual é idólatra, tem herança no
reino de Cristo e de Deus”. Por causa dessas transgressões, a ira de Deus cai sobre os
desobedientes.
Afirmei que o casamento é protegido por essas leis porque, mesmo quando o mundo não
pune adultérios e outras paixões desenfreadas, Deus os pune e não permite que Suas ameaças
sejam vãs. Como os exemplos ao longo da história mostram, mesmo que nem todos estejam
registrados, Deus quis que alguns fossem registrados para nos lembrar da regra de que Ele
realmente se ira com todos os impuros e pune severamente aqueles que se arrependem, como foi
o caso de Davi, ou destrói completamente aqueles que não se arrependem, como ocorreu com
Sodoma. Não apenas aquelas cinco cidades foram destruídas por essa causa, mas muitas outras
foram arruinadas devido a todo tipo de paixões, como as cidades gregas de Tebas, Atenas e
Esparta. Não apenas Troia foi punida por adultério, mas muitos reis encontraram um fim trágico
devido às paixões, como Egisto, Clitemnestra, a maioria dos reis macedônios, Arquelau, Filipe,
Alexandre, Demétrio, Ptolomeu e muitos Césares. Muitos reinos também foram envolvidos em
grandes guerras devido a essa causa, como ocorreu quando quase toda a tribo de Benjamim foi
destruída por causa do estupro de uma mulher levita. Devemos considerar esses exemplos,
compará-los com as ameaças divinas, incentivar nossa obediência a esse preceito e resistir às
chamas ilícitas.
Virtudes são exigidas aqui: castidade, modéstia, temperança e sobriedade. Pois ninguém
pode preservar a castidade sem temperança.

O SÉTIMO MANDAMENTO
“Não furtarás”.
E aqui, é importante enfatizar em primeiro lugar a afirmação positiva: a distinção entre
propriedades é estabelecida, o que este mesmo mandamento testemunha ser uma ordenança de
Deus. Ao proibir o roubo, ele deseja que cada pessoa mantenha o que é seu. Com esse
testemunho, os delírios dos fanáticos que afirmam, em um grave e prejudicial erro, que a
propriedade é abolida no Evangelho, são refutados.
Além disso, devemos observar a proibição de cobiçar o que pertence aos outros. Como os
contratos são estabelecidos por Deus, a fim de que os homens, por meio de obrigações
recíprocas, demonstrem sua obediência a Ele, eles devem ser exercidos com piedade e santidade.
Pois Deus pune a injustiça nos contratos não apenas com as penalidades dos magistrados, mas
também com outras calamidades, como é mencionado por Isaías (33. 1): “Ai de você, que
saqueia, pois você mesmo será saqueado” e Deuteronômio 25 (versículo 15): “Terá pesos justos
e perfeitos, terá medidas justas e perfeitas”. A experiência confirma a regra comum: o que é
adquirido de forma injusta se desfaz de forma injusta.
Este mandamento abrange várias virtudes que combatem a avareza, a preguiça, a
prodigalidade e promovem a justiça nos contratos, a generosidade, a diligência e a frugalidade.
Pois todos os preguiçosos e esbanjadores são ladrões, pois se não roubam dos outros, não
conseguem suportar sua própria ociosidade e seus gastos excessivos.

O OITAVO MANDAMENTO
“Não dirás falso testemunho”.
Esta lei protege os julgamentos e os pactos, e contém a mais nobre virtude de todas, a
Verdade. Sua utilidade se estende amplamente nas doutrinas, nos julgamentos, nos pactos e nas
relações sociais. Pois todas as corrupções das doutrinas violam esse preceito, quando são
realizadas por meio de fraude ou arrogância mental. Isso inclui todas as calúnias no tribunal,
todas as manobras enganosas nos negócios, todos os sofismas e todos os atos de hipocrisia, em
que as pessoas armam armadilhas umas para as outras e não mostram sinceramente seus
sentimentos e sua verdadeira natureza.
Devemos refletir cuidadosamente sobre como essa ampla aplicação se manifesta na vida
diária, para que possamos aprender a verdadeiramente e firmemente repudiar a sofística e todas
as formas de falsidade. A virtude da Verdade é crucial para preservar a integridade dos
julgamentos, a justiça nos contratos, a clareza nas relações humanas e a busca pela sabedoria e
conhecimento autênticos. Devemos valorizar e cultivar essa virtude, evitando qualquer forma de
engano, falsidade e manipulação, e buscando sempre a sinceridade e a transparência em nossas
palavras, ações e relacionamentos.

O NONO E DÉCIMO MANDAMENTO


Os nono e décimo mandamentos trazem uma declaração importante: pela lei de Deus, somos
instruídos não apenas sobre as obras externas, mas também sobre o vício que habita nesta
natureza humana corrupta, chamado concupiscência. Aqui, não apenas são condenados os afetos
viciosos acompanhados pelo consentimento, mas também a própria inclinação depravada, que
consiste em uma aversão constante a Deus e uma teimosia em se opor à lei divina. Essa
inclinação corrompida gera uma infinidade de desejos desordenados, mesmo que o
consentimento nem sempre esteja presente.
Paulo descreve esse mal perpétuo como a inimizade da carne contra Deus, afirmando que ela
não se submete à lei divina e é incapaz de fazê-lo. Não devemos considerar essa inimizade contra
Deus como um mal insignificante, pois ela engloba diversas pestes, tais como dúvidas sobre
Deus, aversão a Ele e murmurações quando somos punidos. Além disso, há inúmeros
movimentos desviados contra a lei divina, como a confiança em nossa própria sabedoria ou
força, o desprezo pelos outros, a inveja, a ambição, a avareza, as chamas da luxúria e a sede de
vingança. Paulo resume todas essas coisas com a palavra ‘inimizade’, que também implica
culpabilidade.
Esses vícios se opõem a Deus, e Deus, por sua vez, se ira contra eles, embora, por meio de
Seu Filho, Ele perdoe aqueles que creem. Paulo também chama essa inimizade contra Deus de
concupiscência em outros lugares, destacando assim a inclinação depravada e a corrupção de
todos os desejos. Isso deixa claro que nenhum ser humano nascido nessa corrupção é capaz de
satisfazer plenamente a lei de Deus, pois a concupiscência viciosa permanece nesta natureza
mortal. Paulo testifica isso como pecado em Romanos 7. Ele também enfatiza que essa inimizade
não pode ser submetida à lei divina, e é por isso que é condenada nos Dez Mandamentos. É
necessário ser lembrado disso para que se possa contemplar a magnitude da graça e compreender
a doutrina da justiça pela fé.
Além disso, também é importante observar que, embora não seja mencionada em cada um
dos mandamentos, deve-se saber que tanto as promessas quanto as ameaças se aplicam a cada
mandamento individualmente e são frequentemente repetidas em outros lugares. A soma das
promessas está nas palavras: “Aquele que fizer estas coisas viverá por elas”. A soma das
ameaças é (Deuteronômio 27. 26): “Maldito aquele que não permanecer em todas as coisas que
estão escritas na Lei”. No entanto, é preciso entender que todas as promessas da Lei são
condicionais, ou seja, elas requerem a condição de que nada seja feito contra a Lei. Mas, como a
Lei sempre nos acusa, essas promessas seriam nulas se não aprendêssemos do Evangelho como
somos considerados justos e como a obediência inicial de acordo com a Lei é agradável.
Portanto, para os justos pela fé em Cristo, as promessas da Lei são válidas, porque Deus aceita a
obediência. Portanto, Ele concede recompensas tanto corporais quanto espirituais, conforme está
escrito (Lucas 6. 38): “Dai e lhes será dado”. E também (Salmo 33. 19): “Ele livra as suas almas
da morte e os alimenta na fome”. No entanto, posteriormente, será explicado de forma mais
detalhada a diferença entre a Lei e o Evangelho, bem como entre as promessas da Lei e a
promessa do Evangelho em si.
Lembre-se também disso: o ordenamento político é verdadeiramente uma obra de Deus,
assim como a ordem dos movimentos celestes; por isso, Deus regularmente cumpre suas
promessas e ameaças na justiça política. Crimes externos e atrozes são acompanhados de
punições evidentes, mesmo quando as autoridades cessam de agir. Assassinos, mesmo que
escapem das mãos das autoridades, são de forma surpreendente levados ao castigo. Perjuros,
adúlteros e os impuros que se entregam a relações incestuosas, mesmo que não sejam punidos
pelas autoridades, testemunham serem oprimidos por diversas aflições nas histórias e na vida
cotidiana. Mas a Lei é testemunha de que essas coisas acontecem divinamente, conforme está
escrito (Êxodo 20. 7): “Não tomará o nome do Senhor seu Deus em vão”. E também (Hebreus
13. 4): “Deus julgará os fornicadores e os adúlteros”. Por outro lado, Deus auxilia os governantes
justos, como a organização dos reinos e os resultados das guerras regularmente demonstram. Por
isso, a promessa corporal foi adicionada ao quarto mandamento, que estabelece as políticas:
“Para que você vá bem e viva muito tempo sobre a terra”.

SOBRE A LEI NATURAL


Assim como a luz é divinamente colocada nos olhos, também há certos conhecimentos
inatos nas mentes humanas, pelos quais reconhecem e julgam muitas coisas. Os filósofos
chamam essa luz de conhecimento dos princípios, chamam de “noções comuns” e
“preconcepções”[74]. Existem princípios especulativos, como o conhecimento dos números, da
ordem, do raciocínio lógico, princípios geométricos e físicos. Todos reconhecem que esses são
os mais certos e são muito úteis na vida. Afinal, como seria a vida sem números ou sem ordem?
Também existem princípios práticos, como a distinção natural entre o que é honrado e o que é
vergonhoso, e a obrigação de obedecer a Deus. Embora esses princípios práticos devessem ser
tão óbvios e firmes para nós quanto o conhecimento dos números, devido ao pecado original, há
certa obscuridade e nosso coração tem tendências contrárias à distinção entre o que é honrado e o
que é vergonhoso. Portanto, os seres humanos não aderem tão firmemente a esses
conhecimentos, como fazemos ao saber que “Devemos obedecer a Deus” ou que “A traição deve
ser evitada”, da mesma forma que reconhecemos que “Dois vezes quatro são oito”. O
conhecimento das leis permanece, mas nosso comprometimento com eles é fraco devido à
obstinação do coração. Esse conhecimento é uma evidência de que somos criados por Deus e
devemos a Ele obediência, e ele nos acusa quando desobedecemos. A dúvida e a obstinação são
sinais claros de que a natureza humana não está intacta. Isso é confirmado pela morte, pelas
inúmeras calamidades humanas e pelos muitos vícios monstruosos. Paulo explicou isso em
Romanos 1.18, dizendo que as pessoas “suprimem a verdade pela injustiça”. Isso significa que,
embora tenhamos um conhecimento verdadeiro impresso em nós de que Deus existe, uma mente
eterna que criou e sustenta todas as coisas, sábia, boa, justa, etc., e que devemos obedecer a esse
Deus, de acordo com a distinção entre o que é honrado e o que é vergonhoso, esses verdadeiros
conhecimentos são suprimidos pela injustiça. Eles são mantidos cativos, não governam, pois a
injustiça governa, lutando contra esses conhecimentos. Isso inclui a aversão da vontade a Deus, o
desprezo por Ele, a confiança em nossas próprias forças e vários impulsos que vão contra a luz
divinamente implantada em nossas mentes:
“Portanto, o assentimento é mais fraco,
O cocheiro é levado pelos cavalos, nem ouve as rédeas do carro.”[75]
Por essa razão, os filósofos, ao perceberem a fragilidade do consentimento humano e em
como as pessoas são levadas por uma grande impetuosidade em direção a diversos prazeres,
questionaram se o justo e o injusto podem ser discernidos pela natureza ou pela opinião. Diante
disso, surgiu a dúvida se o que é justo e injusto é discernido pela natureza ou pela opinião
pessoal. Essa questão é tão inapropriada quanto questionar se a água é molhada ou se quatro
vezes dois são oito. A luz divina presente em nossas mentes não deve ser apagada, mas sim
despertada e fortalecida para que possamos reconhecer e abraçar os princípios práticos. Esses
princípios são tão certos e firmes quanto os princípios especulativos, e são decretos imutáveis de
Deus. Paulo menciona em Romanos 1. 19 que o conhecimento de Deus é revelado em nós, e em
Romanos 2. 15 fala sobre a obra da lei escrita em nossos corações. Esses conhecimentos são
considerados como um direito divino em Romanos 1. 21, que indica que, mesmo conhecendo a
Deus, as pessoas não O glorificaram como deveriam. Portanto, a verdadeira definição da lei
natural é o conhecimento inerente à natureza humana, que reflete a lei divina. O homem é dito ter
sido criado à imagem de Deus, pois nele brilhava o conhecimento de Deus e uma semelhança
com a mente divina, que se manifesta na distinção entre o que é honesto e o que é vergonhoso.
Antes da Queda, as faculdades do homem estavam em harmonia: sua vontade estava voltada para
Deus, as noções verdadeiras eram claras em sua mente e seu coração estava cheio de amor por
Deus. Os corações assentiam a esses conhecimentos verdadeiros sem dúvidas, estabelecendo que
fomos criados para reconhecer e adorar a Deus, e para obedecer ao Senhor que nos criou, que
nos sustenta e que nos imprimiu Sua imagem. Esse Senhor exige e aprova o que é justo,
condenando e punindo o que é injusto. No entanto, devido à corrupção e deformação dessa
natureza, as noções não brilham tão claramente, mas ainda permanecem. No entanto, o coração
se rebela e surgem dúvidas devido a certas questões que parecem entrar em conflito com essas
noções. A demora nas punições e a aparente injustiça de que os maus se deem bem e os bons
sofram levantam questionamentos sobre a providência divina, ou seja, sobre a própria lei
primordial. Além disso, é natural que todos tenham dúvidas se suas orações estão sendo ouvidas.
Apesar de não ter sido totalmente apagado, o conhecimento natural sobre Deus continua
presente. A primeira lei da natureza é o reconhecimento inato de que existe um único Deus, uma
mente eterna, sábia, justa, boa e criadora de todas as coisas, que recompensa os justos e pune os
injustos. A partir dessa lei, surge em nós a capacidade de distinguir entre o que é honesto e o que
é vergonhoso, e compreendemos que devemos obedecer a Deus de acordo com essa distinção.
Reconhecemos também a importância de invocar a Deus e esperar d’Ele o bem. Paulo cita e
explica essa lei da natureza em sua epístola aos Romanos, e ela está plenamente alinhada com o
primeiro mandamento. Xenofonte, Cícero e outros filósofos verdadeiros frequentemente
discutem e defendem esse conhecimento natural em oposição aos ateus.
O segundo mandamento abrange as leis e declarações sobre juramentos e as penas pelo
perjúrio. Também inclui as penas para aqueles que blasfemam contra Deus, pois a razão nos leva
a crer que as punições seguem essas transgressões, e a experiência de todos os tempos nos
mostra alguns exemplos disso. Há inúmeras declarações sobre as penas pelo perjúrio, como a
encontrada em Tibulo, Elegia IX, Livro 1:
“Ah, infeliz! Mesmo que alguém oculte o perjúrio desde o início,
A punição ainda chega sorrateiramente, avançando com passos furtivos.”
O terceiro mandamento aborda as declarações relacionadas a cerimônias honrosas, como o
juramento feito pelos cidadãos de Atenas: “Lutarei pelos rituais, sozinho e com a ajuda dos
outros”, que provavelmente foi adotado pelos antepassados que compreenderam esse juramento
como referente a cerimônias divinamente estabelecidas. No entanto, posteriormente, a
posteridade, com impiedade audaciosa, inventou novas cerimônias e novas opiniões, como é
comum quando as pessoas perdem a orientação celestial que proíbe a instituição de novos cultos
por autoridade humana. Não devemos adaptar o antigo ditado a essas cerimônias ímpias.
Até agora, mencionei as leis naturais que estão de acordo com a primeira tábua dos
mandamentos e que são mais obscurecidas do que as que tratam da sociedade civil. Pela razão
natural, entendemos que há uma distinção entre a vida dos seres humanos e a dos animais.
Compreendemos os princípios da justiça, da castidade, da verdade, da temperança, da modéstia,
da benevolência e de outras virtudes. Também entendemos que a espécie humana foi destinada a
viver em uma sociedade legítima e que as virtudes devem ser cultivadas por causa de Deus,
mesmo que não sejamos motivados apenas pela utilidade. É importante ressaltar que Deus
acrescentou benefícios evidentes a essa sociedade.
Primeiramente, a razão reconhece que, nesta sociedade, é necessária uma estrutura de ordem
e governo, sendo a autoridade dos pais a primeira fonte desse governo. Essa autoridade é então
transferida para os magistrados, que têm a responsabilidade de governar e proteger toda a
sociedade.
O quinto mandamento abrange a declaração que proíbe qualquer forma de violência injusta e
prejudicar os outros. Embora seja evidente a utilidade dessa proibição (pois a segurança da vida
não poderia ser preservada se agressões impunes fossem permitidas), a razão nos ensina que tais
injustiças devem ser evitadas não apenas por motivos de utilidade, mas também por razões de
justiça, cujo entendimento é inato ao ser humano. Assim como a justiça exige que protejamos
todos os inocentes, ela também demanda que os magistrados restrinjam e punam os indivíduos
nocivos à sociedade. Não é difícil para pessoas prudentes apresentarem muitas razões naturais
para essas afirmações, mas a razão principal é que a compreensão da justiça está intrínseca aos
seres humanos, assim como o conhecimento dos números. No entanto, o consentimento em
relação à justiça é mais fraco devido à obstinação do coração, pois o ódio, o desejo de vingança e
a ira inflamada não ouvem a voz da razão que adverte. Além disso, a proibição de cometer
homicídio injusto não foi inicialmente escrita nas tábuas de Moisés, mas desde o princípio Deus
acrescentou um claro testemunho ao julgamento da natureza quando amaldiçoou e puniu Caim
por ter matado seu irmão. Posteriormente, a lei é promulgada em Gênesis 9. 6, proibindo o
homicídio e ordenando que seja punido pelos magistrados.
Pois estas são as palavras no texto: “Quem derramar sangue humano, pelo homem será
derramado o seu sangue”, ou seja, pelo magistrado. O homem foi feito à imagem de Deus, ou
seja, para que ele entenda, invoque, celebre e seja justo diante de Deus. Deus não deseja que seu
adorador e sacerdote seja violado, mas sim que seja protegido e ajudado para que possa adorar e
invocar a Deus. E Deus mesmo é o vingador da imagem violada do adorador e sacerdote.
Portanto, Deus acrescentou repetidamente testemunhos claros às leis da natureza para que não se
extinguissem nessa escuridão do coração humano.
O sexto mandamento abrange o julgamento da razão, que, ao discernir entre a vida dos seres
humanos e dos animais, ordena que os seres humanos contraiam matrimônio de acordo com leis
específicas e reprova as relações sexuais promíscuas e o adultério. Esse julgamento é
evidenciado pelo entendimento racional do casamento. Embora esse ordenamento seja violado de
várias maneiras na corrupção da natureza, Deus estabeleceu a lei do matrimônio imediatamente
no paraíso e posteriormente puniu os desejos lascivos com o dilúvio e outros exemplos, a fim de
nos ensinar sobre essa lei da natureza.
O sétimo mandamento diz respeito ao ditado “dar a cada um o que lhe é devido”. A razão
nos mostra que a distinção de propriedade é algo que se alinha com a natureza humana, e que é
necessário estabelecer contratos para que as pessoas possam compartilhar bens e obrigações,
fortalecendo os laços sociais e praticando a justiça e a benevolência. Esse princípio é conhecido
como “lei da natureza” ou “direito natural”, sendo amplamente discutido e composto por
diversos argumentos e princípios. Embora os juristas tenham uma forma um pouco diferente de
se referir a ele, o termo “direito das nações” se refere ao julgamento comum dos seres humanos,
baseado em princípios práticos e nas conclusões tiradas a partir deles. É importante ressaltar que
a visão de Platão sobre a mistura de propriedades e autoridades não se alinha com a natureza
humana, uma vez que a existência de distintas autoridades e comunidades é necessária para a
contenção do mal. Portanto, é essencial fazer distinções claras entre as coisas. Ao exercermos
nossas responsabilidades, devemos não apenas considerar a utilidade, mas também o
ordenamento estabelecido por Deus e evidenciado pela natureza. Devemos amar e proteger essa
ordem, garantindo que os direitos dos outros não sejam violados e, ao contrário, devemos ajudar
uns aos outros a preservar aquilo que é legítimo. Há um rico debate filosófico e jurídico sobre a
igualdade, que serve como testemunho do direito natural e do julgamento natural sobre essa
questão.
O oitavo mandamento enfatiza a importância intrínseca da razão humana, que estabelece que
devemos amar e proteger a verdade, evitando mentiras. Nesse contexto, fica evidente a utilidade
geral desse princípio. Afinal, se não buscarmos constantemente a verdade em diferentes áreas,
como a medicina e outras disciplinas, os contratos não terão sustentação a longo prazo, os
acordos e a paz serão prejudicados, e os tribunais não poderão exercer sua função
adequadamente. Seria extremamente prejudicial à vida humana se falsidades fossem transmitidas
em vez de verdades, ou se venenos fossem promovidos como se fossem remédios. Deus, em Sua
sabedoria, sempre incorporou inúmeras utilidades em Suas leis. No entanto, ao considerarmos
esse princípio, não devemos nos ater apenas às vantagens práticas, mas sim ao ordenamento
estabelecido por Deus. Devemos amar e preservar esse ordenamento, que inclui a conservação da
verdade, por causa de nossa devoção a Deus, e devemos nos esforçar constantemente para
mantê-lo firme.
Ao revisar as leis da natureza de acordo com os Dez Mandamentos, percebo que essa
sequência se torna clara e segue o caminho indicado pela razão. No entanto, é importante notar
que, independentemente da numeração, as próprias coisas se encaixam bem, desde que não sejam
introduzidos elementos estranhos. Seguir essa ordem é proveitoso, pois evidencia o consenso
entre as leis da natureza e os Dez Mandamentos, o que é útil por várias razões. Primeiramente,
isso nos ajuda a compreender que as leis da natureza em si são divinas e devemos valorizar sua
verdadeira explicação, demonstrações e conclusões coerentes, tanto entre os filósofos quanto
entre os grandes legisladores, rejeitando as opiniões contrárias. A lei divina foi proclamada dos
céus para testemunhar que Deus é o autor do conhecimento natural e exige obediência de acordo
com esse conhecimento. Ela também acusa a humanidade de sua teimosia, pois Deus desejava
que houvesse uma voz de Seu julgamento contra o pecado. Por fim, é benéfico para os santos ter
um testemunho claro de Deus que exige e aprova suas obras, para que a razão não se desvie
diante da fraqueza humana, como ocorreu com muitos legisladores cujas leis são defeituosas.

SOBRE O USO DA LEI


Não há dúvida de que a lei divina exige uma obediência interior e perfeita, conforme
expresso no mandamento: “Amará ao Senhor seu Deus de todo o seu coração”. No entanto,
como a natureza corrupta dos seres humanos não consegue oferecer uma obediência integral,
como Paulo claramente testemunha em Romanos 7 e 8, e uma vez que o pecado, ou seja, a
dúvida, a falta de confiança, o medo insuficiente e o amor insuficiente a Deus, juntamente com
os inúmeros movimentos que se desviam da lei de Deus, permanece nesta vida, os seres humanos
não podem ser declarados justos, isto é, aceitos diante de Deus por causa da lei. Por isso, Paulo
debate e critica vigorosamente a justificação pela lei. Embora a razão humana julgue de forma
diferente sobre o pecado e a justiça, e dessa diferença surjam conflitos entre o julgamento
humano e o evangelho, é necessário ouvirmos a voz do evangelho, que proclama desde o início o
perdão dos pecados e a reconciliação com Deus, ou seja, que os justos, isto é, aqueles aceitos por
causa do Mediador, o Filho, são agradáveis a Deus. Como está escrito em Romanos 5:2: “por
meio de quem temos acesso, pela fé, a esta graça”.
Surge, portanto, a questão: qual é o propósito da lei, se as obras da lei não merecem o perdão
dos pecados, ou se não somos justificados pela lei? Deve-se saber que há três funções da lei, ou
seja, três usos distintos.
O primeiro uso é o pedagógico ou político; Deus deseja que todos os seres humanos, mesmo
os não regenerados, sejam contidos pela disciplina, a fim de evitar a prática de pecados externos.
Paulo aborda essa função em 1 Timóteo 1. 9, afirmando que a lei não se destina aos justos, mas
sim aos transgressores, ou seja, busca contê-los. Para garantir que essa disciplina seja
rigorosamente mantida, Deus estabeleceu magistrados para a humanidade, com o propósito de
governar as pessoas por meio de leis e ensinamentos, e para restringir a ira e punir os
transgressores por meio de sanções impostas pelos magistrados. Isso é evidenciado em
Deuteronômio 19:19-20, quando se diz para eliminar o mal, para que outros ouçam e temam,
sem demonstrar piedade. Além disso, Deus também estabeleceu um cárcere muito mais severo,
que consiste nas calamidades que afligem toda a humanidade, conforme mencionado no Salmo
que descreve as causas dessas calamidades, afirmando que Deus restringe e controla aqueles que
não se aproximam d’Ele. É importante ensinar às pessoas sobre essa disciplina e apresentar essas
quatro razões:
Primeiro: é necessário cumprir a lei por causa do mandamento de Deus, ao qual devemos
obediência.
Segundo: para evitar as punições pelas quais tanto os magistrados quanto Deus punem os
crimes graves.
Terceiro: por causa da paz pública, pois Deus exige disciplina para que não nos lancemos
contra os corpos e bens dos outros; Ele deseja que a paz e a tranquilidade sejam preservadas,
para que os homens possam ser governados e instruídos. Nesse ponto, as pessoas devem ser
lembradas de que nossa vida e comportamento devem servir não apenas a nós mesmos, mas
também aos outros, e muitos crimes não prejudicam apenas os corpos e bens dos outros, mas
também contaminam as mentes alheias: essas perdas não são curadas, mas são acompanhadas
por punições divinas.
A quarta razão é que a disciplina é um pedagogo em direção a Cristo. As outras razões
também eram reconhecidas pelos pagãos mais moderados, e é uma grande loucura não se mover
por medo das calamidades e punições. No entanto, a quarta razão é mais grave e representa um
grande mérito da disciplina, pois é chamada de pedagogo em direção a Cristo. Isso significa que,
naqueles que continuam a se contaminar com pecados contra a consciência, Cristo não é eficaz,
como claramente afirmado em 1 Coríntios 6. 9: “Não se enganem: nem os impuros, nem os
idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os
avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o Reino de Deus”.
João também afirma o mesmo: “Todo aquele que pratica o pecado é do Diabo; porque o Diabo
peca desde o princípio. Para isto o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do
Diabo”. Portanto, é necessário refrear as paixões para não resistirmos ao Espírito Santo que
move nossos corações. Além disso, é parte da disciplina ouvir e aprender o Evangelho, pelo qual
o Espírito Santo é eficaz. É muito importante lembrar dessas utilidades da disciplina, mas não
devemos cometer os erros daqueles que ensinaram que a disciplina merece a remissão dos
pecados, ou que alguém pode estar sem pecado e alcançar a plenitude da lei ou a justiça diante de
Deus.
Até agora discutimos o uso político ou pedagógico da lei; agora devemos abordar o segundo
uso, no qual Paulo prega principalmente para corrigir os equívocos do julgamento humano sobre
o pecado e a justiça. Há, portanto, outro uso divino e principal da lei, que é revelar o pecado,
acusar, amedrontar e condenar todos os seres humanos nessa condição corrupta da natureza. A
lei é o julgamento perpétuo de Deus, condenando o pecado em toda a humanidade, revelado aos
seres humanos por meio do conhecimento da lei da natureza que está impresso em suas mentes, e
também por meio de repetidas manifestações por palavras e exemplos. Por exemplo, no paraíso,
Deus denunciou a desobediência e estabeleceu a punição, que é a morte, bem como outras
calamidades como testemunho do julgamento contra o pecado. Depois, seguiram-se muitas
pregações e exemplos, como o caso de Caim, o dilúvio, a destruição de Sodoma e outros eventos.
É um julgamento inalterável de Deus, que oprime todos com Sua ira eterna, exceto aqueles que
são libertos pelo conhecimento do Filho de Deus. Portanto, não devemos imaginar que a lei de
Deus seja algo insignificante e mutável, como a lei lacônica que apenas regulava o uso de
moedas de ferro em Lacônia. Pelo contrário, é o julgamento de Deus, no qual Sua ira terrível
contra o pecado é revelada em todos os tempos. Esse julgamento sempre ecoa e é sentido de
forma mais intensa na igreja do que no resto do mundo. Desde o início, no paraíso, e através das
pregações dos pais, ressoou a voz da lei, acusando o pecado e pregando o arrependimento. Como
Paulo afirma em Romanos 1. 18: “Pois do céu é revelada a ira de Deus contra toda a impiedade e
injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça”. Aqui ele testemunha que essa voz
celestial soa na igreja, anunciando a ira de Deus contra os pecados dos seres humanos.
Portanto, como mencionei anteriormente, a voz da lei ressoa na igreja e esses trovões são
ainda mais sentidos nela. Homens como Adão, Abraão, Jacó, Davi, Ezequias e Paulo
experimentaram o terror de conhecerem seus próprios pecados. Os Salmos estão repletos de suas
lamentações, expressando a angústia e o sofrimento causados pelo reconhecimento do pecado.
Enquanto a igreja é confrontada com a cruz, o mundo cego e furioso despreza o julgamento de
Deus. Portanto, não há dúvida de que a voz da lei, que acusa o pecado na igreja, deve ser
constantemente proclamada e ensinada. Seria um grave erro ocultar o julgamento de Deus e a
voz que denuncia sua ira contra o pecado, como está escrito em Jeremias 1. 9: “Eu pus as Minhas
palavras na sua boca; eis que lhe constitui sobre as nações e sobre os reinos, para arrancar, e para
derribar, e para destruir”. No entanto, há uma controvérsia na igreja. Os hipócritas pensam que a
lei é apresentada para merecer a reconciliação ou para eliminar o pecado. Contra esses erros,
Paulo clama e apresenta um veredicto diferente dos julgamentos humanos. Ele afirma que a lei
traz o conhecimento do pecado, ou seja, sua função é acusar e condenar o pecado, não eliminá-
lo. Da mesma forma, ele diz que a lei traz a ira, e pelo cumprimento da lei, o pecado se torna
ainda mais culpado. Ele também enfatiza que o pecado é o aguilhão da morte, e o poder do
pecado é a lei. Essas declarações podem parecer absurdas para os políticos, mas não se referem
aos costumes políticos, e sim ao julgamento de Deus que experimentamos no verdadeiro terror e
na verdadeira penitência. A lei não tem esse propósito em relação às pessoas seguras, como
Paulo diz: “Eu vivia sem lei”, ou seja, estava seguro, não sentindo o julgamento de Deus. “No
entanto, ao ser confrontado, reconheci minha fraqueza e meus pecados”. Esse uso da lei foi
experimentado por Davi, que foi repreendido pelo profeta por adultério e ficou aterrorizado.
Resumindo, a contrição, como eles a chamam, pode ser claramente compreendida como um
verdadeiro terror na penitência. No entanto, a voz do evangelho também deve ser acrescentada,
pois ela revela o Cordeiro de Deus que tira o pecado e demonstra a inefável misericórdia divina.
Embora Deus esteja verdadeiramente irado com o pecado e o julgue, Ele deseja libertar os
crentes por meio de Seu Filho, a quem Ele sacrificou. Portanto, Paulo declara: “Não somos
atemorizados para perecer, mas para buscar refúgio no Mediador”. Ele conclui que todos estão
sob o pecado, para que Ele tenha misericórdia de todos.
Em terceiro lugar, é questionado sobre o uso da lei nos regenerados. No entanto, falaremos
sobre isso em seu devido lugar, pois eles são libertos da lei, ou seja, da maldição e condenação,
ou da ira de Deus que é apresentada na lei, isto é, se eles retêm a fé e, com confiança no Filho de
Deus, resistem ao pecado e superam os terrores do pecado. No entanto, é necessário ensinar a lei,
pois ela aponta para os resquícios do pecado, aumentando o conhecimento do pecado e a
necessidade de arrependimento. Ao mesmo tempo, o evangelho de Cristo é proclamado para
fortalecer a fé. Da mesma forma, a lei deve ser apresentada aos regenerados para instruí-los sobre
as boas obras nas quais Deus deseja que exercitemos nossa obediência. Deus não quer que
confiemos em nossas próprias obras ou cultos baseados em nosso próprio julgamento, mas sim
que sejamos governados por Sua Palavra. Como está escrito: “Em vão me adoram, ensinando
doutrinas que são preceitos de homens”; e novamente: “A Tua palavra é lâmpada para os meus
pés”, etc. A razão humana, se não for governada pela Palavra de Deus, facilmente se desvia e é
arrastada por maus desejos, aprovando obras viciosas, como pode ser visto nas leis dos pagãos.
Permanece a imutável ordenança divina de que devemos obedecer a Deus.
Portanto, embora tenhamos sido libertados da lei em relação à condenação, pois somos
justificados pela fé no Filho de Deus, a lei ainda é relevante em termos de obediência. A
ordenança divina permanece para que os justificados obedeçam a Deus. Eles têm uma obediência
inicial, sobre a qual falaremos mais adiante. Essas breves advertências sobre os três usos da lei
são suficientes por enquanto, pois discutiremos o segundo e terceiro uso posteriormente.

SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE CONSELHOS E PRECEITOS


A falta de conhecimento sobre a justiça da fé gerou muitos erros. Daí também surgiu a
imaginação daqueles que inventaram no evangelho três conselhos: o conselho de não retaliar, o
conselho de abandonar bens e a vida de pobreza, como eles dizem, e o conselho de virgindade.
No entanto, seria longo enumerar todos os erros contidos nessa loucura. Portanto, mencionarei
apenas os principais. Em primeiro lugar, é lamentável a cegueira que levou a diminuir tanto a lei
de Deus, a ponto de adornarem a mendicância ou obras semelhantes com títulos mais elevados
do que a própria lei divina, quando nenhuma obra pode ser considerada maior do que aquela
exigida pelo primeiro mandamento: “Amará ao Senhor seu Deus de todo o seu coração”. Além
disso, eles falaram muitas coisas absurdas sobre a perfeição. Além disso, eles erroneamente
pensam que a lei de Deus fala apenas sobre disciplina externa, de modo que por essa lei “não
matarás” se proíbe o assassinato injusto, mas não se proíbe o desejo privado de vingança, a
malícia, o ódio injusto e afetos semelhantes. Portanto, Cristo, em Mateus 5, repreende esse erro e
ensina que a lei de Deus exige obediência completa e perfeita e uma ordem justa de todas as
forças do homem, tanto das ações interiores como das exteriores. Portanto, a lei mostra e
condena a impureza da natureza humana. Por isso, Ele acrescenta punições para a perversidade
interior: “Todo aquele que se irar contra seu irmão será réu de juízo”; e também: “Todo aquele
que olhar para uma mulher com intenção impura, já cometeu adultério com ela em seu coração”.
Essas palavras não são hipérboles estoicas, como muitos pensam, que eram apenas pensamentos
ociosos que não significavam ação na vida nem a ira de Deus. Mas essas palavras de Cristo
testemunham que Deus realmente se ira com a perversidade natural do homem e que isso é
realmente pecado. E isso é dito para que entendamos que não satisfazemos a lei, que devemos
buscar misericórdia e refugiar-nos no Mediador.
A falta de compreensão da justiça pela fé levou a vários erros e equívocos. Alguns
começaram a ensinar três conselhos no evangelho: o conselho de não retaliar, o conselho de
renunciar aos bens materiais e viver na pobreza, e o conselho de abraçar a virgindade. No
entanto, seria difícil enumerar todos os erros contidos nesses ensinamentos equivocados, mas
mencionarei os principais.
O primeiro erro é a diminuição da importância da lei de Deus. Alguns elevaram a
mendicância e outras obras semelhantes a um status mais elevado do que a própria lei divina. No
entanto, nenhuma obra pode ser considerada maior do que a exigida pelo primeiro mandamento:
“Amará ao Senhor seu Deus de todo o seu coração”.
Além disso, muitos têm falado absurdos sobre a perfeição, e erroneamente pensam que a lei
de Deus diz respeito apenas à disciplina externa. Eles acreditam que “não matarás” proíbe apenas
o assassinato injusto, mas não condena o desejo de vingança, a malícia, o ódio injusto e outros
afetos semelhantes. No entanto, Cristo repreendeu esse erro em Mateus 5, ensinando que a lei de
Deus exige obediência completa e perfeita, abrangendo tanto as ações interiores quanto as
exteriores. A lei de Deus revela e condena a impureza da natureza humana. Portanto, Cristo
acrescentou punições para a perversidade interior, ensinando que qualquer um que se irar contra
seu irmão será culpado perante o juízo, e que aquele que olhar para uma mulher com intenção
impura já cometeu adultério em seu coração.
Essas palavras de Cristo não são exageros sem sentido, como muitos pensam. Elas mostram
que Deus realmente se ira com a perversidade natural do homem e que isso é verdadeiramente
pecado. Isso nos é dito para que compreendamos que não podemos satisfazer a lei por nós
mesmos, e que devemos buscar a misericórdia e refugiar-nos no Mediador, Jesus Cristo.

SOBRE A VINGANÇA
Além disso, em relação à vindicta (vingança), em todos os lugares onde os preceitos são
lidos, alguns pregam aos magistrados sobre seu dever, enquanto outros falam sobre a vindicta
privada, a malevolência e os conflitos prejudiciais que surgem especialmente em mentes ávidas e
impetuosas, motivadas pela sede de vingança, como ocorreu com Mário, Sula, Caio César e
Pompeu, dominados pela ira. E na igreja, há tantos exemplos quanto em outros reinos: muitos se
envolveram em grandes conflitos motivados pela malevolência e pelo desejo de vingança, como
é mencionado em relação a Aríon.
Portanto, é necessário distinguir a vindicta: há a vindicta pública, que é exercida por
mandato divino pelas autoridades. Sobre isso, é dito em Romanos 13. 4: “Ele é ministro de Deus,
vingador para castigar o que pratica o mal”. Não há dúvida de que as autoridades são obrigadas,
por mandato divino, a punir os delitos, e ambos devem estar cientes de que devem obediência a
Deus. As autoridades punem não por desejo privado, mas de acordo com a vontade de Deus; o
réu sofre punição para obedecer ao mandato divino que ordena a punição dos delitos.
O evangelho não proíbe essa vindicta pública ou o dever das autoridades; pelo contrário, ele
aprova e confirma o papel das autoridades e não deseja que sejam negligentes ou indolentes em
seu dever, especialmente porque é um dever divino. No entanto, porque não consideramos a
dignidade desse ofício tão importante nem a vontade de Deus, os hipócritas inventaram essas
delirantes ideias de não exercer a vindicta. E a fonte dessas atitudes é a teimosia dos seres
humanos: as pessoas sofrem gravemente as punições porque não reconhecem o mandato de
Deus, que é igualmente dado às autoridades e aos culpados.
Outra é a vindicta privada, ou seja, aquela que não é realizada pelas autoridades e pelas leis.
Sobre essa vindicta privada, é dito em Mateus 5 e Romanos 12. 19: “Não se vinguem por si
mesmos”. Essas palavras são verdadeiros mandamentos, pois Deus estabeleceu uma ordem com
leis e juízes aos quais a humanidade está sujeita. Portanto, Ele deseja que sejam eles os
responsáveis pela vingança, e não quer que essa ordem seja perturbada. Por essa razão, Ele
proíbe a vingança privada, tanto externa quanto interna, e espera que, em nosso coração,
entreguemos a vingança a Deus, às leis e aos juízes. Cristo aborda essa questão em Seu
ensinamento registrado em Mateus 5, onde explica a lei e refuta a hipocrisia daqueles que
pensam estar cumprindo a vontade de Deus, quando, na realidade, a confusão nessa ordem é
evidente entre os seres humanos. É como dizem nas sátiras:
“Mas a vingança é um bem mais agradável do que a própria vida.”
Cristo deseja que tenhamos consciência e controlemos o impulso de buscar vingança por
conta própria, especialmente agora que a condição humana está sujeita à morte e às punições. É
importante que, diante das adversidades, não apenas observemos os pecados dos outros, mas
também reconheçamos os nossos próprios pecados. Um exemplo notável disso é o que Davi
disse a respeito de Simei: “Deixem ele me amaldiçoar, pois o Senhor lhe disse: Amaldiçoa a
Davi. Quem sabe se o Senhor, ao ver a minha aflição, transformará a maldição em bênção para
mim”. Outro exemplo inspirador é a atitude de Davi em relação a Saul, quando ele teve a
oportunidade de matá-lo sem enfrentar nenhum problema, mas escolheu poupar sua vida, pois
não desejava tomar o reino de maneira ilegítima, mas sim esperar que Deus lhe concedesse.
Devemos refletir cuidadosamente sobre esses exemplos para compreender melhor a lei de Deus,
reconhecer nossa própria fragilidade e aprender a exercer um maior controle sobre nós mesmos.
Essa compreensão faz parte do ensinamento especial do Espírito Santo, pois as histórias das
nações não apresentam um exemplo semelhante ao de Davi.
Portanto, devemos seguir esta regra: instruir os magistrados a aplicar a punição de acordo
com as leis e repreender a negligência em seus deveres, como está escrito em Deuteronômio 19.
19-20: “Assim você eliminará o mal do meio de você, para que todo o Israel ouça e tema, e não
se cometam mais ações tão perversas no meio de vocês”. Por outro lado, devemos orientar as
pessoas comuns a não buscarem vingança e a não perturbarem a ordem estabelecida por Deus,
seja através de ações físicas ou desejos interiores. Essa regra é benéfica para a vida, fortalecendo
as autoridades e promovendo a paz. A partir disso, podemos perceber o quão absurda é a loucura
dos monges: se o conselho é não buscar vingança, eles estariam concordando em não punir os
criminosos, mas, ao mesmo tempo, incentivariam as pessoas comuns a se rebelarem em busca de
vingança. Portanto, devemos rejeitar completamente essas imaginações fanáticas e falsas da
igreja. Essa também foi a razão pela qual Cristo proibiu repetidamente a vingança, pois Ele
queria remover a falsa convicção dos apóstolos de que o reino do Messias seria terreno e
conquistado por meio de armas. Pelo contrário, Cristo enfatizou aos apóstolos que eles não
usariam armas, mas seriam pregadores do evangelho, reunindo a igreja sem depender de ajuda
humana ou armas, e sabendo que a igreja sofreria com a crueldade dos tiranos, mas mesmo assim
experimentaria libertações divinas. Dessa forma, Ele eleva os mestres de todos os tempos para
que cumpram corretamente seu dever de ensinar e confiem seus perigos a Deus, sem depender de
ajuda humana ou a buscar reinos sob o pretexto do evangelho, como os monges anabatistas
fizeram.
Muito se debate sobre o provérbio comum: “A violência pode ser repelida pela violência de
acordo com o direito natural”. Para compreender o significado dessa afirmação, é necessário
examinar sua essência. Se considerarmos que é um conhecimento natural ou um instinto inato
(στοργη), devemos investigar como essa ideia está ordenada, de modo que não seja corrompida
por pretextos injustos ou misturada com desejos egoístas. Os direitos naturais não são simples
impulsos desenfreados, mas sim disposições específicas que estão harmonizadas com a natureza.
Portanto, os juristas delimitaram corretamente esse provérbio estabelecendo certos limites.
Devemos compreendê-lo no contexto da manifesta violência e da defesa necessária contra uma
violência repentina, como quando um ladrão ataca um viajante pacífico na estrada, ou quando
alguém inicia uma guerra injusta, ou quando agitadores atacam a casa de outra pessoa. Nessas
situações, em que não há juiz ou autoridade presente, é permitido agir em autodefesa. No
entanto, é importante distinguir entre defesa e vingança, ou punição pelo crime. A razão correta,
ao fazer um julgamento, afirma que ninguém deve causar danos a outrem, mas também
reconhece que é legítimo proteger o próprio corpo contra violência injusta. Isso pode ser feito
por meio de ordens e comandos legítimos, como em uma guerra justa, ou por autodefesa, quando
não é possível contar com a ajuda das autoridades. Existe uma inclinação natural justa, um
desejo de autopreservação diante da violência injusta.
Portanto, quando entendemos o ditado de repelir a violência manifesta de acordo com a
ordem e maneira estabelecidas pela razão correta e pelas leis, é verdadeiro afirmar que é
permitido usar a força para se defender. Isso não contradiz o evangelho nem o mandamento de
“amar os inimigos”, pois o evangelho não anula o direito natural nem as obrigações da sociedade
civil, ou seja, as leis que estão em conformidade com a razão correta. Na verdade, é por essa
razão que Deus estabeleceu tantos deveres na sociedade, para que as pessoas tenham a
oportunidade de exercer e demonstrar fé, obediência e amor. Um chefe de família, por exemplo,
tem o dever de proteger sua esposa e filhos. Portanto, ao defender sua casa de um ataque, ele está
cumprindo um dever de amor, e sua fé deve brilhar em seu coração. Da mesma forma, um líder
tem a responsabilidade de defender seus súditos em causas justas. Assim, quando lidera uma
guerra justa, ele está cumprindo um dever de amor, e a invocação de Deus deve ser evidente em
meio ao perigo. Essas ações não entram em conflito com o evangelho, que instrui cada um a
obedecer à sua vocação legítima, nem contradizem o mandamento de “amar os inimigos”. Pois o
amor, a defesa e a punição não estão em oposição uns aos outros. O objetivo do amor é amar e
colocar o amor a Deus acima de tudo. Um exemplo disso é o rei Asa, que não pôde amar sua mãe
devido à sua adoração a ídolos e, consequentemente, a puniu. Da mesma forma, se Constantino
tivesse permitido que Licínio atacasse a igreja sem resistência, ele não teria cumprido os deveres
que agradam a Deus e, portanto, o reprimiu com armas.
Eu recitei essas informações sobre a afirmação de que é permitido repelir a violência com
violência, a fim de que os estudiosos possam examinar sua validade e entender como dela são
derivadas as leis da guerra. No entanto, essa afirmação deve ser comparada com outra que diz:
“quem vive pela espada, morrerá pela espada”. “Viver pela espada” significa empunhá-la sem a
autorização das leis. Assim, aqueles que infligem violência injusta estão “vivendo pela espada”,
enquanto aqueles que usam uma defesa justa não estão “vivendo pela espada”, mas sim
empunhando-a de acordo com as leis estabelecidas.
Além disso, Cristo faz uma distinção especial entre os deveres dos governantes e o
ministério do evangelho. Deus concedeu a espada aos governantes para ser usada em um
governo legítimo; porém, se eles a utilizarem de forma abusiva, agindo por ira pessoal ou como
Nero, estarão pecando. Por outro lado, Deus não deseja que o ministério do evangelho seja um
reino terreno e, portanto, proíbe os apóstolos de lutarem. Essa afirmação estabelece uma
diferenciação entre esses deveres, e é importante que os líderes da igreja compreendam isso para
não confiar em ajuda humana nem empunhar armas contra suas próprias autoridades, mas
reconhecer que a igreja está sob os cuidados de Deus e esperar por Sua ajuda, assim como Deus
libertou a igreja da crueldade do Faraó, dos caldeus, de Maximiano e de outros tiranos. Portanto,
essa afirmação não apenas transmite uma doutrina sobre os diferentes deveres, mas também
indica corretamente que a igreja é divinamente defendida e libertada.
Essa afirmação traz grande consolo aos piedosos. E até aqui discutimos sobre vingança.

SOBRE A POBREZA
A confissão do evangelho traz consigo desafios e perigos para a vida e a prosperidade das
pessoas. O estudo do evangelho é muitas vezes desprezado e não é visto como algo rentável.
Além disso, a pobreza é uma realidade comum nesta vida e afeta especialmente a igreja,
juntamente com outras adversidades que enfrentamos. Diante dessas situações, é importante
recebermos ensinamentos e consolo para não pensarmos que Deus nos abandonou por causa da
pobreza. Por isso, encontramos uma grande quantidade de sermões sobre a pobreza nos
ensinamentos dos profetas e no evangelho. Essas mensagens nos orientam a sermos constantes,
para que não sejamos levados a rejeitar o evangelho por causa do medo da pobreza. Também
somos alertados para não permitir que a busca por riquezas e poder nos leve a nos envolver com
coisas malignas. Além disso, encontramos consolo nas promessas de Deus de auxiliar aqueles
que estão necessitados. Ele nos assegura, por exemplo, que aqueles que deixarem suas casas ou
campos por amor ao evangelho receberão uma recompensa muito maior, embora com
tribulações.
Sobre essas questões cruciais, pregam-se palavras do evangelho e doutrinas saudáveis que
abordam exercícios de fé e outras virtudes. No entanto, é importante não distorcer essas
mensagens em direção à hipocrisia monástica, ao abandono de posses ou à confusão das questões
políticas. O evangelho não exige nem aconselha o abandono das posses, a menos que tenham
sido adquiridas de forma desonesta. Também não ordena nem aconselha a comunhão absoluta de
bens. Pelo contrário, reconhecendo que a distinção de propriedade e a posse são instituições
divinas, os piedosos devem compreender que a propriedade é agradável a Deus, assim como a
legítima troca de bens. Deus deseja que a nossa fé seja demonstrada por meio dessas atividades
civis, permitindo que o amor e outras virtudes sejam exercitados. Além disso, devemos
reconhecer que a renúncia às posses ou a mendicância praticadas por alguns indivíduos fortes e
ociosos é uma forma de roubo. Também devemos questionar a busca por uma vida mais
confortável nos mosteiros, que, por sua vez, possuem suas próprias propriedades. É fundamental
compreender que nenhum grupo pode existir sem algum tipo de propriedade. Podemos até criar
novas palavras para descrever essas situações, mas não podemos mudar a natureza das coisas em
si.
Há várias evidências no evangelho que aprovam a distinção de propriedades, domínios e
riquezas. Primeiramente, a lei diz claramente: “Não furtarás”, o que implica que Deus mesmo
sanciona e aprova a existência de propriedades distintas. Além disso, é certo que reis e príncipes
podem se tornar herdeiros da vida eterna e que alguns deles podem governar de forma justa e
agradar a Deus, como foi o caso de José, Daniel, Nabucodonosor, Ciro, Cornélio, o Centurião e
outros. No entanto, reinos não podem ser mantidos sem riquezas, pois a estabilidade de um
governo requer recursos financeiros. Além disso, em 1 Coríntios 7, é permitido o comércio, o
que implica que compras e vendas são consideradas legítimas.
Ambas as situações - administrar adequadamente as posses e suportar a pobreza
corretamente - requerem habilidade, cuidado e virtude. Para uma administração adequada, é
essencial ter uma boa consciência que reconheça a ordem estabelecida por Deus, onde existe uma
distinção nas coisas, e não perturbar essa ordem defraudando os outros, como frequentemente
ocorre quando os ricos se beneficiam de contratos injustos. Pelo contrário, é necessário preservar
a igualdade por causa de Deus, que ordenou que não se deve se apropriar do que pertence aos
outros. Portanto, devemos demonstrar gratidão ao proteger a igualdade e agradecer a Deus, que
nos concedeu e preserva as posses, conforme está escrito: “A bênção do Senhor enriquece”. Em
segundo lugar, é importante entender que é necessário ajudar generosamente os necessitados,
como Cristo frequentemente nos ordena: “Deem, e lhes serão dados”. E há uma promessa
associada a isso, por duas razões: para que saibamos que a generosidade dos piedosos é
merecedora de recompensas e para que saibamos que Deus requer essas ações, a fim de
exercitarmos nossa fé na expectativa das recompensas. Ambas as razões são evidentes no
exemplo da viúva de Sarepta: ela alimentou Elias e confiou que Deus a sustentaria. Como
resultado, Deus abençoou a mulher e a recompensou abundantemente, e ela demonstrou uma fé
notável ao entregar todas as suas sobras a Elias. No entanto, é importante observar que o modo
de compartilhar e ajudar é descrito em 2 Coríntios 8. 13: “Não para que haja indolência para
outros e aflição para vocês”. Isso significa que, ao praticar a generosidade, devemos agir de
forma equilibrada, evitando tanto a ociosidade quanto o fardo excessivo para nós mesmos.
Devemos buscar um equilíbrio para que nossa ajuda seja eficaz e não cause dificuldades para nós
ou para os outros.
E há um provérbio muito bonito sobre propriedade, modo de liberalidade e recompensas, que
está presente em Salomão: “Beba água da sua própria cisterna e das fontes do seu próprio poço;
que as suas fontes se espalhem pelas ruas e os riachos de água corram pelos caminhos públicos.
Sejam somente seus e não compartilhe com estranhos. Seja bendito o seu manancial!”. É um
ensinamento econômico, transmitindo uma doutrina muito importante através de uma figura de
linguagem encantadora, proibindo o roubo do que é alheio. Por isso ele diz: “Beba água da sua
própria cisterna”, e aprova a propriedade: “Seja você o único senhor delas”. Ele acrescenta
também o mandamento da liberalidade: “Que as suas fontes se espalhem pelas ruas”, ou seja,
compartilhe os frutos da sua propriedade com os outros. Ele mostra também o modo da
liberalidade: “Não quero que sejam dissipadas as suas heranças, nem que perca as suas terras”.
Aqui está o modo: que você mantenha a propriedade, preservando a herança para os filhos e para
a república, mas ajude generosamente os necessitados com os frutos. Isso é o que foi dito sobre
propriedade e sobre o dever da liberalidade.
Por fim, ele acrescenta também o ensinamento sobre as recompensas e a fé: exerça a fé por
meio desses deveres: se reconhecer que as posses e a sua preservação são um dom de Deus, e se
não defraudar ninguém e for generoso, então aguarde a bênção de Deus. Essa é a verdadeira
doutrina da igreja de Cristo sobre esse assunto, e devemos evitar os delírios daqueles que
imaginam uma comunhão platônica dos bens ser ensinada ou elogiada no evangelho.
Mas assim como é uma grande habilidade administrar adequadamente as posses, também é
uma grande habilidade e grande honra suportar corretamente a pobreza. Em relação a isso,
primeiro devemos reconhecer a vontade de Deus, que deseja que estejamos sujeitos a essas
aflições comuns, como doenças, morte e também a falta de recursos. Essas aflições não são
sinais de que os piedosos são rejeitados por Deus, mas são exercícios que nos advertem sobre o
pecado, pelo qual a natureza está sujeita à morte. Elas também nos lembram da importância do
arrependimento e da invocação a Deus. Portanto, é crucial compreender que devemos obedecer a
Deus, que deseja que passemos por essas provações, assim como a obediência em si é uma
virtude que se desenvolve. Quando enfrentamos aflições, é necessário ter humildade, conforme
escrito: “Humilhem-se, pois, debaixo da poderosa mão de Deus”. Além disso, a constância deve
ser cultivada para que não tomemos ações que sejam contrárias à vontade de Deus por medo da
pobreza. Cristo enfatiza a importância da constância ao proclamar: “Bem-aventurados os pobres
de espírito”, pois eles demonstram obediência a Deus ao suportar a pobreza e não serem abalados
pelas dificuldades que acompanham a falta de recursos. De fato, enfrentar opressão, desprezo
pelos poderosos, insultos e testemunhar as aflições dos filhos é uma carga pesada. No entanto,
manter a constância de espírito nessas circunstâncias, não buscar ajuda por meio de conselhos
malignos do povo ou dos poderosos, e não permitir que a escassez leve à perturbação da ordem
pública - essa nobreza de espírito que brilha em meio às aflições é uma grande honra. Assim
como aconteceu com Jeremias, muitos profetas, João Batista, Cristo, os apóstolos e inúmeros
mártires; que nasceram em posições privilegiadas e foram despojados de suas posses, como
Atalo[76]; aqueles piedosos que possuíam recursos, como Jó, Davi e outros, também passaram por
situações semelhantes. Eles compreendiam que era necessário que alguns fossem ricos,
obedecessem ao Seu chamado e não colocassem riquezas acima da confissão da fé. Mesmo
quando perdiam suas riquezas, ainda estavam dispostos a obedecer a Deus. Essa obediência,
juntamente com a constância na confissão da fé, são louvadas e representam uma forma de
adoração a Deus.
No entanto, os monges distorcem claramente as palavras de Cristo para justificar sua
hipocrisia, citando erroneamente Mateus 19. 29: “Quem deixar casa, ou pais, ou irmãos”, etc. Na
realidade, existem duas formas distintas de abandono: uma é feita em obediência ao mandamento
de Deus, na confissão da fé ou na vocação, quando os tiranos exigem que renunciemos ao
evangelho ou abandonemos nossos bens; ou quando alguém chamado para liderar igrejas tem
dúvidas sobre enfrentar perigos e hostilidades, ou se é melhor servir à vida familiar. Em tais
casos, o abandono é louvável, pois devemos dar prioridade à confissão do evangelho e à nossa
vocação acima de todas as coisas humanas, incluindo nossa vida e fortuna.
Não é uma questão trivial que essa declaração seja repetida várias vezes no Evangelho.
Muitas vezes surgem situações em que a confissão da fé nos obriga não apenas a renunciar às
posses, mas, o que é ainda mais difícil, a desagradar aqueles que nos são mais queridos, desafiar
a vontade de grandes e respeitáveis príncipes e outros líderes cujos julgamentos é extremamente
difícil ignorar. É uma tarefa difícil também porque somos acusados de causar discórdia em nosso
próprio país. Essas coisas certamente afligem profundamente nossos corações, e é por isso que
Deus nos ordena repetidamente a colocar o evangelho em primeiro lugar e nos consola,
prometendo ajuda e recompensas.
Encontramos um exemplo disso em Deuteronômio 33. 8, onde a bênção é especialmente
atribuída à tribo dos levitas por ensinar a verdadeira doutrina. Há também discursos sobre
perigos e promessas. Essas palavras são dirigidas aos levitas: “Esta é a Tua lei que foi dada pelo
Teu homem santo, a quem provaste em Massá”. Aqui, na primeira parte, é recomendado às
famílias levíticas um certo tipo de ensinamento, e é proibido ensinar qualquer doutrina falsa. Em
seguida, é acrescentado o preceito da constância diante dos perigos: “Aquele que diz a seu pai e a
sua mãe: Não os conheço; e aos seus irmãos: Não os reconheço, e aos seus filhos: Não os
conheço; estes guardam a Tua palavra e o Teu pacto, e o Teu juízo, ó Jacó, e a Tua lei, ó Israel;
eles colocarão incenso diante da tua ira e holocausto sobre o teu altar”. Esta é a segunda parte,
que adverte os mestres sobre as grandes lutas, perigos, ódios e torturas que enfrentarão na defesa
da doutrina piedosa.
Certamente essas coisas são difíceis, como dizer aos pais, à pátria, aos filhos: “Não os
conheço”; ser considerado inimigo da pátria, causador de discórdia, etc. No entanto, vemos que
os profetas e apóstolos também enfrentaram essas mesmas acusações. E para que não
desanimemos, a promessa é acrescentada: “Abençoa, Senhor, a sua força e aceita as obras de
suas mãos; fere as costas dos seus inimigos, e que os que o odeiam não se levantem”. Ou seja,
Deus ajuda aqueles que ensinam corretamente, faz com que seu ministério seja eficaz e salvador,
e restringe os maus mestres e tiranos. Essas palavras de Cristo foram tiradas das palavras de
Moisés. Ambos pregam sobre assuntos de grande importância, como qualquer leitor prudente
pode facilmente reconhecer. Portanto, essas declarações profundas não devem ser distorcidas
para se adequar às vazias superstições dos monges.
Mencionei essas palavras para que sejam vistas pelos estudiosos piedosos, muitos dos quais
enfrentam várias aflições por causa do estudo da verdadeira doutrina. Que eles se fortaleçam com
essas palavras e não abandonem seus estudos corretos. Que saibam que Deus é seu auxílio, como
Cristo disse: “Busquem primeiro o Reino de Deus, e todas essas coisas os serão acrescentadas”.
E no Salmo 84. 11: “Prefiro ser um humilde porteiro na casa do meu Deus”. E em Isaías 30. 20:
“O Senhor os dará pão na angústia, e água na aflição, e não permitirá que o seu mestre seja
removido”. Este é o caminho, sigam nele e não se desviem. Que se fortaleçam com essas
declarações e sirvam a Deus na propagação da verdadeira doutrina, e tenham cuidado para não
distorcê-la com seus escândalos.
Existe outra forma de abandono que não é louvável, mas sim supersticiosa, que é quando as
pessoas renunciam às suas posses sem uma verdadeira vocação, inventando votos e aderindo à
mendicância como um suposto culto a Deus. Essa forma de abandono não é de forma alguma
digna de elogios, mas é uma expressão de impiedade pagã, como está escrito: “Em vão Me
adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens”, entre outras passagens que
condenam a prática de cultos baseados em tradições humanas.

SOBRE A CASTIDADE
Deus, com um plano maravilhoso, estabeleceu a procriação na natureza humana e instituiu o
casamento por meio de uma lei estabelecida (Gênesis 2). Após a queda de Adão, Deus deseja que
os seres humanos se unam em matrimônio por duas razões principais: para a procriação e para
evitar paixões desenfreadas, como afirmou o apóstolo Paulo ao dizer que cada pessoa deve ter
seu próprio cônjuge como único, a fim de evitar a fornicação. Deus valoriza tanto essa ordenança
que Ele proíbe veementemente todos os desejos ardentes e relações fora do casamento, e Ele as
pune severamente, como evidenciam muitos ensinamentos e exemplos. Passagens como Hebreus
13. 4 afirmam que “Deus julgará os fornicadores e os adúlteros”; em 1 Coríntios 6. 9, é dito que
“Não se enganem: os fornicadores, idólatras e adúlteros não herdarão o reino de Deus”; Efésios
5. 6 adverte para que ninguém seja enganado com palavras vãs, pois a ira de Deus recai sobre os
filhos da desobediência devido a tais práticas; 1 Tessalonicenses 4. 3 estabelece que a vontade de
Deus é a santificação dos crentes, que se abstenham da fornicação e que cada um saiba possuir
seu próprio corpo em santificação e honra, não cedendo à paixão da concupiscência como os
gentios; e Hebreus 12. 14 exorta a buscar a paz com todos e a santificação, pois sem ela ninguém
verá a Deus.
Existem exemplos de castigos nas Escrituras que ilustram esses princípios. Por exemplo, em
Gênesis 5, menciona-se que uma das causas do dilúvio foi a presença de paixões desregradas
entre as pessoas. Além disso, em Gênesis 19, testemunhamos a destruição de cinco cidades
devido a um tipo extremamente perverso de paixões. É realmente surpreendente a magnitude da
loucura dessas cidades, considerando que tinham Sem como vizinho, que havia testemunhado o
dilúvio e, sem dúvida, os advertia e pregava constantemente. Além disso, eles haviam ouvido a
mensagem de outros homens justos, como Abraão e Ló. É notável também a ingratidão
demonstrada em relação a Deus, pois pouco antes de sua destruição, quando a cidade foi
capturada pelos caldeus e os cidadãos foram levados cativos, Abraão os libertou, mas eles
voltaram a se entregar desenfreadamente a todos os seus desejos.
No livro de Números, podemos observar que 12 príncipes foram enforcados e 24.000
homens foram mortos devido à prática da fornicação. Em Levítico 18, é relatado que os cananeus
foram exterminados devido às relações incestuosas que praticavam. No livro de Juízes, quase
toda a tribo de Benjamim foi destruída devido ao estupro da esposa de um levita. Em 2 Samuel
12, são anunciadas graves punições a Davi por causa de seu adultério. O rei Salomão menciona
exemplos de idolatria que surgiram como resultado das paixões carnais. Além disso, o profeta
Jeremias frequentemente menciona adultérios como uma das causas da queda de Jerusalém.
Esses exemplos foram registrados nas Escrituras para que tivéssemos testemunhos claros do
juízo de Deus sobre tais transgressões. Eles servem como evidência de que as paixões carnais são
punidas em todos os lugares e que os infortúnios não ocorrem aleatoriamente para aqueles que
praticam a impureza. Pelo contrário, eles são castigos pelos quais Deus manifesta sua ira contra
esse pecado. Portanto, os terríveis desastres que ocorreram entre os pagãos devido às paixões
carnais devem ser atribuídos à mesma causa e à regra estabelecida na Epístola aos Hebreus, que
afirma que Deus punirá os fornicadores e adúlteros.
Além disso, há exemplos tão horrendos de consequências decorrentes das paixões carnais
entre os pagãos que mencioná-los ou sequer pensar neles causa grande dor. Citarei apenas
algumas mudanças notáveis nos reinos que foram provocadas por essas paixões. Troia foi
destruída devido ao rapto de Helena. Tebas foi punida por causa do rapto de Crisipo e do incesto
de Édipo. Em Roma, os reis foram expulsos devido ao estupro de Lucrécia. Mais uma vez,
ocorreram mudanças no governo devido ao crime cometido pelos dez decênviros de Ápio.
Aristóteles, em sua obra Política, apresenta uma extensa lista de exemplos desse tipo,
descrevendo as causas que levaram a mudanças nos reinos. Entre essas causas, ele destaca as
paixões carnais e relata diversos exemplos. Em Atenas, os filhos de Pisístrato foram expulsos por
insultarem uma jovem. O líder espartano Pausânias cometeu estupro seguido de assassinato de
uma jovem em Bizâncio. Por um estranho prodígio, uma estátua proferiu um verso ameaçador de
punição para ele:
“Você deve pagar o preço, pois a injúria traz desgraça.”
Posteriormente, após rejeitar Pausânias, Bizâncio recebeu os atenienses de volta. Porém,
Pausânias, embora tivesse realizado grandes feitos e derrotado o exército persa, foi
posteriormente obrigado pelos Éforos a morrer de fome. Em suma, a história está repleta de
exemplos que demonstram a ira de Deus contra as paixões desenfreadas. Portanto, aprendamos a
dar instruções severas sobre castidade.
A castidade pode ser praticada por meio do casamento ou pela pureza de vida dos
celibatários que são capazes de viver no celibato, seja na juventude ou naqueles que têm um dom
especial para isso. Falo especificamente sobre a juventude porque essa ordem foi estabelecida
com um propósito, permitindo que os jovens vivam com pureza e diligência moderada enquanto
seus corpos ainda estão em crescimento. No entanto, muitos são enredados nas armadilhas do
diabo, são influenciados por más companhias e são facilmente arrastados para vícios devido à
ociosidade e aos prazeres. Devemos instruir adequadamente as mentes de que os jovens, que
ainda não estão prontos para o casamento, podem viver com pureza, com um esforço moderado,
e que Deus exige rigorosamente esse dever. Aqueles que são manchados pela impureza não
escapam de punições leves.
Se José tivesse cedido ao adultério, teria perdido os dons com os quais foi agraciado e teria
sido abandonado por Deus, caindo em pecados ainda maiores. Da mesma forma, Davi
acrescentou ao adultério o assassinato de um homem justo e escândalos múltiplos, resultando em
múltiplas punições. Paulo afirma explicitamente que a punição para as paixões desenfreadas é a
cegueira espiritual. Aqueles que são abandonados por Deus se tornam escravos de suas paixões,
não conseguem ver nem ouvir conselhos corretos, aumentando assim suas punições e ruína.
No entanto, para aqueles cuja idade é apropriada e que reconhecem que não são adequados
para a vida celibatária, saibam que são obrigados pelo mandamento de Deus a se casar, como
Paulo claramente afirma: “Cada um tenha a sua própria esposa para evitar a fornicação”. Esse
mandamento se aplica a todos que reconhecem que não são adequados para a vida celibatária,
tanto leigos quanto sacerdotes.
Tanto as leis humanas quanto as promessas monásticas não podem anular a ordenação e o
mandamento de Deus. Deus detesta as paixões desenfreadas e as impurezas do corpo. Portanto,
Ele deseja que homens e mulheres se unam de acordo com a lei estabelecida, que foi instituída
no início, conforme registrado em Gênesis 2, e reafirmada por Jesus em Mateus 19 e pelo
apóstolo Paulo em 1 Coríntios 7. Essa união é verdadeiramente uma expressão de castidade e
pureza, uma instituição ordenada por Deus e agradável a Ele, que envolve práticas de fé, amor e
paciência. Além de ser a origem da humanidade, o casamento também é o elo primordial da
sociedade em geral. Deus deseja preservar a procriação humana até que a igreja esteja completa e
a sociedade civil seja estabelecida, para que as pessoas possam ensinar e aprender umas com as
outras. Portanto, é absolutamente correto afirmar que o casamento legítimo agrada a Deus.
No entanto, o diabo facilmente seduziu os ímpios com a ilusão da impunidade, incitando as
paixões. Na igreja, sob uma artimanha singular, ele levou alguns a proibirem o casamento, seja
para todos ou apenas para os sacerdotes, sob o pretexto da castidade. Essa proibição tinha apenas
um objetivo: contaminar mais pessoas e confirmar a licenciosidade de vários crimes. Os piedosos
devem considerar quantas almas foram levadas ao desespero pela lei do celibato, caindo na ira
eterna de Deus e blasfemando eternamente. Portanto, não deve haver autoridade na lei do
celibato, e as opiniões dos monges que a defendem devem ser vigorosamente refutadas e
condenadas. Eles inventaram a ideia de que o celibato é um culto sublime a Deus, merecedor do
perdão dos pecados e da vida eterna. Em resumo, eles trouxeram grande obscuridade ao
evangelho e, ao atrair muitos incautos com votos de celibato, eles próprios se contaminaram
terrivelmente. Assim, tanto o diabo quanto o evangelho foram obscurecidos, e as paixões foram
exacerbadas.
Essas questões devem ser cuidadosamente consideradas, as ameaças divinas devem ser
gravadas em nossas mentes e os terríveis exemplos de punição devem ser observados. Devemos
verdadeiramente evitar qualquer contaminação contra a ordenação de Deus, e reconhecer que
qualquer relação fora do casamento legítimo é um pecado grave, como é afirmado em várias
ocasiões: “Fornicadores e adúlteros não herdarão o Reino de Deus”.
Portanto, é essencial que tenhamos uma consciência clara para que os jovens evitem quedas.
Na idade adulta, se necessário, devemos obedecer ao mandamento de Deus e buscar o
casamento. Aqueles que menosprezam essa orientação devem estar cientes de que estão trazendo
punição para si e para a nação como um todo. É importante ressaltar que uma má consciência
não nos permite invocar a Deus, como está escrito em 1 João 3. 21: “Se o nosso coração não nos
condena, temos confiança diante de Deus, etc.”. Portanto, para que possamos invocar a Deus,
devemos manter uma consciência íntegra. Viver sem invocar a Deus, sem Sua presença,
governança e proteção, é uma situação extremamente desfavorável. Dessa forma, o diabo nos
cega cada vez mais e nos envolve em diversas transgressões, como podemos observar em nossa
experiência diária. Quanto ao argumento dos monges que preferem a virgindade, citando
claramente a passagem de Paulo que diz “Seria melhor não casar, etc.”, é importante que o leitor
piedoso entenda que todo esse sermão deve ser lido e observado, prestando atenção aos dois
aspectos.
Inicialmente, é apresentado o mandamento de Deus de cada um ter sua própria esposa,
devido à necessidade de evitar a fornicação. Em seguida, ao falar sobre a virgindade, Paulo
acrescenta imediatamente: “Mas cada um tem o seu próprio dom”. Portanto, quando ele exalta a
virgindade, ele está se referindo a pessoas adequadas para tal estado de vida. Além disso, é
importante considerar que, por meio dessa comparação, as boas obras são avaliadas e
comparadas dentro de limites úteis. Não estamos buscando uma obra que mereça a remissão dos
pecados ou reconciliação, nem estabelecendo um culto baseado na vontade humana.
É um equívoco pensar que a virgindade merece a remissão dos pecados ou deve ser
preservada porque é em si um culto singular e sublime a Deus, ou que o casamento seja uma
forma de vida impura, pela qual o homem não agrada a Deus ou agrada menos. Esses erros são
doutrinas dos demônios e devem ser rejeitados. No entanto, Paulo elogia a virgindade nas
pessoas adequadas e a enaltece por seu propósito útil, não porque seja um culto superior ao
casamento, mas porque o estado de celibato é mais adequado para muitos ministérios, uma vez
que as múltiplas preocupações domésticas da família frequentemente representam obstáculos,
especialmente para aqueles de coração fraco. Isso é verdade, mas cada um tem o seu próprio
dom. Essa advertência deve estar sempre em mente, pois muitos celibatários, embora seus corpos
não estejam contaminados, têm suas mentes ocupadas por desejos ilícitos. Além disso, muitos
sofrem mais com as preocupações mundanas em busca de segurança, honra e prestígio do que a
maioria dos maridos piedosos e comuns.
7. O Evangelho
Não há dúvida de que os apóstolos atribuíram ao seu ensinamento uma apelação
singularmente doce e suave, de forma a destacar ainda mais a distinção entre a lei e a promessa
de reconciliação. Assim como os profetas frequentemente usaram uma palavra especial, Basar
( ‫)ָבַּשׂ ר‬, que significa anunciar coisas novas e boas. Agora, evangelho (ε ὐ αγγέλιον) é uma
antiga palavra que, embora no contexto de Homero signifique uma mensagem alegremente
anunciada, em grego também se refere a um discurso que anuncia coisas boas e alegres, como os
apóstolos usaram, como há muitos testemunhos claros. Plutarco, em sua obra sobre a vida de
Artaxerxes, diz claramente “recompensa do evangelho” (ε ὐ αγγελίου μισθόν), onde é necessário
entender “evangelho” (ε ὐ αγγέλιον) como um discurso que anuncia coisas alegres. Há outros
testemunhos no mesmo trecho; existe também um testemunho na vida de Pompeu, “mensageiros
chegaram do mar trazendo as boas novas” (γραμματοφόροι προσήλαυνον ἐ κ πόντου κομιζόντες
ε ὐ αγγελία), onde claramente se fala de um discurso que anuncia boas novas. De fato, Cícero
também fala dessa maneira para Ático: “Admo neatur igitur pios appellationis suavitas” (que a
doçura do apelo seja recomendada aos piedosos). Assim, falamos do novo gênero de doutrina e
da distinção entre a lei e a promessa, sem inventar novas palavras mais sofisticadas do que
necessárias, para evitar que muitos hipócritas encontrem falhas. O apóstolo João, no início de seu
evangelho, faz uma clara distinção entre a lei dada por Moisés e a graça e a verdade trazidas por
Jesus Cristo. É importante distinguir os mandamentos e o perdão dos pecados, assim como as
promessas da lei das promessas da graça. A lei, como mencionado anteriormente, exige
obediência perfeita a Deus, não concede perdão gratuito dos pecados nem declara os justos, ou
seja, aceitos por Deus, a menos que se satisfaça a lei. Embora a lei também contenha promessas,
estas exigem o cumprimento da lei como condição. Por outro lado, o evangelho prega sobre o
arrependimento e as boas obras, mas traz a promessa do benefício de Cristo, que é a doutrina
central do evangelho e deve ser distinta da lei. O evangelho perdoa os pecados gratuitamente e
nos declara justos, mesmo quando não conseguimos cumprir a lei. Para entender como esses
elementos se harmonizam, sendo que o evangelho prega tanto o arrependimento quanto a lei, e,
no entanto, a promessa é gratuita, iremos explicar imediatamente. No entanto, é importante que o
leitor observe a distinção entre as promessas, pois a lei também as possui.
É importante esclarecer que existem dois tipos de promessas nas escrituras divinas:
I. As promessas da lei estão vinculadas à observância da lei como condição para serem
cumpridas. A lei ensina que Deus é bom e misericordioso, mas somente para aqueles que estão
sem pecado. Isso também é compreendido pela razão humana, pois temos uma noção da lei.
Quando cada pessoa se avalia, naturalmente percebe que considera Deus misericordioso apenas
para aqueles que são dignos, ou seja, aqueles que estão sem pecado. Além disso, não pode
afirmar que agrada a Deus, pois se considera indigna e impura. Portanto, devido à natureza
condicional da lei e suas promessas, as consciências ficam em dúvida.
II. A outra promessa é específica do evangelho, que não tem a condição da lei como causa,
ou seja, não promete por causa do cumprimento da lei, mas gratuitamente por causa de Cristo.
Essa é a promessa do perdão dos pecados, da reconciliação ou justificação, sobre a qual o
evangelho prega principalmente. Para que esses benefícios sejam certos, eles não dependem da
condição do cumprimento da lei. Se fosse necessário acreditar que só teríamos o perdão dos
pecados quando tivéssemos cumprido a lei, o perdão dos pecados seria desesperançado. Portanto,
o perdão, a reconciliação ou justificação são concedidos gratuitamente, ou seja, não por causa de
nossa dignidade. No entanto, foi necessário que houvesse um sacrifício por nós: por isso, Cristo
nos foi dado e se tornou uma oferta, para que, por meio d’Ele, afirmemos com certeza que
agradamos ao Pai.
Portanto, esta promessa evangélica de reconciliação é diferente das promessas da lei, pois é
feita gratuitamente por causa de Cristo. Por isso, Paulo enfatiza diligentemente e frequentemente
esta palavra “gratuitamente” para nós, como em Romanos 4. 16: “Portanto, é pela fé, para que
seja segundo a graça, a fim de que a promessa seja firme”. Pois essa palavra “gratuitamente” por
causa de Cristo faz a diferença entre a lei e o evangelho. Se não compreendermos essa
particularidade da promessa gratuita, a dúvida persistirá em nossas mentes, e o evangelho se
tornará uma lei, não trazendo uma certeza maior do perdão dos pecados ou da justificação do que
a lei ou o julgamento natural da razão. Portanto, mesmo que nossos oponentes afirmem estar
ensinando o evangelho, deixam as consciências em dúvida, pois não ensinam sobre a
reconciliação gratuita, mas ensinam a lei ou Hesíodo, ou seja, o julgamento natural da razão. Por
isso, devemos fixar nossa mente e nossos olhos nessa palavra: “gratuitamente”. É necessário
ensinar sobre essa promessa gratuita para estabelecer a certeza, remover a dúvida das
consciências e encontrar consolação sólida nos verdadeiros temores. Pois é nesses temores que a
necessidade dessa promessa gratuita pode ser verdadeiramente avaliada, e é para essa luta que
essa doutrina deve ser especialmente direcionada.
É importante compreender que a promessa do evangelho deve ser recebida pela fé. Paulo
ensina isso em Romanos 4. 16: “Portanto, é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a
promessa seja firme”. João também afirma: “Aquele que não crê em Deus o faz mentiroso”, entre
outros versículos. Portanto, a palavra “gratuitamente” não exclui a fé, mas exclui a condição de
nossa própria dignidade, transferindo a causa dos benefícios de nós para Cristo. Assim, não
exclui a nossa obediência, mas apenas muda a causa dos benefícios de nossa própria dignidade
para Cristo, garantindo assim a certeza desses benefícios. O evangelho prega o arrependimento,
mas, para assegurar a certeza da reconciliação, ensina que os pecados são perdoados e que somos
aceitos por Deus, não por causa da dignidade de nosso arrependimento ou de nossos esforços.
Isso proporciona uma consolação necessária para as consciências. A partir disso, podemos
entender como esses elementos se harmonizam: embora tenhamos dito que o evangelho prega o
arrependimento, ele também promete a reconciliação gratuitamente. Abordaremos essa
comparação de forma mais detalhada um pouco mais adiante.
Cristo definiu o evangelho como a mensagem final em Lucas, quando ordenou a pregação do
arrependimento e do perdão dos pecados em Seu nome. Portanto, o evangelho é a proclamação
do arrependimento e a promessa que a razão humana não pode compreender por si só, mas que é
revelada divinamente. Nessa promessa, Deus nos assegura que, por meio de Seu Filho Cristo, Ele
perdoará nossos pecados, nos declarará justos (ou seja, reconciliados ou aceitos), nos concederá
o Espírito Santo e a vida eterna, contanto que creiamos (ou seja, confiemos) que essas coisas
certamente nos serão concedidas por causa de Cristo. E Deus faz essas promessas gratuitamente,
para que sejam certas. Essa é a definição do evangelho, na qual se englobam três benefícios
específicos do evangelho: o perdão gratuito dos pecados por causa de Cristo, a justificação
gratuita (ou seja, a reconciliação ou aceitação) e a esperança da vida eterna. Discutiremos esses
três aspectos com mais detalhes posteriormente; por ora, basta lembrar que esses são os
benefícios próprios do evangelho, que podem ser resumidos em uma única palavra: justificação.

Por que é necessária a promessa do evangelho?


Após a queda de Adão, a natureza humana foi afetada pelo pecado e pela morte. Mesmo que
haja algum conhecimento da lei, a consciência não pode afirmar que Deus está disposto a
perdoar apenas com base na lei. A lei não ensina o perdão gratuito dos pecados, e nossa
consciência reconhece que não estamos sem pecado, especialmente quando enfrentamos o temor
do juízo de Deus. Portanto, é necessário o perdão gratuito. Por Sua misericórdia, Deus revelou
que deseja perdoar-nos e restaurar-nos à vida eterna. Ele enviou Seu Filho como uma vítima por
nós, para que compreendamos que todas essas bênçãos nos são concedidas por causa do Filho,
não por nossa própria dignidade ou méritos. O evangelho foi prontamente prometido e revelado
após a queda de Adão, para que a consolação não faltasse à primeira igreja.
Existe apenas um evangelho pelo qual todos os santos, desde o início do mundo, foram
salvos: Adão, Noé, Abraão, Jacó, profetas e apóstolos. Portanto, não devemos imaginar que os
pais foram salvos pela lei da natureza, os judeus pela lei de Moisés e nós por meio de nossa
própria lei. Na verdade, há uma única lei moral para todas as épocas e nações, como mencionado
anteriormente. No entanto, nem os pais, nem os judeus, nem as nações, nem nós somos salvos
por cumprir a lei, pois ninguém consegue satisfazê-la, e ela deixa as consciências em dúvida.
Essa diferença é evidente entre os pais e figuras como Xenofonte e Cícero, que eram virtuosos,
mas não conheciam o evangelho. Embora conhecessem a lei, duvidavam se Deus se importava
com eles, se tinham propiciação divina, se eram ouvidos por Deus, pois sabiam que não eram
inocentes. A lei ensina que Deus é propício apenas àqueles que estão sem pecado, mas eles não
conheciam o evangelho do perdão gratuito dos pecados. Por outro lado, Abraão, Jacó e outros,
que conheciam o evangelho, acreditavam que seus pecados eram perdoados, que tinham
propiciação divina, que Deus se importava com eles e que eram ouvidos por Deus, mesmo sendo
indignos. Isso é evidenciado quando está escrito: “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi creditado
como justiça”. Há uma única lei conhecida pela natureza de todas as nações e épocas, e também
há um único evangelho, mas este último não é conhecido naturalmente, sendo divinamente
revelado. Por isso, Paulo o chama de “mistério escondido”, e João diz: “O Filho, que está no seio
do Pai, nos revelou”. Esses assuntos serão mais esclarecidos quando discutirmos a graça e a
justificação com mais detalhes.
No entanto, como mencionado anteriormente, é importante observar como o evangelho foi
revelado desde o início, considerando alguns trechos dos profetas que são semelhantes. Ao fazer
isso, ficará evidente que os profetas pregaram sobre essa reconciliação gratuita.
Logo após a queda, a promessa de Cristo e dos benefícios que Ele traria foi revelada a Adão.
Isso foi feito para que, mesmo diante da ira de Deus e da morte, Adão encontrasse consolo
sabendo que Deus seria propício novamente e que chegaria o dia em que a morte seria abolida.
Essa primeira promessa contém claramente esses dois benefícios, embora possa parecer obscura
em partes. No entanto, para Adão, naquela situação específica, ela não era obscura. A promessa
diz: “Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela; ele
esmagará a sua cabeça, e você ferirá o calcanhar dele”. Embora possa parecer uma narrativa
estranha e até mesmo impiedosa, ridícula e fabulosa para os ímpios, os piedosos reconhecem que
há coisas grandiosas expressas nessas poucas palavras. No início, a punição do pecado é descrita,
ou seja, que devido ao pecado, o diabo afligiria a humanidade com uma tirania cruel,
representada pelos pecados e pela morte, como toda a história do mundo testemunha e como foi
vividamente experimentado por Adão.
Em seguida, é apresentada uma breve descrição do futuro reino de Cristo, quando a
descendência da mulher esmagará a cabeça, ou seja, quando o reino do pecado e da morte será
destruído. Essa descrição traz consolação a Adão, mostrando que ele tem um Deus propício,
mesmo que se veja como indigno e impuro. Ele reconhece o que perdeu, mas tem esperança na
descendência que trará justiça e vida eterna. Com essa confiança na misericórdia de Deus, ele
agrada a Deus e compreende que o diabo tentará prejudicar essa descendência, tanto Cristo
quanto os santos, durante a vida, mas que Cristo triunfará sobre o reino do diabo.
Essa promessa é então renovada a Abraão, com a promessa de que todas as nações serão
abençoadas por meio da sua descendência. Isso indica que todas as nações estão atualmente sob
uma maldição, ou seja, Deus está irado contra elas e estão oprimidas pelo pecado e pela morte.
No entanto, por meio de Abraão e de sua descendência, elas serão libertadas desses males. Isso é
interpretado pelos apóstolos, como podemos ver nas escrituras de Paulo e nos Atos dos
Apóstolos. Além disso, na história de Abraão, Deus o consola dizendo: “Não tema, Eu sou o seu
protetor”, acrescentando a promessa da descendência. Abraão crê nessa palavra, mesmo vendo e
reconhecendo sua própria impureza e indignidade. Ele confia que tem um Deus propício devido
à Sua misericórdia e à promessa da descendência, e assim é declarado justo. Esse exemplo ensina
que alcançamos a reconciliação por meio da promessa e da fé. No entanto, a fé não se baseia em
nossa própria dignidade, mas apenas na misericórdia de Deus.
A seguir, encontramos muitos sermões e exemplos que falam sobre o perdão dos pecados,
mas os mais claros estão nos Salmos e nos profetas, onde o evangelho é proclamado de forma
evidente. Nos Salmos, Davi pede o perdão dos seus pecados por causa da misericórdia de Deus,
não confiando em sua própria dignidade ou méritos. Por exemplo, ele diz: “Não entres em juízo
com o teu servo, pois diante de Ti não há ser vivo justificado”[77]. Isso claramente não é um
discurso da lei, mas uma busca por misericórdia, uma confissão do pecado e um reconhecimento
de que todos estão condenados. Assim, sabemos que todos os nossos pecados nos são
gratuitamente perdoados. Outro salmo diz: “Se observares as iniquidades, Senhor, quem
subsistirá?” E ainda: “Confessarei contra mim a minha injustiça, e Tu perdoarás a impiedade do
meu coração”. Também é descrito o sacerdócio de Cristo: “Tu és sacerdote para sempre”[78]. Isso
testifica que esse sacerdote irá apaziguar a Deus, trazer justiça eterna e vida eterna, pois Ele é
chamado de sacerdote eterno.
A fim de compreender plenamente o significado dessas palavras sobre o perdão gratuito,
devemos considerar trechos semelhantes em outros Salmos. Ao fazer isso, esses cânticos se
tornarão mais agradáveis e nos trarão um consolo firme. Pois, se pensarmos que essas promessas
dependem da nossa própria dignidade, quando os Salmos nos ordenam a nos alegrar e confiar na
misericórdia de Deus, nossa consciência sempre nos acusará de sermos indignos, de que essas
promessas não se aplicam a pessoas como nós, que são indignas. Portanto, precisamos combater
essa dúvida e entender que as próprias palavras que nos ordenam a nos alegrar são oferecidas
para ajudar-nos a superar essa dúvida que surge da nossa indignidade. Se entendermos que a
reconciliação nos é prometida gratuitamente, então nossa fé será verdadeira e certamente nos
alegraremos com a misericórdia de Deus, e O agradeceremos por isso. No entanto, a fraqueza e
as limitações da mente humana são tão grandes que não conseguimos compreender plenamente a
grandeza da misericórdia de Deus. Somos tão oprimidos pela ideia e julgamento da lei que não
conseguimos convencer-nos plenamente do evangelho e da oferta gratuita de misericórdia.
Portanto, a fé deve lutar constantemente contra essa fraqueza em nós, para que possamos nos
erguer, aprender a confiar em Deus, invocá-Lo sinceramente e adorá-Lo.
No livro de Isaías, encontramos muitas mensagens sobre Cristo, o perdão dos pecados e a
vida eterna. No capítulo 53, fica evidente que o perdão dos pecados é prometido por meio de
Cristo, e não por causa da nossa própria dignidade: “O Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de
todos nós”. Isso nos mostra que não merecemos o perdão dos pecados por meio dos sacrifícios
levíticos, mas que há um sacrifício que verdadeiramente remove o pecado: “Ele oferecerá sua
alma como sacrifício pelos pecados”. Além disso, afirma que “Ele levará sobre si a culpa de
todos nós”, para que saibamos que recebemos os benefícios de Cristo por misericórdia, e não por
causa da nossa própria dignidade. Por fim, há o testemunho mais claro: “Por meio do seu
conhecimento, o justo, meu servo, justificará a muitos”. Isso deve ser afirmado com certeza, que
somos considerados justos quando reconhecemos que Deus está reconciliado conosco por causa
de Cristo. Portanto, não devemos duvidar devido à nossa indignidade, nem devemos acreditar
que somos justos pela obediência à lei. Eu paro de citar mais exemplos agora. Mencionei esses
apenas para que os leitores possam observar nas Escrituras quais partes se referem à lei e quais
partes pregam o evangelho, e para que possam entender a diferença entre a lei e a promessa do
evangelho. Esses são os pontos centrais das Escrituras, aos quais todas as outras partes devem
estar relacionadas de forma sábia.
Até agora, explicamos o que é o evangelho e mostramos a diferença entre a lei e o
evangelho. No entanto, todas essas coisas se tornarão mais claras quando falarmos sobre
justificação, fé e obras. Por enquanto, há uma coisa importante a ser acrescentada: assim como é
necessário entender que o evangelho é uma promessa gratuita, também é necessário entender que
o evangelho é uma promessa universal, ou seja, oferece e promete reconciliação a todas as
pessoas.
É importante ressaltar a universalidade do evangelho e resistir às perigosas ideias da
predestinação, para que não argumentemos que essa promessa se aplica apenas a algumas
pessoas e não a nós. É compreensível que essa ideia influencie a mente de todos e tenha levado a
muitas discussões inúteis sobre predestinação. No entanto, afirmamos que a promessa do
evangelho é universal. Assim como a proclamação do arrependimento é para todos, a
proclamação do perdão dos pecados também se estende a todos. Encontramos declarações
universais sobre o evangelho nas Escrituras, como João 3:16: “Porque Deus amou o mundo de
tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça”; e
também em Paulo: “Ele encerrou a todos debaixo da desobediência, para usar de misericórdia
para com todos”. Isso é suficiente, por enquanto, para destacar essa universalidade. Abordaremos
novamente essa questão universal ao discutir a predestinação mais adiante.
O fato de nem todos alcançarem as promessas do evangelho ocorre porque nem todos creem.
Embora o evangelho seja uma promessa gratuita, ainda requer fé. A promessa precisa ser
recebida pela fé, e o termo “gratuitamente” não exclui a necessidade de fé, mas exclui a condição
baseada em nossa própria dignidade, como mencionado anteriormente. A fé é o meio pelo qual
recebemos essa promessa.

8. Graça e Justificação
Este trecho é essencial para compreender o evangelho, pois revela o benefício único de
Cristo, oferece consolo sólido para as mentes, ensina o verdadeiro culto a Deus, a verdadeira
invocação e, acima de tudo, distingue a igreja de Deus das outras nações, dos judeus, dos
muçulmanos e dos pelagianos. Estes últimos acreditam que a justiça do homem é alcançada pela
obediência à lei ou à disciplina, e fazem com que duvidemos do perdão dos pecados. No entanto,
há uma grande divergência de opiniões sobre esse assunto, com muitos seguindo julgamentos
humanos e negligenciando a simples doutrina dos profetas, de Cristo e dos apóstolos. Eles
transformam essa doutrina em filosofia, minimizando a gravidade do pecado em sua natureza, e
consideram que o conhecimento filosófico é igual ao conhecimento cristão.
Ao longo dos tempos, essas visões profanas e humanas distorceram a verdadeira doutrina da
igreja. Um exemplo disso são os fariseus, que acreditavam que eram justos por seguirem a lei.
Além disso, eles tinham uma concepção equivocada do Messias, imaginando que Ele viria para
estabelecer um reino terreno, sem compreenderem a necessidade de um sacrifício para aplacar a
ira de Deus contra o pecado e trazer uma justiça diferente. Essa tendência hipócrita também
existiu nas gerações anteriores aos fariseus, afetando a igreja dos pais.
Mas os profetas condenavam esses erros e proclamavam que a justiça da lei não era
suficiente para remover o pecado. Eles afirmavam que o pecado ainda persistia na natureza
humana, mas aqueles que têm fé são justificados, ouvidos e concedidos vida eterna por Deus,
devido à promessa do Salvador. Como Davi disse claramente: “Nenhum ser vivo será justificado
diante de ti”; e em outro lugar sobre o Filho: “Bem-aventurados todos os que n’Ele confiam”; e
Isaías também: “O conhecimento d’Ele justificará a muitos”. Quando Cristo e os apóstolos
renovaram essa doutrina, surgiram imediatamente opiniões humanas dispersas sobre a disciplina,
pois é uma questão importante governar os costumes externos. Surgiram também espíritos
fanáticos que transformaram completamente o evangelho em lei ou farisaísmo. Inventaram a
ideia de que as pessoas eram justas pela lei e, para evitar que Cristo parecesse ter trazido algo
novo, afirmaram que Ele estabeleceu algumas novas leis sobre o celibato e a não-retaliação.
Essas ideias delirantes surgiram logo após os apóstolos. Não é surpreendente, portanto, que uma
névoa escura tenha se estabelecido posteriormente. Embora alguns piedosos tenham mantido a
verdadeira opinião, há uma grande diversidade entre os escritores, com cada um expressando
melhor do que o outro. Agora, eu só quis mencionar isso para que o leitor piedoso entenda que
uma explicação sobre a justificação é necessária e que devemos abraçar com gratidão o benefício
de Deus, que reavivou a luz do evangelho. Não se pode negar que na doutrina dos monges há
erros, os quais, embora agora tenham sido corrigidos em certo grau, ainda são mantidos por eles
mesmos. Eles afirmam que não se ensina corretamente sobre o perdão dos pecados, que o perdão
é recebido gratuitamente pela fé em Cristo, e não aceitam que a fé signifique confiar na
misericórdia de Deus. Pelo contrário, eles sempre ordenam que duvidemos se estamos em graça.
Além disso, afirmam que merecemos o perdão devido ao arrependimento e ao amor. No entanto,
o arrependimento ou a dor ou o medo, sem a confiança na misericórdia, levam à desesperança,
como Paulo diz: “A lei produz ira”. Eles também afirmam que os regenerados devem obedecer à
lei de Deus, que são justos por cumprir a lei e que isso em si é o mérito e o caminho para a vida
eterna. Além disso, afirmam que os regenerados devem duvidar se estão em graça e que devem
permanecer nessa dúvida. Essa dúvida é claramente contrária à ética. Esses erros não são leves,
mas lançam trevas sobre o evangelho, obscurecem o benefício de Cristo, privam as consciências
da verdadeira consolação e distorcem a verdadeira invocação. Portanto, é necessário advertir a
igreja sobre essas questões importantes. Agora, explicarei clara e diretamente o resumo dessa
questão.
Em primeiro lugar, enfatizamos a importância da disciplina e afirmamos que todos os seres
humanos devem ser guiados por ela, ou seja, pela justiça que até mesmo aqueles que não foram
regenerados podem e devem exercer. Como Paulo diz: “A lei é dada para os injustos”. Deus pune
a transgressão da disciplina com punições temporais e eternas. Reconhecemos o valor da
disciplina, pois Paulo a descreve como um tutor que nos leva a Cristo, uma vez que o evangelho
não é eficaz para aqueles que continuam a agir contra sua consciência. Embora de fato nada
humano seja mais belo do que a disciplina, como verdadeiramente disse Aristóteles, que a justiça
é mais formosa do que a Estrela da Tarde e a Estrela da Manhã, não se deve adotar a opinião de
que ela seja o cumprimento da Lei, que mereça a remissão dos pecados, ou que através dela o
homem se torne justo, ou seja, reconciliado com Deus. Paulo diz que os judeus veem o rosto de
Moisés coberto, ou seja, não compreendem corretamente a lei de Deus, que é uma voz que acusa
o pecado na natureza humana e revela a ira de Deus contra o pecado, despertando um verdadeiro
senso de pecado.
No entanto, quando o evangelho ensina sobre a compreensão da lei e o reconhecimento do
pecado, muitos, inflados pela convicção de sua própria sabedoria, consideram isso como meras
exagerações desnecessárias, seguindo a filosofia estoica. Eles argumentam que a disciplina em si
já é bastante desafiadora e que não se requer mais nada, afirmando que qualquer esforço
adicional merece o perdão dos pecados e é considerado justiça aos olhos de Deus. Essas
concepções errôneas foram distorcidas por Orígenes e pelos monges. Portanto, é necessário
compreender a verdadeira convicção de Paulo diretamente através de suas próprias palavras e em
consonância com o restante das Escrituras proféticas e apostólicas, ao invés de se basear em
opiniões humanas.
Segundo: após termos discutido sobre a disciplina, agora voltamos nossa atenção para a
causa. A pregação da igreja tem sido a mesma desde o princípio, desde Adão até o fim. Já no
paraíso, foi estabelecido o ministério da pregação do arrependimento, juntamente com a
promessa de um Salvador vindouro, pela qual os primeiros pais entendiam que seriam aceitos
por Deus. Ao longo do tempo, essa promessa foi gradualmente revelada com maior clareza, até a
pregação de Cristo, que Ele mesmo exercia esse ministério. Ele também ordenou aos apóstolos
que continuassem com esse mesmo ministério, dizendo: “Vão e anunciem a necessidade de
arrependimento e a oferta do perdão dos pecados em Meu nome”[79]. Portanto, a pregação do
arrependimento deve sempre ressoar na igreja, sendo proclamada pela voz da lei, por meio da
qual Deus acusa nossos pecados, tanto os externos quanto os internos, como o temor a Deus, a
falta de amor a Deus e a falta de confiança em Deus. Além disso, a pregação também é feita pela
voz do evangelho, acusando o mundo por não ouvir o Filho de Deus, por não se comover com
Sua paixão e ressurreição, entre outras coisas. Por isso, Cristo disse: “O Espírito Santo
convencerá o mundo do pecado, porque não creem”; e em Romanos 1. 8: “Pois do céu é revelada
a ira de Deus contra toda impiedade e injustiça dos homens”, entre outros versículos.
Assim como Adão ou Davi se assustaram ao ouvir a voz acusadora de Deus, da mesma
forma, uma mente não endurecida ou obstinada se assusta e reconhece que Deus está
verdadeiramente irado com o pecado e o pune. Esses terrores são frequentemente descritos nos
Salmos, onde expressam a falta de saúde e paz devido à ira de Deus por causa dos pecados
cometidos. Além disso, todas as calamidades humanas podem ser entendidas como a voz da lei,
advertindo-nos sobre a ira divina e nos chamando ao arrependimento.
Agora, passamos ao terceiro ponto: quando a mente humana é aterrorizada pela voz
acusadora dos pecados, é necessário que ela ouça a promessa apresentada no evangelho e
reconheça que os pecados são perdoados gratuitamente pela misericórdia de Cristo, e não por
causa do arrependimento, amor ou quaisquer outras obras. Assim, quando a mente se eleva pela
fé, ocorre o perdão dos pecados e a reconciliação com Deus. Se tivéssemos que depender do
arrependimento ou amor suficientes para obter o perdão dos pecados, cairíamos em desespero.
Portanto, para obtermos um consolo certo e firme, é importante entender que o perdão de Deus
não depende de nossa própria dignidade ou mérito, mas é concedido por Sua misericórdia,
prometida em Cristo. Além disso, quando Deus perdoa os pecados, Ele também nos concede o
Espírito Santo, que começa a operar novas virtudes em nós, como é dito em Gálatas 3. 14: “Para
que recebamos a promessa do Espírito mediante a fé”. Essa compreensão não causa perplexidade
e é claramente entendida por mentes piedosas na igreja, que estão familiarizadas com os
exercícios espirituais, temores, consolações e invocações a Deus.
Para aprofundar nosso entendimento, devemos acrescentar testemunhos bíblicos sobre
justificação, fé e graça. Antes de fazer isso, é importante esclarecer cuidadosamente os termos
para evitar mal-entendidos e confusões.
Já foi tratado anteriormente sobre o pecado e a lei. Agora abordarei outros temas, como a
justificação, a fé e a graça.
A justificação implica o perdão dos pecados, a reconciliação ou a aceitação da pessoa para a
vida eterna. Na perspectiva dos hebreus, a justificação era um termo jurídico, similar a dizer: “O
povo romano justificou Cipião, acusado pelos tribunos”, ou seja, absolveu ou o declarou justo.
Paulo utilizou a palavra “justificar” de acordo com o costume hebraico, para se referir ao perdão
dos pecados, reconciliação ou aceitação. Todos os estudiosos reconhecem a força dessa
expressão hebraica, e existem inúmeros exemplos que a confirmam.
No entanto, como mencionei anteriormente, embora Deus conceda o perdão dos pecados e,
ao mesmo tempo, outorgue o Espírito Santo, que inicia a manifestação de novas virtudes, a
mente, atormentada, busca primeiramente o perdão dos pecados e a reconciliação. Ela se
angustia e luta contra esse medo real, sem entrar em discussões sobre quais virtudes são
infundidas, embora acompanhem a reconciliação. No entanto, não devemos julgar, de forma
alguma, que nossa dignidade ou pureza sejam a causa do perdão dos pecados. É por isso que a
palavra “gratuitamente” é repetida tantas vezes.

SOBRE O TERMO “FÉ”.


A frase demanda uma análise cuidadosa, a fim de compreendermos o que Paulo quer dizer
quando afirma que “somos justificados não pelas nossas obras, mas pela fé em Cristo”. Para os
ouvintes romanos, essa declaração é inovadora, então devemos buscar inicialmente a
interpretação nativa da língua. Ser justificado pelas obras significa obter o perdão e ser
considerado justo ou aceito por Deus devido às nossas próprias virtudes e ações. Por outro lado,
ser justificado pela fé em Cristo significa obter o perdão e ser considerado justo, isto é, aceito,
não em virtude de nossas próprias virtudes, mas devido ao Mediador, o Filho de Deus. Com essa
compreensão do discurso, podemos perceber como Paulo contrasta essa proposição e a
mensagem do evangelho - “somos justificados pela fé” - com outra voz, que é o julgamento
humano ou a lei - “somos justificados pelas obras”. Assim como João Batista proclama: “Este é
o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, Paulo deseja apresentar e ensinar essa verdade
de que é por causa desse Filho de Deus que o perdão e a reconciliação são concedidos, não
devido às nossas próprias virtudes.
Portanto, quando ele diz: “somos justificados pela fé”, ele quer que você olhe para o Filho de
Deus, que está à direita do Pai, o Mediador que intercede por nós, e reconheça que seus pecados
são perdoados, que você é considerado justo, ou seja, aceito, pronunciado como tal por causa
desse mesmo Filho, que foi a vítima sacrificial. Assim, quando o termo “fé” nos remete a esse
Mediador e o aplica a nós, a fé não se limita apenas ao conhecimento histórico, mas envolve
confiar na misericórdia prometida por causa do Filho de Deus. E essa proposição correlata deve
ser sempre compreendida: somos justos pela fé, ou seja, somos aceitos por confiarmos na
misericórdia devido a Cristo, não por causa de nossas próprias virtudes. Pois essa misericórdia é
alcançada pela fé ou confiança. Esse é o objetivo de Paulo ao nos apresentar esse Mediador e
Cordeiro, diminuindo a glória de nossa própria justiça e testemunhando que somos recebidos por
meio desse Propiciador. Não há dúvida de que essa é a intenção de Paulo, e isso é evidente na
igreja, onde essa afirmação é reconhecida como verdadeira e certa. Pois todos os santos
confessam que, mesmo quando possuem novas virtudes, não recebem o perdão dos pecados e a
reconciliação por causa delas, mas por causa do Filho de Deus, o Propiciador. Portanto, é
necessário entender dessa forma essa declaração: “pela fé, obtemos o perdão”, ou seja, por meio
dessa confiança, somos aceitos devido ao Filho de Deus.
Aqueles que se opõem a essa explicação consideram essa declaração vazia e sem sentido:
“justificados pela fé, temos paz”. Além disso, eles não compreendem a luta interna da
consciência, que enfrenta medos e dúvidas quando angustiada pelo perdão dos pecados, nem
conhecem os temores presentes na verdadeira penitência. Se eles levassem isso em consideração,
perceberiam que as mentes aterrorizadas buscam consolo fora de si mesmas, e esse consolo é a
confiança com a qual a vontade se conforma à promessa da misericórdia concedida por meio do
Mediador. Essa confiança abrange tanto a misericórdia quanto o conhecimento da história, pois a
fé contempla Cristo, reconhecido como o Filho do Deus eterno, crucificado e ressuscitado por
nós, etc. A história deve ser referida à promessa ou efeito que é apresentado neste artigo, ou seja,
“creio no perdão dos pecados”. Novamente, esse próprio artigo nos lembra que a fé deve ser
compreendida como confiança, pois aqueles que não confiam que seus pecados serão perdoados
em vão proferem essas palavras: “creio no perdão dos pecados”.
Após falar sobre o significado da proposição “somos justificados pela fé”, agora adicionarei
testemunhos que demonstram que a fé nessa doutrina do evangelho significa confiança na
promessa de misericórdia por causa de Cristo.
Alguns debatem sobre a palavra “πιστις” (pistis) e não desejam entender nada além da
doutrina, ou seja, a profissão do credo, como comumente se diz: a fé nicena pela doutrina ou
coleção de dogmas. No entanto, é evidente que a palavra “πιστευω” (pisteuō) possui vários
significados em grego, e não há dúvida de que as palavras que significam crer e confiar são
usadas indistintamente na frase hebraica, como no Salmo 2. 12: “Bem-aventurados todos os que
n’Ele confiam”. Aqui, os hebreus leem “Hose”( ‫ ;)חסו י‬e o que Paulo cita de Isaías 28. 16:
“Quem crer não se apressará”, está na leitura hebraica como “Hamaëmin”( ‫)ַהַמֲּאִמי ן‬. Na língua
hebraica, a mesma palavra que significa crer é frequentemente usada para confiar, como em
Daniel 6. 23: “porque confiou em seu Deus”, e no Salmo 78. 22, dois sinônimos são unidos:
“porque não creram em Deus e não confiaram em seu Salvador”. E existem exemplos claros nos
discursos de Cristo: “Ó mulher, grande é a sua fé”; também: “A sua fé lhe salvou”. Nessas e em
outras expressões semelhantes, é evidente que a fé significa confiança. Portanto, não há dúvida
de que Paulo segue a frase hebraica. Além disso, existem inúmeros exemplos entre os gregos em
que “πιστευω” simplesmente significa “confiar”, como no verso popular de Fócilo: “Não confie
nas pessoas, a multidão é volúvel”[80].
E no quarto discurso de Demóstenes nas Filipícas: “Você confia no significado de ser aliado
e na força das armas?”; e contra Andócion: “Você confia em si mesmo”; e Plutarco perguntou a
Sólon por que ele se atrevia a se opor a Pisístrato, ao que ele respondeu: “Pela minha velhice”.
Nesse trecho, está escrito: “Em que confias?”. Não seria difícil reunir uma série de testemunhos:
entendamos o poder da palavra “πιστευω” e saibamos que ela significa tanto assentimento
quanto confiança. O termo “fé” é mais vago para os gregos, mas nós sabemos que na igreja
significa assentimento firme e confiança, que também é chamada de “πεποιθησις” (pepoithēsis).
E esta é a verdadeira definição da fé: a fé é assentir a toda a palavra de Deus apresentada a nós, e,
portanto, também é confiança na promessa gratuita de reconciliação concedida por causa de
Cristo, o Mediador. E é a confiança na misericórdia de Deus prometida por causa de Cristo, pois
a confiança é o movimento na vontade que necessariamente responde ao assentimento, ou seja,
quando a vontade se conforma a Cristo, e quando isso acontece, ela é inflamada pelo Espírito
Santo e por uma nova luz, como explicarei posteriormente. No entanto, é muito comum usar
“πιστις” para significar um assentimento firme, no qual a significação se opõe à opinião incerta.
Assim, Platão diz que as pessoas não têm “μονιμον πιστιν” (monimon pistin) em relação à ideia
do Bem, ou seja, um assentimento estável; embora as pessoas entendam o que é correto, o
assentimento é afastado devido à obstinação do coração e às más paixões.
E está próximo o significado: confiança, como em um verso de Teognis: “Perdi confiança
em palavras, devido à falta de confiança nas ações”; e em Hesíodo: “A confiança e a falta de
confiança foram fatais”. No entanto, existem outras significações, sendo a principal: “πιστις”
(pistis) em relação à lealdade, ou seja, em relação à observância de um pacto. Ao considerar onde
isso ocorre nas Sagradas Escrituras, é necessário examinar cuidadosamente, pois certamente na
avaliação de controvérsias eclesiásticas, a verdadeira significação das palavras deve ser buscada
em consonância com a sentença adequada. Para isso, é necessário recorrer ao estudo das línguas.
Com frequência, como mencionei, “πιστις” (pistis) significa lealdade, como no verso de
Sófocles: “A lealdade morre, a falta de confiança floresce”, ou em outros contextos, como em
Políbio: “Eles se destacavam pela lealdade e pela excelência geral”, referindo-se àqueles que
cumpriam pactos com lealdade, ou o que significa o mesmo, pela fidelidade, ou seja, pela
autoridade que lhes era concedida, o que os tornava fiéis, cumpridores dos pactos, justos e
benfeitores. Em seguida, surgem muitos significados decorrentes disso, que não têm relevância
para a discussão de Paulo: Políbio usa “πιστις” (pistis) para se referir a “entregar-se à fidelidade
dos romanos”, ou seja, entregar-se à obediência aos pactos dos romanos, à justiça moderada pela
clemência; do mesmo modo, “πιστεις” (pisteis) significa “prometer fidelidade” nos discursos
retóricos e em Aristóteles, e também pode significar “provas”, “argumentos” ou “testemunhos”.
Essas metonímias não devem ser atribuídas à discussão de Paulo. Infelizmente, a igreja, como é
dito em um verso grego, verdadeiramente esqueceu sua língua materna entre os bárbaros, os
monges obscureceram os verdadeiros significados, inventando um novo tipo de doutrina. Por
isso, que os piedosos voltem aos profetas e apóstolos e voltem a aprender e restaurar a língua
própria da igreja. E é evidente pelos testemunhos seguintes que Paulo quer que entendamos a
confiança na misericórdia através da palavra “fé”. Romanos 4. 16 afirma que a promessa é
conferida à fé como correlativa: “Portanto, é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim de que
a promessa seja firme”. Aqui ele explicitamente pede que creiamos na promessa e, para que
possamos crer, ele diz que é gratuita, porque se a condição da lei cumprida fosse adicionada, isso
levaria à desesperança: você agradaria a Deus se satisfizesse a lei; mas Paulo diz que a promessa
é gratuita para que seja firme para quem crê. Portanto, ele quer que creiamos na promessa; crer
nisso é verdadeiramente abraçar essa confiança na promessa. Essa explicação não pode ser
abalada.
Além disso, devemos considerar o poder da promessa do Evangelho. Se não fosse necessário
crer, a promessa em si seria vazia e sem sentido. No entanto, a promessa foi dada para que
possamos crer nela gratuitamente. Por que João diz: “Quem não crê em Deus o faz mentiroso”?
E por que Paulo afirma: “Ele não duvidou por falta de confiança, mas permaneceu firme na fé,
dando glória a Deus e tendo a certeza, etc.”? Isso claramente mostra que é necessário crer na
promessa. Por que então se ouve essa voz na igreja: “Por causa do Filho de Deus, seus pecados
são perdoados”, se não é necessário crer nisso? O que isso seria senão acusar Deus de mentir,
como João diz?
Romanos 5. 1 declara: “Justificados pela fé, temos paz”. No entanto, o conhecimento
histórico não traz paz; pelo contrário, aumenta medos e desespero, como ocorre com os
demônios. Pois que sinal da ira de Deus é mais terrível do que o fato de que somente a morte do
Filho poderia aplacá-Lo? Os demônios sabem que foram rejeitados, sabem que o Filho de Deus
foi estabelecido como juiz e que sofrerão punição eterna. Os seres humanos veem muitos sinais
verdadeiramente aterrorizantes da ira de Deus contra os pecados, bem como inúmeras outras
calamidades. E então, esse mesmo sinal de que a ira de Deus só pode ser aplacada pelo Filho. O
conhecimento dessa história aumenta os medos, a menos que a fé seja uma confiança que nos
aplica esse benefício, a menos que seja afirmado que o Filho de Deus sofreu para que
pudéssemos ser perdoados, mesmo que tenhamos agido mal. Essa confiança consola a mente
aterrorizada e traz paz.
A mesma explicação se aplica a muitos outros testemunhos, como “O justo viverá pela fé”.
Certamente, o conhecimento histórico não traz vida; pelo contrário, aumenta tormentos. Nem o
conhecimento da lei traz vida, pois apenas se tivermos virtudes suficientes, seremos aceitos.
Portanto, é necessário compreender a fé que estabelece que Deus está reconciliado conosco e se
contenta com a promessa de misericórdia!
Da mesma forma, é essencial compreender a declaração: “Todo aquele que crê n’Ele não
será confundido”. Isso também é evidente no Salmo que diz: “Beijem o Filho; bem-aventurados
todos os que n’Ele confiam”, onde a palavra hebraica especificamente significa confiar.
Efésios 3. 12 afirma: “por meio de quem temos ousadia e acesso com confiança, pela fé
n’Ele...”. Aqui, Paulo descreve a natureza da fé com três palavras distintas: ousadia, acesso
confiante. É uma grande coisa se aproximar de Deus, um juiz verdadeiramente irado com o
pecado. Mais uma vez, o conhecimento histórico nos afasta, a menos que afirmemos que o Filho
é nosso guia e Mediador, e que somos conduzidos ao Pai por meio d’Ele. Ter essa convicção é
ter confiança, a qual estamos discutindo. Da mesma forma, Romanos 5. 2 afirma: “por meio de
quem também temos acesso pela fé”; e Hebreus 4. 15-16 declara: “tendo, pois, um Sumo
Sacerdote, aproximemo-nos com confiança do trono da graça”. Com base nessas passagens,
ensinamos e ordenamos que essa confiança esteja presente na oração e que a fé em situações
semelhantes seja compreendida como confiança.
No entanto, muitas pessoas protestam porque não compreendem a importância da fé em
Deus, expressa através da oração. Elas questionam se é pecado duvidar continuamente se somos
aceitos e ouvidos por Deus. Além disso, a verdadeira natureza e prejudicialidade desse pecado
são reveladas na verdadeira luta, pois ao rejeitar a promessa de Deus, estamos essencialmente
acusando-O de mentir.
Em Atos 15. 9, está escrito: “e não fez distinção alguma entre nós e eles, purificando os seus
corações pela fé”. Se a fé significasse apenas conhecimento, assim como nos demônios, essa
declaração seria vazia e sem sentido. No entanto, é evidente que neste mesmo trecho está sendo
discutida a justificação e é afirmado que os corações não são purificados pela observância da lei,
mas sim de outra maneira, ou seja, ao crermos que somos salvos pela graça de nosso Senhor
Jesus Cristo.
Podemos também encontrar vários exemplos nos quais a palavra “fé” é usada no sentido de
confiança, como quando Jesus diz: “Ó homem de pequena fé, por que duvidou?”; ou em Lucas 7.
50, onde Ele declara: “A sua fé lhe salvou”; e em 2 Crônicas 20. 20: “Creiam no Senhor seu
Deus, e estarão seguros”. Nestas declarações, fica claro que a fé é descrita como uma confiança
que espera consolo e ajuda de Deus. Embora os objetos externos variem, o primeiro e principal
objeto da fé é sempre Deus, reconciliado conosco através de Sua promessa de reconciliação.
Assim, quando Davi busca e espera ajuda na batalha, ele afirma que tem um Deus favorável ao
seu lado. Essa variedade de objetos externos e perigos que encontramos em nossa vida são
oportunidades para exercitar a fé e, ao mesmo tempo, receber benefícios espirituais, como nos
ensina a própria oração comum. Por exemplo, depois de pedirmos “o nosso pão diário”,
acrescentamos: “e perdoa-nos as nossas dívidas”. Ao buscar coisas materiais, nossa mente deve
estar voltada para Deus, reconhecendo que somos perdoados, que somos aceitos em Sua graça e,
portanto, somos ouvidos e auxiliados.
Para compreendermos melhor muitas expressões relacionadas à fé, é importante considerar
que a confiança na reconciliação com Deus sempre está presente quando buscamos e esperamos
coisas materiais. Um exemplo disso é Abraão, que procurava um herdeiro de Deus e acreditava
na promessa de ter descendentes. Ao mesmo tempo, Abraão reconhecia e confiava no perdão de
Deus, mesmo sendo indigno, pois sabia que era aceito por Deus através de Sua misericórdia, por
causa do Redentor prometido aos pais. A força da palavra “creu” é testemunhada pela promessa
e consolação anterior: “Não tema, Abraão, eu sou o seu escudo e seu grandíssimo galardão”.
Nessa doce consolação, Deus afirmava ser favorável a Abraão, sendo seu defensor, auxiliador e
salvador. Ao olhar para essa promessa, Abraão confiava que era aceito pela graça de Deus. Por
isso, é dito que essa fé “lhe foi imputada como justiça”.
Finalmente, a definição da fé na Epístola aos Hebreus testemunha que a fé significa
confiança, quando diz: “A fé é a substância (hypostasis, ύποςασις) das coisas esperadas”; pois
está claro para aqueles familiarizados com a frase que hypostasis (ύποςασις) significa
expectativa, ou seja, espera por confiança. Apresentei testemunhos dos profetas e apóstolos, que,
sendo claros, espero que satisfaçam aqueles que julgam corretamente. No entanto, admito que
muitos escritores, como Orígenes e outros, transmitiram um tipo diferente e insincero de
doutrina, mas alguns estudiosos estão realmente de acordo conosco, embora eles também falem
de maneira mais conveniente ou menos conveniente em outras ocasiões.
Em vários trechos, Agostinho oferece testemunhos claros sobre o assunto. Em “De Spiritu et
Littera”, ele afirma: “Pela lei tememos a Deus, pela fé nos refugiamos na misericórdia”. Ele
também diz: “A fé diz: Cura minha alma, pois pequei contra Ti”. Se compreendermos esses
trechos corretamente, veremos que eles se referem apenas à confiança na misericórdia. Um
exemplo mais claro de Agostinho está em seus comentários sobre o Salmo 31, onde ele questiona
quem são os bem-aventurados. Ele conclui que não são aqueles em quem não há pecado, porque
todos pecaram e carecem da glória de Deus. Se todos têm pecados, então só podem ser
considerados bem-aventurados aqueles cujos pecados foram perdoados. Assim, Agostinho
entende a fé como a confiança que recebe o perdão dos pecados e entende perfeitamente o que é
dito em Gênesis e em Paulo, como explicamos.
Além disso, gostaria de acrescentar o testemunho de Bernardo, presente em um sermão sobre
a Anunciação. Ele enfatiza a importância de crer que não se pode obter remissão dos pecados a
menos que seja através da indulgência de Deus, mas também acrescenta a necessidade de crer
que, por meio d’Ele, os pecados são perdoados. Segundo Bernardo, isso é testemunhado pelo
Espírito Santo em nosso coração, quando Ele nos diz: “Seus pecados foram perdoados”. É assim
que o apóstolo crê que o homem é justificado gratuitamente pela fé. Nessa declaração, fica
evidente que a crença na justificação pela fé está em total acordo com a posição de nossas
igrejas, e existem testemunhos semelhantes desse autor.
Basílio também menciona explicitamente nossa visão sobre a humildade em um sermão, ao
afirmar: “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”. Ele ressalta que Cristo se tornou sabedoria,
justiça, santificação e redenção para nós, vindo de Deus, como está escrito: “Aquele que se
gloria, glorie-se no Senhor”. A verdadeira e completa glória em Deus reside quando ninguém se
exalta por sua própria justiça, mas reconhece a necessidade de uma verdadeira justiça. E a
justificação pela fé está em Cristo, como Basílio reafirma.
Por fim, devemos considerar a situação em que nos encontramos. A voz do Evangelho pode
ser melhor compreendida em meio à luta atual do que quando a ouvimos de maneira
despreocupada e segura, como se estivéssemos distantes dessas questões. Quando estamos
verdadeiramente abatidos pelo medo e pelo temor da ira de Deus, como encontraremos consolo?
Não será necessário buscar refúgio no Mediador, Cristo? Devemos pensar: “Creia que você é
perdoado por causa do sacrifício dessa vítima, como o Evangelho nos ordena a crer em todos os
lugares, que o Filho de Deus morreu por nossos pecados, como está escrito em Romanos 4?”.
Devemos também pensar: “Por meio do Filho, temos acesso a Deus” (Romanos 5). Além disso, a
fé pela qual encontramos consolo é, sem dúvida, confiança e descanso no Filho de Deus. Não
devemos pensar assim: “Agora eu amo a Deus, agora tenho virtudes e méritos, portanto Deus me
receberá”. Ao considerar essa luta e esse consolo, entenderemos que existem medos e que a
confiança se eleva quando contemplamos o Filho de Deus. Podemos expressar isso com as
palavras que desejarmos, mas os profetas e apóstolos usam o nome “fé” para se referir a esse
assunto.
Da mesma forma, todos os piedosos devem considerar sua invocação diária a Deus. Sempre
que começamos a invocar a Deus, nossa indignidade múltipla ecoa em nossas mentes, dizendo
que nossas orações não serão aceitas. Surge então a necessidade de algum consolo, e qual seria?
Certamente não devemos pensar: “Agora tenho virtudes cuja dignidade merece que minhas
orações sejam aceitas”, mas devemos buscar o Mediador que nos foi dado; devemos pensar
naquela voz que diz: “Venham a Mim todos os que estão cansados e oprimidos, e Eu os
aliviarei”; também: “Tudo o que pedirem ao Pai em Meu nome, Ele os dará”; também Hebreus 7.
25: “Vive sempre para interceder por eles”. Portanto, devemos crer que a invocação agrada a
Deus e é aceita por causa desse Sumo Sacerdote que intercede. Crer nisso, certamente, é ter fé
que eleva e consola a mente. Lutamos por essa questão, por esse consolo, usando as palavras que
outros desejam, mas queremos manter a essência. Aqueles que discordam obscurecem a própria
questão, sempre suscitando dúvidas e, de fato, enterrando Cristo, pois não ensinam a buscar
consolo n’Ele, não ordenam que aproveitemos seu benefício. Pois se a fé não é confiança que
olha para Cristo e se satisfaz n’Ele, certamente não estamos aplicando seu benefício a nós
mesmos, nem fazendo uso de Seu benefício. Portanto, a fé deve ser entendida como a confiança
que aplica a nós o benefício de Cristo.
Portanto, quando dizemos que somos justificados pela fé, estamos simplesmente afirmando
que, por causa do Filho de Deus, recebemos o perdão dos pecados e somos considerados justos
diante de Deus. E porque esse benefício precisa ser apropriado, é dito que é pela fé, ou seja, pela
confiança na promessa da misericórdia divina por causa de Cristo. Portanto, entenda a
proposição de forma correlata: “Somos justos pela fé”, ou seja, somos justos ou aceitos pela
misericórdia divina por causa do Filho de Deus. A natureza relativa dos nomes é amplamente
conhecida, e assim como os nomes de afetos como amor e temor são relativos em relação ao seu
objeto, o mesmo ocorre com a confiança. Não temo aqui as censuras vazias dos ignorantes.
Resumi brevemente essas questões relacionadas ao termo “fé”, que não são complexas ou
sofisticadas, mas são verdadeiramente congruentes com a frase hebraica. Portanto, esta é a
definição: fé é o consentimento dado a toda a Palavra de Deus que nos é apresentada,
especialmente a promessa gratuita de reconciliação por meio de Cristo, o Mediador; e é a
confiança na misericórdia de Deus prometida por meio de Cristo, o Mediador. Pois a confiança é
um movimento da vontade que necessariamente acompanha o consentimento. E a fé é uma
virtude que compreende e aplica as promessas, trazendo paz aos corações, como claramente
ensinam estas palavras: “Justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus
Cristo, por meio de quem também temos acesso, pela fé, a esta graça”. Quando falamos do
consentimento à promessa, estamos abrangendo o conhecimento de todos os artigos da fé, e os
demais artigos do Credo estão relacionados a este: “Creio no perdão dos pecados; creio na vida
eterna”. Pois essa é a essência das promessas e o objetivo ao qual os demais artigos se referem,
uma vez que o Filho de Deus foi enviado para, como João afirma, destruir as obras do diabo, ou
seja, remover o pecado e restaurar a justiça e a vida eterna.

SOBRE O TERMO “GRAÇA”.


Até mesmo os filósofos reconheceram que uma virtude excelente não pode existir sem uma
influência divina, assim como a coragem em Alexandre era considerada um impulso divino. Os
monges compreenderam essa noção de graça como o despertar de novas virtudes pelo Espírito
Santo. Quando se fala em “receber o perdão pela graça”, eles interpretaram isso como receber
com base nessas virtudes despertadas. Essa interpretação entra em total conflito com Paulo; eles
também não mencionaram nada sobre a fé em Cristo ou a confiança na imputação gratuita.
Portanto, a concepção deles é em grande parte filosófica e obscurece o benefício de Cristo e a
doutrina da imputação gratuita. É, portanto, de extrema importância compreender corretamente,
verdadeiramente e adequadamente o termo “graça”.
Em Romanos 5, encontramos duas expressões: “graça” e “dádiva pela graça”. A graça
refere-se ao perdão gratuito dos pecados, à misericórdia ou à aceitação gratuita. Por outro lado, a
dádiva pela graça significa a concessão do Espírito Santo e da vida eterna, ou seja, a justiça e a
vida nova e eterna que começam aqui e são plenamente realizadas posteriormente. Da mesma
forma, em João 1. 17, é dito: “A lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por
Jesus Cristo”. A graça é mencionada como o perdão gratuito dos pecados ou a aceitação por
meio do Mediador. Já a verdade refere-se à verdadeira luz, ou seja, o verdadeiro conhecimento
de Deus, a verdadeira justiça e a vida verdadeira e eterna, que começam aqui, mas são
plenamente realizadas posteriormente. Pois está se referindo a todos os benefícios de Cristo,
como se dissesse: “Vocês receberam a lei, mas ela não remove o pecado nem a cegueira nas
mentes”, ou seja, as dúvidas sobre Deus e a revolta contra Ele, o juiz. Além disso, a lei não traz a
verdadeira justiça eterna, mas apenas uma disciplina externa que é temporária e não é uma
justiça eterna, duradoura e perpétua.
Através do Messias, recebemos esses imensos dons: em primeiro lugar, a graça, que
significa o perdão gratuito dos pecados e a imputação da justiça; em segundo lugar, também a
verdade, que é a verdadeira luz, o conhecimento de Deus, a verdadeira e eterna justiça e vida.
Portanto, embora o termo “graça” se refira ao perdão gratuito dos pecados ou à misericórdia,
também reconhecemos que inclui a doação do Espírito Santo. Condenamos claramente o erro de
Pelágio, que negava a necessidade da doação do Espírito Santo e removia completamente a
distinção entre filosofia e evangelho, afirmando que os seres humanos podem cumprir a lei de
Deus apenas com base na filosofia. Afirmamos que é impossível alcançar uma nova e eterna vida
sem o Espírito Santo, conforme proclamado nas escrituras sagradas.
Portanto, esta é a definição de graça: é o perdão dos pecados; a misericórdia prometida por
causa de Cristo; a aceitação gratuita que sempre está acompanhada pela doação do Espírito
Santo. Para aqueles familiarizados com a frase hebraica, não é difícil entender o significado
dessa palavra, pois ela muitas vezes denota favor e, às vezes, doação.
Agora, apresentarei testemunhos que confirmam que a graça, nesse contexto, especialmente
significa misericórdia gratuita e reconciliação: Romanos 4. 4 diz: “Aquele que trabalha recebe o
salário não como favor, mas como dívida”. Aqui, fica claro que a graça é entendida como um
favor gratuito ou imputação, pois há uma antítese: o salário é algo devido ao trabalho, mas para
aquele que crê, mesmo sem méritos, a justiça é imputada gratuitamente.
Além disso, Paulo continua em Romanos, afirmando: “Portanto, pela fé, para que seja
segundo a graça, a fim de que a promessa seja firme”, ou seja, para que a reconciliação seja
certa. Isso não depende da nossa própria dignidade, mas é um presente gratuito. Se crermos que
o perdão é alcançado apenas se formos dignos e puros, seremos consumidos por uma dúvida e
desespero infinitos.
Em Romanos 6. 14, Paulo afirma: “Pois não estão debaixo da lei, mas debaixo da graça”.
Aqui, ele trata exatamente disso, de que somos aceitos por Deus por causa do Filho, e não por
causa da nossa própria dignidade, uma vez que mesmo os regenerados ainda têm fraquezas e
pecados. Portanto, a graça significa a misericórdia gratuita prometida por causa do Filho.
Em Romanos 5. 20, encontramos a seguinte afirmação: “Onde abundou o pecado,
superabundou a graça”. Isso significa que, embora o pecado seja condenado com a terrível ira de
Deus, que nenhuma criatura pode compreender completamente, a graça transborda, ou seja, a
misericórdia prometida por causa de Cristo é maior. É por meio dessa graça que recebemos o
perdão, a reconciliação e a abundância de misericórdia. Portanto, não devemos confiar em nossa
própria virtude ou obediência.
Similarmente, em Hebreus 4:16, lemos: “Aproximemo-nos do trono da graça, para que
recebamos misericórdia e achemos graça para socorro oportuno”. O trono da graça refere-se ao
próprio Mediador, como se estivesse dizendo que é através do Mediador que a ira do Pai é
aplacada.
No entanto, uma vez que a frase hebraica é conhecida pelos eruditos, não é necessária uma
discussão mais longa, mas é necessário considerar cuidadosamente o seguinte: a partícula
exclusiva “gratuitamente”, frequentemente repetida por Paulo, está presente na definição da
graça. Essa partícula exclusiva significa que a reconciliação é concedida por causa do Filho de
Deus, o Mediador, não por causa de nossa dignidade, não por causa de nossos méritos, não por
causa de nossas virtudes ou obras. No entanto, essa partícula não exclui as próprias virtudes, mas
exclui a condição de dignidade ou mérito, transferindo a causa da reconciliação apenas para o
Filho de Deus. No caso da confissão de Pedro, é necessário haver arrependimento e fé, através
dos quais ele busca o perdão, e também é necessário seguir outras virtudes. No entanto, é
fundamental afirmar e manter a seguinte verdade: o perdão dos pecados é concedido
gratuitamente, não por causa das virtudes de Pedro, mas por causa do Filho de Deus.
Para enfatizar a importância correta dessa partícula exclusiva, apresentarei quatro razões
pelas quais é necessário defendê-la e mantê-la.
A primeira razão é que se deve atribuir a devida honra a Cristo. A segunda razão é para que
a consciência possa ter uma consolação certa e firme, e para rejeitar o pernicioso erro daqueles
que promovem a dúvida. A terceira razão é para que a verdadeira invocação possa ser realizada.
A quarta razão é para que a distinção entre a lei e o evangelho possa ser claramente
compreendida.
Mencionei brevemente essas razões para que estejam sempre diante de nós, mas cada uma
delas deve ser cuidadosamente considerada.
A primeira razão é para que a devida honra seja atribuída a Cristo. Aqueles que transferem a
causa do perdão para as obras dos seres humanos cometem dois erros graves: diminuem a ira de
Deus contra o pecado e retiram a honra que é devida ao Filho de Deus. Essas pessoas não
compreendem a magnitude da ira divina nem a gravidade do pecado. Elas imaginam que essa ira
possa ser aplacada por meio de esforços humanos e veem Cristo apenas como um mestre ou
legislador que nos ensina a disciplina, e não como a vítima pelos nossos pecados. No entanto,
João clama: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, e Isaías 53. 10 diz: “Quando
der a Sua alma como oferta pelo pecado, verá a Sua descendência e prolongará os Seus dias”.
A segunda razão é para que a consciência possa ter uma consolação certa e firme. Paulo
também enfatiza isso em Romanos 4. 16: “Portanto, é pela fé, para que seja segundo a graça, a
fim de que a promessa seja firme”. Essa afirmação será mais clara para aqueles que
experimentam a verdadeira luta de uma mente atormentada. Sabemos, pela lei e pela razão
natural, que Deus é bom e misericordioso, mas isso se aplica apenas àqueles que não são
culpados. O verdadeiro desafio não é se Deus é misericordioso, mas se Ele está disposto a
perdoar VOCÊ, que está manchado pelo pecado e é culpado, e por qual motivo. Nesse momento,
é crucial ouvir a voz do evangelho sobre tal exclusividade e o Mediador, que declara que Deus
realmente deseja receber você gratuitamente, não por causa de sua dignidade ou méritos, mas por
causa do Filho de Deus, e essa verdade deve ser crida. Ignorar essa exclusividade alimenta a
dúvida e, se crer que seus pecados não serão perdoados a menos que você tenha uma contrição
ou amor dignos o suficiente, a dúvida persistirá, levando ao desprezo a Deus, ao ódio e ao
desespero. Isso pode ser facilmente observado pelos piedosos. Embora a dúvida esteja presente
nas mentes humanas, devemos resisti-la e fortalecer a fé de que Deus realmente deseja receber e
ouvir você por causa do Filho. Devemos rejeitar o erro ímpio daqueles que, ignorantes do
evangelho, seguem apenas o julgamento da razão humana e promovem a dúvida, fingindo que a
dúvida não é pecado. É necessário denunciar esse pernicioso erro, pois é, de fato, um pecado não
receber a promessa e não atribuir louvor à verdade de Deus, como está escrito em 1 João 5. 10:
“Aquele que não crê em Deus O faz mentiroso”. Suprimir a voz que ressoou dos céus, dizendo:
“Ouça a Ele”, é uma blasfêmia.
A terceira razão para a invocação está relacionada às razões anteriores e requer uma
distinção entre a invocação pagã e a invocação cristã. Os pagãos fazem suas invocações, mas
duvidam se Deus os vê e recebe suas orações, como frequentemente lamentam em seus poemas:
“Eles não olham, não ouvem os aflitos por Deus”. Além disso, quando estão verdadeiramente
sofrendo e suas mentes fogem de um Deus irado, como foi o caso de Saul, eles certamente não
invocam. Por outro lado, o evangelho ensina uma invocação na qual a fé resplandece. Mesmo
que a necessidade grite em seus ouvidos toda vez que eles começam a invocar, a fé contempla o
Filho de Deus, o Mediador, e estabelece que eles e suas orações são recebidas por causa desse
Sumo Sacerdote, como está escrito: “Tudo o que pedirem ao Pai em Meu nome, Ele os dará”. E
também: “Por meio d’Ele temos acesso a Deus”. Essa invocação é característica da verdadeira
igreja, mas completamente desconhecida por aqueles que não conhecem a doutrina do perdão
gratuito, ou dessa exclusividade, sobre a qual Paulo prega quando repete a partícula
“gratuitamente”. Assim, Daniel também invoca no capítulo 9, versículo 18: “Não suplicamos
com base em nossa justiça, mas em Tua grande misericórdia, por amor do Senhor”. Nada mais
queremos ou ensinamos sobre a exclusividade além do que Daniel expressa aqui; e há muitos
exemplos nos Salmos que são tão reconfortantes para os piedosos, se entendermos a
reconciliação gratuita, pois “com o Senhor há misericórdia”. Se acrescentarmos: “para os dignos,
suficientemente meritórios”, será uma voz que inspira temor pela lei; mas se entendermos de
acordo com o evangelho, como Paulo ensina e o Salmo expressa: que a misericórdia nos recebe
certamente por causa do Mediador, gratuitamente, esta palavra traz conforto e chama a mente
fugitiva para Deus, e a desperta para a verdadeira invocação.
A quarta razão é destacar a diferença entre a lei e o evangelho. Embora a lei tenha suas
promessas, ela não promete o perdão dos pecados, a reconciliação ou a imputação da justiça de
forma gratuita. A lei declara justo aquele que oferece obediência perfeita e está sem pecado,
como as palavras “Maldito aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas na
lei” e “Aquele que fizer estas coisas, viverá por elas” mostram claramente. Por outro lado, o
evangelho nos apresenta o Filho de Deus como Mediador e proclama que a reconciliação é
concedida gratuitamente por causa Dele. Portanto, a partícula “gratuitamente” estabelece uma
distinção marcante entre a lei e o evangelho, e se essa distinção for perdida, haverá uma grande
confusão no entendimento do evangelho. Surgirá a opinião de que o perdão é concedido por
causa de nossas obras, e uma vez que esse erro for aceito, a doutrina da fé, a verdadeira honra de
Cristo e o consolo firme das consciências serão obscurecidos.
Expliquei a importância de reter a exclusividade, mas também é necessário compreendê-la
corretamente. Quando Paulo diz que “pela fé, gratuitamente, obtemos a remissão por meio de
Cristo”, ele não está negando a contrição naqueles que se convertem, nem está negando que
outras virtudes sigam esse arrependimento. Pelo contrário, ele deseja que esses elementos
estejam presentes. No entanto, ele exclui a condição do mérito ou de nossa própria dignidade,
negando que a contrição e nossas virtudes sejam a causa da reconciliação, e afirma que a causa é
o mérito de Cristo, o Mediador. A sentença é clara e verdadeira: “Pela fé, gratuitamente,
recebemos a reconciliação por causa de Cristo, não por nossa própria dignidade”. Essas
afirmações são diretas, verdadeiras, desprovidas de qualquer sofisma ou complexidade.
Quando afirmamos que somos “justificados somente pela fé”, estamos simplesmente
reiterando o que já foi dito: “pela fé, gratuitamente, obtemos o perdão dos pecados por causa de
Cristo, não por nossa própria dignidade”. O termo “somente” não exclui a contrição ou outras
virtudes, para que não estejam presentes; mas nega que elas sejam causas da reconciliação e
atribui a causa exclusivamente a Cristo. Essas afirmações devem ser compreendidas como
correlacionadas: pela fé, isto é, confiando em Cristo, somos justificados, isto é, somos
considerados justos por causa de Cristo; gratuitamente, isto é, não por nossa própria dignidade. E
isso deve ser crido para que possamos receber o benefício de Cristo e descansar nas promessas
de misericórdia por causa d’Ele.
Agora vou apresentar testemunhos de Paulo que verdadeiramente afirmam que essa é a
doutrina da justificação no evangelho que mencionei, ou seja, que devemos crer que, por causa
do Filho de Deus, obtemos gratuitamente, pela fé, o perdão dos pecados e somos considerados
justos, isto é, aceitos por Deus para a vida eterna. Esses testemunhos são úteis não apenas para
refutar os oponentes, mas principalmente para fortalecer e despertar a fé em nossa invocação,
pois esse culto, essa prática, é especialmente exigido por Deus. Ao realizar esse culto, prestamos
verdadeira honra ao Filho de Deus quando O invocamos e oferecemos nossas orações por meio
d’Ele, entregando-as ao Pai eterno.
Romanos 3. 23 apresenta a proposição central dessa discussão em várias palavras: “Todos
pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por Sua graça,
por meio da redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs como propiciação, pela fé em
Seu sangue”. No início, para mostrar que os seres humanos não são justos por sua própria
pureza, Paulo declara: “Todos são culpados e carecem da glória de Deus”, ou seja, da sabedoria e
da justiça que Deus aprova e considera como glória. Em seguida, ele acrescenta como somos
reconciliados, afirmando: “sendo justificados”, o que significa que recebemos o perdão dos
pecados e somos considerados justos ou aceitos gratuitamente por Sua graça, ou seja, Sua
misericórdia gratuita por causa de Cristo, a quem Deus propôs como propiciador. Ele também
enfatiza que somos justificados pelo Seu sangue, ou seja, a ira de Deus é aplacada pela morte do
Filho. No entanto, esse benefício deve ser aplicado pela fé: devemos afirmar que é
verdadeiramente propício a Deus por causa desse Propiciador e de Sua morte, não por causa de
nossa própria dignidade. Essa fé é uma confiança que traz paz e vida aos corações, como já foi
mencionado em relação à fé, e que descansa em Cristo.
Em seguida, no capítulo 4, Paulo confirma e fortalece a proposição anterior, apresentando
testemunhos e argumentos adicionais. O primeiro testemunho é extraído do livro de Gênesis,
onde ele demonstra que essa doutrina da justificação é uma realidade contínua na igreja. Ele cita
o exemplo de Abraão, que é reconhecido como o primeiro a ter sua fé registrada como justiça por
Deus. Paulo traz à tona esse evento marcante na história, destacando Abraão como um exemplo
para que outros possam aprender sobre as promessas de Deus e o verdadeiro culto a Ele: “Abraão
creu em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça”.
No entanto, antes de apresentar outros argumentos de Paulo, é importante refutar certas
calúnias daqueles que tentam distorcer suas palavras. Há muitas pessoas profanas que desprezam
Paulo e afirmam que ele distorce as palavras de outros em favor de sua própria causa, seja por
ignorância ou sofismas. Por essa razão, elas não valorizam nem os escritos nem a autoridade de
Paulo. No entanto, esses julgamentos ímpios surgem da própria ignorância delas. Como não
compreendem o exercício da fé com verdadeiro temor, não é surpreendente que não enxerguem a
consistência nas palavras que são citadas aqui. E as pessoas costumam odiar ou arrogantemente
desprezar aquilo que não entendem. No entanto, que os piedosos saibam que a voz dos apóstolos
deve ser ouvida como a voz de Deus ecoando dos céus. Eles devem saber que Paulo não está
brincando com ilusões nem falando falsidades por engano, mas sim entendendo sua causa e
explicando corretamente.
Entretanto, os oponentes, na tentativa de desacreditar as palavras sobre a fé, inventam
interpretações e afirmam que a sinédoque está relacionada à fé, ou seja, que é formada, como
eles dizem, pela inclusão de outras virtudes que são congruentes com a profissão. Eles
compreendem a fé como um conhecimento histórico e, na realidade, consideram uma pessoa
justa não pela fé, mas pelas outras virtudes. No entanto, é evidente que essa sinédoque entra em
conflito com o próprio Paulo. Pois Paulo repete tantas vezes a partícula “gratuitamente” para
mostrar que não alcançamos a reconciliação por meio de nossas virtudes, mas sim por meio do
Mediador. Portanto, quando ele diz “pela fé”, ele nos direciona a olhar para esse Mediador e
afirmar que somos filhos de Deus por meio n’Ele, não por meio de nossas virtudes. Isso entra
claramente em conflito com a sinédoque proposta pelos opositores.
Em seguida, Paulo reconhece a perpetua dúvida trazida por essa sinédoque: se basearmos
nossa justificação em méritos suficientes, então estaremos bem. No entanto, essa dúvida entra em
conflito manifesto com a doutrina de Paulo, conforme o seguinte: “Justificados pela fé, temos
paz”. No entanto, a dúvida traz consigo o desespero e o ódio a Deus.
Apresentamos os testemunhos que claramente expressam a exclusividade da fé, rejeitando a
interpretação equivocada da sinédoque. Não estamos inventando interpretações para as palavras
de Paulo, mas seguindo uma análise cuidadosa, levando em consideração todas as suas epístolas,
bem como as palavras proféticas. Além disso, consideramos o julgamento da verdadeira igreja,
que compreende a doutrina do perdão dos pecados e a prática da fé.
Os oponentes reconhecem que estão se afastando do sentido literal das palavras, ao
afirmarem que a fé, na verdade, significa outras virtudes além da própria fé, e se orgulham dessa
interpretação enganosa. No entanto, uma vez que essa interpretação entra em conflito direto com
as próprias palavras de Paulo, ela deve ser criticada e rejeitada. Devemos eliminar toda
sofisticação e obscuridade tanto em nossa vida cotidiana quanto na doutrina sobre Deus.
Portanto, devemos sinceramente manter e explicar corretamente o que Deus transmitiu através
dos profetas e apóstolos.
Pode-se afirmar com clareza e simplicidade que, embora o arrependimento seja necessário
em nós, não somos recebidos nem agradáveis a Deus por causa de nossas virtudes, mas sim,
através do Filho de Deus, o Mediador, recebemos a remissão dos pecados. O que há de absurdo
nessa afirmação? Ela exige a presença das virtudes, mas atribui a causa da reconciliação a Cristo,
oferecendo a devida honra a Ele e proporcionando um consolo firme aos piedosos. Por outro
lado, a interpretação dos oponentes contém muitos erros óbvios.
Isso resulta em duas absurdidades: perpetuamente duvidar da remissão dos pecados e, ao
mesmo tempo, afirmar que os seres humanos podem merecer o perdão por sua própria dignidade.
Isso retira a devida honra de Cristo e deixa as consciências em dúvida, o que claramente reflete
uma mentalidade pagã. Pois não há diferença entre Paulo e um pagão se ambos duvidam
igualmente de serem vistos e ouvidos por Deus. Além disso, os oponentes afirmam que essa
dúvida não é um pecado; mais ainda, afirmam que os justificados são justos por sua própria
dignidade e que a escuridão interior, as dúvidas sobre a providência divina e a reconciliação,
juntamente com a falta de fervoroso amor a Deus, não são pecados, mas apenas movimentos
errôneos e afetos viciosos. Eles minimizam essas questões e corajosamente afirmam que esses
males não estão em conflito com a lei de Deus.
Nós mencionamos essa questão juntamente com outros testemunhos, porque neles está
claramente indicada a exclusão de uma partícula, rejeitando o uso de uma figura de linguagem
chamada sinédoque. Também é feita referência à fé que enfrenta dúvidas e incertezas. Não
estamos adicionando nenhuma interpretação pessoal, mas estamos preservando fielmente a
forma de expressão utilizada por Paulo, conhecida como “τό δητόν”[81], não de maneira caluniosa
ou supersticiosa, mas através de uma análise cuidadosa e contínua, levando em consideração
todas as Epístolas de Paulo, bem como as palavras proféticas. Por fim, levamos em conta o
discernimento da verdadeira igreja, que compreende a doutrina do perdão dos pecados e das
práticas da fé.
Em Romanos 4, encontramos o argumento central que é fundamental neste assunto e é
extraído das próprias Escrituras: se a promessa de reconciliação dependesse da observância da lei
como condição, ela seria incerta, mas essa promessa deve ser certa para as nossas consciências.
Portanto, é necessário que o perdão dos pecados e a reconciliação sejam prometidos e recebidos
gratuitamente pela fé, não com base em nossa própria dignidade.
Paulo vai além em sua argumentação: a lei produz ira, ou seja, uma vez que ninguém
consegue satisfazer plenamente a lei, ela acusa a todos. Portanto, se fosse necessário sentir que
só seríamos aceitos após cumprir integralmente a lei, nossas consciências estariam
constantemente cheias de dúvidas e desesperança. Embora algumas mentes seguras e
despreocupadas não sejam movidas por esse argumento, reconhecemos que estamos
verdadeiramente ameaçados por esses terrores.
Portanto, é necessário manter a visão da reconciliação gratuita, como Paulo diz: “Pois, se é
pela lei que vem a herança, a fé é anulada e a promessa é cancelada; porque a lei produz a ira,
mas onde não há lei também não há transgressão” (Romanos 4. 14-15). Ele enfatiza o termo
“gratuitamente” para refutar a ideia de sinédoque. O perdão é concedido gratuitamente, não em
virtude da observância da lei, como a sinédoque afirma. Na verdade, o amor de Deus não pode
ser experimentado a menos que primeiramente estabeleçamos pela fé que a ira de Deus foi
aplacada, como é declarado em Romanos 5. 2: “por meio de quem obtivemos acesso pela fé a
esta graça”. Isso mostra que a sinédoque é refutada nesse argumento.
No entanto, devemos observar também que o mesmo trecho ensina que a fé não se resume
apenas ao conhecimento histórico, como o dos demônios, mas envolve assentimento, crer na
promessa e confiar na misericórdia oferecida nessa promessa. Pois somos ordenados a receber a
promessa pela fé, a estabelecer que Deus verdadeiramente deseja perdoar, receber e pedir a Ele, a
crer nisso e a invocá-Lo com essa fé. Essa fé não se limita apenas ao conhecimento histórico ou
doutrinal, que apenas causam grande terror nas mentes, como Tiago corretamente observa sobre
esse tipo de conhecimento: “Os demônios creem e tremem, eles conhecem o Filho de Deus, mas
não abraçam a promessa. Portanto, são atormentados por um terrível medo do julgamento
iminente”.
Efésios 2. declara: “Pela graça vocês são salvos, mediante a fé; e isso não vem de vocês; é
dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie”. Esse versículo exclui
explicitamente a nossa dignidade e afirma que somos reconciliados pela fé. Portanto, não
devemos permitir que o significado seja distorcido por essa sinédoque, mas devemos
compreender o apóstolo quando ele afirma: “estabelecemos que, pela fé, fomos aceitos na graça
por causa de Cristo”.
Em Gálatas 2. 16, lemos: “Sabendo que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas
pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em
Cristo, e não pelas obras da lei; pois pelas obras da lei ninguém será justificado”. Esse versículo
ressalta que a justificação não é alcançada por meio das obras da lei, mas sim pela fé em Jesus
Cristo.
Além disso, algumas pessoas levantam várias objeções para contornar essas declarações:
alguns afirmam que apenas as cerimônias mosaicas são excluídas, enquanto outros admitem que
a justificação pelas obras se aplica apenas aos não regenerados. No entanto, essas objeções
podem ser facilmente refutadas por aqueles que possuem uma mente sã, que são piedosos e
amantes da verdade. É necessário reconhecer que pessoas sãs não podem merecer o perdão dos
pecados por meio das cerimônias, nem por meio de boas obras morais antes ou depois da
regeneração.
Por fim, quando várias declarações sobre a fé são reunidas, como “sendo justificados pela fé,
temos paz” e “ele creu para a justiça”, etc.; todos os opositores afirmam que essas afirmações são
usadas de forma inadequada e imprudente, atribuindo-lhes uma interpretação baseada no
julgamento humano. No entanto, ao considerarmos todas as partes do argumento de Paulo e os
testemunhos dos profetas, concluímos que Paulo quis dizer que os seres humanos são
considerados justos pela fé, ou seja, recebem o perdão dos pecados e a reconciliação por causa de
Cristo, o Mediador, confiando na misericórdia prometida por Ele, não por causa de nossa própria
dignidade. Além disso, para tornar isso ainda mais claro, também ensinamos que quando os
corações são sustentados dessa maneira pela voz do evangelho e são elevados pela fé, eles
recebem o Espírito Santo, como Paulo diz em Gálatas 3. 14: “Para que recebêssemos a promessa
do Espírito pela fé”. Portanto, não estamos falando de um mero conhecimento ocioso, e aqueles
que são ignorantes estão equivocados ao pensar que o perdão dos pecados ocorre sem esforço,
sem nenhum movimento interior da alma, sem luta e sem uma fé que console a mente.
Quando o Espírito Santo traz novos movimentos e uma nova vida através dessa consolação,
isso é chamado de conversão ou regeneração (como mencionado em João 3), e isso implica na
necessidade de uma nova obediência, como explicarei mais adiante.
Quando a consciência busca o perdão dos pecados, é importante deixar de lado as questões
sobre predestinação, pois assim como a pregação do arrependimento se aplica a todos, a
promessa da graça é universal e traz reconciliação para todos. É útil, nesse momento, ter em
mente algumas declarações universais para nos incluirmos verdadeiramente nelas, reconhecendo
que Deus também deseja nos perdoar, ouvir-nos e receber-nos. Algumas dessas declarações são:
“Venham a Mim, todos os que estão cansados” (Mateus 11. 28), “Para que todo aquele que n’Ele
crê não pereça” (João 3. 16), “Todos os profetas dão testemunho d’Ele, de que todo aquele que
n’Ele crê receberá remissão dos pecados” (Atos 10. 43), “Por meio d’Ele, todo aquele que crê é
justificado” (Atos 13. 39), “Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada
pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que creem”
(Romanos 3. 22), “Todo aquele que n’Ele crer não será confundido” (Romanos 10. 11), “Pois
não há distinção entre judeu e grego, pois o mesmo Senhor de todos é rico para com todos os que
O invocam; porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Romanos 10. 12-13).
Deus considerou que todos os seres humanos são desobedientes para que Ele pudesse
mostrar misericórdia a todos. Portanto, é importante entender que Deus deseja que todos os
homens sejam salvos. Não devemos interpretar a vontade de Deus de maneira diferente do que o
evangelho ensina, pois o evangelho foi revelado pelo Pai eterno para que Sua vontade fosse
claramente compreendida por nós. Devemos também levar em consideração com diligência que
o mandamento universal de Deus é que todos ouçam o Filho de Deus e confiem nas promessas
de Deus. Se refletirmos cuidadosamente sobre isso, perceberemos que uma doutrina salvadora e
consoladora é apresentada aos piedosos.
Quanto ao livre-arbítrio, é importante mencionar algo mais. Quando se trata de conversão, é
necessário ouvir a Palavra de Deus e permitir que o Espírito Santo, através da Palavra de Deus,
fortaleça e ajude os nossos corações enquanto mantemos nossa fé. Não devemos ceder à falta de
confiança ou a outros vícios que vão contra a nossa consciência, nem perturbar o Espírito Santo.
Pelo contrário, devemos concordar com a Palavra de Deus e obedecer ao Espírito Santo. Nessa
luta, entenderemos que a vontade que se opõe à falta de confiança e aos vícios não é inativa. O
próprio apóstolo Paulo nos exorta a não receber em vão a graça de Deus. Deus deseja que o
evangelho seja ouvido, que concordemos e obedeçamos, em vez de nos entregarmos à impiedade
contra a nossa consciência (2 Coríntios 6. 1). Além disso, em Lucas 11. 13, é dito que Deus dará
o Espírito Santo àqueles que pedirem, não àqueles que desprezam, perturbam e resistem.
Portanto, Deus deseja que lutemos contra nossa fraqueza, reconheçamos nossos pecados e
busquemos a libertação, não retendo nossos pecados contra a nossa consciência. Assim, fica
claro que a vontade não é algo inerte ou passivo.
Apresentei a doutrina do evangelho sobre o perdão dos pecados e a reconciliação ou
justificação com a maior precisão possível. Não tenho dúvidas de que essa é a mesma crença dos
estudiosos antigos, embora às vezes eles possam se expressar de maneira inadequada. Não há
nada complicado, confuso, enganoso ou sofisticado na sentença que mencionei ou na explicação
subsequente. Pois, o que pode ser dito de forma mais simples do que o fato de que o homem
alcança o perdão e a reconciliação por meio da fé em Cristo, o Mediador? Isso significa confiar
na promessa da misericórdia de Deus em relação a Ele e não em nossas próprias virtudes. Essa
sentença pode ser facilmente compreendida e avaliada por todas as mentes piedosas envolvidas
em verdadeiros atos de arrependimento e oração diária. No entanto, tais atos não podem ocorrer a
menos que a fé esteja fixada no Mediador, por meio do qual somos ouvidos. Portanto, faço um
apelo para que a igreja, especialmente os piedosos, estudiosos e inteligentes que estão envolvidos
em atos de arrependimento e oração, julguem e compreendam essa doutrina.
9. As Boas Obras
Após a exposição da doutrina da reconciliação e da fé, é necessário acrescentar a doutrina
das boas obras, ou seja, da nova obediência. De fato, afirmo claramente que a nossa obediência,
ou seja, a justiça de uma boa consciência ou das obras que Deus nos ordena, deve
necessariamente seguir a reconciliação. Pois Cristo ordena claramente o arrependimento, e Paulo
diz: “Não vivamos segundo a carne” (Romanos 8. 12).
1 João 3. 7-8: “Não se enganem: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem
os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os
maldizentes, nem os que roubam herdarão o Reino de Deus”.
1 João 3. 10: “Nisto se manifestam os filhos de Deus e os filhos do diabo: quem não pratica
a justiça não é de Deus, nem o que não ama a seu irmão”.
Com isso, o Filho de Deus apareceu para destruir as obras do diabo. Portanto, somos
regenerados na reconciliação, para que uma nova obediência comece em nós, conforme está
escrito em Efésios: “Pois somos feitura d’Ele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais
Deus preparou de antemão para que andássemos nelas”. Essa sentença e doutrina contêm tanto a
necessidade quanto o consolo. Primeiramente, é proclamada a necessidade, quando diz: “Fomos
criados de novo para boas obras”. Em seguida, vem o consolo, quando afirma: “Deus preparou
boas obras para nós na igreja”, assim como fez com Samuel, Davi, Isaías, Jeremias e outros, por
meio das quais Ele chama, governa e preserva a igreja. E, como é dito em outro lugar:
“Confirma, ó Deus, o que fizeste em nós”. Portanto, Paulo declara: “Deus preparou boas obras”,
ou seja, Ele não apenas as ordena, as planeja e as inicia, mas também nos auxilia e as fortalece.
Embora a igreja enfrente grandes dificuldades, como evidenciado pelas aflições de Jeremias,
Paulo e outros semelhantes, ela realiza obras grandiosas e salutares para o bem dos outros,
mesmo que o mundo em sua maioria não as compreenda. No entanto, é essencial que
compreendamos nosso chamado, para que possamos realizar as obras que Deus preparou para
nós. As cinco principais questões sobre as boas obras são as seguintes:
Quais obras devem ser feitas?
Como podem ser realizadas as boas obras?
Como as boas obras agradam a Deus?
Por que devemos realizar boas obras?
Qual é a diferença entre os pecadores, uma vez que é necessário que os pecados
permaneçam nos santos nesta vida?

PRIMEIRA QUESTÃO
Quais obras devem ser feitas?
As boas obras que nos são ordenadas na Palavra de Deus são abrangidas pelos Dez
Mandamentos. É importante entender que essas obras não se limitam apenas às ações externas
descritas no Decálogo, que também podem ser imitadas pelos ímpios de certa forma, mas sim se
originam de uma obediência interna. São obras interiores que estão relacionadas ao primeiro
mandamento: crer na Palavra de Deus, temer a Deus, confiar em Deus. O temor a Deus se
manifesta na contrição, enquanto a fé se torna mais evidente quando é capaz de fortalecer os
temerosos. No entanto, essas virtudes devem ser duradouras e praticadas ao longo de toda a vida.
A fé, que nos assegura que fomos aceitos por Deus, pois reconhecemos Sua bondade para
conosco, gera o amor a Deus, que nos leva a submeter-nos à Sua vontade. A partir daí, seguem-
se as demais boas obras de acordo com todos os mandamentos.
Os oponentes desejam parecer que ensinam excelentemente a doutrina das boas obras, mas
geralmente falam apenas sobre hipocrisia externa ou cerimônias humanas. Ignoram e
obscurecem as obras da primeira tábua dos mandamentos e a fonte das boas obras. Nada dizem
sobre a fé, que é a confiança na misericórdia e na reconciliação gratuita, necessária em toda
invocação. Mas ao removerem essa fé, a dúvida prevalece, levando ao desprezo por Deus ou à
fuga d’Ele quando está irado, resultando em uma invocação vazia. Além disso, os hipócritas
aprovam e confirmam essa dúvida, negando que a fé deva ser entendida como confiança na
misericórdia de Deus, mas apenas como um conhecimento, como o que os demônios têm. De
fato, é lamentável que a doutrina dos profetas e apóstolos seja tão corrompida, e devemos
suportar com grande angústia e sofrimento do coração antes de conceder que a fé não significa
confiança na misericórdia. Por exemplo, “Abraão creu em Deus”, “sendo justificados pela fé,
temos paz”, “temos acesso a Cristo pela fé” e “agora vivo pela fé no Filho de Deus”. Não
podemos permitir que essas palavras sejam ridicularizadas e corrompidas, mas devemos
compreender claramente que elas nos ensinam sobre a confiança na misericórdia e que, em toda
invocação, aprendemos a nos aproximar de Deus confiando em Seu Filho, em vez de nos
aproximarmos d’Ele com base em nossa própria dignidade.
Portanto, essa mesma fé, ou seja, a confiança na misericórdia, é a obra boa mais importante,
que deve ser praticada em todos os perigos da vida e em toda invocação. Davi, ao enfrentar
desafios, crê que agrada a Deus por causa da promessa e porque sabe que foi chamado a
obedecer em seu ofício. Ele obedece, pede e espera que Deus cuide dos perigos. Essa adoração
interna distingue a verdadeira igreja de Deus da multidão restante. Cícero leva uma vida honrada,
é meritório para toda a humanidade em seu governo do Estado e, de fato, também entende que
Deus é uma mente eterna e a causa de tudo, como Platão definiu, e que as imagens adoradas pelo
povo não têm divindade. No entanto, a mente de Cícero é obscurecida pela dúvida em relação à
providência divina, porque ele desconhece as promessas de Deus e duvida se ele e os outros são
ouvidos e ajudados por Ele, especialmente em momentos de calamidade, quando ele se irrita com
Deus por tê-lo abandonado. O mesmo acontece com Saul. Portanto, há uma diferença entre
Cícero e Jeremias: Jeremias serve à sua república, mas a fé brilha nessa obra. Jeremias crê que
agrada a Deus, que é ouvido e preservado por Ele, mesmo quando vê a si mesmo sendo
envolvido por uma grande quantidade de calamidades, sua pátria sendo destruída, os cidadãos
sendo dispersos, muitos dos que foram claramente salvos pelo benefício divino abandonando
Deus, guerreando uns contra os outros e, por fim, sendo morto ele mesmo. Esses eventos
mergulharam Cícero nas trevas e na dúvida infinita, e a mente humana não pode pensar em nada
além do que é expresso por Lucano:
“Será que não há nada fixo, mas o destino vagueia incerto,
Trá-lo e leva-o em suas reviravoltas, e os mortais são governados pelo acaso?”[82].
Jeremias, com grande constância, superou essas dúvidas e sentiu que estava agradando a
Deus. Ele buscou e esperou bons resultados em seu governo, que se concretizaram após setenta
anos.
Jesus ordena esse culto interior, no qual os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em
espírito e em verdade. Isso significa que eles se aproximam de Deus por meio de movimentos
espirituais e verdadeiros, como o temor, o arrependimento, a fé e a invocação, entre outras coisas
semelhantes. Paulo chama esse culto de racional[83], significando que a mente compreende a
Deus, reconhece a ira de Deus e, novamente, se sustenta pela fé. Essa fé contempla o Filho de
Deus e reconhece que somos aceitos por Deus por meio de Cristo, o Mediador. Isaías também
prega sobre esse culto interior, repreendendo os hipócritas que consideram o culto como uma
mera disciplina externa e as cerimônias do templo. Ele declara: “Assim diz o Senhor: a quem
olharei? Aquele que é humilde e contrito de espírito e treme diante da minha palavra”. Da mesma
forma, no Salmo 49, ele critica a superstição dos cultos externos e exige o culto interior
verdadeiro e a verdadeira invocação: “Invoque-Me no dia da angústia”, etc.
Isso é o suficiente para resumidamente abordar a primeira questão e o culto interior. Agora,
como a fraqueza da mente humana é tão grande, e há tanta dúvida, uma vez que essa natureza
fraca dos seres humanos está sobrecarregada com um imenso fardo de calamidades, é comum
perguntar como podemos oferecer verdadeiros cultos.

SEGUNDA QUESTÃO
Como podem ser realizadas as boas obras?
Não devemos permitir a indulgência à preguiça humana. Já foi dito várias vezes que os
costumes externos podem ser governados pela diligência e força humana, e que Deus exige essa
diligência, como está escrito: “A lei é estabelecida para os injustos” e também: “Não entristeçam
o Espírito Santo”. No entanto, a obediência interior não pode ser iniciada sem o conhecimento do
evangelho e sem a atuação do Espírito Santo. O amor a Deus não pode surgir primeiro, a menos
que ouçamos a voz do evangelho sobre o perdão. Uma mente ignorante da reconciliação ou
despreza a Deus ou foge de Sua ira. Portanto, o amor não pode ser iniciado sem primeiro ouvir a
voz do evangelho sobre a reconciliação. Isso é bastante claro. Para que o amor surja, é necessário
que a fé, ou seja, a confiança na misericórdia da qual falamos, o preceda. Além disso, é
importante saber que quando as mentes perturbadas são elevadas pela fé, ao mesmo tempo o
Espírito Santo é dado, despertando novos movimentos no coração, de acordo com a lei de Deus.
O apóstolo Paulo claramente ensina em Gálatas 3. 14 que o Espírito Santo é dado pela fé: “Para
que recebêssemos pela fé a promessa do Espírito”. Zacarias também descreve essa concessão e
os principais afetos do Espírito Santo com palavras mais doces em Zacarias 12. 10: “Derramarei
sobre a casa de Davi o Espírito da graça e das súplicas”. Ele chama de “Espírito da graça” aquele
que testemunha em nossos corações que Deus está propício a nós, movendo nossos corações para
que concordemos com a promessa e nos consideremos aceitos por Deus. Em seguida, quando
reconhecemos a misericórdia de Deus, O invocamos, O amamos e nos submetemos a Ele. Por
isso, ele também o chama de “Espírito das súplicas”. Esses cultos principais, a fé e a invocação,
são as fontes de toda obediência. Portanto, devemos extrair tanto ensinamento quanto exortação
dessa declaração. Devemos lembrar que somos ordenados a oferecer esses cultos, a crer em Deus
e a invocá-Lo. Portanto, o Espírito Santo é entristecido e aflito, a fé se extingue e a invocação é
perturbada devido aos deslizes de uma má consciência.
Após a queda da humanidade, uma grande fraqueza se seguiu e as armadilhas do diabo se
aproximaram. Ele espalha ódio a Deus entre a humanidade, busca aumentar a desobediência,
incentiva insultos e blasfêmias, instiga a natureza humana fraca a cometer vários pecados e leva
mentes perversas a inventar opiniões contra a Palavra de Deus. Ele despedaça a igreja e os
reinos, tumultua o mundo com guerras injustas e busca expulsar a igreja de seus lares para
dissipá-la e destruí-la. Esses são exemplos dos tristes casos que ocorrem diariamente em toda a
humanidade, nos quais destinos miseráveis acometem homens ilustres, como Saul, Jônatas,
Heitor, Príamo, Aquiles, Ajax, Pompeu, César e muitos outros. As lamentações sobre a
inconstância da fortuna são bem conhecidas, sobre as quedas repentinas de uma fortuna
florescente. Por um acidente repentino, aqueles que eram valorosos caem.
Embora todo o gênero humano esteja sujeito a perigos constantes, a igreja é abalada de
forma ainda mais intensa, pois o diabo a ataca com grande violência. Como foi dito no Gênesis, a
serpente ferirá o calcanhar dela. Assim como um veneno mortal infligiu uma ferida considerável
a Davi, o diabo está à espreita como um leão rugindo, procurando a quem devorar. Sua fúria se
espalhou pela igreja especialmente nos últimos novecentos anos, com o crescimento do domínio
maometano. Isso resultou na ruína das igrejas e na aparência caótica dos reinos devido a tantas
dissensões entre os reis. É inevitável pensar que em breve os turcos conquistarão o resto da
Europa.
Portanto, quando as circunstâncias mostram claramente que o diabo está agindo e nos
atacando, e quando a fraqueza da natureza humana é evidente, devemos recorrer à ajuda que nos
é revelada no evangelho. Mas qual é essa ajuda?
Inicialmente, o Filho de Deus promete estar presente conosco e derrotar a violência do
diabo. João declara que o Filho de Deus se manifestou para destruir as obras do diabo, como o
pecado, a morte, as blasfêmias e as divisões promovidas por ele. Assim, Adão e Eva foram
salvos em meio à sua aflição, confiando na promessa e sustentados pela fé. Eles pediram a Deus
uma descendência que propagasse a verdadeira doutrina. O Filho de Deus os protegeu contra o
diabo e, pelo Espírito Santo, consolou suas almas aflitas. Jacó também menciona o Filho de Deus
como o anjo que o livrou de todo mal e abençoou seus filhos. Essas são funções específicas do
Filho de Deus: abençoar e libertar do mal, da ira de Deus, da morte eterna e de outras punições
acompanhadas da ira divina. Em Isaías, Cristo é chamado Emanuel, que significa “Deus
conosco”, pois Ele está presente para nos auxiliar, cuidar de nós e afastar o diabo.
Além disso, Ele derrama o Espírito Santo nos corações daqueles que invocam Seu nome.
Como Jesus disse em João 14. 18, não nos deixará órfãos, e se pedirmos algo em Seu nome, Ele
o fará. Ele também pedirá ao Pai, que nos dará outro Consolador, o Espírito da verdade. Se
resistirmos aos maus sentimentos e armadilhas do diabo e invocarmos a Deus confiantemente,
podemos realmente experimentar essas ajudas. No entanto, é importante fazer uma distinção
entre a verdadeira invocação do povo de Deus e a invocação judaica ou turca. Em toda
invocação, a fé deve estabelecer duas coisas desde o início: a crença e a invocação desse Deus
eterno, que é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que foi crucificado e ressuscitou por nós; e, em
seguida, as súplicas, para que nossas orações sejam verdadeiramente ouvidas e aceitas por meio
desse Mediador. Os piedosos devem observar diligentemente esses pontos, pois essa invocação é
o que distingue especialmente a igreja daquelas nações que lutam contra o evangelho.
Devemos sempre ter em mente a doutrina relacionada à segunda questão, reconhecendo que
o Filho de Deus é verdadeiramente nosso ajudador e defensor. Assim como Paulo menciona sua
presença com o povo no deserto, e sabendo que o Espírito Santo é verdadeiramente concedido
àqueles que O invocam, como está escrito: “Ele subiu; deu dons aos homens”. Dessa forma, Ele
governa, distribuindo seus dons, justiça, vida, orientação, governo, sucesso e outros benefícios.
A fim de experimentar essa ajuda de Deus, devemos nos firmar nos testemunhos do evangelho e
dissipar as trevas da mente humana, que muitas vezes imagina que Deus está ocioso e não se
importa com cada indivíduo, assim como Homero descreve Júpiter partindo para um banquete na
Etiópia. Essas fantasias revelam os pensamentos humanos equivocados sobre Deus, os quais eu
mencionei para que sejam eliminados e para que possamos obter um verdadeiro conhecimento de
Deus, reconhecendo verdadeiramente a ira e a misericórdia de Deus.
TERCEIRA QUESTÃO
Como as boas obras agradam a Deus?
As mentes piedosas enfrentam uma angústia constante e desejam agradar a Deus por meio da
obediência. No entanto, diante de nossa grande fraqueza, percebemos que nossa obediência é
imperfeita, limitada, impedida e contaminada, como bem expressou Paulo quando disse: “Não
faço o bem que quero, mas o mal que não quero”. Diante disso, surge a pergunta: como
podemos, então, agradar a Deus?
Por outro lado, os hipócritas e aqueles que são ansiosos e temerosos têm uma visão
distorcida sobre esse assunto. Os hipócritas acreditam que estão cumprindo a lei, que são justos e
aceitos por Deus devido à sua própria dignidade ou ao cumprimento rigoroso da lei, como o
fariseu em Lucas 18. Eles são aqueles que se admiram de suas virtudes, atribuem-se sabedoria e
justiça exageradas, especialmente quando estão em momentos de prosperidade e sucesso. Eles
acreditam que podem governar com base em seu próprio conselho e consideram que seus êxitos
são frutos de sua própria virtude e diligência, chegando a se colocar acima dos outros por conta
de sua sabedoria e justiça. Um exemplo disso é Nabucodonosor, que, diante de suas grandes
realizações, declarou: “Esta é a grande Babilônia que eu construí pelo meu poder”. Saul também
pensava que seu reinado em Israel era estabelecido por sua própria virtude, quando, na verdade,
deveria reconhecer que seus sucessos eram frutos da virtude de Deus e da benevolência divina, e
que ele não poderia governar nem realizar feitos grandiosos sem a graça de Deus. Ele deveria
servir a Deus com temor, para não ser abandonado por Ele. No entanto, Saul se tornou mais
confiante devido aos seus sucessos e acabou agindo com arrogância, chegando ao ponto de
atacar os sacerdotes. Essa imagem dos hipócritas é apresentada, e não são poucos aqueles que
estão confiantes, agradando a si mesmos por causa de suas qualidades, aplaudindo sua própria
sabedoria, diminuindo a doutrina divina e zombando do Evangelho do alto, usando artifício,
fraude e violência para oprimir aqueles aos quais são hostis, até mesmo assumindo títulos
honrosos, pois se vangloriam de lutar pela glória de Deus, pela verdade, de serem cidadãos fiéis
da igreja, membros do povo de Deus, porque defendem o poder ordinário e o consenso de longa
data. Esses são os mesmos tipos de pontífices que se opuseram aos apóstolos no passado, e
vemos muitos casos semelhantes, como o de Vicelio[84] e outros, nos últimos anos. No entanto,
também há aqueles que são temerosos, reconhecendo sua fraqueza e lutando com desespero,
como Pedro, que, consternado, disse: “Afaste-se de mim, Senhor” (Lucas 5. 8). Nesse contexto, é
necessário repreender a arrogância e oferecer verdadeiro consolo aos temerosos.
Primeiramente, é importante destacar que, mesmo nos indivíduos regenerados, ainda existem
pecados, ou seja, imperfeições que nascem conosco, dúvidas e muita ignorância. Além disso,
eles não temem a Deus tanto quanto deveriam e não possuem um amor fervoroso por Ele,
conforme a lei ordena. Há muitos pecados presentes, como o amor ilícito, ódio, desejo de
vingança, inveja, rivalidade e avareza. Também ocorrem quedas no chamado de Deus e
negligências evidentes, bem como raiva direcionada a Deus em momentos de aflição. Com
frequência, buscam-se ajuda humana com uma aparência de honestidade, mas devido à falta de
confiança em Deus. Muitas vezes, buscam-se coisas desnecessárias além do necessário,
confiando em sua própria sabedoria ou poder, assim como Josias, que iniciou uma guerra
desnecessária contra os egípcios.
Por fim, a carga do pecado que permanece nos regenerados é muito maior do que qualquer
ser humano pode compreender. E não devemos considerar levianamente a afirmação de “quem
entende seus próprios erros?”. Seria demasiado enumerar as várias formas de pecados que
persistem nos santos. Mas Paulo resumiu tudo quando, em Romanos 7, fala sobre a obstinação
interna contra todos os mandamentos. No entanto, os hipócritas orgulhosos não compreendem
esses pecados ocultos e, pelo contrário, os monges ensinam que essas dúvidas sobre a
providência, a ira de Deus, a misericórdia e afetos viciosos não são pecados, a menos que haja
consentimento. Eles não apenas debatem sobre as palavras, mas também negam que esses vícios
sejam contrários à lei de Deus. Essa minimização é falsa e insultuosa contra a lei de Deus,
obscurece a doutrina da graça e da justiça pela fé e confirma a falsa convicção de que os
regenerados satisfazem a lei de Deus.
Portanto, para repreender a arrogância, vou apresentar testemunhos que mostram que os
regenerados nesta vida não satisfazem a lei de Deus e permanecem com o pecado nesta natureza
mortal: Salmo 143. 2 diz: “Não entres em juízo com o seu servo, pois diante de você não será
justificado todo ser vivente”; 1 João 1. 8 afirma: “Se dissermos que não temos pecado,
enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós”; Salmo 19. 13 clama: “Quem pode
discernir os próprios erros? Purifica-me das faltas ocultas”; Romanos 7. 23 revela: “Vejo nos
meus membros outra lei que guerreia contra a lei da minha mente e me torna prisioneiro da lei do
pecado que está em meus membros”. Embora os sofistas menosprezem essas passagens e
afirmem que há uma metalepse na palavra “pecado” e que se refere à punição do pecado, à
inclinação proveniente da queda dos primeiros pais, Paulo refuta essa evasão quando define o
pecado em si mesmo, afirmando que é um mal presente em nossos corpos, lutando contra a lei de
Deus.
Além disso, neste ponto discutimos se o pecado remanescente na natureza humana é algo
que luta contra a lei de Deus. Embora os julgamentos humanos minimizem essa corrupção, Paulo
usa palavras fortes para destacar a gravidade da questão. Ele descreve como essa depravação luta
dentro de nós, opondo-se à lei da mente e alimentando sentimentos de segurança carnal e
desconfiança injusta. Essa depravação infla a mente com admiração própria e arrogância,
desperta desejos, ódio e vingança, levando a buscar proteções ilícitas. No final das contas, essa
depravação nos mantém cativos, pois abala os corações com medo e incita à desesperança e à
fuga de Deus. Esses não são males leves, como a filosofia humana crê, mas causam grande
tormento aos santos. Podemos ver exemplos disso em Moisés, que ficou abalado e perturbado
diante de uma agitação e dúvida súbitas, e em Davi, que ordenou a contagem do povo movido
pelo orgulho e planejou uma nova ordem no reino sem o mandato de Deus.
A oração ensinada por Jesus em Mateus 6. 12, “Perdoa-nos as nossas dívidas”, mostra que
existem pecados ao longo de toda a vida pelos quais precisamos buscar o perdão. Além disso,
somos ensinados a reconhecer nossa servidão e inutilidade diante de Deus, mesmo quando
cumprimos tudo o que nos foi ordenado (Lucas 17. 10). Paulo também reconhece essa realidade
ao afirmar que, embora nada sinta contra si mesmo, não se considera justificado (1 Coríntios 4.
4). Ele entende que é necessário ter uma justiça de boa consciência, mas reconhece que não tem a
certeza absoluta do perdão dos pecados e da reconciliação com Deus. No entanto, ele confia que
Deus o aceita por meio do Filho Mediador, pela fé. O Salmo 130. 3 expressa a compreensão de
que, se Deus considerar as iniquidades, ninguém poderá permanecer em pé. Essas palavras
reconhecem a presença do pecado e não o minimizam. Elas também revelam a magnitude da ira
de Deus, que não pode ser suportada a menos que Ele a aplaque por Sua imensa misericórdia por
meio do Filho. A natureza humana não pode suportar a ira e os castigos justos de Deus, como
confessado por Ezequias quando disse: “Como um leão, Ele quebrou todos os meus ossos”
(Isaías 38. 13), e por Jó quando declarou: “Deus, contra quem ninguém pode resistir” (Jó 9. 13).
Embora, portanto, existam pecados presentes e os piedosos reconheçam de alguma forma a
ira, eles creem que agradam a Deus por causa da prometida misericórdia e se sustentam nesse
consolo, como o mesmo Salmo diz: “Minha alma espera na Sua palavra; minha alma confia no
Senhor, porque com o Senhor há misericórdia” (Salmo 32. 5). “Eu disse: confessarei minhas
injustiças ao Senhor; e Tu perdoaste a impiedade do meu pecado” (Salmo 32. 5). Por isso, todo
santo ora a Ti. É dito claramente que os santos buscam o perdão dos pecados: “Diante de Ti não
há inocente”, ou seja, mesmo que alguém não possa ser acusado por um julgamento humano, Tu
podes acusá-lo (Êxodo 34. 7). “A Ti, Senhor, pertence a justiça, mas a nós a confusão”, ou seja,
reconhecemos que Tu és justo e que somos justamente punidos; “mas a misericórdia é Tua,
Senhor nosso Deus” (Daniel 9. 7,9). Portanto, oramos não por causa de nossa justiça, mas por
causa de Tuas muitas misericórdias; ouve-nos por causa do Senhor, ou seja, por causa do
Mediador enviado. Este trecho é um testemunho notável do consenso dos profetas e dos
apóstolos. De fato, Daniel ensina a mesma coisa que Paulo discute tão abundantemente: que
devemos estabelecer que a natureza humana é viciada e não satisfaz a lei, mas que somos
verdadeiramente aceitos por Deus por Sua misericórdia, por causa da promessa do Senhor. Pois
Daniel também acrescenta expressamente: “Por causa do Senhor”.
Comparemos essas evidências com Paulo, para que possamos ver que existe uma única e
contínua sentença da Igreja Católica de Deus, dos Pais, dos profetas, de Cristo e dos apóstolos, e
que abraçamos esse consenso e não nos afastamos dele, mesmo que a turbulência dos monges
recentes tenha transmitido uma doutrina diferente, que misturou erroneamente a filosofia diluída
com a doutrina do Evangelho.
1 Coríntios 1. 31: “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”, isto é, não podemos nos
gloriar por sermos sem pecado, mas nos gloriaremos no Senhor, especialmente na promessa da
misericórdia. Como também é dito em outro lugar: “De fato, Deus encerrou a todos na
desobediência, para que a todos tenha misericórdia” (Romanos 11. 32); também em Romanos 3.
9 é dito: “Já concluímos que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado”. E é
acrescentado um pouco depois uma afirmação enfática: “Para que toda boca esteja fechada e
todo o mundo seja culpável perante Deus”. Repete-se tantas vezes essa universalidade para que
não haja dúvida de que todos são acusados. Reconheçamos, portanto, nossa fraqueza e
admitamos também que há pecados nos regenerados, ou seja, a corrupção da natureza e muitos
afetos viciosos, e tremamos diante do conhecimento da ira de Deus contra esses males, e
lamentemos que ainda haja tantos vícios em nós contra a vontade de Deus, e que cresça em nós
um verdadeiro arrependimento, e o reconhecimento de nossa fraqueza extermine a arrogância,
nos submeta a Deus, nos encoraje ao temor de Deus, a implorar misericórdia e pedir ajuda.
Após repreender a arrogância, é importante instruir as mentes piedosas sobre a fé, a fim de
evitar que caiam em desespero. Além disso, é necessário ensinar-lhes como a obediência é
agradável a Deus. Neste ponto, sempre devemos unir essas três coisas.
Primeiro, que o regenerado reconheça que foi reconciliado com Deus pela fé, por causa do
Filho de Deus, ou como frequentemente se diz, que a pessoa é recebida por causa do Filho de
Deus, pela fé gratuita; segundo, que ele reconheça que, nesta vida, permanece a fraqueza e os
pecados nos regenerados e que ele verdadeiramente lamente ainda ter a escuridão, a depravação,
a desordem (άταξιαν), os afetos viciosos contra a lei de Deus; terceiro, que ele estabeleça que a
obediência e a justiça de uma boa consciência devem ser iniciadas, e que, embora estejam longe
da perfeição da lei, ainda assim agradam a Deus nos reconciliados, por causa do Filho Mediador,
que apresenta nossa vocação e nossos cultos ao Pai e perdoa a fraqueza. Assim, primeiro a
pessoa é reconciliada por causa de Cristo, depois as obras também são recebidas, e a fé brilha em
ambos. Portanto, Pedro diz: “Oferecei sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo”
(1 Pedro 2. 5).
Devemos, diariamente, ponderar sobre esses três elementos em relação às nossas obras. Não
devemos duvidar de que Deus valoriza as boas obras, pois Ele cuida delas e exige obediência. A
contumácia, por sua vez, é punida com penas terríveis, tanto nesta vida como na eternidade,
causando turbulência na consciência. Portanto, é essencial buscar uma consciência justa e saber
como agradar a Deus, pois uma consciência abalada ou cheia de dúvidas não pode se aproximar
d’Ele. Devemos diligentemente cultivar esses princípios em nossa mente, pois é através dessas
práticas que a fé brilha, o verdadeiro conhecimento de Deus se desenvolve e a nova vida
espiritual cresce.
A fé se manifesta de duas maneiras nas obras: primeiro, ao reconhecermos que a obediência
agrada a Deus, como mencionado anteriormente; em segundo lugar, ao buscarmos ajuda, assim
como Davi sabia que governar era uma tarefa difícil e perigosa, mas acreditava que suas ações
eram agradáveis a Deus devido à prometida misericórdia. Além disso, ele buscava auxílio e
trabalhava para proteger o povo e governar os costumes dos cidadãos da melhor maneira
possível. Essa exortação é especialmente reconfortante para as mentes piedosas que, embora se
esforcem para obedecer a Deus, reconhecem as fraquezas humanas, as falhas cometidas e se
entristecem com elas, chegando quase ao desespero. O que poderia ser mais doce do que ouvir as
palavras de Paulo: “Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”?
Isso significa que, embora os regenerados não sejam perfeitos, Deus os acolhe e os declara justos
por meio da fé em Seu Filho. Assim, Ele também aceita a obediência deles por causa do Filho.
Assim como é declarado aos Colossenses: “Em Cristo, vocês foram aperfeiçoados”,
entendemos que, mesmo que os regenerados não alcancem a perfeição da lei, eles são
considerados justos e agradáveis a Deus por meio de Cristo. Nisso, devemos reconhecer e
celebrar a grandeza da misericórdia de Deus, que de fato recebe essa obediência imperfeita,
manchada e contaminada pelos afetos viciosos daqueles que foram reconciliados. Ele a recebe
não por causa da dignidade de nossas virtudes, mas por causa do Filho de Deus. Como Romanos
6. 14 afirma: “Pois vocês não estão debaixo da lei, mas debaixo da graça”. A questão aqui é se a
obediência agrada a Deus mesmo quando não satisfaz plenamente a lei. Paulo responde
afirmativamente, pois não estamos sob a condenação da lei, mas sim sob a graça, ou seja, fomos
reconciliados e acolhidos na graça. Romanos 8:34 nos diz: “Quem os condenará? Cristo Jesus,
que morreu; mais do que isso, que ressuscitou e está à direita de Deus, e também intercede por
nós”. Isso significa que os santos agradam a Deus por meio da intercessão de Cristo. E Romanos
3. 31 declara: “Estabelecemos a lei pela fé”. Embora seja uma afirmação breve, ela ensina o que
estamos destacando aqui: a obediência não pode começar nem agradar a Deus, a menos que a fé
seja acrescentada. É pela fé que nos tornamos agradáveis a Deus e a obediência se inicia, tudo
isso por causa do Mediador. Assim, ao dizer “Estabelecemos a lei”, não estamos anulando a
importância da obediência, mas enfatizando que exigimos, retemos e ensinamos como ela pode
ser cumprida e agradar a Deus.
Após explicar como essa obediência que todos experimentamos está longe de alcançar a
perfeição da lei, acrescentemos agora testemunhos claros que afirmam que as obras dos santos
ou a obediência incipiente são agradáveis a Deus. Com estas palavras, devemos acender o zelo
para fazer o bem e, ao mesmo tempo, nos lembrar da imensa misericórdia de Deus, que não
apenas aprova, mas também honra e recompensa essa obediência imperfeita. Observemos a nós
mesmos e reconheçamos quão rara é a virtude excelente. São como imagens, algumas virtudes,
em grau insignificante e passageiro nos seres humanos, que de forma alguma satisfazem a lei de
Deus, que requer uma luz e ordem muito maiores na natureza humana. Ainda assim, essas
imagens são aceitas, como já foi dito, por causa do Filho que intercede incessantemente por nós.
Por isso, em Romanos 10. 10, lemos: “Com o coração se crê para justiça, e com a boca se faz
confissão para a salvação”. Quando se exige a confissão, significa que toda a vida deve ser uma
confissão, pois a vida inteira deve ser direcionada para celebrar Deus, mostrar o que professamos
e glorificar o evangelho, como está dito: “Deixe a sua luz brilhar”. Assim como um líder mostra
o que pensa, invoca a Deus em perigos, demonstra sua obediência a Deus e rejeita cultos ímpios,
tornando-se sinais de confissão: assim também cada vocação deve ter os sinais da confissão. Um
estudioso deve mostrar sua crença, invocar a Deus em todos os momentos da vida cheia de
perigos, refutar opiniões ímpias e, ao governar seu comportamento, demonstrar obediência a
Deus para servir ao evangelho. De fato, a vida dos seres humanos está tão unida que a confissão
deve brilhar em sua conversa e no cumprimento de seus deveres.
Mas por que ele diz: “a confissão é para a salvação”? A resposta é simples: mesmo que
sejamos justificados pela fé em Cristo, isto é, aceitos para a vida eterna, ainda é necessário seguir
essa novidade, que ele quer que esteja presente quando diz: “a confissão é para a salvação”.
Assim como está escrito em 2 Coríntios 5. 2-3: “Pois, de fato, suspiramos enquanto estamos
vestidos, para que não sejamos encontrados nus”, ou seja, nesta vida, devemos passar por uma
conversão que é o início de uma nova vida. Essa conversão também foi iniciada pelo ladrão na
cruz; ele se arrependeu, reconhecendo que estava sendo justamente punido por Deus; depois,
pela fé, reconheceu o Salvador e pediu a Ele a salvação; e, assim, ouviu uma clara absolvição e
uma pregação sobre a vida eterna e a promessa; além disso, como sinal de sua confissão, refutou
o blasfemador de Cristo.
Esse exemplo memorável nos adverte sobre muitas questões importantes e indica que a
igreja é de grande preocupação para Deus, a ponto de Ele despertar alguns testemunhos de fé,
mesmo quando é abandonada pelos principais líderes. Os apóstolos, consternados, ficaram em
silêncio e mal conseguiam manter qualquer brilho de fé entre tantas dúvidas tumultuadas. Neste
momento, Deus traz novas evidências extraordinárias, como eclipses, terremotos e ressurreições
dos mortos, para que as pessoas não considerem o castigo como algo comum ou negligenciado
por Ele. O ladrão também é despertado espiritualmente e, após se tornar um apóstolo, começa a
pregar a partir da cruz, afirmando que Jesus é o Messias, o Restaurador da vida eterna.
Além disso, essa história nos ensina que devemos receber a fé em Deus por causa de Seu
Filho, mesmo que não possamos apresentar méritos próprios. Ela também nos ensina sobre a
natureza da fé, que não se limita apenas ao conhecimento histórico, mas é uma confiança que
busca a vida eterna através de Jesus. Quando essa chama da fé é acendida, nosso julgamento é
completamente diferente da lógica humana: o ladrão não é desencorajado pelo espetáculo de
corpos dilacerados e moribundos, e sim, ele crê que haverá vida após a morte e que aqueles que
buscarem refúgio no Senhor terão salvação eterna.
Por outro lado, aqueles que desprezam o Senhor enfrentarão punições eternas. E porque o
ladrão já sente que Deus está propício a ele, ele se submete ao Senhor e O ama. Ele reconhece
que não está sendo punido por acaso, agradece a Deus por ter sido chamado para conhecê-Lo e
ao Senhor. Ele deseja obedecer a Deus mesmo enquanto passa por essa punição e não fica irado
com o julgamento divino. Ele reconhece que as aflições não são resultados de acaso ou meras
calamidades, como os filósofos acreditam, mas são punições enviadas por Deus, devido ao peso
do pecado, para que possamos reconhecer a ira de Deus e buscar a salvação. Por isso, ele enfatiza
a importância da paciência e da obediência a Deus ao enfrentar aflições.
Dessa forma, o ladrão é instruído sobre a conversão do pecado, a ira de Deus, as punições, o
perdão e a justiça, a fim de compreender que a sabedoria dos santos é muito diferente da
sabedoria humana ou da sabedoria dos fariseus. Pois os piedosos aprendem muito durante suas
aflições, como está escrito no Salmo: “Foi bom para eu ter sido afligido, para que eu aprendesse
os Teus estatutos”.
Por fim, ele confessa que Jesus é o Messias, sem se intimidar com o espetáculo do suplício.
Ele até repreende o outro ladrão, que insulta e despreza Cristo com palavras amargas, assim
como o mundo desdenha Cristo e a igreja devido à sua fraqueza. A imagem desse co-criminoso
deve ser cuidadosamente contemplada, pois, assim como ele ri e insulta Cristo em meio à morte,
os ímpios não reconhecem suas próprias maldades e, com arrogância, são hostis a Cristo, mesmo
quando Ele oferece libertação.
Eu relatei um exemplo que, além de nos advertir sobre várias questões, mostra também que
na verdade a verdadeira conversão inicia uma nova obediência, que se manifesta em muitas
ações nobres, que, como eu disse, agradam a Deus. Assim como em Romanos 14. 17, Paulo diz:
“Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo, e
aquele que nisso serve a Cristo é agradável a Deus e aprovado pelos homens”. E em Hebreus 13.
16: “Não se esqueçam da beneficência e da liberalidade, pois com tais sacrifícios Deus se
agrada”. Assim, também se diz de Noé: “O Senhor aspirou o aroma agradável”, ou seja, Deus se
deleitou com o sacrifício de Noé, isto é, com sua invocação de ação de graças, louvor e adoração.
A metáfora é maravilhosa no termo “aspirou o aroma”, uma referência ao antigo ritual em
que os sacrifícios eram chamados de “odorosos” quando queimados divinamente, sendo um
testemunho singular de que eles eram agradáveis e aceitos por Deus. No entanto, de maneira
mais geral, os sacrifícios são comparados a aromas, e adicione-se fragrâncias, porque todas as
obras devem ser como perfumes, isto é, espalhando-se amplamente e exalando um bom cheiro,
ou seja, devem ser direcionadas para a celebração de Deus, para que outros sejam atraídos por
boa doutrina e bons exemplos.

QUARTA QUESTÃO
Por que devemos realizar boas obras?
Existem algumas razões: necessidade, dignidade e recompensas. Primeiramente, a
necessidade é multifacetada: a necessidade de cumprir mandamentos, de pagar dívidas, de
manter a fé e de evitar punições. Embora possamos aqui falar de coerção, ainda permanece a
imutável ordenação eterna de Deus para que a criatura obedeça à Sua vontade. Essa ordenação
imutável é a necessidade de cumprir mandamentos e dívidas, como Paulo disse: “Somos
devedores a Deus, não à carne”, e como Cristo disse: “Este é o Meu mandamento: que amem uns
aos outros”. E em 1 Tessalonicenses 4. 3, entre outros: “Esta é a vontade de Deus: que se
abstenham da fornicação, que cada um de vocês saiba possuir o seu próprio corpo em
santificação e honra, não na paixão da concupiscência, como os gentios que não conhecem a
Deus; e que ninguém iluda ou defraude a seu irmão em negócio algum, porque o Senhor é
vingador de todas estas coisas. Porque Deus não nos chamou para a impureza, mas para a
santificação. Portanto, aquele que rejeita isso, não rejeita os homens, mas a Deus, que também
lhes dá o Seu Espírito Santo”.
A necessidade de manter a fé é crucial, pois o Espírito Santo é expulso e perturbado quando
são cometidos pecados contra a consciência, como é claramente declarado em 1 João 3. 7:
“Ninguém se engane: aquele que pratica o pecado é do diabo”; e em Romanos 8. 13: “Se pelo
Espírito mortificarem as obras do corpo, viverão. Porque, se viverem segundo a carne,
morrerão”. A fé é negada pelas más ações, conforme o testemunho das palavras de Paulo em 1
Timóteo 5. 8: “Se alguém não cuida dos seus e especialmente dos da sua família, negou a fé e é
pior que um incrédulo”; e também: “A fé não pode habitar naqueles que se entregam a desejos
perversos e não se arrependem, pois está escrito: ‘Onde habita o Senhor? No coração contrito e
humilde Eu habito’”. Além disso, quando a fé traz paz à consciência, não pode coexistir com a
intenção de cometer um pecado, o que condena a própria consciência. Por isso, Paulo diz: “Tudo
o que não provém da fé é pecado”.
Portanto, Davi perdeu sua fé e o Espírito Santo quando se envolveu com a esposa de outro
homem. De fato, ele perturbou o Espírito Santo de várias maneiras: primeiro, em seu próprio
coração, o que o levou ao adultério; depois, em muitos santos, alguns dos quais foram
escandalizados e sofreram dor, enquanto outros foram levados à destruição; e também nas
mulheres miseráveis que foram violentadas por Absalão e seus seguidores.
A necessidade de evitar as punições deveria mover as mentes das pessoas, uma vez que
vemos toda a história do mundo cheia de eventos muito tristes, que certamente são punições
pelos pecados. No entanto, há tanta cegueira nos seres humanos que muitos acreditam que essas
coisas acontecem apenas por acaso. Essa insensatez precisa ser eliminada: devemos saber que
todos os eventos tristes na vida humana são realmente punições, tanto pelo primeiro pecado da
humanidade quanto pelos pecados de outras pessoas, como o Salmo 39. 12 diz: “Por causa das
iniquidades, Tu castigas o homem”. Além disso, como tudo o que é presente é passageiro, as
punições presentes não correspondem à ira de Deus eterna, mas são testemunhas do julgamento
vindouro. Deus nos adverte que haverá outro julgamento, no qual não se tratará de coisas
momentâneas e perecíveis, mas sim de coisas eternas. Esse julgamento deve estar sempre diante
de nós, e é sobre esse julgamento que devemos nos lembrar quando vemos as punições presentes.
E que seja rejeitada aquela fria zombaria em que as ações boas são censuradas por medo de
punição. A resposta é fácil para os piedosos, que sabem que há muitas causas e ordens para a
mesma ação; sabem que é feito corretamente por amor a Deus, não por medo de punição; mas
também sabem que Deus deseja que Sua vontade e ira sejam reconhecidas nas punições, que as
punições presentes e futuras sejam temidas. E todas as punições são amplamente divulgadas,
muitas vezes os pecados são punidos por outros pecados, e muitas pessoas são envolvidas em
pecados e calamidades. Muitas dessas desgraças têm apenas um culpado, assim como o pecado
de Davi: quantos crimes, desesperanças, blasfêmias e coisas muito tristes ele trouxe?
A admissão do culto ao ídolo por Salomão foi a causa da divisão do reino de Israel; essa
divisão causou discórdia religiosa e guerras contínuas. Deus quer que tais exemplos sejam
considerados para que realmente temamos Sua ira e consideremos a nossa e a salvação dos
outros; mas a mente cega do homem não percebe a magnitude do pecado nem da ira de Deus;
pelo contrário, mesmo diante das punições presentes, o ímpio ainda zomba de sua própria
desgraça e ridiculariza a Cristo.
Os piedosos devem aprender, como foi dito, a reconhecer a ira de Deus na imensidão das
calamidades humanas; devem também aprender a evitar as armadilhas do diabo, que
gradualmente os impulsiona através de etapas e tece uma longa trama de muitas misérias, para
finalmente levá-los à desesperança, como foi dito: “Ele anda em volta como um leão rugindo,
procurando a quem possa devorar”[85].
A seguir, vem a dignidade. Aqui, mais uma vez, enfatizo que a dignidade não deve ser
atribuída às virtudes pelo fato de, por meio delas, a pessoa receber o perdão dos pecados, de
satisfazer a lei de Deus ou de ser o preço da vida eterna; mas a fé deve brilhar, afirmando que
agradamos a Deus por causa do Filho de Deus, como foi dito acima; depois, também por causa
deste mesmo Mediador, tais cultos são agradáveis a Deus, que não deseja que toda a humanidade
pereça: portanto, Ele deseja que haja uma igreja em que Ele seja reconhecido, invocado e
adorado; Ele aceita essa obediência por causa do Filho e chama de “sacrifícios”, ou seja, as obras
pelas quais Deus julga que recebe honra. Por isso, Pedro diz: “Ofereçam sacrifícios espirituais”.
Essa é a dignidade do chamado, não da pessoa, assim como um magistrado ou apóstolo deve
glorificar suas obras e pensar que são de grande importância, pois por meio delas Deus governa a
vida, concede a vida eterna e, portanto, é governado e auxiliado por Deus, e por essa razão, faz
tudo com mais dedicação.
Assim, cada membro da igreja deve sentir que essa é a essência de todos os chamados: ser
um membro do povo de Deus, invocar a Deus por si mesmo e pelos outros, oferecer sacrifícios,
ou seja, todas as boas obras prescritas por Deus. Essa dignidade do chamado deve ser entendida e
considerada. Saiba que o seu estudo das letras e sua modéstia de vida são verdadeiramente uma
grande coisa, e estão relacionados à glória do chamado e à necessidade dos outros. Por isso,
Deus exige e aprova isso, como foi dito, Ele governa e ajuda. Portanto, faça as obrigações de seu
lugar com mais dedicação.

SOBRE AS RECOMPENSAS
Para que o perdão dos pecados e a reconciliação sejam certos, eles são concedidos
gratuitamente por causa do Filho de Deus, e devem ser recebidos pela fé. Se dependesse da
condição de nossos méritos, tornar-se-ia incerto. No entanto, após a reconciliação, as boas obras
realizadas pelos justificados, por meio da fé em Cristo como Mediador, como já foi dito,
merecem recompensas espirituais e corporais nesta vida e na vida futura, como é claramente
demonstrado na parábola dos negociantes: “A quem tem será dado”, etc. E em 1 Timóteo 4. 8,
diz-se: “A piedade tem promessas tanto para a vida presente como para a futura”, etc.; Marcos
10. 30: “Receberão cem vezes mais, já nesta vida, casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, e
com eles perseguição; e no mundo futuro receberão a vida eterna”; Mateus 10. 42: “E quem der
mesmo que seja apenas um copo de água fria a um destes pequeninos, por ser Meu discípulo,
com toda a certeza os afirmo que de modo algum perderá a sua recompensa”; Lucas 6. 38:
“Deem, e lhes serão dado”; Êxodo 20. 12: “Honra seu pai e sua mãe, para que se prolonguem os
seus dias na terra”; em Isaías 33. 16: “Ele terá pão garantido, e água não lhe faltará”; seus olhos
contemplarão o rei em toda a sua beleza, ou seja, por obediência e boas obras, Deus concede um
governo tranquilo, honroso e pacífico, etc.; e Isaías 58. 7: “Reparta o seu pão com o faminto,
acolha em casa os pobres desabrigados”, etc.
Em suma, as Escrituras estão repletas de tais promessas de recompensas espirituais e
corporais. Pois tanto nesta vida quanto na vida futura, ambas são necessárias. Nem os indivíduos
podem manter a fé sem exercitá-la, nem a doutrina pode ser iluminada na governança e a igreja e
a política podem ser preservadas sem os dons espirituais. Deus concede um ambiente favorável
para ensinar e aprender, como um “hospitium” (local de acolhimento) para mestres e estudantes,
protegendo-o de forma admirável, assim como preservou a nau que transportava Paulo para
Roma. Portanto, também promete benefícios na vida presente. Embora a igreja enfrente
dificuldades, Deus preserva um grupo piedoso, mesmo que alguns dos fiéis morram como
guerreiros vitoriosos no campo de batalha. A lição é que tanto as boas obras espirituais como as
materiais são necessárias, não sendo em vão as promessas de Deus, mas visando ao exercício e
crescimento de nossa fé, nos incentivando a trabalhar diligentemente em busca das recompensas
oferecidas.
A fé é exercitada de três maneiras: primeiro, ao buscar coisas, deve-se pensar inicialmente
na remissão dos pecados, pois assim como David não pode buscar a vitória a menos que
considere que Deus está reconciliado com ele.
Em segundo lugar, a fé deve estabelecer que não é por acaso que as coisas boas nos são
oferecidas, como os ímpios imaginaram que a nau de Paulo foi salva por acaso. Pelo contrário, a
fé verdadeiramente afirma que somos protegidos, defendidos e auxiliados por Deus, e essas
promessas de benefícios são apresentadas para que a imaginação epicurista seja expulsa das
mentes das pessoas, aquela que imagina que o bem e o mal acontecem por acaso. Aprendamos,
ao contrário, que os bens são verdadeiramente dados por Deus, e que devemos buscá-los d’Ele.
Em terceiro lugar, a fé é exercitada ao buscar ajuda e compensação, assim como aquele que
dá esmolas abre mão de algo seu e percebe que ficará carente se Deus não os assistir. Ele pede e
espera ajuda e compensação de Deus.
Para compreender isso, consideremos a antítese e examinemos nossos corações: você é
menos diligente em suas ações porque pensa que trabalha em vão, pois desagrada a Deus; essa
imaginação entra em conflito com o primeiro exercício da fé. Além disso, você é menos
generoso porque pensa que essas questões estão confiadas ao cuidado humano e não são
atendidas por Deus; esse erro entra em conflito com o segundo exercício da fé. Deus, de fato,
exige a diligência humana, mas quer que ela seja governada por Sua Palavra, assim como as
outras virtudes: que você seja diligente, ou seja, que trabalhe de acordo com o mandamento de
Deus, que não faça desperdícios inúteis, mas que contribua para os usos necessários da igreja e
dos pobres.
Além disso, você é menos generoso porque pensa que Deus não irá recompensá-lo, que seu
futuro será de penúria; essa falta de confiança entra em conflito com o terceiro exercício da fé.
Portanto, para fortalecer e aumentar a fé, Deus estabeleceu várias ações e adicionou promessas
de ajuda e recompensas, para que haja oportunidade para a oração. Como você espera a salvação
eterna de Deus e não espera sequer um pedaço de pão? Resistamos, portanto, à nossa falta de
confiança, e realizemos ações de acordo com os mandamentos, e quando elas parecerem difíceis,
despertemos fé e oração nelas. Consideremos também as recompensas, preocupemo-nos com a
igreja, com o bem-estar geral e com a nossa própria salvação. Por esses objetivos, sejamos mais
diligentes em nosso chamado, em nossos comportamentos, etc.
Todas essas coisas são ilustradas no exemplo da viúva de Sarepta e Elias. Quando Elias foi
chamado divinamente para ensinar e Deus garantiu que ele teria sustento enquanto
desempenhasse seu ministério, ele mesmo buscou e esperou pelo alimento com fé. Assim, ele
chegou à viúva, cansado do trabalho, e pediu-lhe comida. A viúva contou sobre sua pobreza, e o
profeta acrescentou uma promessa, crendo que Deus de fato é o Criador e Salvador de Israel, que
Ele concede bens e que providenciará alimento no futuro. Embora ela veja que o alimento
disponível será reduzido para ela e seu filho, que estava presente, ela ainda alimenta o profeta
primeiro. Essa fé e ação são seguidas por recompensas: por muito tempo, a família é sustentada,
sem dúvida, pelo benefício divino. Sua casa se torna uma hospedaria da igreja, onde o profeta
ensinou toda a vizinhança. Essa grande glória é seguida por aflição: o filho morre. Mas,
novamente, novas recompensas são acrescentadas, e o filho morto é ressuscitado.
Esse exemplo fortalece ainda mais a fé da mulher e a fama do ensino de Elias se espalha
amplamente. Agora, reflita sobre quantos bons frutos o primeiro ato de caridade prestado pela
mulher em alimentar o profeta produziu e considere também o acúmulo de recompensas: não
apenas sua família é sustentada, mas ela também é instruída pelo profeta sobre o verdadeiro culto
a Deus e a vida eterna, sendo protegida de várias maneiras contra o diabo. O filho ressuscitado se
torna discípulo do profeta, que sem dúvida posteriormente serviu utilmente à igreja. Mesmo as
obras insignificantes são recompensadas com recompensas muito maiores do que o devido; e é
necessário que todos os santos confessem o mesmo que Jacó disse em Gênesis 32. 10: “Sou
indigno de todas as Tuas misericórdias”.
Entretanto, embora seja necessário que a novidade da graça seja iniciada, como Paulo diz:
“seremos revestidos” e, no entanto, não sejamos encontrados nus, o coração sempre deve
reconhecer o que o Salmo diz: “Nem todo o ser vivente é justificado diante de Ti”; e também:
“Quem pode discernir seus próprios erros?”[86]. Além disso, deve saber que nossas virtudes não
são o preço da vida eterna, mas esta é certamente concedida por meio do Mediador, como Paulo
diz: “O dom de Deus é a vida eterna”; e Cristo diz em João 6: “Esta é a vontade do Pai: que todo
aquele que olha para o Filho e n’Ele crê tenha a vida eterna”. Nessa verdadeira penitência, a
mente piedosa deve fixar-se nessa promessa e, por meio do Mediador, aguardar com certeza a
vida eterna; a fé não pode depender de duas coisas, o Mediador e nossos méritos, como uma
consciência instruída pode discernir facilmente.

QUINTA QUESTÃO
Qual é a diferença entre os pecadores, uma vez que é necessário que os pecados
permaneçam nos santos nesta vida?
Embora seja afirmado que os pecados permanecem nos regenerados, é necessário fazer uma
distinção; pois é certo que aqueles que se entregam a transgressões contra a consciência não
permanecem na graça, nem mantêm a fé, a justiça e o Espírito Santo. A fé, ou seja, a confiança
na aceitação divina, não pode coexistir com uma má intenção contra a consciência, pois são
movimentos completamente opostos, e a invocação não pode ocorrer com uma má consciência
que foge de Deus, como é dito em 1 João 3. 21: “Se o nosso coração não nos condena, temos
confiança diante de Deus”.
Portanto, a regra deve ser mantida de que a justiça de uma boa consciência não cessa
naqueles que foram reconciliados, como é dito em 1 Timóteo 1. 5: “O fim do mandamento é o
amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé não fingida”. E no
mesmo capítulo: “Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual você
também foi chamado e de que fez a boa confissão diante de muitas testemunhas”. A testemunha
da nossa consciência é a nossa glória, como é dito em 2 Coríntios 1. 12, e tendo uma boa
consciência, como é dito em 1 Pedro 3. 16.
No entanto, as várias opiniões afirmam claramente que aqueles que cometem transgressões
contra a consciência caem da graça, perdem a fé e o Espírito Santo, e se tornam objeto da ira de
Deus e das penas eternas. Como está escrito em Gálatas 5. 19: “As obras da carne são
manifestas: adultério, fornicação, impureza, libertinagem, idolatria e outras semelhantes. Aqueles
que praticam tais coisas não herdarão o Reino de Deus”. Ele chama essas obras de manifestas,
porque são feitas contra a consciência. E em 1 Coríntios 6. 9: “Não se enganem! Nem impuros,
nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos,
nem bêbados, nem maldizentes, nem aqueles que roubam herdarão o Reino de Deus”. Aqui,
Paulo está pregando especificamente para aqueles que antes estavam sujeitos a esses vícios, mas
agora estavam corrigidos. Ele ordena que mantenham uma boa consciência e testemunha que
eles perecerão se persistirem nos vícios anteriores.
Romanos 8. 13: “Pois se viverem segundo a carne, haverão de morrer; mas, se pelo Espírito
mortificarem as obras do corpo, viverão”. Aqui, Paulo faz essa distinção: muitos males interiores
permanecem nos regenerados, ou seja, há certa escuridão e corrupção inata que nasce conosco.
Embora a luz e a obediência tenham começado, ainda assim a fé brilha como uma pequena faísca
nas densas trevas, lutando constantemente contra dúvidas e resistindo a elas. Nem o temor a
Deus é tão grande, nem a fé e o amor são tão intensos quanto deveriam ser. Além disso, existem
muitas paixões viciosas: admiração e confiança em si mesmo, diversos movimentos, chamas de
desejos desordenados e incêndios de ira injusta e inveja, como foram vistos em Maria[87] e Aarão
contra Moisés.
Finalmente, nos santos, ainda persistem muitos pecados de omissão, como são comumente
chamados, ou seja, negligências nos deveres e erros em questões domésticas, políticas e
eclesiásticas. No entanto, esses pecados não são cometidos conscientemente por aqueles
piedosos que demonstram fé e diligência, o quanto é praticamente possível. No entanto, porque
os santos resistem às paixões viciosas e creem que suas fraquezas são perdoadas por causa do
Filho de Deus, eles permanecem na graça e mantêm a fé e o Espírito Santo. Paulo expressa isso
quando diz: “Mas, se pelo Espírito mortificarem os feitos do corpo, viverão”.
Há uma ênfase singular quando ele diz “se pelo Espírito mortificarem”; pois nos chama a
uma acirrada luta, deseja que resistamos às paixões viciosas e, de fato, pelo Espírito, ou seja,
pelos verdadeiros movimentos, acesos pelo temor e fé na Palavra de Deus, que provêm do
Espírito Santo. Que a mente considere o mandamento de Deus e as punições, e que pense em
quão terrível é a ira de Deus. Que se observe os exemplos dos que caíram, como Saul e outros
que não foram restaurados. Que se saiba que a partir de uma única queda surgem infinitos
pecados e escândalos. Além disso, que se creia que a obediência agrada a Deus e busque auxílio
e orientação, como está escrito: “Sem Mim nada podem fazer”. E também: “Peçam, e vocês
receberão”. Quanto mais o seu Pai celestial dará o Espírito Santo àqueles que pedirem. E, como
tantas vezes é dito nos Salmos: “Ajuda-me, e serei salvo”. E ainda: “Faça com Vosso servo
segundo a Tua misericórdia, e ensina-me os Teus preceitos”. E também: “Cria em mim, ó Deus,
um coração puro”, isto é, uma purificação da fé que faz sentir corretamente sobre Deus; e
“renova em mim um espírito reto”, ou seja, firme, que não duvida. “Não me rejeites da Tua
presença e não retires de mim o Teu Espírito Santo”, isto é, o que governa todas as ações, para
que não me afaste de Ti. Restitui-me a alegria da Tua salvação e sustenta-me com um espírito
voluntário, ou seja, um espírito que não recua diante de lutas e perigos, para que eu seja
fortalecido.
Assim como José resistia aos encantos da esposa de Potifar; assim como Jonatas se fortalecia
para não ser consumido pela inveja contra Davi; assim como Davi se dominava para não matar
Saul; assim como se sustentava para não ser quebrantado pela desesperança quando foi expulso
para o exílio. Assim ensina Paulo: “Que o pecado não reine em seu corpo mortal”. E parece ter
tirado essa expressão do livro de Gênesis: “O seu desejo será para o seu marido, e ele lhe
dominará”. Pois, pelo termo “dominar”, não se entende ociosidade ou negligência, mas sim o
ímpeto do Espírito Santo e a diligência da vontade. José, ao considerar o mandamento de Deus e
antevendo as punições, escândalos e outras ruínas que adviriam, resistia às seduções. Também
buscava a orientação divina e acrescentava a sua própria diligência. Controlava seus olhos para
que não vagassem imprudentemente, evitava solidão e ocasiões para não cair nas armadilhas do
diabo. Que os piedosos aprendam e pratiquem essa diligência e percebam que não foi dito sem
razão: “Você dominará sobre ele, e ele não dominará sobre você”[88]. Pois, quando o pecado
domina, traz consigo múltiplas perdições e a ira de Deus, resultando em morte eterna. Pelo
contrário, quando não domina, os piedosos retêm a justiça concedida e a fé. Portanto, Paulo diz:
“Se mortificarem as obras da carne pelo Espírito, viverão”.
Eu mencionei que alguns pecados permanecem nos regenerados, isto é, certos males
interiores contra os quais eles mesmos lutam. No entanto, quando pecados são cometidos contra
a consciência, o Espírito Santo é derramado e perturbado, a graça é perdida e a fé, ou seja, a
confiança na misericórdia, é abalada. Isso é o que Paulo quer dizer quando diz: “Se viverem
segundo a carne, morrerão”, ou seja, se vocês obedecerem às concupiscências viciosas, estarão
sujeitos à ira de Deus e à morte eterna. No mesmo lugar, ele diz: “Os que são conduzidos pelo
Espírito de Deus são filhos de Deus”. Mas aqueles que vão contra a consciência derramam e
perturbam o Espírito Santo. Assim, deixam de ser filhos de Deus, como também testificam as
sentenças citadas anteriormente: “Não se enganem; nem os adúlteros, etc.”. E João diz: “Aquele
que pratica o pecado é do diabo”, ou seja, ele já está cativo do diabo, é culpado da ira de Deus e
da punição eterna, sendo impelido pelo diabo a cometer múltiplos pecados.
Essas ameaças tristemente nos exortam a reprimir os impulsos viciosos, para que não
caiamos da graça concedida. Não é necessário trazer aqui discussões sobre predestinação, mas
devemos julgar a vontade de Deus a partir da clareza da Palavra de Deus.

OS ARGUMENTOS DOS ADVERSÁRIOS


De forma clara e evidente, ensinamos que é necessário que existam no homem o
conhecimento dos artigos da fé, a contrição, uma boa intenção e um início de amor. Esses são
pontos em que os adversários lutam, mas mesmo assim, admitimos que eles devem existir no
homem. No entanto, acrescentamos que é necessário acrescentar a fé, ou seja, a confiança na
misericórdia, para que tenhamos a remissão dos pecados por causa do Filho de Deus, não por
causa de nossas próprias virtudes. Por outro lado, eles dizem que deve haver dúvida e adicionam:
“Você terá remissão dos pecados quando for digno”, ou seja, por causa de suas próprias virtudes.
Além disso, eles imaginam que os seres humanos podem satisfazer a lei de Deus.
No entanto, quando retemos todas as coisas que eles pedem e, além disso, desejamos
acrescentar a fé que concede a Cristo a devida honra e consolação certa para as mentes
perturbadas, certamente não ensinamos nada absurdo e sem justa causa condenam de forma tão
furiosa a doutrina que é apresentada sobre a justificação em nossas igrejas. Essa doutrina, sem
dúvida, é a própria voz do evangelho e o consenso dos santos padres, profetas, apóstolos e todos
os piedosos em todos os tempos que tiveram um pouco de luz. Todos eles entendiam que é
necessário haver arrependimento em nós e que devemos seguir boas obras, mas ainda assim, a
remissão é concedida por meio do Mediador, não por causa de nossa dignidade, e que agradamos
a Deus por causa desse Mediador. E com essa fé, ou seja, a confiança na misericórdia, eles
invocavam a Deus, não fugiam nem se enfureciam contra Deus. Portanto, Paulo enfatiza
frequentemente a palavra “gratuitamente”; da mesma forma, Pedro diz em Atos 10. 43: “Todos
os profetas dão testemunho d’Ele, de que todo aquele que n’Ele crê recebe a remissão dos
pecados pelo Seu nome”. Esse consenso é o verdadeiro testemunho da igreja, e a experiência de
todos os piedosos apoia essa doutrina. Pois sem esse conforto, as mentes não podem se aquietar
em verdadeiro arrependimento ou diante de verdadeiros terrores. Essas coisas sendo tão certas,
ninguém sadio na igreja pode contradizer isso.
Mas o que os monges escreveram de forma diferente acontece porque eles não distinguem a
lei e o evangelho e falam da justificação de maneira filosófica, exatamente como Platão ou
Aristóteles pensariam que Aquiles é um homem corajoso porque tem essa virtude e um certo
sopro divino. Da mesma forma, eles dizem que Paulo é justo por causa de suas virtudes e do
sopro divino, não adicionando nada sobre o Mediador, as promessas ou o evangelho, nem sobre a
fé ou confiança no Mediador. Na verdade, eles ordenam que duvidemos da reconciliação, ou
seja, apagam o evangelho e a promessa, e sepultam Cristo.
Portanto, sempre que essa controvérsia surge em nossa mente, devemos voltar nossa atenção
para este objetivo: embora a verdade seja que o arrependimento é necessário, e ainda assim, por
causa do Filho de Deus, temos remissão, agradamos e somos ouvidos, devemos dar ao Filho de
Deus a devida honra e invocar a Deus com essa fé ou confiança na misericórdia prometida, como
foi dito: “Tudo o que pedirem ao Pai em Meu nome”, ou seja, “com a confiança no Filho”;
também: “Por meio d’Ele temos acesso ao Pai”. Para que sejamos mais bem instruídos e
preparados para refutar os argumentos dos adversários, enumero e explico os principais pontos
em ordem.
I. Justiça significa obediência a todos os preceitos; a fé, da qual estamos falando, não é
propriamente o cumprimento de todos os preceitos; portanto, não somos justificados pela fé.
Respondo à maior premissa: a maior afirmação é verdadeira em relação à justiça da lei; pois
a justiça da lei é, propriamente, a obediência a todos os preceitos; mas, por essa mesma razão,
porque a natureza corrupta não satisfaz à lei, outra justiça foi revelada e concedida, que é a
aceitação por causa do Filho de Deus, seguida da doação do Espírito Santo. Portanto, a palavra
“justiça” tem um significado diferente na premissa maior e na conclusão. Quando Paulo diz que
somos “justificados pela fé”, ele quer dizer que alcançamos o perdão dos pecados, ou seja, somos
aceitos por causa do Mediador, gratuitamente, como ele afirma em Romanos 4. 5: “A fé lhe foi
imputada para justiça”. Essa explicação claramente mostra que nosso argumento não é abalado
por esse argumento.
No entanto, devemos examinar cuidadosamente as fontes: muitos dos argumentos dos
opositores surgem do julgamento da razão ou da lei sobre a disciplina, e todos têm seus olhos
fixos nisso, como Paulo diz: “seguindo a lei da justiça, não alcançaram a justiça”, e eles não
discernem entre a lei e o evangelho, nem percebem que o evangelho nessa questão não trata da
vida política, mas da reconciliação diante de Deus. Essas questões ocultas devem ser distinguidas
da vida civil; portanto, que os estudiosos afastem essas confusões e nuvens, ou seja, a confusão
entre a lei e o evangelho, e a confusão entre a vida política e a reconciliação diante de Deus, e
que se atentem ao verdadeiro objeto dessa questão.
II. É impossível que apenas o conhecimento torne alguém justo; a fé é apenas conhecimento:
portanto, é impossível que alguém seja justificado apenas pela fé.
Primeiro, respondo à premissa: a fé não significa apenas conhecimento, como no caso do
diabo, do qual Tiago diz: “Os demônios creem e tremem”. Mas a fé significa no intelecto o
conhecimento e o assentimento das promessas de Cristo e, na vontade, a confiança pela qual a
vontade deseja e aceita a misericórdia oferecida e nela se satisfaz. Assim como quando Cícero
ouviu que a segurança lhe era prometida por César, ele seguia o conhecimento em seu intelecto e
a confiança em sua vontade, pela qual desejava e aceitava o benefício oferecido e nessa promessa
se satisfazia. Portanto, a fé não é apenas conhecimento, mas também aquela confiança, como
dissemos, pela qual a promessa é apreendida, como o quarto capítulo de Romanos testemunha
claramente: “Aqui se entende por fé aquela que recebe a promessa”, de modo que é necessário
entender a confiança na misericórdia concedida. Mas esse argumento surge da imaginação da
razão, que sempre procura alguma virtude nossa para que possamos nos considerar justos,
quando nesta questão não é dito que somos justos pela fé porque tal virtude está em nós, em uma
parte ou outra, embora as virtudes devam estar presentes. Mas quando dizemos que somos
justificados pela fé, é porque ela apreende a promessa e declara que somos reconciliados por
causa do Mediador.
Assim, essa objeção também é refutada: a fé significa confiança; na confiança está presente
o amor[89]: portanto, também somos justos pelo amor. Concedo que o amor está presente na
confiança e que essa virtude e várias outras devem estar presentes, mas quando dizemos que
somos justos pela confiança, não se entende que somos justos por causa da dignidade dessa
virtude, mas por sermos recebidos pela misericórdia por causa do Mediador, que, no entanto,
deve ser apreendida pela fé. Portanto, dizemos correlativamente: somos reconciliados com Deus
pela misericórdia por causa do Filho de Deus, e isso deve ser recebido ou estabelecido pela fé,
para que a vontade se satisfaça no Propiciador proposto.
No entanto, que o leitor piedoso considere como absurdo e indigno não distinguir a fé
diabólica da fé pela qual a igreja invoca a Deus, se aproxima d’Ele e alcança a paz, como é dito
em Romanos 4 e também em Romanos 10. 11: “Todo aquele que n’Ele crê não será confundido”,
e em Gálatas 2. 20: “Vivo pela fé do Filho de Deus”. Ninguém deixaria de ver como seria
extremamente absurdo imaginar que, nessas passagens, a fé não significa nada além do
conhecimento diabólico; pois o conhecimento diabólico foge de Deus, não O invoca, não se
aproxima d’Ele. Portanto, as palavras de Tiago sobre a fé: “Os demônios creem e tremem” não
devem ser misturadas com as palavras de Paulo. Paulo fala de uma fé diferente, Tiago fala de
outra fé; e qualquer pessoa sã pode entender facilmente que a fé da igreja que invoca a Deus não
é semelhante à fé do diabo que foge.
III. Aquele que não ama permanece na morte: portanto, é impossível ser considerado justo
apenas pela fé.
Concordo que, se você entender que a fé não deve ser isolada, não vem a seguir que o amor
seja a causa do perdão dos pecados. Da mesma forma que a paciência é necessária para a fé, mas
isso não implica que nossa paciência seja a causa do perdão. A partícula exclusiva “sola” não
exclui as virtudes, para que elas não estejam presentes, mas exclui-as da causa da reconciliação e
indica que o mérito único de Cristo é a causa da reconciliação. Também é importante saber que
devemos remover as noções humanas sobre a justiça da lei, que surge do amor a Deus. Se a
natureza humana fosse sem pecado, poderia verdadeiramente amar a Deus; mas, porque está
sobrecarregada pelo pecado, é necessário receber primeiro o perdão. E o amor não pode ser
inflamado a menos que o perdão dos pecados seja reconhecido e compreendido. É em vão que
pensam sobre o perdão aqueles que creem que ele é obtido sem o combate da fé.
IV. Somos justificados pela fé; a fé é uma obra: portanto, somos justificados por causa das
obras.
Respondo à premissa maior: a palavra “maior” deve ser entendida em correlação com a frase
anterior: somos justificados pela fé, isto é, pela misericórdia de Deus por meio de Cristo somos
justificados; não porque a fé seja uma virtude que mereça o perdão por sua própria dignidade. No
entanto, é necessário admitir o que é adicionado: a fé é uma obra; pois ela é uma obra, assim
como o amor, a paciência, a castidade; e assim como essas virtudes são fracas e vacilantes, a fé
também é muito frágil e é abalada por muitas dúvidas. Portanto, não somos considerados justos
pela fé porque a dignidade dessa virtude é tão grande que mereça o perdão, mas sim porque deve
haver um instrumento em nós pelo qual possamos apreender o Mediador que intercede por nós,
através de quem o Pai eterno é propício.
V. Somos justificados pela graça; a graça é o amor infundido no coração: portanto, somos
justificados pelo amor infundido.
Para responder à premissa menor: a graça propriamente significa a misericórdia gratuita ou a
aceitação gratuita por causa de Cristo; pois, quando se diz que temos remissão pela graça, se
você entender assim que temos remissão por causa das virtudes concedidas, você destruirá
completamente todo o ensinamento de Paulo e privará as consciências de verdadeiro consolo;
pois não devemos olhar para nossas qualidades quando estamos buscando o perdão, mas
devemos nos refugiar no Mediador. Nessa mesma luta, nossos corações também são ajudados
pelo Espírito Santo, como Paulo diz: “Deus enviou o Espírito que clama: Aba, Pai” (Romanos 8.
15); e ele ensina que, nesse movimento da fé, o Espírito Santo é dado (Gálatas 3. 14): “para que
pela fé recebamos a promessa do Espírito”. Portanto, quando essa aceitação está ligada à
concessão do Espírito Santo, ainda assim, não se segue que temos reconciliação por causa dessas
novas virtudes.
VI. É impossível conhecermos a vontade de Deus para conosco; crer que estamos na graça
é afirmar algo sobre a vontade de Deus para conosco; portanto, parecemos estar afirmando
algo impossível quando dizemos que devemos crer que estamos na graça.
Respondo: A premissa maior é verdadeira quando se trata da vontade de Deus não revelada
pela Sua Palavra; no entanto, é certo no Evangelho, proclamado pelo Filho de Deus vindo do
seio do Pai eterno, que somos instruídos a afirmar que Deus está propício a nós por causa do
Mediador. Mas a mente humana, oprimida pela escuridão natural ou pela concepção da lei,
considera um delírio afirmar que Deus está propício a ela. Contra essas imaginações, é por isso
que a mesma voz do Evangelho é transmitida, enviada pelo Filho de Deus e dada a promessa,
para que possamos crer e afirmar isso.
Mas se pode dizer: “Uma condição da lei foi adicionada.” Respondo: embora a penitência
seja necessária, a remissão não depende de nossa dignidade, mas é certa por causa de Cristo.
Davi, depois de cair, se arrependendo, afirmou que foi verdadeiramente restaurado à graça, tendo
ouvido esta voz: “O Senhor perdoou o seu pecado”. A mesma voz é verdadeiramente dirigida a
todos que se arrependem na administração do evangelho; e o mandamento é imutável, para que
creiamos no Filho de Deus: “A Ele ouçam”. Portanto, embora pareça absurdo à mente humana,
devemos opor a promessa e o mandamento de Deus à imaginação da razão, para que possamos
aprender a invocar verdadeiramente a Deus; pois onde não há essa fé, que percebe que somos
recebidos e ouvidos por causa do Mediador, não há verdadeira invocação. Portanto, a doutrina
que nos ordena a duvidar é pagã e suprime a invocação.
VII. Ninguém pode agradar a Deus sem possuir novos hábitos nascidos do Espírito Santo;
ninguém pode afirmar que possui esses hábitos, pois eles podem ser virtudes semelhantes
originadas da razão; portanto, ninguém pode afirmar que agrada a Deus.
A premissa menor deve ser negada; pois, embora a reconciliação não deva ser estabelecida
com base em nossos hábitos, mas em uma promessa certa de Deus, ainda assim, quando o
coração é elevado pela fé em meio a temores ou arrependimento, surgem verdadeiros
movimentos espirituais pelos quais clamamos “Aba, Pai” na invocação, e, no entanto, a
confiança se volta para o Mediador, não em nossos próprios méritos. No entanto, sempre
adiciono isto: que a vontade não persista em cometer delitos contra a consciência; por isso, João
diz: “Se o nosso coração não nos condena, temos confiança diante de Deus, e tudo o que
pedimos recebemos d’Ele”.
VIII. As virtudes teológicas são distintas: fé, esperança, amor; se a fé significa confiança,
será o mesmo que a esperança; portanto, a distinção entre as virtudes não é mantida.
Respondo: Sempre afirmamos que devem estar unidas; e quando dizemos que o homem é
justificado pela fé, como já mencionamos anteriormente, entendemos isso de forma correlativa,
ou seja, não significa que somos justos por causa da dignidade dessa virtude, mas sim por causa
do Mediador. Assim, a fé se diferencia das outras virtudes, pois ela apreende e aplica a promessa
a nós; também se diferencia, pois deseja e recebe a reconciliação presente, enquanto a esperança
aguarda a libertação futura. Em seguida, é importante reafirmar o que dizemos sobre a remissão
ser concedida a nós por causa do Mediador, o que certamente todos os piedosos reconhecem,
tornando-se mais fácil a explicação e o esclarecimento dessas sutilezas controversas. Se eles
consideram a fé entre as virtudes teológicas, é necessário entender não apenas a noção, como
aquela presente nos demônios, mas sim a fé pela qual nos aproximamos de Deus e O invocamos.
No entanto, não nos aproximamos com verdadeiro temor se acreditarmos que devemos
permanecer em dúvida perpétua; essa dúvida gera fuga e ódio a Deus, como é dito em Romanos
7 sobre os pecados que vêm pela lei.
IX. As más obras merecem penas eternas; portanto, as boas obras merecem a vida eterna: a
conclusão parece ser válida a partir dos contrários.
Respondo: Seria válida se os contrários fossem igualmente perfeitos. As más obras são
completamente contrárias à lei de Deus, mas as boas obras ainda não satisfazem completamente
a lei de Deus. Permanece em santos uma grande fraqueza, mesmo quando não há falhas na
disciplina externa e muitas virtudes excelentes, como mencionadas em Isaías e outros lugares, no
entanto, permanecem muitos males interiores, dúvidas na oração, muitos afetos viciosos,
confiança e falta de confiança; também há visões que o diabo apresenta para atrapalhar a oração,
que Paulo chama de “dardos inflamados”, que ferem até mesmo aqueles que se destacam em
virtude, de modo que prefeririam morrer a sentir essas feridas, como Paulo se queixa das
pancadas que recebe do diabo; também: “Miserável homem que sou! Quem me libertará deste
corpo de morte?”. Em meio a essas lutas, os piedosos reconhecem sua fraqueza, veem que não
conseguem satisfazer a lei de Deus, que não estão livres de pecado e, nessa humildade, buscam
refúgio no Mediador. Os hipócritas não conhecem essas lutas, pois pensam que a disciplina
externa é suficiente para cumprir a lei.
X. O pecado é o ódio a Deus: logo, a justiça é o amor a Deus.
É preciso conceder todo o argumento, mas ao mesmo tempo é importante considerar que
essas contradições não são igualmente perfeitas. O amor é frágil e ainda está impedido por
muitas impurezas, e, como mencionei anteriormente, lanças inflamadas do diabo também se
juntam, o que impede a invocação a Deus, como aconteceu com Moisés na rocha. Portanto,
nosso amor não satisfaz a lei de Deus, nem agrada por causa de sua própria perfeição, mas
agrada por causa do Mediador, como mencionado acima.
Quando, portanto, afirmam: “o amor é a justiça: logo, somos justos pelo amor”, deve-se
responder: se “justo” significa ter virtude, como os filósofos falam, a consequência é válida; mas
se significa receber remissão dos pecados, a consequência não é válida; pois nem no antecedente
“justiça” pode ser entendida como uma coisa que mereça remissão, mas sim como virtude, como
se eu dissesse: “pagar ao vendedor é justiça: logo, quem paga ao vendedor é justo”. Essas
sutilezas podem ser facilmente discernidas pelos eruditos.
XI. A justiça está na vontade; a fé não está na vontade: logo, não somos justificados pela fé.
Embora tenha sido tratado o mesmo assunto acima, eu apresento esta forma para que os que
estudam pratiquem. Primeiramente, a premissa menor deve ser negada; pois a fé significa
consentir à promessa de Deus, o que está no intelecto, e com esse consentimento está
necessariamente ligada a confiança na vontade, querendo e aceitando a promessa de
reconciliação e concordando com o Mediador designado; pois, se não quiséssemos e
aceitássemos simultaneamente a promessa de reconciliação, haveria fuga e pavor, e não haveria
paz ou tranquilidade (da consciência ou do coração). Portanto, o evangelho verdadeiramente
abraça a vontade de aceitar a promessa oferecida, com o nome de fé. Embora isso desagrade aos
opositores, que argumentam veementemente que o nome da fé significa apenas conhecimento,
como também é no caso dos demônios, no entanto, tal conhecimento é impossível de concordar
com as seguintes declarações: “sendo justificados pela fé, temos paz”; assim como: “aquele que
crê n’Ele não será envergonhado”.
Além disso, enfatizo novamente o que foi dito tantas vezes: a justiça que está em nós está na
vontade; mas aqui ser justificado significa obter de Deus a remissão dos pecados e ser aceito para
a vida eterna; isso nos é concedido por meio do Mediador que está sentado à direita do Pai
eterno, mas ainda assim deve ser recebido pela fé; ao mesmo tempo, o Espírito Santo é dado,
iniciando uma nova luz e novas virtudes, pelas quais nos submetemos a Deus, e através delas, a
vida eterna começa em nós, como Cristo disse: “esta é a vida eterna: que eles Te conheçam, o
único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”.
Aqueles que afirmam que devemos duvidar da reconciliação e alegam que o homem é justo
por suas próprias virtudes têm apenas uma imaginação pagã e não se aproximam de Deus com a
confiança no Mediador, embora Deus não queira ser adorado de outra forma, nem deseja ouvir-
nos, a não ser que o invoquemos confiando no Mediador.
XII. Tiago 2:24: “Portanto, você vê que o homem é justificado pelas obras, e não somente
pela fé”.
Respondo sem sofismas: é evidente que, nesse trecho de Tiago, a fé significa conhecimento
histórico, como também é o caso dos condenados; pois ele diz que os demônios creem e tremem.
Deve-se admitir, e claramente admitimos, que o homem não é justificado por esse tipo de
conhecimento; mas quando Paulo fala de fé, ele entende a confiança na misericórdia, que se
apoia no Mediador e, por meio d’Ele, recebe a reconciliação. Portanto, é necessário entender a fé
de maneira diferente, quando Paulo diz que “pela fé se crê para a justiça”, e de maneira diferente
quando Tiago diz que “os demônios creem”. Assim, Tiago não está em conflito com Paulo, mas
está falando de outra questão; ele refuta o erro daqueles que alegavam ser justos apenas por
professar dogmas, uma opinião que facilmente captura a mente dos ignorantes; do mesmo modo,
os judeus fingiam ser justos por causa de sua doutrina e cerimônias. É necessário refutar esse
erro.
Essa refutação não entra em conflito com Paulo; pois quando Tiago acrescenta que “o
homem é justificado pelas obras”, ele está se referindo à justiça das obras, que Paulo também
reconhece ser necessária em todo o seu discurso; mas ele nega que a remissão seja concedida por
causa dessas obras. Portanto, o termo “justificado” não deve ser entendido como sendo
reconciliado, mas como sendo aprovado, como muitas vezes é dito em outras passagens. Assim,
“o homem é justificado pelas obras”, ou seja, aquele que possui a justiça das obras é aprovado,
agrada a Deus, porque a obediência é necessária para os reconciliados; e como isso agrada a
Deus, foi mencionado acima. E uma pessoa não é justa, agradável ou aceita se lhe faltar essa
obediência, e se os pecados persistirem contra a consciência. Portanto, a sentença é que o homem
deve ter também a justiça das obras, o que deve ser absolutamente admitido; mas, ao mesmo
tempo, o ouvinte precisa aprender mais, a saber, que a remissão não é concedida por causa das
obras; e também, que as obras agradam não porque satisfazem a lei, mas por causa do Mediador.
Isso deve ser claramente acrescentado.
Portanto, fica evidente que Tiago não estava discutindo sobre a causa completa, mas
pregando sobre um aspecto, enfatizando a justiça das obras e refutando aqueles que alegavam ser
justos apenas por sua profissão. No entanto, ele não aborda a reconciliação e como a obediência
imperfeita agrada; ele menciona isso brevemente no capítulo 1, versículo 18, dizendo: “Pois, de
Sua própria vontade, Ele nos gerou pela palavra da verdade, para sermos como primícias das
Suas criaturas”.
XIII. 1 Coríntios 13. 2: “Se eu tivesse toda a fé, mas não tivesse amor, eu nada seria”.
A resposta é clara, fácil e direta. Concedo completamente; de fato, afirmamos claramente
que o amor deve estar presente; no entanto, daí não se segue que recebemos a reconciliação por
causa do amor, ou que o amor agrada a Deus por satisfazer à lei. Na verdade, o amor não pode
existir sem que a fé o preceda, pois é por meio da fé que recebemos a remissão, reconhecemos a
misericórdia e afirmamos que somos aceitos e ouvidos. Assim, o amor é inflamado e a vontade
se submete a Deus, mas esse amor e submissão são muito frágeis e facilmente manchados por
muitas impurezas. Portanto, há outra coisa, ou seja, o Mediador Cristo, por meio de quem a
pessoa se estabelece como tendo certeza de ter a reconciliação. É n’Ele que a pessoa coloca sua
confiança, não em suas próprias qualidades.
Ambas as afirmações são verdadeiras, ou seja, é necessário que o amor esteja presente, mas,
ao mesmo tempo, a pessoa tem a reconciliação por causa do Filho de Deus. Com essa resposta
clara, podemos evitar disputas mais longas; pois aqui, também, costumam surgir outras questões,
como se a fé significasse o dom de realizar milagres, ou se o amor se refere ao amor ao próximo.
No entanto, omitirei essas respostas, pois a primeira é mais clara.
XIV. Mateus 19. 17: “Se quer entrar na vida, guarde os mandamentos”. Portanto, a lei pode
ser satisfeita e nossa obediência merece a vida eterna.
Respondo: Com base nesse trecho, os opositores construíram seus erros, acreditando que o
ser humano pode satisfazer a lei de Deus e que a contumácia inerente a nós não é um mal que
entra em conflito com a lei de Deus, e que nossa obediência é o preço da vida eterna. Esses erros
surgiram do fato de que eles não faziam distinção entre a lei e o evangelho. A lei exige
obediência perfeita e promete vida, mas com a condição de obediência perfeita, como é dito:
“Faça isso, e viverá”. No entanto, é certo que ninguém pode satisfazer à lei de Deus, como Paulo
testemunha claramente em Romanos 7 e 8.
Por isso, é necessário também considerar outras palavras próprias do evangelho: Romanos 6.
23: “O dom de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus”; e João 6. 40: “Esta é a vontade d’Aquele
que Me enviou: que todo aquele que crê no Filho tenha a vida eterna”. Essas são declarações
diferentes das palavras da lei, que devem ser interpretadas a partir do evangelho. Embora haja
uma diferença entre elas, a lei não é abolida, mas, como Paulo diz, “é estabelecida pela fé”. Visto
que nossa natureza frágil não pode satisfazer à lei de Deus, Deus deseja nos receber por causa de
Seu Filho e fazer de nós herdeiros da vida eterna. Isso acontece pela fé. E quando somos
recebidos, uma nova luz e obediência se iniciam, que são compatíveis com a lei de Deus.
Embora essa iniciação não satisfaça à lei de Deus, ainda assim agrada a Deus por causa do
Mediador, como foi dito muitas vezes. Portanto, devemos observar os mandamentos de Deus e,
na mesma linha, Paulo diz: “Estabelecemos a lei pela fé”, ou seja, quando estamos inseridos na
fé em Cristo, a obediência agrada e o verdadeiro amor a Deus começa.
Com todas essas coisas ditas, então, adiciona-se o Evangelho (Mateus 19. 17): “Se queres
entrar na vida, guarda os mandamentos”, isto é, de acordo com a palavra do Evangelho ou amor
misericordioso[90] que o evangelho acrescenta. Você não pode iniciar o amor sem o conhecimento
de Cristo e do Espírito Santo, nem a obediência agrada a Deus porque satisfaz a lei, mas por
causa do Mediador. No entanto, é necessário que ela seja iniciada, como diz Paulo (2 Coríntios 5.
2): “Seremos revestidos, se ao menos não formos achados nus”. Além disso, Cristo diz (Mateus
5. 20): “Se a sua justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrarão no reino
dos céus”. Os fariseus ensinavam a disciplina externa; mas a voz do Evangelho, que prega o
arrependimento, exige mais: a justiça dos piedosos excede essas seis coisas: arrependimento, fé,
renovação do Espírito, verdadeira invocação, sucessos na vocação e repressão do diabo; pois
essa nova luz é o início da vida eterna, que será tal vida, tal sabedoria e justiça, como a lei exige,
ou seja, um ilustre conhecimento de Deus e um puro amor. Portanto, Jeremias 31. 33 diz: “Porei
a Minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração”, ou seja, acenderei a luz e a verdadeira
obediência naqueles que serão salvos, que será a sabedoria e a justiça eternas.
XV. “Perdoem, e serão perdoados”; portanto, nosso perdão merece remissão.
Respondo: Essa sentença é um sermão de arrependimento, como muitos outros nos profetas.
Isaías 1. 16. 18 diz: “Deixem de fazer o mal; ainda que os seus pecados sejam como a escarlata,
eles se tornarão brancos como a neve”. Da mesma forma, em Isaías 58. 7: “Partilhe o seu pão
com o faminto, e recolhe em casa os pobres desabrigados”. Esses e outros sermões semelhantes
em todos os lugares contêm duas partes: uma é a voz do mandamento, ordenando que nos
corrijamos; a outra é a promessa do perdão dos pecados. Ouviremos agora o Evangelho sobre
essa promessa. Isaías não diz: “Parem de fazer coisas más; por causa de suas virtudes, o perdão
será dado”. Pelo contrário, em outro lugar, ele fala claramente sobre Cristo: “Certamente Ele
tomou sobre si as nossas enfermidades”, etc. Assim também aqui: “Perdoem, e serão perdoados”.
A primeira parte é o mandamento, a segunda é a promessa, mas não é acrescentado: “porque
você perdoou, o perdão lhe será dado”. Se essa condição fosse adicionada, a promessa se tornaria
incerta, como se pode facilmente entender. Portanto, ouvindo a promessa, a mente contempla a
doutrina do perdão prometido gratuitamente por causa de Cristo. Isso significa que essa obra, ou
seja, o nosso perdão, é exigida assim como as nossas outras obras e agrada a Deus, como já foi
dito, não porque não haja manchas em nossa alma, mas porque uma mente piedosa se opõe à
maldade e ao ódio devido ao mandamento de Deus e à harmonia da igreja, e reconhece que essa
moderação agrada a Deus por causa de Cristo.
Essa é exatamente a sentença na pregação de Daniel: “Liberte-se de seus pecados pela
justiça e caridade para com os pobres, e seus pecados serão curados”. Todo o discurso é uma
pregação de penitência, onde a primeira parte pede emenda e fala não apenas de esmolas, mas de
toda a conversão: Liberte-se de seus pecados pela justiça, isto é, torne-se justo, reconhece o
verdadeiro Deus que se revelou na Palavra dada ao povo de Israel, e prometeu a remissão dos
pecados por causa do Senhor vindouro; então, que o seu governo também seja justo, que seja
cuidadoso na administração, proíba injustiças, puna os transgressores, defenda os justos, não
sejas cruel contra a igreja e o povo de Deus; finalmente, ele inclui todos os deveres de um
governo moderado e salutar, quando diz: Redime seus pecados por caridade, isto é, por
beneficências aos pobres; e esta primeira parte é a palavra da lei, que comanda a conversão. A
outra parte: “E seus pecados serão curados”, é a promessa, que deve ser aceita pela fé. Portanto,
quando apresenta a promessa, requer a fé, pela qual se crê em Deus que promete por
misericórdia, não por nossa dignidade. E isso não é uma breve doutrina; pois, quando o rei
perguntou a Daniel de onde ele sabia essa vontade de Deus e como ele afirmava certamente que
os pecados seriam perdoados, Daniel, sem dúvida, explicou a promessa entregue por Deus sobre
a futura libertação e a vida eterna, e mostrou que também se aplicava às nações. Portanto, ele não
exige cerimônias, para significar que a reconciliação é dada não por causa da lei, mas por causa
da promessa.
Assim, embora a narrativa de Daniel seja breve, a própria promessa de remissão lembra o
leitor piedoso da promessa geral de reconciliação e vida eterna, e o leitor sábio entenderá que a
pregação de Daniel está em total concordância com o Evangelho. A primeira parte traz os
preceitos de emenda, a segunda é a promessa, que deve ser aceita pela fé, pela qual é certo que
somos recebidos por misericórdia. Essas coisas são plenas e claras para os piedosos, totalmente
livres de sofismas; e eu não usarei a explicação de que boas obras merecem o perdão das penas
presentes, embora isso seja verdade, mas Daniel não fala apenas sobre a remissão das penas, mas
primeiro sobre a remissão da culpa. No entanto, a Escritura frequentemente fala do perdão das
penas presentes, como quando diz que a esmola livra da morte, ou seja, é merecida, para que não
sejamos oprimidos por perigos; da mesma forma: “Honra seu pai e sua mãe fará expiação pelos
seus pecados”, ou seja, no que diz respeito à punição presente, se for bondoso para com os pais,
os mestres, os governantes da igreja, Deus também aliviará as suas aflições.
XVI. A maior virtude justifica especialmente; o amor é a maior virtude: portanto, o amor
justifica especialmente.
Respondo: a verdade sobre a justiça da lei é ainda maior: se satisfizéssemos à lei, seríamos
justos por nossas próprias virtudes, e a maior virtude seria mais útil. Mas em relação a Cristo,
podemos verdadeiramente dizer que Ele é justificado principalmente pelo amor; mas como não
satisfazemos à lei, somos recebidos por causa do Mediador, não por causa de nossa própria
dignidade ou de nossas qualidades. Portanto, a afirmação de que a maior virtude justifica
especialmente não é válida; na verdade, somente o Mediador justifica. A maior virtude de todas é
arder de amor a Deus; mas mesmo os regenerados e aqueles que progrediram muito sentem que
há apenas uma pequena centelha acesa em si mesmos, lutando a fé na mente com dúvida, e o
diabo perturba a invocação com várias tentações. Assim, o amor a Deus no coração diminui
muito, como pode ser sentido na invocação, na qual o coração ou crê que é negligenciado ou até
mesmo foge de Deus, dando lugar a outros movimentos pecaminosos, como amor aos prazeres, à
glória, à nossa própria vida.
Portanto, embora seja necessário que a amor a Deus exista em nós, reconheçamos a imensa
fraqueza e saibamos que somos aceitos, ouvidos e considerados justos por Deus por meio do
Mediador e pela fé. É diferente falar sobre reconciliação e misericórdia para conosco e comparar
as próprias virtudes entre si. Sem dúvida, o maior de todas as virtudes é o amor a Deus, como
também a lei o requer como a maior virtude: “Amará ao Senhor seu Deus de todo o seu
coração”, etc. Mas onde está esse ardente amor flamejante? Apenas uma pequena centelha brilha
nos santos e é retida com dificuldade. Se pensarmos nisso, entenderemos melhor o que significa
ser “justificados pela fé”.
Agora, se desejarmos comparar as virtudes e entender suas definições específicas, isso
também pode ser esclarecedor. Comecemos com a fé, que é o conhecimento da Palavra de Deus
e o consentimento à promessa da graça. Ela é a confiança pela qual estabelecemos que Deus está
favorável a nós por causa de Cristo, e isso nos traz tranquilidade. Portanto, a fé é um
conhecimento que apreende a promessa divina e uma confiança que acalma nosso coração, não
por nossos próprios méritos, mas por causa do Mediador.
Em seguida, temos o amor. É crucial que a consciência dê espaço para o conhecimento da
misericórdia divina, pois o coração pode sentir a ira de Deus. No entanto, pela fé, reconhecemos
que Deus está propício a nós por meio de Cristo. Através dessa luz, as visões obscuras do
epicurismo e da academia são dissipadas, e com a ajuda do Espírito Santo, nossa mente entende
que estamos sob o cuidado divino e somos aceitos por Ele. O coração então começa a se
submeter a Deus e a obedecer. Surgirá certo amor a Deus, embora ainda não seja um amor
apaixonado como deveria ser em relação a Ele. O que existe é uma obediência inicial, na qual o
coração se submete a Deus e se alegra no conhecimento de Deus e na obediência, como é
expresso no cântico: “Glória a Deus nas alturas, e paz na terra entre os homens de boa vontade”.
João, para ilustrar de alguma forma o que é o amor a Deus, afirma: “Este é o amor de Deus:
que guardemos os seus mandamentos”. A esperança se une a essas virtudes. Ela é propriamente a
expectativa da futura libertação prometida por Deus. A esperança difere da fé de duas maneiras
fundamentais: primeiro, a fé apreende a promessa e nos liga ao Mediador; a esperança, por outro
lado, aguarda o desdobramento futuro dos eventos. Isso ajuda a entender por que não dizemos
que somos justificados pela esperança, pois a esperança não traz o Mediador da mesma forma
que a fé, que nos diz: “Somos justificados pela fé”. A segunda diferença é que a fé nos concede o
benefício presente da reconciliação, sem a qual a invocação não é possível; a esperança, no
entanto, antecipa os eventos futuros prometidos por Deus, etc.
XVII. Muitos pecados são perdoados a ela, porque ela amou muito[91]: portanto, o perdão é
concedido por causa do amor.
Respondo: há duas formas de absolvição. Uma é privada, para a consciência que luta com a
ira de Deus. Nessa absolvição, é essencial entender que a remissão ocorre pela fé, não por nossas
próprias virtudes. Por isso, Jesus diz: “A sua fé lhe salvou”. Nossa fé não se baseia no nosso
amor, mas apenas na misericórdia concedida, como é evidente. Além disso, o amor não pode
existir a menos que a remissão seja compreendida. A outra absolvição é pública diante da igreja,
que ocorre por causa das boas obras, que são testemunhas de conversão, como Cristo declara
aqui ao fariseu, explicando por que Ele a recebe, pois existem testemunhos de conversão.
E toda a história é uma imagem da igreja, sempre há dois grupos: um grupo hipócrita,
inflado com autoridade erudita e com a crença em sua própria justiça, porque parece de alguma
forma preservar a doutrina da disciplina e da lei. Embora esse grupo não abrace o evangelho,
porque detém o controle, ali Cristo se senta à mesa, ou seja, ali Ele prega. O outro grupo é aquele
que ouve o evangelho, verdadeiramente se arrepende, invoca a Deus com verdadeira fé,
reconhece o Filho de Deus como Mediador e prega o evangelho. A este grupo, embora o
primeiro grupo possa apresentar obras mais aparentemente virtuosas, Cristo atribui aqui o elogio
do amor, que os hipócritas arrogam para si mesmos, alegando ter a justiça da lei. No entanto,
Cristo transfere este elogio para essa mulher humilde. Nesse grupo, a justiça da lei é agradável
onde há o verdadeiro conhecimento de Cristo, e é nesse grupo que encontramos o verdadeiro
culto, como o arrependimento, a fé, a invocação verdadeira, o amor, beijar e lavar os pés de
Cristo, ou seja, embelezar e defender o ministério do evangelho e os estudos necessários à igreja,
enfrentar perigos na confissão, trabalhos e ódio ao ensinar. Em contrapartida, os hipócritas não
têm arrependimento nem temem a Deus, pois acreditam que são justos por sua disciplina ou
cerimônias. Eles estão sem fé, pois confiam em sua própria justiça ou permanecem em dúvida.
Estão sem amor, pois o amor a Deus e a invocação não podem existir a menos que a remissão
seja primeiro compreendida. Na verdade, eles não enaltecem o evangelho, mas tentam destruí-lo
ou suprimi-lo. Portanto, aqui Cristo apresenta consolo aos piedosos, refuta vigorosamente o
fariseu e retira dele o elogio à justiça, indicando que Ele defende Sua igreja contra os
julgamentos injustos do grupo hipócrita.
Se alguém não se satisfaz com esta explicação da dupla absolvição, pode usar outra: a
sinédoque é comum. Muitos pecados são perdoados a ela, pois ela se converteu[92]. Tais
expressões são encontradas em outros lugares e ainda assim a sinédoque deve ser explicada:
embora seja necessário que várias partes da conversão ocorram simultaneamente, como o
arrependimento, a fé, o amor ou a boa intenção, a remissão não é concedida por nossa própria
dignidade, mas pela misericórdia, que é apreendida pela fé. Esta explicação é tirada de Paulo
argumentando sobre a parte “gratuitamente”, pela fé em Cristo.
XVIII. A vida eterna é chamada de recompensa: portanto, é devida pelas obras.
Respondo brevemente: a vida eterna é uma recompensa, porque retribui boas ações, mesmo
que seja dada por outra razão, ou seja, por causa de Cristo, assim como a herança é uma
recompensa para o filho, mesmo que seja concedida por outra causa. Esta resposta breve e
concisa satisfaz a esta objeção; pois os oponentes, exagerando excessivamente o termo
“recompensa”, construíram muitas absurdidades a partir disso: assim como há igualdade na
contratação de trabalhos e salários, ou na compra de preço e recompensa há igualdade, eles
imaginaram igualdade entre obediência e vida eterna, e chamaram a obediência de mérito digno,
inventaram que os seres humanos poderiam satisfazer a lei de Deus, criaram a noção de obras
supererogatórias; e a respeito da fé, que olha não para nossa própria dignidade, mas para o
Mediador, e que recebe remissão e a herança da vida eterna por causa de Cristo, eles não
disseram nada; pelo contrário, afirmaram o oposto, ao dizerem que a esperança é uma
expectativa da vida eterna originada de nossos méritos; por fim, o termo “mérito” gerou muitas
discussões, e Bernardo, incapaz de se desvencilhar delas, finalmente disse: é suficiente, para
entender o mérito, que o mérito não seja suficiente; assim, o reconhecimento de nossa própria
fraqueza o obrigou a recorrer a Cristo.
Portanto, nossa explicação é clara: dizemos que é necessário que na salvação estejam
presentes o arrependimento, a fé e a obediência incipiente ou o amor. No entanto, visto que ainda
há uma grande escuridão e fraqueza na carne que se opõe à lei de Deus, é preciso reconhecer o
que Davi diz: “Nenhum ser vivo será justificado diante de Ti”. Devemos recorrer a Cristo e
estabelecer que a vida eterna é concedida àqueles que se arrependem e creem n’Ele, como Ele
próprio diz: “Esta é a vontade do Pai, que todo aquele que crê no Filho tenha a vida eterna”. É
tolice imaginar que os regenerados satisfazem a lei de Deus e estão sem pecado, a fim de que
tenhamos uma esperança certa na vida eterna, saibamos que ela é concedida aos que se
arrependem e creem em Cristo.
Entretanto, porque Deus aceita a obediência, embora boas obras não mereçam a remissão
dos pecados e a herança da vida eterna, ainda assim merecem outras recompensas corporais e
espirituais nesta vida e na futura, como Cristo disse: “A sua recompensa será grande nos céus”.
Essas afirmações satisfazem as consciências sensatas e piedosas.
E esta resposta também é verdadeira: as expressões “a vida eterna será a recompensa” e
“será dado a cada um segundo as suas obras” são frases da lei, que se referem à justiça, como se
fosse por nossa dignidade própria; no entanto, a fé que aceita a reconciliação estabelece que
somos agradáveis por causa de outro, não por causa de nossas próprias virtudes, porque ninguém
satisfaz à lei, e nessa fraqueza da natureza permanecem muitos pecados. Essa interpretação
precisa ser adicionada a partir do evangelho, que faz com que entendamos a recompensa como
uma compensação, mas não como sendo a reconciliação dada por causa de nossa dignidade, nem
que a obediência incipiente seja agradável por si mesma, mas sim que para os reconciliados ela é
agradável por causa do Mediador: depois disso, segue-se a compensação pelas boas obras.
Contudo, esse argumento deve ser rejeitado, o qual afirma que os seres humanos se tornam
negligentes em fazer o bem se a noção de mérito for eliminada. Acima mencionei que as razões
da necessidade e do dever são muito mais ponderosas. Além disso, é importante fazer uma
distinção entre as promessas; a promessa gratuita é a promessa de reconciliação e vida eterna,
enquanto as promessas da lei são adicionadas devido às obras: “Quem der um copo de água fria a
um destes pequeninos por ser meu discípulo, em verdade lhes digo que de modo algum perderá o
seu galardão”. Portanto, mesmo que boas obras não mereçam reconciliação, nem sejam o preço
da vida eterna - uma vez que a reconciliação deve preceder, a fim de que a obediência possa
agradar - ainda assim elas merecem outras recompensas, como mencionado anteriormente.
Além disso, quanto ao argumento da negligência, isso é refutado pelo perigo oposto da
dúvida. Se alguém duvida da vida eterna, como a doutrina deles sobre o mérito sugere, a dúvida
enfraquece ainda mais o desejo de fazer o que é certo; mas deixarei esse ponto de lado. Há uma
grande escuridão nas mentes dos seres humanos e uma terrível fraqueza; poucos compreendem o
que significa servir a Deus. No entanto, os piedosos que possuem um pouco de luz devem
agradecer a Deus por nos receber por meio do Filho e por aprovar e recompensar essa obediência
fraca e manchada por causa deste Mediador. E devemos nos esforçar para exercitar a fé e praticar
boas obras; pois nesses exercícios essas questões podem ser facilmente discernidas.
Expus toda a controvérsia sobre a justificação ou reconciliação. Entretanto, como muitos
contestam essa opinião, é o dever de uma mente piedosa considerar cuidadosamente qual é a
questão principal e, para facilitar o julgamento, observar a igreja de todos os tempos e considerar
a experiência dos santos. Dizemos que o arrependimento é necessário, e acrescentamos que é
preciso crer que o perdão é dado gratuitamente por causa do Filho de Deus, não por causa de
nossa própria dignidade; da mesma forma, dizemos que a mente não deve ceder à dúvida, mas
vencer a dúvida pela fé. Além disso, dizemos que a obediência incipiente é necessária; no
entanto, essa obediência não satisfaz a lei de Deus, mas agrada àqueles que foram reconciliados
por causa do Mediador. E, embora os pecados dos regenerados sejam perdoados, ainda assim os
pecados que permanecem em santos devem ser discernidos, os pecados contra a consciência.
Pois a graça é perdida quando a lei de Deus é violada contra a consciência. Estas afirmações não
só não têm absurdos, mas são realmente congruentes com o consenso de todos os santos desde o
início.
Apresentei toda a disputa em torno da justificação ou reconciliação. No entanto, uma vez
que essa opinião é contestada por muitos, é uma responsabilidade de uma mente piedosa
examinar cuidadosamente qual é a questão central e, para facilitar o discernimento, considerar a
trajetória da igreja ao longo do tempo e refletir sobre as experiências dos santos. Nossa posição
sustenta a necessidade do arrependimento, enfatizando a crença essencial de que o perdão é um
dom gratuito devido ao Filho de Deus, não resultado de nossa própria dignidade. Além disso,
afirmamos que a mente não deve se render à dúvida, mas superá-la por meio da fé. Também
reconhecemos a importância da obediência inicial; porém, é crucial compreender que essa
obediência não atende aos requisitos da lei divina, mas é agradável àqueles que foram
reconciliados por meio do Mediador.
Enquanto os pecados daqueles que foram regenerados são perdoados, é crucial discernir os
pecados que ainda persistem nos santos, especialmente os pecados que vão contra suas próprias
consciências. Afinal, a graça de Deus é comprometida quando a lei divina é transgredida
conscientemente. Essas declarações não apenas carecem de absurdos, mas estão em perfeita
harmonia com o acordo universal entre todos os santos desde os primórdios da fé.
Consideremos o exemplo de Davi, quando foi repreendido por Natã: nesse momento, Davi
compreendeu a ira de Deus e experimentou genuíno temor e arrependimento. No entanto, quando
ouviu a mensagem do evangelho, “O Senhor perdoou o seu pecado”, ele foi fortalecido por essa
declaração. Davi não presumiu que sua virtude lhe trouxesse o perdão; em vez disso, ele
depositou sua confiança nessa declaração e meditou nas promessas feitas a seus ancestrais. Ele
travou uma batalha contra a dúvida e a superou por meio da fé. E então, o que aconteceu em
seguida? Será que ele passou a crer que poderia cumprir inteiramente a lei divina? Pelo contrário,
Davi reconheceu que sua fraqueza estava longe de atingir a perfeição exigida pela lei. Por isso,
ele afirmou: “Nenhum ser vivo será justificado diante de Ti”. No entanto, ele compreendeu que,
pela misericórdia divina, a justiça de uma consciência sincera é agradável a Deus nos corações
reconciliados, conforme expresso na passagem: “Grande paz têm os que amam a Tua lei”.
Que todos os indivíduos considerem esses princípios, que certamente representam o
consenso constante e inabalável de todos os santos ao longo da história. E não será uma tarefa
difícil refutar as objeções que são levantadas contra essa perspectiva, desde que esses princípios
se mantenham diante de nós e sejam incorporados diariamente em nossas orações. Afinal, uma
verdadeira invocação de Deus não pode acontecer sem um entendimento fundamentado na
doutrina da fé. Devemos nos aproximar de Deus com confiança no Mediador, conforme
mencionado em Romanos 5. 2, onde é dito que por meio d’Ele temos acesso, entre outros trechos
bíblicos, como Hebreus 4. 16, que nos encoraja a nos aproximarmos do trono da graça com
ousadia.
10. A Diferença Entre o Antigo e o Novo
Testamento
Existe uma única e contínua Igreja de Deus desde a criação do homem e a promessa feita
após a queda de Adão. No entanto, a propagação da doutrina ocorreu em diferentes tempos e
lugares. É útil considerar a sequência histórica e os testemunhos nos quais Deus se revelou desde
o início, declarando Sua ira contra o pecado e Sua misericórdia para com os convertidos. Pois,
para que saibamos que a doutrina da igreja é apenas a primeira e verdadeira, Deus, por Seu
singular favor, desejou que uma história perpétua fosse escrita desde o início e preservada, e
acrescentou testemunhos por meio de milagres manifestados aos pais e profetas, para que
saibamos de onde e como a doutrina da igreja foi propagada desde o início. Posteriormente,
surgiram as religiões dos gentios, cada uma inventando novos deuses e cultos, abandonando a
doutrina original. Nem os gregos nem os fundadores de outras religiões conhecem a origem de
suas próprias religiões e, com frequência, inventam novas divindades, ora dedicadas a Baco, ora
a Diana.
Portanto, devemos considerar como um grande benefício de Deus o fato de Ele ter confiado
e preservado um livro autêntico para a igreja, ligando-a a este livro. Este povo é verdadeiramente
a igreja que abraça, ouve, aprende e mantém sua própria doutrina na invocação de Deus e na
conduta de vida. Portanto, não é a igreja de Deus onde este livro é rejeitado, como entre os
maometanos, ou onde uma doutrina inventada é apresentada em vez da doutrina genuína, como
entre os hereges. Portanto, precisamos do exercício da leitura e meditação para reter a doutrina
genuína, como muitas vezes foi ensinado: “Dê atenção à leitura” (1 Timóteo 4. 13) e “Que a
palavra de Cristo habite em vocês ricamente” (Colossenses 3. 16). O Espírito Santo testifica que
deseja que a doutrina e os testemunhos divinos sejam escritos: “Isso será escrito para a geração
futura, e o povo que será criado louvará o Senhor” (Salmo 102. 18-19). Portanto, amemos e
valorizemos o estudo do livro divinamente confiado e, primeiramente, saibamos em resumo que
dois tipos de doutrina estão contidos em todo esse livro: a lei e a promessa da graça, que é
propriamente chamada de evangelho. Essa distinção é a luz de toda a Escritura e ambos os tipos
de doutrina existiram antes de Moisés.
A lei é o conhecimento impresso na mente durante a criação do ser humano, ensinando a
existência de um único Deus, o Criador de todas as coisas, e indicando que devemos render-lhe
invocação e obediência, conforme a distinção entre o que é honrado e o que é vergonhoso, uma
distinção que Deus mesmo imprimiu na mente humana, e ameaçando punir a desobediência. Pois
a imagem de Deus no ser humano estava nesse modelo da mente, o conhecimento de Deus e o
entendimento da lei, e na vontade estava a direção voltada a Deus. Embora após a queda da
humanidade a vontade tenha se desviado e o conhecimento na mente tenha se obscurecido, ainda
assim o conhecimento persiste, de modo a manter um julgamento eterno e imutável de Deus
contra o pecado, testemunhando que Deus se ira contra o pecado.
Porém, a promessa de reconciliação após a queda não é um conhecimento inerente à
natureza, mas é uma declaração proferida do segredo do seio do Pai, previamente desconhecida
por todas as criaturas. Por meio dessa declaração, Deus testificou que Ele receberia os seres
humanos em Sua graça, apagaria o pecado e a morte, e restauraria a justiça e a vida por causa de
uma semente futura da mulher. Um prelúdio de ambas as doutrinas foi proclamado no jardim do
Éden: a voz da lei acusava a desobediência, enquanto a promessa afirmava que a semente da
mulher esmagaria a cabeça da serpente. Posteriormente, houve indivíduos como Adão, Sete,
Enoque e outros que, através de um chamado legítimo, desempenharam a função sacerdotal e
propagaram ambas as doutrinas.
A lei, que proíbe o assassinato, foi explicitamente pregada em uma pregação direcionada a
Caim e, mais tarde, foi repetida em uma pregação direcionada a Noé. A lei, que proíbe
comportamentos libidinosos impróprios, foi estabelecida no paraíso e, posteriormente,
testemunhos sobre o julgamento de Deus foram apresentados por meio do dilúvio e da
conflagração de Sodoma. Da mesma forma, a promessa foi progressivamente mais esclarecida,
como quando foi dito a Abraão: “Por meio de sua descendência todas as nações serão
abençoadas”.
Então, o que é propriamente chamado de Antigo Testamento, e o que é o Novo, quando
sempre foi necessário pregar a lei e o evangelho, e quando o ministério dessas mesmas palavras
permanece contínuo na Igreja? Respondo: o Antigo Testamento é propriamente a promulgação
da lei ou o pacto pelo qual o povo de Israel estava obrigado à lei e a esta forma de política, com o
propósito de preservar e propagar a promessa do futuro Messias dentro dessa estrutura política.
Por causa dessa promessa, havia uma verdadeira Igreja dos eleitos dentro deste povo.
Esse objetivo deve ser examinado com atenção, embora a multidão ignorante do povo de
Israel não o compreendesse completamente e estivesse envolta em três equívocos. O primeiro
equívoco estava relacionado à promessa da posse da terra, o que eles entendiam como a obtenção
de um local específico. Eles viam a república como algo tangível: assim, acreditavam que o
Messias prometido aumentaria e consolidaria essa estrutura política, sem compreender que Ele
seria enviado como uma oferta expiatória para eliminar o pecado e a morte. Ao mesmo tempo,
eles não percebiam que, após a queda dessa estrutura política, Ele concederia justiça e vida
eterna aos que creem.
O segundo erro estava enraizado na falta de compreensão sobre por que a lei havia sido
promulgada de forma tão específica. Não se tratava apenas de uma regulamentação política para
orientar o povo; havia um propósito maior. A lei foi dada para estabelecer uma clara voz de
Deus, transmitida por um testemunho notório, através da qual o julgamento divino eterno e
inalterável contra o pecado fosse revelado. O objetivo era levar as pessoas a reconhecerem a ira
de Deus e, assim, buscar a promessa do Messias. Entretanto, a multidão que não compreendia
isso interpretava equivocadamente a lei como uma mera disciplina política. Eles pensavam que
obedecer externamente à lei de Deus era suficiente para cumprir seus requisitos. Eles não
compreendiam os pecados internos, as incertezas quanto à ira e à misericórdia de Deus, não
experimentavam um temor genuíno, uma fé ardente, um amor profundo e a confiança em Deus e
Sua ajuda divina na oração. Como resultado, duvidavam se Deus aceitaria suas preces. Em suma,
eram atormentados por uma série de conflitos internos. Muitos deles acreditavam que essas lutas
não eram pecaminosas e não iam contra a lei de Deus.
O terceiro erro era que acreditavam que seus próprios pecados e quedas poderiam ser
compensados por meio de sacrifícios, e que poderiam merecer o perdão dos pecados através do
abate de animais e outras cerimônias, e com essa crença eles multiplicavam os sacrifícios. Na
verdade, inventavam novas cerimônias e até adotavam práticas pagãs. Eles chegavam ao ponto
de sacrificar seus próprios filhos na crença de que, por meio desse esforço árduo, poderiam
alcançar mais bênçãos. Isso era alimentado pela cegueira humana que inclina à ideia de que as
obras que inventamos têm grande valor aos olhos de Deus. Esses três erros prevaleciam
amplamente nesse povo.
Apesar disso, Deus sempre manteve dentro dessa mesma estrutura política uma verdadeira
comunidade religiosa, isto é, um grupo de pessoas com entendimento correto. Isso é
exemplificado em Isaías 1. 9: “A menos que o Senhor dos Exércitos nos tivesse deixado alguns
sobreviventes, teríamos nos tornado como Sodoma, semelhantes a Gomorra”. Portanto, Deus
repreendia os erros dessa verdadeira comunidade religiosa e convocava alguns de volta à
adoração genuína a Ele. Eles ensinavam que essa estrutura política havia sido criada como um
lugar definido para a comunidade religiosa, até a chegada do Messias. Eles mantinham viva a
promessa dentro desse contexto, testemunhavam que o Messias seria enviado como sacrifício
pelos pecados, trazendo justiça e vida eterna, não estabelecendo um domínio terreno durante esta
vida mortal.
Além disso, ensinavam sobre a lei. A obediência externa e a disciplina não eram suficientes
para satisfazer a lei de Deus ou agradá-lo, a menos que o alicerce fosse estabelecido primeiro.
Esse alicerce consistia em reconhecer a promessa do Messias e receber o perdão dos pecados e a
reconciliação por meio d’Ele. Eles também instruíam que essa fé deveria ser evidente na
invocação, na crença de que Deus os aceitaria verdadeiramente por causa do Messias e ouviria
suas orações.
Eles enfatizavam que essa fé também deveria ser a base para a observância da primeira parte
da lei, isto é, o Decálogo, que trata do amor, da invocação e do temor a Deus. Similarmente,
quando se tratava das cerimônias, ensinavam que elas não eram oferecidas como pagamento pelo
perdão dos pecados, mas como símbolos do Messias que viria e testemunhos da profissão de fé,
além de práticas que lembravam da fé e da invocação. No entanto, essas cerimônias não teriam
valor a menos que o alicerce fosse estabelecido primeiro - isto é, o reconhecimento da promessa
do Messias e o recebimento do perdão dos pecados, bem como o início daquela primeira parte da
lei, o Decálogo.
De maneira semelhante, quando se referiam à terceira parte da lei, ou seja, as leis judiciais,
eles ensinavam que as boas ações políticas seriam apropriadas somente quando esse alicerce
fosse estabelecido - isto é, o reconhecimento da promessa do Messias, o recebimento do perdão e
a internalização daquela primeira parte da lei, o Decálogo. Essas ações políticas deveriam ser
realizadas com confiança na ajuda divina, por causa da glória de Deus e do amor ao próximo, ao
contrário das ações realizadas por Alexandre, Sula, Mário[93] e outros, que desconsideravam Deus
em favor de seu próprio poder e benefício pessoal.
Dessa forma, os profetas apontavam para a promessa e o propósito da lei, enquanto
repreendiam as superstições infundadas. Por exemplo, Jeremias 7. 22 afirma: “Não ordenei a
seus pais acerca de holocaustos” e Salmo 51. 16 declara: “Não se deleite em sacrifícios”. Essas
afirmações pareciam claramente contradizer a lei. Portanto, reis ímpios e líderes religiosos,
valendo-se do pretexto da lei, perseguiam cruelmente os profetas. No entanto, os profetas
pretendiam ensinar que as cerimônias da lei não deveriam ser observadas sem o conhecimento e
a confiança no Messias, sem arrependimento e sem a verdadeira fé ativa. Eles também se
opunham a outros erros que a multidão ignorante estava perpetuando.
O fato de essa ordenação da política mosaica ser chamada propriamente de Antigo
Testamento é confirmado por estas palavras: Gálatas 4:24: “Estas são as duas alianças: uma é a
aliança do monte Sinai, que gera filhos para a escravidão”, ou seja, que obriga a esta política.
Mesmo que tenha sido um grande benefício - é gratificante saber onde a sede certa da igreja está
- ainda assim era escravidão, ou seja, ainda não era o bem supremo, a nova e eterna vida, que
será a verdadeira liberdade revelada no Novo Testamento. Era, em vez disso, um ministério da
lei, proclamando a ira contra o pecado, exercendo disciplina e ensinando o povo por meio de
sombras sobre os futuros bens.
Da mesma forma, em Hebreus 7. 18, diz: “Portanto, a antiga aliança é abolida porque é fraca
e inútil”. Não está falando sobre a promessa do vindouro Messias. Isso não foi inútil para os pais,
mas a lei era fraca e inútil, ou seja, para a justificação ou para a remoção do pecado e da morte.
Isso é o que ele quer dizer. Embora fosse um grande benefício ter uma sede certa para a igreja na
terra, estabelecer uma bela política e disciplina, todos esses bens estavam sujeitos à destruição e
à morte; eles não eram justiça e vida eterna.
Jeremias 31. 32 também claramente distingue o Antigo e o Novo Testamento: o Antigo
refere-se à promulgação externa da lei e à declaração do julgamento contra o pecado, assim
como à criação da política para fornecer um local definido para a palavra e os testemunhos de
Deus. O Novo não será uma promulgação externa da lei, mas uma nova e eterna vida, luz e
justiça, com a lei gravada nos corações, onde a morte e o pecado são abolidos. Jeremias abrange
todo o efeito do Novo Testamento, não apenas o início. Muitas vezes, os profetas não se referiam
apenas ao início, mas à completa restauração da natureza, ilustrando assim a clara diferença entre
o Antigo e o Novo Testamento. O Novo Testamento traz uma natureza celestial completamente
liberta de todo mal de volta à antiga natureza, que estava sujeita à lei e à morte.
Nesse contexto, também devemos considerar as designações: o termo “Antigo” é usado
devido ao tempo e ao sujeito, pois a promulgação da lei temporalmente precede a restauração da
natureza que começa com a ressurreição de Cristo e é completada quando toda a igreja
ressuscitada brilha em sua glória. Além disso, é chamado de “Antigo” devido ao seu sujeito,
porque a antiga natureza é sujeita ao julgamento da lei e precisa ser disciplinada pela lei. Assim
como a antiguidade da natureza persiste nesta vida, a lei e essa grande obra também persistem. A
lei proclama maldições, ou seja, a ira de Deus eterna, a menos que o perdão seja recebido através
do evangelho. Além disso, há numerosos e grandes calamidades, que são punições com as quais
Deus pune os pecados de todos, tanto fora quanto dentro da igreja: há guerras, doenças, escassez,
devastação, exílio, injustiças, deserções, traições, rupturas de amizades e, em última análise,
inúmeros sofrimentos. Devemos entender que essas aflições não acontecem por acaso, mas são a
voz perpétua da lei, que adverte essa natureza miserável sobre a ira eterna de Deus, a contém e a
restringe. Não devemos pensar que, com o desaparecimento da política mosaica, o julgamento de
Deus e as maldições contra o pecado cessaram. Embora de fato comece uma bênção e libertação
para aqueles que creem no evangelho, e a ira eterna de Deus seja removida, até que a antiga
natureza corrompida permaneça, algumas punições persistem.
A voz da lei moral e suas maldições foram reveladas não apenas para aquele povo, mas
também para que houvesse um testemunho e julgamento de Deus contra o pecado para toda a
humanidade. Portanto, o Antigo Testamento é chamado de “Antigo Pacto”, porque oprime toda a
antiga natureza, não apenas nos ímpios, mas também nos santos, antes da completa libertação.
No entanto, no evangelho, é oferecido consolo, auxílio e alívio para eles, e até mesmo a maldição
é abolida até certo ponto. No entanto, os ímpios perecem de acordo com as maldições sem
libertação. Muitos indivíduos notáveis pereceram terrivelmente, sobrecarregados por
calamidades presentes e ira eterna, como Saul, Pompeu, César, Crasso e Catão. Exemplos diários
congruentes com toda a história mundial estão à nossa vista. Visto que a natureza humana é
culpada, ela está sujeita às maldições da lei.
A partir do que explanei, pode-se entender claramente como as designações do Antigo e do
Novo Testamento se encaixam quando consideramos o tempo da promulgação da lei e a
restauração completa. Além disso, podemos contemplar como a antiga natureza é subjugada e
disciplinada antes da restauração total. Isso ocorre quando consideramos que cada um de nós
deve reconhecer suas aflições como a pregação da lei, na qual somos lembrados da ira de Deus e
incentivados a buscar o Messias. Devemos compreender que os freios são impostos a nós para
que essa antiga natureza seja contida.
O Novo Testamento é a proclamação do perdão dos pecados, a concessão da vida eterna e da
nova justiça, com o pecado e a morte sendo aniquilados por meio de Cristo, o Mediador. Quando
é chamado de Novo Testamento, devemos entender que ele se inicia em toda a pregação do
evangelho, desde o início da promessa feita, e é plenamente consumado na totalidade da igreja,
quando ressuscitada da morte, ela se reveste de glória eterna.
Exemplos dessa imensa glória foram testemunhados pelos apóstolos no caso de Cristo
ressuscitado e ascendente. Ali eles viram a mortalidade completamente erradicada, uma nova
natureza resplandecendo com a luz divina, uma nova justiça e vida. Assim como Jeremias falou
sobre o Novo Testamento, ele englobou não apenas a pregação do evangelho antes da
ressurreição, mas também o benefício total, como visto no capítulo 31, versículos 33 e seguintes:
“Porei a Minha lei no íntimo deles, e a escreverei no seu coração; e Eu serei o seu Deus, e eles
serão o Meu povo. E não ensinará mais cada um a seu próximo, nem cada um a seu irmão,
dizendo: Conhece ao Senhor; porque todos Me conhecerão, desde o menor deles até ao maior,
diz o Senhor, porque lhes perdoarei a sua maldade, e nunca mais Me lembrarei dos seus
pecados”.
Parece haver aqui uma contradição: primeiro é dito que se estabelecerá uma nova aliança;
mas na verdade as alianças são feitas por meio de uma palavra e um ministério vocal, pelo qual
Deus declara Sua vontade. Frequentemente é dito que no Novo Testamento será propagada uma
nova palavra, como em Isaías 61. 1: “O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque o Senhor Me
ungiu para pregar boas novas aos pobres”. Mais adiante, ele diz: “Não ensinará mais cada um a
seu próximo”. Aqui é afirmado que o ministério da voz humana terá fim. Essas afirmações se
harmonizam se compreendidas corretamente.
O Novo Testamento é iniciado nesta vida mortal através do ministério de pregar a promessa
em todos os tempos, mas é completamente cumprido com a plena luz, justiça e vida eterna, onde
o ministério de ensino cessará e contemplaremos a visão eterna de Deus. Enquanto isso, embora
o Novo Testamento tenha começado nos regenerados, porque a velhice da carne permanece, a
carne é pressionada terrivelmente pelas maldições da lei, ou seja, pelas calamidades de todos os
tipos, para que a ira de Deus contra o pecado seja reconhecida e o Mediador seja buscado. Do
mesmo modo, para que o pecado seja controlado e punido. Por isso, como já foi dito
frequentemente, a igreja é especialmente oprimida por grandes calamidades, pois Deus deseja
que Sua ira contra o pecado seja vista principalmente na igreja. Mas finalmente, a igreja rejeitará
completamente o pecado e será libertada de todas as penalidades, sendo adornada com vida
eterna e glória, como é dito aqui: “Não me lembrarei mais dos seus pecados”[94].
Assim, em 2 Coríntios 3. 6, Paulo distingue o novo testamento e, de fato, apresenta uma
doutrina de grande importância e uma consolação extremamente doce. Essa doutrina é a
seguinte: o antigo testamento ele chama de “ministério da morte”, ou seja, a lei que acusa e
condena os seres humanos; enquanto o novo ele chama de “ministério do Espírito”, ou seja, a
pregação do evangelho, pela qual o Espírito Santo é dado, iniciando uma nova luz, justiça e vida
no coração, como Romanos 8. 15 diz: “Pois vocês não receberam um espírito que os escravize
para novamente temerem, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual
clamamos: Aba, Pai”. Ao conhecerem a misericórdia através do evangelho, as mentes não mais
fogem de Deus, mas se aproximam d’Ele como Pai; e para que se aproximem, são auxiliadas
pelo Espírito Santo, invocam, creem e se apegam às promessas, ao considerarem que Deus uniu a
natureza humana a Ele através de um pacto eterno e imutável, quando o Filho nasceu de uma
virgem, ou seja, quando as duas naturezas divina e humana foram unidas no Filho. Eles têm um
testemunho claro, que mostra que Deus realmente se preocupa com a humanidade, quando
ouvem que este Filho foi enviado como uma vítima e é o autor de uma nova e eterna vida, como
Isaías diz: “Tu, Senhor, és o nosso Pai desde a antiguidade”[95]. E esta mesma voz do evangelho é
o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, ou seja, através disso é concedido o
Espírito Santo e inicia-se uma nova e eterna justiça.
Uma consolação é fornecida aqui: alguém pode se admirar por que a glória do Novo
Testamento é tão grandemente celebrada pelos profetas, quando a congregação da igreja,
formada pelos apóstolos, não possui uma ordem tão adequada, governantes tão definidos,
vitórias tão marcantes e milagres tão abundantes como a saída do Egito e a organização da
política do Antigo Testamento. Paulo responde a isso: na verdade, todos esses feitos gloriosos
foram apresentados como testemunhos, não apenas daquela política que estava destinada à
perdição, mas também como evidências da promessa de um reino futuro e eterno. Eles nos
ensinam a crer que, se Deus estava presente naquela política que pereceu, muito mais Ele estará
presente em Seu reino eterno. Algumas pessoas ficam perplexas com as decisões humanas
quando veem a igreja como um grupo disperso e desorganizado, sem líderes humanos fortes, e,
em última instância, sem uma estrutura clara. Além disso, muitos são atormentados por suas
próprias fraquezas, questionando qual é o benefício do evangelho e do nome de Cristo, quando
não percebem em si mesmos novos e maravilhosos dons. Também se sentem abandonados em
suas aflições, como outros indivíduos condenados nesta vida.
Contra essas dúvidas, Paulo apresenta este contraste: se o ministério de uma política que
estava destinada à perdição foi glorioso, quanto mais glorioso será o ministério da salvação
eterna, ou seja, será eficaz para aqueles que abraçam o evangelho e será preservado de maneiras
maravilhosas. Somos movidos em nossos corações por essas grandes agitações nos assuntos
humanos. Tememos pela igreja, pela doutrina, pelo desaparecimento das letras. Esses perigos
permanecem, não pela sabedoria humana, mas Deus intervém divinamente em meio a essa
confusão e ruína dos reinos para preservar Sua igreja. Deus quer que isso seja considerado e
deseja que peçamos Sua defesa. Para que não fiquemos desanimados, Ele nos concedeu
promessas que garantem que Sua igreja permanecerá na terra até o fim do mundo. Como Cristo
claramente disse em Mateus 28. 20: “E eis que estarei com vocês todos os dias até à consumação
do século”. Agora, uma vez que a igreja vai permanecer, o evangelho deve ser eficaz e glorioso.
É necessário que a igreja seja protegida por meio de obras maravilhosas de Deus, e é necessário
que algum estudo literário persista, mesmo que, nesta última era do mundo, todas as coisas se
tornem mais fracas e desfiguradas. Portanto, devemos nos fortalecer com a consideração dessas
consolações e ser motivados a orar.
Há muitas descrições do Novo Testamento espalhadas pelos profetas, nas quais se
mencionam tanto o sofrimento de Cristo quanto os benefícios, ou seja, o perdão dos pecados e o
reino eterno, isto é, a justiça e a vida novas e eternas, como em Isaías 53 e Daniel 9. 24: “Setenta
semanas estão decretadas para o Teu povo e para a Tua santa cidade, a fim de fazer cessar a
transgressão, dar fim aos pecados e expiar a iniquidade, para trazer a justiça eterna”. Também se
menciona: “O Senhor será morto” (versículo 26). Nessas palavras, a essência das coisas que
ocorrerão no Novo Testamento está brevemente resumida. Da mesma forma, em Zacarias 9. 11,
diz-se: “Quanto a você, por causa do sangue da sua aliança, Eu soltarei os seus cativos da cova
em que não há água”. Embora as palavras dos profetas sejam concisas, muitos detalhes são
revelados quando examinadas em conjunto. Aqui, a aliança é chamada de “sangue da aliança”,
pelo qual a aliança sobre coisas eternas é estabelecida e confirmada, ou seja, o sangue de Cristo.
Pois os profetas não dizem que o sangue dos cordeiros remove os pecados, mas que essas vítimas
são sinais de outra vítima. O Senhor diz: “Você também libertará os prisioneiros da cova, em que
não há água”, isto é, você libertará aqueles que são seus prisioneiros da morte eterna, ou seja,
aqueles que pertencem a você, e você os libertará através do sangue, isto é, pela vítima que foi
prometida para restaurar coisas eternas, ou seja, ao apaziguar a ira pela morte do Filho de Deus.
Portanto, isso abrange a morte de Cristo e os benefícios eternos.
Em seguida, no capítulo 12, versículo 10, ele descreve qual será a natureza deste reino e
quais ações principais ele terá: “Derramarei sobre a casa de Davi o Espírito da graça e da
súplica”. Neste trecho, ele menciona os bens distintivos do Novo Testamento: o Espírito da graça
é o Espírito Santo, pelo qual os corações são auxiliados a reconhecer o evangelho quando ouvem
e a creem que foram reconciliados com a graça, percebendo verdadeiramente que a ira de Deus
está aplacada. Em seguida, após terem reconhecido a misericórdia, eles invocam, e ele destaca
especialmente a invocação, porque esta é a adoração exclusiva da igreja, completamente
desconhecida por todos aqueles que desconhecem o evangelho. Ao mesmo tempo, é transmitida
a doutrina e o consolo, e somos exortados a invocar, indicando que este culto será aceitável a
Deus e não será em vão. Essas descrições e outras semelhantes nos profetas nos instruem de
maneira valiosa sobre o Novo Testamento e os benefícios do Novo Testamento. Na verdade,
entenderemos isso mais profundamente quando aplicarmos essas consolações abundantes para o
nosso próprio benefício e estimularmos o Espírito de invocação.
E frequentemente os profetas, ao falarem ao mesmo tempo sobre os castigos dos ímpios
tanto nesta vida quanto na vindoura, pregam, como em Amós 9. 8 e outros lugares: “Eis que os
olhos do Senhor estão sobre o reino pecador, e Eu o destruirei; contudo, não destruirei
completamente a casa de Jacó; eis que Eu a purificarei e a sacudirei entre todas as nações, como
se sacode o trigo na peneira, e não cairá um grão na terra; todos os pecadores morrerão à espada;
naquele dia, levantarei a tenda”, etc. Isto é, quando eu reunir a minha igreja, ao mesmo tempo,
com terríveis castigos, declararei a minha ira contra os ímpios. Depois de destruir reinos e
dispersar, preservarei um pequeno remanescente, assim como após a destruição de Jerusalém e a
dispersão do povo judeu, um remanescente foi preservado pela pregação dos apóstolos. E depois
do colapso do império romano devido a guerras civis e bárbaras, a igreja ainda foi reunida.
Agora, os tristes tumultos e destruições dos reinos são os castigos inevitáveis do mundo, entre os
quais, no entanto, Deus preserva a Sua igreja. E quando Ele glorifica toda a igreja, ao mesmo
tempo, lançará os ímpios em castigos eternos.
Assim Isaías descreve o novo testamento em Isaías 65, falando sobre a invocação e
pregação: “Eis que Eu vou para uma nação que não Me conhecia”. E então sobre os castigos dos
ímpios: “Vocês, que abandonaram o Senhor, cairão à espada”. No entanto, ele diz: “Ainda assim,
Eu pouparei uma igreja, para que, se uma única uva for encontrada, Eu não a destruirei”. E sobre
a consumação do novo testamento, ele acrescenta: “Eis que Eu crio novos céus”, etc.
Essas palavras dos profetas devem ser consideradas para discernir o começo e o fim. Além
disso, para que não consideremos, com tristeza, que durante a queda dos impérios, não há igreja
de Deus, mas saibamos que, mesmo durante essas terríveis confusões, a Palavra de Deus deve ser
procurada e mantida. E aqueles que se unem com a verdadeira igreja através da fé, vontade,
invocação e confissão são membros do povo de Deus, onde quer que estejam, mesmo que sejam
oprimidos pela servidão ou pela morte em meio aos tumultos dos reinos.
Todos entendem que este consolo é necessário para os piedosos neste momento; muitas
vezes os saudáveis são abalados por essa tentação: será que Deus realmente abandonou essas
nações onde não existem políticas eclesiásticas? Aqui, muitos caem em desespero, e apenas
alguns piedosos conseguem lutar contra essa tentação. Descrevendo essas aflições, Oseias, que
também falará sobre o novo testamento, diz em Oseias 13. 13-14: “As dores da mulher grávida
chegarão a eles, mas Eu os livrarei da mão da morte: Eu serei a sua morte, ó Morte”. O que ele
chama de “dores da mulher grávida”, os saudáveis agora entendem o suficiente, pois são afetados
pela visão de pilhagem turca e outros tumultos e confusões em muitos lugares, mas um consolo é
acrescentado que exorta os piedosos a se refugiarem na promessa do novo testamento: “Eu serei
a sua morte, ó Morte”, e também “todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”.
Eu expliquei o que é o novo testamento e apontei a importância de considerar o que é dito
sobre o começo e o cumprimento. É chamado de Novo Testamento porque a promessa foi dada
após a queda do homem e porque está começando uma nova e eterna justiça e vida, cujos bens
serão plenamente revelados após a ressurreição. No entanto, a igreja agora está sujeita à cruz
nesta natureza fraca, e todos os impérios mundiais serão abalados por punições fatais até o fim.
Portanto, mesmo que a política de Israel tenha sido destruída, juntamente com suas cerimônias e
leis judiciais, a voz da lei, que julga o pecado - ou seja, a voz dos Dez Mandamentos - sempre
permanece e as penalidades são mitigadas para os piedosos.
Assim como Deus prometeu paz e outros benefícios de vida ao povo na política de Israel, se
eles obedecessem, a igreja, embora seja um grupo disperso e não tenha um governo fixo ou local
determinado, tem promessas, não sobre um local específico, mas sobre abrigo e provisão em
geral.
Portanto, é prudente aplicar sabiamente os exemplos de punições e bênçãos de Israel: assim
como eles foram punidos por se contaminarem com ídolos, luxúria e outros crimes, agora as
punições vagam por todos os contaminados, porque o julgamento de Deus contra o pecado é o
mesmo em todos os tempos, e esses exemplos foram apresentados para declarar a voz da lei e o
julgamento de Deus para toda a humanidade e todas as eras, nos exortando ao arrependimento.
Além disso, assim como Davi, Isaías e muitos outros que invocaram a Deus foram ouvidos e
protegidos em seu chamado, devemos saber que mesmo quando a igreja é dispersa, Deus ainda
providenciará abrigo, assim como Ele fez para Elias quando ele estava exilado e encontrou
refúgio com a viúva de Sarepta.
No entanto, devemos entender que há uma diferença: não nos foi prometido um reino, mas
sim um lugar definido, mas, em geral, devemos saber que Deus fornecerá lugares de refúgio e
meios de subsistência para Sua igreja e estudos, assim como Ele providenciou um lugar na
manjedoura para o nascimento de Cristo. Nesse sentido, o apóstolo Paulo diz em 1 Timóteo 4. 8:
“A piedade tem a promessa da vida presente e da futura”. E é muito útil entender por que as
promessas de bens corporais foram dadas; podem ser enumeradas três razões:
A primeira razão é para refutar as noções errôneas dos epicuristas, ou seja, para que não
pensemos que os bens corporais nos são fornecidos apenas por acaso ou pela ordem natural das
coisas, mas sim para entendermos verdadeiramente que esses bens também estão sob o cuidado
de Deus, e que Ele nos dá moradia, governo, abrigo, paz, alimento e sucesso em nossos esforços.
Essa mensagem é frequentemente enfatizada, como no Salmo 127. 1: “Se o Senhor não edificar a
casa, em vão trabalham os que a edificam”, e no versículo seguinte: “Bem-aventurado o homem
que teme ao Senhor, que anda nos Seus caminhos”. Além disso, no Salmo 37. 19, lemos: “Em
tempos de fome, eles serão fartos”. Jesus disse para buscar primeiro o Reino de Deus, e tudo o
mais nos será acrescentado, e Ele também nos instruiu a pedir o pão nosso de cada dia. Em
Deuteronômio 8. 3, é dito que Deus afligiu o povo com a escassez para mostrar que o homem
não vive apenas de pão, mas de cada palavra que procede da boca de Deus. Também lemos em
Gênesis 26. 12 que Isaque semeou na terra e naquele ano colheu cem vezes mais, e que o Senhor
o abençoou e ele se tornou rico. E em Gênesis 28. 20, Isaque disse: “Se Deus estiver comigo, se
me guardar neste caminho que vou seguindo, se me der pão para comer e roupa para vestir”. Em
resumo, encontramos testemunhos em toda parte que afirmam que Deus provê e ajuda a vida
corporal com Sua assistência.
A segunda razão pela qual as promessas de bens corporais são dadas é para que saibamos
que Deus vai preservar Sua igreja nesta vida, porque enfrentaremos perigos de magnitude tão
grande que precisaremos desse consolo.
A terceira razão é para que a fé e a invocação de Deus sejam exercitadas nas coisas
necessárias que estão pendentes ou sendo esperadas, e para que nosso conhecimento da bondade
e presença de Deus cresça, assim como nossa gratidão. Portanto, Paulo diz em Romanos 5. 3-4:
“A tribulação produz perseverança, a perseverança produz aprovação, e a aprovação produz
esperança; e a esperança não nos decepciona”. Quando Paulo vê que suas orações são ouvidas
em meio a uma tempestade enquanto ele está a bordo de um navio, mesmo que o navio esteja
quebrado, ele reconhece a presença de Deus. Esse testemunho faz com que sua fé se torne mais
fervorosa e forte, e ele é impelido a dar graças a Deus.
Ao considerar essas razões, também exercitamos nossa fé na petição por bens corporais;
praticamos a ação de graças. E embora cada um de nós deva estar preparado para a obediência
em tempos de calamidade, devemos entender que, nessa oração, há dois objetos: estamos orando
por todo o corpo da igreja e por nós mesmos; pedimos para que a igreja como um todo não seja
destruída pelas guerras, e conseguimos isso para o conjunto da congregação. Embora o mal nem
sempre seja removido de cada indivíduo, buscamos alívio para que, ao orar pelo exército de
Davi, primeiramente oramos para que todo o exército fosse poupado; e isso foi alcançado. Então,
individualmente, eles estavam prontos para a obediência, mesmo que fossem mortos na batalha,
mas eles obtiveram alívio para que muitos fossem salvos, ou pelo menos consolo de Deus, como
Jonas, que, embora fosse morto, foi primeiro preparado e fortalecido por Deus e, no final, sua
parte triunfa, a qual ele desejava que fosse superior. Isso foi dito para que, nessas orações,
aprendamos a abraçar não apenas a nós mesmos, mas toda a igreja e todas as nações, e as pessoas
devem ser frequentemente lembradas desses exercícios.
Expliquei a diferença entre o Antigo e o Novo Testamento, o que é muito útil para uma
compreensão clara na igreja; no entanto, o leitor deve ser informado de que a instituição mosaica
foi totalmente abolida; assim como os rituais e leis civis que não são preceitos foram abolidos, e
eles não se aplicam a nós mais do que as leis de Sólon[96]. No entanto, assim como a natureza
humana permanece, assim permanecem os preceitos naturais, como a proibição de casamentos
entre parentes de primeiro e segundo graus. Entre os preceitos naturais, o Decálogo ocupa um
lugar de destaque, sendo a principal parte da lei pela qual as outras foram estabelecidas. Deus
desejava que a promulgação do Decálogo fosse feita com um testemunho claro, de modo que a
voz clara do julgamento divino contra os pecados de toda a humanidade fosse estabelecida;
portanto, o povo que foi tirado do Egito com tantos milagres e defendido de maneira miraculosa
no deserto por tantos anos foi para que a presença de Deus fosse vista, e todos esses feitos
maravilhosos servissem como testemunhos da voz do Decálogo, que não foi abolida, mas é o
julgamento eterno e imutável de Deus contra o pecado.
Pois, o fato de que os pecados são perdoados para aqueles que buscam refúgio em Cristo não
significa que Deus esteja aprovando o pecado, da mesma forma como não agrada comer carne de
porco, que era então proibido. na lei mosaica. Essa voz da lei permanece e é eterna: “Não és
Deus que tem prazer na impiedade”. Pelo contrário, Deus derramou Sua ira sobre Seu Filho, que
intercedeu por nós e pagou o preço da punição. Somos aceitos mediante essa mediação, mas
aqueles que não buscam refúgio nesse Filho permanecem condenados pela voz da lei e perecem.
Esse conceito será explicado mais detalhadamente em outro momento.
No entanto, embora as cerimônias levíticas tenham sido abolidas, elas ainda contêm imagens
de muitos benefícios de Cristo, mas precisam ser interpretadas corretamente, pois uma
interpretação errônea da lei mosaica levou a muitos erros.
Na lei, foi estabelecida com grande honra a ordem dos sacerdotes. Havia o sumo sacerdote, e
outras famílias foram designadas para diferentes funções, como sacrifícios e outros trabalhos
específicos. Esses sacerdotes estavam sempre disponíveis no tabernáculo ou templo em horários
específicos, onde ensinavam, ofereciam sacrifícios, resolviam disputas doutrinárias e se
dedicavam aos estudos. Em todo o gênero humano, poucas instituições eram mais belas e
veneráveis do que este colegiado. Embora muitas vezes houvesse ímpios entre eles,
especialmente nos tempos dos fariseus e saduceus, porque Deus havia feito promessas à família
dos sacerdotes, sempre havia um remanescente piedoso, como Jeremias, Simeão, Zacarias e
muitos outros.
Este exemplo do mais belo dos colegiados em todo o mundo certamente representa que na
igreja sempre houve e sempre haverá o ministério da Palavra divina, pelo qual Deus é eficaz e
concede a vida eterna. Isso também nos lembra que devemos reverenciar esse ministério. No
entanto, a função principal deste colegiado é apresentar o evangelho, como está escrito em
Malaquias 2. 7: “Os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento, e a lei deve ser buscada
em sua boca, porque ele é o mensageiro do Senhor dos Exércitos”.
Assim como os pagãos antigamente retiveram as cerimônias de Noé, Sem e Jafé após
perderem o ensino, da mesma forma, os ignorantes nos últimos tempos imaginaram uma imagem
do sacerdócio levítico na forma do reino papal. Nesse reino, eles obscureceram a luz do
evangelho, concedendo ao papa poderes imperiais e a autoridade para criar leis sobre novos
cultos. Para fazer alusão aos sacrifícios levíticos, eles transformaram a Ceia do Senhor em um
sacrifício de ordem fixa, que inventaram para beneficiar tanto os vivos quanto os mortos, através
de uma operação realizada, ou seja, sem um movimento sincero. Essas depravações e invejas[97]
devem ser condenadas, e devemos questionar qual foi o uso piedoso dos sacrifícios na época e o
que eles realmente significam.
Há muitos significados doces nas cerimônias que lembram os crentes de coisas importantes,
mas devemos ter cuidado para não errar na interpretação. Uma das mais belas imagens é a arca
colocada no Santo dos Santos, que era chamada de Arca da Aliança. Primeiramente, o nome
Arca da Aliança significa que esse é o povo de Deus com quem Ele fez um pacto expresso por
Sua Palavra. Portanto, quando a Palavra de Deus é perdida, esse povo deixa de ser a igreja de
Deus, e cada um de nós só é verdadeiramente um membro da igreja quando abraçamos esse
pacto pela fé e, como que, nos incluímos nessa arca. Nela, não há paredes para contemplar, mas
esse nome da aliança, que nos lembra que Deus fez um pacto conosco e nos aceitou. Assim, você
vê que esta mesma denominação significa que a igreja é aquela que abraça a aliança, isto é, a
palavra de Deus.
Em seguida, dentro da arca, foram colocadas as tábuas dos Dez Mandamentos, que
simbolizam que a igreja deve sempre ser a guardiã desses mesmos livros dos profetas e
apóstolos, nos quais Deus se revela. Portanto, onde esses livros não estão presentes, a igreja de
Deus não pode existir, e é por isso que a arca é guardada por causa desses livros. Dessa forma,
um grupo sempre será preservado como guardião desses livros. Assim, a primeira coisa que essa
arca representa é a profissão e a guarda dos livros, para que sejamos convidados a conservar e ler
este livro. Em seguida, ela representa como a Igreja de Deus é distinta do restante da
humanidade. Nas mentes deste grupo, há o conhecimento de Deus transmitido na Palavra, e a
obediência começa, que, no futuro, será completa. O povo eterno de Deus será assim, retendo em
suas mentes e em toda a natureza restaurada os Dez Mandamentos. Este povo queima de amor
por Deus com todo o corpo e toda a alma, sem desejos viciosos.
Em terceiro lugar, a arca era coberta por uma tampa de ouro chamada “propiciatório”. Essa
designação indica que a Igreja é coberta contra a ira e o terrível julgamento de Deus por meio de
Cristo, o Mediador, que, por ser o Propiciador, faz com que Deus nos perdoe, nos receba e nos
guarde. Sem essa cobertura, a natureza humana seria esmagada pela magnitude da ira de Deus.
Além disso, foi acrescentada a promessa sobre o propiciatório, conforme Êxodo 25: Deus disse
que falaria e seria ouvido ali; por isso, essa placa foi chamada de propiciatório, porque Deus quis
ser invocado nesse lugar e ligou o povo a este lugar, para que não construíssem uma nova arca
ou novos templos em outro lugar. O tipo se encaixa bem: assim como o propiciatório é o trono
de Deus, Cristo é verdadeiramente o trono de Deus, porque na verdade há natureza divina em
Cristo, e a Igreja está ligada a Ele, e não somos ouvidos senão por causa d’Ele, como está
escrito: “Tudo o que pedirem ao Pai em Meu nome, Ele os dará”. Portanto, aqueles que invocam
a Deus sem reconhecimento e fé em Cristo são rejeitados por Deus, como todos os que são
ignorantes do evangelho.
Acima deste trono, estão dois querubins com asas estendidas e olhando um para o outro. Eles
simbolizam o ministério da doutrina nos dois testamentos e suas asas unidas e rostos voltados um
para o outro indicam o consenso na doutrina. A voz dos profetas e apóstolos sobre o pecado, a
libertação por meio de Cristo, a vida eterna e, finalmente, o verdadeiro conhecimento de Deus e
o verdadeiro culto a Deus são os mesmos; e toda a pompa dos antigos sacrifícios simboliza o
único sacrifício do Filho de Deus, que se tornou vítima por nós e suportou a ira de Deus
derramada sobre Ele, como se Ele próprio tivesse cometido nossos pecados. A magnitude dessa
ira, dor, confusão, desonra e humilhação não pode ser expressa por nenhum anjo ou homem, mas
nossas mentes devem ser instigadas a pensar sobre essa grande realidade. Novamente, esses
querubins lembram que não há igreja onde não há ministério da doutrina profética e apostólica;
os ganchos e as hastes também simbolizam ministros, mestres e estudiosos. Embora nosso papel
possa ser considerado humilde e colocado muito abaixo do governo ímpio, devemos saber que é
agradável a Deus e necessário para a humanidade e que somos maravilhosamente defendidos e
preservados por Deus em meio às tempestades. Portanto, é uma verdadeira dignidade e,
considerando a grandeza da tarefa, devemos nos esforçar para desempenhar nossa função com
diligência, paciência e modéstia, e enfrentar os perigos com base nas promessas: “Eu estou
convosco todos os dias, até o fim do mundo”; também: “Sobre esta pedra edificarei a minha
igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”.
Embora sejamos, como Paulo diz, “vasos de barro”, ou seja, pessoas fracas, miseráveis,
necessitadas, não ricas em recursos, ainda assim cumprimos o ofício em nome de Cristo, como
Paulo afirma, e Deus certamente nos defenderá, como Ele demonstrou na própria vocação de
muitos profetas e apóstolos. Quão miraculosamente Ele chamou Isaías, Jeremias, João Batista,
Paulo? Isso não aconteceu por acaso, nem apenas por causa deles, mas são testemunhos úteis
para toda a igreja, que mostram que o evangelho é verdadeiramente a voz de Deus e que Deus
cuida de Seus ministros. Isso deve ser lembrado o suficiente sobre as cerimônias levíticas, para
que os estudiosos pensem que eram tipos de grandes coisas e que é necessário uma interpretação
correta com o verdadeiro conhecimento do evangelho.
Por último, embora as leis forenses não tenham relevância para nós, elas nos advertem no
geral de que a vida política, contratos, a ordem dos magistrados, julgamentos, punições para os
criminosos são agradáveis a Deus e mostram que os piedosos devem exercitar fé, confissão,
paciência e amor nesses deveres. Como mencionamos, antes de realizar essas obras políticas, é
necessário que tenhamos como base o conhecimento da promessa, a fé e a obediência ao
Decálogo.
E porque a política mosaica é a melhor ideia e modelo para a política no estado de natureza
degradada, é útil para governantes sábios considerar essa forma de governo. As leis dos pagãos
foram negligentes em duas áreas: na punição de blasfêmias e na proibição de comportamentos
lascivos. No entanto, a lei divina estabeleceu punições severas para os adoradores de ídolos,
blasfemadores e mestres ímpios. Daí, a vontade de Deus em relação a esses crimes, conforme
expressa na lei divina, deve ser considerada pelos governantes sábios.
11. A Diferença Entre o Pecado Mortal e
Venial.
Paulo declarou em Romanos 7. 9: “Eu, em certo tempo, vivia sem lei, mas quando veio o
mandamento, reviveu o pecado, e eu morri”. Esse trecho indica que, em um passado distante, ele
não estava consciente de ser acusado pela lei. Ele não temia nem compreendia a ira de Deus em
relação ao pecado, e subestimava a gravidade desse pecado e a magnitude da ira divina.
Infelizmente, muitas pessoas atualmente levam uma vida despreocupada, ignorando a gravidade
do pecado e a terrível natureza da ira de Deus. Mesmo quando somos constantemente
confrontados com as consequências do primeiro pecado e as calamidades que afetam a
humanidade, não conseguimos apreender totalmente a extensão da ira de Deus. Adicionalmente,
a intercessão e morte de Cristo servem como testemunhos sérios e genuínos da ira divina contra
o pecado. Essas evidências impactam de maneira significativa os corações dos piedosos, que,
embora não compreendam completamente a magnitude dessa ira, buscam misericórdia e a
mitigação das punições, expressando palavras como: “Senhor, não me repreendas na Tua ira”, ou
à semelhança de Habacuque: “Quando estiveres irado, Senhor, lembra-Te da Tua misericórdia”.
Do mesmo modo, Jeremias 10. 24 registra: “Corrige-me, Senhor, mas com juízo, não com ira,
para que não me reduzas a nada”. Algumas pessoas podem compreender de alguma forma a
distinção entre pecado venial e pecado mortal, mas aqueles que vivem de forma negligente,
entregues aos prazeres, não percebem essa diferenciação, levando a equívocos que muitos
escritores cometeram sobre o assunto.
Embora a grande magnitude da ira de Deus não possa ser descrita em palavras, no entanto,
para fins de aprendizado, devem ser mantidas as seguintes definições: o pecado mortal, em geral,
é uma falha, inclinação ou ação contra a lei de Deus, ofendendo a Deus e não sendo perdoado,
mas merecendo já a ira de Deus e punições eternas. Portanto, nos não renascidos, os pecados
mortais são a própria doença da origem, todos os afetos viciosos e todas as ações corruptas.
Ainda que a virtude de Tito Pompónio Ático ou Sêneca seja grande, eles não desejam prejudicar
ninguém, mas sim beneficiam muitos. Eles não se contaminam com prazeres lascivos, não são
fraudulentos em contratos. No entanto, as mentes duvidam da providência e não invocam a Deus,
mas sim se rebelam contra Deus quando veem que, em meio a tamanha confusão da vida,
frequentemente os justos são negligenciados. Essa escuridão no coração é um grande pecado,
mas que os homens desprezam. No entanto, quando os corações estão afastados de Deus, até
mesmo as virtudes desses não regenerados são contaminadas e não são corretamente governadas.
Ático pratica o bem, mas não por causa de Deus. A coragem de Alexandre era verdadeiramente
um dom de Deus e uma virtude excelente, e as coisas que ele realiza são ajudadas por Deus, mas
Alexandre não tem como objetivo servir a Deus, nem propagar o verdadeiro conhecimento sobre
Deus por meio de seu governo; pelo contrário, ele não crê verdadeiramente que sua mão seja
governada por Deus na batalha, mas pensa que as coisas macedônicas crescem por acaso e por
sua própria virtude. Portanto, negligenciando Deus, ele posteriormente se admira demais, deseja
ser adorado como uma divindade, mata amigos que ele acredita não o considerarem grande o
suficiente, cai em prazeres escandalosos. Essas manchas mostraram como era impuro o coração
anteriormente. Portanto, a impureza do coração manchava as virtudes e, posteriormente, gerava
crimes manifestos.
Embora Nero e Epicuro pequem muito mais terrivelmente do que Catão, ambos estão
sobrecarregados com pecados mortais horríveis e a ira de Deus eterna. Não é necessário buscar
uma distinção entre pecado mortal e venial nos não renascidos, pois tudo o que não é da fé é
pecado. Catão está incluído nisso se, ao não reconhecer verdadeiramente a luz que chama a
Deus, ele se revolta contra Deus quando percebe que está sendo aparentemente negligenciado em
uma causa (como parece) mais justa. Nesse caso, toda a sua convicção sobre Deus é
completamente perdida, e, portanto, todas as suas ações são condenadas. No entanto, para
aqueles que foram regenerados, é necessário investigar quem tem pecados veniais e quais de suas
quedas são chamados de pecados mortais.
Portanto, embora os regenerados, aqueles nos quais a compreensão de Cristo foi acesa,
juntamente com a fé e a verdadeira invocação, e em quem começou a obediência, sejam justos,
agradem a Deus e tenham o Espírito Santo, ainda assim neles, nesta vida, permanece uma grande
fraqueza. Esta fraqueza inclui uma obscuridade na mente sobre Deus, bem como uma inclinação
incorreta e muitos afetos viciosos no coração e na vontade. Eles têm pensamentos errôneos sobre
Deus, falta de confiança, medo, amor e outras virtudes, todas mais fracas do que deveriam ser.
Enquanto isso, eles muitas vezes se valorizam mais do que deveriam, alimentam o orgulho e a
confiança em si mesmos e, com essa presunção e confiança, às vezes tomam decisões
imprudentes. Por exemplo, o piedoso e santo rei Josias entrou em guerra com o egípcio que
ofereceu paz. Os santos muitas vezes são inflamados por ódios injustos, pelas chamas da ira e
dos desejos, mas resistem a essas inclinações. Além disso, existem muitos pecados de ignorância
e omissão entre os santos, como Davi clama: “Quem pode discernir seus próprios erros?”. Isso
ocorre porque não existe função, seja eclesiástica, política ou econômica, que possa ser adequada
a essa fraqueza humana.
Esses males nos renascidos são contrários à lei de Deus, como Paulo testifica em Romanos
7, e os piedosos reconhecem de alguma forma a magnitude e a deformidade desses males em
verdadeiras aflições. Mas porque a pessoa foi aceita, a compreensão de Cristo foi acesa em seu
coração, o Espírito Santo foi dado a ela, e de alguma forma ela reconhece, lamenta e teme sua
fraqueza, conhecendo a ira de Deus contra o pecado. Ela busca perdão, resiste às primeiras
inclinações, esses males se tornam pecados veniais para essa pessoa, isto é, eles são perdoados,
de modo que não expulsam o Espírito Santo e a fé, e a pessoa permanece em graça. Isso é
claramente ensinado por Paulo em Romanos 8. 1: “Portanto, agora nenhuma condenação há para
os que estão em Cristo Jesus”, ou seja, embora haja pecados, como a fraqueza que mencionei e
afetos viciosos, a pessoa é aceita e a condenação é removida, como também ele diz
anteriormente: “Vocês não estão debaixo da lei, mas debaixo da graça”.
Quanto ao que é dito que nada é pecado, a menos que seja voluntário; que a escuridão, a
dúvida, as omissões e os afetos repentinos que precedem o julgamento e o consentimento não são
voluntários - essa objeção pode ser facilmente refutada. Pois essa afirmação de que nada é
pecado, a menos que seja voluntário, refere-se ao julgamento civil, não ao julgamento da lei
divina. Na verdade, a escuridão na mente, as dúvidas, as omissões grandes e numerosas, não
afetadas, e os repentinos ardores são pecados, mesmo que não sejam voluntários, como Paulo
diz: “O que não quero, isso faço”. E João fala sobre isso, dizendo: “Se dissermos que não temos
pecado, enganamo-nos a nós mesmos”, pois ele fala da fraqueza e dos movimentos viciosos nos
renascidos, não de suas quedas, daqueles que voluntariamente se entregam aos afetos malignos,
contra a consciência.
Assim também, Paulo distingue entre os pecados daqueles que permanecem na graça e dos
outros que desprezam a graça. Em Romanos 8:13, ele diz: “Se viverem segundo a carne,
morrerão, mas se pelo Espírito mortificarem as obras do corpo, viverão”. Isso significa que se a
vontade ceder às más paixões, afastando-se de Deus, consciente e deliberadamente
desobedecendo aos mandamentos de Deus, e depois se arrepender, temer a Deus e ter fé que
agrada a Deus, isso afetará a alma, para que ela não possa invocar a Deus. Perdida a graça e o
Espírito Santo, ela novamente se precipitará na morte, ou seja, atrairá para si a ira de Deus e as
punições eternas, assim como Adão e Eva, através de sua queda, perderam a graça e atraíram
sobre si a terrível ira de Deus. Mas se vocês mortificarem as obras do corpo pelo Espírito,
viverão; aqui, as “obras do corpo” se referem aos maus movimentos naturais e negligências da
natureza. Então ele diz que viveremos, ou seja, manteremos a graça e o Espírito Santo, se
resistirmos a esses movimentos pecaminosos. Esse ponto é esclarecido mais claramente em
outros lugares, onde é instruído que, para os regenerados, deve haver justiça com boa
consciência, como em 1 Timóteo 1. 5, que diz: “O fim do mandamento é o amor de um coração
puro, de uma boa consciência e de uma fé não fingida”.
Então, resistimos quando tomamos cuidado para não dar nosso consentimento consciente e
voluntário aos movimentos pecaminosos e não nos entregamos a eles. Há sempre uma escuridão
constante em nós, e devemos lamentá-la. Existem muitos impulsos pecaminosos, que podem
preceder nossa vontade ou nos arrebatar por um breve momento, como Paulo diz: “Se sou
arrastado cativo pelo pecado que habita em meus membros”. Se resistirmos a esses impulsos e
não cedermos conscientemente, reteremos a graça e o Espírito Santo. Não há complicação aqui, e
não é necessário analisar os graus de consentimento de forma minuciosa. A vontade é muitas
vezes arrastada antes que percebamos, mas o que importa é que devemos nos esforçar para não
consentir conscientemente, mas sim resistir. Paulo acrescenta que a vontade deve se encher de
temor diante da possibilidade da ira de Deus, lamentar sua fraqueza, temer as artimanhas do
diabo, buscar o perdão por meio de Cristo, pedir a ajuda do Espírito Santo, lembrar das
promessas divinas e se preparar como para uma grande batalha. Ela não deve ceder às tentações,
mas sim rejeitá-las firmemente e evitar situações que levem ao pecado. Os regenerados têm o
Espírito Santo, que não é perturbado pela alimentação ou pelo incitamento de maus impulsos.
Eles devem entender que o Espírito Santo foi dado para governá-los, e Ele deseja governar e
ajudar, desde que não O expulsemos, mas sim resistamos aos movimentos pecaminosos. Por
isso, foi dito em 2 Coríntios 6. 1: “Exortamos a vocês para que não recebam a graça de Deus em
vão”. Davi poderia ter mantido o Espírito Santo e sido ajudado por Ele se não o tivesse
deliberadamente rejeitado e alimentado o fogo que surgiu em seu coração.
Muitos exemplos de homens notáveis nos foram dados, que caíram na complacência e
sofreram as consequências, tanto para si quanto para suas posteridades. Isso inclui Adão, Eva,
Arão, Davi, Salomão e até mesmo o povo como um todo, como se diz: “O povo sentou-se para
comer e beber e se levantou para se divertir”[98], ou seja, quando estavam cheios e seguros,
esqueceram-se de Deus e se tornaram negligentes e indulgentes, entre outras coisas. É bem
conhecido o ditado comum: “As mentes se tornam em luxúria quando tudo está indo bem”[99]. E
o diabo está sempre à espreita, buscando oportunidades para envolver os incautos em quedas
inextricáveis. Ele tece uma rede longa e vê quantos males resultaram de uma única queda, como
no caso de Adão, Davi e Salomão. Quanta avalanche de pecados e calamidades se seguiu? Esses
exemplos e as calamidades da vida cotidiana devem sempre estar diante de nós, lembrando-nos
da terrível ira de Deus contra o pecado e nos incentivando à oração para afastar a complacência,
como Salomão disse: “Bem-aventurado aquele que continuamente teme” e também: “Orem para
que não entrem em tentação”[100].
Portanto, embora as enfermidades que persistam nos regenerados nesta vida e os maus
desejos não sejam males leves ou para serem desprezados, como as múltiplas incertezas sobre
Deus, a complacência carnal, os impulsos errantes da luxúria e do ódio, os graves erros de
ignorância não intencionada e as omissões não intencionadas, e não são apenas “transgressões
menores além da lei de Deus”, como alguns monges alegaram, mas são realmente contrárias à lei
de Deus, ainda assim, enquanto a boa consciência e a fé permanecerem nos regenerados, o
Espírito Santo também permanece. No entanto, nossa confiança não é baseada em nossa própria
dignidade, mas em Cristo, e estabelecemos que, com base em Sua promessa, estamos na graça
por causa de Cristo. Resistimos aos impulsos pecaminosos e buscamos o perdão. Dessa forma,
permanecemos no chamado de Deus, como é dito em 1 João 3. 21: “Quando o nosso coração não
nos condena, temos confiança diante de Deus, e o que pedimos, recebemos, porque guardamos
os Seus mandamentos”. Isso significa que acreditamos em Cristo e mantemos uma boa
consciência. É importante entender também que a consciência deve ser governada pela Palavra
de Deus.
Eu falei sobre o pecado venial. No entanto, quando aqueles que foram regenerados,
conscientemente e voluntariamente, violam a lei de Deus, como quando abraçam crenças ímpias,
ou as confirmam com sua aprovação, ou se entregam a ódio, ambição, desejos lascivos,
ganância, ou se envolvem em ações externas que vão contra a lei de Deus, como Davi ao tomar a
esposa de outro e engenhosamente matar seu marido, essas ações, indo contra a consciência, são
pecados mortais. Aqueles que as praticam, perdendo a graça, a fé e o Espírito Santo, atraem a ira
de Deus sobre si. A menos que eles se voltem novamente para Deus, estão destinados às
punições eternas. E porque uma consciência que mantém a intenção de pecar despreza e evita
Deus, não pode invocar a Deus.
Estes são testemunhos claros disso: Efésios 5. 5 diz: “Saibam, pois, isto: que nenhum
devasso, ou impuro, ou avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus;
ninguém se engane com palavras vãs; pois, por estas coisas, vem a ira de Deus sobre os filhos da
desobediência”. Fica claro que Deus se ira com tais ações enquanto a vontade de praticá-las for
mantida (Efésios 5. 6).
Ezequiel 33. 18-19 diz: “Quando o justo se desvia da sua justiça e pratica a iniquidade, ele
morrerá por isso; e quando o ímpio se afasta da sua impiedade e pratica o juízo e a justiça, ele
viverá por isso”.
Da mesma forma, entenda-se também essas passagens: 1 Coríntios 6. 9 diz: “Não sabem que
os injustos não herdarão o reino de Deus? Não se deixem enganar: nem impuros, nem idólatras,
nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas...”.
Gálatas 5. 19 diz: “Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e
libertinagem...”. E continua: “...e coisas semelhantes a estas. Eu lhes declaro, como já
anteriormente os preveni, que os que praticam tais coisas não herdarão o reino de Deus”.
Ele chama essas obras de “manifestas” porque a consciência daqueles que as praticam pode
julgar claramente a partir da lei de Deus e eles sabem que o seu propósito maligno desagrada a
Deus. Da mesma forma, em 1 João 3. 7, é muito claro: “Filhinhos, ninguém os engane: quem
pratica a justiça é justo, assim como Ele é justo. Quem comete o pecado é do diabo...”. Portanto,
é evidente que o Evangelho requer uma boa consciência.
1 Timóteo 1. 5 diz: “O objetivo deste mandamento é o amor que procede de um coração
puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera”. E no mesmo capítulo: “Combata o bom
combate da fé e alcance a vida eterna para a qual foi chamado, tendo já feito boa confissão diante
de muitas testemunhas” (1 Timóteo 1. 18). Esta é a nossa glória, o testemunho da nossa
consciência (2 Coríntios 1. 12). Em Gálatas 6. 4, é dito: “Cada um examine a sua própria obra, e
então terá motivo de gloriar-se somente em relação a si mesmo, e não em relação ao próximo”.
Isso significa que cada um deve se certificar de que está fazendo o seu trabalho corretamente, e
assim terá motivo de orgulho em si mesmo, ou seja, o testemunho e a aprovação de sua própria
consciência, que é necessária para cada um. Não deve buscar uma opinião gloriosa através da
censura dos outros, nem depender apenas do julgamento alheio.
1 Pedro 3. 16 diz: “Mantendo uma boa consciência, para que, naquilo em que falam mal de
vocês, fiquem envergonhados os que difamam o seu bom comportamento em Cristo”.
Também é dito: “É impossível agradar a Deus a menos que alguém tenha uma intenção de se
afastar do pecado”, porque está claramente dito: “Por minha vida, diz o Senhor Deus, não tenho
prazer na morte do ímpio, antes tenho prazer em que o ímpio se converta do seu caminho e viva”
(Ezequiel 33. 11). O juramento se aplica a ambos, à conversão e à reconciliação. Portanto, não
agrada a queda até que ela abandone a intenção de pecar. O mesmo ensina a passagem do último
capítulo de Isaías: “A quem olharei, senão para aquele que é humilde e contrito de espírito, e que
treme diante da Minha palavra?” (Isaías 66. 2) e em Isaías 57. 15: “Porque assim diz o Alto e o
Excelso, que habita na eternidade e cujo nome é Santo: Num alto e santo lugar habito, e também
com o contrito e humilde de espírito, para vivificar o espírito dos humildes e para vivificar o
coração dos contritos”. Que doce consolo e promessa, para serem gravados em nossos corações
mais profundos, mas pertencentes àqueles que tremem, ou seja, que não mantêm a intenção de
pecar, mas temem a ira de Deus.
Por último, essas duas coisas são impossíveis de coexistir ao mesmo tempo: uma má
consciência, ou seja, a intenção de pecar, e a fé, que é a confiança na misericórdia de Deus
prometida por meio de Cristo. Porque aquele que mantém a intenção de pecar despreza ou foge
de Deus, não se aproxima de Deus; mas a fé na misericórdia se aproxima de Deus por meio de
Cristo, o Sumo Sacerdote. Aqueles com as consciências feridas experimentam que são
terrivelmente afastados da oração e afundam no desprezo por Deus ou no desespero. Portanto,
Paulo diz: “O que não é de fé é pecado”, ou seja, uma ação condenada por Deus. Muitos
interpretaram esta passagem da seguinte forma: “O que não é de fé”, ou seja, o que vai contra a
consciência, ou “o que não é de fé”, ou seja, o que vai contra a lei de Deus, é pecado. No entanto,
devemos entender que tanto a lei quanto o evangelho são incluídos aqui. Que a obra esteja em
conformidade com a lei de Deus e, ao mesmo tempo, que a fé esteja presente, ou seja, a
confiança na misericórdia de Deus prometida por meio de Cristo, como no caso de Nicodemos,
onde não há uma má intenção, mas, ainda assim, antes da conversão, falta a fé, ou seja, a
confiança na misericórdia de Deus prometida por meio de Cristo, que estabeleceria que suas
ações agradassem a Deus.
De todas essas coisas, é evidente que é necessário fazer uma distinção entre os lapsos contra
a consciência, resultantes de fraquezas e falhas que afetam os santos, e essa distinção deve ser
mantida na igreja. Paulo chama isso de “pecado que domina ou reina”.
Embora eu não esteja discutindo sobre as palavras, a comparação dos termos acrescenta
alguma clareza; há uma ênfase singular na expressão “pecado dominante”, descrevendo a
atrocidade e a eficácia do pecado que, quando não resistimos, domina, ou seja, gera efeitos
horríveis, acumula crimes sobre crimes e adiciona um sobre o outro, trazendo maiores ruínas e
merecendo a ira e punições mais severas, impelindo os culpados à perdição eterna. Como Saul,
que havia sido agraciado com o Espírito Santo e estava adornado com virtudes excelentes e
vitórias notáveis, não manteve essa honra, mas sucumbiu à inveja. No início, era fácil resistir a
esse afeto, assim como Aarão conteve as chamas semelhantes, mas Saul alimentou sua fúria.
Portanto, o pecado dominante o impeliu primeiro a tentar matar Davi, afastou-o de Deus e
despertou múltiplas fúrias. O irado Saul se lançou em queda e matou os sacerdotes. Assim, o
pecado dominante aumenta a ira de Deus e se espalha amplamente. Portanto, Deus entregou
tanto ele quanto seu exército e seu filho Jônatas, um homem santo, para serem mortos pelos
inimigos. Todas essas ações são abrangidas pela triste expressão “pecado que domina”.
No entanto, parece que Paulo adotou essa forma de expressão a partir de Gênesis 4. 7, onde
há uma breve passagem que aborda o cerne da doutrina da lei. Primeiro, fala sobre o julgamento
de Deus: “Se fizer bem, não é certo que será aceito? Mas se não fizer bem, o pecado jaz à porta,
e para você será o seu desejo, e sobre ele deve dominar”.
Esses poucos versículos tratam de muitos assuntos importantes. Primeiro, eles ensinam que a
adoração externa agrada a Deus somente quando o coração é justo. Em seguida, ameaça os
pecadores com punições e adverte sobre a demora, para que a segurança não seja reforçada,
porque as punições são adiadas. E indica um julgamento futuro após esta vida, e a descrição é
maravilhosa: a segurança profana de todo o mundo é indicada em uma única palavra. O pecado
repousará ou se aquietará, mas apenas até ser revelado. O pecado de Judá repousava até que ele
sentisse a punição. Em seguida, vem o comando: “O pecado está à porta; o seu desejo é para
contigo, mas você deve dominá-lo”. Aqui, ele indica que as más inclinações permanecerão nos
seres humanos, mas devemos resistir, e essa obediência a Deus é agradável quando, em nosso
conhecimento, resistimos ao pecado. Por outro lado, aqueles que permitem que o pecado domine
são rejeitados por Deus.
Conforme a esta mensagem, Paulo também diz em Romanos 6. 14: “O pecado não terá
domínio sobre vocês”. Mesmo que haja impulsos intensos, grande hesitação, incêndios de ódio e
outros desejos, agora eles não devem ter domínio, ou seja, como ele interpreta, não devemos
obedecer a eles. Quando esses desejos têm domínio sobre nós, nos afastam de Deus e,
posteriormente, nos levam a cometer vários crimes, trazendo punições nesta vida e no futuro.
Portanto, o que é comumente chamado de pecado mortal, ou como Nazianzeno o chama de
“φονικόν” (assassino), pode claramente ser chamado de pecado dominante ou reinante.
Não é necessário entrar em uma discussão sobre a eleição; devemos julgar de acordo com a
Palavra de Deus, na qual Deus expressou a Sua vontade. Não devemos buscar outra vontade fora
da Palavra de Deus, e o exemplo dos primeiros pais claramente mostra que até os eleitos podem
perder a graça e derramar o Espírito Santo quando pecam contra a sua consciência. É certo que
Adão e Eva perderam a graça e os dons excelentes que tinham. Portanto, os descendentes nascem
como filhos da ira, ou seja, estranhos à graça, trazendo consigo escuridão sobre Deus, uma
vontade avessa a Deus e uma teimosia múltipla. Na verdade, a magnitude da punição do pecado
de Adão nos adverte sobre a terrível ira de Deus e as muitas desgraças que se seguem a um único
pecado. Portanto, devemos reconhecer que em diferentes partes da doutrina da igreja ao longo de
todos os tempos, as mais notáveis e ilustres advertências foram apresentadas na história de Adão.
Portanto, não devemos nos iludir nem minimizar nossos lapsos, mas reconheçamos que Deus
verdadeiramente se ira com o pecado. Consideremos as palavras que citei sobre a ira de Deus, o
julgamento e as punições, como foi dito: “Por causa disso vem a ira de Deus sobre os filhos da
desobediência”[101]. Nossas almas devem tremer e devemos abandonar a intenção de pecar e
voltar para Deus, lembrando do juramento: “Assim como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não desejo
a morte do pecador, mas que o ímpio se converta do seu caminho e viva”. Pensemos nos lapsos,
nas punições e nas conversões de Adão, Arão, Davi e Manassés; lamentemos a grande fraqueza
da natureza humana e estejamos vigilantes contra as seduções e armadilhas do diabo. Lembremo-
nos de que cada pecado merece a morte imediata, de modo que muitas vezes adúlteros e
homicidas são mortos no próprio ato, mas a imensa misericórdia de Deus nos concede tempo
para retornar a Ele, como é tão lindamente dito: “Por isso, o Senhor espera para ter misericórdia
de vocês” (Isaías 30. 18), e a mesma mensagem é transmitida na parábola da figueira em Lucas.
Não abusemos dessa grande bondade, mas, quando cairmos, acusemo-nos sinceramente,
como disse Davi: “Pequei contra o Senhor”. Olhemos para o Mediador, o Filho de Deus, e com
fé no Mediador, voltemos a Deus, invoquemo-Lo novamente, peçamos perdão, que sejamos
aceitos e curados, etc. Lembremo-nos da voz mais doce: “Há alegria no céu por um pecador que
se arrepende”[102]. Ouçamos também a voz do Evangelho, que quando somos publicamente
recebidos na igreja, nos confirma com este testemunho, para que possamos afirmar com mais
firmeza que os lapsos são recebidos. E lembremos toda a doutrina sobre o arrependimento, que
nos adverte sobre assuntos tão importantes, e deixemos de lado as discussões sobre a eleição.
Finalmente, acrescentamos que, quando dizemos que pecados mortais são lapsos contra a
consciência, também incluímos pecados de ignorância intencional e omissões intencionais, como
é comumente expresso. Pois, ao afirmarmos isso, não nos referimos àqueles que não desejam
aprender o evangelho, apesar desta voz: “A Ele ouçam!”[103]. Deus ordenou a toda a raça humana
que ouça Cristo, e de fato Ele espalhou o evangelho entre todas as nações e acrescentou
testemunhos infalíveis.
Portanto, todos os ímpios[104], como os ateus, turcos, judeus e outros que rejeitam o
Evangelho, têm pecados mortais, mesmo que afirmem que não aprenderam ou não
compreendem. Essa era a ignorância dos fariseus, aos quais Cristo disse: “Se fossem cegos, não
teriam pecado; mas como agora dizem: ‘Nós vemos’, o seu pecado permanece”.
Havia também cultos idólatras entre os pagãos com uma ignorância intencional, porque, de
livre vontade, abandonaram e rejeitaram o ensinamento e não o buscaram novamente na igreja.
Eles adotaram rituais claramente em conflito com o conhecimento natural, que reconhece a
existência de um único Deus e que Ele não deve ser adorado de maneira profana, como eram os
Bacanais e outros ritos impuros entre eles.
A respeito da omissão intencional, Paulo diz: “Ai de mim, se não pregar o evangelho!” (1
Coríntios 9. 16). E em Mateus 25. 30, encontramos a advertência: “Lancem, pois, o servo inútil
nas trevas exteriores”. Que cada um considere esta ameaça terrível em sua própria vocação.
Embora permaneçam muitas ignorâncias e omissões involuntárias nos regenerados, assim como
havia nos apóstolos antes do Pentecostes, ainda deve haver uma vontade ou um desejo de fazer o
que é certo em sua vocação, e a maioria de nós faz isso corretamente. Paulo estabelece este
padrão ao reconhecer em 2 Coríntios 3. 6 que “não somos capazes por nós mesmos de pensar
alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus”. Ele está afirmando
que não somos competentes por nossos próprios méritos, seja para explicar doutrinas, tomar
decisões sábias na administração, ou emitir sentenças em disputas. Muitos sábios em qualquer
função, por mais modesta que seja, frequentemente se veem equivocados. Por exemplo, chefes
de família muitas vezes erram no cuidado com seus filhos, indo além do que era esperado. No
entanto, em 1 Coríntios 4. 2, Paulo afirma: “Ora, além disso, o que se requer nos despenseiros, é
que cada um seja encontrado fiel”. Isso significa que eles devem ter a vontade fiel de fazer o que
é certo, não cedendo à preguiça, mas aprendendo e trabalhando com diligência moderada,
realizando não as obras de outros, mas as tarefas de sua própria vocação. Pois a diligência evita
ambos os vícios: a preguiça e o excesso de atividade[105].
12. A Igreja
Sempre tenhamos em mente a declaração de Paulo: “Aqueles a quem Deus escolheu, ele
também chamou”. Sempre que pensamos na igreja, devemos considerar a congregação dos
chamados, que é a igreja visível, e não devemos imaginar que os eleitos estão em qualquer outro
lugar além desta congregação visível. Deus deseja ser invocado e reconhecido apenas da maneira
como ele se revelou, e ele não se revelou em nenhum outro lugar senão na igreja visível, onde
soa a voz do evangelho. Não devemos inventar outra igreja invisível e muda de pessoas, embora
vivas neste mundo. Mas nossos olhos e mentes devem olhar para a congregação dos chamados,
ou seja, aqueles que professam o evangelho de Deus. Devemos entender que é necessário
proclamar a voz do evangelho publicamente entre as pessoas, como está escrito (Salmo 19. 4):
“A Sua voz ressoa por toda a terra”. Também devemos compreender que o ministério do
evangelho é público e que existem congregações, como é dito em Efésios 4, e devemos nos unir
a essa congregação. Devemos ser cidadãos e membros desta congregação visível, como ordena o
Salmo 27: “Amei a beleza da Tua casa” e o Salmo 84: “Quão amáveis são os Teus tabernáculos,
Senhor”. Esses e outros lugares semelhantes não falam sobre uma ideia platônica, mas sim sobre
a igreja visível, onde ressoa a voz do evangelho e onde é visível o ministério do evangelho,
através do qual Deus se revelou e opera com eficácia.
Não devemos elogiar os errantes, aqueles que vagueiam e não se associam a nenhuma igreja,
porque em nenhum lugar encontramos tal ideia em que não seja necessária a ética e a disciplina.
Em vez disso, devemos buscar uma igreja onde os artigos da fé sejam ensinados corretamente e
onde os ídolos não sejam defendidos, e devemos nos unir a ela. Devemos ouvir e amar esta igreja
que ensina, e devemos acrescentar nossa invocação e confissão às orações e confissões dela.
Assim como Ciro e outros piedosos entre os pagãos, embora não estivessem em Jerusalém, ainda
assim eram publicamente parte da congregação dos chamados, ouviam a voz e o ministério do
evangelho, eram cidadãos e membros visíveis da igreja visível, uniam sua invocação e confissão
à dos profetas e a todo o grupo de piedosos que estava em Jerusalém, onde estava a principal
sede do ministério.
Essas considerações devem ser frequentemente e profundamente ponderadas para
aprendermos o que é a igreja de Deus e onde ela está, como Deus deve ser reconhecido e como
devemos verdadeiramente nos unir à igreja e aprender a nutri-la, para que não haja dispersão.
Pois onde não há congregações, a voz do evangelho se silencia, como acontece em muitos
lugares onde os tiranos muçulmanos destruíram todos os templos e não permitem a formação de
nenhuma congregação, nem mesmo entre os seus. Devemos entender que tais destruições e
dispersões diabólicas são um mal imenso e supremo. Portanto, devemos também orar a Deus
para que Ele proteja Suas congregações e nós mesmos devemos, com todos os meios disponíveis,
nutri-las.
A seguinte definição é apropriada: a igreja visível é a congregação daqueles que abraçam o
evangelho de Cristo e usam corretamente os sacramentos, na qual Deus, por meio do ministério
do evangelho, é eficaz e regenera muitos para a vida eterna. No entanto, nessa assembleia,
muitos não são regenerados, mas concordam com a verdadeira doutrina, assim como havia na
época de Maria: Zacarias, Simeão, José, Isabel, Maria, pastores e muitos outros soldados que
concordavam com a doutrina pura e não seguiam os saduceus ou outros pontífices ímpios, mas
seguiam Zacarias, Simeão, Ana, Isabel, Maria e outros semelhantes. Pois Deus guarda seus
remanescentes entre os ministros e periodicamente renova o ministério. E entre esses ouvintes de
Zacarias e Isabel, alguns não eram regenerados e tinham pecados contra a consciência. No
entanto, porque concordavam com a verdadeira doutrina, eram cidadãos e membros da igreja
nesta vida.
Entretanto, os pontífices, fariseus e saduceus, que estavam em conflito com a Palavra de
Deus e mantinham o controle, não eram membros da igreja, conforme a passagem que diz: “Se
alguém ensina outro evangelho, seja anátema”, etc. Da mesma forma, na época de Elias, havia a
igreja composta por Elias, Eliseu e seus ouvintes. Não havia igreja sem ministério, pois os
próprios profetas eram ministros do evangelho, e alguns sacerdotes piedosos estavam associados
a eles. Havia uma quantidade razoável de santos, como o texto diz: “Deixei para mim sete
mil”[106], etc. Entre eles havia alguns cujo comportamento era repreensível, mas que, por
concordarem com a verdadeira doutrina, eram membros da igreja na sociedade externa e na
função do ministério. Enquanto isso, os sacerdotes de Baal e outros que defendiam cultos ímpios
não eram membros da igreja. Esses exemplos históricos foram escritos com o propósito de
ensinar a diferença entre a verdadeira e a falsa igreja.
Entretanto, nas palavras desta definição que foram citadas: “na qual Deus, por meio do
ministério do evangelho, é eficaz”, há duas partículas notáveis que não devem ser omitidas
sempre que uma definição de igreja é estabelecida. Pois não se deve conceber uma igreja sem
algum conhecimento da promessa de Cristo e sem ministério. Não há igreja naquela assembleia
em que não há conhecimento da promessa de Cristo, nem voz, nem ministério do evangelho.
Portanto, Aristides, Cícero e outros não são membros da igreja, mesmo que possuam virtudes
políticas excelentes, que Deus concede por causa dos governos, desde que não façam parte da
família humana nesta vida.
No entanto, a necessidade de haver conhecimento de Cristo na igreja de Deus é atestada por
estas palavras: João 3. 18: “Aquele que não crê já está condenado; aquele que não crê no Filho
não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele”. João 17. 17: “Santifica-os na verdade; a
Tua palavra é a verdade”. 1 Coríntios 1. 21: “Pois, visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não
O conheceu por meio da sabedoria humana, agradou a Deus salvar aqueles que creem por meio
da loucura da pregação”. Romanos 10. 14: “Como, pois, invocarão aquele em quem não creram?
E como crerão naquele de quem não ouviram falar?”. Efésios 4. 11: “E Ele mesmo concedeu uns
para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres”. E
explicitamente afirma que devemos “preservar o ministério do evangelho, para que não sejamos
levados por diversos ventos de doutrina”. Assim como os pagãos, ao não ouvirem a palavra de
Deus, caíram em fúrias horrendas e inventaram outros deuses e muitos cultos e prodígios. O
mesmo acontece com os hereges, maniqueus, anabatistas, etc., porque eles abandonam a palavra
de Deus. Portanto, saibamos que a assembleia da igreja de Deus está ligada à voz ou ao
ministério do evangelho. Além dessa assembleia, onde não há voz do evangelho, nenhuma
invocação de Cristo, não há herdeiros da vida eterna, como está escrito: “Não há outro nome pelo
qual possamos ser salvos”, etc. Por isso, Isaías diz em Isaías 8. 16: “Sela a lei entre meus
discípulos”, isto é, “vejo que grandes trevas virão, mas eu oro a Ti, ó Deus, para que, ouvindo as
coisas dos profetas, Tu preserves e selas Tua doutrina transmitida aos profetas, para que a
palavra e o verdadeiro entendimento da palavra não sejam extintos”. Restam algumas relíquias
da igreja, e estas são esta assembleia, que preserva a Tua palavra incorrupta, que receberam dos
profetas. Por isso, acrescenta: “À lei e ao testemunho! Se eles não falarem de acordo com esta
palavra, nunca verão a alva”. Pois a vontade de Deus não é compreendida a não ser pela palavra
que Ele transmitiu, e Deus deseja ser conhecido e invocado como Ele mesmo se revelou.
Em seguida, deve-se acrescentar que Deus, verdadeiramente por meio deste ministério, isto
é, pela voz do evangelho ouvida, lida, meditada, seja eficaz. Ele instrui as mentes com o Espírito
Santo, deseja que concordemos, auxilia aqueles que entendem e inicia neles a vida eterna. Assim
está escrito em Romanos 1. 16: “O evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele
que crê” e em 2 Coríntios 3. 6: “O novo testamento é o ministério do Espírito”. Isso contém uma
doutrina salvadora e consoladora, quando sabemos que, de fato, por meio da promessa da
palavra, a vida eterna é verdadeiramente oferecida desta maneira.
Não devemos imaginar que Sócrates, Platão, Xenofonte, Cícero e outros tenham fé, porque
neles há algum conhecimento da lei de Deus. Pois esse conhecimento não é o peso, mas o
conhecimento de Cristo. A igreja, no entanto, está ligada simplesmente e inteiramente à
promessa de Cristo. O nome de Cristo deve ser invocado sobre todos, e em todos aqueles que são
capazes de compreender a doutrina, deve haver o conhecimento, a invocação e a confissão do
Filho de Deus. E assim tem sido desde o início, desde Adão após a promessa feita, uma
assembleia, às vezes maior, às vezes menor, que recebeu, pela confiança na promessa do Senhor,
o perdão dos pecados e invocou verdadeiramente a Deus.
Depois que isso é estabelecido, a questão surge sobre as pessoas na igreja: se a igreja está
ligada aos bispos e às suas associações que são ditas manter o ministério, ou se está ligada à
sucessão regular dos bispos e colegiados.
Eu respondo: a igreja está ligada ao próprio evangelho de Deus, que, para ser proclamado no
ministério, Deus suscita ocasionalmente algumas pessoas bem instruídas, como é dito em Efésios
4, mesmo que entre elas algumas tenham mais luz do que outras. No entanto, quando os
ministros, sejam bispos, colegiados ou outros, ensinam coisas que são contrárias ao evangelho e
à doutrina dos apóstolos, é necessário seguir a regra de Paulo: “Se alguém vos anunciar outro
evangelho além do que já recebestes, seja anátema”. Com base nesta regra, pode-se julgar que a
igreja não está vinculada a títulos específicos ou a uma sucessão regular, pois quando aqueles
que detêm tal autoridade estão errados, eles não devem ser ouvidos.
Esta afirmação é verdadeira, mas é desagradável para os homens políticos, que veem nela o
surgimento de divisões. Portanto, observando os impérios e as políticas humanas, eles, de certa
forma, transformam a igreja em um reino por meio de uma imitação, assim como o reino dos
francos é uma multidão sujeita ao rei franco, distinta das outras nações por leis e tribunais
separados, protegida por guarnições e vinculada a uma sucessão regular de reis. Ela também é
obrigada a obedecer necessariamente às leis e à interpretação do rei, cuja interpretação tem
autoridade devido à sua posição. Portanto, muitos imaginam que a igreja seja uma multidão
sujeita a um único pontífice romano, distinta das outras nações por cerimônias instituídas pelos
pontífices, vinculada à sucessão regular dos bispos e à interpretação das Escrituras, que é
transmitida pelos pontífices ou pelos sínodos. Como frequentemente surgem dissensões sobre o
que está escrito, eles dizem que deve haver uma regra clara adicional, ou seja, a voz do
governante, assim como no reino a voz do rei tem autoridade para interpretar as leis. Essas
afirmações são muito plausíveis entre os poderosos. A razão humana gosta dessa imagem da
igreja, compatível com as opiniões civis, e os poderosos entendem que essa opinião aumenta sua
autoridade. Eles acreditam que essa forma é mais útil para a paz.
No entanto, que os piedosos saibam que nesta imitação, ou melhor, “κακοξηλία” (má
imitação), há muitos erros. Deve-se reconhecer que a igreja é uma congregação visível; ela não é
um reino dos pontífices, mas é semelhante a uma congregação acadêmica. Pois Deus não deseja
que a igreja fique completamente escondida nas sombras ou seja desconhecida; Ele deseja que
ela seja ouvida, que Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, seja reconhecido, que Ele seja
invocado em todos os momentos por algum segmento da humanidade e que Ele herde um povo
para o Filho. Por isso está escrito: “Sua voz ressoou por toda a terra”, e o próprio Cristo diz no
Salmo 2. 7: “Eu pregarei o decreto”. Portanto, a voz do evangelho e o ministério permanecerão, e
haverá uma congregação visível da igreja de Deus, mas semelhante a uma congregação
escolástica. Há ordem, há distinção entre os que ensinam e os que ouvem, e há graus: alguns são
apóstolos, outros são pastores, outros são doutores. Isso é corretamente aplicado à congregação
visível, sobre a qual está escrito: “Diga à igreja”[107].
Mas primeiro é necessário considerar quem são os membros desta igreja visível, porque
aqueles que condenam abertamente a verdade manifesta do evangelho e exercem crueldade para
estabelecer erros evidentes são membros desta congregação sobre a qual está escrito: “Diga à
igreja”. Além disso, não se deve aceitar que a maioria dos votos deve ser preferida, porque
mesmo que haja muitos que creiam corretamente e mantenham a luz do evangelho, muitas vezes
há mais que contradizem abertamente ou são fracos e duvidosos, como os próprios apóstolos,
que tiveram uma visão distorcida do reino terreno por um longo tempo. Portanto, quem será o
juiz quando houver dissensão sobre a interpretação da Escritura? Nesse caso, é necessário que
haja uma voz para resolver a controvérsia.
Respondo: A própria Palavra de Deus é o juiz, e a verdadeira confissão da igreja se
apresenta. Sempre que surgem controvérsias doutrinárias, os piedosos seguem a Palavra como
juiz e os mais fracos são auxiliados pela confissão dos mais fortes, como disse Cristo: “Você,
quando se converter, fortaleça seus irmãos”. É assim que as controvérsias doutrinárias são
resolvidas, e quando a maioria não ouve esse verdadeiro juiz e essa verdadeira confissão, como
frequentemente ocorre e os exemplos antigos também mostram, Deus, como juiz da igreja,
finalmente resolve a controvérsia, eliminando os blasfemos, mesmo que a maioria dos judeus
tenha contradito Jeremias e, posteriormente, os apóstolos.
Portanto, há uma diferença entre os julgamentos da igreja e os julgamentos políticos; pois na
política, ou o monarca pronuncia sozinho com sua autoridade, ou no senado a opinião da maioria
prevalece; mas na igreja, a opinião que está em conformidade com a Palavra de Deus e a
confissão dos piedosos prevalece, quer sejam muitos ou poucos, contra os ímpios. Assim, os
antigos condenaram primeiro Sabélio e depois Ário. O juiz era a Palavra de Deus, ou seja, os
bons testemunhos tirados do Evangelho com fé sincera e sem sofismas, que convenciam o juiz
que não julgava com calúnia. No entanto, os fracos eram muito auxiliados ao fazer a confissão
dos mais fortes, ou seja, daqueles que haviam ouvido os apóstolos ou seus discípulos e que eram
conhecidos por serem fiéis guardiões da doutrina, como Policarpo, Irineu e Gregório de
Neocesareia. Os mais recentes aprenderam com eles, significando que a “Palavra” significava a
pessoa. Posteriormente, eles próprios, ao comparar o que disseram com o Evangelho,
reconheceram que essa era a sentença original que haviam ouvido deles. Alguns não apenas
aprenderam com os mais antigos, mas também foram confirmados por eles como sendo mais
fortes. Assim, Pedro de Alexandria refutava Melécio, citando o Evangelho, que ensina
claramente que os caídos podem ser aceitos se se arrependerem. Mas ao mesmo tempo, ele
também foi apoiado pelos exemplos da igreja primitiva, que sempre aceitou os que haviam caído
antes.
Assim, nós proclamamos sobre o batismo das crianças. Temos testemunhos claros nas
Escrituras que afirmam que fora da igreja não há salvação. Portanto, incluímos as crianças na
igreja. Além disso, somos apoiados pelos testemunhos da igreja primitiva. Assim, o juiz é a
Palavra de Deus, e a confissão pura da antiguidade se une a isso. Pois Deus deseja que haja um
ministério da palavra na igreja. Portanto, a igreja deve ser ouvida como mestre, mas a fé e a
invocação se baseiam na Palavra de Deus, não na autoridade humana. Aprendemos da igreja que
a palavra “λογος” (Logos) na narrativa de João capítulo 1 significa uma pessoa. No entanto,
cremos que o Filho de Deus é Deus por natureza e O invocamos porque Ele mesmo revelou isso
e o transmitiu no evangelho.
Esse ponto deve ser considerado: não devemos desprezar a igreja que ensina, mas devemos
reconhecer que a verdadeira Palavra de Deus é o juiz. Portanto, cuidemos para que não se
estabeleça o domínio de práticas errôneas de costume, mas que não se relaxe a rédea para mentes
audaciosas que, se não ouvirem a verdadeira igreja, inventarão opiniões que não têm
testemunhos de nenhum tempo na igreja, como fizeram Serveto, Campano, os anabatistas e
muitos outros. Aprendamos a amar, respeitar e reverenciar a igreja que ensina, e busquemos os
testemunhos da igreja mais pura, assim como foi maravilhosamente representado na alegoria de
Sansão: “Se não tivesses arado com a minha novilha, não terias descoberto”, ou seja, a menos
que ouçamos a igreja trabalhando em seu ministério, que é a guardiã da Palavra de Deus, a
Palavra de Deus seria completamente desconhecida para nós. E no Salmo 68. 27: “Nas
congregações, bendizei a Deus, o Senhor, da fonte de Israel”, ou seja, celebrem a doutrina,
especialmente na confissão pública, na congregação que ouve o evangelho, mas bebam dessa
fonte de Israel, ou seja, no ministério dos profetas e apóstolos.
Falei sobre a definição da igreja e sobre a questão de onde ela deve ser procurada, ou seja,
onde quer que ressoe a voz do evangelho incorrupto, especialmente no que diz respeito ao
fundamento, como Paulo menciona, ou seja, onde os artigos da fé são transmitidos sem
corrupção e onde não são defendidos cultos idolátricos evidentes. No entanto, como há uma
grande fraqueza mesmo entre os santos nesta vida, alguns têm mais luz, outros têm menos.
Basílio, Ambrósio, Epifânio, Agostinho, Bernardo e muitos outros, embora tenham mantido
corretamente o fundamento, às vezes dizem algo imprudente sobre os ritos humanos, pois a
tradição de sua época contaminou todos com algo de sua época. Portanto, Paulo instrui que
devemos considerar especialmente o fundamento e indica que muitos membros verdadeiros da
igreja têm alguma fraqueza e imperfeições. “Nenhum outro fundamento pode ser lançado além
do que já está posto, que é Jesus Cristo”, ele diz. Com isso, ele abrange o conhecimento
incorrupto de todos os artigos da fé e a proibição dos cultos idolátricos. Em seguida, ele
continua: “Alguém constrói com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha”. Como
Policarpo construiu com ouro sobre o fundamento, ou seja, esclareceu a doutrina necessária,
refutou Marcão sobre a essência de Deus, a causa do mal e muitos outros artigos, e prestou os
preceitos divinos e os mais elevados, governou bem a igreja e adornou a confissão com uma
admirável constância no martírio. Todas essas coisas são abrangidas pelo termo “ouro”. No
entanto, Basílio e muitos outros construíram com palha sobre o fundamento, aqueles que, embora
tenham mantido os artigos da fé, instituíram ritos monásticos e preferiram essas práticas à vida
política, inserindo na mente das pessoas a opinião de que esses ritos eram culto a Deus. Além
disso, erraram muito mais aqueles que inventaram tais cerimônias como se merecessem a
remissão dos pecados.
No entanto, Paulo diz (1 Coríntios 3. 13): “O trabalho de cada um será provado pelo fogo”,
fazendo uma alusão à matéria de edifícios. O ouro não é consumido pelo fogo, as palhas se
incendeiam facilmente e queimam rapidamente. Da mesma forma, a doutrina verdadeira e
necessária, quando é testada e debatida em meio à tentação, permanece e consola as mentes. Ora,
todos os piedosos aceitam de bom grado a doutrina da justiça pela fé e entendem que ela é uma
consolação sólida. Por outro lado, os ritos monásticos desaparecem porque agora são entendidos
como inúteis tanto para o conhecimento de Deus quanto para a conduta moral. Eu mencionei
essas coisas para que a declaração de Paulo seja cuidadosamente considerada e para que a
fraqueza humana, que muitas vezes é observada até mesmo nos verdadeiros membros da igreja,
seja lamentada. Devemos julgar com sabedoria o que os escritores disseram e discernir o que
deve ser perdoado e o que não deve ser perdoado.
Para que a diferença entre a igreja e os reinos mundanos seja mais clara, façamos uma
comparação: nos impérios mundanos, é necessário haver três coisas, ordem, glória e meios de
defesa. Por exemplo, no reino francês, existe uma ordem estabelecida, com um único rei, e após
a morte dele, é necessário que seu sucessor seja obedecido por meio de uma sucessão regular.
Além disso, existem leis específicas e tribunais em locais determinados, bem como hierarquias
de líderes e do povo. A glória está relacionada à excelência de conselho, virtude e conquistas,
porque, como disse Platão, nos impérios, a paz é sempre incerta, e muitas vezes os cidadãos
estão inquietos ou os inimigos se revoltam. Portanto, é necessário que os governantes tenham
muitos sucessos e vitórias, caso contrário, os impérios seriam rapidamente desfeitos. Os meios de
defesa incluem exércitos e recursos financeiros necessários para despesas domésticas e para
conduzir guerras.
No entanto, na igreja, esses três elementos funcionam de maneira diferente em comparação
com os impérios mundanos. Há ordem na igreja, porque na verdade há um único cabeça que
concede vida e bens eternos à igreja, ou seja, o Filho de Deus. No entanto, esse cabeça não é
visível aos olhos físicos, não mantém a congregação vinculada a um local específico e não há
uma estrutura hierárquica formal. Em vez disso, sempre há o ministério do evangelho, ao qual
deve ser prestada obediência divina em todas as coisas que o evangelho ordena. Além disso, essa
ordem não está vinculada a uma sucessão regular de líderes, e quando bispos e pastores
defendem erros e ídolos, eles devem ser evitados. Além disso, na igreja, existem graus de dons
espirituais, como Paulo menciona anteriormente, e esses graus devem ser reconhecidos e
honrados, e cada um deve ser valorizado por seus dons individuais.
A glória da política, ou seja, vitórias corporais, nem sempre pertence à igreja, como ocorreu
quando Saul ou Davi derrotaram exércitos inimigos. No entanto, na maioria das vezes, a igreja
esteve, está e estará sujeita à cruz. Mesmo assim, a igreja possui uma grande glória em termos de
sabedoria, virtudes e muitos milagres que não são percebidos pelos ímpios. A maior honra que a
igreja tem é reconhecer corretamente a Deus e invocá-Lo. Sempre existem alguns verdadeiros
membros da igreja que mantêm o fundamento, mesmo que haja uma grande multidão de fracos.
No entanto, esses fracos, porque invocam a Deus corretamente, têm uma grande honra. Como
mencionado anteriormente, aqueles que persistentemente defendem erros em oposição ao
fundamento não são considerados membros da igreja, mesmo que usem o nome e o título da
igreja como pretexto.
Além disso, há grandes vitórias para todos aqueles que invocam corretamente Deus, pois não
são derrotados pelas artimanhas do diabo, pelos terrores dos tiranos e por outras tentações. Há
muitos milagres diários, libertações frequentes em grandes perigos, muitas das quais acontecem
devido às orações da igreja. Como Paulo sabia, ele e sua tripulação foram salvos por Deus,
mesmo que outros creessem que isso fosse apenas uma coincidência.
Há uma grande glória na felicidade em chamados, estudos, conselhos e julgamentos. Por
outro lado, a maior deformidade, desgraça e vileza que devem ser evitadas ao máximo é ser um
parricida da igreja ou da pátria.
Finalmente, não há proteções visíveis atreladas a lugares específicos para a igreja, ou seja,
não há reis, riquezas, exércitos ou uma sede única e permanente na vida terrena da igreja após a
queda da política de Israel. Portanto, como Cristo disse: “O Filho do Homem não tem onde
reclinar a cabeça”, Deus quer que a igreja esteja submetida à cruz, como discutido em outros
lugares, e são mencionadas muitas coisas que não são conhecidas pela filosofia, mas apenas
reveladas no evangelho.
Embora Deus, às vezes, levante temporariamente reis para defender a igreja, como fez com
Ciro, Constantino e outros, Ele nem sempre concede reinos à igreja para sua defesa. Em vez
disso, Ele quer que a igreja busque e espere a defesa do corpo inteiro divinamente, como diz em
Isaías 46. 4: “Carreguei vocês no colo desde o nascimento, tenho cuidado de vocês desde que
eram crianças”. E Oseias 1. 7: “Eu os salvarei, não com arco, nem com espada, mas com o
Senhor, o seu Deus”. O que pode ser mais triste do que essa situação?
A igreja agora está vagando, como os exilados escolásticos, e embora Deus, em alguns
lugares, forneça abrigos modestos, a força dos inimigos do evangelho é maior e mais duradoura
do que a dos defensores, e quanto tempo ela durará é incerto. Ciro apoiava a igreja, Cambises e
Dario a oprimiam. Devemos considerar essa forma da igreja para entender os perigos e, ao
mesmo tempo, aprender que a igreja é reunida, preservada, restaurada e defendida não por
conselhos ou proteções humanas, mas pelo poder de Deus, como Adão e Eva foram libertados do
pecado e da tirania do diabo no jardim do Éden. Portanto, o Filho de Deus, como Ele mesmo
disse, está sempre presente como o guardião da igreja: “Estou com vocês todos os dias, até a
consumação dos séculos”.

CONTRA OS DONATISTAS
Descrevemos a igreja visível, na qual afirmamos que há muitos não-regenerados e outros,
embora doutrinariamente incorretos, não são inimigos do evangelho ou hereges, mas apenas têm
certos defeitos morais. Tais indivíduos, se não forem excomungados, mesmo que sejam
chamados de membros mortos, ainda estão na comunhão externa da igreja e desempenham
funções de ensino ou administração dos sacramentos. Suas ações são válidas e eficazes, e é
permitido usá-las.
O erro dos Donatistas, que afirmavam que nem o evangelho nem qualquer ato realizado por
ministros com comportamento pecaminoso eram eficazes, deve ser prontamente rejeitado.
Em Mateus 13, Cristo compara a igreja a uma rede que apanha bons e maus peixes; Ele
também diz que o joio crescerá na igreja até a ressurreição, e compara a igreja aos dias de Noé,
entre outros. A partir dessas passagens, fica claro que sempre houve, há e haverá uma grande
multidão de pessoas más na igreja até a ressurreição.
Portanto, como existem pessoas más na igreja e a hipocrisia não pode ser discernida pelo
julgamento humano, pode haver hipócritas no ministério. Assim, a fé não seria firme se o poder
do evangelho e dos sacramentos dependesse da dignidade do ministro. Portanto, é importante
entender que o evangelho e os sacramentos são eficazes devido à promessa de Deus, não devido
à pessoa do ministro. Portanto, Cristo redireciona nossas mentes e nossa fé da pessoa do ministro
para Ele, dizendo: “Quem os ouve, a Mim ouve”, como se estivesse dizendo: o evangelho não é
de vocês, nem é o trabalho de vocês salvar os ouvintes, mas é a obra de Deus, que de forma
maravilhosa reúne Sua eterna igreja através da dispersão da voz do evangelho. Assim como João
diz: “Eu os batizo com água; mas eis que vem Aquele que é mais poderoso do que eu... Ele os
batizará com o Espírito Santo”, ou seja, o evangelho e os sacramentos são eficazes por causa de
Cristo e através de Cristo.
O dito de Cristo: “Os escribas e fariseus se sentam na cadeira de Moisés”, significa que,
mesmo que haja hipócritas no ministério, a função em si é válida, desde que se sentem na cadeira
de Moisés, ou seja, ensinem a doutrina transmitida por Deus. Não devem se sentar em outra
cadeira nem apresentar uma doutrina que entre em conflito com a fé.
Toda essa questão contra os Donatistas foi amplamente tratada por Agostinho em muitos
volumes, e a Carta 166 aborda esse argumento em detalhes: se o poder do evangelho e dos
sacramentos dependesse da dignidade do ministro, nossa fé seria incerta. Portanto, para que a fé
seja certa, é necessário rejeitar e condenar o delírio fanático dos Donatistas.
Este erro também é refutado por Nazianzeno, que usa a seguinte semelhança: a figura do
selo é a mesma, quer seja gravada num anel de ouro ou de ferro. Ele afirma que o ministério é o
mesmo, quer seja realizado por pessoas boas ou más. É necessário advertir sobre os Donatistas
para que os piedosos estejam preparados contra tais extremismos e compreendam a verdadeira
natureza do ministério. Pois, em nossa época, os anabatistas revivem os erros dos Donatistas,
rejeitando de forma ímpia os ministérios e, ao afirmar que estão estabelecendo uma igreja na
qual não há pessoas más, acabam atraindo uma grande multidão de malfeitores, como o exemplo
dos monasterienses demonstra[108]. É importante lembrar disso para que as mentes piedosas se
protejam com maior cuidado e diligência, não consentindo com falsas opiniões e compreendendo
que a partir de um erro, muitos erros múltiplos e incuráveis podem surgir gradualmente.
Então, o que deve ser feito? Devemos ignorar os crimes evidentes dos ministros do
evangelho? Respondo que aqueles que estão manchados com crimes flagrantes devem ser
excomungados pela voz unânime da igreja, como Paulo expulsou o incestuoso da igreja em 1
Coríntios 5. E Jesus, em Mateus 18. 17, diz: “Diga à igreja”. Essa severidade não deve ser
negligenciada, mas, mesmo que seja negligenciada, o ministério continua a ter validade, como
mencionado anteriormente. Além disso, as autoridades que portam a espada devem punir crimes
conforme suas leis, como adultério, assassinato e outros. No entanto, além dos crimes públicos,
existem fraquezas no comportamento de todas as pessoas. Alguns são mais temperamentais ou
indulgentes do que deveriam ser, enquanto outros são mais atenciosos aos negócios, mas podem
ser arrogantes ou preguiçosos em outras áreas. Todos têm suas próprias fraquezas.
Quando se trata desses comportamentos comuns que não se enquadram na categoria de
crimes, as mentes piedosas devem seguir a regra comum de “conhecer os hábitos do amigo, não
odiar” e a orientação de “perdoe, e será perdoado”. Acima de tudo, as fraquezas moderadas dos
líderes e mestres piedosos devem ser toleradas, como Cristo ordena, para que lavemos os pés uns
dos outros, ou seja, curemos essas fraquezas mútuas com gentileza recíproca.
É comum caluniar de forma injusta os governantes. Por essa razão, o Espírito Santo ordena
repetidamente que honremos aqueles que nos governam. Em Hebreus, é dito enfaticamente:
“Obedeçam aos seus guias e sejam submissos a eles; pois velam pela sua alma, como aqueles
que hão de prestar contas delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não
seria útil a vocês” (Hebreus 13. 17). Isso sugere que o ato de governar é, por si só, difícil e
trabalhoso, mas quando a obstinação dos liderados é adicionada, a aflição se duplica. Como
Heródoto disse: “A rebelião difere da guerra tanto quanto a guerra difere da paz”. Portanto, é
mais aflitivo para um governante lidar com seu próprio povo do que com inimigos estrangeiros,
especialmente quando são essas pessoas que deveriam estar apoiando-o em seu difícil cargo. Isso
é corroborado por Paulo em 1 Tessalonicenses 5. 12, onde ele diz: “Rogamos a vocês, irmãos,
que reconheçam os que trabalham entre vocês e que presidem sobre vocês no Senhor e os
admoestam; e que os tenham em grande estima e amor, por causa do seu trabalho”. Há muitas
instruções semelhantes sobre esse assunto nas Escrituras.
Assim como Cam foi punido por desrespeitar seu pai, todos devem estar cientes de que Deus
os punirá se causarem dificuldades aos ministros que ensinam corretamente, mesmo que haja
alguma imperfeição em seu comportamento. Da mesma forma que foi dito a Abraão:
“Abençoarei os que lhe abençoarem, e amaldiçoarei os que lhe amaldiçoarem”[109]. Essa regra,
sem dúvida, se aplica à igreja e aos que ensinam corretamente. Portanto, devemos entender que
não devemos nos afastar do restante da igreja devido ao comportamento dos mestres, e não
devemos criar cismas se não houver erro doutrinário.
Mas há outros que são maus, contaminados por falsas opiniões, que defendem uma doutrina
ímpia e se opõem à verdade, matando os piedosos por causa da profissão da verdadeira doutrina.
Assim como houve sacerdotes e seus seguidores nos tempos de Jeremias, dos Macabeus e
durante a época de Cristo, que abertamente contradiziam a verdadeira doutrina e matavam os
santos. Com esse grupo, mesmo que eles detenham o governo por meio da tirania, não há
comunhão com os piedosos, e a culpa pela cisma recai sobre eles, porque o mandamento de Deus
é “fugir da idolatria”, e também “aquele que ensinar outro evangelho seja anátema”. Os
apóstolos, portanto, se afastavam de Caifás e seu grupo.
É importante observar a diferença entre eles: o ministério não é alterado, mesmo quando
alguns têm maus comportamentos, mas quando uma doutrina falsa é defendida e a idolatria é
estabelecida, o ministério em si é alterado. Portanto, o ministério desses que corrompem a
doutrina deve ser abandonado. Embora a parte principal do ministério seja a doutrina, às vezes, a
administração de certos sacramentos está nas mãos daqueles que corrompem a doutrina. Como
os israelitas mantinham a circuncisão, mesmo que adotassem cultos ímpios, e Caifás e os fariseus
mantinham a circuncisão, embora tivessem graves erros em outras áreas. No entanto, a validade
da circuncisão não dependia dessas pessoas, mas sim porque ela era realizada em nome da igreja.
Da mesma forma, podemos falar sobre o batismo daqueles que foram batizados em igrejas
onde maus líderes estiveram no comando. O batismo era válido porque era realizado em nome da
verdadeira igreja, e as palavras da instituição e seu significado são preservados neste sacramento
sem idolatria. Mas o batismo dos samosatianos, dos maniqueístas e dos arianos não era válido,
pois eles não mantinham o significado das palavras: “Eu o batizo em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo”. Eu mencionei isso brevemente para fortalecer os piedosos contra os anabatistas
e para que eles pensem que os maus frequentemente dominam na igreja, assim como Cristo
comparou a igreja a uma rede, na qual há bons e maus peixes. Portanto, o ministério que eles
mantêm nestes sacramentos, que não são deliberadamente corrompidos, é válido.
No entanto, embora o batismo daqueles que mantêm a verdadeira doutrina seja válido, como
eu disse, porque eles mantêm o significado correto das palavras, ainda assim, porque ensinam
coisas ímpias sobre outras questões, eles fornecem uma razão pela qual a igreja deve
necessariamente se separar deles. Há também uma diferença entre pessoas que pecaram por
ignorância e aquelas que blasfemaram abertamente, como Caifás e outros após a ressurreição de
Cristo. Não há dúvida de que aqueles que defendem abertamente blasfêmias e ídolos devem ser
abandonados, como está escrito: “Fujam dos ídolos”.

SOBRE OS SINAIS QUE APONTAM PARA A IGREJA, QUE OUTROS CHAMAM DE


MARCAS
Os sinais que apontam para a igreja são o evangelho íntegro e o uso legítimo dos
sacramentos; e embora a igreja nem sempre floresça com a mesma glória, ocasionalmente
algumas manifestações do Espírito Santo ocorrem em sua maravilhosa direção. Quanto ao
evangelho ser o sinal que indica qual congregação é a igreja, mencionei anteriormente as
evidências e estas são bastante claras: Efésios 2. 20: “edificados sobre o fundamento dos
apóstolos e profetas”, etc.; e também Isaías 59. 21: “O Meu Espírito, que está sobre você, e as
Minhas palavras, que pus na sua boca, não se desviarão da sua boca, nem da boca da sua
descendência, nem da boca da descendência da sua descendência, diz o Senhor, desde agora e
para sempre”.
Alguns acrescentam a esses sinais da igreja a ‘κακοζηλία’ (más inovações) das políticas
humanas: sucessão episcopal regular e obediência às tradições humanas; e depois dotam
ousadamente os bispos com duas cordas reais, o poder de interpretar as Escrituras e o poder de
fazer leis e instituir novos cultos. Os piedosos devem ser advertidos a evitar cuidadosamente
essas armadilhas; pois em todas as eras, na administração da igreja, os políticos, ignorantes da
doutrina do evangelho, pintaram uma igreja para si mesmos com essa imitação das políticas, e
grandes erros são estabelecidos dessa maneira.
Portanto, quando você ouve esses termos: sucessão ordinária, poder de interpretação, poder
de criar leis, saiba que estão sendo criadas armadilhas para a verdadeira doutrina e pretextos
estão sendo procurados para estabelecer erros na igreja. Portanto, a imagem das políticas
humanas deve ser removida, e devemos pensar de forma diferente sobre a igreja. Como
mencionei antes, a igreja não está ligada a uma sucessão ordinária, como eles chamam, de
bispos, mas ao evangelho: quando os bispos não ensinam corretamente, a sucessão ordinária não
tem relevância para a igreja, mas eles devem ser necessariamente deixados de lado.
Quanto ao poder de interpretação, é importante entender a grande diferença entre poder e
dom: na igreja, o dom de interpretação não está vinculado a uma ordem específica, como não é
dado o Espírito Santo por causa de um cargo ou título. Esse dom não é um poder atrelado a uma
ordem ou título ao qual se deve obedecer devido à ordem, como é o caso da interpretação real ou
jurídica devido à ordem; pois Deus concedeu aos magistrados civis o poder de criar leis que
estão de acordo com a razão e interpretá-las. No entanto, a questão da Palavra do Evangelho na
igreja é completamente diferente: o Filho de Deus trouxe isso do seio do Pai eterno; e é uma
sentença acima da razão sobre o conhecimento de Deus, a ira de Deus contra o pecado, a
grandeza do pecado, a justiça concedida pelo Filho de Deus, o temor, a fé, a cruz, o auxílio de
Deus, a ressurreição, a igreja, a vida eterna, as duas naturezas em Cristo, o Pai, o Filho e o
Espírito Santo.
Portanto, uma vez que Deus ordenou que ouçamos o Filho, e depois os apóstolos foram
enviados pelo mandato do Filho para que os ouçamos, é necessário manter a doutrina transmitida
pelos apóstolos e nos tornarmos discípulos de sua doutrina, não inventando interpretações que
entrem em conflito com seus testemunhos claros e inequívocos, tal como os judeus que inventam
perversões para evadir as palavras de Cristo.
Além disso, aqueles que desejam ser discípulos do evangelho não ouvem apenas para
deturpá-lo caluniosamente, mas para reconhecer, celebrar e obedecer a Deus: quando eles
assentem à Palavra de Deus com temor e fé, uma luz é acesa dentro deles, que os ajuda a
distinguir o evangelho da sabedoria humana e a aceitar corretamente os artigos de doutrina sobre
Deus, pecado, justiça, Cristo, igreja e vida eterna.
Terceiro: essas mesmas pessoas são ajudadas pelo testemunho da verdadeira igreja. Por
exemplo, quando Paulo de Samósata se recusou a interpretar a palavra “Verbo” nestes dizeres:
“No princípio era o Verbo”, etc., foram auxiliados pelo testemunho de Irineu, que tinha ouvido
de Policarpo, discípulo de João; eles também foram ajudados pelos testemunhos de Gregório de
Neocesareia e da igreja de Alexandria, que afirmaram que essa interpretação tinha sido mantida
desde os apóstolos, e com a qual os piedosos viram que os outros testemunhos em João e Paulo
eram congruentes.
Embora a igreja deva ser ouvida, de acordo com o dito: “Se não tivessem lavrado a minha
novilha, não teriam encontrado”[110], no entanto, a fé não se baseia na autoridade da igreja, mas
na própria voz do evangelho. Invocamos o Filho de Deus, porque foi dito: “No princípio era o
Verbo”; também: “Meu Pai trabalha até agora, e Eu trabalho”; também: “Sem Mim, nada podem
fazer”; também Estêvão disse: “Senhor Jesus, receba o meu espírito”.
Além disso, quando os testemunhos da igreja são buscados, é necessário examinar onde e
qual é a igreja, quais épocas são mais puras, quais escritores são mais sinceros. Assim, somos
auxiliados contra os anabatistas: sabemos, em primeiro lugar, pelo evangelho, que os bebês
nascem culpados e sujeitos ao pecado original, e que isso é remediado por aqueles que estão na
igreja, e que os bebês devem se tornar membros da igreja e serem trazidos a Cristo. Em segundo
lugar, temos o testemunho da igreja primitiva, que lemos sobre terem batizado bebês. Portanto,
consideramos que não devemos de forma alguma ceder à loucura dos anabatistas, que tentam
expulsar e destruir milhares de crianças da igreja por causa de um único erro.
Portanto, o dom da interpretação é algo que o Espírito Santo acende nas mentes daqueles que
concordam com o evangelho, como Cristo disse em João 14. 26: “O Espírito Santo os ensinará
todas as coisas e os fará lembrar de tudo o que Eu lhes disse”. Aqui, Ele liga os apóstolos e toda
a igreja ao que Ele próprio disse e acrescenta sobre o dom, que o Espírito Santo nos lembrará
dessa mesma palavra. E Cristo cita de Isaías em João 6. 45: “E todos serão ensinados por Deus”;
por outro lado, dos ímpios, diz-se: “Todos os ímpios não entenderão”; também o homem natural
não percebe as coisas do Espírito de Deus, pois são loucura para ele, e ele não pode entendê-las;
também Isaías 6. 9 diz: “Ouvem, ouvem e de modo nenhum entendem”.
Essas evidências mostram claramente que a interpretação é um dom dos piedosos e não está
ligada ao poder ou à maioria, que geralmente é ímpia. Além disso, a cegueira é a principal
punição da impiedade, como é dito em Salmos 69. 24 e Romanos 11. 10: “Que os olhos deles
fiquem obscurecidos, para que não vejam”. E os flagrantes delírios das nações e dos judeus
mostram que a cegueira é principalmente a punição da impiedade.
Se o poder ordinário ou a maioria tivessem o direito de interpretação, as opiniões dos
fariseus seriam preferidas às opiniões de Zacarias, Simeão, Isabel, Maria, Ana e outros. Mas a
verdadeira igreja geralmente é um pequeno grupo, onde uma grande multidão de ímpios
predomina, como Isaías diz: “A não ser que o Senhor dos Exércitos nos tivesse deixado um
remanescente, seríamos como Sodoma”. Portanto, a interpretação de forma alguma deve ser
vinculada ao poder ordinário e à maioria, e devemos estar atentos às armadilhas quando nossos
oponentes tentam estabelecer erros com esse pretexto.
Ora, devemos reconhecer o dom em si mesmo e dar graças a Deus, pois Ele sempre
governou a igreja de tal maneira que, quando a doutrina estava obscurecida, Ele a reavivou
novamente. Após Noé, Abraão foi o intérprete das promessas; após Moisés, Samuel, Davi e
outros foram enviados na mesma ordem. Mesmo quando os fariseus e saduceus estavam no
poder, havia pessoas como Simeão, Zacarias, Ana, Maria e muitos outros em quem o dom da
interpretação brilhava, embora mais em alguns do que em outros. Assim, mais tarde, Deus na
igreja continuou a acender a chama da verdadeira doutrina. Portanto, não devemos apagá-la sob
o pretexto da maioria ou do poder ordinário, que defendem ídolos e erros.
No entanto, aqueles que anteriormente mantinham o discurso corretamente podem também
errar, e mesmo aqueles que têm uma compreensão correta podem ter alguma escuridão e seu
próprio palheiro, como é dito em 1 Coríntios. Portanto, as opiniões devem ser julgadas de acordo
com a palavra de Deus dada e devidamente comparada. Quanto à semelhança com tradições e
leis dos bispos, será discutida posteriormente. Não devemos estabelecer as almas da igreja com
base na semelhança das tradições humanas, pois devemos reter a opinião de que as tradições
humanas não são culto, e que aqueles que pensam corretamente não devem ser condenados por
causa delas.
13. Os Sacramentos
Estabeleçamos inicialmente uma descrição simples do termo. O sacramento, de fato, como
falamos na igreja, é chamado de cerimônia instituída no evangelho, para ser um testemunho da
promessa que é própria do evangelho, ou seja, a promessa de reconciliação ou graça.
Os profanos pensam que os sacramentos são sinais de profissão que nos distinguem dos
demais, como a toga romana distinguia os romanos das pessoas de outras nações, ou como sinais
de certas funções em relação às pessoas. Pois, assim como costumava ser o costume nas alianças,
de se alimentar juntos dos alimentos sacrificados, agora muitos pensam de maneira humana que
a Ceia do Senhor é apenas um sinal desse pacto mútuo entre as pessoas. No entanto, embora haja
muitos propósitos ordenados para os sacramentos, de longe o mais importante é que sejam sinais
da vontade de Deus para conosco, ou seja, testemunhos adicionados à promessa da graça.
Consideremos toda a igreja, na qual, imediatamente após a queda de Adão, com a promessa da
graça, cerimônias foram acrescentadas, ou seja, os sacrifícios de Adão, que eram consumidos
pelo fogo do céu. Isso significava a paixão do sacrifício vindouro, em relação ao qual a promessa
foi feita, e era um testemunho da reconciliação.
Então, quando a promessa foi renovada, um novo testemunho foi acrescentado, ou seja, a
circuncisão. Depois, quando a luz do ensinamento foi restaurada novamente, houve o sacrifício
do cordeiro e outras cerimônias. Assim, na igreja, aos ensinamentos do evangelho foram
adicionados rituais, o batismo e a Ceia do Senhor; sobre os outros falarei depois. Esses rituais
não são espetáculos humanos, como as tragédias gregas criadas para transmitir qualquer
lembrança de eventos passados às gerações futuras, mas têm propósitos muito mais elevados.
Primeiramente, eles são sinais da vontade de Deus para conosco ou testemunhos da
promessa da graça. Portanto, Paulo diz de Abraão que ele recebeu a circuncisão como um selo da
justiça pela fé, ou seja, um testemunho pelo qual Deus declarou que ele foi aceito em graça. E
como os sacramentos foram acrescentados às promessas, assim como a promessa deve ser
recebida pela fé, também é necessário, no uso dos sacramentos, exercer a fé que contempla a
promessa.
Em seguida, muitos outros propósitos podem ser acrescentados: confissão, distinção das
outras seitas, celebração de encontros públicos, lembrança de um ato específico. Assim, a Ceia
do Senhor é, antes de tudo, um testemunho da graça para conosco, de todo o evangelho, da morte
e ressurreição de Cristo, nos adverte, testemunha e declara que os benefícios de Cristo nos são
concedidos. Portanto, é necessário acrescentar a fé, que crê na promessa da graça.
Em seguida, outros fins são adicionados: Teodósio, ao crer no evangelho, confessa
publicamente sua fé por meio deste exemplo, indicando o que ele crê; do mesmo modo, por meio
deste rito, entende-se que ele está separado das outras seitas.
Terceiro, porque Deus deseja que a igreja não fique completamente desconhecida ou oculta
nas sombras, mas que seja vista e ouvida, para que Seu nome seja celebrado e Sua doutrina seja
propagada. Portanto, Ele deseja que haja reuniões dignas e que o evangelho seja proclamado
publicamente. Para que, nesse tipo de encontro, a confissão seja evidente e haja exercícios de fé,
Deus sempre desejou que houvesse alguns rituais públicos, aos quais a igreja pudesse se reunir
publicamente. Embora o diabo tente diversas vezes dissipar e distorcer tais reuniões, Deus as
purifica repetidamente e as conserva de maneira maravilhosa. Da mesma forma, a Ceia do
Senhor foi instituída por essa utilidade, para ser o nervo da congregação pública.
Finalmente, esses rituais lembram-nos de muitos deveres: primeiro, de agradecer a Deus;
depois, de nutrir a mútua bondade dos membros da igreja, assim como aqueles que faziam
alianças comiam juntos dos sacrifícios.

SOBRE O NÚMERO DOS SACRAMENTOS


É costume, não muito antigo, contar sete sacramentos. Mas há controvérsias sobre esse
número, sendo que o objetivo aqui é manter e distinguir coisas necessárias das não necessárias.
Também é importante distinguir as cerimônias divinamente instituídas na pregação de Cristo de
outras obras que não pertencem propriamente ao Novo Testamento.
Se quisermos chamar genericamente qualquer obra ordenada por Deus, à qual tenha sido
adicionada alguma promessa, de sacramento, então teremos os seguintes sacramentos: oração,
suportar a cruz, obras de caridade, perdão de ofensas. Pois a essas obras sempre foram
acrescentadas promessas divinas. Sobre a oração, conhecemos os mandamentos e promessas,
como (Salmo 49. 15): “Invoque-Me no dia da angústia, e Eu o livrarei”, e em Deuteronômio 4. 7
é dito: “Pois, que outra nação há tão grande, que tenha deuses tão chegados a si, como o Senhor
nosso Deus está em tudo o que nós lhe pedimos?”. Da mesma forma, no evangelho (João 16. 24):
“Peçam, e vocês receberão”. Não seria inútil incluir a oração entre os sacramentos, para que esse
próprio nome lembre as pessoas das promessas e dos frutos dessa grande obra.
Sobre a tolerância na cruz, há promessas, como no Salmo 51. 19, que diz: “O sacrifício
aceitável a Deus é o espírito quebrantado”; também: “A morte dos santos é preciosa”, e no
Salmo 72. 14: “Seu sangue é precioso aos meus olhos”. No evangelho, também encontramos
muitas sentenças semelhantes, como “Quem quiser seguir-Me, tome a sua cruz e siga-Me” e
“receberá cem vezes mais nesta vida”.
Sobre as obras de caridade, as sentenças mais conhecidas incluem “Deem e lhes será dado”
(Lucas 6. 38) e “Deem de comer ao faminto” (Isaías 58. 7), entre outras.
Quanto ao perdão de ofensas, encontramos a promessa (Lucas 6. 37): “Perdoem, e serão
perdoados”. Essa é uma promessa notável, adicionada ao nosso ato de perdão, não porque nosso
perdão possa aplacar a ira de Deus, mas para nos lembrar do evangelho, assim como nos outros
sacramentos.
Portanto, se o nome de sacramento for aplicado não apenas às cerimônias, mas também às
obras morais, o matrimônio pode ser chamado de sacramento. Pois é ordenado por Deus,
decorado com promessas, como no Salmo 128. 6: “Verá os filhos de seus filhos. Paz sobre
Israel”. É instituído para a propagação e preservação da igreja. Além disso, é uma imagem e
analogia da relação de Cristo com a noiva, a igreja, e das aflições e deveres da igreja. Assim
como um marido verdadeiramente ama sua esposa e filhos, luta por eles e compartilha seus bens,
Cristo ama verdadeiramente a igreja, a adorna com seus bens, justiça e comunhão na vida eterna.
Paulo faz referência a esse amor e analogia em relação a um marido honesto. Portanto, é inerente
à natureza humana como uma imagem que simboliza o verdadeiro amor de Cristo pela noiva, a
igreja. Além disso, as aflições e deveres domésticos são uma imagem das aflições e deveres da
igreja.
No entanto, quando usamos a palavra “sacramento” de forma geral, não estamos falando
apenas das cerimônias instituídas na pregação de Cristo. Seja qual for o nome dado a essas obras,
devemos sempre lembrar que o Decálogo apresenta o resumo de todas as obras morais que são
necessárias e ordenadas por Deus. Além disso, devemos procurar em todos os lugares as
promessas e ameaças adicionadas a essas obras, bem como seus exemplos.
Também é importante distinguir entre as promessas legais e a promessa do verdadeiro
evangelho, que é a promessa da reconciliação gratuita.
Quando, no entanto, nos referimos ao termo “sacramento” no contexto das cerimônias
instituídas na pregação de Cristo, podemos listar os seguintes sacramentos: batismo, ceia do
Senhor e absolvição. Estes são ritos externos e são sinais de todo o evangelho. Eles são
especificamente testemunhos do perdão dos pecados ou da reconciliação, que é principalmente
mencionada na definição comum: “Um sacramento é um sinal da graça, ou seja, da reconciliação
gratuita que é dada por meio de Cristo e pregada no evangelho”.
Eu também gosto muito de incluir a ordenação, como é chamada, ou seja, o chamado para o
ministério do evangelho, e a aprovação pública desse chamado. Porque todas essas coisas são
ordenadas pelo mandamento do evangelho, como está escrito em Tito (1. 5): “Nomeie
presbíteros, como lhe foi ordenado”. E é acrescentada a maior e mais digna promessa de todo o
conhecimento, que testemunha que Deus é verdadeiramente eficaz por meio do ministério
daqueles que são eleitos pela voz da igreja, como o testemunho universal sobre os apóstolos e
todos os que pregam a palavra transmitida pelos apóstolos (Romanos 1. 16): “O evangelho é o
poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê”. E Jesus disse em João 17. 9: “Não estou
orando apenas por eles, mas também por aqueles que crerão em Mim por meio da palavra deles”.
E João 20. 23: “Aqueles a quem vocês perdoarem os pecados, eles lhes serão perdoados, etc.”. E
Efésios 4. 8: “Ele subiu, deu dons aos homens, profetas, apóstolos, pastores, doutores”. Lucas 10.
16: “Quem os ouve, Me ouve”. João 15. 1: “Eu sou a videira, vocês são os ramos; quem
permanece em Mim, e eu nele, dá muito fruto”. E 2 Coríntios 5. 18: “Deus colocou em nós a
mensagem da reconciliação, portanto, atuamos como embaixadores de Cristo, como se Deus
estivesse exortando por meio de nós”. E 2 Coríntios 3. 6: “Ele nos fez ministros do novo
testamento, não da letra, mas do Espírito”.
Essas e muitas outras sentenças semelhantes testemunham claramente que Deus é eficaz
através deste ministério da pregação do evangelho, que Ele deseja manter na igreja por meio de
uma vocação contínua. Paulo fala explicitamente da palavra externa, ou seja, do ministério que
proclama a voz do evangelho, quando ele diz (Romanos 10. 8): “A palavra está muito perto de
vocês”, e também (2 Coríntios 5. 19): “Ele nos deu a palavra da reconciliação. Portanto, somos
embaixadores por Cristo”. E o mandamento da igreja é dado para escolher ministros ou enviados
desse tipo, como é expressamente escrito a Tito.
Portanto, os ritos de ordenação nos advertem sobre este mandamento e essas promessas.
Devemos agradecer a Deus por instituir e manter este ministério e por nos receber deste modo,
nos libertando do pecado, do poder do diabo e da morte eterna, e nos restituindo justiça e vida
eterna. Com essa fé, devemos reverenciar e proteger o ministério, usá-lo, aprender e ouvir o
evangelho, exercitar a fé no uso dos sacramentos e reconhecer que, por meio deste ministério, os
bens eternos nos são oferecidos. Devemos também orar a Deus para que conceda ministros aptos
e os ajude, conforme Cristo nos ensina a orar, para que Deus envie trabalhadores para a Sua
seara. Paulo também nos instrui (Colossenses 4. 3) a orar pelos outros, para que Deus os ajude
em seu serviço.
Esta é uma grande consolação, pois mesmo que este ministério seja constantemente abalado
no mundo e muitas pessoas se afastem dele e pereçam, ele não pode ser totalmente destruído.
Pois Cristo diz em Mateus 16, 18: “Sobre esta pedra edificarei a minha igreja”, ou seja, sobre
este ministério; e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Os fiéis devem se sustentar
com essa consolação mesmo nos dias de hoje e saber que os vestígios da igreja e do verdadeiro
ministério permanecerão, mesmo que os impérios desmoronem. Embora isso não ocorra sem
danos à igreja, tais danos têm sido e serão sempre as punições do mundo, como o profeta Amós
disse (9. 8): “Eis que os olhos do Senhor estão sobre o reino culpado, e Eu o destruirei da terra,
mas Jacó não destruirei, mas o sacudirei como trigo em uma peneira, e não cairá um só grão na
terra”. Aqui, o profeta apresenta ameaças e consolação ao mesmo tempo. Não é de admirar que
os impérios sejam punidos, pois não ajudam ou protegem o ministério, como o Salmo diz (Salmo
24. 9): “Abri as suas portas, ó príncipes”, pois os príncipes ímpios procuram destruir as igrejas.
Em vez disso, os líderes ímpios tentam destruir as igrejas. Outros, por meio de sua negligência,
as deformam, não apoiando os esforços, não buscando ministros instruídos, não cuidando de
prover-lhes o necessário, e não buscando aconselhar seus propósitos. Em resumo, eles
negligenciam esta parte do estado público como a mais insignificante, ou a oprimem por meio de
artifícios.
Basílio lamentava que, em seu tempo, os mais humildes e ignorantes servos eram elevados
ao governo da igreja. À medida que a riqueza crescia, as funções da igreja eram saqueadas pelos
poderosos. O próprio ministério era negligenciado, corrompido em parte pela ignorância de
mercenários e, em parte, pela ganância. Hoje, novamente, mesmo em lugares onde a doutrina
correta é aceita, muitos ignorantes e preguiçosos são admitidos ao ministério, porque os
poderosos negligenciam completamente esse assunto, não apoiam os estudos e não se preocupam
com outros ministros. Assim, a igreja é constantemente afligida por dificuldades neste mundo,
que os piedosos devem considerar e mitigar em sua medida, para que Deus também possa aliviar
os castigos.
Deus exige severamente essas funções que contribuem para a preservação do ministério e
recompensa-as abundantemente, como estas passagens testemunham: “Quem der a alguém
destes pequeninos um copo de água fria apenas por ser Meu discípulo, com toda a certeza lhes
afirmo que de modo algum perderá a sua recompensa”. Existem também exemplos notáveis: a
viúva de Sarepta, que acolheu Elias; Obadias, que escondeu e sustentou cem profetas em
cavernas (1 Reis 18); Ezequias (2 Crônicas 31); e o etíope que salvou Jeremias (Jeremias 38).
De todas essas coisas, da eficácia do ministério, da oração pelo ministério, dos deveres que
lhe são devidos, das penalidades pelo desprezo do ministério, a doutrina da ordenação nos
adverte quando é incluída entre os sacramentos. Também nos lembra o próprio ritual, quando
testemunhamos publicamente um antigo costume, indubitavelmente recebido desde os primeiros
pais, ou seja, a imposição de mãos. Este sempre foi um sinal de algo destinado ao culto de Deus
e também um sinal de bênção. Com este ritual, Jacó abençoou os filhos de José; com este ritual,
Moisés ordenou Josué para governar o povo de Deus (Números 27); com este ritual, Cristo
abençoou as crianças; com este ritual, os animais eram ordenados para este serviço, para serem
feitos sacrifícios. Especialmente, o ritual de imposição de mãos apontou para Cristo. O Deus Pai
Eterno impôs as mãos sobre Ele, ou seja, O escolheu, O abençoou, O ungiu e O submeteu a Si
mesmo, colocando sobre Ele um fardo imenso e fazendo-O uma vítima por nós. Este ritual de
imposição de mãos especialmente aponta para isso. Posteriormente, essa significação é
transferida para os ministros. Cristo, o Sumo Sacerdote, impõe as mãos sobre eles, ou seja, os
escolhe com a voz da igreja, os abençoa e os unge com os Seus dons, como está escrito: “Ele
subiu, deu dons aos homens, profetas, apóstolos, pastores, doutores”, com os quais Ele os
enriquece com a luz da doutrina e outros dons. Em seguida, Ele os submete a Si mesmo, para que
ensinem somente o evangelho, sirvam apenas ao reino de Cristo, não busquem poder para si, não
estabeleçam impérios sob o pretexto da religião e também sejam vítimas, ou seja, suportem ódio,
tribulações e sofrimentos pela verdadeira doutrina, como o Salmo (13. 22) diz: “Por Tua causa,
somos mortos o dia todo”.
Portanto, quando considerar que este ritual foi usado pelos primeiros pais e pelos apóstolos,
não o considere como algo casual, mas com um significado. Que o seu coração seja despertado
para reconhecer a eficácia deste ofício, para reverenciá-lo e buscar os significados que nos
advertem sobre Cristo, o Sumo Sacerdote, e sobre os deveres deste ofício. Por outro lado, na
doutrina da ordenação, também devemos considerar as deturpações. Os sacerdotes, que celebram
missas pelos outros, inventam que a ordenação é realizada para conceder o poder de oferecer
sacrifícios pelos vivos e pelos mortos. Eles afirmam que oferecem o Filho de Deus e, através de
sua oblação, merecem a remissão dos pecados para os outros. Além disso, afirmam que, sem este
sacrifício, a morte de Cristo não beneficia a igreja. Embora tenham tirado algumas dessas ideias
de uma má interpretação[111] do sacerdócio levítico, eles também acrescentaram muitas outras
influenciadas por opiniões pagãs. Esses erros devem ser rejeitados, pois deram origem a várias
formas de idolatria[112], que sem dúvida foram alimentadas pela tirania turca. No entanto, a
ordenação deve ser preservada e exaltada por causa do ofício de ensinar o evangelho e da
eficácia desse ofício.
Por outro lado, os anabatistas desconsideram tanto a ordenação quanto o ministério. Eles
imaginam que novas revelações e iluminações de Deus devem ser esperadas e buscadas por meio
de grandes mortificações do corpo, da mesma forma que os monges e os antigos encestas[113]
inventaram. Essas delirantes fantasias fanáticas devem ser abominadas. Elas surgem de falsas
crenças sobre a disciplina da lei e da ignorância da doutrina da fé.
Em contraste, devemos reconhecer que Deus revelou Sua vontade de maneira abundante por
meio do evangelho. Não há necessidade de buscar outras iluminações, mas a fé e a invocação são
despertadas por este próprio evangelho que nos é dado. Deus deseja que haja um ministério
público, e Ele o conserva de maneira maravilhosa, limpando-o periodicamente, para que a igreja
esteja ligada a este evangelho oferecido. Paulo expressa isso em Efésios 4. 14, dizendo que o
ministério do evangelho foi instituído para que o evangelho seja preservado e não sejamos
levados por todo vento de doutrina.

CONFIRMAÇÃO
No passado, havia um exame da doutrina, no qual indivíduos recitavam um resumo da
doutrina e mostravam que discordavam dos pagãos e hereges. Era uma prática usada para educar
as pessoas e também para distinguir claramente entre os profanos e os piedosos, o que era muito
útil. Posteriormente, havia uma oração pública, e os apóstolos impunham as mãos sobre eles,
concedendo-lhes dons evidentes do Espírito Santo. No entanto, o atual ritual de confirmação
realizado pelos bispos é uma cerimônia totalmente sem utilidade. No entanto, seria benéfico que
a exploração e a confissão da doutrina fossem realizadas, juntamente com orações públicas em
favor dos piedosos, e que essas orações não fossem vazias.

UNÇÃO
A unção costumava ser uma forma de tratamento médico. Deus, para conferir alguma
autoridade aos patriarcas e profetas, desde o início os dotou com o dom da cura. Pessoas como
Abraão, Isaac, Jacó, Isaías e outros eram, em essência, médicos. Através desses indivíduos,
juntamente com a verdadeira doutrina religiosa, o conhecimento médico sobre plantas e muitos
aspectos da natureza foi transmitido.
Essa antiga prática foi renovada por Cristo quando enviou seus apóstolos, ordenando-lhes
que curassem os doentes e equipando-os com o dom da cura. Esse dom continuou a existir na
igreja mesmo depois desse período, e é certo que muitas pessoas ainda são curadas por meio das
orações da igreja. É útil lembrar que o dom de Deus inclui a preservação da saúde física, que é
dada para que possamos servir aos outros. Esse dom deve ser buscado e cuidadosamente
mantido. No entanto, o atual ritual de unção é apenas uma cerimônia supersticiosa, acrescida da
invocação dos mortos, o que é inaceitável. Portanto, essa forma de unção, juntamente com seus
apêndices, deve ser rejeitada.

BATISMO
O batismo é uma ação completa, que envolve a imersão na água e a pronúncia das palavras:
“Eu o batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. No entanto, o significado principal
e o propósito do batismo são aprendidos através da promessa associada a ele: “Aquele que crer e
for batizado será salvo”. Portanto, o batismo é apropriadamente chamado de sacramento, porque
é acompanhado por essa promessa que testemunha que a graça pertence verdadeiramente àquele
que está sendo batizado. Pode-se considerar esse testemunho da mesma forma que se Deus
testificasse com uma nova voz do céu que Ele o aceita. Portanto, depois de ser batizado, quando
alguém entende a doutrina, ele deve exercer essa fé, crer que é verdadeiramente aceito por Deus
por causa de Cristo e ser santificado pelo Espírito Santo. Deve-se, então, usar o batismo na vida
diária como um lembrete constante, reconhecendo que por meio deste sinal Deus testemunhou
que você foi aceito em Sua graça. Esse testemunho não deve ser desprezado, portanto, creia que
você foi verdadeiramente aceito e invoque Deus com essa fé. Esse é o uso contínuo do batismo.
É semelhante à circuncisão de Abraão, que era um testemunho perpétuo gravado em seu corpo,
lembrando-o da descendência futura e da bênção prometida por causa da descendência. Toda vez
que ele pensava na circuncisão, ele exercia a fé, crendo que estava agradando a Deus e
agradecendo a Ele, bem como O invocando.
Para compreender melhor a amplitude da promessa, consideremos as palavras do batismo,
que resumem o evangelho e estabelecem a bênção pela qual nos consagramos a Deus, invocando
o nome de Deus sobre nós. O ministro diz: “Eu, por mandato divino e em nome de Cristo, o
batizo. Com este sinal, testifico que seus pecados foram lavados e que você foi reconciliado com
o verdadeiro Deus, que é o Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele enviou Seu
Filho por um conselho maravilhoso e inefável para perdoar seus pecados e iniciar em você uma
nova justiça e uma vida eterna pelo Espírito Santo”. Esta bênção nos consagra a Deus e distingue
a Igreja de todas as nações, porque nenhuma outra nação invoca verdadeiramente o Deus que Ele
Se revelou, ou seja, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, aplacado pelo Filho e santificado pelo
Espírito Santo.
Visto que nestas palavras se incluem as verdades supremas do evangelho, elas nos oferecem
inúmeras consolações. Pois, quão grato é ouvir que agora se é verdadeiramente recebido por
Deus e pelo Pai eterno, agraciado com os benefícios de Seu Filho, governado por Deus através
do Espírito Santo e libertado da morte eterna e das amarras do diabo! Quanto mais
profundamente você considera as palavras do batismo, mais se inflama o seu coração com o
reconhecimento da misericórdia de Deus, a sua fé se fortalece e é mais estimulado a invocá-Lo.
Assim como as palavras apresentam promessa e consolação para nós, a fé exige este vínculo
para que reconheçamos o verdadeiro Deus, o Pai eterno de nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Filho
e o Espírito Santo. Sobre este pacto mútuo, 1 Pedro 3. 21 diz: “O batismo, que não é a remoção
das impurezas do corpo, mas o compromisso de uma boa consciência diante de Deus, através da
ressurreição de Cristo”. Aqui, entende-se uma mútua obrigação e uma aliança fiel. Deus promete
nos receber; a consciência, ao crer nesta promessa, a abraça e, assim, verdadeiramente reconhece
a Deus e O invoca. Esta concepção correta de Deus é chamada de “boa consciência”, que
reconhece e invoca Deus de maneira adequada. Também é acrescentada a frase “pela
ressurreição de Cristo”, pois o batismo opera eficazmente devido ao senhorio de Cristo e nos
ordena a ter fé no fato de que a reconciliação nos é concedida por meio de Cristo.

SIGNIFICADOS
Mencionado anteriormente que existem muitos significados nos sacramentos, mas que um é
considerado o principal, ou seja, a graça, o que deve ser preferido aos demais. O ritual também
retrata essa graça, uma vez que a lavagem representa a purificação dos pecados por causa de
Cristo, e o benefício do sofrimento de Cristo nos é aplicado quando somos mergulhados na água,
como se fosse na morte de Cristo. Em seguida, não é absurdo adicionar outros significados.
Assim como a jornada dos israelitas através do Mar Vermelho foi uma imagem das aflições e
libertação da igreja, o mergulho no batismo é uma imagem das aflições e da libertação. No
entanto, o significado principal, que nos lembra da promessa e da graça, deve ser preferido e
requer fé.
Da mesma forma que uma única circuncisão era suficiente quando a circuncisão era
ordenada, então o batismo deve ser administrado apenas uma vez, como esta razão importante
mostra. É pecado abusar do nome de Deus e rejeitar a verdadeira invocação. Aqueles que
rebatizam desaprovam o batismo anterior, indicam que ele é vazio e inútil, e assim desaprovam a
verdadeira invocação de Deus feita neste batismo. Portanto, a cerimônia em si não deve ser
repetida. Quanto aos anabatistas, discutiremos mais sobre eles em breve, pois introduzem muitos
erros perniciosos por meio de seu rebatismo.
Que os piedosos saibam que o batismo realizado uma vez é um testemunho e um pacto
perpétuo. No caso de Davi após seu pecado, não foi necessária uma nova circuncisão; ao
contrário, a circuncisão anterior o instruiu sobre dois aspectos: primeiramente, que ele foi
circuncidado por causa do pecado e, em segundo lugar, que ele deveria voltar à promessa de
reconciliação, destinada àqueles que caíssem. Assim, os que caíram devem perceber que não
precisam repetir a cerimônia, mas, em vez disso, devem ser lembrados do pacto anterior, no qual
se menciona o Filho, que é um testemunho do perdão dos pecados, e devem retornar à
reconciliação pretendida. Portanto, o batismo oferece grande ensinamento e consolação para
aqueles que caíram, pois a menção do Filho nos lembra do arrependimento e do perdão dos
pecados, testemunhando que aqueles que retornam são novamente feitos membros do povo de
Deus.

O BASTISMO DE JOÃO E DOS APÓSTOLOS


João Batista tinha um ministério que era uma obra de Deus e o início de um novo ministério
que seguiria a lei anterior. Portanto, não devemos considerar o batismo dele como algo inútil ou
sem propósito, e o que algumas pessoas afirmam, que ele apenas significava arrependimento,
mas não remissão, é absurdo. Pois pregar o arrependimento sem remissão é uma abordagem
pagã. É a pregação da ira e da morte eterna, que não se encaixa na igreja sem a pregação da
remissão. Portanto, Lucas e Marcos afirmam claramente: ele pregava o batismo de
arrependimento para remissão dos pecados.
Embora houvesse uma diferença neste assunto, João pregava sobre a paixão futura de Cristo,
enquanto os apóstolos pregavam sobre Cristo crucificado e ressuscitado, o seu ministério era o
mesmo e teve os mesmos efeitos sobre os crentes. João ensinava sobre ambos os aspectos, o
perdão dos pecados e a eficácia do Espírito Santo naqueles que acreditavam no Filho, como ele
disse em Mateus 3. 11: “Ele os batizará com o Espírito Santo”. Também em João 1. 16, está
escrito: “Da Sua plenitude todos nós recebemos”, onde ele testemunha que os crentes não o
recebem de tal forma que Cristo não seja eficaz neles, mas que uma nova luz e justiça começam
a se manifestar neles.
Mas por que João faz essa distinção, dizendo: “Eu batizo vocês com água, mas Aquele que
vem depois de mim os batizará com o Espírito Santo e com fogo?”. Eu respondo: ele não estava
diferenciando o ministério externo, mas sim as pessoas. Ele queria expressar a diferença entre o
Messias e os ministros. Os ministros apenas usam o ministério externo, mas através disso, Cristo
é eficaz por causa de si mesmo, e é através d’Ele que a reconciliação, o Espírito Santo e a vida
eterna são dados. Essas coisas não são realizadas pelos ministros, por isso é necessário distinguir
a pessoa de Cristo dos ministros. Aqueles que não entendem o Evangelho não observam essa
distinção e imaginam que Cristo seja apenas um mestre, assim como os fariseus pensavam. Eles
não compreendiam que Ele foi enviado para ser a vítima e também o doador da vida eterna e
justiça.

O BATISMO INFANTIL
Paulo insiste fortemente na necessidade de testar os espíritos, e Cristo nos fornece uma regra
dizendo (Mateus 7. 16): “Pelos seus frutos os conhecerão”. Um sinal certo de uma mente
fanática e atormentada por um espírito maligno é a defesa obstinada de erros flagrantes. Além
disso, os anabatistas não apenas abalam esse único artigo sobre o batismo de crianças, mas
misturam muitos erros extravagantes. Todo o seu delírio confuso é derivado das loucuras de
muitas antigas seitas, como os maniqueístas, entusiastas e das fábulas recentes dos judeus. Eles
não compreendem a distinção entre justiça espiritual e civil. Portanto, negam que os cristãos têm
permissão para ocupar cargos de governo, exercer autoridade, realizar julgamentos, prestar
juramentos legítimos e argumentam que as propriedades pessoais devem ser entregues em
comum, e afirmam que os cônjuges devem ser separados se discordarem do frenesi anabatista.
Essas insanidades não podem deixar de surgir do diabo e são tochas dos sediciosos. Como
não entendem o lugar proeminente do Evangelho na justiça pela fé, mas creem que o homem é
justificado principalmente por suas próprias obras e pelas duras aflições, eles inventam tais obras
monásticas para parecerem estar fazendo algo novo e difícil. Os anabatistas monásticos
fabricaram erros ainda mais estranhos. Por meio de sua imaginação, seguindo o costume judaico,
eles profetizaram que uma monarquia dos piedosos surgiria antes da ressurreição e começaram a
armar-se de maneira sediciosa para estabelecer essa monarquia. Esse claro delírio era uma marca
notória do diabo, que deveria convencer os sãos a fugir, compreender e não se contaminar com
os erros anabatistas.
Mesmo que alguns deles sejam mais moderados, eles ainda mantêm as sementes de erros
semelhantes. Em última análise, todos erram sobre o pecado original, a justiça pela fé e o
ministério externo, negando a manifesta insanidade do pecado original e não compreendendo que
o pecado é algo mais do que ações externas e ações que transgridem a lei de Deus. Agora ouço
novos delírios sendo promovidos por eles, afirmando que Cristo sofreu não para abolir o pecado,
mas para abolir a morte corporal. Isso não apenas é falso, mas também é dito de forma tola,
porque abolir a morte é abolir o pecado, como Paulo diz (Romanos 5. 12): “A morte passou a
todos os homens por causa do pecado”. Finalmente, ninguém nunca defende um erro flagrante
sozinho, mas geralmente o mistura com outros erros. Portanto, é fácil julgar as opiniões
fanáticas, desde que sejam conhecidos os sinais desse tipo. Visto que os sinais do espírito
maligno são evidentes nas confusões das doutrinas anabatistas, devemos fugir de sua
contaminação e não sermos movidos por sua hipocrisia.
Quanto ao batismo de crianças, a prática não é uma novidade, mas foi confirmada pelo
testemunho das primeiras e mais puras igrejas, como demonstram as seguintes passagens que
recitarei, pois não duvido que exemplos da igreja mais pura fortalecem os piedosos.
Orígenes, no Capítulo 6 da carta aos Romanos, escreve assim: “A igreja também recebeu a
tradição dos apóstolos de batizar até mesmo as crianças; pois aqueles a quem foram confiados os
segredos dos divinos mistérios sabiam que todas as pessoas nascem com as impurezas genuínas
do pecado, as quais devem ser removidas pela água e pelo Espírito”. Essas palavras de Orígenes
fornecem um claro testemunho de dois pontos: o pecado original e o batismo de crianças.
Cipriano escreve que, em um sínodo, uma opinião que não queria que as crianças fossem
batizadas antes do oitavo dia foi condenada. O sínodo decidiu que as crianças deveriam ser
batizadas e que não era necessário seguir o período prescrito do oitavo dia.
Agostinho, em seu livro “Sobre o Batismo Contra os Donatistas”, no quarto livro, diz o
seguinte sobre o batismo de crianças: “O que é observado pela igreja universal, que não foi
instituído por concílios, mas sempre foi mantido, acredita-se com grande justiça que não foi
transmitido senão pela autoridade apostólica”.
Argumento 1
Mas também tiraremos argumentos do Evangelho, que, porque seguem logicamente de suas
mais certas sentenças, são necessariamente válidos. Primeiramente, é absolutamente certo que o
Reino de Deus, ou seja, a promessa da graça e a vida eterna, não pertence apenas aos adultos,
mas também às crianças, que são incorporadas à igreja. Pois Cristo disse muito claramente sobre
as crianças (Mateus 19. 14): “De tais é o Reino dos céus” e também: “Não é a vontade do Pai
que pereça um destes pequeninos”. Essas palavras mais doces testemunham que uma grande
parte da igreja de Deus é composta por crianças sobre as quais o nome de Deus é invocado.
Portanto, amemos e protejamos essas palavras e não permitamos que elas sejam contornadas por
argumentos sofísticos, como afirmam os anabatistas, que alegam que nada é prometido às
crianças, mas que apenas preceitos são dados aos adultos, para que estes imitem a inocência das
crianças, que ainda não têm a inclinação para fazer o mal. Essa sofística não deve impedir que se
estabeleça que essas palavras são verdadeiramente promessas, testemunhando que essas crianças
das quais Ele fala, ou seja, as crianças incorporadas à igreja, são agradáveis a Deus.
Também é certo que fora da igreja, ou seja, entre aqueles sobre os quais o nome de Deus não
foi invocado por meio do batismo e que vivem sem o Evangelho, não há remissão dos pecados e
participação na vida eterna. Isso é claramente comprovado por estas palavras: “Não há outro
nome dado aos homens pelo qual devam ser salvos, senão o nome de Jesus Cristo”. Além disso,
na Epístola aos Efésios (5. 25), Paulo, ao falar da igreja, diz: “Cristo amou a igreja e a si mesmo
se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água”.
Paulo definiu a igreja como o reino de Cristo, que Ele santifica. E Ele atribuiu o batismo como o
sinal da igreja, pelo qual ela é distinguida das outras nações sobre as quais o nome de Cristo não
foi invocado. Além disso, na Epístola aos Romanos (8. 30), é dito: “A quem predestinou, a esses
também chamou”. Portanto, não há eleição daqueles que não são inseridos na igreja por meio da
vocação externa. Além disso, no Evangelho de Mateus (18. 20), Jesus diz: “Onde estiverem dois
ou três reunidos em Meu nome, ali estou Eu no meio deles”. Portanto, naquele grupo que não se
reúne em nome de Cristo, Cristo não está presente. Assim, a conclusão segue claramente desses
argumentos: as crianças devem ser necessariamente inseridas na igreja por meio do batismo, no
qual o nome de Deus é invocado sobre elas. A invocação do nome de Deus é uma questão de
grande importância, e isso é feito por meio do ministério. Portanto, Cristo uniu essas duas coisas:
“Deixai vir a Mim os pequeninos, pois deles é o Reino dos céus”, ou seja, daqueles que Me são
oferecidos, sobre os quais o Meu nome é invocado.
Portanto, não tenho dúvidas de que este argumento pode convencer a todos os sãos: Fora da
Igreja não há salvação, ou seja, onde nem o ministério do evangelho é proclamado, nem os
sacramentos são administrados. A promessa de salvação se aplica aos infantes; portanto, é
necessário que os infantes sejam incorporados à igreja através do batismo, no qual o nome do Pai
eterno, do Filho e do Espírito Santo é invocado sobre eles. Este argumento é tão sólido que não
pode ser refutado. De forma alguma pode ser afirmado que a salvação pertence aos infantes fora
da igreja, como os anabatistas afirmam sem nenhuma evidência convincente.
Argumento 2
Os infantes nascem com pecado e não se tornam herdeiros da vida eterna sem a remissão do
pecado. No entanto, Deus instituiu na igreja o ministério de perdoar pecados e distribuir o perdão
através dos sacramentos. Ele deseja que o perdão seja concedido dessa maneira quando
utilizamos o Seu ministério. Portanto, esse benefício deve ser concedido aos infantes por meio do
batismo.
Quanto ao fato de os anabatistas negarem completamente a doutrina do pecado original, isso
revela ainda mais sua loucura. Pois se eles estão sem pecado, Cristo não sofreu por eles.
Coletamos em outro lugar testemunhos proféticos e apostólicos que mostram que todos os que
nascem trazem consigo o pecado, como Romanos 5. 12: “A morte passou a todos os homens,
porque todos pecaram”, ou seja, eles são culpados. E Efésios 2. 3: “Éramos, por natureza, filhos
da ira”, ou seja, culpados ou condenados. Portanto, uma vez que não há dúvida de que há pecado
em bebês, deve haver uma diferença entre bebês pagãos, que permanecem culpados, e bebês na
igreja, que são recebidos por Deus por meio do ministério.
Argumento 3
Aqueles a quem pertence a promessa, pertence também o sinal. Pois o sinal foi instituído por
causa da promessa; é certo, porém, que a promessa da graça se aplica aos infantes: portanto, é
necessário que o sinal seja aplicado a eles por meio do ministério, no qual o nome de Deus é
invocado sobre eles.
Argumento 4
O mandamento do batismo é universal e pertence a toda a igreja (João 3. 3): “A menos que
alguém seja nascido da água e do Espírito, ele não entrará no reino dos céus”. Portanto, também
se aplica aos infantes, que se tornam parte da igreja. Não há dúvida de que sempre houve sinais
pelos quais os infantes foram apresentados a Deus na igreja, como a circuncisão dos meninos
desde os dias de Abraão e outras cerimônias nas quais meninos e meninas eram oferecidos a
Deus, isto é, em cerimônias nas quais o nome de Deus era invocado sobre eles e a bênção divina
prometida aos pais era aplicada a eles. Os pais tinham outros sinais dados por Deus antes de
Abraão. Portanto, esta suposição deve ser mantida: os infantes que estão na igreja, sobre os quais
o nome de Cristo foi invocado, são recebidos na graça, não os turcos, nem os judeus.
Mas os anabatistas protestam e negam que o batismo seja proveitoso para os infantes, pois
não compreendem a palavra, e consideram a cerimônia sem fé no receptor como inútil. A isso
respondo: É absolutamente verdade que em todos os adultos se requer arrependimento e fé. No
entanto, no caso dos infantes, é suficiente entender o seguinte: o Espírito Santo é dado a eles por
meio do batismo, o que produz neles novos movimentos e novas inclinações em direção a Deus,
de acordo com a medida deles. E isso não é afirmado sem fundamento, pois é certo que os
infantes são recebidos por Deus por meio deste ministério, e o Espírito Santo é dado a eles
juntamente com a remissão dos pecados. Além disso, ninguém pode agradar a Deus a menos que
seja santificado pelo Espírito Santo, como Cristo claramente afirma (João 3. 3): “A menos que
alguém seja nascido da água e do Espírito, ele não entrará no reino dos céus”. E também em 1
Coríntios 15. 50: “Carne e sangue, isto é, sem o Espírito Santo, não podem herdar o reino de
Deus”. E Romanos 8. 14: “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de
Deus”. Portanto, uma vez que é certo que esses infantes fazem parte da igreja e são agradáveis a
Deus, também é certo que Deus está agindo eficazmente neles, pois a vida eterna deve começar
nesta vida.
Todas essas coisas sobre o batismo devem ser consideradas com piedade e diligência por
todos nós, para que também nós, que somos mais velhos, nos consolemos com esse pacto e
aliança, como mencionei antes. Mas especialmente os adolescentes devem ter cuidado para não
desprezar o dom do batismo e não perder a grande glória que Cristo atribui às crianças na igreja
(Mateus 18. 14): “Não é a vontade do Pai que um destes pequeninos se perca”. Pois que maior
glória pode ser imaginada do que afirmar que eles certamente agradam a Deus e estão sob o Seu
cuidado? E que os pais, com fé no batismo, invoquem a Deus em nome dos filhos, os confiem a
Deus e, assim que puderem ser ensinados, os habituem a invocar a Deus e Seu Filho, e aos
poucos lhes transmitam a essência do evangelho. Em resumo, uma vez que as crianças são uma
grande parte da igreja, os pais e mestres devem saber que têm um tesouro inestimável confiado a
eles. Portanto, eles devem exercer fé e diligência ao ensinar e guiar a juventude.

A CEIA DO SENHOR.
Frequentemente se afirmou que o singular e imenso benefício de Deus é ainda mais
admirável do que a própria criação das coisas. Deus se revelou à humanidade com testemunhos
específicos e notáveis, e declarou Sua vontade quanto à nossa salvação por meio de promessas
claras. Pela voz dessas promessas, Ele fundou e reuniu Sua igreja desde o início, após os
primeiros pais terem caído. Essa revelação em si mesma convence claramente nossas mentes de
que somos objeto do cuidado de Deus e que Ele olha por nós. Portanto, todas as histórias das
revelações que foram escritas devem ser frequentemente lembradas. Desde quando Deus recebeu
nossos primeiros pais após a queda, proferiu a primeira promessa, deu mandamentos a Noé para
construir a arca, fez uma nova promessa a Abraão, tirou o povo do Egito, deu à Sua igreja uma
morada certa, por assim dizer, e um lugar fixo, enviou profetas e, finalmente, revelou, por meio
da ressurreição dos mortos e outros milagres, que Jesus Cristo, nosso Senhor, foi
verdadeiramente enviado por Deus.
Sempre que mencionamos as promessas e a fundação ou restauração da Igreja, devemos ao
mesmo tempo considerar os testemunhos que Deus adicionou, que são como selos[114] das
promessas que foram dadas.
Existem três grandes e principais razões pelas quais esses rituais externos foram
acrescentados à promessa.
Primeira causa: para lembrar individualmente aqueles que usam a promessa e a vontade de
Deus em relação a nós, de modo que a fé em Deus fosse despertada e fortalecida em nós por
meio deles.
A segunda causa foi e é que a memória seja mais duradoura publicamente e que a promessa
possa ser propagada com mais certeza para toda a posteridade. Pois os rituais são mais
duradouros aos olhos, como vemos que até mesmo os pagãos mantiveram rituais recebidos de
seus pais, embora tenham corrompido esses rituais quando inventaram novas opiniões e novos
ídolos. Além disso, é evidente que os rituais servem para lembrar e propagar. E muitos rituais
pintaram promessas, como a circuncisão lembrava a Abraão e seus descendentes da semente. O
sacrifício de animais lembrava os pais da morte do Senhor que estava por vir.
A terceira causa foi e é que esses rituais serviriam como os laços das reuniões públicas. Pois
Deus deseja que o ministério do evangelho seja público, Ele não deseja que a voz do evangelho
seja mantida em segredo, como os mistérios de Elêusis[115], mantendo a voz do evangelho restrita
apenas a um grupo seleto. Pelo contrário, Ele deseja que o evangelho seja ouvido por toda a
humanidade, quer ser reconhecido e invocado, e deseja que Sua voz seja ouvida publicamente.
Além disso, Ele deseja que essas reuniões públicas sirvam como testemunho da separação da
igreja de Deus das seitas, facções e opiniões de outras nações. Por exemplo, João, em Éfeso, se
reuniu com sua congregação e ensinou o evangelho, e todo o grupo demonstrou através do uso
do Sacramento que abraçava essa doutrina e invocava o Deus que entregou o evangelho. Eles se
distanciaram dos adoradores de Diana, Júpiter e outros ídolos. Deus quer que Sua igreja seja
vista e ouvida no mundo e deseja que ela seja distintamente separada de outras nações por meio
dessas reuniões públicas. Isso foi visto nas reuniões de Adão, Sete, Enoque, Noé, Sem, Abraão e,
posteriormente, na nação de Israel, que tinha muitos rituais para tornar visível essa separação das
nações circundantes.
Embora o diabo sempre tenha tentado e continue a tentar destruir o ministério do evangelho
e dispersar essas congregações e reuniões da igreja por meio de tiranos e hereges, Deus, em Sua
imensa misericórdia, sempre preservou e, de tempos em tempos, restaurou o ministério do
evangelho e as reuniões públicas da igreja. O que são as ameaças atuais dos turcos estão tentando
fazer, senão a tentativa de apagar a voz do evangelho e dispersar as reuniões da igreja de Deus?
No entanto, Deus prometeu que preservará Sua igreja e Ele o fará. E, na própria Ceia do Senhor,
está incluída essa promessa, que afirma que a igreja de Deus não será destruída neste mundo;
pois ordena que a morte do Senhor seja anunciada e que essa Ceia seja celebrada até que Ele
venha. Essa consolação deve ser querida para os piedosos. E aqueles que mantêm a pureza do
evangelho e o uso piedoso dos sacramentos, sem dúvida, estão se defendendo.
Isso eu mencionei para que possamos refletir sobre as razões pelas quais a Ceia do Senhor
foi instituída, que é em si mesma um testemunho notável da revelação de Deus. Não deveríamos
ouvir as palavras da Ceia do Senhor de outra maneira senão se estivéssemos ouvindo o próprio
Cristo falando conosco e, ao mesmo tempo, pensando em Sua ressurreição e nos outros milagres
pelos quais Deus verdadeiramente se revelou a nós. E devemos entender que este sacramento foi
instituído, em primeiro lugar, para nos lembrar individualmente e para despertar e fortalecer a
nossa fé. Além disso, para que a memória da paixão e ressurreição de Cristo seja perpetuamente
transmitida por meio deste ritual e, por fim, para que seja o nervo das reuniões públicas, nas
quais a igreja de Deus mostra que está separada das opiniões das outras nações.
Após essas introduções, consideremos esses quatro pontos:

Primeiro, como a Ceia do Senhor foi instituída.


Segundo, quem se beneficia da participação.
Terceiro, quem deve ser admitido a participar dela.
Quarto, sobre o abuso e a profanação do Sacramento.

Primeiro.
O ritual é descrito por Mateus, Marcos, Lucas e Paulo. Especificamente, Paulo diz: “Quando
vocês se reunirem”. Ele deseja que esta Ceia seja um evento público, onde o evangelho seja
ensinado, onde Deus seja invocado em menção e confiança no Senhor Jesus Cristo, e onde ações
de graças sejam oferecidas. Portanto, foi dito: “Façam isso em memória de Mim”.
Este não é um espetáculo vazio, mas Cristo está verdadeiramente presente, dando, por meio
deste ministério, Seu corpo e sangue àquele que come e bebe, como também afirmam os antigos
escritores. Como diz Cirilo sobre o Evangelho de João: “Devemos considerar que Cristo não está
apenas em nós por amor, mas também por participação natural, ou seja, Ele está presente não
apenas em eficácia, mas também em substância”.
E Hilário diz: “Sobre a verdade natural que dizemos em nós, a menos que a aprendamos com
Ele, estaríamos falando tola e impiedosamente”. Pois Ele mesmo diz: “Minha carne é
verdadeiramente comida e Meu sangue é verdadeiramente bebida”, e assim por diante. Receber e
beber essas coisas fazem com que tanto nós estejamos em Cristo quanto Cristo esteja em nós.
Não devemos imaginar que é apenas uma memória de um homem morto, como os espetáculos
sobre Hércules ou coisas semelhantes. Devemos abandonar esses pensamentos profanos e,
lembrados por este testemunho, crer verdadeiramente que Cristo se tornou uma oferta por nós e
morreu, mas ressuscitou e agora reina, e está presente em Sua igreja, e através deste ministério
realmente nos conectamos a Ele como membros.

Segundo.
Nas igrejas que são corretamente ensinadas, os ouvintes devem ser convidados e
acostumados a participar mais frequentemente da Ceia do corpo e do sangue de Cristo, para que,
ao fazê-lo, também seja despertada uma invocação mais fervorosa e ação de graças. Mas ao
mesmo tempo, as pessoas que se beneficiam da comunhão devem ser ensinadas. É repreensível e
lamentável que muitos que desejam ser considerados membros da Igreja raramente participem da
Ceia, talvez uma ou duas vezes em dez anos, e essa negligência muitas vezes abre caminho para
opiniões profanas e extingue a invocação, além de levar a outros vícios.
No início da Igreja, o uso da Ceia era muito mais frequente, como mostram os antigos
registros e cânones. Também é prejudicial que algumas pessoas, que vivem em pecado flagrante
e sem arrependimento, participem da comunhão.
Portanto, é um instituto útil e piedoso examinar primeiro cada indivíduo, entender o que eles
sabem e o que aprenderam, e, durante essa conversa, instruir os menos experientes sobre o que é
o Sacramento, como ele é usado e a quem beneficia.
Então, é evidente que nesta parte devemos frequentemente ensinar que a participação não é
benéfica para aqueles que não se arrependem, mas persistem em pecados conscientemente, como
Paulo claramente afirma: “Aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente
será réu do corpo e do sangue do Senhor”. Comem indignamente aqueles que não trazem o temor
de Deus e a fé, ou seja, o arrependimento e a fé, e que, cientes disso, continuam em seus pecados
conscientemente. Alguns se entregam à luxúria, outros ao ódio e à vingança injusta; alguns
sabem que estão manchados por outros crimes e não desistem de suas intenções maliciosas.
Esses males, por si só, ofendem a Deus. Mas Paulo acrescenta que essa ofensa é agravada por
uma ofensa ainda mais séria, que é o ultraje ao corpo e ao sangue do Senhor. Além disso, ele
acrescenta outra ameaça: “Aquele que comer e beber indignamente, come e bebe para sua
própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor”, ou seja, ele atrai não apenas a punição
por pecados anteriores, mas também por esse crime, que ultraja o corpo do Senhor. Portanto, o
arrependimento ou o temor de Deus é necessário para aqueles que se aproximam da comunhão.
E, de fato, nesta ação em si, que celebra a memória da morte de Cristo, é pregada e ensinada
sobre ambas as coisas: o arrependimento e a fé. Você ouve que o corpo de Cristo é dado por
você; você ouve que o sangue é derramado por você. Essas palavras primeiro nos lembram da
imensa ira de Deus contra nossos pecados, uma ira que não poderia ser aplacada pelas virtudes
ou méritos de nenhum homem ou anjo, mas que exigiu a morte de Seu Filho para ser aplacada. A
mente piedosa pode julgar que o pecado não é um mal leve quando ouvimos essas palavras.
Muitos grandes infortúnios humanos, doenças, exílios, torturas, fome, guerras, pestes e outras
aflições são sinais da ira de Deus contra o pecado e nos são impostos para que possamos ser
lembrados do julgamento e da ira de Deus; no entanto, um testemunho muito mais
impressionante da ira é o Filho de Deus derramando Seu sangue, lutando contra a ira de Deus,
sendo dilacerado e pendurado na cruz. Se alguém não é movido por esse testemunho e não fica
apreensivo com o pensamento da ira de Deus e da morte de Cristo nesta ação e na comunhão, ele
não entende o que está acontecendo aqui. Ó Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, crucificado e
ressuscitado por nós, acenda nossas mentes para que nos voltemos a Deus, para que não
desprezemos Sua ira e Sua morte, mas que verdadeiramente nos dobremos ao conhecimento de
Suas bênçãos e ao maravilhoso propósito de Sua morte.
Este plano supera em muito toda a sabedoria de todas as criaturas. Portanto, és Tu, Filho de
Deus, Jesus Cristo, que nos ensinas, pois disseste (Lucas 10. 22): “Ninguém conhece o Pai, senão
o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar”.
Além disso, a fé também é necessária, buscando e recebendo o perdão dos pecados. Pois
aqui o perdão dos pecados é oferecido e aplicado ao crente. Quando é dito aqui, “este é o sangue
da nova aliança”, somos lembrados do evangelho como um todo, de todo o benefício da nova
aliança. E essa promessa exige fé, como foi amplamente mencionado anteriormente. No entanto,
aqueles que não se arrependem não buscam nem recebem perdão. Então, com esta doutrina em
mente, despertemos nossos corações para o arrependimento e exercitemos nossa fé.
Consequentemente, aqueles que sinceramente se arrependem se aproximam dignamente da Ceia
do Senhor, a fim de fortalecer sua fé com este testemunho e promessa da nova aliança. Portanto,
a participação beneficia aqueles que estão se arrependendo, ou seja, fortalece sua fé, pela qual
aqueles que realmente participam obtêm o perdão dos pecados e o Espírito Santo. Se uma nova
voz de Deus soasse do céu, declarando que você foi reconciliado com Deus, então com grande
alegria você confessaria que crê em Deus e O agradeceria; assim deveríamos sentir neste uso do
Sacramento. Cristo testemunha que, por meio deste penhor tão grandioso, você está sendo
reconciliado com Ele e se tornando membro de Seu corpo. Impulsionado por este testemunho,
creia verdadeiramente que você está sendo reconciliado por Ele, invoque Deus com essa fé,
agradeça a Cristo por ter aplacado a ira de Deus com Sua morte, por nos ter dado o Evangelho e
Suas promessas.
Portanto, o erro dos monges e sacerdotes deve ser rejeitado, aqueles que inventaram que o
ato em si[116], como eles dizem, sem uma disposição de coração apropriada, pode trazer proveito.
Como essas ideias farisaicas conseguiram entrar na Igreja? É dito claramente (Romanos 1. 17):
“O justo viverá pela fé”. Portanto, na participação da Ceia do Senhor, é necessário acrescentar a
fé, considerando muitas coisas importantes: a ira de Deus contra o pecado, a morte do Filho de
Deus pela qual o Pai foi aplacado, a doação do Evangelho e dos Sacramentos, pelos quais a
prometida remissão dos pecados nos é aplicada. Os Sacramentos não concedem a promessa a
todos indiscriminadamente. E nesta ação, Cristo nos une a Si mesmo como membros.
Com essa reflexão e fé, quando invocamos a Deus e nos aproximamos d’Ele sob a liderança
de Cristo, nossos corações são inflamados pelo Espírito Santo. Portanto, a voz externa do
Evangelho ressoa para que nossos corações a recebam pela fé, como Paulo diz: “A fé vem pelo
ouvir”. Assim, a ação externa do Sacramento é apresentada para lembrar nossos corações e
despertar a fé, não como se fosse o fim e o mérito da reconciliação.
Depois de falar sobre o principal objetivo, ou seja, a confirmação da fé, é apropriado
acrescentar muitos outros objetivos; pois uma ação pode ter múltiplos objetivos, desde que sejam
ordenados.
No entanto, é necessário acrescentar como objetivo próximo à confirmação da fé a ação de
graças. É por isso que o nome atribuído a este ritual é “eucaristia”[117]. Aqui, tanto no ensino
quanto nas orações privadas, os benefícios de Cristo devem ser lembrados, e ação de graças deve
ser expressa em voz alta.
Deus Todo-Poderoso, Pai eterno de nosso Senhor Jesus Cristo, Criador de todas as coisas e
Preservador junto com Teu Filho eterno, nosso Senhor Jesus Cristo, e Teu Espírito Santo, tem
misericórdia de mim por intermédio de Jesus Cristo, Teu Filho, que Tu, em Teu conselho
maravilhoso e inexprimível, quiseste fazer uma oferta por nós. Ao mesmo tempo, Tu revelaste
Tua ira contra o pecado e Tua imensa misericórdia para com a humanidade. Santifica, guia e
auxilia-me com Teu Espírito Santo, governa e guarda Tua igreja e as autoridades que são os
hospedeiros das igrejas.
Também Te agradeço, Deus Todo-Poderoso, Pai eterno de nosso Senhor Jesus Cristo,
Criador de todas as coisas e Preservador junto com Teu Filho eterno, nosso Senhor Jesus Cristo,
e Teu Espírito Santo, por Tua imensa bondade revelada à Tua igreja. Enviaste Teu Filho, nosso
Senhor Jesus Cristo, para que Ele se tornasse uma oferta por nós, e através d’Ele nos fosse
concedido o perdão dos pecados e a vida eterna. E agradeço também por concederes a nós, por
meio do Evangelho e dos Teus Sacramentos, e por preservares o ministério do Evangelho e a
Igreja, sem permitir que sejam destruídos. Que possamos contemplar e celebrar com um coração
grato esta grande bondade e benefícios imensuráveis. No entanto, oro para que Tu nos acendas
com Teu Espírito Santo, para que nossos corações sejam verdadeiramente gratos, e que a
gratidão resplandeça em nossos comportamentos, etc.
Também agradeço a Ti, Jesus Cristo, Filho de Deus, crucificado por nós e ressuscitado, por
teres intercedido com grande amor por nós diante do Pai eterno em favor da humanidade e por
Te tornares uma vítima por nós. Em Ti, aplacaste a ira de Deus contra nossos pecados. Acende
nossos corações para que possamos compreender melhor este Teu grande benefício e celebrá-lo
com verdadeira gratidão, etc.
Que os mais simples conservem algum tipo de forma para que possam ser estimulados a
pensar nessas questões mais importantes. Pois a fé se alimenta e se acende através do
pensamento. O coração se move quando refletimos sobre a severa justiça de Deus, que não
perdoou o pecado sem penalidade, e, portanto, verdadeiramente se enfurece com o pecado, de
forma justa e terrível. E qual é o tamanho do amor do Filho, que intercede por nós e atrai sobre si
a ira? Quão profunda foi a sua humilhação? Ele se apresentou diante de Deus, sentindo a Sua ira
como se estivesse contaminado com os teus pecados e com as inúmeras infâmias dos piores
pecadores, os ídolos, a lascívia e outros ultrajes. Por que nos orgulharíamos, quando o Filho de
Deus se humilhou tanto? É útil pensar sobre essas coisas durante a ação de graças.
Um terceiro propósito deve ser acrescentado, ou seja, que o exemplo de Cristo seja útil para
manter a congregação pública. Pois se apenas alguns participassem da Ceia e as pessoas fossem
gradualmente afastadas desse encontro, com o tempo, as igrejas esqueceriam completamente a
congregação pública, os sermões e a Ceia, como aconteceu em grande parte do mundo, onde
apenas sacerdotes leem missas, o povo se afasta das igrejas, não ouve pregações e não entende o
uso da Ceia.
Mas este é o mandamento de Deus: que cada um, pelo seu exemplo, convide os outros para
esta congregação pública, como ensina o mandamento sobre o Sabá, porque Deus quer que o
ministério seja público, que o Evangelho seja proclamado publicamente, que todos ouçam e
aprendam. Ele também prometeu estar presente nessas reuniões e atender às orações, como é
claramente afirmado em Mateus 18. 20: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em Meu
nome, ali estou no meio deles. Se dois de vocês concordarem na terra em qualquer assunto que
pedirem, isso lhes será feito por Meu Pai que está nos céus”. Com esta doce promessa, Cristo nos
recomenda a congregação pública, Ele deseja que amemos a comunidade, que a igreja seja
comunitária[118], e Ele odeia dispersão e a dissolução.
O quarto objetivo é a Confissão da doutrina. Quando você recebe o Sacramento, está
mostrando que aprova a doutrina da Igreja e deseja ser membro da comunidade que compartilha
a refeição do Cordeiro.
O quinto objetivo é o vínculo da mútua afeição. Assim como era comum compartilhar a
mesma comida ao fazer acordos e tratados antigamente, Paulo nos lembra que essa comunhão é
um elo de amor mútuo: assim como o pão é um, nós somos muitos e formamos um único corpo.
Esses objetivos devem ser entendidos dessa forma, para que o objetivo principal não seja
deixado de lado e para que nada seja adicionado que entre em conflito com o objetivo principal e
obscureça a doutrina sobre o verdadeiro uso do Sacramento e o exercício da fé.

Terceiro.
Aqueles que devem ser admitidos ao Sacramento podem ser entendidos com base no que
Paulo disse (1 Coríntios 11. 29): “Aquele que come e bebe indignamente, come e bebe para sua
própria condenação”. Aqueles que comem indignamente são aqueles que persistem em pecados
conscientes, tanto públicos quanto secretos, e também aqueles que não trazem arrependimento e
fé.
No entanto, os ministros não podem julgar senão os pecados manifestos. Portanto, eles
devem afastar aqueles que, tendo cometido pecados manifestos, não se arrependem. E lembrem-
se do preceito (Mateus 7. 6): “Não deem aos cães o que é santo”.
Isso também pertence ao dever dos pastores: examinar a doutrina e a fé de cada pessoa na
congregação e professar a fé e mostrar o que pensamos sobre a doutrina. Cada um de nós deve
fazer isso diante dos pastores. Assim como Pedro aconselha que devemos estar prontos para dar
uma razão de nossa fé.
Aqueles que verdadeiramente se arrependem e têm temor sério não devem evitar o uso do
Sacramento por causa de pecados anteriores. Eles devem entender que este sinal foi instituído
apenas para acender e fortalecer a fé na remissão dos pecados e para que a mente, reconciliada
com Deus, O invoque novamente e O sirva com uma consciência boa. A mente não deve confiar
em sua própria dignidade e pureza, assim como o filho pródigo, ao retornar ao pai, não proclama
suas próprias obras e méritos, mas reconhece, acusa e lamenta sua culpa. Da mesma forma,
devemos reconhecer e confessar nossas impurezas e recorrer à misericórdia prometida por Cristo,
cujo penhor de misericórdia é a própria Ceia, na qual Cristo nos une a Ele como membros e
testemunha que a remissão dos pecados nos é concedida gratuitamente, ou seja, não por nossa
dignidade, mas porque Ele próprio se tornou a vítima por nós. Quando essas reflexões são feitas
de maneira piedosa durante o uso do Sacramento e a invocação, a compreensão da fé é
aprimorada mais do que por meio de longas discussões, e os abusos podem ser facilmente
identificados.
Quarto.
Contra o piedoso uso deste Sacramento, sobre o qual falei, ocorreram terríveis profanações
na Igreja, que precisam ser censuradas e evitadas, de acordo com a passagem (1 Coríntios 10.
14): “Fujam dos ídolos”. Primeiro, devemos manter uma regra clara e sólida: a cerimônia não
tem a natureza do Sacramento, ou seja, não é um sinal agradável a Deus da Sua graça, quando
algo é instituído fora e além da Palavra de Deus, ou quando a cerimônia é transformada em uma
ação de natureza diferente, ou seja, quando se estabelece um objetivo diferente daquele proposto
por Deus. Por exemplo, se alguém transportasse água do Batismo para ser observada e ensinasse
que o Espírito Santo estava contido nela, ou se alguém usasse o Batismo para curar a lepra. Da
mesma forma, a circuncisão judaica e muçulmana não tem qualquer natureza de Sacramento, ou
seja, não é agradável a Deus, mas é uma exibição ímpia e condenada por Deus, pois vai contra a
Palavra de Deus.
A partir deste exemplo, muitos abusos evidentes da Ceia do Senhor podem ser julgados. A
exibição em que o pão é carregado certamente não é uma refeição. No entanto, Jesus disse
(Mateus 26. 26): “Tomem, comam”. Nada se encaixa na natureza do Sacramento tirar uma parte
e prender o próprio Cristo ali sem nenhuma palavra divina. Assim, a cerimônia é transformada
em um ato completamente diferente quando afirmam estar oferecendo o Filho de Deus pelos
vivos e pelos mortos e merecendo para eles a remissão dos pecados. Vai-se ainda mais longe da
instituição quando se recorre a bens corporais a serem obtidos, à vitória, à felicidade no
comércio, à expulsão da doença. Quando o sacerdote oferece de tal forma para obter esses bens,
desvia-se da instituição. É ainda mais estranho quando sacerdotes ignorantes, sem saber o que
estão fazendo, realizam essa oferta (como eles chamam) apenas por causa de seus próprios
ventres.
Embora eu saiba que esses abusos são defendidos com grande teimosia e desculpados por
meio de artimanhas enganosamente elaboradas e vários disfarces; ainda assim, encorajo os
piedosos a fugirem dessa profanação horrenda, de acordo com a orientação: “Fuja da idolatria”, e
a aprenderem o uso piedoso do Sacramento. Assim como sempre houve calamidades públicas,
queda de reinos, guerras, destruições, tumultos, raiva de governantes, fome, pestes, como castigo
por esses pecados, especialmente a adoração de ídolos, assassinatos injustos e luxúria; acredito
que as ameaças turcas se intensificam, principalmente devido à introdução de ídolos na Igreja,
profanações das Missas, invocações aos mortos e devido às luxúrias errantes. Portanto, oremos
ao Filho de Deus para corrigir os erros e mitigar os castigos.
Na verdade, não é necessário uma longa discussão sobre algo tão evidente. Assim como os
sacerdotes fariseus costumavam fingir que mereciam a remissão dos pecados por meio de seus
sacrifícios, os monges e sacerdotes inventaram que poderiam merecer a remissão de pecados
para si mesmos e para os outros por meio de suas ofertas, vivos e mortos. Nesse erro estão
contidas muitas persuasões falsas e prejudiciais, ou seja, que a paixão de Cristo não teria sido
suficiente para toda a Igreja e que as pessoas obtêm reconciliação por causa da obra do sacerdote,
e não pela confiança na misericórdia prometida por meio do Filho de Deus crucificado por nós.
Além disso, surgem muitos outros erros.
Consequentemente, é necessário opor-se a essas ideias equivocadas com a verdadeira
doutrina sobre o mérito da paixão de Cristo, conforme está escrito em Hebreus 10. 14: “Por uma
única oferta, aperfeiçoou para sempre aqueles que estão sendo santificados”. Portanto, somente a
morte de Cristo foi o sacrifício por todos os nossos pecados, não sendo necessário nenhum outro
ritual levítico ou prática subsequente.
Além disso, é evidente que recebemos o perdão dos pecados pela fé em Cristo, não por meio
de nossas obras ou dos sacrifícios de sacerdotes, de acordo com a famosa e sólida doutrina: “O
justo viverá pela fé”. A partir disso, é fácil para todos os piedosos discernirem os terríveis abusos
que são defendidos por aqueles sacerdotes que buscam ganho pessoal com a Ceia do Senhor.
Por último, de onde vem a ideia de que eles afirmam oferecer o Filho de Deus? É uma
questão significativa oferecer, reconhecendo a ira de Deus contra os pecados da humanidade,
submetendo-se a essa ira, sendo um Mediador entre Deus e a humanidade e entrando no Santo
dos Santos diante de Deus. Portanto, em Hebreus 9. 12, é dito: “Não pelo sangue de bodes e
bezerros, mas pelo Seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, efetuando uma eterna
redenção”. Além disso, em Hebreus 9. 14: “Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito
eterno se ofereceu a Si mesmo imaculado a Deus, purificará das obras mortas a sua consciência,
para servirem ao Deus vivo?”.
Cristo Se ofereceu a Si mesmo. Portanto, é nosso dever reconhecer essa oferta feita por Ele e
crer que, por meio dela, o eterno Pai está reconciliado conosco e, por causa disso, agradecer. Que
os piedosos considerem isso e busquem as verdadeiras testemunhas da antiga Igreja. Eu sei que
muitos reunirão uma série de testemunhos fúteis dos autores recentes. No entanto, é necessário
que os piedosos exerçam discernimento para separar as testemunhas falsas e adulteradas das
genuínas. Portanto, mantenhamos o costume apostólico, que perdurou na Igreja por cerca de
trezentos anos desde os tempos dos Apóstolos. Leituras piedosas devem ser lidas, o povo deve
ser instruído através de sermões edificantes, orações devem ser oferecidas e, em seguida, as
palavras de Cristo sobre a Ceia devem ser lidas, e o Sacramento deve ser distribuído a alguns
piedosos examinados que o buscam. Depois disso, uma ação de graças deve ser oferecida. Não
devem ser feitas ofertas privadas por indivíduos.
E como este assunto exige uma explicação que mostre o que é um sacrifício e se há uma
única maneira de se referir a ele, adicionarei esta declaração, que eu considero necessária.

SOBRE O SACRIFÍCIO.
Embora possa parecer simplista distinguir entre os termos “Sacramento” e “Sacrifício”, a
natureza das cerimônias exige que se observe uma diferença em seus propósitos e fins. Algumas
são sinais e símbolos das promessas, através das quais Deus nos oferece algo, enquanto outras
são rituais ou ações que realizamos como uma forma de adoração a Deus.
É necessário manter essas distinções nas cerimônias, independentemente das palavras que
utilizamos. Dado que os termos “Sacramento” e “Sacrifício” estão em uso, continuaremos a usá-
los. Portanto, um “Sacramento” é uma cerimônia que é um sinal de uma promessa pela qual
Deus nos oferece ou nos concede algo. Por exemplo, a circuncisão era um sinal através do qual
Deus prometia receber os circuncidados. O batismo é um sinal pelo qual Deus age em relação a
nós e nos recebe em Sua graça; é como se Deus mesmo nos batizasse, pois o ministro do batismo
age em nome de Cristo.
Por outro lado, um “Sacrifício” é uma cerimônia ou uma ação que realizamos em direção a
Deus como uma forma de honrá-Lo. É uma maneira de testemunhar nosso reconhecimento de
que Deus é verdadeiramente Deus e, portanto, oferecemos a Ele essa obediência.
Existem apenas duas espécies de Sacrifício próximas, e não mais do que isso. Uma delas é o
Sacrifício propiciatório, ou seja, uma obra que obtém para outros a remissão da culpa e da pena
eterna, ou uma obra que reconcilia Deus e aplaca a ira divina em favor dos outros, e é satisfatória
pelos pecados e pena eterna. A outra espécie é o Sacrifício de ação de graças (εύχαριστικόν), que
não obtém remissão de pecados ou reconciliação, mas é oferecido pelos reconciliados como uma
maneira de agradecer a Deus pela remissão dos pecados e por outras bênçãos, expressando
gratidão a Deus por meio dessa obediência.
Essa distinção pode ser claramente comprovada pela Epístola aos Hebreus, que ensina que
havia apenas um Sacrifício Propiciatório no mundo. Portanto, conclui-se que todas as outras
ações são consideradas obras nas quais os reconciliados deveriam expressar sua obediência.
Além disso, todas as ofertas na Lei de Moisés podem ser classificadas em uma dessas duas
categorias que mencionei. Alguns sacrifícios levíticos eram chamados de “propiciatórios” devido
à sua semelhança ou significado, não porque eles obtivessem a remissão dos pecados diante de
Deus, mas porque apontavam para o futuro sacrifício de Cristo. No entanto, aqueles sacrifícios
mereciam a remissão dos pecados em termos de conduta externa, ou seja, para que as pessoas
não fossem excluídas da comunidade de Moisés. Portanto, esses sacrifícios eram chamados de
propiciação pelo pecado, pela transgressão, e também o holocausto. Em contraste, outros
sacrifícios eram ofertas de ação de graças (εύχαριστικά), ofertas de cereais, libações, ofertas
votivas, ofertas de retribuição, primícias e dízimos.
No entanto, na realidade, houve apenas um sacrifício verdadeiramente propiciatório no
mundo, ou seja, a paixão ou morte de Cristo, como ensinado na Epístola aos Hebreus (10. 4):
“Porque é impossível que o sangue de touros e de bodes tire pecados” e logo depois (versículo
10), fala da vontade de Cristo: “Estamos santificados pela oferta do corpo de Jesus Cristo feita
uma vez por todas”.
Pois até mesmo Cristo aplica Seu próprio sacrifício a nós quando Ele ora por nós. No
Evangelho de João 17 (versículos 20 e 21), Ele diz: “Não rogo somente por estes, mas também
por aqueles que pela Sua palavra hão de crer em Mim; para que todos sejam um, como Tu, ó Pai,
o és em Mim, e Eu em Ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que Tu
Me enviaste”.
Aqui estão as palavras de nosso Sumo Sacerdote e Pontífice, com as quais Ele Se oferece por
toda a Igreja e intercede por ela, o que sempre devemos manter em mente. O profeta Isaías
também interpreta a Lei, para que saibamos que a morte de Cristo é verdadeiramente uma
satisfação pelos nossos pecados ou expiação, não as cerimônias da Lei. Portanto, ele diz em
Isaías 53. 10: “Quando der a Sua alma como oferta pelo pecado, verá a Sua posteridade,
prolongará os Seus dias etc.”, como se dissesse: Outra oferta permanece, que verdadeiramente
removerá o pecado e a morte. Portanto, essas cerimônias comuns não removem o pecado e a
morte. Paulo também expressou essa ideia quando disse: “Ele se fez maldição” e “Ele condenou
o pecado no pecado”, ou seja, Ele puniu e removeu o pecado por meio da oferta pelo pecado. Os
hebreus chamavam essa oferta pelo pecado ou delito, assim como os latinos chamavam de
expiação. Portanto, devemos manter isso em mente: houve apenas um único sacrifício
propiciatório no mundo. As ofertas propiciatórias mencionadas na Lei, como mencionei antes,
eram chamadas assim por uma semelhança e, portanto, foram abolidas após a aparição de Cristo.
Além disso, uma vez que o Evangelho foi prometido para trazer a verdadeira propiciação, é
necessário que as cerimônias levíticas não fossem verdadeiras propiciações, porque foram
abolidas com a revelação do Evangelho.

O SACRIFÍCIO EUCARÍSTICO.
Agora restam os Sacrifícios Eucarísticos, também chamados de Sacrifícios de louvor, a
pregação do Evangelho, a fé, a invocação, a ação de graças, a confissão, as aflições dos santos, e,
na verdade, todas as boas obras dos santos. Esses Sacrifícios não são satisfações para aqueles que
os realizam ou podem ser aplicados a outros para merecer a remissão dos pecados ou
reconciliação por meio da obra em si. Portanto, além do único sacrifício propiciatório, ou seja, a
morte de Cristo, os outros sacrifícios no Novo Testamento são apenas de ação de graças, como
Pedro ensina em 1 Pedro 2. 5: “Vocês são também como pedras vivas edificados para casa
espiritual e sacerdócio santo, a fim de oferecerem sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por
Jesus Cristo”. Estes sacrifícios espirituais não se assemelham apenas aos sacrifícios de animais,
mas também às boas obras humanas oferecidas pelo trabalho em si, ou seja, sem fé e um coração
piedoso. Isso ocorre porque “espiritual” refere-se ao movimento do Espírito Santo em nós. A
Epístola aos Hebreus também fala sobre esses dois sacrifícios em Hebreus 13. 15: “Por Ele, pois,
ofereçamos sempre a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o Seu
nome”. E acrescenta uma interpretação: “o fruto dos lábios que confessam o Seu nome”, ou seja,
invocação, ação de graças, confissão e coisas semelhantes. Esses sacrifícios têm valor não por
causa do trabalho em si, mas por causa da fé. A partícula “por Ele” significa que oferecemos
esses sacrifícios por meio da fé em Cristo. É uma consolação notável para a mente cristã saber
que todas as boas obras e aflições são sacrifícios, isto é, obras agradáveis a Deus, pelas quais
Deus declara que deseja receber honra.
E quanto a esse tipo de sacrifícios, há muitos ensinamentos nos Salmos e nos Profetas. Por
exemplo, no Salmo 49. 14, lemos: “Oferece a Deus sacrifício de louvor e paga ao Altíssimo os
seus votos”. Da mesma forma, no Salmo 51. 17, encontramos: “Sacrifícios agradáveis a Deus são
o espírito quebrantado; coração quebrantado e contrito, não o desprezarás, ó Deus”.
Em segundo lugar, é importante entender que o culto no Novo Testamento é espiritual, o que
significa que é uma questão de justiça pela fé e dos frutos da fé. Isso ocorre porque o Novo
Testamento traz a justiça e a vida espiritual e eterna, como está escrito em Jeremias 31. 33: “Mas
este é o pacto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei a minha lei
no seu interior, e a escreverei no seu coração”. Além disso, Jesus disse em João 4. 23: “Mas a
hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade,
porque o Pai procura a tais que assim O adorem”. Isso significa que o culto verdadeiro deve ser
prestado com um coração sincero e em espírito. Portanto, o culto levítico foi abolido porque deve
ser substituído pelo culto espiritual da mente e pelos frutos e sinais desse culto.
Então, segue-se que não há nenhum sacrifício ou culto no Novo Testamento que, por obra
realizada (ex opere operato), mereça perdão dos pecados para quem o realiza ou para outros.
Essa ideia entra em conflito com a afirmação de que “os verdadeiros adoradores adorarão o Pai
em espírito e em verdade”. Além disso, essa crença se assemelha à perspectiva dos fariseus de
que algum tipo de culto pode merecer perdão dos pecados apenas por meio de obras. Os judeus,
influenciados por essa crença, multiplicaram seus cultos na esperança de acumular méritos, graça
e outros benefícios por meio desses rituais, algo que os profetas rejeitaram veementemente. O
Salmo 50 repudia esse entendimento e enfatiza a importância da verdadeira invocação a Deus em
vez de sacrifícios vazios. Isaías 1. 11 indaga: “Para que Me serve a Mim a multidão de seus
sacrifícios?”. Jeremias 7. 22 também declara: “Porque Eu não falei com seus pais, nem lhes dei
ordens no dia em que os tirei da terra do Egito, acerca dos holocaustos ou sacrifícios”.
No entanto, é claro que a Lei contém prescrições sobre sacrifícios. No entanto, os profetas
condenam a crença no valor intrínseco dos sacrifícios e obras feitas meramente por sua
realização. Tais sacrifícios não são o que Deus requer. Na verdade, na Igreja, uma opinião
semelhante se formou em torno das missas, considerando-as sacrifícios que agradam a Deus por
meio de obras realizadas e que merecem perdão dos pecados para aqueles que participam. Isso
ocorre porque ensinaram que a Missa aplicaria o sacrifício de Cristo. No entanto, na realidade,
cada pessoa aplica o sacrifício de Cristo a si mesma por meio de sua fé pessoal, e isso ocorre
gratuitamente, ou seja, não é devido a obras alheias.
No entanto, um único ato pode ter múltiplos propósitos. No caso da Ceia do Senhor, a
utilizamos como Sacramento, pois é um testemunho que fortalece a fé. Além disso, essa mesma
fé, quando acompanhada de uma ação externa, se torna um tipo de sacrifício, pois Deus aprova e
aceita essa fé. Também nos ensinamentos do Novo Testamento, esses exercícios de fé são
considerados sacrifícios de louvor e culto. Portanto, essa obediência espiritual se torna um tipo
de sacrifício no qual oferecemos honra a Deus, conforme Ele requer e aprova.
Além disso, a fé necessariamente está ligada à gratidão por esse grande benefício concedido
a nós e à Igreja como um todo, o que justifica a denominação de “ευχαριστίας” ou ação de
graças. Além disso, o mesmo ato é uma forma de confissão, pois mostramos que estamos
comprometidos com o Evangelho e convidamos outros com o nosso exemplo. Todas essas ações
são consideradas sacrifícios de ação de graças. Portanto, os antigos chamaram esse ritual de
“Sacrifício”.
A afirmação de alguns de que a natureza de qualquer sacrifício é a de ser aplicado em
benefício de outros é falsa. Afinal, nossos próprios sofrimentos são sacrifícios, mas não são
aplicados em benefício de outros, como diz em 1 Coríntios 3. 8: “Cada um receberá a sua
recompensa de acordo com o seu próprio trabalho”. Além disso, como nossas obras são uma
forma de culto devido a nós mesmos, como Paulo diz em Romanos 8. 12: “Somos devedores”, e
como são insuficientes por si mesmas e precisam da fé, que busca que nossa fraqueza não nos
seja imputada, seria uma arrogância considerar essas obras não apenas como méritos para nós,
mas também para outros. Isso vai contra o que Cristo ensinou em Lucas 17. 10: “Assim também
vocês, quando fizerem tudo o que lhes foi ordenado, digam: Somos servos inúteis”. Além disso,
no Salmo 49. 14 e seguintes, o salmista chama a ação de graças e a invocação de sacrifício em
tempos de tribulação. Portanto, é uma falsa crença que a natureza de qualquer sacrifício seja
aplicá-lo em benefício de outros. Apenas o sacrifício propiciatório de Cristo foi aplicado em
benefício de outros. Nossos outros sacrifícios, que são ações de graças, beneficiam aqueles que
os realizam da mesma forma que qualquer boa obra que fazemos beneficia a nós mesmos e não
precisam ser aplicados para merecer o perdão dos pecados de outros, etc.
No entanto, a oração em nome de outros é diferente da natureza das obras. Não estamos
oferecendo a Deus alguma obra como pagamento pelos outros, apenas estamos buscando receber
de Deus. Deus prometeu dar a nós e aos outros por quem estamos orando. Essas distinções
podem ser facilmente entendidas. Na oração, não estamos opondo ou oferecendo alguma obra
nossa a Deus como pagamento pelos outros; simplesmente buscamos receber de Deus,
especialmente por meio do Mediador Cristo, como está escrito em João 14. 13: “Tudo o que
pedirem em Meu nome, Eu o farei”. Uma coisa é agir com fé diante de Deus sem se apoiar em
nossas próprias obras; outra coisa é opor a Deus o mérito de alguma obra específica,
especialmente em benefício de outros. Portanto, a aplicação de nossas obras em benefício de
outros, especialmente para a remissão dos pecados, não deve ser concedida, porque está escrito:
“O justo viverá pela sua fé”.
Além disso, é importante saber que, assim como alguns são punidos pelos pecados de outros,
da mesma forma, a justiça de alguns pode garantir muitos benefícios para outros. Há muitos
testemunhos e exemplos para ambas as opiniões nas Escrituras. Por exemplo, em Jeremias 49.
12, diz: “Eis que aqueles a quem não pertencia o julgamento beberam do cálice; você beberá
totalmente impune?”. Isso mostra como a punição por alguns pecados afeta outros. Em relação
aos benefícios públicos e privados, Isaías 33. 15-17 diz: “Aquele que anda em justiça e fala com
sinceridade, que recusa o lucro da opressão, que sacode das suas mãos todo suborno, que tapa os
ouvidos para não ouvir falar de derramamento de sangue e fecha os olhos para não contemplar o
mal, este habitará nas alturas; fortalezas rochosas serão o seu refúgio; o seu pão lhe será dado e
água não lhe faltará”. Aqui, entre outras recompensas, Deus promete um estado público mais
pacífico, ou seja, um benefício comum para muitos. Também existem exemplos disso nas
Escrituras, como quando o povo foi punido devido ao pecado de Davi, quando Deus decidiu
poupar Sodoma por causa de poucos justos, ou quando Deus abençoou a Síria por causa de
Naamã. Portanto, devemos entender que as punições e recompensas podem afetar muitas
pessoas, e isso deve nos motivar a agir corretamente.
No entanto, é importante lembrar duas coisas em relação a essas passagens: Primeiro, que
esses versículos não se aplicam à justificação, ou seja, as boas obras dos santos não são úteis
para justificar os injustos. Em vez disso, essas boas obras dos santos impetram muitos bens
comuns para os justos, porque somos membros de um só corpo. Em segundo lugar, não cabe a
nós aplicar nossos méritos aos outros, pois isso seria uma forma de confiar em nosso próprio
trabalho. Em vez disso, devemos permitir a Deus decidir que recompensas comuns ou
individuais Ele concederá a nós. A oração, por outro lado, é aplicada aos outros porque se baseia
não em nossa própria dignidade, mas na promessa gratuita de Cristo. A partir disso, podemos
facilmente julgar o que se deve pensar sobre a aplicação. No que diz respeito à justificação,
nenhuma aplicação é possível sem a fé pessoal. A fé, por sua vez, utiliza instrumentos como a
Palavra e os Sacramentos, que testemunham que o benefício de Cristo pertence a nós e não
depende da dignidade do trabalho humano de outrem. Com isso, concluo modestamente minha
explicação sobre a Missa.

SOBRE PENITÊNCIA
Quando alguns contaram a Jesus sobre um ato cruel de Pilatos, no qual ele havia matado
alguns galileus e misturado seu sangue com os sacrifícios deles, Jesus não acusou diretamente
Pilatos. Em vez disso, Ele lembrou seus ouvintes de que também eram culpados e os exortou ao
arrependimento, dizendo (Lucas 13. 3): “Se não se arrependerem, todos igualmente perecerão”.
Dessa forma, entendemos que todas as calamidades do mundo devem servir como sermões de
arrependimento para todos nós.
Permanecem nesta vida muitos pecados até mesmo nos santos, que devem ser reconhecidos
e lamentados por meio de contínua penitência. Além disso, há outros que cometeram
transgressões conscientemente e estão fora da graça de Deus. A menos que se convertam a Deus
nesta vida, eles enfrentarão punições eternas e se tornarão inimigos eternos de Deus. Portanto, a
mensagem principal de Deus na Igreja é: Arrependam-se e creiam no Evangelho, para que alguns
sejam libertos da perdição eterna.
Essa foi a primeira pregação no Paraíso, quando Deus repreendeu os primeiros pais após a
queda e acrescentou o perdão por meio da promessa do Salvador vindouro. Assim,
posteriormente, na Igreja, os Pais, Profetas, Cristo, Apóstolos e todos os ministros fiéis da
Palavra abraçaram esses dois tipos de ensinamento. Eles declararam a ira de Deus contra o
pecado, mostraram que a humanidade estava sujeita a inúmeras calamidades devido ao pecado e
anunciaram punições eternas para todos que não se convertessem a Deus. Em seguida, eles
apresentaram o perdão para aqueles que estavam quebrantados e abraçaram o Filho de Deus,
começando a obedecer à Palavra de Deus.
Portanto, a fim de nos motivarmos para o arrependimento, devemos aprender a doutrina
completa sobre este assunto e meditar sobre ela constantemente. Reunamos todas as evidências
da ira de Deus contra o pecado, as calamidades privadas e públicas de todos os tempos, a ameaça
de punições eternas e, por fim, a morte do Filho de Deus. Pois esta última é o testemunho mais
notável da ira de Deus contra o pecado. Não devemos considerá-la como um espetáculo inútil. É
necessário compreender que a ira de Deus contra o pecado é séria, imensa e indescritível, uma
vez que só poderia ser aplacada pelo sacrifício de Seu Filho em nosso favor. Se a humanidade
entendesse verdadeiramente este testemunho, todos ficariam aterrorizados instantaneamente. No
entanto, o mundo, por enquanto, despreza todas essas evidências em sua profana segurança.
No entanto, devemos nos livrar dessa segurança e sermos movidos por essas obras terríveis
de Deus. Devemos, mais uma vez, considerar a magnitude de Sua misericórdia, pois Deus não
desejava que toda a humanidade perecesse. Ele se revelou a nós para que O reconheçamos e
invoquemos. Ele deu Seu Filho por nós, para que Ele seja Emanuel, ou seja, Deus conosco,
nosso Auxiliador e Salvador. Ele concedeu a promessa de graça e vida eterna, e Ele dá o Espírito
Santo como nosso Guia para aqueles que O buscam.
Contemplando todas essas bênçãos, devemos reconhecer e lamentar nossa dureza de coração
e pedir a Deus que nos converta a Ele. Ele prometeu certamente dar o Espírito Santo àqueles que
O buscam e nos ordena a crer que somos aceitos por causa de Seu Filho, como veremos mais
adiante.
Mencionei isso anteriormente para nos estimular a refletir constantemente sobre este artigo.
Agora, em relação ao nome, não quero discutir sobre palavras. Quando usamos o termo
Penitência (Poenitentiam) na Igreja, nos referimos à conversão a Deus, e para fins de ensino,
distingo as partes dessa conversão ou os diferentes movimentos nela. Refiro-me às partes como
Contrição e Fé. É necessário que a nova obediência siga essas partes, e se alguém quiser chamá-
la de terceira parte, não vou discordar. Não brigaremos sobre palavras, mas devemos ser
vigilantes na defesa das coisas que são necessárias para a igreja e na refutação dos erros que
lançam trevas sobre a verdadeira doutrina.
No entanto, antes de explicar as partes, é necessário refutar brevemente dois erros de
fanáticos que inventaram a ideia de que os regenerados não podem pecar e que, mesmo que
pequem contra a consciência, ainda são justos. Esse delírio deve ser condenado e oposto por
meio de exemplos e passagens das Escrituras Proféticas e Apostólicas. Como Saul e Davi, que
agradaram a Deus, foram justos e receberam o Espírito Santo, mas depois caíram, de forma que
um deles foi totalmente perdido e o outro se converteu novamente a Deus. Há muitos ditos a esse
respeito. Mateus 12. 44, por exemplo, diz: “Quando o espírito imundo sai de um homem, vagueia
por lugares áridos em busca de descanso e não o encontra. Então ele diz: ‘Vou voltar para a casa
de onde saí’. Quando chega, a encontra desocupada, varrida e em ordem”.
Uma pregação semelhante a essa pode ser encontrada em 2 Pedro 2. 20: “De fato, se, depois
de escaparem das corrupções do mundo, por meio do conhecimento do Senhor e Salvador Jesus
Cristo, são novamente envolvidos nelas e delas vêm a ser dominados, estão em pior estado do
que no princípio”. E também em 1 Coríntios 10. 12: “Portanto, aquele que pensa que está de pé é
melhor ter cuidado para que não caia”. Além disso, em Apocalipse 2. 5: “Lembre-se, pois, de
onde caiu, arrependa-se e volte à prática das primeiras obras...”.
Essas e outras passagens sobre os regenerados testemunham que eles podem cair e que,
quando caem contra a consciência, não agradam a Deus, a menos que se convertam novamente.
Portanto, não devemos nos iludir a ponto de não governar nossa própria fraqueza e negligenciar
nossos lapsos. Em vez disso, devemos permanecer vigilantes e atentos, resistir à nossa fraqueza
com firmeza e cuidar com extrema cautela das armadilhas do Diabo, como Pedro nos adverte em
1 Pedro 5. 8: “Sejam sóbrios, vigiem. O diabo, seu adversário, anda em derredor, rugindo como
leão, buscando a quem possa tragar”.
Não devemos, de maneira alguma, fortalecer o desespero, que gera ódio contra Deus.
Devemos lembrar o exemplo dos Novacianos e dos “Puros”[119], que negaram a possibilidade de
os que caíram após o batismo alcançarem novamente o perdão dos pecados. É surpreendente
como esse erro grosseiro e venenoso se espalhou amplamente nos tempos antigos, mesmo
durante o florescimento da Igreja.
Epifânio narra em seu trabalho (Haer. 68) que em Alexandria, sob a liderança do Bispo
Pedro, que mais tarde foi morto pelo tirano Maximino, havia um homem chamado Melécio. Este
Melécio, apesar dos protestos de Pedro, propagou a ideia de que os lapsos não deveriam receber
perdão. Epifânio acrescenta que essa hipocrisia era tão surpreendente que uma grande parte da
população no Egito e na Síria seguiu Melécio, desconsiderando o julgamento de Pedro. É notável
que Epifânio relate que Pedro, ao defender a verdade, citou tanto as Escrituras quanto os
exemplos transmitidos pelos discípulos dos Apóstolos. Há ainda um exemplo na história de João,
o Apóstolo, conforme registrado por Eusébio no livro 3, página 60 (capítulo 23), sobre um jovem
que havia caído, mas que João resgatou de um bando de criminosos. Portanto, fica evidente que a
doutrina errônea dos Cátaros surgiu da ignorância sobre a justiça pela fé. Pois, depois de
fingirem que homens hipócritas eram justos por sua própria dignidade e livres de pecado, eles
afirmaram que, uma vez perdida essa pureza, não havia mais esperança de perdão.
Mas oponhamos testemunhos das Escrituras. Davi, Manassés e Pedro, depois de cometerem
pecados graves, obtiveram novamente o perdão de seus pecados. A Igreja dos Gálatas também
caiu em erro, mas foi chamada ao arrependimento por Paulo. Além disso, Paulo mesmo ordenou
que a igreja em Corinto aceitasse de volta um homem envolvido em um caso de incesto após o
arrependimento (2 Coríntios 2. 6-8).
Também podemos adicionar os ensinamentos das Escrituras. Ezequiel 33. 11 diz: “Assim
como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não desejo a morte do pecador, mas que o ímpio se converta
do seu caminho e viva”. Outros profetas também proclamam mensagens semelhantes, como
Isaías 1. O que torna a passagem de Ezequiel ainda mais memorável é o juramento adicionado –
“Assim como Eu vivo” – para que nossas consciências sejam ainda mais levantadas ao ouvir não
apenas a promessa, mas também confirmada por um juramento. Portanto, gravemos essa
consolação em nossas mentes e pensem na imensa força do amor divino por nós, o quanto Ele
anseia pela nossa salvação, como é verdadeiro o que é dito no Livro de Tobias 3. 22: “Não Te
deleitas, ó Deus, na nossa perdição”. E, com esses pensamentos, nos estimulemos ao
arrependimento e à verdadeira invocação.
Não vale a pena argumentar que o benefício de converter os que caem no Antigo Testamento
é diferente do que acontece no Novo. Pois o discurso de Ezequiel se aplica à igreja de todos os
tempos, e a igreja é a mesma em todos os tempos, assim como o evangelho é o mesmo.
Mas busquemos evidências no Novo Testamento. Jesus diz em Mateus 18. 15: “Se seu irmão
pecar contra você, vai, e repreende-o entre você e ele apenas; se o ouvir, ganhou o seu irmão”.
Quando Ele diz “ganhou o seu irmão”, Ele claramente afirma que está falando daqueles para os
quais essa correção é benéfica. E ao falar de “irmãos”, ou seja, daqueles que caem após a
justificação, Ele também testemunha que deseja expulsá-los da igreja apenas quando não ouvem;
portanto, Ele está falando daqueles que antes estavam na igreja. E então, quando Pedro pergunta
em Mateus 18. 21: “Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe perdoarei?
Até sete?”. Jesus responde: “Não lhe digo que até sete, mas até setenta vezes sete”. Portanto,
aqueles que caem após a justificação podem obter perdão. Pois quando Ele ordena à igreja que
perdoe, Ele deseja perdoar também àquele que pede e crê. Portanto, Ele disse anteriormente:
“Ganhou o seu irmão”.
Eu sei que alguns debatem se este trecho trata da reconciliação fraternal ou do ministério
público que anuncia o perdão divino, mas o argumento contra os Novacianos é válido, mesmo
que o texto seja apenas aplicado à reconciliação fraternal. Pois Ele diz: “Ganhou o seu irmão”
(Mateus 18. 15) e “Tudo o que ligarem na terra será ligado nos céus” (Mateus 18. 18). Além
disso, essas palavras mesmas testemunham que este trecho trata do ministério. Pois Cristo quis
estabelecer a disciplina da igreja e a correção daqueles que caem, e eles dizem que este costume
foi instituído na antiga sinagoga. Cristo também quis distinguir a correção da igreja da política;
Ele deseja que a admoestação preceda, para que primeiro se considere a salvação da pessoa. A
política é mais severa e apressada para impor punição, sem primeiro deliberar sobre a salvação
das pessoas. Além disso, Cristo estabelece o modo de punição, Ele quer que o obstinado seja
expulso da igreja, e Ele não acrescenta punições políticas, mas as deixa para os magistrados.
Mas voltemos às evidências. Em Gálatas 6. 1, está escrito: “Irmãos, se alguém for
surpreendido em alguma falta, vocês, que são espirituais, corrijam-no com espírito de mansidão”.
Aqui, Paulo instrui a chamar de volta aqueles que caíram ao arrependimento. Apocalipse 2. 5
diz: “Lembre-se, pois, de onde caiu, arrependa-se e volte à prática das primeiras obras”. Lucas
15. 7 diz: “Digo a vocês que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais
do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento”. E neste discurso,
Cristo fala sobre o arrependimento do filho perdido, ou seja, daqueles que anteriormente eram
piedosos.
Os Novacianos levantam duas passagens da Epístola aos Hebreus como objeção. Hebreus 6
(versículo 4) diz: “É impossível que aqueles que foram uma vez iluminados, provaram o dom
celestial, tornaram-se participantes do Espírito Santo”. Embora este trecho possa parecer bastante
difícil, quando consideramos conscientemente os testemunhos verdadeiros mencionados
anteriormente, não podemos ser perturbados por este trecho. Mas uma vez que se torna claro a
partir dos testemunhos anteriores que a indulgência não deve ser negada aos que caíram,
podemos facilmente julgar que a expressão τό φητόν[120] não pode ser retida aqui, mas requer
uma interpretação mais apropriada. Alguns suavizam essa passagem de outra maneira, como é
comum em textos obscuros e ambíguos, não soa tão inadequadamente em grego. Pois diz: “Não
é possível renovar aqueles que crucificam Cristo e o ridicularizam”. Eu entendo isso da maneira
mais simples possível: aqueles que não mais ouvem o Evangelho, mas o desprezam, e não
buscam manter os princípios da piedade mencionados, ou seja, a doutrina do Batismo e da
penitência, não podem ser renovados. Isso, ao que me parece, é a interpretação mais apropriada
dessa passagem e não tem desvantagens, desde que eles não ouçam o Evangelho, mas
crucifiquem Cristo e o ridicularizem.
É necessário admitir que existe algum pecado irremissível, porque Cristo o afirma
expressamente. Para isso, podemos usar também este trecho da Epístola aos Hebreus. No
entanto, alguns argumentam que a remissão se torna incerta se houver algum pecado
irremissível. Sempre que alguém discute esse assunto, a mente fica angustiada, pensando talvez
ter cometido tal pecado, e essa questão tem atormentado muitos. No entanto, para os piedosos, a
explicação é clara e simples.
Há de fato um pecado irremissível, mas o que ele é, só pode ser julgado posteriormente, ou
seja, deve ser atribuído àqueles que, por fim, persistem em sua rebeldia contra Deus, seja em um
desprezo epicurista, em um ódio farisaico, ou em desespero, como no caso de Nero, Faraó, Saul,
Judas e outros semelhantes. Não há outra maneira de julgar um pecado irremissível senão dessa
forma, porque em nossos corações, antes que esse julgamento seja revelado, devemos sempre
reter três coisas: a Promessa da graça, o Mandamento de crer no Filho e o Mandamento de
entregar à Igreja (Mateus 18. 18): “Tudo o que ligarem na terra será ligado nos céus”. A
Promessa é lindamente ilustrada por Paulo com as palavras: “Onde abundou o pecado,
superabundou a graça” (Romanos 5. 20). É uma blasfêmia supor que Cristo está abaixo do
pecado e diminuir o Seu mérito. Além disso, o mandamento de crer em Cristo é eterno, imutável
e muito superior à Lei. Estas são verdades universais, promessa e mandamento, como está escrito
em Mateus 11. 28: “Venham a Mim, todos os que estão cansados e oprimidos, e Eu os aliviarei”.
Cada um deve se incluir nesta universalidade.
Após a mente estar devidamente preparada e entender que o mandamento de Deus é crer que
todos os nossos pecados são perdoados, deve-se então aprender que não é possível julgar um
pecado irremissível, a menos que seja feito posteriormente, ou seja, após o julgamento de Deus
ter sido declarado. Faraó e Judas cometeram tal pecado, pois a realidade mostra que eles não se
voltaram para Deus. Agostinho afirmou de forma bastante adequada que a blasfêmia é a
impenitência final ou o desespero, porque esses pecados estão em extremo conflito com a graça.
Pois os outros pecados são perdoados quando buscamos a graça, mas o desprezo epicurista ou o
desespero rejeita a graça. Portanto, a declaração de Cristo é interpretada da seguinte forma
(Mateus 12. 32): “Aquele que proferir uma palavra contra o Espírito Santo, isto é, aquele que,
teimosamente até o fim, rejeitar a palavra pregada e confirmada pelos testemunhos do Espírito,
terá um pecado irremissível”. Essa sentença de Agostinho é bastante apropriada.
Pois nem todo desvio após o reconhecimento da verdade deve ser julgado como um pecado
irremissível, como os Novacianos afirmaram. Pois acima mencionamos exemplos e testemunhos
que ensinam que tais desvios podem ser perdoados, e nem toda perseguição ao Evangelho deve
ser considerada um pecado irremissível, pois Manassés, Nabucodonosor, Paulo, Justino,
Agostinho e, finalmente, inúmeros perseguidores foram curados, como Pedro também diz (Atos
4. 10): “Aquele a quem crucificaram”. No entanto, há alguns indivíduos com um furor singular,
que reconhecem a verdade, mas, quando advertidos e convencidos, condenam verdadeiras
doutrinas contra a sua consciência, embora sem fé, e exercem ou confirmam sua violência. Sobre
tais pessoas, é dito em Romanos 11. 8: “Os demais foram endurecidos, deu-lhes um espírito
endurecido, olhos para que não vejam e ouvidos para que não ouçam”. Com essas palavras e
outras semelhantes, aqueles que perseveram na perseguição do Evangelho são descritos, que são
punidos com cegueira, depois de terem sido repetidamente avisados e não voltarem para Deus.
Tal foi a fúria dos anabatistas em Münster.
Portanto, ao sermos advertidos por tais palavras e exemplos, devemos tomar cuidado para
não defender teimosamente erros. Cair e errar são comuns a todos os seres humanos, mas a
teimosia que gera argumentos sofisticados intermináveis é um pecado maior e mais complexo,
do qual não muitos conseguem se libertar. Por isso, Paulo diz em Tito 3. 10: “Rejeite o homem
herege, depois de uma e outra admoestação, sabendo que esse tal está pervertido, e peca, estando
já em si mesmo condenado”, ou seja, sua teimosia o torna presa das armadilhas do Diabo.
No entanto, devemos sempre ter em mente esta doutrina: devemos obedecer ao mandamento
e à promessa do Evangelho. O mandamento que nos ordena arrepender-nos, ouvir o Filho e crer
que somos aceitos por causa do Filho de Deus é eterno e imutável. Devemos também lembrar as
palavras de Paulo em Romanos 5. 20: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”.
De acordo com esses mandamentos, devemos julgar a nós mesmos e obedecê-los, pois
quando o fazemos, é certo que não temos um pecado irremissível.
Também pode ser citada outra passagem da Epístola aos Hebreus (10. 26): “Porque, se
pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta
mais sacrifício pelos pecados”. Se interpretarmos isso corretamente, este trecho não nega a
possibilidade de os que caíram se levantarem, mas faz uma comparação imediata entre o
benefício de Cristo e as penalidades. Esses dois extremos são imediatos: aquele que retém o
benefício de Cristo é salvo, aquele que não o retém cai na perdição. Esta passagem não nega que
os que caíram possam retornar ao benefício de Cristo, mas exclui outros sacrifícios e novos
rituais. Na Lei, havia numerosas expiações para impurezas, e os fariseus ensinavam que essas
expiações mereciam a remissão dos pecados. Posteriormente, muitos na Igreja inventaram
penitências e missas, não apenas inventaram práticas religiosas falsas, mas também alimentaram
a crença na expiação por meio desses sacrifícios, levando à complacência e indulgência. A
Epístola aos Hebreus critica severamente essas noções farisaicas. Ela certamente deseja que o
benefício de Cristo seja retido, como posteriormente afirma: “Ele não deseja que o sangue de
Cristo seja profanado, nem que o Espírito da graça seja ultrajado”. Esses severos avisos nos
advertem a não perder o benefício de Cristo, mas não proíbem, ao mesmo tempo, que os que
caíram retornem a Cristo. Esta é uma sentença simples e genuína.

SOBRE A CONTRIÇÃO.
Embora nenhuma criatura possa realmente compreender plenamente a magnitude da ira de
Deus contra o pecado, e nem mesmo suportar o sentido da ira de Deus, como é dito em
Deuteronômio 4. 24: “Deus é um fogo consumidor”, ainda assim Deus deseja que Sua ira contra
o pecado seja de alguma forma reconhecida em Sua Igreja. Ele não quer que o pecado seja
desprezado, Ele não quer corações de ferro e insensíveis, como mencionado em Efésios 4, a
respeito dos ímpios. Portanto, sempre na Igreja, o início das pregações foi: “Arrependam-se”.
Assim começou Cristo e, antes dele, João Batista. Assim Paulo diz em Romanos 1. 18: “A ira de
Deus se revela do céu contra toda impiedade”. Assim começaram os profetas, como em Isaías 1.
4: “Ai da nação pecadora”. Na verdade, no Paraíso, após a queda, a primeira pregação foi a
repreensão do pecado e a declaração da ira de Deus.
Todas as calamidades que afetam a humanidade, como a morte, doenças, escassez, fome,
assassinatos, guerras, destruições e desastres múltiplos, são verdadeiramente sermões sobre a ira
de Deus contra o pecado, como está escrito no Salmo 38. 12: “Por causa da iniquidade, Tu
castigas os homens”.
Por fim, o testemunho supremo da ira de Deus é que o Filho teve que se tornar uma vítima.
Certamente, Deus deseja que de alguma forma reconheçamos essa ira e que sejamos movidos por
Seu julgamento e indignação. Portanto, é necessário que haja em nós um certo estado de
contrição. Chamamos isso de “Contrição”, como a Igreja costuma falar, o temor da consciência
que reconhece a ira de Deus contra nossos pecados e que lamenta por causa do pecado. Estas
palavras nos ordenam a contrição: “Arrependam-se”. E em 2 Coríntios 7. 9: “Foram contristados
para arrependimento”. Em 1 Coríntios 11. 31: “Se julgássemos a nós mesmos, não seríamos
julgados pelo Senhor”, ou seja, se realmente fôssemos afligidos pela dor ao reconhecer a ira de
Deus. Em Joel 2. 13: “Rasguem os seus corações, e não as suas vestes”. Jeremias 31. 19: “Depois
de terem dado a conhecer isso, fui ferido em meu coração; lamentei-me e envergonhei-me”.
Naum 1. 6: “Quem subsistirá diante do ardor da Sua ira? E quem se manterá de pé na ira do Seu
furor? A Sua indignação se derrama como fogo, e as rochas são por Ele derrubadas”. Da mesma
forma, Isaías 66. 2: “A quem olharei, senão para o humilde e contrito de espírito, que treme
diante da Minha palavra?”. Isaías 1. 16: “Deixem de fazer o mal”. Salmo 37. 5: “As minhas
iniquidades sobrepujaram a minha cabeça”. Além disso, “O temor do Senhor é o princípio da
sabedoria”, e em muitos Salmos, o temor e a fé estão unidos (Salmo 146. 11): “O Senhor se
agrada dos que O temem e esperam na Sua misericórdia”. Muitas declarações de Paulo também
se relacionam a isso (Romanos 6. 6): “O nosso velho homem foi com Ele crucificado, para que o
corpo do pecado seja destruído”.
Adicionemos exemplos para ilustrar isso. Adão e Eva, repreendidos por Deus, ficaram
terrivelmente perturbados. A pecadora mencionada em Lucas 7 também lamentou
profundamente seu pecado. E em Lucas 22, vemos Pedro derramar lágrimas amargas. Esses e
outros testemunhos semelhantes mostram que uma certa contrição é necessária. Essa contrição
deve crescer para que não apenas reconheçamos pecados externos, mas também reconheçamos
impurezas internas, como a dúvida em relação a Deus, a segurança excessiva, o orgulho, o
desprezo pelos outros, a malícia, a ganância, o fogo do amor maligno e outros afetos viciosos.
A verdadeira penitência não está presente nos hipócritas, que não sentem nenhum pesar ou
temor. Descrevendo-os, Jeremias (6. 15) diz que eles são incapazes de se envergonhar. E Paulo,
em sua carta aos Efésios, menciona aqueles que estão destituídos de tristeza.
Para nos livrarmos dessa segurança prejudicial, devemos frequentemente contemplar e
ponderar sobre a Contrição, a Ira de Deus, as penas presentes e eternas, e até mesmo considerar
os exemplos das punições, nossos próprios infortúnios e os dos outros. Além disso, devemos
meditar sobre a morte do Filho de Deus, para que possamos reconhecer nossa miséria e o furor
de Deus, e sermos tomados pelo temor. O papel desempenhado pelo ministério na Igreja,
instituído por Cristo, é uma parte necessária disso, que inclui repreender os pecados, como Paulo
claramente afirma em Romanos 1. 18, quando diz: “A ira de Deus se revela do céu contra toda
impiedade”. O uso da voz da Lei moral, como é chamada, é apropriado para esta parte do
ministério. Essa lei é a expressão eterna e imutável do julgamento de Deus sobre o pecado.
Embora Deus aceite o homem que busca refúgio em Cristo, Ele não aprova o pecado. Portanto,
Paulo afirma em Romanos 3. 20: “Pela lei vem o pleno conhecimento do pecado”. Essa
mensagem ressoa continuamente na Igreja desde o início após a queda, como podemos ver em
Gênesis 4 e em diante.
No entanto, é completamente falso, absurdo e prejudicial imaginar que a Lei não existe ou
que não deve ser pregada. Ela foi proclamada pelos patriarcas, revelada de forma terrível no
Monte Sinai e reiterada constantemente pelos profetas, por Cristo e pelos apóstolos. Tudo isso
foi feito para que saibamos que a Lei é a expressão eterna e imutável do julgamento de Deus
sobre o pecado. Devemos entender que todos os seres humanos estão condenados por essa
sentença divina devido à sua natureza corrompida e, assim, estão sob a Lei. Como Paulo afirma
em Romanos 3. 9: “Estamos todos debaixo do pecado”, ou seja, condenados e culpados perante
Deus. Assim como a mente divina permanece constante, a Lei também deve permanecer
constante. A consciência da Lei permanece em nossas mentes e é explicada pela voz de Deus,
dos Pais, dos Profetas, de Cristo e dos Apóstolos. Portanto, Cristo enfatiza a Lei repetidas vezes,
como em Mateus 5, e acrescenta uma interpretação mais profunda, para que saibamos que a Lei
nos acusa não apenas por pecados externos, mas também por pecados internos, como cegueira
espiritual, ódio injusto, paixões lascivas, e assim por diante. Deus deseja que, na Igreja, a voz da
Lei ressoe continuamente, pregando sobre a obediência do coração.
Devemos também fazer uso da voz do Evangelho, que acusa o mundo pelo desprezo da ira
da misericórdia, que é manifestada na oferta do Filho. Portanto, Jesus diz em João 16. 8: “E,
quando Ele (o Espírito Santo) vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do juízo”. Ora,
devemos considerar o quão abrangente é essa pregação que acusa e condena os pecados. Ela
abrange toda a raça humana; todos nós estamos cheios de dúvidas, segurança falsa, negligência
ou erro na invocação, contaminados com desejos corruptos, frequentemente não levamos a sério
a ira de Deus, abusamos de Suas bênçãos, todos somos ingratos ao Filho de Deus. Portanto, não
devemos nos surpreender quando vemos o mundo inteiro sobrecarregado com punições fatídicas,
que são sinais da ira de Deus. Pelo contrário, devemos considerar, como Paulo diz, que todos
estão sob o pecado e que o mundo inteiro é culpado diante de Deus. Cada um de nós deve acusar
e lamentar seus próprios pecados.
Deveríamos pensar muito e frequentemente sobre todas essas coisas, porque o que é dito, “O
Espírito Santo convencerá o mundo”, é realizado através da palavra que declara a ira de Deus, e
na contemplação dessa palavra, o Espírito Santo é eficaz. Como 2 Timóteo 2. 25 afirma
claramente, Paulo ordena que ensinemos e instruamos aqueles que se opõem, na esperança de
que Deus possa conceder-lhes o arrependimento. E em Jeremias 31. 19, lemos: “Depois que me
mostrou, fiquei envergonhado e confuso”. 1 Samuel 2. 6 diz: “O Senhor dá a morte e a vida”.
Tudo isso acontece por meio da palavra de Deus, como Hebreus 4. 12 diz: “Porque a palavra de
Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes”. Portanto, para
aqueles que negligenciam e desprezam a palavra de Deus, o Espírito Santo não é eficaz, mas a
obstinação deles é confirmada. Como é dito em Gênesis 6. 3: “O Meu Espírito não contenderá
com o homem para sempre”, como se dissesse: depois que eles começam a desprezar a palavra, o
julgamento do espírito cessa. O reconhecimento do pecado, a invocação, etc.

SOBRE A FÉ.
Mas em relação à Contrição, ou seja, a esses temores, é necessário buscar consolação, ou
seja, a Fé, que nos assegura que os pecados são perdoados por causa do Filho de Deus e, pela
consciência dessa grande misericórdia, nos ergue novamente, para que não sejamos abatidos pela
desesperança e caiamos na perdição eterna. Pois, se a Fé não fosse acrescentada, a Contrição se
tornaria morte eterna. Portanto, a outra parte é a Fé, que não é apenas o conhecimento da história
ou da lei, mas a confiança pela qual cada um crê verdadeiramente que seus pecados são
perdoados por Deus gratuitamente, ou seja, não por nossa dignidade ou méritos.
Sobre essa parte, ou seja, a Fé que recebe o perdão dos pecados, os livros dos monges são
mudos. Mas nós devemos reconhecer que esta é a voz principal e distintiva do Evangelho e que
esta doutrina da Fé é absolutamente necessária para a Igreja e deve ser incluída sempre que se
fala de penitência.
Muitos aqui debatem sobre a diferença entre a contrição de Pedro e Judas, de Davi e Saul.
Também surgem discussões espinhosas sobre o amor à Justiça e o Temor do castigo. No entanto,
essa diferença é clara e evidente. Na contrição de Judas, a fé não foi adicionada, portanto,
subjugado pelo terror, ele caiu na perdição eterna. Por outro lado, na contrição de Pedro, a fé foi
acrescentada, e por isso ele se reergueu de suas imensas dores. E quando somos elevados pela fé,
surge o reconhecimento da bondade de Deus, e não somos apenas atormentados pelo medo do
castigo, mas também por um pesar mais puro por termos ofendido a Deus, a quem devemos
obediência e gratidão. No entanto, não é necessário separar esses sentimentos de forma
minuciosa. Deus deseja que temamos Sua ira e que a vejamos nas punições. A fé deve ser
acrescentada para que não fujamos de Deus, mas retornemos a Ele, suplicando que sejamos
perdoados e estabelecendo que a vontade eterna e imutável de Deus é perdoar aqueles que,
aterrorizados, creem que lhes é concedido perdão por meio do Mediador. Isso nos é ordenado
crer e estabelecer firmemente.
Essa fé estabelece uma distinção clara entre o Temor servil e o Temor filial. O Temor servil
é o pavor sem fé, que, na realidade, foge de Deus. Por outro lado, o Temor filial é o pavor ao
qual se junta a fé. A fé, no meio dos medos, eleva e consola a mente e se aproxima de Deus,
buscando e obtendo o perdão. Essas descrições são claras e podem ser entendidas em nossos
exercícios espirituais. A Contrição sem fé é um terrível pavor e dor de uma mente que foge de
Deus, como no caso de Saul e Judas; portanto, não é uma boa obra. Mas a Contrição com fé é o
pavor e a dor de uma mente que não foge de Deus, mas reconhece a justa ira de Deus, está
verdadeiramente arrependida por ter negligenciado ou desprezado a Deus e, no entanto, se
aproxima de Deus buscando perdão. Esse tipo de dor se torna uma boa obra e um sacrifício,
como o Salmo nos diz (Salmos 50. 19): “O sacrifício aceitável a Deus é o espírito quebrantado;
ao coração quebrantado e contrito, ó Deus, Tu não desprezarás”.
No entanto, é necessário rejeitar e abandonar a opinião que afirma que os seres humanos
podem merecer a remissão dos pecados por meio da contrição, ou que a remissão é concedida
devido à dignidade da contrição. Devemos manter a palavra do Evangelho, que proclama que os
pecados são perdoados gratuitamente por causa do Filho de Deus. Essa exclusividade deve ser
mantida para que a devida honra seja atribuída a Cristo e para que as mentes aterrorizadas
tenham uma consolação certa. Pois seriam levadas à desesperança se cressem que não tinham
remissão a menos que sua dor fosse digna e suficiente. Essa simples declaração elimina muitos
labirintos de disputas.
Portanto, estabelecemos que é necessário haver algum tipo de contrição, verdadeiros temores
e dores, mas ainda assim a remissão dos pecados não é concedida devido à nossa contrição ou
qualquer dignidade nossa, mas somente por causa do Filho de Deus, que, por um plano
maravilhoso, se tornou uma vítima, um Mediador e um Intercessor em nosso favor.
Mas para que possamos manter em mente a doutrina da Contrição, vamos apresentar esses
tópicos diante de nós:

A Lei de Deus; A Ira de Deus; Punições eternas; Morte; Calamidades


presentes, tanto públicas quanto privadas; Perda de dons; Carências;
Doenças; Desonra; Infortúnios de conselhos; Infortúnios de estudos; Erros e
loucuras; Infortúnios dos filhos; A tirania do Diabo levando a mais pecados e
maiores misérias; Punições interiores, ou seja, que os pecados são punidos
com pecados, com cegueira e loucuras subsequentes; Escândalos;
Discordâncias públicas; Guerras.

E inversamente, consideremos os benefícios de Deus, a fim de acusarmos nossa ingratidão:

A Criação; A Revelação de Deus; O Envio do Filho; A Dádiva da Palavra e


do Evangelho; A Dádiva do Espírito Santo; A Promessa da Vida Eterna; O
Sustento e a proteção do corpo e da alma; A Expulsão do Diabo; A
Manifestação da literatura e da verdadeira doutrina; A Providência divina
nos costumes e nos conselhos; A Felicidade dos conselhos; A Felicidade dos
estudos e do julgamento; A Felicidade dos filhos; Bons exemplos e a
evitação do escândalo; Boa reputação; A concórdia pública; Paz e um estado
político moderado; A Constituição salvífica da Igreja.

Pensemos nos exemplos de Saul e Davi, que desfrutaram dos benefícios que mencionei antes
de sua queda e, após a queda, sofreram as pesadas punições que enumerei. Saul, de fato, pereceu
sob as penas eternas; Davi, por outro lado, voltou-se novamente para Deus, mas ainda assim
sentiu o peso das punições corporais e dos escândalos por toda a vida. E consideremos quão
grande ruína um único pecado pode causar, observando o exemplo de Adão e Eva, assim como o
adultério de Davi e a loucura de Salomão, cujo culto idólatra levou à divisão posterior do reino
de Israel; e essa divisão resultou em inúmeras calamidades, dissoluções religiosas e guerras civis.
Refletindo sobre isso, não devemos considerar nossas quedas como pequenas e triviais ou
pertinentes apenas a alguns, mas devemos ser mais diligentes em governar nossos
comportamentos.
É mais útil ponderar sobre essas questões do que debater sobre a trivialidade de uma punição
infinita para uma ação finita. Devemos evitar essas questões frívolas e reconhecer que no ato de
cometer um delito, estamos desconsiderando um bem infinito. Essa desconsideração e violação
de um bem infinito merece uma punição infinita.
Após nossa discussão sobre contrição, é importante agora abordar a outra parte desse
assunto. O ministério na Igreja não se limita apenas a repreender os pecados; ele também
proclama o perdão dos pecados para aqueles que estão cheios de apreensão e creem em Cristo.
Portanto, é crucial que as mentes preocupadas saibam com certeza que podem receber o perdão
dos pecados gratuitamente, por meio da fé em Cristo. Não devemos encarar a fé simplesmente
como o conhecimento histórico; precisamos considerar o artigo do Credo que diz: “Creio no
perdão dos pecados”. Não é suficiente crer genericamente que Deus perdoa alguns, pois até
mesmo o Diabo crê nisso. Ele não ignora a existência da reconciliação na Igreja, mas cada um de
nós deve pessoalmente reconhecer que é perdoado e acolhido por Deus. Essa fé específica, por
assim dizer, permite que cada um aplique a si mesmo os benefícios de Cristo.
Embora possa parecer estranho, aos olhos humanos, afirmar que somos aceitáveis a Deus e
que O agradamos, devemos lembrar que Deus se revelou para nos mostrar Sua vontade e
prometeu o perdão. Ele enviou Seu Filho e espalhou o Evangelho pelo mundo para revelar essa
verdade que nenhuma criatura poderia compreender por si só. A Reconciliação Divina é um bem
de valor inestimável, e é por isso que concordamos com dificuldade.
Portanto, devemos nos encorajar a crer no Evangelho e lembrar que, nesta vida, devemos nos
sustentar pela Palavra de Deus, assim como um feto está envolto no ventre materno ou na
placenta. Não devemos romper essa “envoltura” que é o Evangelho, pois ele declara a vontade de
Deus. Quando chegarmos à vida e à luz eterna, compreenderemos diante de nós a vontade de
Deus e Seu plano maravilhoso.

Testemunhos.
Atos 10 (versículo 43): “A todos os profetas dão testemunho de que, por meio do Seu nome,
todo aquele que n’Ele crê recebe remissão dos pecados”. Esta é uma declaração clara e evidente
na qual Pedro afirma que está expondo a essência das Escrituras Proféticas. Ele contrapõe essa
declaração à crença popular que o povo tinha sobre o Messias e afirma que Ele foi enviado pelo
Pai para ser a oferta pelo pecado e que, por meio d’Ele, o perdão dos pecados é concedido
àqueles que creem n’Ele, ou seja, àqueles que abraçam o Messias de tal forma que creem que são
aceitos por causa d’Ele. E porque ele alega que este dito é apoiado por todos os profetas,
devemos entender que ele está citando o verdadeiro consenso da Igreja Católica aqui.
Romanos 5 (versículo 1): “Justificados pela fé, temos paz com Deus”, ou seja, temos a
certeza de que Deus está propício a nós, fomos reconciliados com Ele e libertados da ira e dos
terrores eternos.
No entanto, essas afirmações são contestadas pelos adversários. Eles concordam que a fé, ou
seja, a profissão da história, é necessária, como é o caso dos demônios, mas negam que os
pecados sejam perdoados gratuitamente e insistem que devemos duvidar se eles foram
perdoados. Esses erros já foram refutados anteriormente no contexto da justificação, então aqui
vou apenas relembrar brevemente o leitor. É útil conhecer esses exercícios de fé em nossa oração
diária. Ninguém duvida que Deus seja misericordioso, e as pessoas não questionam se Deus está
disposto a perdoar a alguém, mas elas pensam que o perdão é merecido, não para aqueles que são
indignos, e todos nós reconhecemos nossa múltipla indignidade em nós mesmos. Além disso,
outra questão que perturba as mentes diz respeito à especificidade. Portanto, é necessário ter
diante de nós as testemunhas que nos confirmam, para que saibamos estas duas coisas, a saber,
que a promessa é universal e gratuita. Há testemunhos sobre ambos em Romanos 3. Sobre a
promessa universal, diz (versículo 22): “A justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e
sobre todos os que creem”. Ele acrescenta (versículo 24 em diante): “Sendo justificados
gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs como
propiciação, pela fé no seu sangue”. Portanto, devemos manter essa exclusividade e opor-nos à
tentação constante sobre a dignidade. Pois a voz da Lei sempre nos impede de crer que somos
aceitos porque somos indignos. Contra essa mesma voz, devemos saber que o Evangelho foi
revelado do seio do eterno Pai, o que testifica que somos aceitos por causa do Filho Mediador,
não por nossa própria dignidade.
Isso deve ser lembrado diariamente em nossas orações, e devemos entender que isso não
exclui a contrição e outras virtudes, para que estejam presentes. Certamente, a penitência é
necessária, mas a causa do perdão dos pecados não deve ser atribuída à nossa dignidade, mas a
Cristo. Portanto, devemos estabelecer que o perdão dos pecados não ocorre devido à dignidade
de nossa contrição ou de nossas obras, mas apenas pela confiança na graça de Cristo, como é
afirmado em Efésios 2 (versículo 8): “Porque pela graça vocês são salvos, por meio da fé; e isto
não vem de vós, é dom de Deus”.
Romanos 4 (versículo 10) trata do argumento principal derivado das causas e do poder da
promessa: “Portanto, ela é pela fé, para que seja segundo a graça, a fim de que a promessa seja
firme”. Isso significa que, se a reconciliação dependesse da dignidade de nossa contrição ou de
nossas obras, uma vez que nunca satisfazemos plenamente à Lei, ela se tornaria incerta, e a
promessa de reconciliação seria anulada. Paulo aborda esse silogismo da seguinte maneira:
1. A promessa de reconciliação deve ser certa.
2. Uma promessa condicionada pela Lei se torna incerta.
3. Portanto, a promessa de reconciliação não depende da condição da Lei.

Paulo comprova a menor premissa ao dizer (Romanos 4. 15): “Porque a lei opera a ira.
Porque onde não há lei, também não há transgressão”. E observe a essência da discussão de
Paulo aqui. Ele argumenta com veemência que Cristo é a vítima pelos nossos pecados, a fim de
estabelecer firmemente a exclusão de que nossas obras não são mérito para o perdão dos
pecados. Outros testemunhos podem ser extraídos do contexto da Justificação, onde também foi
mencionada a palavra “fé”, que pode ser compreendida de forma mais clara na luta interior
quando a mente piedosa experimenta a aceitação da misericórdia prometida por Cristo e entende
que essa misericórdia deve ser apreendida pela fé, ou seja, confiança. Nesse contexto, a fé não
apenas considera a história, mas contempla também este artigo específico: “Eu creio na remissão
dos pecados”, e abraça a promessa, como é claramente declarado em Romanos 4, versículo 10.
Além disso, a fé que concorda com a promessa é uma fé na misericórdia.
Por último, nestes testemunhos, comparemos as palavras dos Apóstolos e dos Profetas para
vermos o consenso contínuo de toda a Igreja desde o início. Portanto, Paulo cita alguns salmos e
muitas passagens que apoiam essa sentença, ocorrendo em muitos lugares. Por exemplo, em
Salmos 31, versículo 5: “Eu disse, confessarei contra mim a minha injustiça ao Senhor; e Tu
perdoaste a maldade do meu pecado”. Em Salmos 142, versículo 2: “Nenhum vivente será
justificado diante de Ti”. E em Salmos 51, versículo 6: “Eis que Tu amas a verdade no íntimo, e
no oculto me fazes conhecer a sabedoria”. Essas sentenças e outras semelhantes testemunham
que, ao nos aproximarmos de Deus, não trazemos nossa própria justiça, nem podemos alegar
nossos méritos no julgamento e na ira de Deus. Pelo contrário, devemos recorrer ao Mediador
Cristo e reconhecer que realmente somos perdoados gratuitamente por causa d’Ele, e somos
recebidos na graça.
No entanto, muitos escritores omitiram esta parte sobre a Fé porque parece absurdo aos
olhos da razão humana afirmar que Deus está propício a você. No entanto, aqui devemos nos
afastar do julgamento da nossa razão e buscar a vontade de Deus em Seu próprio Evangelho.
Quando lemos que a remissão foi anunciada a Davi por um mandamento especial de Deus, nos
maravilhamos com esse benefício singular e cada um de nós pensa que creria voluntariamente, se
uma voz semelhante viesse do céu para nós. No entanto, devemos saber que esta voz já nos foi
anunciada. A remissão é concedida a você com a mesma certeza, se você crê no Evangelho,
como foi concedida a Davi, e é exigido de você que creia na voz do Evangelho que anuncia a
remissão, assim como foi exigido de Davi que cresse na voz de Natã.
Até o momento, abordei os conceitos de Contrição e Fé. No entanto, é igualmente
importante iniciar imediatamente uma nova fase de obediência, como é mencionado em
Romanos 6. 12: “Que o pecado não reine em seu corpo mortal”. O versículo em Romanos 8. 1
diz: “Agora, pois, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus”. E em Lucas 3. 8,
João Batista exorta as pessoas a “Produzir, pois, frutos dignos de arrependimento”, ou seja,
manifestar uma mudança de comportamento adequada ao arrependimento. Essa nova etapa de
obediência é frequentemente denominada “Bom Propósito” e envolve verdadeiramente e sem
falsidade estabelecer o desejo de obedecer a Deus, mantendo a retidão de uma boa consciência.
Para fortalecer essa determinação, contamos com a ajuda do Espírito Santo, que é concedido
quando mantemos a fé, conforme mencionado em Gálatas 3. 14: “A fim de que recebêssemos a
promessa do Espírito pela fé”. Da mesma forma, em Romanos 8. 15, é afirmado: “Pois não
receberam um espírito de escravidão, para viverem, outra vez, atemorizados, mas receberam um
Espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai”. Quando consentimos pela fé na
promessa de Deus, reconhecemos Sua misericórdia e Sua presença em nossas vidas, cuidando de
nós e nos acolhendo. Isso nos leva a invocá-Lo sinceramente, a nos submeter a Ele, a temê-Lo e
a obedecê-Lo.
Portanto, em Zacarias, duas partes fundamentais estão habilmente unidas: Graça e Invocação
(12. 10): “Derramarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de
graça e súplicas”. Primeiro, somos movidos pelo Espírito Santo para reconhecer e estabelecer
que somos recebidos na graça. No entanto, a verdadeira invocação é o culto principal a Deus e a
obra exclusiva da Igreja, que surge do conhecimento da graça. Pois uma mente que não conhece
a reconciliação foge de Deus e não O invoca. Mas aqueles que foram recebidos na graça se
aproximam e invocam, como é dito em Romanos 5. 12: “Por meio de quem temos igualmente
acesso, pela fé”. Efésios 3. 12 também afirma: “em quem, por meio da fé, temos ousadia e
acesso”. Entretanto, como a nova etapa de obediência está longe de atingir a perfeição requerida
pela Lei, e vestígios de pecado ainda persistem na vida daqueles que foram reconciliados, isso
foi abordado anteriormente.

SOBRE A CONFISSÃO.
É relevante para estudiosos observar como o termo “Confissão” é empregado em diversos
contextos. Em geral, o público costuma entender “Confissão” como a prática de enumerar
individualmente os pecados perante os ministros da Igreja, buscando obter a absolvição.
Possivelmente, a tradição de listar os pecados individualmente teve origem entre aqueles que
confessavam publicamente seus pecados diante dos ministros ou da congregação. Antigamente,
tais pecadores não eram admitidos a menos que confessassem seus pecados perante os ministros,
solicitassem perdão e se comprometessem a se corrigir.
O termo “Confissão” é frequentemente mencionado, inclusive pelos Apóstolos e Profetas,
como encontrado em Mateus 3. 6, onde se relata que as pessoas foram batizadas no rio Jordão,
confessando seus pecados. Da mesma forma, em Neemias 9. 1 e seguintes, os filhos de Israel se
reuniram em um jejum e confessaram seus pecados. Em Levítico 16. 21, descreve-se o ritual
público em que o sumo sacerdote confessava todas as iniquidades dos filhos de Israel. Nesses
contextos, “Confissão” não apenas denota o reconhecimento interno da culpa perante Deus, mas
também a confissão pública geral diante de Deus e da igreja, na qual aqueles que se declaram
culpados e buscam perdão fazem uma profissão pública de seus pecados.
Assim, fica claro que essa profissão pública e geral é uma prática muito antiga. No entanto,
quando Davi diz em Salmos 31. 5: “Digo: confessarei contra mim as minhas transgressões ao
Senhor”, nesse contexto, a confissão significa o reconhecimento interno da culpa perante Deus, o
que é a própria contrição, juntamente com o pedido de perdão. Tiago também usou o termo
“confissão” ao falar sobre Reconciliação em Tiago 5. 16: “Confessem, pois, os seus pecados uns
aos outros”, ou seja, aqueles entre os quais houve desavenças devem confessar seus próprios
pecados mutuamente e reconciliar-se. Como também é dito em Provérbios 18. 17: “O justo é o
primeiro a se acusar, mas logo vem alguém e o examina”, ou seja, Deus não quer que ignoremos
nossos erros e censuremos os outros com rigor, mas sim que primeiro examinemos nossa
consciência, confessemos nossos erros e os corrijamos, como Mateus 7. 5 afirma: “Hipócrita, tire
primeiro a trave do seu olho, e então verá claramente para tirar o argueiro do olho de seu irmão”.
Portanto, após observarmos os diversos usos da palavra, devemos distinguir os significados
antigos da prática recente de enumeração.
Há, portanto, dois tipos de Confissão: uma é pública, onde diante da igreja os réus devem
confessar abertamente que caíram em pecado, expressar tristeza por terem ofendido a Deus e
contaminado a igreja. Neste caso, é evidente que, quando o crime é público, a enumeração ou
recitação dos pecados não deve ser omitida. No entanto, existe a Confissão privada ou secreta,
onde afirmamos que a enumeração não é necessária. Embora muitos argumentem que o
relaxamento deste vínculo pode solapar a disciplina, também é importante garantir que a luz da
fé não seja obscurecida e que laços não sejam impostos às consciências. Como a disciplina deve
ser administrada, discutiremos posteriormente.
Há três razões pelas quais é necessário ensinar que a enumeração não é necessária: Primeiro,
porque os monges inventaram que a enumeração era um culto e um mérito para obter a remissão;
Segundo, porque eles a exigem para que possa ser imposto um ato de satisfação; Terceiro,
porque a consciência é levada à dúvida e a uma escrupulosa desesperação pela enumeração.
Esses erros precisam ser corrigidos, pois o perdão não depende da condição da enumeração, e a
palavra do Evangelho sobre o perdão gratuito deve ser mantida. Além disso, os delírios sobre a
satisfação também devem ser repreendidos. Por fim, deve-se reconhecer que a enumeração era
uma tortura para os piedosos, que, ao verem que não podiam listar todos os seus pecados, nunca
encontravam paz, e a fé era apagada por essa dúvida. Era necessário que os doutores piedosos
remediassem esse mal.
Portanto, é evidente que não há um mandamento divino para enumerar todos ou alguns dos
pecados na confissão privada, porque nem Cristo nem os Apóstolos em algum lugar o
prescreveram. Além disso, a enumeração de todos os pecados é impossível, como diz o Salmo
19. 13: “Quem pode discernir os próprios erros?”. Pois há muitos erros de ignorância nas
decisões mais importantes, como no caso de Josias movendo uma guerra desnecessária, e em
outras questões, como erros doutrinários, onde as pessoas constroem palhas sobre verdades,
obscurecendo-as. Além disso, existem muitos pecados de omissão que não compreendemos.
Portanto, é absurdo afirmar que a enumeração de todos os pecados é necessária, uma vez que é
impossível. No entanto, essas questões devem ser esclarecidas para que a doutrina do perdão
gratuito e da fé não seja obscurecida.
No entanto, em relação à absolvição privada, que deve ser mantida nas igrejas, o costume de
buscar a absolvição também deve ser mantido. Existem muitos outros benefícios em manter esse
diálogo privado, mesmo que a enumeração dos pecados não seja feita.
O primeiro benefício é buscar a absolvição.
O segundo benefício é que o pastor possa questionar seus ouvintes sobre a doutrina. Pois
ambos os mandamentos são para o pastor: explorar os julgamentos dos ouvintes sobre a doutrina
e saber se estão progredindo, corrigir e educar os mais lentos. Por outro lado, é para o povo que
ele deve expor o que pensa.
O terceiro benefício é que, certamente, antes que os inexperientes sejam admitidos aos
sacramentos, devem ser instruídos sobre a doutrina, e esta conversa serve como um substituto
para o Catecismo.
Quarto. Embora o pastor não deva forçar ninguém a revelar fatos privados, ele pode
perguntar sobre o comportamento e a moral de acordo com a idade e a situação de vida das
pessoas e dar conselhos úteis. Por exemplo, se alguém for um comerciante, ele pode perguntar
que tipo de negócios estão envolvidos.
Quinto. Assim como é dito em Neemias e Mateus, eles confessaram seus pecados, ou seja,
reconheceram que eram pecadores em geral, se submeteram a Deus e mostraram tristeza. Da
mesma forma, na busca pela absolvição, mesmo quando a enumeração individual é omitida, é
necessário indicar em geral que admitimos ser pecadores, nos submetemos a Deus, sentimos
verdadeira tristeza por termos ofendido a Deus, poluído a Igreja e acumulado punições públicas.
Dessa forma, de maneira sensata e séria, essa prática é mantida e é benéfica para a disciplina.
Sexta. Essa é uma razão que pode mover a consciência de todos, principalmente os
prudentes. O costume de buscar absolvição é uma testemunha deste artigo, que os pecadores que
se arrependem são recebidos por Deus e devem ser aceitos pela Igreja. É útil conservar esse claro
testemunho na Igreja. Pois até mesmo Pedro de Alexandria refutou Melécio, que propagava os
delírios dos Cátaros, citando o costume comum na Igreja e apresentando exemplos de
absolvição. Os corações de todas as pessoas são muito influenciados por rituais que estão
constantemente diante de seus olhos, confirmados não apenas pela antiguidade, mas também
pelo uso de tais governantes cuja piedade e ensinamentos foram comprovados por testemunhos
confiáveis. Portanto, naquela época, o costume foi útil para confirmar a verdadeira opinião de
Pedro, e podemos pensar que a consideração desse costume perpétuo também pode ser benéfica
para nós. Além disso, como Jesus claramente diz (Mateus 18. 18): “Tudo o que vocês ligarem na
terra, será ligado no céu”, certamente é dada uma ordem para absolver. Embora a absolvição ou a
recepção dos que caíram também seja entendida quando são novamente admitidos à comunhão,
essa absolvição expressa não deve ser abolida.
Entre os pagãos, a doutrina do perdão dos pecados por meio do Mediador Filho de Deus foi
completamente perdida, mas a doutrina da Lei ainda era mantida de alguma forma. Pois a
natureza humana facilmente esquece o Evangelho, já que é uma doutrina não inata na mente
humana. Da mesma forma, os monges suprimiram a luz do Evangelho sobre o perdão gratuito,
inventando delírios sobre a satisfação e outros assuntos. Portanto, se o costume de absolver fosse
abolido, as trevas da ignorância retornariam à cultura, e a doutrina sobre a recepção dos caídos se
tornaria mais obscura. Logo, é útil manter esse costume, pois ele sempre existiu na Igreja. E que
os piedosos saibam que, ao manterem esse costume, estão servindo não apenas às suas próprias
necessidades, mas também às gerações futuras.
Espero que essa causa tão piedosa e útil seja valorizada por muitos, de modo que busquem
manter o costume de buscar a absolvição com mais amor e disposição. Quando você se aproxima
para buscar a absolvição, considere estas três coisas: assim como sempre houve na Igreja uma
confissão geral, na qual os piedosos mostraram que reconhecem seus lapsos e se declararam
culpados da ira de Deus, da mesma forma, você também lamenta sua culpa; você também
confessa ser culpado, como Daniel diz (9. 7 e seguintes): “A nós pertence a confusão”. Em
segundo lugar, busque que a voz do Evangelho, que anuncia o perdão dos pecados, seja aplicada
a você. E por meio dessa voz, console-se a si mesmo e estimule sua fé. Em terceiro lugar,
lembre-se de que esse costume deve ser mantido, para que até mesmo as gerações futuras saibam
que, quando os caídos se arrependem, são recebidos por Deus e pela Igreja.
É útil, no entanto, acostumar os menos instruídos a uma enumeração geral, seguindo a ordem
dos Dez Mandamentos. Esse cuidado é benéfico não apenas porque serve como catequese,
lembrando aos que recitam quais são as enfermidades e os lapsos do pecado, quais são os graus
dos pecados e qual é a diferença entre o julgamento secular e o julgamento do Evangelho sobre
os pecados. Mas também porque leva as pessoas a se autoexaminarem e a reconhecerem suas
enfermidades e quedas, das quais muitos sequer pensam ao buscar a absolvição. Afinal, como
pode haver contrição ou dor genuína sem uma considerável reflexão sobre nossas quedas, a ira
de Deus e as punições presentes e eternas?
Além disso, uma grande parte das pessoas só entende que os pecados são apenas aqueles
crimes atrozes que são punidos com castigos públicos, não compreendendo nada sobre a falsa
invocação ou os vícios do coração. Portanto, as pessoas devem ser ensinadas sobre os Dez
Mandamentos, que, embora frequentemente devam ser explicados e ilustrados pelos instrutores,
são mais bem compreendidos pelo público quando cada pessoa compara sua própria vida com
esse espelho e percebe seus próprios erros.
O primeiro mandamento: Devemos pensar corretamente sobre Deus e estabelecer com uma
fé firme que Ele é o único criador de todas as coisas e o juiz de todos os homens que se revelou
por meio de Sua Palavra e ao enviar Seu Filho. Devemos obedecer a Ele com reverência, temer
Sua ira e julgamento, invocá-Lo verdadeiramente por causa do Filho, amá-Lo e sentir um
movimento de gratidão no coração em relação a Deus.
Devemos nos impressionar com a grandeza da misericórdia que Ele nos revelou, com o fato
de que Ele realmente ama a humanidade, e que Ele genuinamente deseja que sejamos salvos.
Devemos ser movidos pelos benefícios do Filho, pelo fato de que Ele sofreu por nós, que Ele nos
deu o Evangelho e que Ele promete o Espírito Santo como nosso guia e a vida eterna.
O segundo mandamento: Mas todas essas coisas afetam meu coração menos do que
deveriam. Não tenho temor suficiente, muitas vezes tenho dúvidas e busco os bens de Deus de
forma hesitante, invoco-O de forma hesitante, confio nas coisas presentes e busco assegurar
minha vida, negligenciando a ordem que Deus prescreveu. Muitas vezes, até mesmo com
invocações erradas, eu desvio e ofendo a Deus, invocando os mortos, pensando que essa estátua
deve ser mais digna de invocação como Deus ou Santo do que em outro lugar. Muitas vezes
ainda me desvio agora, evitando pensar no verdadeiro Deus, que se revelou por meio do Filho, e
negligenciando o Filho e Sua promessa. Em resumo, não estou fervoroso na invocação, como
deveria estar.
O terceiro mandamento: Muitas vezes, negligencio as reuniões públicas e cerimônias no Dia
do Senhor, não sendo impedido por razões válidas, e, com meu exemplo, levo outros a fazer o
mesmo. Não sou grato a Deus pelo instituído ministério, pela preservação da Igreja, pela
preservação das Escrituras Proféticas e Apostólicas, não ajudo a Igreja a orar pelo estado público
em congregação, sou muito superficial em minha preocupação com as misérias comuns, que são
dissipadas na Igreja e na política devido à ignorância, às discordâncias e às guerras, levando à
perda de almas e corpos de muitos. Não auxilio o ministério da Igreja com meus deveres, não
temo, como deveria, os piedosos ministros; às vezes, falo mal deles e, com meu exemplo,
fortaleço o desprezo ou ódio por eles, não lhes pago os salários devidos; muitas vezes, gasto os
dias santos em atividades vergonhosas, provocando a ira de Deus contra muitos.
O quarto mandamento: Sou negligente em minha vocação, em meus estudos e na
administração de minha família. Sou ingrato a Deus pelos benefícios da ordem política. Às
vezes, irrito-me injustamente com as autoridades e as difamo, não lhes dando a devida reverência
de coração; ocasionalmente, incito controvérsias contra as leis e violo a ordem política com
escândalo e prejuízo para os outros, interrompendo com minhas tolices tumultos públicos
necessários. Não estou disposto a me controlar e a tomar cuidado em meu próprio estado, a fim
de não perturbar a harmonia geral do estado público, sou ganancioso[121] e sirvo mais aos meus
interesses do que ao bem público, aproveitando oportunidades para causar perturbações.
O quinto mandamento: Frequentemente, sou inflamado por indignação injusta e pelo desejo
de vingança. Acrescento palavras de maldição ruins que brotam do desejo de prejudicar; sou
movido pela inveja, fico triste quando vejo o poder ou a autoridade de outra pessoa aumentar e
desejo suprimi-los; sou orgulhoso, desprezo meus iguais e exijo ser colocado à frente deles; sou
suspeito e, com base em suspeitas infundadas, às vezes concebo ódios injustos, espalho e
fortaleço discórdias, muitas vezes espalho rumores e boatos que ferem as pessoas e inflamam
ódios; tenho um pouco de inveja e malícia, deleitando-me em difamar os outros. Às vezes,
distorço de forma caluniosa as palavras e ações alheias, não me esforço para curar
desentendimentos e reconciliar vontades, permito que ódios cresçam devido à inveja pessoal ou
outras causas pessoais, e difamo aqueles que estão ausentes. De vez em quando, ofendo aqueles
que estão presentes com insultos, prejudicando minha própria oração e estimulando ódios ou
dissensões.
O sexto mandamento: Tenho impulsos desordenados e chamas variadas de luxúria, cedendo
a olhares e pensamentos impuros, contaminando assim meu corpo. Aumento esses males com
intemperança e excessos na comida e bebida. Devido a essas chamas ardentes e excessos na
alimentação e bebida, obstruo minhas meditações e orações piedosas, e chamo sobre mim a ira
de Deus, aumentando minha impureza em relação a mim mesmo, minha família e minha cidade.
O sétimo mandamento: Aproveito da generosidade dos meus pais ou do salário público e não
uso adequadamente esses recursos. Engano meus irmãos ou outros necessitados, sou injusto em
contratos, não busco manter a equidade por amor a Deus, desonestamente estabeleço preços
injustos, busco de maneira injusta acumular riquezas, pego empréstimos sob vários pretextos e
nem mesmo me preocupo em pagar, retenho propriedades alheias, não sou fiel e diligente em
meu trabalho, vendo produtos defeituosos e danificados.
O oitavo mandamento: Não mantenho a sinceridade e a verdade que Deus requer em minhas
palavras e ações; misturo sofismas em meus conselhos e negócios, ou ensino falsidades; às vezes
defendo coisas falsas por raiva, ira injusta, obstinação ou lisonja, ou por medo; em meu
comportamento, também há hipocrisia, simulação de virtude ou falsa arrogância.
Por fim, reconheço-me miserável em minha cegueira e segurança terríveis, negligenciando
horrivelmente a ira de Deus e desviando-me de Seus mandamentos de muitas maneiras, causando
escândalos a outros e atraindo punições para mim e para os outros. Não consigo compreender a
magnitude ou a quantidade de meus próprios vícios e quedas, mas admito que mereço punições
presentes e eternas. Com verdadeira tristeza, clamo: “Sou apenas um pecador diante de Ti,
pequei contra Ti”. Sinto verdadeiramente a mágoa de ter ofendido a Deus, manchado e
prejudicado a Igreja e o restante da humanidade. Refugio-me no Filho de Deus, nosso Senhor
Jesus Cristo, como meu Mediador, e por meio d’Ele oro a Deus, o Pai Eterno de nosso Senhor
Jesus Cristo, o bom, o sábio juiz e o poderoso, para que Ele afaste Sua ira de mim, perdoe meus
pecados por causa do Filho e me receba em Sua imensa misericórdia. Assim como Ele declarou:
“Assim como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não desejo a morte do pecador, mas que o ímpio se
converta do seu caminho e viva” (Ezequiel 33. 11). Prometo resistir ao pecado e não agir contra
minha consciência, e oro a Deus para que Ele me guie com Seu Espírito Santo. A vocês, como
ministros de Cristo, peço que anunciem a Palavra do Evangelho, na qual creio. Ao mesmo
tempo, prometo à Igreja que melhorarei meu comportamento e evitarei escândalos.
Os mais inexperientes devem ser orientados a seguir uma forma geral como essa, para que
considerem o que estão fazendo quando buscam a absolvição. Eles devem se examinar,
reconhecendo que têm muitos e graves lapsos, e considerar os vários graus de pecado. A partir da
própria série dos Dez Mandamentos, eles devem aprender a discernir os pecados ocultos, para
que possam começar a resistir aos seus vícios e se controlar.
Por fim, como pode haver dor na alma sem algum pensamento sobre nossa miséria? Não
sem razão, Jesus disse (João 16. 8): “O Espírito Santo convencerá o mundo do pecado”. Isso é
feito pela meditação da Palavra de Deus e da ira de Deus, juntamente com a consciência de nossa
impureza. Portanto, para que o Espírito Santo possa convencê-lo, inspirar verdadeiros temores e
corrigir sua segurança e orgulho, para que você trema e se submeta a Deus e se coloque abaixo
dos outros homens, olhe para ambos, ou seja, a Palavra de Deus e suas próprias raivas. Não se
aproxime da busca pela absolvição de forma segura e sem gemer, como o fariseu que disse: “Não
sou como os outros homens” (Lucas 18. 11). Seria útil apresentar uma confissão geral desse tipo
frequentemente em sermões ou ensinamentos catequéticos.
Agora volto à discussão sobre a enumeração de cada pecado, que alguns afirmam ser
necessária com base nesses dois pretextos:
1. A absolvição não pode ocorrer sem conhecimento.
2. A absolvição deve ser buscada aqui.
3. Portanto, o conhecimento é necessário.

Respondo à maior. O julgamento e o ministério do Evangelho são diferentes. No julgamento,


é necessário haver conhecimento; mas o ministério do Evangelho é um mandato claro para
comunicar o benefício, ou seja, anunciar o perdão dos pecados, quer eles sejam conhecidos ou
desconhecidos. Muitos pecados são perdoados, dos quais a própria pessoa que está sendo
absolvida não se lembra ou não entende, e a voz da absolvição deve ser recebida pela fé. Não
estamos aqui debatendo se a forma do julgamento foi devidamente mantida, nem a fé se baseia
na obra do sacerdote, mas sim olhando para Cristo como Mediador; por meio d’Ele, sabemos que
a ira de Deus é afastada de nós, e através da voz do Evangelho, conhecemos e recebemos a
vontade de Deus.
Davi teria sido consumido pelo medo e tristeza quando foi repreendido por Natã, se não
tivesse ouvido também a absolvição depois (2 Samuel 12. 13): “O Senhor perdoou o seu
pecado”. Ao ouvir essa voz divina, ele começou a se submeter novamente, a reviver e a invocar a
Deus. Assim, cada um de nós deve pensar agora: se Deus me comunicasse Sua misericórdia com
uma voz tão singular, isso seria um bom sinal para mim. Essa imaginação precisa ser corrigida,
considerando a voz do Evangelho ou da absolvição. A mesma mensagem que foi dita a Davi
sobre o perdão é anunciada a você e a cada um de nós pela voz do Evangelho ou da absolvição, e
devemos crer nisso não menos do que Davi deveria ter crido naquela época.
Essa é, portanto, a resposta verdadeira e sólida ao argumento: a absolvição não ocorre sem
conhecimento, o que é verdade em um julgamento, mas não nessa função do ministério
evangélico, pela qual nos é concedido o benefício. E o poder do ministério é ilustrado quando as
pessoas são alertadas sobre a diferença entre julgamento e ministério. Pois o ministério diz
respeito à consciência e é testemunho da absolvição divina. Mas o julgamento é outra coisa e diz
respeito a crimes evidentes. Ninguém deve ser excomungado ou admitido sem conhecimento,
mas aí o conhecimento se refere não à consciência, mas aos comportamentos externos, e essa
absolvição vale diante da Igreja, mesmo que aquele que está sendo absolvido esteja apenas
fingindo arrependimento.
O fato de o Evangelho poder ser aplicado publicamente a muitos e individualmente a cada
um é testemunhado por esta sentença (João 20. 23): “Àqueles a quem perdoou os pecados, ficam
perdoados”. Da mesma forma (Mateus 18. 21): “Quantas vezes meu irmão pecará contra mim, e
deverei perdoar-lhe?”. Pois ele fala sobre o perdão, que Deus aprova.
Quanto à objeção de que os seres humanos não podem perdoar pecados, isso é verdade, mas
eles podem e devem proclamar a palavra de Deus, na qual Deus testemunhou que Ele perdoa.
Pois Deus perdoa por meio do ministério do Evangelho e dos Sacramentos. E fica claro que
aqueles que não desejam anunciar explicitamente o perdão não compreendem o que é a palavra
do Evangelho ou o ministério. Portanto, Deus enviou Seu Filho para revelar essa vontade secreta
de perdoar os pecados, que estava no seio do Pai, e ordenou que ela fosse proclamada na Igreja.
E os Sacramentos são meios de aplicação do perdão, ou seja, eles atestam que o benefício do
Evangelho se aplica a cada indivíduo. Quando eu o batizo em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, estou declarando, por comando de Deus, que você é agora recebido por este Deus
verdadeiro, que é o eterno Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e pelo Seu Filho, nosso Senhor
Jesus Cristo, que sofreu por você, e pelo Espírito Santo, que é dado aos corações dos
reconciliados, para governá-los e começar a vida eterna. Portanto, testifico que seus pecados
foram perdoados e que você se tornou herdeiro da vida eterna.
Alguns defendem o Cânon da Enumeração com um novo argumento da seguinte maneira: O
consenso contínuo da Igreja parece ser um dogma transmitido pelo Espírito Santo; no entanto, o
costume de enumeração sempre existiu na Igreja; portanto, é necessário mantê-lo.
Respondo ao argumento menor: Era uma prática reconhecida confessar e lamentar pecados
evidentes, mas a tradição antiga não ordenava que todos recitassem seus pecados secretos; como
claramente disse Crisóstomo na interpretação do Salmo 50: “Se alguém se envergonha de dizer
seus pecados, que os diga todos os dias em sua alma, não para confessar ao seu servo, para que
ele os reprove, mas para dizê-los a Deus, que os cura”. Citam-se declarações semelhantes de
outros que podem ser apresentadas contra aqueles que alegam um consenso perpétuo, a fim de
defender a amargura supersticiosa deste Cânon, que lança laços sobre as consciências. É o dever
de um pastor piedoso prever e evitar os perigos das consciências e as corrupções da doutrina,
mas ao mesmo tempo considerar como manter adequadamente a disciplina.
SOBRE SATISFAÇÃO.
A antiga prática na Igreja era não receber aqueles que haviam abandonado o Evangelho por
medo de punições ou haviam sido manchados pelo assassinato ou pecados evidentes, a menos
que fossem primeiro disciplinados. Inicialmente, essa prática era mantida como um exemplo,
para que outros fossem advertidos a governar seus comportamentos com mais diligência e, ao
mesmo tempo, para examinar os corações para ver se eles estavam sinceramente retornando à
igreja. Era uma questão de rituais políticos que não se relacionavam com a consciência ou o
perdão dos pecados perante Deus. No entanto, mais tarde, como é comum acontecer, muitas
opiniões supersticiosas foram acrescentadas, das quais se originaram intrincados labirintos.
Portanto, é necessário que as igrejas sejam instruídas corretamente sobre este assunto,
especialmente quando na refutação de erros, muitos assuntos graves precisam ser explicados ao
mesmo tempo. A doutrina do perdão dos pecados é ilustrada, a diferença entre o perdão da culpa
e o perdão das punições temporais é mostrada, as punições temporais são enumeradas, nas quais
Deus deseja que Sua ira contra os pecados seja visível; como na punição de Davi, Manassés, etc.;
a diferença entre adorações verdadeiras e fabricadas é ensinada. Todas essas questões
importantes precisam ser abordadas.
A respeito do aspecto externo dessas correções desde o início, creio que essa prática tenha
sido adotada desde os primeiros Pais da Igreja. Pois vestígios dela ainda permanecem até mesmo
entre os gregos, onde alguém que cometeu um assassinato injusto ou incesto era excomungado,
ou seja, excluído da comunhão das funções comuns, e certos sinais eram adicionados à
vestimenta, indicando que essa pessoa era culpada, contaminada e a ser evitada. Ninguém
compartilhava comida com ele até que esses sinais de culpa fossem removidos. Também havia
certas imprecações e maldições que eram pronunciadas contra a pessoa contaminada. Assim, no
épico de Homero, Fênix relata que maldições foram pronunciadas contra ele devido ao adultério
de sua esposa. E Orestes vagava pela Grécia evitando o convívio dos outros e usando sinais de
culpa, e em muitos lugares, encontramos exemplos disso, como Peleu, Antíloco e Adrasto, que
chegou à Lídia usando sinais de culpa. Parece que esses exemplos foram adotados desde os
primeiros Pais da Igreja, que observaram essas práticas disciplinares para que as pessoas
percebessem a magnitude da ira de Deus contra os contaminados e se afastassem ainda mais de
tais crimes.
A imagem desse antigo costume foi preservada na Igreja através da prática da excomunhão,
na qual os que haviam caído eram excluídos da comunhão comum e a ira de Deus era declarada
sobre eles. Essa declaração não era vã, pois as punições divinas os seguiriam. Quando os caídos
buscavam ser readmitidos, eles eram examinados alguns dias antes da absolvição. Ficavam fora
do local da Ceia do Senhor com sinais de culpa, ou seja, chorando e com sinais de impureza, e
publicamente pediam a absolvição. Após essa declaração pública, eram readmitidos à Ceia do
Senhor e reintegrados à comunhão.
Não desaprovamos de forma alguma esse ritual de castigo público e exame; pelo contrário,
gostaríamos que ele fosse observado de forma séria, sem falsas crenças, sem superstição e sem
encargos excessivos, e que servisse como um exemplo de disciplina, como Paulo elogia a Igreja
de Corinto em 2 Coríntios 7 por ter exercido rigorosamente essa censura contra a imoralidade,
excluindo um transgressor e, posteriormente, recebendo-o de volta após sua pública declaração
de arrependimento. Paulo diz: “Vejam, com que empenho, que desculpas, que indignação, que
temor, que saudades, que zelo, que justiça se manifestaram em vocês” (v. 11), referindo-se à
séria disciplina de excomunhão aplicada ao culpado por incesto.
Mas depois dos apóstolos, os cânones das penitências começaram a crescer em superstições.
Eles prescreviam vários anos de jejuns, e uma falsa crença se infiltrou, que essas obras poderiam
merecer o perdão dos pecados e que eram uma forma de compensação pelos pecados. Portanto,
essas práticas eram chamadas de “satisfações”. Isso obscureceu a luz do Evangelho sobre a fé
que recebe o perdão por meio de Cristo. Finalmente, esses cânones, que já eram insuportáveis,
foram abandonados e negligenciados, mas o nome permaneceu e se tornou uma sombra da qual
os monges discutem e geram muitas corrupções do Evangelho, sobre as quais vou falar
brevemente.
Primeiramente, deve-se entender que as “satisfações” mencionadas aqui não se referem às
satisfações civis, nas quais alguém que prejudica outros deve compensar o roubo, quem causou
dano a outra pessoa, quem difamou ou exerceu violência injusta deve satisfazer o prejudicado e
retratar as difamações, e para a violência injusta, deve suportar uma punição. Essas são ações
corretivas e obrigatórias, relacionadas à contrição, conforme diz: “Cessem de fazer o mal”.
Aquele que mantém a esposa de outro homem raptada não tem contrição enquanto a retém.
Portanto, essas satisfações civis são as restituições de bens e reputação, ações obrigatórias
ordenadas pela Lei de Deus, necessárias para uma verdadeira contrição e uma boa consciência.
No entanto, os monges definem as “satisfações” como ações não obrigatórias, pelas quais
desejam resgatar as penas do Purgatório ou, pelo menos, outras penas temporais. Eles ensinam
que Deus, sendo misericordioso, perdoa a culpa, mas, sendo também justo e vingativo,
transforma a pena eterna em uma pena temporal no Purgatório. Além disso, afirmam que parte
das penas pode ser perdoada pelo poder das chaves, mas que parte delas deve ser resgatada por
meio de satisfações. Essa é a essência de sua interpretação. No entanto, eles admitem
corretamente que a culpa não é perdoada devido à satisfação, mas depois se enganam ao falar
sobre a compensação da pena eterna. É um erro pensar que as penas eternas são perdoadas
devido à nossa compensação, e é ainda mais absurdo alegar que são perdoadas devido a ações
não obrigatórias, sobre as quais foi dito: “Em vão eles Me adoram, ensinando doutrinas que são
preceitos de homens”.
Portanto, é assim que devemos entender: a remissão da culpa e da morte eterna estão unidas.
Este é um único e mesmo benefício gracioso de Cristo, e remover a culpa é apaziguar a ira de
Deus, pois a Morte eterna nada mais é do que experimentar a terrível e indescritível ira de Deus
permanecendo, como João diz (João 3. 36): “A ira de Deus permanece sobre ele”. Portanto,
devemos entender que a culpa e a morte eterna são removidas juntas por causa de Cristo, não
devido a qualquer compensação nossa. Portanto, Paulo diz (1 Coríntios 15. 56): “O aguilhão da
morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Mas graças a Deus que nos dá a vitória por meio de
nosso Senhor Jesus Cristo”. E também em Romanos 6. 23: “Porque o salário do pecado é a
morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”. E Oseias 13.
14: “Eu os resgatarei do poder do Seol e os livrarei da morte”. Portanto, devemos entender pela
fé que somos libertados gratuitamente da culpa e da morte eterna por causa de Cristo. Como
Paulo diz em Romanos 5. 1: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de
nosso Senhor Jesus Cristo”. Os benefícios de Cristo são esses: remover a culpa e a morte eterna,
ou seja, apaziguar a tremenda ira de Deus. Portanto, é um ultraje a Cristo se alguém transfere o
perdão da morte eterna para nossa compensação.
Segundo ponto. Embora a remissão da culpa e a remissão da morte eterna não devam ser
separadas, é necessário distinguir a remissão da culpa da remissão das penalidades temporais
desta vida. Embora haja muitas razões pelas quais a Igreja seja submetida à cruz, a principal
delas é o pecado que reside na carne. Toda a humanidade está oprimida por calamidades e morte,
mas a Igreja ainda mais. Porque Deus deseja que a ira contra o pecado seja entendida na Igreja,
que o mundo despreza; portanto, Ele sobrecarrega a Igreja com um fardo mais pesado, para que
saibamos que carregamos penalidades, que somos culpados e que Deus está verdadeiramente
irado com o pecado, mas por causa do Filho, Ele nos recebe.
Mesmo que Adão tenha reconhecido que ele foi aceito em graça, porque o Filho de Deus
intercedeu pela raça humana e o maravilhoso decreto da redenção da raça humana foi feito no
conselho do Pai eterno, do Filho e do Espírito Santo, ele ainda estava sujeito a penalidades
corporais para reconhecer sua queda, e se seguiram as terríveis punições, nas quais Adão viu que
estava verdadeiramente cercado por sinais de culpa. Ele lamentou profundamente o crime de
Caim e o assassinato de Abel, e muitas outras tragédias que os mais miseráveis pais
testemunharam ao longo dos anos.
Além disso, além das aflições comuns, os santos são punidos com penalidades individuais
devido a pecados particulares. Veja como Davi sofreu muito por causa de seu adultério!
Primeiro, sua filha foi estuprada, depois o assassinato de seu filho. Em seguida, houve uma
revolta liderada por seu próprio filho, estupros de suas esposas, cidadãos mortos e seu pai sendo
expulso. Foi uma perda muito maior para Davi ser despojado de seu reino do que perder a grande
glória de sua virtude e do favor de Deus. Ele realmente sentiu que estava sendo excomungado e
que essas grandes misérias e dores eram sinais de culpa que o cercavam, não causadas por
homens, mas por Deus, para que ele reconhecesse que Deus estava verdadeiramente irado com o
pecado, se submetesse a Deus, não se vangloriasse de sua justiça sobre os outros pecadores, e
para que outros fossem advertidos por este exemplo.
Assim, muitos dos santos são punidos com penalidades peculiares ao longo dos tempos por
seus muitos pecados. Não estou falando dos ímpios e rejeitados, cujos crimes enormes Deus,
como guardião da justiça civil e da sociedade, pune regularmente com punições notáveis nesta
vida, como Catilina, Nero e os ladrões cotidianos. Mas estou falando da Igreja e dos Santos;
muitos de seus lapsos em todos os tempos são punidos com penalidades peculiares, de acordo
com o que diz o Salmo 88. 33: “Castigarei com a vara as suas transgressões” e também com 1
Pedro 4. 17: “Porque é tempo de começar o juízo pela casa de Deus”.
Em terceiro lugar, deve-se notar que, embora os convertidos suportem penas temporais,
essas penas não têm absolutamente nada a ver com o poder das chaves. Elas não são impostas ou
removidas pelo poder das chaves, como a realidade demonstra. Nem a morte, nem as doenças,
nem as guerras podem ser impostas ou removidas pelos ministros do Evangelho. Pelo contrário,
Deus permite que essas aflições nos cerquem como sinais de Sua ira quando Ele pune pecados
específicos, a fim de nos advertir, a nós mesmos e aos outros, sobre Seu julgamento contra o
pecado.
Além disso, uma vez que essas penas frequentemente servem como exemplos, muitos que
estão sobrecarregados com calamidades notáveis são apresentados como espetáculos para os
outros. Por exemplo, a expulsão de Davi foi um espetáculo extremamente triste. A morte do
imperador Maurício foi uma tragédia atroz. Quando Focas[122] o resgatou da fuga e o mandou
trazer para ele com sua esposa, filhas e filhos, Maurício, em primeiro lugar, ordenou a execução
de suas filhas na presença de seu pai, bem como de sua esposa extremamente digna. Mais tarde,
seu filho adolescente foi morto. No entanto, o filho mais novo estava ausente, sendo criado por
uma ama de leite. Quando Maurício ordenou que ele fosse trazido até ele, o marido da ama
trouxe não o filho dela, mas seu próprio filho. Tamanha era a confiança dele no amigo. No
entanto, quando Maurício viu o menino, ele interveio e disse a Focas que esse menino não era
seu, e que ele não queria transferir sua própria calamidade para um amigo. Assim, o filho de
Maurício foi trazido e morto. Mais tarde, a mãe miserável também foi assassinada. Em meio a
tanta calamidade, nenhuma palavra ímpia foi ouvida de Maurício. Ele permaneceu como um
espectador dessas misérias crescentes e confessou sua culpa, dizendo: “Tu és justo, Senhor, e o
Teu julgamento é reto”. Por fim, ele também foi morto. Maurício era uma pessoa dotada de
muitas grandes virtudes e um devoto seguidor da religião cristã. No entanto, devido à sua
natureza impulsiva, ele cometeu alguns atos severos. Portanto, ele sofreu essas punições como
um lembrete, diante das quais ele se arrependeu. Mas Deus, nessa calamidade, desejou não
apenas aumentar seu arrependimento, mas também advertir os outros sobre Seu julgamento.
Portanto, fica evidente que essas penalidades não têm nada a ver com o poder das chaves.
Quarto. Essas aflições não são compensações pelo Purgatório ou pela morte eterna. Pelo
contrário, muitas calamidades, como as que afetaram João Batista, Jeremias, Isaías e outros, têm
causas muito diferentes, e não são punições por seus próprios pecados, como Deus mesmo
justifica o caso de Jó.
Portanto, outras razões pelas quais a Igreja está sujeita à cruz devem ser conhecidas, e é útil
refletir sobre isso com frequência. Essas razões podem ser enumeradas da seguinte forma:
I: O pecado comum da humanidade, pelo qual todos os seres humanos estão universalmente
sujeitos à morte.
II: Visto que o mundo não reconhece essa doença espiritual, o desprezo por Deus e a ira de
Deus contra esse mal, Deus pressiona a Igreja ainda mais, para que ela reconheça esses males e
seja chamada ao arrependimento.
III: Porque o Diabo age com fúria contra a Igreja.
IV. Deus deseja aumentar em nós o conhecimento de nossa fraqueza, nos levar a depositar
nossa confiança n’Ele e nos incentivar a invocá-Lo. Portanto, Ele testa os santos mais
severamente, como Paulo diz (2 Coríntios 1. 9): “Tivemos sobre nós a sentença de morte, para
que não confiássemos em nós mesmos, mas em Deus, que ressuscita os mortos”.
V. Para que as aflições sejam testemunhos da imortalidade e da glória futura. Pois, uma vez
que não há distinção entre Nero e Paulo neste mundo, certamente haverá no mundo vindouro.
VI. Para que as aflições sejam testemunhas da doutrina. Pois, quando os santos colocam a
confissão de sua vida acima de tudo, fica claro que eles levam isso a sério.
VII. Para que nos tornemos semelhantes à imagem do Filho de Deus. Assim, Abel, Isaque,
João Batista, Jeremias e Isaías foram tipos de Cristo.
VIII. Muitas vezes, as aflições são punições por certos pecados, como o exílio de Davi e a
doença do rei babilônico Manassés.
IX. Para que a Igreja saiba que os santos obedecem não por causa de sua própria satisfação,
mas por amor a Deus.
X. Para que a Igreja saiba que não depende de recursos humanos, mas tem Deus como seu
guardião. Portanto, Deus testa Abraão com os perigos de sua peregrinação, nos quais ele carrega
a doutrina. Da mesma forma, o povo é mantido no deserto, etc.
Toda essa doutrina sobre as principais fontes de calamidades humanas é desconhecida para a
Filosofia, que acredita que a causa da morte humana está na fluidez da matéria, como na morte
de animais, e que as misérias humanas se acumulam por acaso ou imprudência humana. No
entanto, a Igreja aponta outras causas mais significativas. Portanto, deixemos de lado as fábulas
sobre a compensação do Purgatório, que não têm respaldo nas Escrituras Proféticas e
Apostólicas, e consideremos outras causas mais importantes das calamidades, para que possamos
reconhecer a ira de Deus, tremer diante dela e, novamente, nos voltar para o verdadeiro consolo.
Em última análise, saibamos que esse é o propósito final de todas as calamidades: aumentar a fé
e a invocação, conforme diz o Salmo 49. 15: “Invoque-Me no dia da angústia; Eu o livrarei”.
Quinto. Embora Deus muitas vezes puna pecados específicos com penalidades específicas, é
importante entender que essas penalidades podem ser mitigadas por meio do arrependimento ou
até mesmo totalmente perdoadas, como atestam as histórias bíblicas, como a de Jonas. Além
disso, a Bíblia contém passagens que afirmam que nossos pecados podem ser perdoados
mediante o arrependimento, como Isaías 1. 18, que diz: “Ainda que os seus pecados sejam como
a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve”. Também em Zacarias 1. 3, lemos: “Voltem-se
para Mim, e Eu Me voltarei para vocês”. Jeremias 3. 22 nos exorta a nos converter, prometendo
curar nossas transgressões. Além disso, em Jeremias 30. 11, Deus afirma que castigará Seu povo,
mas não o destruirá completamente. Joel 2. 13 nos diz que, se nos voltarmos para Deus, Ele será
misericordioso e nos perdoará. 1 Coríntios 11. 31 nos lembra que, se julgássemos a nós mesmos,
não seríamos julgados. Essas passagens indicam que Deus está disposto a mitigar as penalidades
e, ao mesmo tempo, mostram que nossos pecados merecem um castigo maior, mas Deus é
misericordioso com nossa fraqueza. Isso é evidenciado em Salmos 129. 3, que pergunta: “Se
observares, Senhor, as iniquidades, Senhor, quem subsistirá?”, implicando que, se Deus
impusesse todas as penalidades merecidas, todos pereceríamos. Além disso, em Salmos 6. 2,
pedimos a Deus que não nos corrija em Sua ira, mas que tenha misericórdia de nós porque somos
fracos. Jeremias 10. 24 também pede a Deus que nos discipline com justiça, não com Sua ira,
para que não sejamos completamente aniquilados. Oseias 11. 8 destaca a compaixão de Deus e
Sua decisão de não destruir completamente o povo, apesar de seus pecados. Em Habacuque 3. 2,
é mencionado que Deus se lembra de Sua misericórdia mesmo quando Ele está irado. Essas
passagens indicam que Deus está disposto a mostrar misericórdia e não aplicar punições
extremas se houver arrependimento e busca de Sua graça.
Por fim, sempre tenhamos em mente a passagem de Ezequiel 33. 11, que também prega
sobre a mitigação das penalidades: “Juro pela minha vida, diz o Senhor Deus, que não tenho
prazer na morte do ímpio, antes desejo que o ímpio se converta do seu caminho e viva”. Isso se
aplica a muitos exemplos daqueles a quem Cristo curou, e suas penas imediatas foram perdoadas.
Lembremo-nos diariamente dessas passagens e outras semelhantes em nossas orações,
especialmente quando estamos pensando nas aflições públicas e pessoais, e buscando a
mitigação delas. Que essas aflições nos recordem de ambas as verdades: que somos punidos com
aflições presentes, mas que também podem ser aliviadas por nosso arrependimento e orações.
Creio que esta seja a opinião de muitos outros ditos, como: “A esmola livra do pecado”[123],
referindo-se às penalidades presentes, ou seja, ganhamos a mitigação das aflições nesta vida.
Esta doutrina sobre penalidades presentes e sua mitigação é útil para alertar as mentes piedosas
sobre muitos assuntos importantes, como a ira de Deus, as causas de muitas grandes
calamidades, as promessas divinas, o exercício da fé e das boas obras. Ensinamos que todo o
arrependimento alivia as penalidades humanas, não através dos ritos de satisfação mencionados
pelos monges, que afirmam ser obras não merecidas e eficazes mesmo quando realizadas em
pecado mortal. No entanto, muitos equívocos existem nas opiniões dos monges, e alguns deles já
foram suficientemente refutados.
Sexto. As satisfações dos monges obscurecem a Lei e o Evangelho e amplificam a
importância das tradições humanas. Eles alegam que algo mais está sendo realizado através das
satisfações do que pela Lei de Deus, e imaginam que as outras obras já satisfizeram a Lei de
Deus. É necessário que essa doutrina seja eliminada na Igreja, pois mesmo os regenerados estão
longe de atingir a perfeição da Lei nesta vida.
Além disso, eles obscurecem o Evangelho, pois afirmam que a punição eterna é abolida por
nossa compensação; na verdade, os ignorantes facilmente transferem as satisfações até mesmo
para o perdão da culpa.
Em terceiro lugar, eles ampliam tradições humanas, definindo satisfações como a realização
de obras não exigidas, ou seja, cerimônias humanas, jejuns em determinados dias, abstinência de
certos alimentos e a recitação de orações específicas. No entanto, é necessário que na Igreja
ressoe esta declaração (Mateus 15. 9): “Em vão eles Me adoram, ensinando doutrinas que são
preceitos de homens”, ou seja, as observâncias humanas não constituem o culto de Deus, muito
menos uma compensação pela morte eterna.
De todas essas considerações, fica claro que, embora a antiguidade tenha tido alguns ritos
pelos quais os pecadores eram distinguidos dos outros, as opiniões dos monges sobre satisfações
e compensações são artificiais e vazias. É falso que a morte eterna seja abolida por nossa
compensação, mas as mentes piedosas devem ser levadas a Cristo, o Propiciador, e a luz da fé
deve ser mantida para que o mérito de Cristo seja reconhecido. Isso ensina que a culpa e a morte
eterna são removidas gratuitamente, não por nossas obras, e, no entanto, ao mesmo tempo, é
preciso entender que a Igreja está sujeita a castigos e penalidades temporais específicas por
certos delitos, mas essas penalidades são mitigadas por nossa penitência total e pelas obras
adequadas. Portanto, para que a penitência cresça, o zelo para progredir em boas obras de nossa
vocação e obediência universal a Deus deve ser inflamado, e deve haver uma distinção clara
entre a verdadeira adoração e as observações humanas.
Outros podem discutir sobre as cerimônias das satisfações canônicas o quanto quiserem, no
entanto, o que eu disse é verdadeiro, claro, sólido e útil para os piedosos e deve ser
frequentemente apresentado na Igreja.
Não estou ignorando que agora estão sendo buscadas várias desculpas para defender essa
cerimônia. A sofisticação é infinita. Eles citam Cipriano, que fala sobre a censura, que era um
costume político, relacionado ao exemplo, não à remissão dos pecados. Além disso, as opiniões
dos monges sobre a compensação das penas do purgatório, etc., ainda não existiam na época de
Cipriano.
Alguns argumentam que a satisfação disciplinar deve ser mantida, assim como Paulo
repreendeu a imoralidade. Essa punição era a excomunhão, que, quando realizada com justiça, é
uma penalidade severa, pois Deus adiciona castigos, como está escrito (Gênesis 12. 3): “Eu
amaldiçoarei aqueles que o amaldiçoarem”. Como mencionamos várias vezes, os rebeldes devem
ser atingidos com a excomunhão. Se a Igreja quiser, por razões de exemplo e com certa
gravidade e moderação, adicionar uma nota ao receber os que caíram, tal costume não é
desaprovado, desde que não misture as noções de compensação. Não se deve fingir que esse
costume é necessário devido à compensação das penas eternas ou ao Purgatório, como os rituais
de satisfação cresceram no passado devido a superstições.
Os oponentes apresentam esses argumentos: Assim como a misericórdia de Deus é perdoar
os pecados, sua justiça é puni-los. Portanto, é necessário haver uma comutação de penas, assim
como Deus não perdoou Adão e Davi sem punição. Respondo o seguinte: É verdade que a justiça
de Deus exige punição, e a principal punição que aplaca a ira de Deus foi transferida para o
Filho. Além disso, para os convertidos, Deus universalmente pune os pecados na contrição,
como Ezequias disse: “Como um leão, Ele quebrou todos os meus ossos”. O sofrimento de Adão,
Davi e outros piedosos é muito mais severo do que a própria morte. Além disso, Deus pune a
maioria dos delitos com penas temporais específicas, mas frequentemente também poupa, não
executando todas as punições. Pois essa natureza fraca não pode suportar tanta ira, como é dito:
“Se observares as iniquidades, Senhor, quem subsistirá?”, e “E não acendeu toda a Sua ira”.
Portanto, Ele promete mitigar essas penas para aqueles que se arrependem. Ele não deseja
extinguir os seres humanos instantaneamente, mas quer que a Igreja permaneça e que muitos
sejam adequados para as lutas da vida e as necessidades da Igreja. Portanto, Ele poupa muitos
para que possam suportar esse serviço.
Eles também apresentam este argumento: “Se nós mesmos julgássemos, não seríamos
julgados. Portanto, a Igreja faz bem em impor penalidades para evitar que Deus nos castigue”.
Esse argumento, embora pareça plausível, deve ser examinado cuidadosamente. Pois aqui ocorre
uma notável confusão entre a hipocrisia e a verdadeira correção. A afirmação de Paulo é uma
doutrina e consolação salutar e se aplica a todo o processo de arrependimento: “Se nós mesmos
julgássemos”, ou seja, se nos acusássemos e corrigíssemos com verdadeira contrição, não
seríamos afligidos pelas punições de Deus. Como as sentenças acima ensinam, o arrependimento
remove ou ameniza as penalidades. Isaías 1 e Joel 2: “Convertam-se ao Senhor, porque Ele é
misericordioso e perdoa a punição”, e outras sentenças semelhantes. Portanto, é apropriado
afirmar que “a igreja mitiga a punição divina ao impor castigos”. No entanto, isso não deve ser
entendido de maneira hipócrita em relação a cerimônias, mas sim em relação ao verdadeiro
ministério da igreja, que propõe o arrependimento não em cerimônias, mas na conversão a Deus.
É uma verdadeira correção, um verdadeiro pesar do coração e uma verdadeira melhoria moral.
Não se trata de um espetáculo de rituais inventados pelos homens, como eram os espetáculos das
satisfações. O ministério da igreja é espiritual e prega a respeito da conversão do coração a Deus,
do verdadeiro pesar e da verdadeira renovação espiritual. Essas coisas merecem a mitigação das
punições, pois são um culto agradável a Deus. No entanto, nem as correções nem nenhuma outra
obra, sem as outras partes do arrependimento, ou seja, sem contrição e fé, merecem a mitigação,
pois as obras sem temor e fé não são um culto a Deus, não importa quão esplêndidas sejam. Pois
a lei de Deus exige o coração (Deuteronômio 6. 5: “Amará ao Senhor seu Deus de todo o seu
coração, com toda a sua alma e com todas as suas forças”). E Romanos 7. 6 diz: “Mas agora,
pelo contrário, servimos em novidade de espírito, e não na velhice da letra”, ou seja, verdadeira
conversão do coração a Deus, não apenas deveres e rituais externos. Portanto, observe
cuidadosamente neste contexto essa confusão, onde eles substituem a verdadeira correção, ou
seja, o arrependimento completo, pela sombra, ou seja, as cerimônias externas de satisfação, ao
transferir o ensinamento de Paulo sobre o julgamento próprio para seus rituais de satisfação. Isso
é uma falácia, pois eles estão passando de um argumento válido em um contexto específico para
uma afirmação geral, seguindo o exemplo: “Há um homem pintado, portanto, ele é um homem”,
onde a sombra é usada como substituta do objeto real.
As satisfações também são justificadas sob o título de mortificação, pois, uma vez que existe
o preceito de mortificar a carne, a Igreja age corretamente ao impor algumas mortificações
àqueles que fazem penitência. Aqui, mais uma vez, os piedosos devem ser lembrados de
discernir entre a hipocrisia ou obras indevidas e a mortificação devida. A mortificação não é
simulada, mas um verdadeiro pesar na contrição ou uma paciência que suporta verdadeiras
aflições, como Davi quando foi repreendido por Natã, e verdadeiramente temeu a ira de Deus e
estava com um verdadeiro pesar. Em seguida, quando suportou as calamidades que se seguiram,
ele experimentou a mortificação, sobre a qual 2 Coríntios 4. 10 diz: “Trazendo sempre em nosso
corpo o morrer de Jesus”. E Romanos 6. 6 diz: “Sabendo isto, que o nosso velho homem foi com
Ele crucificado”. E Romanos 12. 1 diz: “Rogo a vocês pois, irmãos, pela compaixão de Deus,
que apresentem os seus corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o seu culto
racional”. Essas passagens falam não de uma aparência simulada, mas de um verdadeiro pesar e
verdadeira paciência, como é dito em Salmo 50. 19: “O sacrifício para Deus é o espírito
quebrantado; a um coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus”. E em 1 Pedro 5. 6:
“Humilhem-se, pois, debaixo da potente mão de Deus”. Essa paciência é um dever e um
verdadeiro culto a Deus, como mencionado anteriormente. E, uma vez que a Igreja está sujeita à
cruz, ela entende que esse culto a Deus deve ser necessariamente prestado e distingue-o muito
bem dos exercícios externos simulados ou das satisfações artificiais. Não há mortificações sem o
mandamento de Deus para infligir torturas ao corpo, como os sacerdotes de Baal que se feriam.
Esses tormentos autoinfligidos são contrários ao mandamento: “Em vão eles Me adoram,
ensinando doutrinas que são preceitos de homens”. Eles também entram em conflito com os
seguintes mandamentos: “Não mate” e “Honre seu corpo”, pois Deus quer que reconheçamos
esta nossa vida e a natureza maravilhosa de todas as partes e sentidos como Sua obra e dádiva, e
até mesmo como continente da imagem de Deus. Portanto, Ele quer que tratemos com reverência
e preservemos a natureza humana, não quer que seja manchada por pecados, nem que seja
corrompida por prazeres ou torturas. No entanto, como o pecado ainda permanece em nós,
calamidades que rapidamente destroem essa natureza mortal serão suficientes. Ele nos ordena
suportar essas calamidades, quando diz (Mateus 6. 34): “Basta a cada dia o seu mal”, ou seja,
não atraímos calamidades maiores voluntariamente, mas suportemos corretamente aquelas que
nos afligem devido à miséria do mundo, mesmo que não as tenhamos provocado. Isso é útil
observar em relação à palavra “mortificação” para que os verdadeiros pesares sejam discernidos
da hipocrisia. Além disso, há um tipo de esforço voluntário em restringir a carne, a saber, a
temperança na comida, na bebida, o zelo no trabalho, a diligência nos estudos, na oração e em
outros afazeres do chamado, reprimir os movimentos errôneos da luxúria e controlar a ira. Todas
essas são obras devidas e virtudes sobre as quais frequentemente se dá o preceito. Lucas 21. 34
diz: “Olhem por vocês mesmos, para que não aconteça que os seus corações fiquem
sobrecarregados com as consequências da libertinagem”. Romanos 6. 13: “Nem tampouco
apresentem os seus membros ao pecado por instrumentos de iniquidade”. 1 Coríntios 9. 27: “Mas
esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão”.
Esses exercícios de controle da carne devem ser ensinados, recomendados e praticados, não
como compensação pelos pecados passados, mas para evitar pecados futuros. Pois a indulgência,
o ócio e a negligência são convites para muitos vícios, como se diz: “O povo se sentou para
comer e beber e depois se levantou para se divertir”. E a vida cotidiana confirma de maneira
muito verdadeira o ditado de Ovídio (em sua obra “A Arte de Amar”, Livro II, verso 437): “As
mentes se deleitam frequentemente com coisas prósperas”. Da mesma forma, em outro lugar
(Ovídio, “A Arte de Amar”, Livro I, versos 361-362): “Enquanto os corações se regozijam e não
estão oprimidos pela dor, eles se abrem e Vênus exerce sua arte sedutora”.
A diligência em controlar a carne pode existir mesmo em pessoas não regeneradas, como no
caso de Sócrates, Pompônio Ático e outros, que demonstraram muitas virtudes, como
temperança, continência e mansidão. No entanto, para os regenerados, existem motivos
auxiliares diferentes e objetivos distintos. No caso de José, encontramos o seguinte: ele controlou
seus olhos e evitou o adultério, ao mesmo tempo em que buscava a ajuda de Deus para não ceder
às tentações. Além disso, ele direcionou sua continência para a glória de Deus, recusando-se a
manchar sua virtude com escândalos. É importante que os piedosos compreendam essa luta e,
uma vez que é uma tarefa difícil; o apóstolo Paulo a descreve sob o termo “mortificação”,
incluindo essa batalha quando ele diz (Romanos 8. 13): “Se pelo Espírito mortificarem os feitos
do corpo, certamente viverão”. Paulo não apenas instrui a coibir, como Sócrates fez, mas
também a fazê-lo pelo Espírito, ou seja, olhando para Deus, lamentando a fraqueza da natureza,
buscando a ajuda de Deus e resistindo ao Diabo. Da mesma forma, em outro lugar, ele diz:
“Mortifiquem, pois, os seus membros que estão sobre a terra; a prostituição, a impureza, a
afeição desordenada, a vil concupiscência e a avareza, que é idolatria”. Portanto, a mortificação
inclui não apenas a contenção dos desejos carnais, mas também uma profunda reverência pelo
julgamento de Deus e o domínio sobre afetos pecaminosos.
Devemos entender que esses exercícios são necessários e devem ser uma prática contínua,
não como as satisfações que eram prescritas em tempos específicos e seguindo regras rigorosas.
Portanto, a Igreja recomenda essas práticas regularmente em seus sermões. No entanto, quanto à
forma específica que cada pessoa deve seguir, isso deve ser deixado à consciência e às
circunstâncias individuais, para evitar que laços sejam impostos às consciências. A imposição de
uma forma específica, com certos alimentos e jejuns, uma vez que se trata de uma tradição
humana, se encaixa na admoestação de que “Vã é a adoração que prestam, ensinando como
doutrinas os mandamentos de homens” e não contribui muito para a temperança. Devemos
lembrar, em vez disso, do mandamento contínuo sobre temperança e continência: “Os bêbados e
os impuros não herdarão o reino de Deus”.

14. Predestinação
Quando não há uma ordem política humana perfeita, nenhum grande grupo está isento de
muitos vícios e todas as nações enfrentam suas próprias adversidades, frequentemente as mentes
humanas se questionam se alguma parte da humanidade é especialmente cuidada por Deus e qual
é essa parte. Elas questionam se Deus ouve algumas pessoas, presta auxílio a certos indivíduos
ou interfere com alguém, exceto como causa secundária em movimento. Além disso, surge a
questão mais complexa, já que a própria realidade atesta que não há impérios perpétuos e que
grandes desintegrações ocorrem em todas as nações. Diante disso, surge a questão de onde a
igreja de Deus permanecerá neste mundo.
O apóstolo João testemunhou isso em Éfeso, Esmirna e em lugares próximos. Atualmente,
nesses mesmos lugares, tudo está repleto de fúria turca que condena o evangelho, e não há sede
permanente da igreja de Deus nesta vida mortal. Mas Deus nos fortaleceu contra essas questões
com testemunhos sólidos e evidentes. Ele demonstrou por meio de milagres claros para onde
devemos olhar, a fim de nos fortalecer: como a preservação de Noé durante o dilúvio, a
libertação do povo do Egito, as missões e feitos dos profetas, a ressurreição dos mortos realizada
por Cristo, os profetas e apóstolos. Todas essas evidências testemunham que Deus cuida do
grupo ao qual esses benefícios são concedidos, e que Ele está verdadeiramente presente para
eles, realizando muitas coisas fora da ordem e movimento das causas secundárias. Portanto,
existe uma igreja de Deus, e a humanidade não foi destinada apenas à perdição e às adversidades
atuais, como frutos ou animais cuja matéria se desintegra continuamente, assumindo formas
diferentes nas sucessivas gerações e corrupções. Embora os olhos vejam que os corpos humanos
estão sujeitos à morte da mesma forma, esses milagres e a ressurreição dos mortos testemunham
que a humanidade foi concebida de maneira diferente, com propósitos distintos, e a origem do
ser humano foi revelada à igreja, assim como a causa da morte e a restauração da raça humana.
Essa doutrina deve ser contrastada com as opiniões humanas e as especulações sobre a
matéria, e devemos considerar que o benefício que Deus concedeu à raça humana ao revelar-se
através de tantas e tão ilustres evidências é tão grande quanto a própria criação do universo.
Embora as quedas constantes e significativas dos reinos sejam frequentes, devemos saber a
partir dos próprios testemunhos de Deus que a igreja de Deus perdurará. Para manter essa
consolação, é útil entender algo sobre a eleição ou predestinação.
Cristo diz em João 10. 27: “As minhas ovelhas ouvem a Minha voz, e Eu as conheço, e elas
Me seguem; e dou-lhes a vida eterna, e jamais perecerão; e ninguém as arrebatará das Minhas
mãos”. E em Efésios 1. 4 está escrito que fomos escolhidos em Cristo antes da criação do
mundo. Em 2 Timóteo 2. 19 é dito: “O fundamento de Deus está firme, tendo este selo: O Senhor
conhece os que Lhe pertencem”. Portanto, sempre haverá uma igreja dos eleitos, que Deus de
maneira maravilhosa mantém, defende e governa mesmo nesta vida, como está escrito em Isaías
46. 3-4: “Vocês foram carregados desde o ventre, suportados desde o seio materno. Até a sua
velhice Eu serei o mesmo e, ainda na idade grisalha, Eu os carregarei”. Devemos nos consolar
com essas afirmações e promessas, quando, preocupados com essas confusões e quedas dos
impérios, buscamos saber onde a igreja permanecerá.
No entanto, sempre se discutiu sobre a causa da eleição, assim como os dois irmãos Caim e
Abel discutiram sobre por que um foi preferido ao outro. O mesmo ocorreu entre Esaú e Jacó, e
frequentemente aqueles que conhecem apenas a doutrina da razão ou da lei pensam em relação à
eleição como se fosse um juiz humano, baseado na lei ou em nossos méritos e dignidade. Assim
pensavam os judeus, assim escreveram muitos escolásticos. Mas mantenhamos estas três
hipóteses.
A primeira é a seguinte: a eleição não deve ser julgada pela razão nem pela lei, mas pelo
evangelho.
A segunda é: o número total dos salvos foi eleito por causa de Cristo; portanto, a menos que
abracemos o conhecimento de Cristo, não se pode falar sobre eleição.
A terceira é: não busquemos uma causa diferente para a justificação e para a eleição. Pedro
foi eleito porque é membro de Cristo, assim como ele é justo, ou seja, agradável a Deus, porque
se tornou membro de Cristo pela fé. Portanto, assim como, quando falamos de justificação,
começamos com o evangelho ou o conhecimento da palavra do evangelho, da mesma forma, ao
falar sobre eleição, abordamos a palavra do evangelho. Devemos julgar assim, pois devemos
começar pelo conhecimento de Cristo e do evangelho.
Busquemos, portanto, a promessa na qual Deus expressou sua vontade, e saibamos que não
há outra vontade a ser buscada pela graça fora da palavra, mas que o mandamento de Deus é
imutável, para que possamos ouvir o Filho, como Ele disse: “A Ele ouçam”[124]. Essa voz abrange
todas as promessas. Portanto, que esta verdade esteja gravada em nossas mentes e que sempre
consideremos, na invocação diária, o mandamento eterno e imutável de Deus, a fim de crermos
na promessa da graça, que é a essência do Evangelho, como profetas, Cristo e apóstolos ensinam
de maneira unânime. Como está escrito em João 3. 16: “Porque Deus amou o mundo de tal
maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que n’Ele crê não pereça”; e em
João 6. 40: “Esta é a vontade do Pai, para que todo aquele que vê o Filho e crê n’Ele tenha a vida
eterna”. De fato, esta é a voz própria e principal do Evangelho.
Da mesma forma que a pregação do arrependimento é universal e condena todos, como
claramente é dito em Romanos 3: “Não há um justo sequer”, assim também a promessa da graça
é universal, como muitos testemunhos indicam.
Mateus 11. 28: “Venham a Mim todos os que estão cansados e oprimidos”; João 3. 16: “Para
que todo aquele que n’Ele crê não pereça”; Romanos 3. 22: “A justiça de Deus pela fé em Jesus
Cristo para todos e sobre todos os que creem”; Romanos 10. 12: “O mesmo Senhor de todos é
rico para com todos os que O invocam”; Romanos 11. 32: “Deus encerrou a todos na
desobediência, para com todos usar de misericórdia”; assim também Isaías em diferentes trechos
coloca as partículas universais: “Todos nós andamos desgarrados como ovelhas”, e assim por
diante. Atos 10. 43: “D’Ele todos os profetas dão testemunho de que, por meio de Seu nome,
todo aquele que n’Ele crê receberá a remissão dos pecados”. Atos 13. 39: “Por meio d’Ele é
justificado todo aquele que crê”. Essas palavras devem ser compreendidas de maneira simples:
Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Deus não
faz acepção de pessoas. Como está escrito em Deuteronômio 10. 17: “Porque o Senhor seu Deus
é Deus dos deuses, e Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e terrível, que não faz
acepção de pessoas, nem aceita recompensas”. Pois, sendo Deus justo, Ele trata igualmente os
iguais: todos são acusados por causa do pecado, mas todos os que se refugiam no Filho são
recebidos.
Depois de ter sido estabelecido que a promessa é universal, é importante também
compreender que ela é gratuita, ou seja, somos recebidos por causa do Filho de Deus, devido à
nossa dignidade, etc. Todos nós estamos envolvidos, e para usar as palavras de Paulo, todos
estão debaixo do pecado, e Paulo frequentemente enfatiza a palavra “gratuita”. Assim, Deus
entregou essa promessa aos primeiros pais imediatamente e muitas vezes a renovou e espalhou
amplamente. Na verdade, Ele a transmitiu a todas as nações através dos apóstolos, pois Ele
deseja reunir uma igreja eterna para Seu Filho. Portanto, a causa da reprovação é certamente o
pecado nos seres humanos, aqueles que não ouvem nem recebem o evangelho de forma alguma,
ou aqueles que rejeitam a fé antes de partir deste mundo. Nos casos de reprovação, a causa é o
próprio pecado deles e a vontade humana. Pois é verdade que Deus não é a causa do pecado, nem
deseja o pecado. O Salmo declara: “Tu não és um Deus que deseja a iniquidade” e em Oseias 13.
9 está escrito: “Sua destruição, ó Israel, está em Mim; mas em Mim está o seu socorro”. Saul
quis rejeitar o Espírito Santo, resistindo à Sua influência. Portanto, a causa da rejeição ou
reprovação é clara. A promessa requer fé. Por outro lado, é correto afirmar que a causa da eleição
é a misericórdia na vontade de Deus, que não deseja que toda a humanidade pereça, mas reúne e
preserva a igreja por causa do Filho. Paulo expressa isso quando cita em Romanos 9. 15: “Terei
misericórdia de quem Me aprouver ter misericórdia”. Ele nega que a eleição dos seres humanos
ocorra devido à lei ou à preeminência de sua linhagem, para que a eleição da igreja, eleita e
estabelecida por causa do Filho, seja mais evidente. No entanto, é necessário que aquele que
recebe também compreenda a promessa ou reconheça Cristo. Assim como dissemos sobre a
justificação, há uma causa no receptor, não em termos de mérito, mas porque ele apreende a
promessa, junto com a eficácia do Espírito Santo. Como Paulo afirma: “A fé vem pelo ouvir”.
Da mesma forma, sobre a eleição, julgamos a partir do posterior, ou seja, sem dúvida, aqueles
que pela fé apreendem a misericórdia prometida por Cristo são eleitos, e eles não abandonam
essa confiança até o fim.
Assim, quando foi dito em João 6. 44: “Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que Me enviou,
não o trouxer”, imediatamente segue: “Todo aquele que ouve do Pai e aprende, vem a Mim”.
Deus começa e atrai com a Sua palavra e o Espírito Santo, mas é necessário que ouçamos e
aprendamos, ou seja, compreendamos a promessa e concordemos, não resistindo, não cedendo à
desconfiança e à dúvida.
Embora muitas discussões sejam realizadas de maneira áspera, no entanto, não importa quão
grande seja o montante de debates acumulados, é necessário recorrer a esta fortaleza no
verdadeiro combate, a saber, que devemos julgar a vontade de Deus a partir da palavra expressa,
e que a promessa é universal, um mandamento eterno e imutável de Deus, ouvir o Filho e
concordar com a promessa: portanto, obedeçamos, não nos desviemos da mente, nem nos
afundemos nas trevas, buscando a eleição fora da Palavra, abandonando Cristo e negligenciando
o mandamento de abraçar a promessa. Mas tenhamos certeza, não duvidemos, que Deus
verdadeiramente revelou Sua vontade na promessa e verdadeiramente cumpre o que prometeu;
afirmemos que a promessa da graça não é uma fábula vazia, mas erguemo-nos com fé verdadeira
buscando os benefícios e consideramos que nos são concedidos os que foram propostos na
promessa. Que esta fé cresça na invocação diária, como está escrito: “Pedi, e lhes será dado”;
também: “Quanto mais seu Pai celestial dará o Espírito Santo aos que pedirem a Ele”, não
dizendo aos que desprezam ou resistem, mas aos que reconhecem a miséria e buscam auxílio;
também: “A quem tem será dado”; também: “Confirma, ó Deus, o que operaste em nós”[125]; e
Filipenses 1:6: “Aquele que começou boa obra em vocês há de completá-la até ao dia de Cristo”,
ou seja, somos auxiliados por Deus, mas devemos ouvir a palavra de Deus, não resistindo ao Seu
chamado.
Assim também a mais doce promessa é transmitida aos Filipenses 2. 13: “Porque Deus é o
que opera em vocês tanto o querer como o efetuar, segundo a Sua boa vontade”. Deus move as
mentes para que queiram, mas é necessário que não resistamos, mas sim que concordemos; e Ele
promete estar presente para que a salvação iniciada seja aperfeiçoada, para que algumas boas
obras sejam agradáveis entre os próprios seres humanos. Como que dizendo: No mundo, os
demônios e seus instrumentos se precipitam furiosamente para fazer coisas desagradáveis a
Deus, para reforçar os furores dos epicuristas, os ídolos, a opressão do evangelho, guerras
injustas, luxúrias escandalosas, roubos e mentiras que provocam a ira de Deus. E para que toda a
raça humana não seja destruída, é necessário que algumas coisas agradáveis a Deus sejam feitas.
Isso é feito pelos piedosos na igreja, ou seja, a verdadeira invocação de Deus, a confiança em
Cristo, a ação de graças, a propagação do evangelho, a tolerância da cruz, a justiça para com os
próximos, o amor à castidade, à verdade, à paz e outras virtudes. E essas boas ações são
realizadas por aqueles que buscam, como foi dito: “Ele dará o Espírito Santo aos que pedirem”.
Em Efésios 1. 4, diz: “E nos elegeu n’Ele”, para ensinar que a causa da eleição não é a nossa
dignidade, mas Cristo, para que não pensemos na eleição excluindo Cristo e o evangelho, mas
busquemos a causa da eleição na promessa de Cristo. Da mesma forma, Romanos 8. 30 diz: “E
aos que predestinou, a esses também chamou”. Essa sentença contém consolo doce, salutar e
múltiplo, mas é frequentemente negligenciada por leitores ociosos. O primeiro consolo é que
afirma que os eleitos não estão em nenhum lugar além do grupo dos chamados; somente aqueles
que ouvem, aprendem e professam o evangelho são chamados. Este grupo visível é a igreja, na
qual sempre é necessário que outros sejam eleitos e herdeiros da vida eterna. No entanto, é muito
útil para os piedosos saberem que a igreja dos eleitos está colocada dentro desta igreja visível,
para que saibamos que todos nós estamos ligados à voz e ao ministério do evangelho, e que não
devemos buscar a eleição ou revelações especiais em outro lugar. Portanto, este dito nos encoraja
a prestar atenção e aprender o evangelho, a cuidar do ministério e a amar a comunhão da igreja; e
afirma que os eleitos estão neste grupo visível.
A segunda consolação é que esta sentença adverte que a vocação não é separada do conselho
da eleição. Deus escolhe porque decidiu nos chamar para o conhecimento do Filho e deseja que
Sua vontade e benefícios sejam conhecidos pela humanidade. Ele, portanto, aprova e escolhe
aqueles que obedecem à vocação. Portanto, devemos considerar a vocação, concordar com o
evangelho e não resistir a ele; pois através disso, Deus nos atrai e, ao concordarmos, nos recebe e
ajuda de maneira certa. Como já foi dito tantas vezes, Deus age eficazmente através do
evangelho. Portanto, Agostinho, embora seja rígido nesse debate, escreveu no livro “Sobre a
Predestinação e a Graça”: “Aqueles que receberam o dom da vocação com a devida piedade e,
tanto quanto está no poder humano, mantêm em si os dons de Deus, Ele ajuda”.
Uma terceira consolação reside no fato de que esta declaração testemunha que há
verdadeiramente Deus presente neste conjunto visível de chamados, e que Ele é eficaz dentro
deste grupo chamado e visível. Na verdade, essas palavras nos convencem disso: “Aqueles a
quem Ele chama, Ele também justifica; e aqueles a quem Ele justifica, Ele também glorifica”[126].
Portanto, o leitor deve observar nesta doutrina a respeito da igreja, da presença de Deus nesta
igreja visível e da conexão entre eleição e chamado.
Portanto, por que não desviamos nossos olhos e mentes da promessa universal e nos
incluímos nela? Devemos reconhecer que a vontade de Deus está verdadeiramente expressa nela,
como Paulo nos leva a entender ao dizer: “Não digas no seu coração: Quem subirá ao céu?”[127].
Não precisamos procurar sem a palavra de Deus a Sua vontade, pois a palavra está próxima de
nós, em nossos lábios e corações. O capítulo 9 de Romanos não difere dessa ideia que apresentei,
e essa consolação é docemente amparadora para as mentes piedosas. Assim como os pontífices
judaicos da época condenavam os apóstolos devido à sucessão e à lei ordinária, assim também os
pontífices e outros que defendem os erros deles, se vangloriam de ser a verdadeira igreja de Deus
devido ao título ou à chamada “sucessão ordinária”. Eles transferem para si as promessas e
afirmam que a igreja não pode errar, condenam e perseguem os outros, abraçam a pureza do
evangelho e afirmam que estão enriquecidos e guerreiam contra a igreja. Contra essa aparência
de sucessão ordinária, a doutrina e a consolação apresentadas no capítulo 9 de Romanos são
necessárias.
E uma dupla consolação é apresentada: Aprendemos o que é a verdadeira Igreja, ou seja, a
congregação que crê no Filho de Deus. Além disso, somos advertidos de que essa verdadeira
igreja não está vinculada ao título ou à sucessão ordinária dos pontífices e colégios. Então
entendemos que a lei não é a causa da eleição, mas que a misericórdia é oferecida a todos que
aceitam o Filho de Deus; além disso, é declarado explicitamente que a causa da reprovação é a
obstinação contra o Filho. Por que Israel, seguindo a lei da justiça, não se aproximou da lei da
justiça? Porque, diz ele, eles não o fizeram pela fé, mas como pelas obras da lei, ou seja, eles são
rejeitados porque não querem ouvir o Filho e concordar com a promessa, e alegam como motivo
que defendem a justiça da lei, parecendo que a glória é tirada das obras.
Portanto, quando, cegos em seu erro, resistem ao evangelho, a causa da reprovação está
neles, como é claramente afirmado no capítulo 10 de Romanos: “Todo o dia estendi as minhas
mãos a um povo rebelde”. Aqui Deus confirma que oferece o benefício a todos, mas os rebeldes
não o recebem. Mas, ao contrário, diz suavemente: “Não depende do que quer, nem do que corre,
mas de Deus, que se compadece”. Ou seja, a misericórdia é a causa da eleição, e isso deve ser
revelado pela Palavra e aceito. Portanto, a universalidade é expressamente apresentada, a mesma
ideia repetida em ambos os capítulos: “Todo aquele que crê no Filho não será confundido”.
Portanto, deseja-se que, ao consentirmos com a misericórdia, também recebamos a apreensão da
promessa.
Que também os estudiosos saibam que a expressão hebraica nas palavras “Eu endurecerei o
coração de Faraó” significa permissão; “Eu permitirei que endureça”, como na oração diária:
“Não nos deixes cair em tentação”. E há exemplos em abundância que testemunham que essa
frase hebraica frequentemente significa permissão.
Há uma grande obscuridade nas mentes dos seres humanos quando pensam em Deus;
frequentemente as pessoas têm imaginações epicuristas ou estoicas. Muitos imaginam que Deus
não se importa com os seres humanos; outros imaginam que Deus está sentado no céu
escrevendo leis fatais, como nas tábuas das Parcas, distribuindo virtudes e vícios de acordo com
Sua vontade, como os estoicos acreditavam em seu destino, e imaginam que Páris e outros são
impelidos por um movimento fatal. No entanto, deixando de lado esses delírios da escuridão
humana, devemos direcionar nossos olhos e mentes para os testemunhos sobre Deus
apresentados. Devemos compreender que Deus age verdadeiramente com liberdade e deseja
apenas coisas boas, não deseja o pecado, e Ele expressou e revelou essa vontade por meio de
testemunhos claros e impressionantes, como a ressurreição dos mortos e outros, e nos ligou ao
Seu evangelho, no qual Cristo diz (Mateus 11. 28): “Venham a Mim todos os que estão cansados
e oprimidos, e Eu os aliviarei”. Ele recebe livre e verdadeiramente aqueles que se refugiam no
Filho, cumprindo Sua promessa, e permite que aqueles que rejeitam o Filho caiam na terrível ira.
Portanto, vamos afastar as discussões estoicas de Paulo, que subvertem a fé e a invocação.
Como pode Saul crer ou invocar quando ele duvida que a promessa se aplica a ele, ou quando
aquela tábua das Parcas intervém? Já foi decretado que você deve ser rejeitado, você não está
escrito no número dos eleitos, etc. Contra essas imaginações, aprendamos a vontade de Deus a
partir do evangelho, reconhecendo que a promessa é universal, para que a fé e a invocação
possam ser acendidas.
Além disso, sobre o efeito da eleição, retenhamos esta consolação: Deus, que deseja que
todo o gênero humano não pereça, está sempre chamando, atraindo e reunindo a igreja por
misericórdia, por causa do Filho, e recebendo aqueles que assentem, e Ele sempre quer que haja
algo de Sua igreja, a qual Ele ajuda e salva, como Cristo diz: “Minhas ovelhas ouvem a Minha
voz; Eu as conheço, e elas Me seguem; dou-lhes a vida eterna, e jamais perecerão”. É útil saber
sobre o efeito da eleição para que possamos afirmar que somos ouvidos e ajudados, e para
sabermos que a igreja não pode ser destruída pelo diabo. Essa afirmação indica um grande
conflito: “ninguém as arrebatará da Minha mão”. Portanto, despertemos a fé e invoquemos o
Filho de Deus, que serve Suas ovelhas, pois Ele diz ao mesmo tempo: “Elas Me ouvem e Me
seguem”.

15. O Reino de Cristo


O Evangelho ensina claramente que o reino de Cristo é espiritual, isto é, que Cristo está à
direita do Pai, intercedendo por nós, concedendo o perdão dos pecados e o Espírito Santo àqueles
que creem n’Ele e invocam a Deus com fé n’Ele. Ele os santifica para ressuscitá-los no último
dia para a vida e a glória eterna. Para recebermos esses benefícios, Deus ordenou o ministério do
Evangelho, pelo qual as pessoas são chamadas a conhecer Cristo. E o Espírito Santo age
eficazmente através do Evangelho. Entretanto, antes do último dia, a Igreja sofrerá perseguição
no mundo, e pessoas más estarão misturadas com as boas na Igreja. Esta é a verdadeira e genuína
doutrina do Evangelho sobre o reino de Cristo e a Igreja. É condenável e digna de reprovação o
erro dos anabatistas judaizantes que afirmam que a Igreja, antes do último dia, se tornará uma
entidade política terrena na qual os justos reinarão, eliminarão os ímpios pela força e tomarão o
controle de todos os governos, etc.
Portanto, vamos reunir testemunhos do reino espiritual não apenas para refutar os espíritos
fanáticos, mas também porque é benéfico tê-los à nossa vista, para nos confortar e nos inspirar a
realizar práticas espirituais, a fortalecer nossa fé, a nos envolver em oração e a praticar a
penitência. Pois esse erro judaico, entre seus muitos problemas, tem também o efeito de
obscurecer e até mesmo de sufocar consolações espirituais, apagando práticas espirituais. Isso
acontece porque as mentes humanas, enquanto esperam apenas por esses novos mandamentos,
esquecem-se das realidades espirituais e são oprimidas pelo desespero quando o tão esperado
descanso que imaginaram não acontece.

QUE O REINO DE CRISTO É ESPIRITUAL.


João 17. 2 diz: “Assim como Lhe deste autoridade sobre toda a humanidade, para que
conceda a vida eterna a todos os que Lhe deste”. E continua: “E a vida eterna é esta: que Te
conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”. Neste versículo, Jesus
testemunha que o seu benefício e reino são a vida eterna e define o que é a vida eterna, ou seja,
não se trata de algum tipo de domínio terreno, mas sim do conhecimento verdadeiro e fervoroso
de Deus e de Jesus Cristo, a quem Ele enviou.
Romanos 8. 34 diz: “Ele é quem está à direita de Deus e intercede por nós”. Isaías 11. 10
afirma: “Naquele dia a raiz de Jessé se destacará como estandarte entre os povos; os gentios
buscarão a Sua presença”.
Essas passagens descrevem o sacerdócio e o reino de Cristo, testemunhando que ambos são
espirituais. Isso significa que Cristo não estabeleceu algum tipo de domínio terreno, mas, em vez
disso, Ele intercede por nós diante do Pai, reinando de tal forma que deseja ser invocado, ouvido
e santificar aqueles que O invocam com o Espírito Santo. Como também está escrito em outras
passagens da Bíblia, como Romanos 8. 14, que diz: “Pois todos os que são guiados pelo Espírito
de Deus são filhos de Deus”. E em Jeremias 31. 33: “Mas este é o pacto que farei com a
comunidade de Israel depois daqueles dias”, declara o Senhor. “Porei a Minha lei no íntimo deles
e a escreverei nos seus corações. Serei o Deus deles, e eles serão o Meu povo”. Esses benefícios
são obscurecidos quando esperamos um reino terreno, etc.
Romanos 8 (versículo 17): “Somos herdeiros de Cristo, desde que também soframos com
Ele, para que também sejamos glorificados com Ele”. Além disso (Romanos 8, versículo 24):
“Pela esperança somos salvos”. Também (ibid., versículo 29): “Aqueles que Ele predestinou, Ele
também os chamou à semelhança do Filho d’Ele”. Também (ibid., Versículo 36): “Por Tua
causa, somos mortos o dia todo; somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro”,
etc. Essas passagens testemunham que a glorificação não ocorre agora, mas que devemos
suportar aflições e perseguições nesta vida. Mateus 16 (versículo 24): “Se alguém quiser Me
seguir, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e Me siga”. João 16 (versículo 22): “Neste mundo,
vocês terão aflições”. E 2 Timóteo 3 (versículo 12): “Todos os que desejam viver piedosamente
em Cristo sofrerão perseguição”. Essas passagens ensinam claramente que a Igreja está sujeita a
aflições nesta vida. Colossenses 3 (versículo 3): “A vossa vida está escondida com Cristo em
Deus; quando Cristo se manifestar, que é a sua vida, então também se manifestarão com Ele em
glória”. 1 João 3 (versículo 2): “Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou
o que havemos de ser, mas sabemos que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele,
pois o veremos como Ele é”, etc. Este trecho também ensina que a glória do reino de Cristo não é
um domínio terreno, mas espiritual, ou seja, que ressuscitaremos para uma justiça e vida novas e
eternas, como a glória da ressurreição de Cristo.
Paulo também declara claramente que o Anticristo dominará até o último julgamento, no
qual Cristo, ao voltar, destruirá o reino do Anticristo. Portanto, a verdadeira Igreja não buscará
impérios, mas enfrentará perigos e aflições muito maiores. E em 2 Pedro 3 (versículo 3), é dito
que haverá zombadores nos últimos tempos que ridicularizarão publicamente a religião.
Portanto, haverá aqueles que perseguirão a Igreja. E Daniel claramente diz que as bestas, ou seja,
os impérios, serão lançados no fogo quando Cristo aparecer para julgar. Portanto, alguns
impérios ímpios persistirão até o último dia.
Em João 20 (versículo 20), quando Cristo envia os Apóstolos, Ele lhes dá apenas o
mandamento de ensinar, e diz: “Assim como o Pai Me enviou, Eu também os envio”. É claro que
Cristo foi enviado para o ministério do Evangelho, não para ocupar impérios mundanos, como
Ele mesmo diz (João 18, versículo 36): “O Meu reino não é deste mundo”. E Ele proíbe os
Apóstolos de conquistar impérios, dizendo (Lucas 22, versículo 25): “Os reis das nações
dominam sobre elas, mas vocês não devem ser assim”. Da mesma forma, em Mateus 5 (versículo
39), Ele diz: “Eu, porém, lhes digo que não resistam ao mal”, ou seja, não peguem em armas
com o pretexto de estabelecer o Evangelho e o novo reino. Portanto, os Apóstolos foram
enviados para o ministério do Evangelho, ou seja, para ensinar, não para conquistar impérios
mundanos.
Portanto, Paulo diz: “O Evangelho é o ministério do Espírito”, ou seja, o Evangelho oferece
bens espirituais e eternos, não estabelecemos novos impérios mundanos. E em 2 Coríntios 10
(versículo 4), ele diz: “As armas da nossa milícia não são carnais, mas poderosas em Deus para a
demolição de fortalezas”, etc. Além disso, em 2 Coríntios 5 (versículo 20), diz: “Portanto, somos
embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio; rogamos a
vocês, pois, em nome de Cristo, que vocês se reconciliem com Deus”. Também: “Não
dominamos sobre a sua fé”.
Portanto, uma vez que os Apóstolos têm apenas o mandamento de ensinar, é ímpio pensar
que os mestres do Evangelho devem estabelecer novos impérios por meio da força, como os
judeus e os anabatistas imaginam. Eles acreditam que nos últimos tempos o Reino de Deus deve
ser estabelecido na terra, onde os santos governarão e usarão a força para destruir todos os
ímpios, e que na Igreja não haverá mais hipócritas. Esse delírio judaico frequentemente infiltrou-
se na Igreja. Pois houve também no passado espíritos fanáticos, os milenaristas e os pepusianos,
que sonharam com um reino semelhante ao anabatista.
Resta-nos reunir os testemunhos que ensinam que, na Igreja, bons e maus coexistirão até o
último dia. Lucas 17 (v. 28): “Como aconteceu nos dias de Ló, assim também será no dia em que
o Filho do Homem se manifestar”. E também (v. 34): “Naquela noite, estarão dois numa cama:
um será levado e o outro será deixado”. Mateus 13 (v. 30) sobre o joio: “Deixem-nos crescer
juntos até à ceifa...”. E logo depois (v. 39, 41): “A ceifa é o fim do mundo; e os ceifeiros são os
anjos... os quais tirarão do seu reino todos os escândalos e os que cometem iniquidade”. Também
(v. 49 e seguintes): “Assim será na consumação do século: sairão os anjos, e separarão os maus
dentre os justos, e os lançarão na fornalha de fogo...”. Essas passagens testemunham que a
separação dos santos dos hipócritas não acontecerá senão no último julgamento.
Quanto ao argumento frequentemente citado por judeus e anabatistas, que se baseiam em
passagens dos profetas que, ao falar do reino de Cristo, frequentemente usam metáforas retiradas
do contexto dos impérios terrenos, a minha primeira resposta é que o Evangelho é a interpretação
das profecias. Uma vez que o Evangelho claramente ensina que o reino de Cristo é espiritual,
oferecendo bens espirituais e eternos, e não busca dominar o mundo, mas, pelo contrário,
suportar a perseguição, devemos interpretar os profetas à luz do Evangelho. Portanto, os
Apóstolos nos Atos dos Apóstolos claramente transferem as declarações sobre o reino prometido
a Davi para este reino espiritual sujeito à perseguição, etc. E Cristo repreendeu os próprios
Apóstolos quando eles ainda mantinham crenças judaicas e acreditavam que iriam conquistar os
impérios terrenos.
Em segundo lugar, os próprios profetas, embora usem diversas metáforas, ainda assim
testemunham claramente que o reino de Cristo é espiritual. Daniel afirma claramente que Cristo
será morto (Daniel 9. 26), e Isaías diz que Ele entregará Sua alma pelos pecados (Isaías 53. 10).
Portanto, Ele não terá domínio corporal nesta vida. Além disso, eles afirmam que o reino de
Cristo é eterno, mas não há governo terreno eterno nesta vida. Portanto, as metáforas de governo
terreno, às vezes usadas para se referir ao reino eterno de Cristo, devem ser entendidas de forma
alegórica. Este reino eterno começa nesta vida em Espírito e fé e dura perpetuamente após esta
vida. Portanto, os profetas às vezes falam de tal forma que não distinguem entre as épocas desta
vida e da vida futura. Às vezes, no entanto, eles fazem essa distinção e profetizam claramente
que a Igreja sofrerá perseguições nesta vida. Como o Salmo 2 (v. 2) ensina: “Os reis da terra se
levantam, e os príncipes conspiram contra o Senhor e contra o Seu ungido”. E o Salmo 115 (v.
15): “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos”. Isaías também descreve
lindamente a Igreja nesta vida em Isaías 30 (v. 20): “O Senhor lhes dará pão em angústia e água
em medida, e aquele que lhes ensina não se esconderá mais”. Aqui ele testemunha que a Igreja
será preservada, mas ainda assim passará por aflições.
Daniel profetiza claramente sobre a perseguição que ocorrerá antes do último dia (Daniel 11.
33): “Aqueles que são sábios entre o povo ensinarão a muitos, mas cairão à espada”. E
imediatamente depois, segue-se (Daniel 12. 1 e seguintes): “Naquele tempo, o seu povo será
salvo, todos os que estiverem escritos no livro. E muitos daqueles que dormem no pó da terra
acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbrio eterno”.
Esses trechos e outros semelhantes devem ser mantidos para que possamos encontrar
consolo nas tribulações e compreender verdadeiramente o reino espiritual. Isso significa buscar
consolações espirituais e fortalecer nossa fé. Além disso, esses trechos claramente refutam a
crença judaica e fanática de que os santos dominarão fisicamente nesta vida.
16. A Ressurreição dos Mortos
Não apenas a doutrina que afirma a futura ressurreição de todos os seres humanos, o
subsequente julgamento, a vida eterna, a glória eterna dos justos e as punições eternas dos ímpios
foi claramente e inequivocamente transmitida no evangelho ou na pregação do Novo
Testamento, mas essa realidade também foi iniciada. Os primeiros passos dessa nova vida, na
qual haverá uma nova luz, sabedoria e justiça, sem pecado e sem morte, foram revelados aos
apóstolos e à comunidade que estava unida a eles. Isso ficou visível quando Cristo ressuscitou
dos mortos após a morte, e muitos outros pais e profetas também foram ressuscitados e
apareceram publicamente diante de todos.
Esse trabalho admirável não foi proposto em vão à Igreja. Cristo quis que essa ressurreição,
bem como os familiares encontros e conversas durante os quarenta dias com os apóstolos e o
restante da comunidade unida a eles, fossem um testemunho claro e evidente da ressurreição e da
vida eterna. Se pensássemos nisso com mais frequência, não apenas a nossa concordância ou fé
neste artigo seria fortalecida em nossos corações, mas também suportaríamos mais facilmente as
tribulações desta vida brevíssima e efêmera, olhando para a comunhão mais agradável de Cristo
e dos ressuscitados.
A dúvida dos quarenta dias foi removida, ou seja, pela convivência e pelos inúmeros
encontros com as pessoas. Não devemos imaginar que Cristo e os outros ressuscitados, quando
apareceram aos apóstolos, desapareceram de repente como visões passageiras. Pelo contrário,
houve encontros frequentes e duradouros, e conversas familiares sobre este grande feito de Deus,
sobre a restauração da natureza humana, sobre a glória tão grandiosa concedida a nós através do
Filho, sobre a propagação do evangelho entre as nações, e, finalmente, testemunhos claros de
vida e alegria foram dados. Nada semelhante ou maior já ocorreu em qualquer época do mundo.
E uma vez que Deus nos mostrou esse evento tão grandioso, não foi em vão que contemplamos
esta escola desses quarenta dias.
Por isso, busquemos testemunho também de muitas outras coisas e da ressurreição e da vida
eterna; e também retenhamos as palavras claras nas pregações de Cristo, como Mateus 25. 34:
“Vinham, benditos de Meu Pai, tomem posse do reino que lhes está preparado”; e João 5 e 6. 40:
“Esta é, porém, a vontade de Meu Pai, que Me enviou, que todo aquele que vê o Filho e crê n’Ele
tenha a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia”; e Paulo, em 1 Coríntios 15, argumenta
fortemente e ilustra esplendidamente este artigo. Mas, como as palavras nos escritos apostólicos
são conhecidas, reunamos os antigos testemunhos dos profetas, para que se veja a opinião
perpétua da igreja dos pais, profetas e apóstolos sobre este artigo e o consenso de toda a igreja de
Deus.
Isaías 26 (versículos 19-20) diz o seguinte: “Os Teus mortos e também o meu cadáver
viverão e ressuscitarão; despertem e exultem, os que habitam no pó, porque o Teu orvalho, ó
Deus, será como o orvalho de vida, e a terra dará à luz os mortos. Vá, povo Meu, entre nos seus
quartos e fecha as suas portas sobre si; escondam-se só por um momento, até que passe a ira”.
Este trecho da Escritura fala claramente sobre a ressurreição dos mortos, a alegria dos santos, o
castigo dos ímpios e a aflição presente da Igreja. Portanto, merece ser cuidadosamente
considerado. Diz que “os Teus mortos viverão”, referindo-se aos santos mortos de Deus, para
mostrar que a Igreja está sendo afligida aqui por causa de Deus. É como se dissesse: “Teus filhos
e aqueles que foram mortos por Tua causa, aqueles que Te são preciosos, viverão novamente”. E
qual será a natureza da vida eterna? Ele diz “exultem”, ou seja, os piedosos experimentarão a
alegria eterna, um conhecimento perfeito de Deus e perfeita justiça, sem pecado e morte; eles
florescerão continuamente como os campos que florescem com o orvalho.
Em seguida, ele traz conforto em relação às aflições, dizendo que a Igreja deve ser afligida e
suportar a morte por um curto período de tempo. Eles estarão fechados em seus quartos, o que
significa que serão preservados na Igreja e na Palavra até o dia do julgamento. Depois, ele fala
sobre o castigo dos ímpios e repete a declaração sobre a ressurreição, afirmando que a terra não
mais encobrirá os seus mortos.
Isaías 66 (versículos 22-24) diz o seguinte: “Porque, como os novos céus, e a nova terra, que
hei de fazer, estarão diante da Minha face, diz o Senhor, assim há de estar a sua posteridade e o
seu nome. E será que desde uma lua nova até à outra, e desde um Sabá até ao outro, virá toda a
carne a adorar perante Mim, diz o Senhor. E sairão, e verão os cadáveres dos homens que
prevaricaram contra Mim; porque o seu verme nunca morrerá, nem o seu fogo se apagará; e
serão um horror para toda a carne”. Este trecho descreve tanto as punições eternas dos ímpios
quanto as alegrias dos justos, além de indicar a natureza da vida eterna. Diz que haverá um culto
perpétuo ao Senhor, uma adoração contínua, ou seja, um conhecimento contínuo de Deus e uma
justiça eterna sem pecado ou morte. Isso significa que a vida eterna será caracterizada pela
adoração constante e pela presença contínua de Deus, onde os santos O conhecerão plenamente e
viverão em justiça eterna. Ao mesmo tempo, descreve as punições eternas dos ímpios, onde seus
vermes nunca morrerão e seu fogo nunca se apagará, o que representa uma condenação eterna e
indizível para aqueles que se voltam contra Deus.
Isaías 65 (versículos 17-20) diz o seguinte: “Pois eis que Eu crio novos céus e nova terra; e
não haverá mais lembrança das coisas passadas, nem mais se recordarão. Mas vocês folgarão e
exultarão perpetuamente no que Eu crio; porque eis que crio Jerusalém para exultação, e o seu
povo para júbilo. E exultarei em Jerusalém, e folgarei no Meu povo; e nunca mais se ouvirá nela
voz de choro nem voz de clamor. Não haverá mais nela criança de poucos dias, nem velho que
não cumpra os seus dias; porque o menino morrerá de cem anos; mas o pecador de cem anos será
amaldiçoado”.
Outras passagens bíblicas fornecem esclarecimentos adicionais sobre esse assunto. No
entanto, todas elas testemunham que haverá uma futura renovação de toda a criação e que os
justos desfrutarão de alegrias eternas. Isaías 65. 19 afirma: “Não se ouvirá mais nela voz de
choro”, sugerindo que não haverá mais sofrimento, pecado ou morte na nova ordem. Isaías 65.
20 continua: “Não haverá mais nela criança de poucos dias, nem velho que não cumpra os seus
dias; porque o menino morrerá de cem anos, mas o pecador de cem anos será amaldiçoado”.
Esses versículos destacam que aqueles que perseveram na impiedade serão amaldiçoados,
enquanto os justos desfrutarão de uma vida longa e saudável.
Esses textos também indicam que a Igreja passará por aflições antes da ressurreição, mas
será glorificada primeiramente após a ressurreição e a renovação de toda a criação. Isso reforça a
ideia de que o reino de Cristo é espiritual e que não haverá um governo terreno antes da
ressurreição, refutando conceitos equivocados mantidos por alguns grupos religiosos, como os
judeus e anabatistas.
Isaías 25. 7-8 (v. 7 e seguintes) expressa de forma clara: “E devorará a este monte a coberta
com que todos os povos estão cobertos e o véu com que todas as nações se ocultam. Ele destruirá
a morte para sempre; e o Senhor Deus enxugará as lágrimas de todos os rostos, e tirará de toda a
terra o opróbrio do Seu povo”. Este trecho ensina de maneira evidente que a morte será abolida e
que o povo de Deus será libertado da vergonha e das lágrimas, que representam o pecado, a
morte e as perseguições. Quando menciona “a coberta” e “o véu com que todas as nações se
ocultam”, isso também pode ser entendido como uma referência à morte, já que os mortos
costumavam ser envolvidos em panos quando eram sepultados. Portanto, esses “envoltórios”
serão removidos, ou seja, a morte será eliminada.
Isaías 24 (v. 21): “E acontecerá naquele dia que o Senhor visitará o exército dos céus e os
reis da terra. Eles serão reunidos como prisioneiros em um fosso e trancados em uma prisão. E
depois de muitos dias, eles serão visitados; a lua ficará envergonhada, e o sol será confundido
quando o Senhor reinar”, etc. Isaías 35 (v. 10): “Os resgatados pelo Senhor voltarão a Sião com
louvor e alegria eterna; eles encontrarão alegria e felicidade, e a tristeza e o gemido
desaparecerão”. Isaías 9 (v. 6): O Cristo é chamado o “Pai da eternidade”, ou seja, o autor da
vida eterna. Daniel 12 (v. 2): “E muitos daqueles que dormem no pó da terra acordarão, alguns
para a vida eterna, outros para o opróbrio e a vergonha eterna”. Oseias 13 (v. 14): “Eu os
resgatarei do poder da morte”; Ezequiel 37 (v. 12): “Eis que vou abrir os seus sepulcros e os farei
sair deles, ó Meu povo”, etc. Ezequiel 33 (v. 11): “Assim como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não
desejo a morte do pecador, mas que o ímpio se converta do seu caminho e viva”.
As várias passagens dos profetas apontam para o Reino eterno de Cristo e dos Santos.
No Salmo 16 (v. 9): “Por isso, meu coração se alegra, minha alma exulta; meu corpo repousa
tranquilo”. A referência aqui é a Cristo, mas também abrange os membros de Cristo. O profeta
reconhece que, por meio de Cristo, o reino do pecado e da morte é destruído.
Salmo 22 (v. 29): “Comerão e se fartarão os ricos, e adorarão o Senhor todos os que a Ele se
curvam. Diante d’Ele se prostrarão todos os que descem ao pó, aqueles que não podem reter a
própria vida”. Este versículo indica que, mesmo que os pecadores não sejam punidos nesta vida,
eles serão punidos após a morte. Em contrapartida, os santos serão abençoados após esta vida.
Salmo 33 (v. 22): “A morte do ímpio é a pior morte”. Isso implica que os ímpios serão
punidos após a morte. Por outro lado, o Salmo 116 (v. 15) diz: “Preciosa é à vista do Senhor a
morte dos Seus santos”. Portanto, os santos desfrutarão de bem-aventurança após esta vida.
Também é importante considerar a afirmação de que o Senhor livrará os justos de muitas
tribulações (Salmo 34).
No Salmo 49, a sorte dos ímpios e dos justos é comparada. Sobre os ímpios, diz-se (v. 15,
20): “Como ovelhas, são destinados à sepultura; a morte os devorará. No túmulo deles se
desfarão, e a morada deles será a própria sepultura”. Isso sugere uma condição contínua de
punição. Em contraste, sobre os justos, afirma-se (v. 16): “Mas Deus redimirá a minha vida da
sepultura; com certeza Ele me receberá”. Isso aponta para um estado de bem-aventurança após a
morte.
Finalmente, no Salmo 4 (v. 8): “Em paz me deito e logo adormeço, pois só Tu, Senhor, me
fazes viver em segurança”. Esta passagem indica que os justos encontrarão descanso e paz após a
morte.
Todas as passagens sobre o reino eterno de Cristo também se aplicam aqui. Jó 19 (v. 25):
“Eu sei que o meu Redentor vive, e que no fim se levantará sobre a terra. Depois que a minha
pele estiver destruída, ainda em minha carne verei a Deus. Eu mesmo O verei com os meus
próprios olhos; eu O verei, e não outro. Como anseia no íntimo de meu ser!”. Este é um versículo
notável que testemunha que não receberemos os mesmos corpos, mas corpos renovados, como
Paulo ensina. Além disso, ele revela como será a vida eterna, ou seja, o conhecimento de Deus.
Ele também argumenta a partir de Moisés: “Eu sou o Deus de Abraão, etc.”. Portanto
Abraão vive; porque Deus não se importa com coisas que não são nada.
E podemos raciocinar da mesma forma a partir das promessas e exemplos, nos quais este
artigo sobre a vida eterna está, por assim dizer, envolto; como Deus prometeu que Ele protegeria
Abraão e outros Santos (Gênesis 15. 1): “Eu sou o seu escudo, etc.”. No entanto, os santos nesta
vida são muito afligidos e parecem abandonados, embora verdadeiramente sejam cuidados por
Deus. Portanto, resta outra vida e uma grande glória, na qual serão glorificados após esta vida.
Ao contemplarem isso, todos devem considerar todas as injúrias, aflições e calamidades como
indignas e de forma alguma comparáveis a essa grande recompensa.
Também na primeira pregação, diz em Gênesis (capítulo 4, versículo 7): “Se fizer bem, não
é certo que será aceito? Mas se não fizer bem, o pecado jaz à porta, e para você será o seu desejo,
e sobre ele deve dominar”. Portanto, é necessário que haja outra vida, na qual Abel receba a
recompensa. Segue-se a isso que haverá um julgamento de todos os pecados, inclusive daqueles
que não foram punidos nesta vida. Um exemplo desse julgamento universal é o Dilúvio, bem
como a destruição de Sodoma e histórias semelhantes, nas quais Deus sem dúvida punirá os
pecados de todos.
Enoque e Elias foram traduzidos vivos para Deus, como claramente diz o texto sobre
Enoque. Esses eventos são, com certeza, testemunhos evidentes da vida eterna. Pois, se eles
fossem aniquilados, não estariam na presença de Deus. Estar na presença de Deus é viver uma
vida divina com Deus. Portanto, esses exemplos são mais poderosos do que se a promessa fosse
apenas verbal e sem exemplos. Não há dúvida de que os santos patriarcas explicaram
amplamente tanto as promessas quanto esses exemplos.
Os diálogos dos anjos com Abraão e outros pais também testemunham outra vida. Eles
indicam que os anjos nos consideram parceiros dessa vida eterna na qual eles mesmos estão,
porque cuidam de nós e nos defendem, entre outras coisas.
No livro de Números 23 (versículo 10), Balaão diz: “Que eu possa morrer a morte dos justos
e que meu fim seja como o deles”. E em Números 24 (versículo 17): “Eu O vejo, mas não agora;
eu O contemplo, mas não de perto”.

17. O Espírito e a Letra


Ao refletir sobre a distinção entre o Antigo e o Novo Testamento, entre a letra e o espírito,
todas as coisas se tornam mais claras quando contemplamos com a mente a consumação de nossa
libertação, como mencionamos anteriormente. Quando pensamos na ressurreição de Cristo e dos
outros ressuscitados, que naquele momento foram agraciados com uma nova e eterna glória,
vemos no próprio ato de ressuscitar o Evangelho, a Luz, a Sabedoria, a Justiça e a Vida eterna
sendo trazidos, não apenas revelando sombras passageiras.
Portanto, a letra representa qualquer doutrina, pensamentos, hábitos, disciplina e boas
intenções, sem o Espírito Santo, ou seja, sem um verdadeiro temor e fé genuína, ou confiança
que console a mente por meio do conhecimento e invocação de Cristo.
Neste contexto, espírito refere-se ao verdadeiro Espírito Santo que inicia e aperfeiçoa nos
homens novas luzes, sabedoria, justiça e vida eterna nos corações, agradando a Deus e
inflamando os movimentos do Espírito Santo, como o temor, a fé, a invocação e o amor. Esse
Espírito permite que as pessoas desfrutem da presença de Deus e O celebrem, transformando-as
em seres espirituais que compartilham a natureza divina. O texto destaca a ênfase na procedência
do Espírito Santo a partir da vontade eterna do Pai e do Filho, que acende uma luz divina,
sabedoria, justiça e vida de acordo com a vontade divina. Além disso, é mencionado que, quando
confrontados com o temor da ira de Deus, as pessoas podem ser elevadas pela fé e pela
consolação, reconhecendo a misericórdia concedida por meio de Cristo. Isso resulta em uma
verdadeira comunhão com Deus, onde a ira e a misericórdia são sentidas, e a luz do Espírito
Santo permeia a experiência. Por outro lado, a hipocrisia de Saul e a verdadeira fé de Davi são
contrastadas, mostrando como a mente de Saul é como “letras mortas” e “sombras”, carentes da
confiança na presença e no auxílio divinos, resultando em dúvidas sobre se eles são vistos,
ouvidos e ajudados por Deus.
Esses pensamentos, carentes da luz divina e em conflito com a luz da fé, são como sombras
condenadas à extinção. Por outro lado, em Davi, seja como um guerreiro ou em atos de
sacrifício, sempre existe um profundo senso de temor a Deus, uma fé que consola a mente e a
certeza de que Deus está presente, governando e apoiando esse chamado. Esses movimentos têm
sua origem no Espírito Santo e verdadeiramente reconhecem a Deus. Eles não são sombras
fugazes destinadas à morte, mas representam o início da vida eterna. Davi busca que essa luz seja
acesa e aumentada, como quando ele pede: “Cria em mim um coração puro, ó Deus”,
significando um coração que compreende corretamente Deus, reconhecendo Sua ira e Sua
prometida misericórdia, e estabelecendo que Deus nos vê verdadeiramente, nos ouve, nos ajuda,
nos protege e nos salva. Além disso, ele pede que seu espírito seja renovado e fortalecido, para
que essa luz divina, que vem de Deus, não seja apagada pelas artimanhas do Diabo, pelas
dúvidas epicuristas ou acadêmicas que muitos sábios sucumbem. Em suas súplicas, ele busca
uma ordem: primeiro a luz para reconhecer verdadeiramente a Deus e a firmeza em Sua
compreensão, depois a renovação e orientação em suas ações, e finalmente a consolação e
sustentação nas tribulações.
Portanto, quando essa luz está acesa na mente de Davi, todas as suas boas ações, tanto
internas quanto externas, morais, políticas e cerimoniais, são ações do Espírito Santo, não são
letras ou sombras. Por outro lado, no hipócrita Saul, que está sem a luz do Espírito Santo e
oprimido por dúvidas hipócritas ou acadêmicas, todas as ações, tanto internas quanto externas,
boas intenções e obras, sejam morais, políticas ou cerimoniais, são letras e sombras moribundas,
incapazes de iniciar a vida eterna.
Essa é a opinião de Paulo em 2 Coríntios 3. 6-8, quando ele chama a Lei de “letra” e o
Evangelho de “espírito”. Ele percebe que a Lei, sem o conhecimento do Evangelho, produz
apenas disciplina, ou seja, a justiça da razão humana, como a de Pompónio Ático, ou dos
hipócritas que invocam a Deus sem verdadeiro temor e fé na compreensão de Cristo, não sendo
nada além de letra, ou seja, uma sombra que não traz vida. Quanto aos terrores, como no caso de
Saul, é evidente que mentes aterrorizadas pela compreensão da ira de Deus, quando não são
elevadas pela voz do Evangelho, tendem a fugir de Deus e cair na desesperação e na perdição
eterna.
Mas o Evangelho é o ministério do Espírito. Não pode haver nada mais doce e agradável do
que essa afirmação. Ela claramente declara que, pela pregação do Evangelho, o Espírito Santo é
dado, como diz em Gálatas 3. 14: “Para que nós, pela fé, recebêssemos a promessa do Espírito”.
Quando mentes aterrorizadas ouvem a voz do Evangelho e creem que seus pecados são
verdadeiramente perdoados por meio do Mediador, o Espírito Santo é concebido, e uma nova luz
e vida são inflamadas nos corações, como está escrito em Zacarias 12. 10: “Derramarei sobre a
casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de graça e de súplicas; e olharão
para aquele a quem traspassaram”. Isso significa que Deus erguerá o ânimo deles com a Sua
consolação e os ajudará pelo Espírito Santo a reconhecerem que foram recebidos na graça e,
sendo recebidos, invocarão a Deus e Lhe obedecerão. Mas Paulo afirma claramente que o
Espírito Santo é dado por meio da fé aos que creem. Portanto, para aqueles que não têm um
temor do senso da ira de Deus e não creem na voz do Evangelho, mas permanecem no desprezo
de Deus ou na dúvida, o Evangelho é apenas letra e sombra sem efeito.
Portanto, rejeitemos as ideias fantasiosas de Orígenes, que afirma que a letra se refere apenas
ao significado gramatical na descrição de cerimônias e histórias, enquanto o espírito se relaciona
com uma interpretação alegórica dessas cerimônias e histórias. Seguindo essa hipótese, ele se
permitiu, posteriormente, uma liberdade excessiva e, certamente, inaceitável na igreja ao criar
interpretações imaginárias, quase como os pintores fazem ao retratar quimeras, cilas e centauros.
Uma é a essência da linguagem profética e apostólica em cada passagem, e essa essência,
quando devidamente compreendida de acordo com os princípios dessas artes comuns que
explicam a estrutura da fala, é gerada. Posteriormente, os rituais ou histórias às vezes são
imagens de outras coisas ou exemplos. Por exemplo, o Cordeiro pascal era um sinal da futura
imolação de Cristo. A história de Daniel, salvo entre os leões, é um exemplo para muitos
doutores e toda a Igreja, que, pelo benefício semelhante de Deus, está protegida dos tiranos que a
atacam. Essas interpretações alegóricas são elaboradas adequadamente e com elegância,
requerendo grande erudição, discernimento e habilidade. No entanto, assim como as leis não
figurativas ou as narrativas do Evangelho não figurativas são letras e sombras sem movimentos
inflamados pelo Espírito Santo, essas interpretações alegóricas também são doutrinas e letras
sem esses movimentos.
Pois quando Paulo disse em Romanos 7. 14 que a lei é espiritual, ele está claramente se
referindo à moralidade, e não pretende transformá-la em alegorias. Ele a chama de espiritual
porque é o julgamento divino que é espiritual, não apenas uma disciplina política, como as leis
de Sólon e outras que falam sobre disciplina externa. A lei de Deus exige fervorosos movimentos
espirituais, conhecimento, temor, confiança, amor a Deus e, por fim, obediência perfeita. Por
outro lado, o julgamento de Deus é o terrível ministério da ira divina que oprime todos os seres
humanos, não apenas por causa de seus pecados externos, mas também por causa das trevas
interiores e da impureza. Paulo está falando sobre esse julgamento terrível, não sobre as alegorias
ou fábulas de Orígenes. É lamentável que uma doutrina tão importante e própria da Igreja sobre
o uso da lei, o ministério do Evangelho, a fé, o dom do Espírito Santo, os verdadeiros exercícios
da fé na invocação e os movimentos inflamados pelo Espírito Santo tenham sido obscurecidos
por esses sonhos mal interpretados de Orígenes sobre a letra e o espírito.
Sempre, em todos os tempos, toda doutrina, seja da Lei ou do Evangelho, para aqueles que
não renascem, é apenas letra e sombra fugaz, ou seja, não trazendo a eles uma nova e eterna luz e
vida. Mas a promessa do Evangelho, em todos os tempos, foi o ministério do Espírito para
aqueles que creem ou renascem pela fé; porque quando recebemos a reconciliação dada por meio
do Mediador e a fé é inflamada, o Espírito Santo começa em nós uma nova e eterna luz e vida,
como é dito em Romanos 8: “O entendimento do Espírito é vida e paz”. Neste ponto, é muito
proveitoso considerar o poder e a dignidade do ministério evangélico. Este texto de 2 Coríntios 3
afirma claramente que o Espírito Santo é dado pelo Evangelho. Portanto, não devemos buscar
outras revelações ou entusiasmos sem o Evangelho, mas devemos descansar na própria promessa
do Evangelho, pois quando o fazemos, é certo que o Espírito Santo é eficaz.
Quanto à disciplina, deve-se observar que em seu devido lugar foi dito que todos os seres
humanos não regenerados ou fracos devem ser coagidos e acostumados à virtude por meio da
disciplina de acordo com a lei de Deus, que nos diz respeito. E mencionei quatro razões para
isso, sendo a primeira que é necessário obedecer a Deus que ordena a disciplina. A segunda é
para evitarmos punições, porque Deus pune terrivelmente a violação da disciplina, como todas as
calamidades do mundo demonstram. A terceira é porque os outros seres humanos precisam de
paz; não vivemos apenas para nós mesmos. A quarta é a mais importante, ou seja, que a Lei é um
pedagogo para Cristo. O papel de um pedagogo não é apenas coagir, mas também ensinar.
Portanto, esta descrição da Lei nos recomenda, deseja que ela seja apresentada para nos ensinar
sobre a ira de Deus, sobre boas obras, para nos acostumar com bons hábitos, para estimular o
desejo de conhecer a doutrina de Deus, para conter as mentes jovens pelo medo do castigo, mas a
grande ênfase é que esta disciplina nos chama para Cristo, não que a disciplina mereça a
remissão dos pecados, mas que Cristo não é eficaz para os desprezadores da disciplina, que
continuam a violá-la contra sua própria consciência. Estes pontos foram explicados mais
detalhadamente anteriormente.

18. As Calamidades da Cruz e o Verdadeiro


Consolo
Embora seja evidente que todas as reflexões e elocubrações de sábios, tanto na Igreja quanto
entre os não crentes, tenham sido consumidas na lamentação das misérias humanas, todos eles
confessaram a imensidão desta carga triste que a natureza humana como um todo suporta, não
podendo ser plenamente compreendida.
A quantidade de exemplos horríveis em tragédias e histórias é notável, e eles são contados
com o propósito de nos lembrar de nossa fragilidade, para que possamos ser mais modestos e não
atrair perigos e punições devido a desejos tolos. No entanto, a vida cotidiana também oferece
inúmeros exemplos aos não instruídos. E, por essa razão, os sábios sempre debateram por que a
natureza humana, que se destaca entre todas as criaturas vivas, está sujeita a tantas misérias. Eles
se perguntam de onde vem a morte, de onde vêm tantas doenças, por que os corpos são afligidos
por males que não são trazidos por nossos próprios planos. Eles questionam por que há tanta
confusão, mudança, destruição, pestilência, fome e a morte de populações inteiras em governos,
cidades afundando na terra, inundações que engolem nações inteiras, grandes cidades destruídas
por incêndios repentinos e muitas outras tragédias tristes que acontecem, seja a muitos ou a
poucos, sem o conselho deles.
Os filósofos buscam a causa na matéria, alegando que ela está em constante fluxo,
perpetuamente buscando outras formas e alternando entre elas. Daí Aristóteles desenvolveu sua
doutrina sobre a privação na matéria. Não duvido que o primeiro pensamento sobre a morte
humana e a miséria tenha surgido dessa consideração, seguido pela observação constante das
mudanças que ocorrem em todas as gerações e corrupções de plantas e animais. Eles imaginaram
que essas mudanças incompreensíveis acontecem devido ao constante movimento, avanço e
retorno causados pelas vagas privações ou desejos na matéria.
Além disso, outros filósofos acrescentaram as causas eficientes, ou seja, as influências e
posições das estrelas que governam a matéria de maneira variada. Daí as palavras de Manílio
(Astronomica, I, 111 sq. ed. Bentl.):
“Todas as coisas são movidas pela divindade do céu e pelas estrelas que, em várias órbitas,
mudam o destino.”
Assim, os filósofos buscam as causas por trás da densa obscuridade da morte humana. Não é
falso o que Menandro disse, que, embora existam inúmeros males automáticos (ou inevitáveis)
[128]
, há de longe muitos mais que são voluntários[129], ou seja, causados por erro de julgamento ou
pela teimosia da vontade em resistir ao julgamento correto. Como Pompeu, incendiado pelo erro,
desencadeou uma guerra civil, ou Páris, por vontade própria, raptou Helena, provocando assim
uma guerra que se espalhou pela Ásia. Um homicida atrai para si a punição por um ato
voluntário de maldade. Davi, ao raptar a esposa de outro por vontade própria, trouxe terríveis
calamidades sobre si mesmo e sobre seu povo. Tentar listar exemplos desse tipo é tão inútil
quanto tentar contar todos os grãos de areia em todas as águas.
Os filósofos, de alguma forma, podem identificar as causas das ações voluntárias das
pessoas, mas não conseguem perceber completamente a causa dos males que afetam
automaticamente os seres humanos. A doutrina da Igreja, transmitida desde o início como a
palavra de Deus e propagada pelos Pais da Igreja, Profetas, Cristo e Apóstolos, prega a partir
dessa fonte. Portanto, observemos aqui a diferença entre a filosofia humana e a doutrina celestial.
Não apenas a fonte é revelada, mas também são oferecidos verdadeiros e sólidos consolos e
remédios.
A principal causa da morte e das inúmeras calamidades que afetam toda a humanidade, tanto
os piedosos quanto os ímpios, é a desobediência original dos primeiros pais e a mancha
resultante transmitida aos seus descendentes. Como está escrito em Romanos 5. 12: “Portanto,
assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também
a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”. Se a natureza humana não tivesse se
afastado de Deus, teria retido a vitalidade que Deus originalmente lhe concedeu, e as pessoas não
teriam se deteriorado como frutas, flores ou animais. No entanto, depois de perder sua
integridade, a matéria da humanidade tornou-se mais frágil, assemelhando-se à natureza dos
animais e plantas. Portanto, devido ao pecado, Deus, irado, permitiu que essa natureza decaída,
desprovida de Seu dom original, caísse na morte, como está escrito no Salmo 90. 7: “Pois todos
os nossos dias se passam na Tua ira”. E assim, a mesma causa está relacionada com doenças e
todos os males que ocorrem inevitavelmente.
Além disso, após essa corrupção da natureza, há uma grande escuridão nas mentes, muitos
erros, grande fraqueza, muitos desejos desordenados, impulsos errôneos e desprezo pelo
julgamento divino. Caim e Esaú, embora nascidos de pais nobres e cuidadosamente instruídos na
virtude, ainda são inflamados por desejos malignos, ambição e inveja. E todos os dias acontece o
que é expresso em grego como “διά έπιθυμίας κενοί λογίζονται”, que significa “são vaidosos
através dos desejos”. Absalão, Antônio e inúmeros outros semelhantes sonham em conquistar
impérios. Portanto, acumulamos males por meio de erros e desejos corruptos, que resultam da
depravação da natureza, de tal forma que até mesmo um poeta pagão (Hesíodo, “Trabalhos e
Dias”, 101) lamentou as misérias humanas, declarando: “A terra está cheia de males, o mar está
cheio de males”[130].
Além disso, o Diabo, um espírito inimigo de Deus e cheio de ódio por Deus, age como um
incitador de nossos erros e desejos. Ele se volta contra a frágil natureza humana e promove tanto
os males inevitáveis quanto os voluntários. Ele intensifica os excessos de governantes como
Calígula, Nero e outros semelhantes, de modo que, com a ira de Deus inflamada, as punições e
misérias aumentem. Quem pode realmente compreender essas fontes de males? Vemos em
exemplos concretos e experimentamos em nossas próprias misérias que as aflições humanas são
tão profundas que os seres humanos não podem abraçar sua magnitude em pensamento ou
explicá-las em palavras.
Mas é mais difícil ainda compreender a magnitude das causas: o quanto o pecado é maléfico,
o que é a ira de Deus punindo os crimes com certa lei, o quão terrível é a fúria do Diabo,
intensificando as misérias humanas. Essas causas devem ser consideradas em geral, levando em
conta os males que se espalham por toda a natureza humana, na Igreja e entre os ímpios. No
entanto, surge aqui uma questão muito mais difícil: dado que a morte e outras calamidades são
punições dos pecados e crimes humanos, por que a Igreja de Deus está sobrecarregada com
muito mais misérias do que a multidão ímpia? Por que Abel foi morto por seu irmão? Por que o
tirano Manassés despedaçou cruelmente o profeta Isaías com uma serra? Por que Apris
assassinou Jeremias?[131] Por que os sacerdotes mataram Zacarias? Por que Herodes decapitou
João Batista? Por que Pilatos crucificou Jesus? Certamente, esses são exemplos conhecidos.
Muitas vezes, a Igreja de Deus é um pequeno grupo que mantém a profissão da verdadeira
doutrina e suporta várias e imensas aflições, tanto comuns como peculiares. Jacó perdeu sua
esposa durante o parto, perdeu seu filho José, e vagou miseravelmente sem um lugar seguro entre
pessoas ímpias e insolentes.
Com frequência, pessoas ímpias, que desconhecem e desprezam a doutrina profética e
apostólica, costumam ocupar cargos de liderança, e superam a Igreja não apenas em riqueza,
fama e prazeres, mas também em virtudes políticas. Quantos governantes poderíamos considerar
comparáveis, em termos de virtude, a Alexandre, Pirro, Cipião ou outros semelhantes?
No entanto, quando as misérias da Igreja levam muitos a duvidar profundamente se alguma
parte da humanidade está sob os cuidados de Deus, se há uma Igreja de Deus, se apenas aqueles
que abraçam o ensinamento profético e apostólico são o povo de Deus, se Deus ouve esse grupo
em suas aflições, e quando essas tristes visões da Igreja levam muitos a desistir de Deus, a
abraçar ideias epicuristas furiosas, é necessário que a Igreja se prepare contra esses escândalos e
seja ensinada o porquê de estar sujeita a tantas aflições e ainda assim ser ouvida, ajudada,
sustentada e, por fim, libertada. Esta é a sabedoria própria da Igreja. Portanto, primeiro devemos
listar, aprender e frequentemente ponderar as causas impulsoras e finais, ou seja, estas:
Primeira causa: devido à queda dos primeiros pais e às relíquias do pecado original que
permanecem nesta natureza corrupta, a Igreja de Deus está sujeita à morte corporal e a outras
aflições, assim como o restante da humanidade. Romanos 8. 10 diz: “O corpo, na verdade, está
morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça”.
Segunda causa: Quando o mundo não reconhece essa impureza interior da natureza humana,
as dúvidas sobre Deus e a negligência para com Deus não são consideradas como coisas
condenáveis por Deus e a ira de Deus não é temida. Nesse caso, a Igreja é ainda mais
pressionada, porque Deus deseja que Sua ira contra o pecado seja reconhecida e que o
arrependimento cresça em nós. 1 Pedro 4. 17 afirma: “Pois é chegada a ocasião de começar o
julgamento pela casa de Deus”. E Jeremias 30. 11 diz: “Pois Eu sou contigo para salvar a vocês,
diz o Senhor; pois darei fim a todas as nações entre as quais os espalhei, mas a vocês não darei
fim, contudo, irei castigar a vocês com justiça; de maneira alguma os deixarei sem castigo”.
Também encontramos em Isaías 66. 2: “A quem Eu olharei, senão para o pobre e abatido de
espírito, que treme diante da Minha palavra?”.
Terceira causa: Porque Satanás nutre um ódio ainda maior por Cristo e pela Igreja, ele se
lança com fúria contra a Igreja e muitas vezes provoca grandes dispersões, como quando incita
heresias. Frequentemente, ele derruba os santos, como fez com Davi, e tece uma longa trama de
misérias para enredar muitos em desespero. A respeito dessa causa, encontramos em Gênesis 3.
15: “Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela; este
lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar”. Quão miseráveis são essas picadas venenosas,
os piedosos frequentemente experimentam, como Davi, que, levado por suas tentações, mal
conseguiu se livrar de tantos pecados e escândalos. Também vemos em Mateus 12. 44: “Então,
diz: Voltarei à minha casa, de onde saí”. E em 1 Pedro 5. 8: “Sejam sóbrios, vigiem. O diabo, o
inimigo de vocês, anda ao redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar”.
Quarta causa: Muitas vezes, as calamidades são punições para pecados específicos que
Deus, verdadeiramente irado com os pecados, impõe aos seres humanos. Isso serve tanto para
punir os pecados quanto para conduzir os transgressores ao arrependimento. Essas punições são
aplicadas aos transgressores, mas também servem como exemplos para que outros temam a Deus
e ajam com mais retidão. Um exemplo disso é o sofrimento prolongado e terrível de Davi como
punição por seu adultério e pela traição a Urias. Seu filho matou seu irmão, provocou uma
revolta, depôs o pai do trono e cometeu atos incestuosos com as esposas do pai. Em resumo,
nenhuma palavra humana pode expressar a magnitude das aflições que Davi suportou por muitos
anos. Similarmente, Oseias sofreu com a lepra por sacrificar contra a lei. Manassés foi levado ao
exílio por causa da idolatria e pelo assassinato de profetas. Jeremias fala do exílio de todo o povo
e da destruição de Jerusalém em Jeremias 22. 8: “E dirá muita gente: ‘Por que fez o Senhor
assim a esta grande cidade?’. E eles responderão: ‘Porque abandonaram a aliança do Senhor, o
Deus deles, e adoraram outros deuses’”. E em Amós 2. 4-6: “Assim diz o Senhor: Por três
transgressões de Judá, e por quatro, não revogarei o castigo, porque rejeitaram a lei do Senhor, e
não guardaram os seus estatutos; antes, as suas mentiras, após as quais andaram seus pais, os
desviaram. Enviarei fogo contra Judá, que consumirá os palácios de Jerusalém”. As pregações e
as histórias proféticas estão cheias de exemplos e testemunhos que mostram como essa quarta
causa está amplamente presente. Muitas vezes, pecados específicos são punidos por calamidades
específicas, como é frequentemente observado quando as formas das punições se alinham com os
próprios pecados, como quando Davi comete adultério e, posteriormente, sua própria família
sofre o mesmo tipo de pecado. Histórias ímpias também fornecem inúmeros exemplos em que as
formas das punições coincidem com os pecados cometidos, como no caso de Édipo, que comete
incesto e cujos filhos acabam sendo vítimas de um destino terrível. Isso mostra como as punições
se espalham amplamente e como um único pecado pode levar a inúmeros outros e a múltiplas
calamidades. Portanto, quando admiramos ou lamentamos a magnitude das aflições humanas,
todas as confusões da vida e todas as ruínas dos reinos, devemos considerar que muitas delas têm
origem nessa fonte: assim como os pecados se acumulam, as punições também se acumulam,
embora Deus as amenize, como explicarei posteriormente. No entanto, falaremos
especificamente sobre as punições da Igreja. Também saibamos que a Igreja é punida e tenhamos
evidências disso. Miqueias 7. 9 diz: “Levarei a ira do Senhor, porque pequei contra ele”. Salmos
89. 33-34 diz: “Mas não retirarei dele o Meu favor nem desistirei da Minha fidelidade. Não
violarei a Minha aliança nem modificarei as promessas dos Meus lábios”. Isaías 64. 5 diz: “A ira
de Deus é despertada porque pecamos e temos sido pecadores por muito tempo. Éramos
pecadores desde o princípio, e há muito que andávamos em pecado”. Isso é uma descrição
notável e uma paixão muito triste. As punições são dispersas sobre a Igreja, as nações e as
famílias como ventos, devido a pecados específicos, como aconteceu com as dez tribos de Israel,
que, embora ainda restassem alguns remanescentes da Igreja, foram dispersas pelo exílio. Este
tipo de punição é mencionado por Cristo em João 5. 14: “Mais tarde, Jesus o encontrou no
templo e lhe disse: ‘Você está curado. Não peque mais, para que algo pior não lhe aconteça’”. E
também por Paulo em 1 Coríntios 11. 32: “Quando, porém, somos julgados pelo Senhor, estamos
sendo disciplinados para que não sejamos condenados com o mundo”. Apocalipse 3. 19 diz: “A
todos quantos Eu amo, repreendo e disciplino. Por isso, seja diligente e arrependa-se”.
Quinta causa: Para que as aflições sirvam como testemunho da doutrina. Embora Isaías,
Jeremias e João Batista não tenham sido punidos por ações específicas, eles suportaram grandes
sofrimentos por outras razões. Primeiro, para que reconheçam a ira de Deus contra o pecado
comum da humanidade. Em segundo lugar, eles enfrentam lutas devido à confissão da doutrina.
Ambos esses aspectos são evidentes nas aflições de Paulo. Ele não suporta as aflições por causa
de interesses pessoais ou prazeres, mas sim por causa da doutrina. Mesmo que pudesse viver
tranquilamente entre os seus, ele escolhe suportar grandes misérias por amor à doutrina. Isso
confirma sua dedicação à verdadeira doutrina, pois ele prefere suportar a morte a abandonar a
profissão do Evangelho. Sobre esse assunto, é dito em Mateus 16. 24: “Então, Jesus disse aos
seus discípulos: ‘Se alguém quiser Me seguir, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e Me siga’”.
E em 2 Timóteo 3. 12: “De fato, todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão
perseguidos”. Salmo 126. 5 diz: “Os que semeiam com lágrimas, com cantos de alegria
colherão”. E Salmo 115. 15: “Preciosa é à vista do Senhor a morte dos Seus santos”.
Sexta causa: Para que as aflições sejam um testemunho da imortalidade. Visto que Deus
prometeu bênçãos eternas aos Seus, e mesmo assim permite que eles sejam terrivelmente
oprimidos pelos ímpios, demonstrando abertamente Sua aprovação a figuras como João Batista e
Paulo através de evidências claras, é necessário que exista outra vida na qual os justos, como
João Batista e Paulo, sejam recompensados pelos seus feitos e os ímpios, como Herodes e Nero,
sejam punidos pelos males que infligiram sobre eles. Portanto, Pedro declara em 1 Pedro 4. 17:
“Pois já é hora de começar o julgamento pela casa de Deus; se começa primeiro conosco, qual
será o fim daqueles que desobedecem ao evangelho de Deus?”.
Sétima causa: Para que sejamos feitos semelhantes à imagem do Filho de Deus, como é
declarado em Romanos 8. 29. E o próprio Jesus diz (Mateus 10. 24): “O discípulo não está acima
do seu mestre”. Cristo suportou a punição e o sofrimento devido aos nossos pecados, tornando-se
uma vítima por nós e aplacando a ira de Deus para que pudéssemos ser aceitos, embora indignos.
No entanto, porque somos aceitos, a fim de nos tornarmos herdeiros da Sua glória, que Cristo
mereceu, é necessário primeiro que este corpo do pecado seja destruído, como é afirmado em
Romanos 6. 6: “Sabendo isto, que o nosso velho homem foi com Ele crucificado, para que o
corpo do pecado seja desfeito, a fim de que não sirvamos mais ao pecado”.
Oitava causa: Mesmo naqueles em que não são punidos por atos atrozes específicos, existem
impurezas interiores, autossuficiência, autoadmiração e muitas dúvidas. Esses males são
corrigidos na cruz e preparam para evitar quedas futuras, como é dito em 2 Coríntios 1. 9: “Mas
já em nós mesmos tínhamos a sentença de morte, para que não confiássemos em nós, mas em
Deus, que ressuscita os mortos”. E muitas passagens e exemplos se aplicam a essa causa. Pois
Deus deseja que o arrependimento e os dons cresçam em todos os santos. Como é afirmado em 2
Coríntios 4. 16: “Por isso, não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se
corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia”. E em Provérbios 3. 12: “Porque o
Senhor repreende aquele a quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem”. Hebreus 12.
6 também afirma: “Porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho”.
Salmo 119. 71 diz: “Foi-me bom ser afligido, para que aprendesse os Teus estatutos”. Isaías 28.
19 menciona: “Da mesma forma, como ensinaria Deus ao homem o Seu conhecimento, e ao filho
do homem a Sua doutrina? Aqueles que são desmamados serão tirados dos úberes”. E Isaías 26.
16 acrescenta: “Senhor, no meio da angústia Te buscaram, derramaram um secreto gemido
quando a Tua correção os castigou”.
Nona causa: Para que fique evidente que os santos prestam obediência a Deus não por
ambição ou apenas em busca de algum benefício presente, mas principalmente para servir a Deus
e glorificá-Lo, como diz no Salmo 44. 18: “Todas estas coisas nos sobrevieram, contudo, não nos
esquecemos de Ti, nem faltamos à Tua aliança”.
Décima causa: Para que fique evidente que a Igreja não é reunida, defendida e preservada
por conselhos humanos e recursos, mas é reunida pelo próprio Filho de Deus, que é a Cabeça e o
Líder da Igreja, e pela divina potência. Além disso, para que em nossa fraqueza seja evidente a
presença e o poder de Cristo, defendendo-nos contra a fúria dos demônios e dos tiranos. Como
está escrito em 2 Coríntios 4. 7: “Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a
excelência do poder seja de Deus, e não de nós”. E também no Salmo 20. 8: “Uns confiam em
carros, outros em cavalos; nós, porém, faremos menção do nome do Senhor, nosso Deus”.
A Igreja não adquire a terra pela espada, nem o braço humano a salva, mas é pela mão
direita de Deus e pelo Seu braço que ela é preservada e iluminada, como nos diz o Salmo 44. E
conforme João 15. 5: “Eu sou a videira, vocês, os ramos. Quem permanece em Mim, e Eu, nele,
esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podem fazer”. Em 1 Coríntios 1. 31: “Aquele que se
gloria, glorie-se no Senhor”. Oseias 13. 9 diz: “Você está perdida, ó Israel; somente em Mim está
o seu auxílio”. E Isaías 46. 3-4: “Ouça-Me, ó casa de Jacó e todo o resto da casa de Israel, que
são levados por Mim desde o ventre, que são sustentados desde o ventre; e até à sua velhice, Eu
serei o mesmo e até às cãs lhes carregarei; Eu o fiz e Eu lhes levarei; Eu lhes carregarei e lhes
livrarei”. Isaías 48. 11 também afirma: “Por amor de Mim, por amor de Mim o farei; porque,
como seria profanado o Meu nome? A Minha glória, pois, a outrem não darei”.
Listei as razões pelas quais a Igreja está sujeita a grandes aflições. Não consideremos esta
enumeração como algo fabricado, de modo algum, para acalmar os ânimos com uma mera
retórica de costume, mas entendamos que são causas verdadeiras e de grande importância. Isso
será compreendido se refletirmos cuidadosamente tanto sobre nossas aflições pessoais quanto
sobre as públicas. Essas ideias podem ser motivo de riso para os epicuristas e todos aqueles que
se embriagam com prazeres ou glória. No entanto, os piedosos reconhecem esta doutrina em
meio às aflições e tristezas verdadeiras e sabem que ela deve ser estudada com diligência.
Portanto, ela nos desperta para temer a Deus e buscar verdadeiros confortos. Assim como
remédios salvadores não podem ser administrados a doenças sem que a causa seja conhecida,
devemos aprender na Igreja a compreender e lamentar as verdadeiras causas de nossas misérias,
reconhecendo a ira de Deus contra o pecado comum e nossos pecados particulares, contendo
assim os impulsos que se desviam da lei, quando ponderamos a magnitude das terríveis punições.
Além disso, devemos buscar remédios para esses males.
Ambas as filosofias, tanto a pagã quanto a cristã, estão equivocadas e não conseguem
enxergar as principais causas das misérias humanas, nem oferecer remédios eficazes. Elas se
concentram na matéria e não pensam no ser humano de forma diferente do que pensam em
maçãs, violetas ou rosas. Portanto, não compreendem por que há tanta corrupção na natureza
humana. Além disso, embora critiquem com razão os erros e as más inclinações dos seres
humanos, não conhecem a raiz desses problemas e não culpam a ignorância e o desprezo por
Deus de maneira apropriada.
Além disso, eles propõem remédios que aumentam a dor e a indignação de mentes já
perturbadas. Eles afirmam que, quando o mal não pode ser removido, deve ser suportado com
paciência, como se estivessem ordenando que cavalos ou bois aceitassem a morte de bom grado.
Eles argumentam que não faz sentido adicionar sofrimento mental vão a um mal necessário,
como se dissessem que “uma mente boa, em uma situação ruim, é metade do mal”. No entanto,
eles não oferecem alívio, ajuda ou libertação, mas, em vez disso, aconselham evitar todas as
oportunidades de sofrimento, na medida do possível. Por isso, os epicuristas recomendam evitar
o governo da república, pois é evidente que o governo está repleto de preocupações e perigos, e
frequentemente resulta em desfechos trágicos, como demonstram os inúmeros exemplos de
Palamedes, Trasíbulo, Demóstenes, Cícero, Pompeu, César e muitos outros.
Alguns até defendem virtudes mais elevadas, e embora muitos detalhes possam ser omitidos
na argumentação deles, é verdade o que dizem: que não devemos agir contra nenhuma virtude
devido à dor. Por exemplo, Catão não deve se suicidar por causa da tristeza, pois isso seria
contrário à justiça. Coriolano não deve se render à sua raiva e buscar vingança contra sua pátria;
isso seria esquecer sua devida piedade para com a pátria. Demóstenes, quando foi exilado de sua
cidade, não deve lamentar de forma excessivamente efeminada, pois isso seria contrário à
moderação que deve estar presente em todas as ações virtuosas.
Depois de mencionar essas consolações, eles lamentam as misérias da humanidade e reúnem
exemplos de muitos desafortunados, o que parece tornar o fardo mais leve, pois compartilhamos
a miséria com muitos outros. No entanto, quando veem que algumas tragédias não podem ser
aliviadas por nenhuma consolação, eles recorrem à ideia de que seria melhor não ter nascido.
Assim, na consolação filosófica, não há menção a Deus em lugar algum, não há libertação,
nenhum caminho para sair da aflição, nenhum ajudante é mostrado. Embora, como as pessoas
saudáveis não valorizam muito os conselhos dos médicos, assim como os que estão embriagados
de prazeres não consideram as consolações filosóficas ou evangélicas, ainda assim a mente
doente procura avidamente por qualquer remédio que lhe seja oferecido, e a aceita,
especialmente se perceber que Deus ofereceu consolo com evidências claras. Em seguida, ela
busca as reflexões dos sábios, que podem aliviar um pouco as dores em casos menos graves. A
própria comparação entre as doutrinas é doce para uma mente bem disposta, e ela acrescenta luz
às consolações divinas, tornando-as ainda mais doces e estimulando os corações a dar graças a
Deus por nos mostrar sua preocupação real com nossas misérias. Ele nos deu Seu Filho como
testemunha e penhor de Sua misericórdia para conosco, prometeu amplamente ajuda e libertação
em muitos sermões notáveis para aqueles que buscam ajuda em sua aflição, e forneceu exemplos
notáveis de libertações. Também experimentamos exemplos diários. Portanto, é útil ter diante
dos olhos e à vista os principais tópicos de consolo ensinados na doutrina divina, e é necessário
manter anotadas declarações específicas que ensinem as mentes sobre a vontade de Deus. Pois
essas coisas foram ensinadas para que fossem pensadas, despertassem nossa compreensão de
Deus e oferecessem ajuda.
Listaremos os cinco lugares de consolação ensinados por Deus que precisamos lembrar.
O primeiro lugar de consolação é o seguinte: Todos os seres humanos, e especialmente a
Igreja, devem reconhecer que não somos afligidos por acaso, mas sob a ciência de Deus. Embora
as aflições possam surgir da matéria, do Diabo ou da crueldade humana, devemos entender que
elas são permitidas por algum desígnio divino e estão limitadas pelo temor, além do qual a
malícia do Diabo ou dos seres humanos não pode prevalecer. Embora este primeiro ponto ainda
não seja uma consolação completa, é crucial inicialmente erradicar e eliminar as opiniões
epicuristas de nossas mentes. Não há dúvida de que a Igreja é especialmente exercitada e,
posteriormente, libertada com tanta dureza para que possa aumentar em nós a verdadeira luz, que
estabelece que os seres humanos não nascem e perecem por acaso, mas que há realmente um
Deus que se revelou enviando Seu Filho e nos entregou Sua palavra. Ele realmente se ira com os
pecados e cura aqueles que se arrependem. Não é uma pequena batalha libertar nossas mentes
das loucuras epicuristas. Portanto, primeiro devemos nos lembrar destas palavras.
Mateus 10 (versículo 29): “Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá
em terra sem a vontade de seu Pai. E até mesmo os cabelos da sua cabeça estão todos contados.
Portanto, não temam; vocês valem mais do que muitos pardais”. Atos 17 (versículo 28): “Porque
n’Ele vivemos, e nos movemos, e existimos”. Salmos 33 (versículo 15): “Ele forma o coração de
todos eles; Ele atenta para todas as suas obras”. Salmos 94 (versículo 9): “Será que o que fez o
ouvido não ouvirá? Será que o que formou o olho não verá?”. Lamentações de Jeremias 3
(versículo 37): “Quem é aquele que diz que algo acontece, se o Senhor não o ordenou? Não
procedem, tanto o bem quanto o mal, da boca do Altíssimo?”. Salmos 100 (versículo 3): “Saibam
que o Senhor é Deus; foi Ele quem nos fez, e d’Ele somos; somos o Seu povo e o rebanho do Seu
pasto”. Isaías 45 (versículos 6 em diante): Aqui, Deus declara Sua soberania como o Criador de
todas as coisas, tanto da luz como das trevas, da paz e do mal (como punição), e como Aquele
que fala a verdade e justiça. Sofonias 1 (versículo 12): Refere-se ao tempo em que Deus
examinará Jerusalém com lanternas e visitará aqueles que estão instalados em sua própria
imundície, que em seus corações dizem: “O Senhor não fará o bem nem o mal; e a casa deles
será desolada”. 1 Samuel 2 (versículo 6): “O Senhor tira a vida e a dá”.
Muitas pessoas que, em circunstâncias cotidianas e desafios moderados, não adotaram as
opiniões epicuristas, mas de alguma forma creram que Deus cuida dos assuntos humanos,
perdem completamente essa convicção quando enfrentam grandes adversidades. Eles começam a
pensar que tudo acontece por acaso, sem qualquer desígnio divino, que algumas coisas surgem e
desaparecem de forma mais tranquila, enquanto outras são mais difíceis. No final das contas, os
espíritos enganosos do Diabo os ferem durante as aflições, incitando furiosamente a descrença
em Deus e alimentando ideias epicuristas. Portanto, é fundamental que nossas mentes sejam
fortalecidas contra esses ataques diabólicos.
Segundo ponto: Nada é amado ou suportado com serenidade sem uma razão justificada.
Portanto, quando Saul pensa que está sendo punido por Deus, ele se afasta de Deus com grande
angústia. É necessário, portanto, manter uma razão justificada durante as aflições. Devemos
entender a causa final pela qual Deus pune. Já mencionei acima as causas impulsivas e finais.
Mas, quaisquer que sejam as causas impulsivas, que podem ser variadas e desconhecidas para
nós, sempre devemos manter com absoluta fé a causa final de que Deus pune ou exercita, não
para nos destruir, mas para nos levar ao arrependimento ou nos despertar, para que o temor, a
oração e outras virtudes cresçam em nós. Quando essa boa vontade de Deus é percebida, a mente
se aproxima de Deus e se submete a Ele, começando a tolerar a punição ou o sofrimento com
mais serenidade.
Essa é a doutrina do Evangelho transmitida desde o início pelos Pais, Profetas, Cristo e
Apóstolos: que a humanidade está sujeita a tantos sofrimentos não para ser condenada à perdição
eterna, mas para reconhecer a ira de Deus contra o pecado e, com esse aviso, se voltar ao
arrependimento e retornar a Deus como seu auxiliador. Adão e Eva entenderam isso quando
viram a morte de Abel; eles sentiram que estavam sendo advertidos por seu próprio pecado, mas
ainda assim sabiam que Deus não queria que eles desistissem da esperança da vida eterna. Eles
se lembraram da promessa feita sobre a semente que, abolindo a morte, lhes traria Abel de volta.
No entanto, em meio a tanta dor, foi difícil para eles superar a dúvida. Portanto, essa doutrina foi
frequentemente reiterada pelos Profetas.
Ezequiel 33. 11 declara: “Assim como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não desejo a morte do
pecador, mas que o ímpio se converta do seu caminho e viva”. Deus jura que nos pune não para
nos destruir, mas para nos afastar do pecado. 1 Coríntios 11. 32 diz: “Mas, quando somos
julgados pelo Senhor, somos disciplinados para que não sejamos condenados com o mundo”.
Salmo 119. 71 afirma: “Foi-me bom ter eu passado pela aflição, para que aprendesse os Teus
decretos”. Apocalipse 3. 19 diz: “Eu repreendo e castigo a todos quantos amo; seja, pois, zeloso
e se arrependa”. Isaías 28. 19 nos lembra: “A vexação lhes será como o sono no horário da
sesta”. Também em Isaías 26. 10: “Na angústia, eles visitam o Senhor; derramam uma oração
quando a Tua disciplina os atinge”. Hebreus 12. 6 nos ensina que Deus “corrige a todo filho a
quem recebe”. Provérbios 3. 12 afirma: “Porque o Senhor repreende a quem ama, assim como o
pai ao filho a quem quer bem”. Em Mateus 11. 28, Jesus diz: “Venham a Mim todos os que estão
cansados e oprimidos, e Eu os aliviarei”. Aqui, Cristo instrui todos aqueles que se sentem
sobrecarregados com aflições a buscar o Auxiliador enviado por Deus. E Isaías 61. 2 nos diz que
Ele foi enviado “para consolar todos os que choram, para pôr sobre os que de Sião estão de luto
uma coroa em vez de cinzas, óleo de alegria em vez de pranto, veste de louvor em vez de espírito
angustiado”.
Além disso, as seguintes passagens também ensinam a mesma doutrina, que contém
promessas nas quais Deus promete libertação ou ajuda aos aflitos e testemunha que Ele está
presente para aqueles que O invocam em suas aflições. Isaías 57. 15 declara: “Pois assim diz o
Alto e Sublime, que habita na eternidade, e cujo nome é santo: No alto e no santo lugar habito,
como também com o contrito e humilde de espírito, para vivificar o espírito dos humildes, e para
vivificar o coração dos contritos”. E o Salmo 34. 18 afirma: “Perto está o Senhor dos que têm o
coração quebrantado, e salva os contritos de espírito”. Portanto, Ele não pune para destruir, mas
revela Sua ira para nos exortar ao arrependimento, como está escrito: “Ele os encerrou a todos
debaixo da desobediência, para usar de misericórdia para com todos” (Romanos 11. 32). É uma
prisão triste ser aprisionado pelo pecado, pois isso significa estar sujeito à ira de Deus, à morte e
ao sofrimento. Por exemplo, Davi foi aprisionado pelo pecado quando foi exilado e despojado de
sua glória, como se tivesse sido rejeitado por Deus. O imperador Maurício também foi
aprisionado pelo pecado quando, diante de seus olhos, sua filha, filho e esposa foram mortos. No
entanto, em meio a essas terríveis aflições, a outra parte da sentença deve ser mantida em mente:
“para usar de misericórdia para com todos”. É importante entender que, mesmo nas maiores
aflições, não devemos abandonar Deus, mas sim reconhecer que Ele deseja nos receber e nos
libertar de Sua ira eterna. No entanto, a experiência mostra o quão difícil é abraçar essa
consolação em meio a grande calamidade.
O terceiro ponto de consolação é a promessa de ajuda, alívio das aflições, a presença de
Deus e libertação. Este ponto se afasta bastante da filosofia. Pois, como está escrito em Salmos
55. 22: “Lance o seu fardo sobre o Senhor, e Ele o susterá; nunca permitirá que o justo seja
abalado”. Aqui, a razão humana não julga corretamente, mas Davi, mesmo quando perseguido,
creu que Deus estava ao seu lado. Quando Catão viu Pompeu morto e Júlio César prevalecendo,
começou a ficar irritado com Deus, achando-se um homem justo e, como ele pensava, sendo
abandonado injustamente em uma causa tão nobre. No entanto, a doutrina do Evangelho
testemunha que as pessoas não são abandonadas por Deus por estarem em aflição, mas sim que
Deus promete ajuda, alívio das adversidades e libertação naquelas situações. Não devemos
considerar essas consolações como palavras vazias; são realidades, e a fé experimenta os
resultados, como os exemplos demonstram. Portanto, primeiro reuniremos algumas promessas
para fortalecer a nossa confiança.
Naum 1. 7: “O Senhor é bom, Ele serve de fortaleza no dia da angústia; conhece os que
confiam n’Ele”. Joel 2. 13: “Rendam o seu coração, e não as suas vestes, e se convertam ao
Senhor seu Deus; porque Ele é misericordioso, e compassivo, e tardio em se irar, e grande em
benignidade, e se arrepende do mal”. Salmos 34. 19: “Muitas são as aflições do justo, mas o
Senhor o livra de todas”. Salmos 147. 3: “Ele sara os quebrantados de coração, e liga-lhes as
feridas”. Salmos 50. 15: “E Me invoque no dia da angústia; eu o livrarei, e você me glorificará”.
Isaías 57. 15: “Pois assim diz o Alto e o Sublime, que habita na eternidade, e cujo nome é Santo:
Num alto e santo lugar habito, e também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o
espírito dos abatidos, e para vivificar o coração dos contritos”. Isaías 66. 2: “Pois todas estas
coisas foram feitas pela Minha mão, diz o Senhor, mas para esse olharei, para o pobre e abatido
de espírito, e que treme da Minha palavra”. Mateus 5. 3: “Bem-aventurados os pobres de
espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, porque eles serão
consolados”.
Deus finalmente liberta a Sua Igreja de todas as aflições. No entanto, durante esta vida, é
necessário que enfrentemos algumas tribulações, porque, como foi dito, Deus quer que a Igreja
seja submetida à cruz. Mesmo assim, Ele liberta muitos todos os dias, até mesmo das aflições
corporais, e quando não nos liberta completamente, Ele as alivia. Os profetas frequentemente
descrevem e buscam essa mitigação, e nós devemos aprender a pedir por ela. Pois a natureza
frágil da humanidade não poderia suportar a magnitude da ira divina se ela se inflamasse
completamente, conforme nossos pecados merecem.
Portanto, Davi clama no Salmo 6: “Senhor, não me repreendas na Tua ira”. E no Salmo 129:
“Se observares as iniquidades, Senhor; Senhor, quem subsistirá?”. Isso significa que, se a ira se
inflamar tanto quanto nossos pecados merecem, todos nós pereceremos instantaneamente. Mas
Ele não acende toda a Sua ira. Jeremias 10: “Repreende-me, mas com juízo, não em Tua ira, para
que eu não seja reduzido a nada”. Oseias 11: “Como a entregarei, Efraim? Como a entregarei,
Israel? Não a destruirei como Admá e Zeboim. Meu coração mudou em Mim, Minha compaixão
se acendeu. Eu não vou cumprir o ardor da Minha ira. Não destruirei completamente Efraim,
porque Eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de vocês, isto é, pouparei pela misericórdia,
pois sou Deus, e não permitirei que a Minha palavra, que lhes entreguei, seja apagada”.
Habacuque 3: “Quando Te iras, Te lembras de misericórdia”. Isaías 64: “Agora, Senhor, Tu és
nosso pai; nós somos o barro, e Tu és o oleiro; todos nós somos obra das Tuas mãos. Não Te
enfureças muito, Senhor, nem perpetuamente Te lembres das nossas iniquidades. Olha agora, nós
somos Teu povo”.
Essas palavras sobre a mitigação devem ser consideradas com grande cuidado, para que,
mesmo quando as aflições não são completamente removidas, saibamos que somos ajudados,
sustentados e fortalecidos para que possamos suportar o fardo e as próprias calamidades sejam
amenizadas. Agar, expulsa da casa de Abraão com seu filho em meio a grandes aflições, quase
perecendo de sede, foi ouvida por Deus e foi ajudada quando Ele mostrou uma fonte. Da mesma
forma, cada um de nós deve buscar e esperar por algum tipo de mitigação, para que nossa
fraqueza não seja totalmente vencida. Portanto, em Romanos 8, está escrito: “O Espírito ajuda a
nossa fraqueza.”
O quarto ponto é a fé e a invocação. A igreja e os indivíduos, em meio à calamidade, devem
adicionar fé e invocação aos três pontos que mencionei anteriormente. Deus deu essas promessas
doces e abundantes para que as abracemos com fé, para que sejamos sustentados pela visão de
Sua bondade, e, finalmente, para que O invoquemos e O glorifiquemos. Lembrados por essas
palavras, recorremos a Deus, pedimos e esperamos por Sua ajuda divina, e descansamos nessas
promessas, assim como os justos no Egito, no deserto e no exílio babilônico o fizeram, sabendo
que Deus estava presente, ajudaria e, no final, traria um final feliz.
Todos os seres humanos, enquanto têm a capacidade, buscam segurança em coisas visíveis
quando confrontados com adversidades. Alguns confiam na riqueza, outros na influência de
amigos poderosos. Quando essas coisas falham, muitos ficam desanimados e desesperados. Esse
sofrimento mostra que essas pessoas confiaram apenas em coisas visíveis e não em Deus.
Embora possamos usar as coisas que Deus criou, como Davi usou seu exército, a confiança nas
coisas sem confiança em Deus é reprovada pela voz divina: “Maldito aquele que confia no
homem, que faz da carne o seu braço” (Jeremias 17. 5). Essa confiança injusta é rapidamente
descoberta quando perdemos as seguranças visíveis e somos abandonados por amigos. Portanto,
as queixas dos tiranos são mais ridículas do que miseráveis: “Estou abandonado por amigos,
infeliz, estou perecendo!”[132]. Por que você, confiando em coisas excessivas e injustas, trouxe
essas aflições sobre si mesmo? Davi diz corretamente: “Porque meu pai e minha mãe me
abandonaram, mas o Senhor me acolherá” (Salmo 27. 10). A mulher cananeia também faz o
mesmo, abandonando toda esperança nos remédios humanos e pedindo ajuda a Cristo, mesmo
quando Ele responde inicialmente de maneira severa. Na vida prática, em perigos e aflições,
devemos aprender que tipo de confiança Deus exige e rejeita. Esses preceitos não podem ser
entendidos sem experiência. Na verdade, a Igreja é sobrecarregada com a cruz para que a fé, que
é extinta em tempos de tranquilidade e prazer, possa crescer nessas provações, como está escrito
em Êxodo 32. 6: “O povo sentou-se para comer e beber, levantou-se para se entregar a um
festim”. Também em Deuteronômio 32. 15: “Engordou e recalcitrava”. Portanto, devemos
lembrar a nós mesmos sobre essa invocação, conforme as palavras: “Invoque-Me no dia da
angústia; Eu o livrarei, e você Me glorificará” (Salmo 50. 15); “E esperem em Ti aqueles que
conhecem o Teu nome; pois Tu, Senhor, não abandonas os que Te buscam” (Salmo 9. 11); “Este
pobre clamou, e o Senhor o ouviu” (Salmo 34. 7); “Perto está o Senhor de todos os que O
invocam, de todos os que O invocam em verdade” (Salmo 145. 18); “Peçam, e vocês receberão”
(João 16. 24); “É necessário orar sempre e nunca desfalecer” (Lucas 18. 1); “Não estejam
inquietos por coisa alguma; antes, as suas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus
pela oração e súplicas, com ação de graças” (Filipenses 4. 6). A fé deve ser exercitada
continuamente, primeiro buscando o perdão dos pecados e depois a mitigação das penas, como
será explicado posteriormente na seção sobre a Oração.
O quinto ponto é o seguinte: quando você considerar as sentenças anteriores sobre a vontade
de Deus em nossos sofrimentos - ou seja, que eles não acontecem por acaso, que Deus pune não
para destruir, mas para nos levar ao arrependimento, que Ele deseja ajudar, que Ele quer que
peçamos e esperemos Sua ajuda - e quando você reconhecer a boa vontade de Deus em nossas
calamidades, você deve entender, por fim, que é um mandamento de Deus que, em meio às
calamidades, devemos sentir dessa maneira e obedecer a Ele. Não devemos ficar com raiva d’Ele
por nos punir, mas devemos reconhecer que a punição é justa. Devemos nos submeter à vontade
de Deus e de alguma forma desejarmos ou, melhor ainda, suportar pacificamente esse castigo
para que possamos obedecer à justiça divina. Pois Deus deseja que em todas as punições haja um
entendimento da ordem de Sua justiça e da ira contra o pecado. Portanto, essa obediência e
moderação da dor também são mandamentos divinos, e devem resistir ao sofrimento e à
indignação. Isso é ensinado pelas seguintes passagens:
Miqueias 7. 9: “Portarei a ira do Senhor, porque pequei contra Ele”. E consolo é adicionado.
Pois não basta conhecer o mandamento ou suportar o mal, mas, como eu disse antes, a fé e a
invocação devem ser adicionadas. Portanto, Miqueias acrescenta (verso 8): “Quando estou
sentado nas trevas, o Senhor é a minha luz”.
1 Pedro 5. 5 e seguintes: “Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes. Portanto,
humilhem-se debaixo da potente mão de Deus”. Ele ordena que obedeçamos a Deus que nos
pressiona e menciona a mão poderosa, para que você possa entender ambas as coisas: a mão de
Deus é poderosa tanto para derrubar os orgulhosos quanto para erguer os aflitos. Não existe
poder tão grande, glória tão florescente ou riqueza que Deus não possa facilmente destruir, como
a história de todos os tempos mostra. Mas lembre-se dos exemplos dos santos, como Davi e
Nabucodonosor. Eles, quando caíram do mais alto pináculo, aprenderam que antes eram seguros
não por sua própria virtude, não pela fidelidade dos amigos, não pelos recursos humanos, mas
porque Deus os guardava, protegia e governava. O catálogo dos heróis cujas quedas foram
terríveis seria muito longo se enumerássemos: Hércules, Aquiles, Ajax, Jasão, Filipe da
Macedônia, Pompeu, César, Antônio e inúmeros outros.
Os trágicos destinos desses heróis declaram esta verdade: “Tudo o que é elevado no mundo,
ou seja, tudo o que é glorioso sem humildade e temor a Deus, é uma abominação diante de Deus
e será derrubado”. Portanto, foram lançados abaixo até mesmo os homens mais poderosos, que
se destacaram não apenas pela sua força, mas também pela sua virtude.
Deus frequentemente demonstra Seu poder também em levantar os justos, como no caso de
José sendo libertado da prisão, Davi sendo restaurado ao reino após sua derrota, e Manassés,
depois de ter sido cativo por muito tempo, sendo finalmente libertado e poupado após sua
penitência. Esses exemplos escritos afirmam que Deus é o autor dessas libertações, e o mesmo
vale para exemplos não registrados por escrito. Quando nossas dificuldades são aliviadas ou
removidas, isso acontece com a ajuda e orientação de Deus para nossos planos e resultados,
como o Salmo 28 (v. 7) declara: “O Senhor é o meu auxílio e o meu escudo; n’Ele confiou o meu
coração, e fui socorrido”. Mas voltemos aos mandamentos que nos ordenam obedecer.
1 Coríntios 10 (v. 10): “Não murmurem, como também alguns deles murmuraram e
pereceram pelo destruidor”, como é narrado em Números capítulo 21 sobre as serpentes
abrasadoras.
Salmo 37 (v. 7): “Entrega o seu caminho ao Senhor; confia n’Ele, e Ele tudo fará”. Este é um
mandamento maravilhoso e desconhecido da filosofia, mas está de acordo com o dito de Isaías
(30. 15): “Na tranquilidade e na confiança está a sua força”. Então, o que é essa tranquilidade? O
que significa “entregar”? Primeiro, tolerar obedientemente as adversidades impostas sobre nós;
em segundo lugar, não buscar atividades sem chamado; em terceiro lugar, não seguir o costume
humano de buscar diversos auxílios de maneira injusta ou sem uma ordem justa, como os reis de
Judá às vezes se inclinavam para os egípcios, às vezes para os reis sírios e depois eram forçados
a seguir os caprichos alheios depois de se envolverem em acordos tolos. À impaciência e busca
por auxílio sem ordem justa, essas palavras se opõem: “Entreguem-se”, ou seja, descansem,
esperem pela ajuda de Deus, não corram para o Egito, para a Síria, para os turcos, para os
africanos. Em uma boa causa, esteja com a mente tranquila e espere pela defesa de Deus; e
mesmo que algo diferente aconteça, é melhor suportar as adversidades do que deformar uma boa
causa com conselhos indignos.
Apresentei cinco pontos ensinados na doutrina do Evangelho sobre a tolerância das aflições,
desconhecidos pela Filosofia. No entanto, quando as mentes são fortalecidas por essa fé, elas
realmente exercem a paciência ou tolerância como um sacrifício, isto é, um culto a Deus ou uma
obra ordenada por Deus e realizada para tornar as pessoas boas. Como diz o Salmo 50: “O
sacrifício a Deus é um espírito quebrantado”. E Romanos 12. 1: “Portanto, eu os exorto, irmãos,
pelas misericórdias de Deus, a oferecerem seus corpos como sacrifício vivo...”. E, na verdade, a
laceração do corpo, como os pagãos acreditavam, não é um sacrifício, mas a obediência da
vontade, ou seja, a tolerância na dor, quando a vontade contempla, busca e espera a ajuda de
Deus. Não são calamidades provocadas que são sacrifícios, como os sacerdotes de Baal feriam
seus próprios corpos, ou como os decianos[133] se entregavam em sacrifício pela República.
Os pagãos são dignos de condenação e execração, mas a tolerância das aflições que
acompanham esses males é um sacrifício, seja aquelas que seguem uma vocação, como a
profissão da verdade de Cristo, dos profetas, dos apóstolos e de todos os piedosos, seja aquelas
que são as consequências de nossa fraqueza comum ou de nossos próprios pecados, como
doenças e punições legais, como aquelas infligidas a ladrões ou homicidas. Chamamos essa
tolerância das misérias de sacrifício, e sobre isso é dito em 1 Pedro 1. 6: “Por um pouco de
tempo, se for necessário, sejam vocês afligidos por várias provações”.
Assim, quando um ladrão é levado à punição, ele suportará sua desgraça. Primeiro, ele se
colocará na perspectiva de que não está sofrendo esta punição por acaso, mas sim por um
desígnio certo e permissão de Deus. Para quê? Ou por quê? Por que estou sendo punido mais do
que tantos outros ladrões que roubaram muito mais nos palácios? Deus quer que você reconheça
Sua ira contra o pecado, Ele o chama ao arrependimento. Agora pense em quão fraca foi sua
fraqueza: impulsionado por uma cobiça cega, você roubou de outra pessoa, você cedeu ao Diabo,
que se deleita na perdição dos seres humanos; agora, portanto, você está enfrentando a punição.
Não ceda novamente ao Diabo, que está tentando separá-lo completamente de Deus. Comece a
reconhecer o Filho de Deus, Jesus Cristo, e saiba que é por causa d’Ele que você está sendo
aceito. Ele já está consolando você agora, assim como consolou o ladrão na cruz. Portanto,
obedeça a Deus; Ele, nessas punições públicas, apresenta exemplos de Sua ira contra o pecado e
lembra as pessoas a pensarem em quão malévolo é o Diabo, que impulsiona seres humanos
fracos a tais misérias. Você pode dizer como Daniel: “A nós pertence a confusão”[134], mas à
misericórdia de Deus pertence o reconhecimento de que, em tais espetáculos, Ele não abandona
completamente os miseráveis, mas recebe aqueles que fogem para o Filho com certeza e verdade.
Portanto, levante seu espírito com fé e conhecimento de Cristo, busque consolo e espere pela
vida eterna, assim como o ladrão na cruz.
Nesse exemplo, pode-se perceber a diferença entre a paciência de que os filósofos falam e a
paciência pregada pelo Evangelho. Os filósofos não falam das causas primárias, não falam de
Deus, não falam do auxílio divino ou da libertação. Portanto, seja esta a definição dessa virtude,
conforme os filósofos definem: Paciência é obedecer à razão nas adversidades, de modo que
moderemos nossa dor até certo ponto, de forma que não ajamos contra a justiça ou outras
virtudes. Como Catão age contra a justiça ao se suicidar. Coriolano age contra a piedade devida à
pátria quando faz guerra aos cidadãos e parentes. Demóstenes age contra a modéstia quando, de
maneira efeminada, lamenta ser exilado. E embora às vezes alguém que é réu queira de alguma
forma uma punição justa, como Adrasto, que acidentalmente matou o filho de Crésio, no entanto,
a razão humana não pode querer uma punição injusta, especialmente uma punição atroz.
Palamedes, Sócrates e outros suportaram o castigo, não porque quisessem a punição, mas porque
a toleraram como se estivessem sendo despedaçados por leões.
Mas Paulo quer, de alguma forma, o castigo porque sabe que é um testemunho de sua fé;
Davi quer, de alguma forma, a punição porque sabe que devemos a Deus essa obediência, sabe
que Deus propõe um exemplo de ira para toda a humanidade com sua punição, e também espera
por alguma mitigação. Portanto, acrescente a definição dada no Evangelho: Paciência cristã é
obedecer a Deus ao suportar adversidades, de modo que não falhemos em nossa obediência a
Deus, nem haja irritação para com Ele, nem desobedeçamos a outros mandamentos de Deus, mas
moderemos a dor da alma e esperemos ajuda e alívio de Deus. A comparação das definições
mostra a diferença, que nos exemplos se torna ainda mais clara. Davi entende que está sendo
punido pelo desígnio de Deus e obedece a Deus e busca a mitigação. Sócrates fica perplexo com
a injustiça e não pensa nada sobre o desígnio de Deus, acredita que está sendo vítima de acaso,
como se ele tivesse passado ao lado de uma torre que estava prestes a desmoronar, não busca
ajuda ou alívio de Deus.
Separemo-nos, portanto, dos pagãos em nossas aflições e aprendamos, principalmente por
essa mesma razão, que toda a humanidade é sobrecarregada com tantas misérias, para que
sejamos estimulados a reconhecer a Deus e buscar uma verdadeira invocação. Quando vemos a
morte, doenças, injúrias, guerras, pestes, inundações, a destruição das cidades e inúmeras outras
calamidades, tanto individuais quanto coletivas, a intenção é que, diante do assombro de tantas
misérias, busquemos entender suas causas e o Libertador. É louvada a sentença de Platão no
Epitáfio, que Cícero expressou com estas palavras: “Pois a que homem tudo está pronto em si
mesmo para a visão feliz, que não é forçado a depender das circunstâncias favoráveis ou
desfavoráveis dos outros, nem a ser perturbado pelas vicissitudes alheias, é a ele que a melhor
maneira de viver é revelada”. Suas palavras em grego antigo podem ser traduzidas da seguinte
forma (Menêxeno, 248 A):
“Pois quando um homem se concentra inteiramente em si mesmo, carregando todas as coisas
que levam à felicidade ou ao infortúnio, e não se deixa influenciar pelos outros, ele é forçado a se
desviar daqueles que agem bem ou mal, e aprimorar sua vida de acordo com o que é melhor para
ele.”[135]
O que Platão adverte, para que não coloquemos todas as nossas esperanças nas bênçãos da
fortuna ou nas conexões humanas, está correto; no entanto, ele nos leva às nossas virtudes, mas
ainda não é o suficiente. Devemos ser levados a Deus. Pois muitas coisas acontecem ao homem
onde a virtude humana sucumbe sem a ajuda de Deus. Aqui Deus quer ser reconhecido e
invocado, e Ele promete ajuda. Experimentaremos que esse consolo não é uma retórica vazia se o
invocarmos em verdadeira aflição, como está escrito (Salmo 33. 19): “O Senhor está perto
daqueles que têm o coração quebrantado”.
Falei sobre as causas das aflições e as consolações, e sobre a virtude chamada Paciência ou
Tolerância, que os gregos chamam de “destemor” (άνεξικακιαν), conforme descrevi
anteriormente. Embora essa virtude seja necessária porque a obediência a ela é requerida
divinamente, grandes benefícios também nos incentivam a abraçá-la com maior cuidado. Onde
as mentes não são fortalecidas por essa virtude, elas caem de várias maneiras, ficam irritadas
com Deus, buscam ajuda injusta, como Saul consultando uma mulher feiticeira, reis fazem
pactos injustos e muitos, motivados pela sede de vingança, perturbam a Igreja e os governos,
alegando que foram movidos pelo sofrimento, como Ário, na sua derrota, afirma ter sido
motivado a perturbar a Igreja. Nossa era viu vários exemplos desse tipo. O desejo de vingança é
um grande incêndio em muitas pessoas, como em Alcibíades, Coriolano e outros grandes
homens. Mas aprendamos a priorizar o bem público sobre a dor pessoal e não fomentemos
tumultos desnecessários por impaciência. A moderação de Cipião foi um grande exemplo, pois,
embora pudesse facilmente ter reprimido as acusações injustas dos tribunos com armas, preferiu
deixar a cidade do que perturbar a República sem necessidade.
E, acima de tudo, devemos observar os perigos públicos na Igreja. Disputas motivadas pela
sede de vingança muitas vezes causaram terríveis confusões doutrinárias e guerras civis. Esses
males devem ser evitados com cuidado e julgados com seriedade e discernimento, determinando
em quais questões lutar e em quais não. Não devemos lutar por questões pessoais, nem usar
ódios e invejas pessoais como desculpa para causas públicas, mas sim defender com firmeza e
mente serena a pureza da verdadeira e necessária doutrina.
Embora a Filosofia busque as causas imediatas nas ações e vontades humanas para os
infortúnios humanos, na Igreja de Deus foram reveladas outras causas principais, a saber, o
pecado na natureza humana e os ataques do Diabo, que, principalmente na hostilidade à Igreja,
busca desonrar a Deus.
Embora essas sejam as causas primordiais de todos os infortúnios, existem distinções
específicas entre eles. Por exemplo, uma causa próxima da aflição de Davi é o fato de ter sido
expulso do reino devido a adultério e assassinato, enquanto uma causa próxima das aflições de
Jeremias é sua morte por se manter firme na confissão da verdade. Devido a essa diversidade de
causas, podemos nomear diferentes tipos de infortúnios com termos distintos, os quais utilizo
com palavras específicas, a fim de facilitar a compreensão da doutrina sobre a diversidade das
causas, tornando-a mais clara e acessível, algo essencial tanto para a consolação quanto para a
avaliação de debates sobre expiações e outros assuntos.
Portanto, o primeiro tipo é o das “τιμωρίαι” (timo̱ ríai), que são as punições para delitos
específicos. Estas não são compensações ou satisfações que merecem a remissão da culpa ou da
punição eterna, mas são obras da justiça divina pelas quais Deus deseja nos lembrar, a nós e aos
outros, de Sua justiça. Isso nos leva a entender quais são os pecados e que Deus realmente se ira
com os pecados, punindo-os nesta vida mortal e na vida futura, a menos que nos convertamos a
Ele. Muitos infortúnios no gênero humano se enquadram neste tipo, pois muitas pessoas
provocam a ira de Deus, mesmo cometendo pecados graves.
Embora essas punições sejam atos da justa ira de Deus que afetam todas as nações, a Igreja
tem promessas sólidas e imutáveis que Deus, em Sua imensa misericórdia, nos deu e revelou.
Elas afirmam que, mesmo nesta ira, Deus deseja que recorramos ao Filho Mediador para sermos
salvos e agraciados com a salvação eterna. Muitas vezes, até mesmo nestas vidas mortais, esses
infortúnios são removidos ou mitigados. Portanto, em Miqueias 7 (v. 9), está escrito: “Portarei a
ira do Senhor, porque pequei contra Ele”. Aqui ele fala abertamente sobre a punição. No entanto,
ele também acrescenta consolo (v. 8): “Quando eu me sentar nas trevas, o Senhor será a minha
luz”.
A Igreja aprende muitas coisas com essas punições. Ela aprende quais são os pecados,
reconhece o justo julgamento de Deus e Sua ira contra o pecado, e atribui a Deus o louvor de Sua
justiça, como Daniel diz em Daniel 9 (v. 7): “A Ti, Senhor, pertence a justiça”. Ao mesmo
tempo, a Igreja também aprende que Deus suaviza Sua justa ira com Sua imensa bondade e
misericórdia, colocando nossa salvação acima de Sua indignação e que a ira é redirecionada para
o Filho para satisfazer a justiça. A consideração dessas conversas, de justiça e misericórdia, será
o estudo da sabedoria celestial na vida eterna. Mas, por enquanto, devemos começar a considerar
essas coisas piedosamente como novatos.
O segundo tipo é o das “δοκιμασιαι” (dokimasiai), quando as pessoas agradam a Deus não
por causa de delitos específicos, mas são afligidas para serem testadas e fortalecidas. Estas são
pessoas que não têm consciências feridas, como no caso da prisão de José, as aflições de Davi
quando Saul conspira injustamente contra ele, ou as calamidades de Jó. Embora haja pecados em
todas as vidas santas nesta vida, há uma causa próxima pela qual Deus tão severamente exercita
esses Seus instrumentos.
Deus não quer que a Fé e a Invocação sejam extintas pelo ócio e luxúria; Ele deseja que
essas virtudes cresçam justamente nas adversidades, tornando-se mais vigilantes e afortunadas na
governança da vida.
O terceiro tipo é o “μαρτύριον” (martýrion), quando as pessoas que realmente adoram a
Deus são afligidas ou mortas por causa da confissão da verdadeira doutrina. As mortes de Abel,
os sofrimentos de Jeremias, Paulo e outros que foram mortos por confessar a verdade não são
punições por delitos específicos, mas testemunhos nos quais eles demonstram que, ao colocar a
verdade da vida em primeiro lugar, eles sinceramente sentem sobre Deus da maneira que
ensinam e afirmam que a doutrina do Evangelho não é uma fábula.
Eles também testemunham que há outra vida e outro julgamento após esta vida. Paulo
ressuscitou os mortos para a vida, pelo qual exemplo divinamente demonstrou que Deus se
agrada de Paulo; e, portanto, não o rejeita, mesmo que ele seja morto pelo tirano mais vil, Nero.
Portanto, há outro julgamento, no qual Deus recompensará Paulo e punirá Nero. Assim como o
Filho de Deus suportou as maiores e mais amargas torturas, as principais luminárias da Igreja
suportam os maiores sofrimentos para experimentar o sofrimento do Filho de Deus. Abel, Isaque
e outros pais e profetas foram tipos significativos da morte de Cristo.
O quarto tipo é o “λυτρον” (lýtron, resgate). Este é exclusivamente a obediência do Filho de
Deus em todas as Suas aflições e morte. Pois, para Ele, a ira do Pai eterno contra os nossos
pecados foi direcionada.
É útil considerar esses quatro tipos distintos com nomes diferentes para esclarecer muitas
discussões.
19. A Invocação de Deus, ou Oração
Embora muitos escritos detalhados existam sobre outras virtudes, como a Temperança e a
Mansidão, é surpreendente que haja tão poucos tratados sobre a virtude suprema de todas, a
Invocação de Deus, e que até mesmo corrupções tenham sido misturadas com a invocação dos
mortos. Além disso, a doutrina da Fé, que deveria brilhar especialmente na invocação, é
negligenciada, assim como a distinção entre a promessa da graça e a promessa dos bens
corporais. É altamente benéfico ser bem instruído, minuciosamente e amplamente, sobre a
invocação, que é a tarefa exclusiva da Igreja. Estas muitas virtudes, como a Temperança e a
Mansidão, são encontradas mesmo naqueles que não conhecem a Deus, como no caso de
Pompónio Ático e outros. No entanto, a invocação é o muro da Igreja, como Salomão diz
(Provérbios 18. 10): “A torre forte é o nome do Senhor”, ou seja, a verdadeira invocação de
Deus.
Os graus devem ser distinguidos: ou pedimos algo a Deus, isso é propriamente chamado de
petição ou oração; ou damos graças por um benefício recebido, ou seja, testemunhamos
verdadeiramente que fomos ajudados por Deus e agradecemos a Ele, e, ao celebrar esse
benefício, convidamos a nós mesmos e aos outros ao temor de Deus, à fé e à invocação. Paulo
frequentemente menciona essas espécies, e as palavras em Filipenses 4 (versículo 6) são
conhecidas: “Não estejam inquietos por coisa alguma; antes, as suas petições sejam em tudo
conhecidas diante de Deus, pela oração e súplicas, com ação de graças”. Portanto, para que nossa
oração não seja vã e como o murmúrio dos pagãos, devemos separar nossa invocação das
práticas dos pagãos, muçulmanos e judeus, e aprender como invocar a Deus corretamente.
E, em primeiro lugar, frequentemente durante a invocação, devemos considerar a diferença
entre a verdadeira invocação feita pela Igreja de Deus e a invocação pagã, muçulmana e judaica.
Nesse sentido, saibamos que há principalmente duas distinções: uma relacionada à essência de
Deus e outra à Sua vontade revelada na promessa e por meio do Filho Mediador. Quanto ao
primeiro ponto, os pagãos, muçulmanos e judeus, bem como todos aqueles que invocam ídolos
ou mortos, estão desviados do verdadeiro Deus, que se revelou por meio de Sua Palavra e enviou
Seu Filho. Os muçulmanos invocam o Deus que afirmam ser o Criador do céu e da terra. No
entanto, eles não reconhecem este Deus como o verdadeiro Criador do céu e da terra, que nos
deu essa Palavra transmitida pelos profetas e apóstolos, nem concordam que Jesus é o Filho de
Deus. Portanto, eles estão desviados de Deus, como Cristo claramente afirma (João 5. 23):
“Quem não honra o Filho, não honra o Pai”. Deus não deseja ser reconhecido de outra forma
senão por meio de Sua Palavra e pelo Seu Filho. Portanto, repetimos várias vezes que não deve
ser considerada nenhuma igreja de eleitos, a menos que seja uma congregação chamada, onde o
Evangelho é verdadeiramente pregado. E é somente aqui que ocorre uma verdadeira invocação,
porque a invocação deve ser dirigida a esse Deus que se revelou por meio dessa Palavra e enviou
Seu Filho Jesus Cristo.
Outra distinção não menos importante é a seguinte: embora a razão natural reconheça a
existência de Deus, uma mente eterna, um poder infinito, sabedoria, justiça, bondade e o criador
de todas as coisas, ela não sabe se Deus aceitará nossas preces, e por que Ele as aceitaria.
Ignoram o Mediador Cristo e as promessas. No entanto, a verdadeira invocação não é aquela que
duvida se Deus aceitará nossas preces e ignora por que Ele as aceitaria. Isso é apenas um
murmúrio vazio, como retratado por Virgílio (Eneida IV, 208-210) na oração do rei bárbaro:
“Por acaso, você, meu pai, lançando raios dos céus,
Nos amedronta em vão? As chamas cegas nas nuvens
Apenas aterrorizam nossos espíritos, misturando murmúrios vazios?”.
Assim, relatam que em Creta havia uma estátua de Júpiter que não tinha ouvidos nem olhos,
pela qual alguém ímpio insinuou que não havia providência alguma, que as preces dos humanos
não eram aceitas. Contra esse mal, as mentes precisam ser instruídas de que, ao orar, devemos
trazer a fé de que nossas preces são verdadeiramente recebidas por Deus e aceitas por causa do
Mediador Filho, de acordo com as promessas.
Portanto, ao orarmos, devemos considerar alguma forma que abranja ambas as distinções,
lembrando-nos das pessoas da divindade e das promessas:
Onipotente, eterno e Deus vivo, eterno Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que se revelou com
imensa bondade e proclamou por meio de Teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, “A Ele ouçam”,
Criador de todas as coisas e Preservador, juntamente com Teu Filho coeterno, nosso Senhor
Jesus Cristo, e Teu Espírito Santo derramado sobre os Apóstolos, sábio, bom, misericordioso,
justo e poderoso, tem misericórdia de mim por meio de Jesus Cristo, Teu Filho, nosso Senhor, a
quem Tu designaste como um sacrifício, mediador e intercessor[136], em Teu conselho
maravilhoso e inexprimível, a fim de mostrar Tua grande ira contra o pecado e Tua imensa
misericórdia para com a humanidade. Santifica-me e guia-me pelo Espírito Santo, protege e
dirige Tua Igreja e as instituições que abrigam a Tua Igreja, auxilia o aprendizado da doutrina
da Igreja e outras artes nobres, etc.
Esta forma de oração de alguma forma nos lembra das pessoas, do Mediador e das
promessas. Pois, quando mencionamos o Mediador, as promessas vêm à mente, como eu
mencionarei depois. Devemos pensar a quem direcionar nossa invocação a Deus, onde e por que
Ele se revelou. É um imenso e inexprimível benefício de Deus que Ele tenha se revelado tão
claramente e com testemunhos tão evidentes, por meio de Sua Palavra e de Seu Filho enviado,
Jesus Cristo.
Portanto, Ele deseja ser reconhecido da maneira como se revelou, e somente ouve e aceita
aqueles que invocam a Deus revelado dessa maneira e reconhecem o Mediador.
Certamente, essa descrição de Deus apresentada por Platão é encantadora e instrutiva: Deus
é uma mente eterna, a causa do bem na natureza. Alguém poderia perguntar: O que mais precisa
ser reconhecido? Não reconheceu Platão Deus como Ele é, eterno, sábio, bom, o criador de todas
as coisas boas? No entanto, ainda não disse o suficiente, pois nossas mentes devem ser dirigidas
a Deus da maneira como Ele se revelou, e a doutrina do Filho Mediador deve ser mantida.
Depois de apontar essas distinções, agora dividirei a doutrina sobre a invocação em cinco
partes.
Primeiro, pense em quem você está invocando, para quem sua mente está direcionada como
Deus. Não permita que sua mente vagueie como a dos pagãos, mas, como Cristo disse em João
14. 6, “Ninguém vem ao Pai senão por Mim”. Pense em apenas este Deus verdadeiro, que se
revelou desde o início à Sua igreja por meio de Sua Palavra entregue e por meio de Seu Filho,
nosso Senhor Jesus Cristo, o Mediador. Portanto, sua forma de invocação deve abranger as três
pessoas e o testemunho da revelação.
E logo depois, você deve pensar na Palavra. Uma mente que não conhece a Palavra de Deus
se perguntará se Deus deseja ser invocado, se Ele se importa com nossos gemidos e por que Ele
deseja ouvir. Nenhum dever parece ser mais leve do que a invocação. Pois sempre tanto os
pagãos quanto os ímpios na igreja recitaram algumas orações. Quando pensamos nisso, as
mentes disputam, perguntando por que Deus se importaria mais conosco do que com eles?
Muitas vezes caímos, merecemos castigos e somos indignos dos benefícios de Deus. Contra
esses argumentos, que muitas vezes enfraquecem a invocação ou até a extinguem
completamente, vamos nos fortalecer com os seguintes pontos.
Portanto, o segundo preceito trata da oração. Não apenas os pecados como assassinato,
roubo e adultério são considerados, mas também o pecado é grande quando deixamos de prestar
a Deus esse culto, quando não buscamos, não esperamos auxílio de Deus em tempos de perigo e
quando não oferecemos ações de graças pelos benefícios recebidos. Devemos, portanto, opor os
preceitos à nossa incredulidade e indignidade. Quando você duvida se Deus deseja ser invocado,
se Ele se importa com nossos gemidos, lágrimas, votos e orações, lembre-se dos preceitos. Pois,
quando Ele nos ordena a invocá-Lo, a oração não é inútil. Se você se sente indigno, pense no
quão absurdo seria discutir sobre os outros mandamentos, alegando que não estamos dispostos a
abster-nos de roubo ou assassinato porque não somos dignos de obedecer a Deus. Se um senhor
de família ordenar a um servo uma tarefa legítima, ele não aceitará a desculpa do servo de que
não é digno de obedecer.
Portanto, os preceitos devem estar presentes em nossa mente enquanto oramos. Mateus 7 (v.
7): “Peçam, e será dado a vocês. Busquem, e encontrarão”. Há também uma promessa universal
adicionada (v. 8): “Porque todo o que pede recebe”. Lucas 18 (v. 1): “Convém sempre orar e
nunca desfalecer”. Mateus 26 (v. 41): “Vigiem e orem, para que não entrem em tentação”. 1
Timóteo 2 (v. 1): “Exorto, pois, antes de tudo, que se façam súplicas”. 1 Tessalonicenses 5 (v.
16. 18): “Regozijem-se sempre. Orem sem cessar. Em tudo deem graças”. Pois esta é a vontade
de Deus em Cristo Jesus para conosco. Salmo 49 (v. 15): “Invoque-me no dia da angústia; Eu o
livrarei”.
Eu falei sobre o preceito. No entanto, essas sentenças se relacionam com o segundo
mandamento do Decálogo. A invocação é, de fato, uma obra do segundo mandamento e uma
forma principal de culto.
O terceiro ponto é que, após considerar os preceitos, uma mente piedosa deve buscar as
promessas, para que ela saiba se e por que Deus nos ouve, mesmo quando somos indignos e
merecedores de castigos severos.
E agora, consideremos a ordem das promessas. Primeiro, coloquemos diante de nós a
promessa do perdão dos pecados. Pois a afirmação é verdadeira: Deus não ouve os pecadores, ou
seja, aqueles que não se arrependem e não buscam o perdão de seus pecados. Portanto, em toda
invocação, mesmo quando estamos pedindo qualquer outra coisa, devemos inicialmente pensar
na promessa de perdão dos pecados por causa de Cristo. Tenhamos diante de nós algumas
passagens muito claras, como Atos 10 (v. 43), que diz: “A Ele todos os profetas dão testemunho
de que todo aquele que n’Ele crê recebe o perdão dos pecados por meio do Seu nome”. E
Romanos 5 (v. 1): “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus”.
E é útil lembrar de muitas passagens, como discutimos anteriormente sobre a justificação e o
arrependimento, para que fique profundamente enraizado em nossas mentes que esta é
verdadeiramente a voz contínua do Evangelho, desde a promessa feita a Adão, de que a remissão
é concedida com certeza por meio de Cristo, e em toda invocação a Deus devemos nos
aproximar com confiança no Mediador Cristo, como está escrito em Efésios 3 (v. 12): “Por meio
d’Ele temos liberdade de acesso a Deus com confiança”.
Depois de sermos lembrados sobre a reconciliação, podemos então reunir as promessas de
bens espirituais e corporais. João 16 (v. 23) diz: “Em verdade, em verdade lhes digo, se pedirem
alguma coisa ao Pai em Meu nome, Ele concederá a vocês”. “Em Meu nome”, ou seja,
“mencionando-Me, ou seja, se pedirem em Meu nome, como Mediador e Pontífice intercedendo
por vocês”. Pois Ele ordena que nos aproximemos de Deus com a confiança do Mediador, como
já mencionado várias vezes (João 14. 6): “Ninguém vem ao Pai senão por Mim”. Lucas 11 (v.
13): “Quanto mais o Pai celestial dará o Espírito Santo àqueles que pedirem a Ele?”. Salmo 49
(v. 15): “Invoque-Me no dia da angústia; Eu o livrarei”. João 15 (v. 7): “Se permanecerem em
Mim, e as Minhas palavras permanecerem em vocês, pedirão o que quiserem, e lhes será feito”.
Essas palavras vinculam a promessa à Igreja, na qual ressoa verdadeiramente a voz do
Evangelho. Portanto, a Igreja de Cristo, ou seja, o grupo que prega o Evangelho de Deus, deve
ter certeza de que suas orações serão atendidas, desde que ela mantenha o Evangelho. O mesmo
princípio é aplicado à Igreja em Mateus 18 (v. 19): “Se dois de vocês concordarem na terra em
qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por Meu Pai que está nos céus. Pois onde estão
dois ou três reunidos em Meu nome, aí estou Eu no meio deles”. Aqui, também, uma doce
promessa é feita à Igreja. Deuteronômio 4 (v. 7): “Porque qual é a grande nação a quem temos
um Deus tão próximo, como o Senhor nosso Deus em tudo quanto O invocamos?”. Afirma-se
aqui que a Igreja é verdadeiramente ouvida, onde a palavra de Deus ressoa. Salmo 144 (v. 18):
“O Senhor está perto de todos os que O invocam, de todos os que O invocam em verdade”. Ele
cumprirá a vontade dos que O temem e ouvirá o clamor deles. Isaías 65 (v. 24): “Antes que
clamem, Eu responderei; ainda não estão falando, e Eu os ouvirei”. Eclesiástico 35 (v. 21): “A
oração do humilde penetra as nuvens, e não cessará até que alcance o seu objetivo; não
descansará enquanto não chegar às alturas”.
A inefável bondade e misericórdia de Deus em relação à Igreja ressoam na voz do
Evangelho. Ele ordena que busquemos o bem e acrescenta promessas abundantes para nos
convidar à oração. No entanto, a fraqueza é grande, e o espanto da mente humana em fugir de
Deus é profundo. Portanto, despertados por tantos mandamentos e promessas, devemos superar
nossas dúvidas e começar a nos aproximar de Deus sob a orientação de Cristo. Não devemos
considerar as promessas divinas como meros sons vazios, como os Epicuristas afirmam. Deus
não revelou a Si mesmo por meio de tantos testemunhos notáveis em vão, nem declarou Sua
vontade em vão. Ele deseja, por meio de Sua voz, dissipar nossa escuridão e nossas dúvidas.
Portanto, é belo o que Taulero[137] diz: “A mente do homem nunca está tão ansiosa para receber
quanto Deus está ansioso para dar, pois Ele é verdadeiro e cumpre Suas promessas”.
O quarto ponto a ser considerado é que a fé deve ser inflamada na oração. Pois as promessas
foram dadas para que a fé seja estimulada. E assim como mencionei anteriormente a ordem das
promessas, aqui deve ser entendido que, em toda oração, seja qual for a coisa que se pede, a fé
deve brilhar primeiro. Essa fé recebe o perdão dos pecados, estabelece que agradamos a Deus e
que nossas orações são verdadeiramente aceitas por causa do Filho de Deus, o Mediador.
Portanto, mesmo quando Paulo cita testemunhos sobre a fé, eles também incluem outros objetos
externos, no entanto, eles compreendem essa fé como um todo. Alguns podem contestar isso,
alegando que Paulo cita passagens de Gênesis e dos Profetas de maneira pouco fiel, mas não
poderia ser que Davi pedisse vitória se ele não tivesse primeiro estabelecido que seus pecados
lhe eram perdoados, que ele era aceito por Deus e que suas orações eram aceitas por Deus. Já
mencionei isso anteriormente ao falar sobre a justificação.
Em seguida, é preciso discernir as coisas que são pedidas. Ou estão sendo solicitados bens
espirituais, que Deus prometeu expressamente dar sem condições, como o perdão dos pecados,
libertação da impiedade e da morte eterna, a doação do Espírito Santo e da vida eterna. Esta é a
principal promessa do Evangelho, que Deus deseja ser a mais segura, mesmo quando todos os
bens materiais são perdidos, como é dito em Romanos 4. 16: “Portanto, é pela fé, a fim de que
seja segundo a graça, para que a promessa seja firme”.
Ao buscar essas coisas, a fé não impõe nenhuma condição, porque o mandamento de Deus é
imutável, ordenando que ouçamos a Cristo, que creiamos no Evangelho e que confiemos
firmemente que, ao agirmos com arrependimento, seremos aceitos por Deus através de Cristo.
Aqueles que não creem nisso estão acusando Deus de mentir. Portanto, nessas petições, não
devemos adicionar nenhuma condição, mas sim crer no juramento divino, como está em
Ezequiel 33. 11: “Assim como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não desejo a morte do pecador, mas
que o ímpio se converta do seu caminho e viva”. Saul, mesmo depois de perder algumas
batalhas, não deveria ter se afastado de Deus, mas sim recorrido a Ele e buscado reconciliação.
Davi, mesmo sendo destituído de seu reino e toda a sua glória, não deveria perder a fé em Deus,
mas sim lembrar da promessa de reconciliação e manter essa promessa pela fé, mesmo que toda a
natureza e circunstâncias pareçam adversas. Embora a Igreja esteja sujeita às aflições presentes
do corpo, não devemos considerar que fomos abandonados à perdição eterna por causa delas,
como já mencionei anteriormente. Como está em 1 Coríntios 11. 32: “Mas, quando somos
julgados, somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo”. E Jesus
disse em Mateus 5. 5: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”.
Falei sobre a petição de bens espirituais, agora falarei sobre os benefícios corporais. Aqui
também, como mencionei antes, a fé deve prevalecer, aceitando a remissão dos pecados e a
convicção de que somos aceitos por Deus e que nossas preces são ouvidas por causa de Cristo.
Essa fé deve ser trazida a Deus em todas as petições. Quanto às coisas que estão sendo pedidas,
três coisas devem ser cridas: Primeiro, que Deus é verdadeiramente o doador desses benefícios, e
eles não são apenas acidentais ou obtidos apenas através de esforços humanos. Portanto, para
reconhecer que eles são divinamente concedidos, Deus deseja que eles sejam pedidos a Ele,
como sustento, proteção, tranquilidade, paz, sucesso nas vocações, boa saúde, entre outros. Além
disso, deve-se crer que Deus, embora deseje que a Igreja esteja sujeita à cruz, ainda deseja dar
benefícios corporais a ela para que não seja destruída. Isso inclui autoridades civis, meios de
subsistência modestos, alimentos, defesa, oportunidades de educação, escolas, sucesso em tarefas
de governo e outras coisas necessárias. Em terceiro lugar, deve-se crer que Deus deseja que
nossa fé na reconciliação seja exercitada e cresça mesmo ao pedir benefícios corporais.
Todas essas considerações devem estar presentes ao pedir bens corporais. Como sabemos
que a Igreja deve estar sujeita à cruz, devemos sempre fazer esses pedidos de tal forma que
também ofereçamos nossa obediência, se Deus desejar nos exercitar por mais tempo. Por
exemplo, assim como Davi pediu e esperou ser restaurado ao trono quando foi expulso por seu
filho, ele ainda ofereceu sua obediência a Deus, caso Deus não o restaurasse. Portanto, ele disse
em 2 Samuel 15. 25: “Se eu encontrar favor aos olhos do Senhor, Ele me trará de volta; mas se
Ele disser que não lhe aprovo, estou pronto; faça o que Lhe parecer bem”. Da mesma forma,
Jesus disse em Mateus 26. 39: “Pai, se for possível, afasta de Mim este cálice; contudo, não seja
como Eu quero, mas como Tu queres”. E o leproso disse em Mateus 8. 2: “Senhor, se quiseres,
podes me purificar”. Os três jovens na fornalha ardente, conforme descrito em Daniel 3. 17,
disseram: “Se o nosso Deus, a quem servimos, puder nos livrar, Ele nos livrará da fornalha
ardente e da sua mão, ó rei. Mas, mesmo que Ele não o faça, fica sabendo, ó rei, que não
prestaremos culto aos seus deuses”. Paulo também disse em Romanos 8. 26: “Da mesma forma,
o Espírito nos ajuda em nossa fraqueza. Não sabemos o que devemos orar, mas o próprio
Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis”. Isso significa que nossa carne, oprimida
pelas tribulações, pede libertação e reluta na obediência, mas o espírito nos chama de volta à
obediência. Mesmo que peça e espere ser libertada, não se opõe à vontade de Deus, mas deseja
ser libertada quando for do agrado de Deus.
Portanto, sempre que pedimos por questões relacionadas à Igreja, ao Estado, à família ou à
educação, devemos manter essa fé geral, como mencionei anteriormente. Em relação às próprias
questões, devemos crer que Deus nos libertará das calamidades pelas quais estamos pedindo ou
as atenuará. Uma vez que a Igreja esteja sujeita à cruz nesta vida, algumas tribulações
permanecerão, mas Deus as aliviará para os piedosos que O invocam. Os profetas pedem essa
mitigação. Jeremias, por exemplo, ora por uma correção no julgamento, não na ira, quando diz
em Jeremias 10. 24: “Corrige-me, Senhor, mas com juízo, não com ira, para que não me reduzas
a nada”. E Habacuque, em Habacuque 3. 2, diz: “Senhor, ouvi a Tua fama; temo a Ti, Senhor,
aviva a Tua obra no meio dos anos, faze-a conhecida no meio dos anos; na ira lembra-Te da
misericórdia”. Isaías também suplica em Isaías 64. 9: “Não Te indignes tanto, Senhor; não Te
lembres de nossa iniquidade para sempre. Olha para nós, nós Te suplicamos; somos todos o Teu
povo”.
Nesse tipo de oração, cada indivíduo não ora apenas por si mesmo, mas primeiro pela
totalidade do corpo da Igreja. Oramos para que isso seja preservado, mesmo que cada membro
esteja disposto a obedecer no que for necessário. Da mesma forma que Davi orava pedindo
vitória para o exército, visando o bem-estar da Igreja. Ao mesmo tempo, ele sabia que alguns
estariam em perigo ou seriam mortos, e ele ofereceu sua própria obediência a Deus. Sua oração
não é vã, pois é aceita por Deus e garante a muitos a mitigação do mal. Assim, quando oramos
para que uma praga seja atenuada, não estamos preocupados apenas conosco, mas abrangemos
toda a Igreja daquela região. Nossas orações são aceitas por Deus e, com certeza, garantem a
segurança de muitos. Deus deseja que, em nossas orações, tenhamos preocupação com os outros
e cuidemos de toda a Igreja, como está escrito em Salmo 122. 6: “Orem pela paz de Jerusalém;
prosperem aqueles que a amam”.
Em Eurípides (Supl. 768), quando Teseu recebe os corpos dos Argivos para serem
enterrados em Tebas e, em seguida, lava-os com as próprias mãos, alguns se perguntam por que
ele não deixa esse trabalho sujo para os servos. Alguém responde que tal ato seria orgulhoso ou
inadequado para um homem, pois, diante de calamidades, é inaceitável se afastar das misérias
alheias quando é nosso dever ajudar uns aos outros, “όυκ αιοχρόν άνθρώποισιν άλλήλων κακά”
(os males dos homens não são alheios)[138]. O exemplo desse verso extremamente nobre é visto
de maneira mais proeminente em Cristo. Ele não considerou indigno de Si mesmo carregar sobre
Si as punições de nossos pecados e Se preocupar com nossas misérias. Da mesma forma, como
indivíduos, devemos ser movidos pelas calamidades da Igreja, do Estado, de nossos pais, filhos e
amigos, e não apenas buscar ajuda para nós mesmos, mas também para os outros.
E o que é a Fé especial que espera especificamente pela libertação ou mitigação, aprendemos
a entender em seu uso prático, ou seja, quando o coração invoca a Deus em perigos ou aflições
corporais e, ao mesmo tempo, aprende a se aquietar em Deus pela fé. Quanto maior for a dúvida
e a falta de confiança, mais sentimos tormento em nosso coração. A fé é mais ardente em
algumas pessoas e mais fraca em outras. A fé era ardente e firme na mulher cananeia que
intercedia por sua filha, assim como no centurião. A fé era mais fraca no pai que trouxe seu filho,
primeiro aos apóstolos e depois a Cristo, como está escrito em Marcos 9 (v. 21): “Se Tu podes
fazer alguma coisa, tem compaixão de nós!”, e depois, em lágrimas, ele reconheceu a fraqueza de
sua fé e pediu para ser fortalecido (v. 23): “Creio, Senhor; ajuda-me na minha falta de fé”.
Aprendamos também a reconhecer a agitação do coração que se afasta de Deus. Mesmo que
nossa fé seja fraca, sempre devemos lembrar que nossas preces não são inúteis, e não são um
murmúrio vazio, como os Epicuristas e Acadêmicos podem pensar. Elevemos nossos espíritos
lembrando-nos de tantas promessas e considerando as circunstâncias das coisas. Devemos saber
que a reconciliação deve ser pedida especificamente e crer que ela é recebida sem a necessidade
de acrescentar condições, se assim Deus quiser. Pois Deus expressou Sua vontade e instruiu
especificamente que a reconciliação seja pedida. Não devemos nos perturbar com perguntas
sobre predestinação, que já mencionei anteriormente que devem ser deixadas de lado. Devemos
julgar a vontade de Deus com base em Sua palavra expressa.
Em seguida, devemos pedir especificamente a libertação ou a mitigação das aflições
corporais. Nesse caso, nossa obediência é necessária, se Deus a requerer. No entanto, a oração
não é inútil, pois obtém a libertação ou a mitigação para nós ou para outros. A oração de
Lourenço na grelha não é em vão, mesmo que ele demonstre obediência; pois mesmo que ele não
seja libertado, a oração obtém uma força maior. Jônatas, embora seja morto pelos inimigos, ora
pelo exército e por si mesmo, mesmo quando segue seu pai em desgraça. Eventualmente, a parte
que ele desejava que fosse superior prevalecerá, e ele mesmo é sustentado por uma consolação
secreta.
Portanto, não devemos considerar esses pedidos de benefícios corporais como inúteis só
porque nem sempre os resultados correspondem ao que desejamos. No entanto, muitas vezes
esses pedidos têm respostas, como Agar obtendo água para seu filho; Jacó obtendo proteção em
sua jornada para não ser prejudicado por seu irmão Esaú; Moisés obtendo vitória ao orar pelo
exército em batalha, com os braços erguidos segurando uma pedra; Ana, a mãe estéril de Samuel,
obtendo fertilidade; Josafá, Ezequias, os Macabeus e muitos outros obtendo vitórias por meio da
oração; os habitantes de Nínive obtendo a preservação de sua cidade. Nas histórias do
Evangelho, há muitos exemplos disso.
Acrescentemos a essas histórias as libertações cotidianas que são obtidas pelas orações da
Igreja em todos os tempos. Quantas vezes, mesmo que tenhamos orado com tremor, Deus
atendeu às nossas súplicas e afastou ou amenizou grandes males para você, para mim e para
qualquer um de nós! Não devemos presumir que essas libertações tenham ocorrido por acaso,
como é comumente aceito entre os seres humanos, que, após receberem um benefício,
negligenciam aqueles que os ajudaram. Eu sei que, com a ajuda de Deus, algumas vezes grandes
calamidades foram amenizadas para mim.
Portanto, todas as libertações, tanto as que lemos nos exemplos quanto aquelas que
experimentamos em nossas próprias vidas, devemos considerar como exemplos das promessas
divinas. Lembrados tanto das promessas quanto dos exemplos, devemos aprender a invocar a
Deus, pedir e esperar por Sua ajuda. Nossa fé e confiança devem se fortalecer gradualmente, e
nossos corações devem ser cheios de esperança e expectativa da ajuda divina. Dessa forma,
aprendemos a aplicar o seguinte versículo em nossa vida (Salmo 55. 23): “Lança o seu cuidado
sobre o Senhor, e Ele o susterá; nunca permitirá que o justo seja abalado”.
Deus concede bens materiais, como esta vida, para que sempre haja uma igreja de Deus na
terra, para que haja mestres e alunos, para que a doutrina não seja destruída e as Escrituras não se
percam. Se todos os apóstolos tivessem sido mortos imediatamente, quem teria levado e
espalhado o Evangelho pelo mundo? Portanto, Deus concede a cada mestre o seu curso,
enquanto protege o corpo do mestre, fornecendo um lar, uma sociedade, uma escola, alimentos,
assim como Deus preservou o navio de Paulo até que Paulo chegou ao porto. Portanto, devemos
considerar as verdadeiras razões pelas quais esses bens materiais são concedidos e, de maneira
ordenada e séria, pedir por eles como bênçãos necessárias de Deus.
Duas circunstâncias também exercem nossa fé ao pedir: o modo e o tempo. Moisés não
poderia prever que vagaria pelo deserto com uma grande multidão por quarenta anos, mas talvez
esperasse que a jornada durasse apenas um mês. Assim, muitos exemplos nos ensinam que Deus
liberta de maneiras e em momentos diferentes do que imaginamos ou desejamos em nossa
fraqueza. Ele nos treina para dependermos da fé n’Ele, não sendo conduzidos por nossas próprias
opiniões. Portanto, no Salmo 4. 4, está escrito: “O Senhor opera maravilhas para os Seus fiéis; o
Senhor me ouvirá quando eu clamar por Ele”. Isso significa que Deus não liberta de acordo com
os conselhos humanos, mas de maneiras surpreendentes que a razão humana não pode prever. Da
mesma forma, Efésios 3. 20 diz que Deus é capaz de fazer muito mais do que pedimos ou
compreendemos. Quanto à demora, ela é frequentemente mencionada, como no exemplo do juiz
relutante e da viúva em Lucas 18. 7. Também em Habacuque 2. 3: “Ainda que a visão demore,
espera-a; porque ela certamente virá, não tardará”.
Portanto, não é da nossa competência prescrever a Deus o modo e o tempo, mas devemos
totalmente confiar em Seu conselho. Nossos olhos não devem estar fixos nas circunstâncias e
eventos, mas sim em Deus, para que assim sejamos incentivados a orar. Um exemplo notável
dessa regra pode ser encontrado na história de Judite, no capítulo 8. Quando Judite soube que o
sumo sacerdote havia determinado um prazo de cinco dias para Deus agir, ela o repreendeu,
dizendo: “Quem são vocês para tentar o Senhor? Este discurso só aumentará a Sua ira: ‘Vocês
estabeleceram um tempo para Deus ajudar’” (versículos 11 e 13).
Portanto, ignorantes do modo e do tempo, devemos olhar para Deus e buscar d’Ele
resultados tranquilos, como é dito em 2 Crônicas 20. 12: “Quando não sabemos o que fazer, este
é o único recurso que nos resta: dirigir os nossos olhos para Ti”. Essa sentença, que contém uma
consolação muito doce, deve estar sempre presente em todas as situações incertas que não podem
ser resolvidas por conselhos humanos, das quais há muitas na vida das pessoas. Portanto, vou
incluir os versos de Joachim Camerarius, nos quais ele expressou este ensinamento do rei Josafá,
para lembrar aqueles que estudam este preceito:
“Nas trevas de nossa mente e densa escuridão,
Quando não há conselho em nosso peito,
Perturbados, erguemos a Ti, Deus, os olhos de nosso coração,
E nossa fé só ora por Tua ajuda.
Tu governa nossas ações com conselhos, Pai bondoso,
Para que toda nossa obra sirva à Tua glória.”[139]
Da mesma forma, o Salmo 37. 5 nos ensina: “Entrega o seu caminho ao Senhor, confie
n’Ele, e o mais Ele fará”. E há um exemplo notável em Êxodo 14. Quando o faraó liderando um
exército real se aproximou dos israelitas e parecia que iria esmagá-los, porque a multidão dos
israelitas estava desarmada e parcialmente cercada pelo mar e pelas montanhas, sem chance de
fuga, e o perigo não podia ser dissipado por nenhum conselho humano, Moisés clamou (v. 13):
“Não temam; estejam quietos e vejam o livramento do Senhor, que Ele hoje lhes fará”. Ele
ordenou que ficassem firmes, ou seja, não prescrevessem um plano para Deus, não recorressem a
auxílio humano, mas, estando nesse estado de obediência a Deus, aguardassem com
tranquilidade a defesa de Deus, conforme ensinam as sentenças citadas anteriormente (Isaías 30.
15): “Na calma e na confiança está a sua força”. E também (Salmo 46. 11): “Estejam quietos e
saibam que Eu sou Deus”.
O quinto ponto é: na oração, devemos considerar e recitar aquilo que estamos pedindo. Pois
a oração é um ato de culto a Deus, porque presta homenagem a Deus ao reconhecer que, em
meio às nossas misérias, encontramos ajuda quando O invocamos, e que o nome de Deus não é
vão, como afirmavam os epicuristas com fúria, nem está ligado às causas secundárias, como
diziam os estoicos. Certamente, a recitação vazia de palavras é inútil, quando não nos lembra de
aceitar os benefícios de Deus, nem agradecer a Deus pelos benefícios recebidos. Até mesmo os
demônios, inimigos de Deus, sabem com certeza que Deus é uma mente eterna, de infinito poder,
sabedoria, justiça, bondade e misericórdia, o Criador de todas as coisas. No entanto, eles não são
movidos a amar a Deus por essa compreensão, porque não pedem nenhum benefício a Ele.
Portanto, a petição deve ser por um benefício específico, para que possamos reconhecer que
Deus não é apenas bom em Si mesmo, mas também benévolo em relação a nós. Isso é o que Ele
requer que sejamos reconhecidos. As coisas a serem pedidas devem ser aquelas que não são
proibidas pelos mandamentos de Deus. Saul não deve pedir a morte de Davi, nem Davi deve
pedir a morte de Urias. Como 1 João 5. 14 diz: “E esta é a confiança que temos n’Ele: que, se
pedirmos alguma coisa segundo a Sua vontade, Ele nos ouve”.
E quanto à ordem, já foi dito muitas vezes anteriormente. É necessário pedir a reconciliação
antes de tudo, pois Davi pediria a vitória em vão se não pedisse a remissão dos pecados ao
mesmo tempo. Portanto, a fé que busca a reconciliação deve preceder e estabelecer que somos
aceitos por causa de Cristo em todas as outras petições. Em seguida, devemos considerar nossa
grande fraqueza, tanto da alma quanto do corpo, para entendermos que precisamos da ajuda de
Deus. Uma grande parte das pessoas vive em tanta escuridão que nem mesmo reconhecem suas
misérias. Pessoas embriagadas com prazeres, ricas e vivendo sem grandes dores desfrutam das
comodidades do presente e não acreditam que precisam da ajuda de Deus. Por outro lado, outras
pessoas que suportam misérias inextricáveis são oprimidas pelo peso das coisas e são forçadas a
buscar a ajuda de Deus, como Isaías diz em Isaías 26. 16: “Senhor, eles Te buscaram na angústia,
quando a Tua disciplina estava sobre eles”. Portanto, primeiro devemos considerar os perigos das
opiniões e dos hábitos. Muitas pessoas notáveis caíram terrivelmente, como Adão, Arão, Davi,
Pedro e muitos outros incontáveis, dos quais muitos não se arrependeram, como Samósata, Ário
e outros. Não devemos reconhecer apenas nossa fraqueza aqui, mas também o Diabo, nosso
inimigo, que, como um leão rugindo, rodeia-nos buscando a quem devorar. O Diabo teceu uma
trama longa, não apenas para envolver Davi e a esposa de Urias em adultério, mas também para
iniciar uma tragédia longa e inextricável a partir desse ponto, na qual ele esperava que Davi
finalmente perecesse, assim como Saul havia perecido.
E, de fato, é lamentável que haja tanta insensatez entre as pessoas, de modo que, mesmo
quando testemunhamos exemplos diários de casos muito tristes que são claramente originados
pelo Diabo, não tomamos precauções maiores nem buscamos a proteção de nosso guardião,
Cristo, com mais cuidado. O furor manifesto do Diabo estava na revolta anabatista na cidade de
Münster, e o resultado foi extremamente triste. No entanto, as mentes das pessoas não são
suficientemente movidas pela feiura desse furor ou pela punição para se afastarem das loucuras
dos anabatistas. Com que frequência o Diabo inicia guerras sem causas reais? Com que
frequência ele nos inflige grandes feridas pessoais quando nos envolve nas relações de pessoas
mal-intencionadas com algum conselho aparentemente atraente? Em resumo, a magnitude dos
males com os quais o Diabo envolve as pessoas, e até mesmo a Igreja, não pode ser descrita em
palavras, mas pode ser de alguma forma reconhecida ao examinarmos os registros históricos de
todos os tempos e os exemplos da vida cotidiana, considerando também nossas próprias quedas.
Então, os perigos para o corpo, a reputação, os bens, os filhos, as igrejas e as regiões que nos
concedem hospitalidade para nossos estudos são muitos e maiores do que podem ser
compreendidos em uma única oração. A Igreja sempre vive como Daniel sentado entre os leões;
o Diabo sempre está à espreita de nós de todos os lados e, ocasionalmente, derruba muitos de
nós; os ímpios sempre tramam atrocidades contra a Igreja; devemos sempre esperar alguns casos
terríveis, como há muitas quedas repentinas, e é verdadeiramente dito (Ovídio, Epístolas IV. 3,
35, 36):
“Todos os homens estão pendurados por um fio fino
E o que parece ser forte de repente cai e afunda em ruínas”.
A juventude, ainda ignorante da vida, imagina que as pessoas nascem para desfrutar de
prazeres e delícias, e busca essas coisas com mentes ociosas. No entanto, os idosos, que
experimentaram as misérias comuns, julgam de maneira muito diferente e compreendem que esta
vida é cheia de dificuldades, semelhante a uma cidade cercada por todos os lados e ferozmente
atacada pelos inimigos, onde os inimigos irrompem de vez em quando, incendeiam edifícios e
causam estragos, e mal são repelidos. Certamente, todos os sábios se maravilham com o motivo
pelo qual essa natureza humana, tão notável e ainda assim frágil, é sobrecarregada por tantas
misérias que não pode suportar por conta própria.
O ditado antigo afirma que cada pessoa é o mestre do seu destino, como se pudéssemos
controlar completamente o nosso destino e evitar todos os infortúnios com nossos próprios
planos e precauções. No entanto, é evidente que isso não pode ser aplicado à totalidade do
governo humano. Adão, por exemplo, não poderia prever e impedir o crime de seu filho Caim,
nem se livrar por seus próprios esforços das enormes tristezas que seguiram àquela tragédia
fraternal. A diligência pode ser benéfica em aspectos mais leves da vida, onde as decisões
dependem de nossa vontade. Cipião, através de sua moderação, moldou sua própria sorte,
evitando iniciar uma guerra civil por vingança, como fizeram posteriormente Mário, Pompeu e
César.
No entanto, é inegável que muitos infortúnios tristes podem ocorrer na vida humana, que não
podem ser previstos ou, mesmo quando previstos, não podem ser evitados devido aos erros
humanos frequentes. Muitas vezes, nos iludimos e criamos expectativas tolas para nós mesmos.
Por exemplo, Pompeu poderia ter evitado a guerra civil, mas, movido pela ganância e
expectativas vazias, errou em seu julgamento, como é dito: Os vazios pensam sonhos vazios por
causa do desejo[140].
Por fim, depois que os dados estão lançados, muitas vezes ocorrem eventos que não
podemos suportar sem a ajuda de Deus. Adão e Davi teriam sucumbido às suas aflições se não
tivessem sido sustentados divinamente. Além disso, mencionei as causas de tantas misérias, das
quais a Filosofia não tem conhecimento, ou seja, que Deus, como juiz justo, declara Sua ira
contra a corrupção comum que se encontra em todos os seres humanos e contra muitos pecados
individuais, pelos quais as punições comuns se acumulam.
A razão humana apresenta um argumento frequentemente debatido, que é útil esclarecer
aqui:
1. O que é justo deve ser bom.
2. A Igreja é justa.
3. Portanto, a Igreja deve ser boa.

Primeiro, é importante responder à premissa menor, que afirma que a Igreja é justa,
especificamente em termos de imputação e início de justiça nesta vida mortal. No entanto, ainda
existe uma grande escuridão dentro dela, com muitas dúvidas sobre Deus e muitos afetos
prejudiciais. Além disso, muitos lapsos notáveis ocorreram dentro da própria Igreja, como os de
Arão e Davi, que provocaram a ira de Deus. Como mencionei anteriormente, a Igreja é mais
severamente testada do que outras partes da humanidade que não invocam adequadamente Deus,
porque Deus na Sua Igreja deseja principalmente que Sua ira contra o pecado seja reconhecida.
Pessoas como Tibério e outros que desdenham a Deus, embora possam enfrentar punições após
esta vida, não são tão severamente testadas aqui quanto a Igreja, porque Deus na Igreja deseja
que Seu julgamento seja visível e temido, como está escrito (1 Pedro 4. 17): “Pois o tempo é
chegado para o julgamento começar pela casa de Deus”. Além disso, há outras razões que
mencionei anteriormente.
Agora, vou responder à premissa maior: “O que é justo deve ser bom”, o que está de acordo
com a ordem divina e é assim que a Lei estabelece (Levítico 18. 5): “Aquele que os cumprir,
viverá por eles”. Além disso, em Deuteronômio 4. 1, está escrito: “Obedeça e viva”. E em
Deuteronômio 28. 1,6: “Se ouvirem a voz do Senhor, seu Deus, e cumprir todos os Seus
mandamentos, serão abençoados ao entrarem e saírem”, ou seja, em todos os aspectos da
governação política e económica, em guerras, paz, na procriação, governo e sucessão de filhos,
na manutenção da pureza da Igreja e na disciplina adequada, entre outros. Portanto, a voz da Lei
é verdadeira e a regra da ordem divina é: “Aos justos está reservada a felicidade”. Mas o
Evangelho fornece a interpretação dessa regra: “Os justos ficarão bem quando a Igreja for
glorificada”. No entanto, Deus adia as recompensas, pois a Igreja ainda não está livre de pecado.
Como todos os bens e males desta vida são curtos e passageiros, Deus não deseja adornar os
justos com bens fugazes nem punir os injustos com tormentos breves, mas deseja manifestar Sua
justiça nas coisas eternas. Portanto, Ele adia principalmente as punições para a vida eterna.
Enquanto isso, nesta vida, Ele regularmente pune crimes atrozes com punições corporais
evidentes, não apenas para nos advertir de Sua ira e do julgamento eterno, mas também por causa
da paz política.
Os filósofos ficam perplexos com a aparente confusão, como eles a veem, quando percebem
que os bons, como Palamedes e Sócrates, sofrem, enquanto os maus, como Tibério, prosperam.
Eles buscam entender as causas disso e tentam associar recompensas à virtude. Daí surgem
questões como se a virtude é suficiente para a felicidade e se Sócrates é feliz, mesmo que as
recompensas não correspondam à virtude. Essas questões são intratáveis na filosofia, mas na
Igreja são resolvidas com sabedoria: Paulo é feliz, pois agrada a Deus e tem Deus como seu
guardião e governante. Embora saiba que nesta vida está sujeito à cruz por razões específicas, ele
também sabe que a Igreja deve ser adornada, não com bens passageiros e de curta duração, como
o curso desta vida mortal, mas sim com recompensas que estão por vir. Portanto, no devido
tempo, as recompensas são unidas à virtude, e são recompensas eternas, não passageiras como os
bens desta vida terrena.
Essa explicação do argumento comum no qual se discute se os justos devem estar bem, foi
apresentada não apenas para alertar o leitor sobre a questão comum dos filósofos, mas também
para que possamos considerar mais atentamente as nossas próprias misérias, suas causas e
remédios.
Portanto, quando você pensa em si mesmo como vivendo em uma cidade cercada e
ferozmente sitiada, experimentando aflições, as próprias circunstâncias nos lembram de procurar
um libertador. É por isso que as coisas a serem buscadas, como mencionei antes, são incluídas na
oração e seu ordenamento é compreendido.
Primeiro, o perdão dos pecados e a reconciliação devem ser buscados, juntamente com os
bens da luz do Espírito Santo que acende e fortalece em nós o conhecimento de Deus, a fé, o
temor, a paciência, o amor e, finalmente, nos guia na vocação e em todos os conselhos, no ensino
e na governança da república.
Em segundo lugar, é importante que na oração se peçam tanto bens corporais comuns quanto
privados. Que se busque a paz nas regiões que acolhem as igrejas e os estudos piedosos, que haja
disciplina justa nas cidades, fertilidade nos campos, climas favoráveis, saúde, sustento adequado,
sucesso em suas responsabilidades políticas e econômicas, proteção para os filhos, prosperidade
nos negócios, boa reputação e prosperidade material. Devemos rejeitar completamente a tolice
daqueles hipócritas ociosos que afirmam ser indigno pedir a Deus bens materiais. Esses
devaneios estão cheios de impiedade. Como mencionei anteriormente, é importante por três
razões fundamentais:
A primeira razão é para que reconheçamos e afirmemos com convicção que os bens
materiais não são dissipados entre os seres humanos por acaso ou sem propósito, mas que Deus é
verdadeiramente o autor dessas coisas e que Ele as concede e as preserva para Sua Igreja de
acordo com Seu maravilhoso plano. Deus preservou a vida de Abraão, Elias e Paulo,
providenciando-lhes abrigo em suas jornadas por várias regiões, enfrentando perigos iminentes,
como Cristo claramente afirma em Mateus 6. 32: “Pois seu Pai celestial sabe que necessitam de
todas essas coisas”. Além disso, as promessas desses bens foram mencionadas anteriormente.
A segunda razão pela qual Deus deseja que busquemos essas coisas é para que saibamos que
Ele preservará Sua Igreja nesta vida. Quanto tempo Paulo poderia continuar ensinando se fosse
morto imediatamente? Portanto, para que ele pudesse continuar ensinando por algum tempo, ele
pede por vida, sustento e abrigo. Como podemos servir a Igreja de Deus se nossos corpos
estiverem enfraquecidos pela dor? Portanto, devemos buscar tranquilidade ou alívio das misérias,
a fim de que possamos servir a Igreja, e por essa razão sabemos que Deus deseja conceder esses
bens, como Ele frequentemente testemunha. Como Cristo disse em Mateus 6. 33: “Busquem
primeiro o Reino de Deus, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas”.
A terceira razão é que Deus deseja, por meio desses exercícios de pedir por bens corporais,
fortalecer a fé na Reconciliação. Sempre deve transparecer nesses pedidos a fé na Reconciliação.
Reforço essas razões para que estejam em nossa mente e nos incentivem à oração. Muitos,
como Crisóstomo e outros, distorcem de forma tola a oração que Cristo nos ensinou, recusando-
se a interpretar o “pão cotidiano” como referindo-se ao pão físico. Pelo contrário, devemos
reconhecer que as necessidades do corpo, como vida, sustento, colheitas, governo civil, são obras
grandiosas e maravilhosas de Deus, não distribuídas entre os seres humanos por acaso, mas
concedidas com um propósito divino. Elas são destinadas a apoiar a vida da Igreja e devem ser
preservadas.
Os estoicos não devem ser ouvidos quando proclamam que devemos servir a Deus sem
esperar bens corporais como recompensa. Essa é uma tolice que surge das trevas profundas. Os
estoicos não consideram a fragilidade da vida terrena. Esses bens corporais não são solicitados
como recompensas ou compensações, embora também possam ser solicitados dessa maneira em
seu devido tempo, mas são solicitados como apoio para nossas vocações. Moisés não poderia
governar o povo se estivesse consumido pela dor mental ou física. Portanto, a vida, o consolo e o
sustento são buscados para que ele possa servir em sua vocação, e ainda assim ele o faz de bom
grado. Ele não murmura contra Deus, mesmo que seja chamado deste curso de vida ou mesmo
que tenha que suportar dificuldades maiores do que as que ele suplica para serem aliviadas.
Quando buscamos nessa ordem, priorizando os bens eternos e não abandonando Deus,
mesmo que os bens corporais sejam adiados ou não concedidos, essa petição é agradável a Deus,
e Ele afirma ser honrado por ela. Não é necessário um longo debate. Pois os mandamentos são
conhecidos, as promessas são conhecidas, e também são conhecidos os exemplos dos grandes
pais e profetas que, deixando de lado a filosofia estoica ou, melhor dizendo, cínica, sabiam que
todos os bens foram maravilhosamente ordenados por Deus. Eles reconheciam que essas eram
coisas importantes e não desprezíveis, e que era preciso reconhecer Deus como autor e buscar a
vida, seus sustentos e defesa d’Ele.
Quando Jacó viu o Senhor na escada, ele ouviu promessas tanto para as bênçãos eternas
quanto para os bens corporais. Ele chamou Jacó e sua descendência para estabelecer a Igreja, que
não pode existir nesta vida sem refúgio, vida e sustento para aqueles que ensinam. Sobre as
bênçãos eternas, Deus disse: “Por meio da sua descendência, todas as famílias da terra serão
abençoadas”. Sobre a defesa do corpo, Ele disse: “Serei o seu guardião por onde quer que for”.
Portanto, sempre que a voz divina promete a permanência da Igreja de Cristo (o que é
frequentemente e de forma clara prometido), devemos abraçar o argumento da conexão, ou seja,
que a provisão de alimento e o lar da Igreja são prometidos simultaneamente. Finalmente, é
impiedade e loucura afastar nossos corações da petição pelos bens corporais, quando Deus deseja
ser honrado com isso e nossa fé é fortalecida por esses exercícios.
Portanto, como foi dito, devemos orar pelas bênçãos eternas e pelos bens corporais, e
embora a oração possa ser feita com uma simples súplica, é útil para jovens e idosos manterem
uma forma de oração habilmente composta, sem cair em superstições, que nos leve a invocar o
verdadeiro Deus e diferenciar nossa oração das práticas dos pagãos, muçulmanos e judeus, nos
lembrando ao mesmo tempo das promessas divinas e pedindo coisas específicas. Muitas das
orações dos primeiros Patriarcas e do povo de Israel fazem exatamente isso. Cuidadosamente,
eles distinguem o verdadeiro Deus através da invocação e mencionam as promessas pelas quais
Deus se revelou. Às vezes, eles apresentam a promessa como parte de sua súplica, como Jacó fez
em Gênesis 32: “Ó Deus de meu pai Abraão e Deus de meu pai Isaque, ó Senhor, que me
disseste: ‘Volta para a sua terra e para a sua parentela, e o farei bem’. Não sou digno de todas as
misericórdias e de toda a fidelidade que tens mostrado ao Teu servo; pois com meu cajado só
passei este Jordão; e agora me tornei em duas tropas. Livra-me, peço-Te, da mão de meu irmão,
da mão de Esaú, porque eu o temo; para que não venha, e me fira, e a mãe com os filhos. Pois Tu
disseste: Certamente o farei bem e tornarei a sua descendência como a areia do mar, que pela
multidão não se pode contar”. É proveitoso considerar cuidadosamente as partes dessa oração. A
invocação é: “A Ti, o verdadeiro Deus, revelado aos meus pais Abraão e Isaque, eu invoco e
recorro, não confiando na minha própria dignidade, mas nas Tuas preciosas promessas; pois
reconheço que sou muito inferior às Tuas misericórdias, mas Tu disseste que me ajudarias”.
Observe como ele sustenta seus pensamentos com a promessa e descansa nela; então, ele
apresenta sua petição e a razão pela qual a Igreja não deve ser destruída; proteja-me para que as
mães e os filhos não sejam mortos.
E frequentemente os Pais e Profetas fazem essas petições da seguinte forma: “Deus dos
nossos pais, Abraão, Isaque e Jacó”, ou seja, eles invocam o Deus que se revelou de maneira
específica aos nossos pais, Abraão, Isaque e Jacó, e entregou a eles as promessas. Além disso,
eles usam a forma dada nos Dez Mandamentos (Êxodo 20. 2): “Eu sou o Senhor, seu Deus, que
lhe tirei da terra do Egito”. Essas formas são frequentemente repetidas nos Salmos. Além disso,
tanto os Pais como os descendentes acrescentam o nome peculiar de Deus à invocação comum.
“Elohim” é o nome comum usado pelas nações, enquanto “Yahweh” é o nome exclusivo pelo
qual somente a Igreja dos pais e os israelitas chamavam a Deus. Assim, Jacó fala aqui dessa
maneira. No Salmo 19. 8, lemos: “Nós invocaremos o nome do nosso Deus, o Senhor”. Há
exemplos disso em toda parte, e eu acredito que essa prática era tão comum entre os piedosos
que esses dois nomes eram recitados, como Tomé fez em João 20. 28, quando disse a Jesus:
“Meu Senhor e meu Deus”[141].
Portanto, devemos nos acostumar a recitar alguma forma de oração e usá-la de maneira
piedosa e bem composta, evitando superstição ou magia. Não devemos recitar hinos de Orfeu,
Homero ou Calímaco, mas, com verdadeira devoção, devemos nos voltar para Deus com
confiança, revelado através de Cristo. Que nossa mente seja direcionada a esse Deus Criador,
que se revelou enviando Seu Filho, Cristo, e nos dando o Seu Evangelho.
Muitos preguiçosos, bêbados e indiferentes desdenham a recitação. No entanto, os piedosos
devem ser incentivados a se habituarem a alguma forma de recitação, como mencionei, e há
muitas razões graves para isso. Pois essa mesma recitação é uma confissão pela qual a Igreja se
separa dos ídolos individual e publicamente, e cada um se educa e é lembrado do verdadeiro
Deus e do verdadeiro culto. Além disso, a meditação sobre a revelação e as promessas acende os
afetos, a fé se torna mais ardente quando se pensa na grande bondade de Deus, em como Ele se
revelou, em como deseja ser invocado, em como propôs um Mediador e em como sempre
apresentou muitos exemplos e realmente ouve aqueles que O invocam. Esses movimentos da
alma, essa fé, precisam ser despertados durante a oração, para o que a recitação instruída
contribui. Pois a fé vem pelo ouvir, e o ouvir vem pela palavra de Deus. Portanto, é necessário
que a fé seja inflamada pela meditação na Palavra divina.
Alguns eremitas afirmam que não há tarefa mais difícil do que falar as orações a Deus. No
entanto, geralmente é considerada uma tarefa fácil e comum. Mas, quando Jesus diz que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade (João 4. 23), a dificuldade se
torna clara. A oração deve ser realizada com o espírito, ou seja, sem hipocrisia, sem palavras
vazias, mas com uma disposição sincera do coração, e deve ser feita com verdade, ou seja, com
um verdadeiro conhecimento de Deus, direcionada ao verdadeiro Deus e ao Mediador. Portanto,
é necessário que haja uma reflexão genuína sobre Deus e um movimento do coração. É por isso
que Deus se revelou através da voz e enviou Seu Filho para que pudesse ser visto em carne. Para
que possamos contemplar este Filho na oração e ser lembrados do Pai. Não despreze a visível
presença deste Filho de Deus entre nós e não pense que ela foi em vão. Deus atendeu à nossa
fraqueza, deseja ser reconhecido dessa forma e nos convida a contemplar este Filho de Deus que
Ele enviou, que foi visto por tantos, que foi pendurado na cruz e ressuscitou dos mortos.
Mas porque a atenção na recitação é difícil, os preguiçosos evitam as recitações; no entanto,
a Igreja sempre as prescreveu, tanto em público quanto em particular. É por isso que os Salmos
foram compostos com grande cuidado. E Cristo Ele mesmo apresenta uma forma de oração e diz
explicitamente em Lucas 11. 2: “Quando orarem, digam”. Ele prescreve palavras e uma recitação
específica, como João já havia registrado. Portanto, devemos manter e recitar a forma prescrita
pelo conselho divino.
Pai Nosso que estais no céu.
Isso significa que, “Tu que estás em toda parte, observas tudo e ouves em todos os lugares,
todo-poderoso Criador de todas as coisas”. Mas quando esta parte for recitada, deixe que o apelo
do Pai restrinja sua mente. Por que você chama Deus de Pai? E por que O nomeia assim? Por
meio de quem o acesso a Ele foi concedido a você? Aqui, vêm à mente as palavras de Cristo em
João 14. 6: “Ninguém vem ao Pai senão por Mim”. E (ibid., v. 9): “Quem Me vê, vê o Pai”. E
João 16. 23: “Em verdade, em verdade lhes digo, tudo o que pedirem ao Pai em Meu nome, Ele
os dará”. Portanto, você chama Deus de Pai, aquele que se revelou através do envio deste Filho,
Jesus Cristo, ressuscitado e dado como Evangelho. E você O chama, portanto, de nosso Pai,
porque Ele foi apaziguado por meio do Filho, e por meio deste sacerdote, Ele aceita nossas
preces. Para me lembrar disso, acrescento estas palavras: Onipotente, eterno e vivo Deus, eterno
Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que Te revelaste com imensa bondade e proclamaste por meio
de Teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo: “A Ele ouçam”; Criador de todas as coisas e seu
Conservador e Auxiliador, juntamente com Teu Filho coeterno, nosso Senhor Jesus Cristo,
reinando Contigo e revelado em Jerusalém e Teu Espírito Santo derramado sobre os Apóstolos,
sábio, bom, misericordioso, juiz e poderoso; Pai nosso, que estás nos céus. Dessa forma, a
invocação é distinguida das práticas éticas, turcas e judaicas, e a mente é lembrada das
promessas.
Santificado seja o Teu nome.
Isto é, apague qualquer falsidade, para que Tu possas ser reconhecido verdadeiramente, para
que as verdades pelas quais a Tua glória é verdadeiramente revelada sejam ensinadas, para que
as pessoas possam Te invocar e Te adorar corretamente. O nome aqui se refere ao conhecimento
ou reconhecimento e à celebração do nome de Deus e à invocação. Portanto, a primeira coisa a
ser pedida, que é recitada no início, é o maior e o primeiro bem, sobre o qual os primeiros e
segundos mandamentos pregam principalmente, ou seja, que Deus seja conhecido corretamente,
que a verdadeira doutrina sobre Deus seja amplamente difundida através da voz do Evangelho e
compreendida corretamente, e que muitas pessoas adorem a Deus com verdadeira invocação e
obediência.
Venha o Teu reino.
Ele fala principalmente sobre o efeito da primeira petição. Reges-nos através da voz
disseminada pelo Evangelho e também nos guias com o Teu Espírito Santo. Faz-nos crer na Tua
palavra, começa em nós o Teu reino, para que nos tornemos herdeiros do Teu reino. Destrói o
terrível reino de Satanás que se propaga horrivelmente entre a humanidade, levando as pessoas
ao desprezo epicurista por Deus, à adoração de ídolos, a homicídios, luxúria, mentiras e outros
furores. Defende-nos contra esses males, ó Pai eterno do nosso Senhor Jesus Cristo, e guia-nos
com o Teu Espírito Santo, como Tu disseste: “Derramarei do Meu Espírito”.
Seja feita a Tua vontade.
Isso significa conceder que todos Te obedeçam na Terra. Dá-nos pastores da Igreja, reis,
magistrados, mestres, discípulos, cidadãos, para que cada um cumpra o seu dever corretamente e
com sucesso. Que todos Te obedeçam como os anjos no céu Te obedecem e Te agradam. É Tua
obra efetivar isso, para que, apesar de nossa miséria, estupidez e fraqueza, possamos realizar
ações boas e benéficas, sejamos instrumentos não da ira, mas da misericórdia, sejamos úteis à
Igreja e não flagelos. A política de Ezequias foi bem-sucedida com Tua ajuda; a política de
Zedequias foi malsucedida, pois rejeitou Tua ajuda. Não Te rejeitamos, mas com corações
sinceros e verdadeiras lágrimas, oramos para que Tu governes nossas igrejas, mestres, escolas,
líderes, governantes e o povo, para que algo seja agradável a Ti, como Paulo disse: “Aquele que
efetua em vocês tanto o querer como o realizar, segundo a Sua boa vontade”. Pois os ímpios, sob
a influência de Satanás, se esforçam muito para fazer o que desagrada a Deus, alimentam fúrias
epicuristas, ídolos, luxúria, provocam guerras injustas e causam devastação triste. Mas para que a
raça humana não seja criada em vão, para que não façam tudo o que desagrada a Deus, Deus
chamou a Igreja e a atraiu com o Seu Espírito Santo para fazer o bem e agradar a Deus,
proclamar a verdadeira doutrina sobre Deus, ouvir, invocar corretamente a Deus, agradecer a Ele,
obedecer a Ele, afastar muitos com sucesso de Satanás, governar outros com conselhos piedosos
e benéficos, preservar a paz e uma disciplina honrosa.
Até agora, as petições abordaram assuntos elevados e bens que se relacionam mais com o
espírito do que com o corpo, sejam eles comuns ou privados. E a ordem foi sabiamente
estabelecida: Primeiro, busca-se o conhecimento verdadeiro de Deus; em segundo lugar, busca-
se o efeito desse conhecimento para sermos guiados pelo Espírito Santo; em terceiro lugar,
busca-se que cada um, em sua própria vocação ou função, cumpra adequadamente e com sucesso
seu dever. Agora vem a petição das coisas corporais.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje.
Isso significa que estamos pedindo por alimento, paz, proteção, boa saúde para que
possamos suportar as dificuldades de nossas vocações, sucesso em nossas responsabilidades de
acordo com nossas vocações, educação para nossos filhos, um grau razoável de tranquilidade,
abrigo, boas autoridades políticas, a manutenção da disciplina, da justiça e dos tribunais, e que
não sejamos atormentados por tumultos, relaxamento da disciplina ou guerras.
E perdoe-nos as nossas dívidas.
Já foi dito tantas vezes que em todas as preces a remissão dos pecados deve ser a primeira
coisa a ser pedida e que a fé na reconciliação deve sempre brilhar antes de todas as outras
petições. Sempre devemos começar olhando para o Mediador Cristo e crer que somos aceitos e
ouvidos por causa d’Ele. Devemos saber que este sacerdote intercede por nós e, com essa
confiança, nos aproximamos de Deus, como já foi dito (Romanos 5. 1): “Justificados pela fé,
temos paz com Deus” e “acesso à graça”. Portanto, quando em nossa invocação, nossa
indignidade nos acusar e nos afastar de Deus, fazendo com que nossas mentes temerosas evitem
Deus, aqui Cristo também nos ordena que peçamos reconciliação, e Ele não nos ordenaria a pedir
se não estivesse disposto a dar. Portanto, a mente atenta deve pensar cuidadosamente sobre o
perdão dos pecados e sobre o Mediador Cristo. Aqui, a Igreja faz uma confissão notável ao
admitir que carrega consigo pecados e múltiplas fraquezas. Mas aqui também é oferecido
consolo. Pois quando o próprio Cristo nos ordena buscar o perdão, sem dúvida Ele o concederá.
E nesta recitação, a mente também deve se lembrar das promessas expressas, como em 1 João 1.
8-9: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em
nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados”.
O que é acrescentado aqui, “ASSIM COMO TAMBÉM PERDOAMOS”, nos lembra sobre
o arrependimento, para que não persistamos em pecados contra a consciência, porque quando a
mente mantém o desprezo por Deus, não é ouvida, de acordo com o dito: “Deus não ouve os
pecadores”, isto é, aqueles que persistem em pecados contra a consciência. E em 1 João 3. 21-22
diz: “Se o nosso coração nos não condena, temos confiança para com Deus; e aquilo que
pedimos, d’Ele recebemos, porque guardamos os Seus mandamentos”, ou seja, se não
persistirmos em pecados contra a consciência. O mesmo princípio está ligado à declaração em
Mateus 5. 23: “Se, pois, ao trazer ao altar a sua oferta, ali se lembrar de que seu irmão tem
alguma coisa contra você”, e os profetas frequentemente enfatizam essa sentença, que os rituais e
orações daqueles que persistem em pecados contra a consciência não agradam a Deus, como
Isaías 1 e 58, por exemplo.
Pensamos, no entanto, em quão verdadeiramente miserável é não poder recorrer a Deus, não
ter Deus como protetor, governante ou auxiliador, e estar sujeito à opressão do Diabo ou à ruína
causada pelos erros humanos. Em meio a tantos infortúnios e perigos, todos aqueles que
persistem em pecados contra a consciência enfrentam essa situação, não conseguindo invocar a
Deus. Portanto, devemos nos motivar a nos arrepender e melhorar nosso comportamento. Além
disso, devemos estar cientes de que, para aqueles que se arrependem, o pecado é perdoado
gratuitamente por causa de Cristo, como mencionado anteriormente várias vezes.
E não nos deixe cair em tentação.
Isso significa que não nos permitas ser arrastados pelo Diabo para a impiedade e outros
crimes; defende-nos contra as artimanhas do Diabo, guia-nos com a Tua luz e os Teus conselhos,
para que não nos deixes cair enganados pelos nossos erros ou influenciados pela fraqueza da
carne. A sabedoria e a virtude de Davi foram grandes e admiráveis; no entanto, vemos que ele
foi, por vezes, levado pelo Diabo ou por erros humanos, como quando ordenou a contagem do
povo. Portanto, visto que todos somos frágeis, dirige-nos, ó Deus eterno, Pai do nosso Senhor
Jesus Cristo, e mostra-nos conselhos salutares nas nossas questões privadas e públicas. Fortalece
os nossos corações com o Teu Espírito Santo, para que possamos Te obedecer e ser instrumentos
não da ira, mas da misericórdia, úteis para a Igreja.
Livrai-nos do mal.
A petição geral é aquela que busca libertação de todas as misérias e aflições desta vida, dos
pecados, da tirania do Diabo, dos escândalos, das calamidades públicas e privadas. Ou seja,
busca que, juntamente com toda a Igreja, sejamos resgatados das misérias presentes e agraciados
com luz, justiça e vida eterna, para que possamos desfrutar da doce comunhão com Deus eterno e
nosso Senhor Jesus Cristo; Amém.
Portanto, você vê que as coisas a serem solicitadas são abrangentes e estão dispostas na
melhor ordem possível, conforme Cristo nos instruiu a recitar. Pois ele expressamente diz:
“Assim digam quando orarem”, e menciona coisas eternas, espirituais, corporais, presentes e
futuras. Ele quer que você considere toda a vida, na verdade, toda a eternidade, pensando nas
ameaças presentes e futuras, cuja reflexão certamente deve despertar os corações para a Oração.
O que mencionei no início, sobre pensar em quem você está invocando, onde esse Deus se
revelou, se Ele tem razão para ouvi-lo, deve ser considerado com atenção, para que as mentes
não se desviem na Oração, como as mentes dos pagãos costumam fazer. Portanto, o Filho Eterno
de Deus assumiu a natureza humana e conviveu conosco de maneira íntima, para que aqueles que
O invocam pensem n’Ele como verdadeiro Deus, Aquele que se revelou através deste Filho com
testemunhos claros, e O abordem como o Pai Eterno, testemunhando sobre este Filho. Portanto,
apresento novamente a forma:
“Todo-Poderoso, Deus eterno e vivo, eterno Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que se revelou
com imensa bondade e clamou através de teu Filho, o Senhor, o Criador e Conservador, com teu
Filho, coeterno, nosso Senhor Jesus Cristo, reinando contigo e revelando-se em Jerusalém, e com
teu Espírito Santo derramado nos Apóstolos, sábio, bom, misericordioso, juiz e poderoso, que
disseste: “Assim como Eu vivo, diz o Senhor Deus, não desejo a morte do pecador, mas que o
ímpio se converta do seu caminho e viva”. E também disseste: “Invoque-Me no dia da angústia,
e Eu o livrarei”. Tem misericórdia de mim por causa de Jesus Cristo, Teu filho, a quem Tu
quiseste ser nosso sacrifício, mediador e intercessor, e santifica-me e dirige-me com Teu Espírito
Santo. Guia e defende Tua Igreja e os governos, que são moradas da Igreja.”
Essa forma piedosa também se dirige a Cristo, o Filho de Deus: “Eu Te invoco, Jesus Cristo,
Filho do Deus vivo, crucificado por nós e ressuscitado, Palavra e Imagem do Pai eterno[142], que
disseste: “Venham a Mim, todos os que estão cansados e oprimidos, e Eu os aliviarei”. Tem
misericórdia de mim e intercede por mim diante do Teu Pai eterno, santifica-me e dirige-me com
o Teu Espírito Santo, defende-me contra os demônios, espíritos mentirosos e assassinos, Teus
inimigos”.
Essa invocação a Cristo é uma confissão de Sua onipotência, pois ao invocá-Lo dessa forma,
a pessoa sente que Cristo vê os movimentos dos corações de todos os seres humanos e é um
auxiliador onipotente, concedendo o Espírito Santo e ajudando-nos em perigos corporais e
espirituais. Além disso, essa forma abrange as três pessoas da Trindade, pois dirige-se ao Filho,
O chama de intercessor diante do Pai eterno e reconhece que é do Filho que recebemos o Espírito
Santo.
Da mesma forma, essa expressa invocação a Cristo é apresentada em diversas passagens das
Escrituras Proféticas e Apostólicas. Em Atos 7. 58, Estêvão, no momento de sua morte, clama:
“Senhor Jesus, recebe o meu espírito”. Na Primeira Epístola aos Tessalonicenses 3. 11,
encontramos a invocação: “Ele mesmo, nosso Deus e Pai, e nosso Senhor Jesus Cristo, guie o
nosso caminho até vocês”. Não há dúvida de que em Gênesis 48. 16, Jacó faz referência a Cristo
quando diz: “Que Deus abençoe estes meninos, e que o Anjo que me livrou de todo o mal os
abençoe”. E no Salmo 71. 15, lemos: “E Ele será adorado continuamente”.
Esta forma de invocação serve como um testemunho claro de que Cristo é Deus por natureza
e Todo-Poderoso. Não se deve misturar essa invocação com a invocação de pessoas mortas, o
que obscurece e corrompe a verdadeira invocação. Devemos seguir a regra de que “Adorará o
Senhor seu Deus e só a Ele servirá”. É um grave erro estabelecer a invocação de pessoas mortas,
já que não há evidências divinas para isso e porque isso obscurece claramente o papel de Cristo
como Mediador. Além disso, a invocação de seres invisíveis concede poder aos invocados para
julgar os movimentos dos corações, o que é próprio apenas da natureza onipotente, como é dito
em 1 Crônicas 28. 9: “O Senhor sonda todos os corações e compreende todos os pensamentos
das mentes”. E em Jeremias 17. 11: “Eu, o Senhor, sondo os corações”. Este ato de adoração não
deve ser transferido para profetas, apóstolos ou Maria.
No entanto, deixando de lado a invocação a Maria, outros atos piedosos, úteis e gloriosos
podem ser realizados em relação a eles. Devemos agradecer a Deus por ter se revelado através
deles, por ter transmitido Sua doutrina por meio deles. Devemos considerar o tipo de doutrina
que cada um ensinou, agradecer a Deus por ter fornecido evidências claras por meio de suas
ações, como os milagres de Moisés, Elias e Eliseu. Devemos reconhecer que Deus
frequentemente restaurou Sua Igreja por meio de alguns deles, e que eles nos deram exemplos de
misericórdia, como o arrependimento de Davi e Maria Madalena. Devemos observar exemplos
que mostram que nossas orações são ouvidas em tempos de perigo, como Agar obtendo água
para seu filho, Jacó, Davi e Ezequias obtendo proteção. Esses exemplos devem nos inspirar a
invocar Deus e seguir o exemplo de arrependimento e fé desses homens. Por fim, também
devemos louvar esses indivíduos por terem obedecido ao chamado de Deus e por terem se
esforçado para manter os dons de Deus com diligência. Há muito o que se pode dizer em orações
longas e piedosas sobre essas luzes da Igreja, os profetas, apóstolos e muitos outros piedosos, se
suas histórias forem sabiamente narradas para nosso ensino e imitação, de acordo com nossa
capacidade.
Isso foi brevemente adicionado para que os leitores piedosos saibam que as invocações de
pessoas mortas devem ser reprovadas e evitadas. O costume pagão era invocar não apenas
muitos deuses, mas também pessoas mortas que se destacavam por suas virtudes ou proezas,
chamadas de “heróis”, como Hércules, Quirino e outros. Não há dúvida de que essas práticas são
originárias do Diabo, que tenta destruir o conhecimento do verdadeiro Deus. Portanto, devemos
evitar exemplos semelhantes de loucura pagã e aprender corretamente o que as Escrituras nos
ensinam sobre a suprema virtude da invocação de Deus. Devemos invocar o verdadeiro Deus
eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo crucificado e
ressuscitado, e o Espírito Santo derramado sobre os apóstolos, com sinceridade e gratidão
verdadeiras.
Depois de falarmos sobre o pedido de benefícios e auxílio, devemos lembrar a todos sobre a
gratidão, como Paulo menciona em 1 Tessalonicenses 5. 16-18: “Alegrem-se sempre. Orem sem
cessar. Em tudo, deem graças”[143]. No entanto, aqui é necessário que todos confessem sua culpa.
Todos nós somos ingratos com Deus, e quanto mais tranquilas são as circunstâncias, menos
pensamos em Deus. Na verdade, muitos, quando tudo está indo bem, se esquecem
completamente de Deus e permitem que seus desejos os guiem, como mostram os exemplos de
homens notáveis e a experiência nos ensina (Ovídio, “Ars Amatoria”, Livro II, 437-38):
“As mentes se tornam em luxúria quando tudo está indo bem,
E não é fácil suportar a boa sorte com uma mente equilibrada.”
Quando Sodoma, protegida por Deus de maneira evidente através da intervenção de Abraão,
foi posteriormente destruída por Deus devido à sua depravação, como é narrado no livro de
Gênesis, as cidades seguras logo se entregaram ao luxo e à decadência moral. Este é um exemplo
claro de como a ingratidão pode levar à destruição, mesmo depois de receber bênçãos notáveis
de Deus.
A ingratidão é um grande e vergonhoso defeito de todos os seres humanos. Recebemos de
Deus a vida, talentos, educação, sustento, conhecimento das escrituras, a Igreja, governos que
nos defendem e auxiliam, e muitas vezes somos protegidos e ajudados por Ele, mesmo quando
não pedimos ajuda. No entanto, em nossa segurança, muitas vezes nos entregamos a distrações e
prazeres, discutimos se as bênçãos que recebemos são meros acasos e não reconhecemos Deus
como o autor delas. Não nos esforçamos para retribuir a Sua benevolência, mas, ao contrário,
nossa petulância pode acender a Sua ira.
Devemos lamentar esses males e nos corrigir. Quando reconhecemos os benefícios de Deus,
devemos admitir que os recebemos d’Ele, não rejeitando de maneira petulante a Sua proteção e
ajuda. Devemos nos esforçar para agradá-Lo e expressar nossa gratidão a Ele com atos
verdadeiros e palavras. Isso não só nos lembra de que nossas bênçãos não são mero acaso, mas
também reforça a ideia de que Deus realmente cuida de nós, ouve nossas orações e nos ajuda.
Portanto, é importante que, diariamente, nos acostumemos a lembrar dos benefícios recebidos de
Deus e agradecer por eles.
Muitas pessoas, ao acordarem de manhã, ao irem dormir, ao sentarem para uma refeição, ao
levantarem da mesa e em outros momentos, como se fossem animais, nem sequer pensam em
Deus e em todas as bênçãos diárias que recebem. Essa negligência é vergonhosa e deve ser
corrigida. Antes de pedir novas bênçãos, devemos lembrar e agradecer pelas que já recebemos,
todos os dias. Além disso, devemos testemunhar nossa gratidão a Deus, seja publicamente, por
meio de palavras, cartas ou exemplos de vida. Você pode usar a seguinte forma para expressar
sua gratidão:
“Desejo expressar minha gratidão a Ti, Deus Todo-Poderoso, eterno e vivo, eterno Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, Criador de todas as coisas, Protetor e Preservador, juntamente com
Teu Filho eterno, nosso Senhor Jesus Cristo, revelado em Jerusalém, e com o derramamento de
Teu Espírito Santo sobre os Apóstolos. Agradeço-Te por Tua imensa bondade, que nos revelaste
por meio de testemunhos claros e notáveis. Agradeço por teres estabelecido e escolhido para Ti
uma Igreja perpétua. Agradeço por teres permitido que Teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, se
tornasse a vítima por nós, por nos ter dado Teu Evangelho e Teu Espírito Santo. Agradeço por
perdoares nossos pecados, nos libertares do poder do Diabo e da morte eterna, e por nos
concederes a vida eterna. Até agora, nesta vida, concedeste-me muitas bênçãos significativas: a
dádiva da vida, sustento, conhecimento, paz nos lugares onde vivi, e aliviaste as penas que
mereci.”
Após a expressão de gratidão, prossigamos com a petição, conforme mencionei
anteriormente. Também é importante agradecer especificamente por qualquer benefício recebido
naquele momento. Essa recitação é uma confissão do benefício recebido, como certamente Deus
exige, e deve estar em harmonia com nossos corações e mentes. Devemos verdadeiramente sentir
que não escapamos do perigo por acaso, mas que fomos ajudados e salvos por Deus. Nossas
orações foram ouvidas. Nossa mente deve celebrar a Deus, reconhecendo que Seu nome não é
vão, que Ele não negligencia as pessoas, mas ouve verdadeiramente aqueles que O invocam na
igreja. Deve haver uma distinção real entre a igreja e os não crentes, aqueles que blasfemam
contra Cristo, demonstrando que Deus realmente olha e auxilia Sua igreja e cumpre Suas
promessas. Isso deve ser impresso em nossas próprias mentes e comunicado aos outros, para que
narremos onde fomos ajudados e libertados, a fim de convidar outros a reconhecerem Deus.
A gratidão é um ato grato a Deus em si, mas também é um exemplo importante para os
outros. Portanto, Paulo nos encoraja calorosamente a orar uns pelos outros, para que muitos
possam agradecer por nós. Ele afirma que a ação de graças é o sacrifício supremo e mais
agradável a Deus e deve ser praticada por muitos, porque Deus exige ser reconhecido e celebrado
por muitos. Quando muitos celebram um benefício recebido, o exemplo se torna mais destacado
e convida mais pessoas a orarem, a temer e a ter fé.
A ingratidão é um terrível defeito na natureza humana, como testemunham as queixas ao
longo de todos os tempos. A omissão do dever da gratidão é condenada tanto pelas sentenças
divinas quanto pelas humanas. No entanto, é mais comum entre as pessoas expressar gratidão
umas às outras do que a Deus. A ingratidão para com Deus é ainda mais cruel do que a
ingratidão para com os seres humanos. Mesmo Saul, embora ingrato a Davi, não pode negar que
Davi o beneficiou. Mas os ingratos para com Deus negam que Deus seja o autor do benefício e
afirmam que os perigos foram afastados por acaso. Para combater essas trevas e essa loucura,
fortaleçamos nossas mentes com testemunhos divinos e aprendamos a verdadeira realidade de
que Deus nos observa, nos ajuda e ouve nossas orações. Quando somos ajudados, reconheçamos,
confessemos e preguemos a nós mesmos e aos outros que Deus é o autor do benefício, conforme
mencionei em várias passagens.
É, de fato, um grande desafio para mentes piedosas manter a convicção de que fomos
verdadeiramente ajudados e salvos por Deus, mesmo após recebermos um benefício. No entanto,
devemos nos fortalecer com os testemunhos que mencionei anteriormente e agora repito, a fim
de estabelecer firmemente em nossos corações que os perigos foram afastados não por acaso,
mas com a ajuda de Deus. Devemos proclamar os benefícios de Deus para nós e para os outros.
Falei brevemente sobre o principal sacrifício, ou seja, a ação de graças, para lembrar o leitor
piedoso, a quem peço que considere cuidadosamente esse assunto e reúna passagens das
Escrituras Proféticas e Apostólicas para estimular a mente em direção à Fé, à verdadeira
invocação e à verdadeira gratidão.
É difícil manter a verdadeira crença na presença de Deus em nossa grande fraqueza, mesmo
quando vemos evidências claras. Assim como os israelitas no deserto, embora tenham visto
muitas evidências da presença de Deus, muitas vezes duvidaram de quem os havia tirado do
Egito. E os apóstolos viram as obras de Cristo, viram os mortos serem ressuscitados muitas
vezes, e ainda assim havia uma grande fraqueza na fé. Portanto, quando somos livrados dos
perigos pelos benefícios de Deus, como frequentemente acontece, devemos manter diante de nós
as convicções que nos fortalecem, para que possamos reconhecer que fomos ajudados por Deus.
Não devemos permitir que essa convicção seja sufocada em nossas mentes. Como é difícil essa
luta para as mentes, como a experiência mostra e como os exemplos escritos dos israelitas no
deserto nos advertem, devemos ser mais diligentes em meditar nas passagens das Escrituras
Proféticas e Apostólicas que nos foram transmitidas, para que nossa fé e o reconhecimento da
presença de Deus em nós sejam confirmados e cresçam. Que a confissão de Jacó esteja diante de
nós, como está em Gênesis 48. 15, onde ele declara que foi criado e protegido por Deus desde a
infância, mencionando também o Anjo, ou seja, o Filho de Deus, por meio do qual ele diz ter
sido libertado de todos os males. E que o exemplo de Davi, em seu agradecimento enquanto
estava à beira da morte, seja um modelo para nós, como está em 2 Samuel 22. 18: “Ele me
libertou daqueles que me odiavam”.
Reconheçamos que não podemos resolver todos os perigos com conselhos e recursos
humanos, como claramente diz Jeremias no capítulo 10, versículo 23: “Eu sei, Senhor, que não
está no poder do homem o dirigir os seus passos”. Quantos problemas inextricáveis aconteceram
com Moisés, Samuel, Davi, Ezequias e, finalmente, com todos os governantes por meio de
conselhos humanos? Portanto, como eles, devemos buscar a ajuda e a proteção de Deus e,
quando os resultados forem tranquilos, devemos admitir que fomos ajudados e defendidos por
Deus. Esta era também viu exemplos que devemos pregar, para que os benefícios de Deus sejam
celebrados. Deus deu paz às nossas igrejas por tantos anos; Ele não apenas deu paz, não apenas
impediu os esforços dos inimigos, mas também suprimiu escândalos que surgiram em muitos
lugares, e em grande parte dirigiu os esforços e julgamentos daqueles que lideram as igrejas, de
modo que a doutrina em nossas igrejas seja amplamente transmitida de maneira sincera. “Por
esses enormes benefícios, a Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, agradeço e oro com
todo o coração, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor crucificado por nós e ressuscitado, para
que Ele nos governe continuamente com o Espírito Santo: Amém”.
20. Os Ofícios Civis e Assuntos de
Influência
Até agora, descrevi e delineei a Igreja, que é o principal e desconhecido tipo de doutrina para
a razão humana, e como ela invoca a Deus. Agora, porque é necessário que ela viva entre os
seres humanos em economias, políticas, impérios, onde Deus deseja ouvir a confissão da
verdadeira doutrina, na verdade onde Ele reúne Sua Igreja, ela deve ser estabelecida nas
economias e na sociedade civil, e deve ensinar o que se deve pensar sobre o casamento e os
impérios.
É necessário que as pessoas sejam adequadamente instruídas sobre esses assuntos,
esclarecendo-os corretamente com base nas evidências fornecidas pelas Escrituras dos Profetas e
dos Apóstolos. Isso ocorre porque, ao longo da história, tem havido hipócritas supersticiosos e
fanáticos que condenaram casamentos ordenados por Deus, bem como funções de magistrados,
julgamentos, leis civis, punições legítimas, governos, guerras justas e serviço militar. Tais
delírios foram espalhados no passado por indivíduos como Marcião e os maniqueístas, cujas
ideias insensatas vagaram pela Ásia e pela África por muito tempo. Além disso, cerca de
trezentos anos atrás, houve grupos conhecidos como “Flageliferi” que propagaram erros
semelhantes, e nos dias de hoje, os anabatistas, que ainda disseminam esses erros em várias
partes.
E o Diabo nunca cessa de inflamar mentes distorcidas para que abracem opiniões falsas
sobre assuntos políticos, pois, ao mesmo tempo, ele provoca dois grandes males: incita tumultos
nas cidades, resultando em muitos assassinatos injustos e distúrbios, e obscurece o Evangelho.
Pois, enquanto eles imaginam que a justiça é uma espécie de política bárbara nova, na qual as
pessoas vivem sem distinção de domínios e sem governantes, a verdadeira luz sobre a justiça
interior e eterna no coração é perdida. A justiça da qual o Evangelho prega é uma luz no coração
que acende mentes com a verdadeira invocação de Deus, a fé em Cristo e outros movimentos
piedosos compatíveis com a Lei de Deus, e inicia a vida eterna. Pois, assim como em diferentes
estações do ano, Deus ordena políticas e governos para sujeitar cada pessoa ao seu lugar, tal
como José quando carregava em seu coração o verdadeiro conhecimento e a invocação de Deus,
o Mediador prometido e o início da vida eterna; fora, no entanto, na corte, nos tribunais, em
contratos e na posse de bens, ele usava as leis do Egito. Daniel carregava uma luz semelhante em
seu coração e o início da vida eterna, como José; fora, na corte, nos tribunais, em contratos, na
posse de bens e na administração da província, ele usava as leis do reino babilônico.
O que realmente importa nas leis e políticas é que elas não entrem em conflito com a lei
natural, mas, como Paulo disse, que sejam para a promoção do bem e para amedrontar aqueles
que fazem o mal. Além disso, mesmo que as formas das leis, dos julgamentos e das penalidades
possam ter algumas diferenças, como as leis feudais alemãs sendo diferentes das leis francesas,
cada pessoa deve obedecer às leis do seu próprio lugar. Essa diferença não tem mais a ver com a
justiça do Evangelho do que as diferenças nos comprimentos dos dias e das noites. O dia mais
longo no solstício na Macedônia é mais longo do que na Judeia nos dias de Cristo. Essa diferença
não afeta a justiça no coração de ninguém. Mas o Diabo, a fim de lançar trevas sobre os olhos e
as mentes das pessoas para que não vejam a verdadeira luz do Evangelho sobre a fé e o
conhecimento de Cristo, espalha essas estranhas opiniões sobre uma política bárbara, afirmando
que ela possui grande virtude, não tem propriedade, evita julgamentos e funções civis, que, no
entanto, são necessárias para a humanidade e ordenadas por Deus para que nossa fé, invocação e
confissão brilhem nelas. São exercícios de obediência exigidos pela lei de Deus e de mútuo
amor, como direi em breve.
Portanto, é importante que as pessoas sejam cuidadosamente instruídas sobre a importância
dos assuntos políticos em templos e escolas e que sejam preparadas para resistir aos tumultos
causados por figuras como Marcião, maniqueus e anabatistas. Eu sei que as pessoas são
frequentemente influenciadas por distorções e confusões que ocorrem em governos, ganância e
sistemas judiciais. Muitas vezes, os líderes negligenciam suas responsabilidades, não enxergam
os erros e injustiças, e há muita fraude e corrupção nos tribunais. Nas cortes, há ambições
desmedidas, ganância e outras más influências, e muitas fraudes em contratos. Isso acontece
porque a fraqueza da natureza humana e a influência do Diabo levam a desejos corruptos em
muitos líderes, governantes, juízes, funcionários públicos e cidadãos comuns. Não é
surpreendente que essa situação resulte em muita confusão e desordem[144]. Essa confusão afeta
as mentes despreparadas, levando muitas pessoas a condenarem todo o sistema político e a
acreditarem que o governo é apenas uma forma de opressão criada por pessoas gananciosas ou
pelo Diabo.
Muitas vezes, os filósofos também questionam a origem dos impérios, já que a realidade
mostra que nenhum reino é estabelecido sem grandes calamidades para a humanidade, e nenhum
deles está isento de terríveis confusões e, eventualmente, de sua queda. Pense na quantidade de
sangue, tanto de seus próprios cidadãos quanto de estrangeiros, que Roma derramou até
conquistar o domínio do mundo! Logo após, houve as guerras civis entre Sila, Mário, Cina,
César, Pompeu, Bruto, Antônio e Augusto, que causaram fúria e devastação por todo o mundo.
Elas também resultaram em perturbações nas leis e na ordem. Posteriormente, na Itália, Egito,
África e Ásia, nações bárbaras como os godos, vândalos, hunos, árabes e turcos invadiram e
despedaçaram completamente o Império Romano. Finalmente, a realidade mostra que a queixa
que está em Ovídio (Metamorfoses, XV, 420-422) é verdadeira:
“Assim tudo vemos mudar,
E outras nações assumirem o peso,
E estas perecerem.”
Também:
“Aos mais altos é negado
Durar muito.”
E eles afirmam que Cipião, ao contemplar o incêndio da cidade de Cartago após sua
conquista, derramou lágrimas e disse que a instabilidade do destino nas coisas humanas é digna
de lamento. Ele lamentou não apenas o destino de Cartago, que outrora florescera em virtude,
riqueza e poder, mas que agora estava saqueada e destruída pelo fogo, mas também ponderou
sobre o destino de Roma, que estava destinada a perecer em um futuro não muito distante de uma
calamidade semelhante, porque nenhum império é eterno. Os filósofos, portanto, ficam surpresos
e questionam por que, se os impérios são estabelecidos por Deus, há tanta abundância de crimes
e misérias.
No entanto, a doutrina da Igreja considera isso profundamente e faz uma distinção
significativa entre a ordem política, as pessoas e as misérias humanas.
A doutrina celestial ensina universalmente sobre a ordem política, afirmando que essa ordem
é instituída por Deus e é uma obra de Deus, desde que permaneça o bem na governança. Isso
significa que as pessoas estão unidas por leis específicas em uma sociedade civil, que a multidão
é governada por magistrados, julgamentos e penalidades, que os magistrados são guardiões da
disciplina e da paz, que a propriedade é distinta e segura para cada um, que as propriedades são
transferidas por contratos legítimos para ajudar na vida comum e que os crimes são reprimidos
ou punidos com armas.
E logo em seguida apresentarei testemunhos das Escrituras Proféticas e Apostólicas que
ensinam ambas as coisas: que a ordem política é instituída pela Palavra de Deus e que, na medida
em que houver bondade no governo, é verdadeiramente uma obra de Deus. Isso não ocorre
apenas por permissão divina, mas porque é verdadeiramente preservado e apoiado por Deus, da
mesma forma que a ordem dos movimentos celestiais e a fertilidade da terra. Primeiro, explicarei
essa distinção na ordem, nas pessoas e nas misérias humanas, para que, àqueles que questionam
de onde vêm tantas confusões e calamidades, eu possa responder.
Portanto, como mencionei, a ordem política é uma coisa boa, bela e benéfica para a
humanidade, uma obra singular de Deus. É aquela em que as pessoas, unidas por leis, vivem em
sociedade civil. Nessa ordem, a multidão é governada por magistrados, que são os guardiões da
disciplina, exercem julgamentos, asseguram que os cidadãos sejam instruídos corretamente sobre
Deus, reprimem os excessos dos epicuristas e a adoração de ídolos, evitam os juramentos falsos,
promovem a moderação nas paixões, protegem a integridade física e, em resumo, cuidam para
que a cidade seja uma escola extremamente virtuosa, onde brilhe o conhecimento de Deus, onde
as obrigações da virtude sejam praticadas, onde a defesa comum e o compartilhamento dos
benefícios para com os outros sejam cultivados.
Mas você pode argumentar que estou descrevendo uma ideia platônica. Afinal, qual foi ou
qual é a cidade em que não há vícios? No entanto, estou apresentando esses exemplos para
distinguir a ordem política dos vícios. Embora não haja cidade sem vícios, há uma governança
que é mais honrosa, outra que é mais turbulenta, e algumas retêm mais virtude de acordo com
essa ideia, enquanto outras retêm menos. No tempo de Davi e Salomão, Jerusalém prosperou
mais e a ordem política era mais íntegra do que no tempo de Herodes. No entanto, o que restou
de bom no tempo de Herodes ainda era uma obra de Deus. Com a ajuda de Deus, o refúgio de
Zacarias, Simeão, Isabel e muitos outros piedosos era preservado. Entre tantos saques, guerras e
fúrias do Diabo e de Herodes, Deus ainda protegeu Maria, Isabel e muitos outros santos
incontáveis.
Agora, vamos falar sobre as pessoas. Embora a instituição, ou seja, a ordem política, seja de
Deus, o casamento frequentemente envolve pessoas que não são inspiradas por Deus, e muitas
vezes essas pessoas perturbam a ordem divina que é preservada ou ornamentada. Por exemplo,
Calígula, Nero e muitos outros tiranos cruéis que governaram em impérios divinamente
ordenados agiram como se estivessem em um jardim selvagem. Paulo respeitava as leis e a
ordem do Império Romano, mas odiava e amaldiçoava Nero como um instrumento do Diabo que
dilacerava a boa ordem. Portanto, é importante distinguir entre líderes de impérios. Pessoas como
Davi, Salomão, Josafá, Ezequias, Josias, Nabucodonosor, Ciro, Constantino, Teodósio e Carlos
foram líderes benéficos, inspirados e ajudados por Deus para restaurar impérios e, de alguma
forma, apoiar a Igreja de Deus. Além disso, houve líderes divinamente inspirados e ajudados,
como Temístocles, Aristides, Alexandre, o Grande, Fábio, Marcelo, Cipião, Paulo Emílio e
Augusto, que estabeleceram políticas que beneficiaram a humanidade e permitiram que as
instituições políticas florescessem por algum tempo. Portanto, o trabalho deles contribuiu para
que as gerações futuras, das quais a Igreja foi formada, persistissem.
No entanto, todos os governantes benéficos são testemunhados como sendo inspirados e
ajudados por Deus, como frequentemente afirmam as Escrituras. Por exemplo, o Salmo 126 (v.
1) diz: “Se o Senhor não guardar a cidade...”. E no Salmo 143 (v. 10): “Tu que dás a salvação
aos reis...”. Como Salomão disse em Provérbios 20. 12: “O ouvido que ouve e o olho que vê, o
Senhor os fez a ambos”, ou seja, para que um governante esteja atento e tenha conselhos felizes,
e para que o povo o siga de bom grado, isso é obra de Deus. Portanto, os conselhos felizes de
líderes como Cipião e o amor e a dedicação do exército a esse líder são bênçãos de Deus. Outros
imitadores não realizam feitos semelhantes nem são amados por seus exércitos. Da mesma
forma, João Batista, embora estivesse falando sobre o governo da Igreja, expressou uma verdade
universal sobre o governo. Ninguém pode assumir algo para si mesmo a menos que lhe seja dado
por Deus, ou seja, nenhum governo é bem-sucedido e benéfico a menos que o seja com a ajuda
de Deus. Os planos de Temístocles foram benéficos para a pátria. Mas as políticas de Péricles e
Demóstenes eram excessivamente ambiciosas, levando a guerras desnecessárias que foram
prejudiciais para a Grécia.
No entanto, mesmo quando a ordem e as pessoas são ajudadas por Deus, os governos
frequentemente enfrentam desafios e têm defeitos. Isso ocorre porque o Diabo tenta perturbar os
governos de várias maneiras, e a fraqueza humana é significativa. Além disso, Deus muitas vezes
permite que líderes levantados por Ele punam tiranos e mudem os governos, o que geralmente
envolve grandes desastres. Mesmo o mais bem-sucedido e benevolente dos reis, como Davi em
Israel ou Augusto em Roma, experimentam uma mistura de calamidades e falhas.
Um exemplo disso é o rei Ciro, que foi extremamente bem-sucedido e ameno, mas suas
conquistas resultaram na devastação terrível de partes da Grécia, como a Jônia, como uma forma
de Deus punir os excessos. Da mesma forma, quando heróis são levantados, como Ciro,
Alexandre e os romanos, as mudanças frequentemente envolvem a queda de grandes cidades e
reinos. Heróis como esses podem destruir cidades e reinos inteiros em suas conquistas.
Portanto, em terceiro lugar, destaco a necessidade de distinguir as misérias humanas da
ordem política. A política de Davi nem sempre é tranquila, pois frequentemente é perturbada
pelo Diabo, e as fraquezas humanas desempenham um grande papel. Já o governo de Ciro pode
ser visto como mais severo, uma vez que Deus usou um exemplo terrível para punir a Jônia por
seus comportamentos pecaminosos. No entanto, essas punições aparentemente severas estão
relacionadas ao funcionamento da ordem política, uma vez que Deus, como justo juiz, manifesta
Sua ira através dessas punições horríveis, como vemos nos casos de Sodoma ou quando nações
inteiras são dizimadas pela fome ou pela peste.
Portanto, muitos dos males encontrados nos impérios devem ser considerados como
punições fatais e exemplos da justa ira de Deus contra os pecados humanos. Na verdade, desde o
início, os impérios têm declinado, e a servidão aumentou à medida que os pecados dos seres
humanos cresceram. A primeira monarquia é retratada na estátua de Daniel como sendo de ouro,
a segunda de prata, a terceira de bronze e a quarta de ferro. Os pés são uma mistura de ferro e
barro, o que significa que, em uma era posterior, haverá impérios cruéis, como o Império Turco,
bem como impérios fracos, repletos de apatia. A preguiça, como demonstrado em muitas regiões
da Alemanha, contribui para grande parte da confusão.
Certamente, o estado do Reino de Judá durante o tempo de Josafá foi muito mais bonito do
que após o retorno da Babilônia, e ainda mais tarde, quando foi afligido por reis da Síria, do
Egito e, finalmente, pelos Romanos. No entanto, alguns elementos da política ainda
permaneciam. Os piedosos reconheciam que isso era um benefício de Deus. Enquanto
suportavam os males que aconteciam, compreendiam que eram permitidos divinamente como
punições fatais. Eles sofriam com tristeza e lamento, e suavizavam a situação com a modéstia e
diligência em todos os deveres. Não provocavam com rebeldia ou sedição, e também oravam a
Deus para aliviar sua servidão.
Quando ouviram que Ptolemeu Látiro havia matado vinte mil judeus e forçado os cativos a
se alimentarem com a carne de seus parentes e irmãos mortos, eles viam que o Diabo estava
enfurecido contra esse povo, mais do que contra outras nações. Isso os levou a pensar na
necessidade de arrependimento e invocação a Deus. No entanto, eles também conheciam as
profecias divinas que indicavam que o sistema político permaneceria até que o Messias viesse
pregar. É importante mencionar essa diferença entre a ordem política e as confusões que a
perturbam, como se, durante uma melodia, alguém perturbasse a harmonia de músicos
habilidosos com seus gritos. Isso ajuda a preparar o leitor para o restante do texto, sem condenar
os benefícios divinos devido às confusões que surgem de outras fontes. Em diferentes situações,
a ordem política pode ser mais ou menos intacta, com mais ou menos confusão. No entanto,
nesta vida miserável e repleta de dificuldades, tanto o Diabo, que busca causar mais tumultos,
quanto a natureza humana, que é intrinsecamente fraca e inclinada a erros e cobiças, contribuem
para injustiças e perturbações no equilíbrio. Além disso, muitas punições fatais ocorrem,
resultando em grandes distúrbios na ordem dos reinos e na disciplina. Todas essas causas
convergem, especialmente na última era da humanidade.
É inegável que a natureza humana está consideravelmente mais enfraquecida do que era no
início. De acordo com a sabedoria dos estudiosos, as eras humanas podem ser divididas em três
partes. Inicialmente, eles dizem que a razão reinava, e as artes foram inventadas pelos primeiros
pais. Os seres humanos eram governados mais pela sabedoria do que pela força. Posteriormente,
ocorreu a era guerreira, na qual os impérios passaram a ser estabelecidos pela força das armas.
Quatro impérios governaram o mundo desde a época de Abraão até a era de Teodósio. Por fim,
chegou a última era, na qual, dizem eles, a luxúria passou a dominar. A natureza humana
enfraquecida já não busca o conhecimento com a mesma intensidade de antes, nem se envolve
em batalhas tão árduas como as travadas por valentes como Davi, Aquiles, Ciro, Alexandre,
Aníbal, Marcelo, Cipião, ou Júlio César. Em vez disso, a natureza humana parece buscar
prazeres e deleites, enfraquecendo-se. Além disso, à medida que o pecado acumulou-se ao longo
do tempo, também aumentaram as punições. Nessas circunstâncias, o Diabo aproveita-se das
fraquezas humanas e as pressiona com ainda mais fúria. Sabendo do ódio divino e de Cristo, que
ele sabe que em breve se manifestará para julgar e conceder à Igreja as recompensas eternas,
enquanto lançará os demônios e ímpios em tormentos eternos, ele age de forma mais cruel no
auge de seu poder.
Devemos considerar tudo isso quando observamos o aumento das perturbações nos reinos,
tumultos, desperdício e exaustão dos governantes, a exploração do povo e outras misérias da
servidão. Devemos aprender a suportar essas aflições com paciência e orar a Deus para que Ele
proteja e guie alguma morada para Sua Igreja.
Ao longo da história, todos os reinos, em todas as eras, tornaram-se mais tumultuados no
final de seus ciclos. Quantas vezes vimos vários reis da Síria lutando pelo trono ao mesmo
tempo, como Antíoco, Trifão, Demétrio e outros! Basta pensar na série de guerras civis entre os
líderes romanos desde Severo, sem mencionar as antigas guerras civis! Também testemunhamos,
nesta era, dois reis da Panônia lutando de forma extremamente infeliz. Portanto, é essencial que a
sabedoria da Igreja seja usada para enfrentar essas misérias, que Cristo nos alertou previamente,
ao predizer que nos últimos tempos haveria grandes guerras, quedas de grandes reinos e
angústias para as pessoas.
Agora, voltando à questão principal de onde vêm os governos, se as funções políticas são
coisas boas e se é permitido aos cristãos ocupar cargos públicos, comprar, vender, atuar como
juízes, levar suas causas aos tribunais, participar do exército e lutar em guerras justas, em relação
a isso, respondo em primeiro lugar: Tanto o casamento quanto a ordem política são instituídos
por Deus eterno e aprovados pela Sua expressa vontade divina. Tudo o que é bom na ordem
política é preservado com a ajuda de Deus. Por “ordem política”, como mencionei antes, estou
me referindo não às perturbações injustas, mas sim às leis em conformidade com a razão, que
unem a sociedade civil, fornecendo líderes para a multidão, bem como contratos, tribunais,
punições legais, repressão de crimes e serviço militar.
Sobre o casamento, existem testemunhos bastante conhecidos. O casamento é a união
permanente do marido e da esposa, estabelecida por leis divinas específicas que mostram quais
pessoas podem se unir e como isso é permitido, como visto em Gênesis 2, Levítico 18, Mateus
19 e 1 Coríntios 7. Nestes lugares, a instituição, aprovação e ordenação do casamento são
claramente evidentes, sobre os quais falaremos mais detalhadamente posteriormente. Agora, vou
acrescentar testemunhos sobre os magistrados ou o governo civil.
Paludanus[145] afirma que a ordem política tem sua origem apenas em Deus, porque a razão
foi dada ao homem e o conhecimento das leis naturais, que julga ser necessária essa ordem entre
os seres humanos. Embora essa opinião seja verdadeira, ainda não disse o suficiente sobre a
causa da sociedade civil ou dos governos. Pois as leis justas e a sociedade civil não podem ser
mantidas apenas pelos conselhos e esforços humanos. Portanto, saibamos que essa ordem foi
instituída e comprovada pela voz de Deus e, verdadeiramente, é sustentada por Ele.
A clara evidência dessa voz de Deus é toda a Lei de Moisés, que, embora tenha sido dada a
uma nação específica, é uma demonstração da vontade de Deus sobre a vida política. A Lei
Moral, em particular, é a própria ordem da sociedade civil, se for compreendida corretamente.
Essas mesmas leis foram transmitidas desde o início do mundo e frequentemente repetidas. No
Paraíso, os desejos desordenados foram proibidos. Em Gênesis 4, o assassinato injusto foi
proibido e condenado. E em Gênesis 9, é estabelecido expressamente o governo com a
promulgação desta lei: “Aquele que derramar o sangue do homem, pelo homem seu sangue será
derramado, porque o homem foi feito à imagem de Deus”.
Não há dúvida de que esta lei é a base da ordem política e não devemos considerar em vão
que essa voz tenha vindo de Deus. Quando, de maneira específica, diz que o sangue do homicida
deve ser derramado pelo homem, Deus instituiu o governo humano, que, em uma ordem
específica, julga o réu e administra a justiça de Deus. Portanto, existem evidências claras da
instituição desse ordenamento político.
E quando Paulo ensina a doutrina sobre a ordem política em Romanos 13, ele
simultaneamente testemunha que esta ordem é estabelecida por Deus e é confirmada e auxiliada
por Ele. Este capítulo é apresentado com grande sabedoria pelo Espírito Santo às igrejas, a fim
de refutar de forma evidente os delírios fanáticos que condenam a ordem política, isto é, as
autoridades civis e os governos. As autoridades, que são ordenadas por Deus, ou seja, que em
cada tempo e lugar devem obedecer às autoridades legítimas presentes, estão expressas aqui,
como se ele dissesse: não busque o governo de Ciro ou Alexandre. Pois Deus, como justo juiz, já
destituiu esses governos muito antes e estabeleceu outros governos. Portanto, o que são
autoridades, isto é, aquelas que governam em qualquer época, saiba que são ordenadas por Deus.
E mais adiante ele chama as autoridades de ordenação de Deus. Deve-se notar a ênfase da
palavra, que chama as autoridades de ordenação. Primeiramente, ele distingue claramente as
autoridades dos pecados. Pois o pecado não é a ordenação de Deus, mas sim confusão e
perturbação terrível da ordem divina, a qual Deus sempre detesta e execra. Em seguida, ele nos
adverte sobre como é o estado civil ou o governo. Ele diz que é uma ordem, ou seja, uma
sequência de pessoas e coisas, que estão de acordo com a regra da mente divina, que brilha
dentro de nós conforme a Lei da Natureza, como costumamos dizer.
Que o governo seja uma ordem de pessoas, com autoridades, cidadãos obedecendo
apropriadamente às autoridades em seu devido lugar, que haja uma ordem certa entre marido e
esposa, entre pais e filhos, que haja uma ordem nos tribunais; que as leis apresentem e sancionem
uma ordem de deveres e contratos, que mostrem a ordem da humanidade em relação a Deus, que
proíbam desejos vagos e desordenados, que são contrários à ordem divina estabelecida na
natureza humana, e que ordenem igualdade em contratos. Que o comprador pague o valor
acordado. Que o cidadão não prejudique o seu vizinho, mas que todos saibam que estão ligados
uns aos outros para defesa mútua e bem comum, que consiste em uma compensação equitativa
de vontades, deveres e bens. E se alguém violar esta ordem, que seja punido.
Não há ordem intelectual nas bestas, mas nos seres humanos está impresso o conhecimento
da ordem, com o qual, se a natureza humana não estivesse corrompida pelo pecado, também
haveria um amor verdadeiro e ardente em relação à manutenção da ordem em relação a Deus e
aos outros. No entanto, agora, as pessoas frequentemente se opõem à ordem natural. Alguns
amam mais a ordem, outros menos, como Eurípides diz dos Ciclopes: “Nenhum ouve leis,
ninguém ouve nada”[146]. Muitas mentes selvagens acreditam que a felicidade reside em viver
sem ser controlado por leis, ordem ou disciplina, como se fossem uma prisão, mas em vagar
livremente e ceder às suas paixões sem restrições. É difícil convencer mentes assim de que a
ordem é uma grande virtude ou explicar o quanto Paulo enfatiza isso, e como ele claramente
testemunha que o governo e o estado civil são coisas boas que agradam a Deus, e não pecados.
Na verdade, os espartanos tinham uma lei que permitia aos homens ter relações com a
esposa de outro homem, desde que o marido consentisse. Portanto, se um espartano
testemunhasse alguém na Judeia sendo levado para o castigo por adultério, ele diria que isso era
uma crueldade indigna de seres humanos. No entanto, Paulo aqui enfatiza que as punições legais
fazem parte da ordem política e estão de acordo com a norma na mente divina. Mas as pessoas
muitas vezes não veem imediatamente o que Paulo está dizendo, especialmente porque ele usou
tanta brevidade.
Portanto, aqueles que leem o texto de Paulo devem trazer mentes atentas e ponderar este
trecho. Eles devem analisar as palavras, o que a ordem significa, dividir a ordem das pessoas e
das coisas, dos governantes, dos cidadãos, das leis, dos julgamentos, dos contratos, dos crimes e
das penas. Em seguida, eles devem reconhecer que a norma da ordem é a Lei eterna na mente
divina, da qual ele diz: “As autoridades devem elogiar as boas obras e punir as más”[147]. É
extremamente certo que a ordem que está em conformidade com a mente divina seja uma coisa
boa e agradável a Deus. Portanto, esse testemunho de Paulo satisfaz mentes boas e atentas. Ele
usa o mesmo testemunho que Irineu usou contra os fanáticos, que espalhavam seus delírios
semelhantes aos dos anabatistas naqueles primeiros tempos. Mas muitas coisas semelhantes
podem ser encontradas nas escrituras dos profetas.
Lucas 3: João Batista pregava aos publicanos e militares, entregando excelentes instruções
políticas. Portanto, ele aprova a função deles quando ensina como administrá-la adequadamente
(versículo 13): “Não exijam mais do que é estabelecido”. Ele reconhece que o Estado não pode
sustentar suas despesas sem impostos necessários. Assim, ele deseja que os impostos sejam
pagos, mas não quer que sejam feitas extorsões excessivas além dos impostos legítimos
(versículo 14): “Não pratiquem extorsão a ninguém; e contentem-se com o seu salário”. Ele
deseja que haja julgamentos, mas sem subornos e calúnias. Essa pregação abrange todo o estado
político, julgamentos e serviço militar, e distingue as falhas e corrupções introduzidas pela
maldade humana. Devemos rejeitar as críticas fúteis e insensatas dos anabatistas, que afirmam
que João Batista permitiu essas práticas aos imperfeitos e que Cristo ensinou de forma diferente
posteriormente. As pregações de João Batista e Cristo não são contraditórias. Não devemos
subestimar a autoridade de João Batista. Sua vocação e função são grandiosas, como
testemunhado por Cristo e confirmado por Deus com um testemunho notável durante o batismo
de Cristo. No entanto, os anabatistas furiosos não prestam atenção ao que dizem ao falar de
forma insultuosa sobre o ministério de João Batista.
Salmo 81 (versículo 76): “Eu disse: ‘Vocês são deuses; todos vocês são filhos do
Altíssimo’”. Isso significa que aqueles que ocupam cargos divinos, sustentando a defesa da
justiça e da paz, que são bens divinos, têm esse título de Deus conferido a eles por Deus, porque
Ele deseja que eles compartilhem esses bens com o povo. Portanto, Deus aprova a função
quando ela atende a ordem divina. Salmo 101 (versículo 13): “Quando o Senhor tiver reunido os
cativos de Sião, então se verá em Sua glória”. E Isaías 49 (versículo 23): “Reis serão os Teus
aios, e Suas rainhas, as Tuas amas de leite”. Essas passagens e muitas outras semelhantes
testemunham que reis e magistrados são membros da Igreja de Deus e agradam a Deus. Portanto,
Deus aprova os governos e a ordem política. Fortalecidos por essas evidências, devemos
condenar firmemente a loucura dos anabatistas, que argumentam que os cristãos não devem
ocupar cargos políticos, rejeitam julgamentos, leis, serviços militares e outras funções políticas,
como se essas coisas fossem pecados em si mesmas e entrassem em conflito com o Evangelho.
Tive muitas discussões sobre essa controvérsia com Karlstadt, Pelargus, Struthio[148] e outros.
Muitos, ao reconhecerem as fontes dessa disputa, que já mencionei, abandonaram as ideias
insensatas dos anabatistas e retornaram ao caminho da razão.
Além das passagens que mencionei, acrescentem-se os inúmeros exemplos de pessoas que
invocaram verdadeiramente Deus e governaram grandes reinos em diferentes épocas. Deus
permitiu que, por meio de Seus servos, a política fosse frequentemente usada para benefício das
nações. Isso foi feito para que a confissão de fé brilhasse na adoração deles, para que a
verdadeira doutrina fosse mais amplamente divulgada e para que a Igreja tivesse lugares onde
pudesse encontrar abrigo. Não há dúvida de que os primeiros patriarcas, como Adão, Enoque e
Noé, também foram governantes políticos em seu tempo. Isso é evidenciado, por exemplo, pela
lei dada a Noé sobre o castigo de homicídios. Além disso, Melquisedeque é explicitamente
chamado de rei. Mesmo Abraão, embora tenha sido um estrangeiro em impérios alheios, nomeou
reis entre os membros de sua família e liderou seu próprio clã sob uma estrutura política,
chegando até mesmo a participar de batalhas. Mais tarde, José não apenas governou, mas
também estabeleceu novas leis no reino do Egito. Não há dúvida de que a forma como José
organizou o reino do Egito, durante seu auge, superou todas as formas de governo que surgiram
posteriormente em todo o mundo, na Caldeia, na Jônia, na Grécia e em Roma.
Aqueles que atribuem maior sabedoria política a líderes como Sólon ou Augusto do que aos
homens que eram iluminados pela divina luz e invocavam verdadeiramente a Deus, como José,
Daniel, Esdras e outros, estão gravemente enganados. José não apenas invocava corretamente a
Deus entre os príncipes do Egito, mas sua liderança influenciou o próprio rei de sua época e
muitos outros governantes que, juntos, governavam o Estado, a reconhecerem o verdadeiro Deus.
Posteriormente, não há dúvida de que Deus se agradou de Moisés e de muitos outros líderes que
guiaram o povo de Israel.
O que os anabatistas enfurecidos afirmam, de que o estabelecimento político e o lar foram
concedidos ao povo de Israel devido à sua imperfeição, é uma resposta repleta de insensatez. Foi
um benefício singular de Deus ter dado ao povo de Israel um local específico e protegido por
mais de quatorze séculos. Deus queria que houvesse um local definido onde as promessas
divinas pudessem ser testemunhadas, e onde Cristo pudesse nascer, como já foi amplamente
discutido anteriormente em relação ao Antigo Testamento.
No entanto, quando Deus aprovou a lei e a ordem política dentro do povo de Israel e
testemunhou frequentemente que essas funções eram necessárias para inflamar a adoração,
divulgar a luz, promover a confissão e o amor pela igreja, Ele indicou que também aprovava a lei
e a ordem política em outras nações, conforme evidenciado em exemplos. Pois José, Daniel e
muitos outros governaram políticas entre as nações não-israelitas. Portanto, ao examinar as
histórias de outros reinos além do israelita, vemos que Daniel governou uma província não-
israelita e, por meio de seu ministério, influenciou poderosos reis a reconhecer o verdadeiro
Deus, incluindo Nabucodonosor, seu filho Belsazar, Dario, o medo, Ciro, o persa e muitos outros
líderes. Portanto, Deus espalhou o povo de Israel por outros reinos, para que a verdadeira
doutrina sobre Deus pudesse ser mais amplamente divulgada.
Nas histórias do Novo Testamento, mencionam-se vários centuriões que creram no
Evangelho, e até mesmo toda a família de Cornélio, um soldado romano, recebeu o Espírito
Santo por meio de um grande milagre, da mesma forma que os apóstolos.
Portanto, considerando todas as extensas e notáveis testemunhas e exemplos que mostram
que o estabelecimento político é do agrado de Deus, e que os deveres do governo são obras
piedosas e culto principal a Deus para aqueles que O invocam corretamente, devemos aprender a
honrar as instituições políticas, governos, autoridades, leis, julgamentos, divisões de poder,
contratos, como dons de Deus. Devemos direcionar todas as atividades da vida civil a esses
propósitos, a fim de obedecer a Deus em todas essas ordenanças e para que nossa adoração e
confissão brilhem nessa sociedade, exercitando também o amor mútuo.
Mencionei exemplos de governantes que agradaram a Deus, como José, Daniel, Naamã, o
sírio, e outros. Como está claro que foram ajudados por Deus, fica evidente que o governo é uma
obra e uma bênção divina. Além disso, considerarei exemplos de heróis pagãos que, embora não
tenham conhecido o verdadeiro Deus, foram instigados por impulsos ardentes a buscar a virtude
e foram ajudados em suas ações. Pode-se citar Alexandre, o Grande, Cipião Africano e Augusto.
Os feitos notáveis desses homens moveram todos os sábios a reconhecer que eles tinham
qualidades superiores e obtiveram sucesso mais abençoado do que a maioria dos outros. Cícero
afirmou que nenhum grande homem havia surgido sem inspiração divina. Quando Deus infundia
a esses líderes ou artífices motivações excepcionais para estabelecer ou reformar impérios,
restaurar cidades e artes, Ele fornecia um testemunho evidente de Sua presença na política, como
Platão disse em suas “Leis”, que o poder humano é mais fraco do que poderia se autogovernar.
Portanto, Deus nomeou para as cidades não meros mortais, mas um tipo mais nobre e divino,
heróis. Embora eles próprios tivessem sucesso, o governo deles era agradável e fácil para nós.
Cuidavam de preservar a paz, a moral e a liberdade. Além disso, Platão disse que “onde não é
Deus, mas um ser humano que governa, não há escape de males e sofrimentos”[149]. Estas
palavras de Platão são extremamente sábias e verdadeiras. Portanto, nós devemos aplicar essas
palavras a nossas circunstâncias atuais e refletir sobre elas: “Agora mesmo, então, devemos usar
a verdade, pois, quando não é Deus, mas algum ser humano mortal que governa cidades, não há
escape dos males e dos sofrimentos”. A história de todas as épocas fornece exemplos disso.
Durante o reinado de Augusto, houve paz e tranquilidade no império, porque Deus permitiu um
período de restauração da paz, justiça, leis e disciplina. No entanto, durante o reinado de
Valentiniano, Augústulo e outros semelhantes, houve frequentes convulsões e crescentes
desordens.
Finalmente, temos o testemunho da presença de Deus nos impérios, que é evidenciado pelo
fato de que crimes atrozes são frequentemente punidos com castigos corporais visíveis enviados
por divina providência. Aqueles que cometem perjúrio, roubo, tirania, incesto e muitos outros
crimes acabam sofrendo punições. Embora as penas possam variar, geralmente, no final, os
culpados são punidos, e apenas alguns alcançam um fim tranquilo. Existem tantos exemplos de
tiranos assassinados que foi escrito por Juvenal (Sat. X. 112. 113):
“Alguns poucos, sem derramamento de sangue, descendem ao Reino de Ceres[150],
Mas os Tiranos são condenados à morte seca.”
Diariamente, testemunhamos exemplos de homicídios. Mesmo que inicialmente esses crimes
sejam ocultados, eles frequentemente vêm à tona de maneira surpreendente. Embora aqueles que
cometeram assassinato tenham escapado impunes no início, mais tarde são levados à punição. Da
mesma forma, os criminosos incestuosos não escapam do castigo, como Édipo, Egisto, Herodes
e outros. Jesus Cristo fala sobre essas punições (Mateus 26. 52): “Aqueles que tomarem a
espada” — ou seja, aqueles que recorrem à violência não justificada pelas leis — “morrerão pela
espada”. O profeta Isaías também adverte (Isaías 33. 1): “Ai de você que despoja, porque será
despojado”. Jó afirma (Jó 9. 28): “Temia todas as minhas obras, sabendo que Tu não poupas o
delinquente”. E o Eclesiastes diz (Eclesiastes 8. 8): “O ímpio não escapará no combate”, ou seja,
Deus pune crimes graves e atrozes com diversas calamidades.
Dessa forma, Deus mantém a justiça civil no mundo, regularmente punindo aqueles que
violam a ordem civil nesta vida. Assim como as estações do ano seguem regularidades, a justiça
civil é preservada por Deus. Embora ocasionalmente, assim como no clima, Deus possa agir fora
do comum e adiar recompensas e punições de acordo com Seu plano oculto, devemos lembrar a
regra geral e agir com temor à ira de Deus, evitando impulsos temerários.
Existem duas razões pelas quais, regularmente, nessa vida, as punições acompanham crimes
graves: em primeiro lugar, porque Deus, como juiz justo, deseja que Sua ira contra o pecado seja
visível e nos lembra de Sua vontade nesse sentido. Em segundo lugar, essas punições mantêm a
ordem na sociedade civil, que se desintegraria completamente se não houvesse contenção contra
roubos, tiranias e outros excessos. Portanto, mesmo que Tibério morra em paz, não devemos
negligenciar a regra que ameaça castigos e tormentos nesta vida para tiranos e outros que
cometem crimes hediondos, com base em um ou dois exemplos.
Posteriormente, outros imperadores, como Calígula, Cláudio, Nero, Domiciano, Cômodo e
muitos outros, sofreram punições. As maldições contidas na Lei de Deus, que não são vãs, são
confirmadas pela história mundial. Na verdade, na sequência de graves guerras e tumultos
públicos, nações inteiras perecem devido aos pecados de muitos. Além disso, na esfera privada,
inúmeras pessoas são afligidas diariamente por grandes sofrimentos e dores. Precisamos
examinar quais são as causas desses males. Isaías nos lembra disso com grande veemência e, de
forma memorável, aponta a causa, como que indicando com o dedo, no capítulo 64, versículo 6:
“E as nossas iniquidades, como o vento, nos levaram embora”.
Essa experiência universal também influenciou os não cristãos a reconhecerem a providência
e o julgamento de Deus. Isócrates, em um discurso sobre a paz, opôs-se fortemente à insanidade
dos epicuristas, que desprezavam a regra por causa de alguns exemplos e esperavam impunidade
por seus crimes. Embora ele dissesse que os ímpios nem sempre são punidos, ele enfatizou que
geralmente sofrem as consequências. Como o futuro é sempre incerto, ele afirmou que é
prudente adotar o que normalmente é mais vantajoso. E, uma vez que entendemos que a justiça
agrada mais a Deus, seria extremamente tolo presumir que os justos estariam em pior situação do
que os injustos. Portanto, dado que a experiência contínua atesta que crimes graves são punidos,
reconhecemos que Deus é um juiz e vingador, devemos temê-Lo e admitir que os governos são
protegidos, mantidos e transformados por Ele.
Até aqui, eu apresentei argumentos e declarações que mostram que a ordem política é uma
coisa boa e agradável a Deus. Além disso, um argumento adicional a ser acrescentado é o
seguinte: uma vez que Deus frequentemente instrui que orações pelo governo sejam feitas, para
que o governo permaneça firme e seja fortalecido, é necessário que seja algo bom e agradável a
Deus, não um pecado. Afinal, não estamos pedindo que os pecados se fortaleçam.
Além disso, existem preceitos sobre essa oração. Jeremias 29. 7 ordena: “Orem pela paz da
cidade, onde lhes fiz transportar e nela possuem paz, porque, se ela prosperar, vocês também
prosperarão”. Isso instrui a fazer orações pelo império babilônico, que naquele momento era o lar
da igreja. Devido a essas orações, não apenas os sofrimentos do exílio e da servidão foram
amenizados, mas Deus também inclinou os corações dos reis para o reconhecimento da
verdadeira doutrina. Abraão ora pelo rei Abimeleque, e Jacó abençoa o rei do Egito, que recebeu
a doutrina da verdadeira invocação de Deus de José. 1 Timóteo 2. 1 apresenta uma instrução rica
em conhecimento: “Recomendo, pois, antes de tudo, que se façam súplicas, orações, intercessões
e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que têm autoridade, para que
tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade”. Este versículo ensina
sobre oração e orienta como deve ser a governança e a quais objetivos principais os planos de um
governante devem se referir.
Devemos pedir a Deus para conceder paz às nossas cidades e reger a disciplina. Bons líderes
devem se esforçar para alcançar esses objetivos: em primeiro lugar, assegurar a paz e
tranquilidade internas, proteger contra inimigos externos na medida do possível e conter roubos e
sedições em casa. No entanto, o objetivo da paz não deve ser permitir que os cidadãos busquem
prazeres e se entreguem ao luxo. Há objetivos mais amplos para a paz, como permitir a
disseminação da doutrina religiosa verdadeira, proteger escolas e permitir que a juventude seja
educada, além de evitar a destruição da igreja e das suas instituições. Além disso, a paz deve
servir para regular os costumes com uma disciplina honesta.
Desse modo, o rei Davi sabia que ao liderar guerras, ele não estava buscando esses trabalhos
e labores apenas para si, mas também para cumprir objetivos nobres. Ele estava ciente de que os
esforços e dificuldades enfrentados nas batalhas não eram em vão, mas tinham um propósito
maior. Seu objetivo era assegurar a preservação da Igreja de Deus ao afastar os inimigos,
permitir que a família fosse criada em paz e que as crianças fossem educadas na verdade sobre
Deus e orientadas para condutas honestas. Ele visava que as escolas fossem preservadas,
permitindo que a juventude e o público em geral se reunissem com segurança. Além disso,
buscava garantir que a verdadeira doutrina sobre Deus, o nome do Messias e a invocação correta
a Deus não fossem apagados. Davi mantinha esses objetivos em mente sempre que liderava um
exército, formava suas fileiras e avançava contra as forças inimigas. Alexandre, Cipião e Júlio
César não compreendiam esses objetivos, mas sabiam que a defesa da pátria era essencial para
garantir que as pessoas fossem governadas por uma disciplina honesta em tempos de paz,
evitando a destruição da humanidade ou a degeneração de costumes em algo selvagem e bárbaro.
Paulo, portanto, acrescenta a necessidade de orarmos não apenas pela paz, mas também para
vivermos em paz com piedade e honestidade. Isso significa que a verdadeira doutrina sobre Deus
deve ser propagada, que Deus deve ser invocado corretamente e que as condutas devem ser
virtuosas. Assim, em poucas palavras, Paulo delineou a forma ideal de governança política.
Após destacar que a ordem política é algo bom e agradável a Deus, acrescentarei algumas
regras úteis para promover a paz e nutrir o respeito pelas autoridades em mentes bem-
intencionadas em relação aos Magistrados e à ordem da sociedade civil como um todo. Esta
ordem, quando referida à glória de Deus, é um culto agradável a Ele.
A primeira regra: assim como o Evangelho não abole nem desaprova as artes da Aritmética,
Arquitetura ou Medicina, mas, pelo contrário, incentiva o reconhecimento de que essas áreas são
dons de Deus essenciais para a vida corporal, da mesma forma, o Evangelho não abole nem
desaprova a ordem Econômica e Política. Pelo contrário, ele instrui que reconheçamos que essas
instituições são presentes de Deus, sem os quais a vida terrena seria insustentável. Deus deseja
preservar a humanidade, permitindo a formação de Sua Igreja neste mundo. E Ele faz isso ao
manter as instituições de sustento, como comida, bebida, casamento, ordem política e várias
profissões, como agricultura, arquitetura e medicina, que sustentam a vida corporal.
Assim como a comida, a bebida, a agricultura, a arquitetura e a medicina não contradizem o
Evangelho, que prega a reconciliação com Deus e traz a nova e eterna luz às mentes, da mesma
forma, a governança política não entra em conflito com o Evangelho. No entanto, aqueles que
desconhecem a verdadeira doutrina do Evangelho sobre justiça interior, fé e invocação correta de
Deus são facilmente enganados nesta discussão e tendem a imaginar que o Evangelho implica
em uma nova e bárbara forma de governo. Da mesma forma, os hipócritas enaltecem a solidão e
os ritos monásticos, ou melhor, o ócio epicurista desfrutado por aqueles que não participam dos
labores comuns, especialmente os que envolvem a complexa tarefa de governar, e não enfrentam
os perigos e tempestades que frequentemente afligem gravemente os líderes, como Moisés, Arão,
Samuel, Davi, Jeremias e inúmeros exemplos que a vida cotidiana comprova.
Eles também não se opõem a esta primeira regra as proibições de vingança que estão
dispersas no Evangelho. De fato, essas doutrinas reforçam as instituições de governo, uma vez
que Deus estabeleceu a autoridade civil para administrar a justiça. Assim como nas outras
instruções divinas, Ele deseja que obedeçamos à ordem divina ao proibir o livre exercício das
paixões, da mesma forma, Ele nos impede de nos deixar levar pela ira. Ele deseja que
obedeçamos à ordem divina sem ceder ao incêndio da raiva, e para que peçamos que as
autoridades exerçam suas funções, defendam os inocentes e punam aqueles que agem de forma
imprudente. Se os governantes cumprem suas responsabilidades, devemos agradecer a Deus e às
autoridades, e nos regozijarmos pelo fato de sermos governados de maneira justa, resultando em
cidades mais pacíficas. Se os governantes não cumprem suas obrigações, os cidadãos não devem
perturbar a ordem divina ou incitar a sedição. Eles devem conter sua raiva e mágoa e se consolar
com a certeza de que a Igreja, em certas circunstâncias, é chamada a suportar a cruz e, ainda
assim, agradar a Deus. Na verdade, a tolerância às injúrias e à crueldade alheia é um sacrifício
aceitável a Deus.
Portanto, foi dito anteriormente que a vingança tem duas formas. Uma delas é ordenada, ou
seja, pública, administrada pelas autoridades segundo uma ordem e leis definidas. O Evangelho,
ou seja, a Lei de Deus, não proíbe de forma alguma essa vingança ordenada. Pelo contrário,
como mencionado várias vezes, ela é divinamente instituída e aprovada, e é apoiada por Deus.
Essa vingança faz parte da ordem civil ou das funções das autoridades, como Paulo chama
explicitamente a autoridade civil de “vingadora”. Portanto, não há dúvidas quanto à aprovação
da autoridade civil no Evangelho, assim como é evidente a aprovação dessa vingança que ela
exerce de acordo com as leis. Essa vingança se alinha com a passagem bíblica que diz: “A Mim
pertence a vingança, Eu retribuirei” (Hebreus 10. 30). Deus, como juiz justo, se ira com o pecado
e pode punir sem a intervenção humana, como fez ao destruir Sodoma ou os egípcios no Mar
Vermelho, ou Ele pode agir através de punições ordinárias, que Ele recomendou que fossem
executadas pelas autoridades. Essas ações estão de acordo com o princípio “A Mim pertence a
vingança, Eu retribuirei”. Isso pode ser facilmente compreendido por pessoas sãs que usam
discernimento e habilidade no julgamento.
A outra forma de vingança é aquela que se afasta da ordem divina, que chamo de vingança
privada. Isso acontece quando, movidos pela ira ou pelo ódio, pegamos em armas por conta
própria, sem a orientação das leis, e agimos de acordo com nosso próprio furor, não seguindo as
ordenanças de Deus para a punição de outros. Isso é servir à nossa própria raiva, não à ordenação
de Deus, como no caso de Joabe matando Abner por seu próprio desejo, em vez de obedecer à lei
de Deus para a punição.
Embora haja uma grande chama no coração e um desejo ardente de vingança, poucas
pessoas estão tão focadas a ponto de reconhecer sua própria ferida. Geralmente, elas tentam
encobrir essa ferida com alguma aparência de justiça, enquanto se envolvem em conflitos
injustos e prejudiciais para si mesmas e para o Estado. Um exemplo disso é Saul, que, movido
por inveja e rancor, alega falsamente que Davi é um agitador e tenta eliminar um amigo bem-
intencionado. Da mesma forma, Pompeu, inflamado pela inveja, tenta destruir Júlio César.
Essa praga é comum e se espalha amplamente em todas as nações, cidades e famílias.
Portanto, as pessoas devem ser conscientes e evitar ceder a essa fúria. O amor distorcido, que se
afasta da lei de Deus, é um mal comum e conhecido, e é a causa de muitos grandes males, como
a queda de Troia devido ao amor de Páris e os graves danos infligidos aos gregos. Por outro lado,
o desejo de vingança e a ira, quando surgem, frequentemente desencadeiam grandes guerras e
tumultos prejudiciais, tanto a nível pessoal quanto público, como ilustram as histórias de Caim,
Saul, Pompeu, Ário e muitos outros.
Portanto, ao considerar a magnitude desta praga, ou seja, a vingança privada que corre contra
a ordem divina, os sábios compreenderão a necessidade e a utilidade do preceito de Cristo, que
frequentemente pregava de forma severa contra esse impulso. Ele próprio entendia
verdadeiramente que, na Igreja e em toda a sociedade humana, terríveis perturbações surgiam
desse manancial. Pompeu viu César crescer em poder e se incomodou com sua glória, então
procurou oportunidades e pretextos para pressioná-lo. E outros se juntaram a ele, inflamados por
desejos semelhantes. Eu mesmo vi muitas pessoas perturbarem doutrinas verdadeiras na teologia,
motivadas pela inveja e pela competição.
Em resumo, todas as pessoas sensatas reconhecem o alcance desse mal. Portanto, devemos
internalizar profundamente as palavras de Cristo e dos Apóstolos e conter o desejo de vingança.
Uma vez que Cristo endossa a vingança ordenada, confiada aos magistrados, e, ao mesmo tempo,
proíbe a crueldade e a sedição privada, é evidente que esses ensinamentos fortalecem
adequadamente a ordem política e capacitam os magistrados. Portanto, a acusação de que o
Evangelho, feita por Celso, Juliano e outros, deseja abolir a vingança e, com isso, remover os
magistrados, a disciplina, as leis e os alicerces de toda a sociedade civil, concedendo liberdade
irrestrita para cometer qualquer tipo de pecado, é falsa. Essa calúnia é refutada de maneira
bastante convincente por Orígenes e Nazianzeno, que afirmam que a vingança é permitida, mas
que a virtude superior consiste em não buscar vingança. Esses absurdos foram refutados
anteriormente, quando tratamos dos mandamentos e conselhos. E quanto a como responder às
calúnias de Celso e Juliano, fica claro a partir dessa nossa distinção que a vingança privada é
proibida, enquanto a autoridade dos magistrados e do governo é confirmada. Essa é uma crença
verdadeira, piedosa e benéfica, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade.
Portanto, os governos são fortalecidos e enobrecidos pela voz do Evangelho. O mais belo
sistema é aquele estabelecido por Deus para todas as áreas da vida, tanto na esfera privada
quanto no governo. No entanto, as mentes humanas muitas vezes estão ocupadas com ideias
absurdas, hipocrisia, maus exemplos e, finalmente, são enfeitiçadas pelo Diabo, de modo que se
recusam a enxergar a ordem divina. Vimos muitos anabatistas, por exemplo, que com pertinácia
defendiam suas opiniões, mesmo quando claramente refutados nesta questão. Não há escuridão
neste assunto, desde que o ouvinte traga uma mente receptiva. Falei de maneira mais detalhada
para lembrar os jovens de que devem se acostumar a amar a ordem política e entender que nela
brilha a sabedoria, justiça e bondade de Deus em relação à humanidade. É comum que os jovens
mostrem seu intelecto ao criticar leis e costumes civis. No entanto, devemos evitar e condenar
essa sabedoria e insolência cínicas.
Além disso, há a objeção de que os governos frequentemente caem nas mãos de ímpios e que
há muita corrupção e confusão nos governos. Por esse argumento, espíritos céticos sustentam
que, de maneira geral, os governos são coisas más e condenadas por Deus.
Deve-se responder que esse raciocínio não é verdadeiro nem sólido, uma vez que é uma
generalização baseada em casos particulares. Na geração humana, surgem muitos desejos
viciosos, mas isso não significa que a geração como um todo seja condenada por Deus. Como
mencionei anteriormente, é importante distinguir a ordem política das confusões que podem
surgir de várias fontes, como a influência do Diabo, a maldade humana e a fraqueza comum da
humanidade. Isso também se aplica a outros aspectos da vida e governança que Deus
estabeleceu. Por exemplo, ninguém duvida que o governo da Igreja tenha sido instituído por
Deus, mesmo que haja confusões causadas por outras fontes. No entanto, a voz do Evangelho é
eficaz e reúne a Igreja eterna, e é para ser ouvida e respeitada. No caso do casamento e da
procriação, embora todos reconheçam que o casamento foi instituído por Deus e que a procriação
é uma bênção divina, muitos maridos podem ser cruéis e pais negligentes em relação aos filhos,
negligenciando sua educação sobre o conhecimento de Deus. Portanto, é necessário distinguir
entre esses vícios que surgem de outras fontes e a instituição divina do casamento e da
procriação. Devemos evitar os extremos dos maniqueus e dos anabatistas, e aprender a atribuir a
Deus as coisas que Ele verdadeiramente estabeleceu e ordenou. Isso será mais agradável quando
os vícios forem separados, uma vez que esses vícios não surgem de Deus, mas do Diabo, da
maldade humana ou da fraqueza humana. Além disso, devemos lembrar as consolações que Deus
nos deu, especialmente para aqueles piedosos que estão oprimidos pelo domínio turco ou por
outros governos que se desviam da moderação legítima. Precisamos aprender como enfrentar
essas dificuldades e quais mandamentos seguir.
Agora, mais do que nunca, é crucial lembrar as pessoas de mente boa que nos tempos atuais
os impérios mundiais, como previsto na estátua da visão de Daniel, estarão mais propensos a
confusões do que em seu início. A estátua composta por quatro metais diferentes simboliza a
progressiva decadência e enfraquecimento dos impérios ao longo do tempo. Isso nos diz que, à
medida que o tempo avança, a força dos governantes enfraquecerá e a virtude será
menosprezada. O mesmo é indicado na planta, que é parcialmente feita de ferro e parcialmente
de barro, simbolizando uma mistura frágil. A virtude será menosprezada em comparação com a
força. Platão também ponderou sobre isso, falando sobre o ciclo natural das civilizações que,
após atingirem um certo ponto, não podem mais progredir.
Ele atribuiu essa ideia às Musas, acreditando que a principal causa da mudança nos impérios
era um ciclo natural e misterioso que variava a matéria, em vez dos pecados dos homens. No
entanto, a sabedoria celestial frequentemente aponta para o declínio dos impérios devido às
paixões humanas e à punição por atrocidades e iniquidades, como registrado na Bíblia. As
Escrituras nos lembram que os impérios mudam de nação para nação devido à injustiça e à
astúcia dos seres humanos. Portanto, em resposta à objeção que mencionei anteriormente,
devemos lembrar que a ordem estabelecida por Deus deve ser distinguida das confusões que
surgem de outras fontes, e que devemos aprender a suportar a servidão, que é como uma punição
que atua como um cárcere para os erros humanos.
A segunda regra: É concedido aos cristãos se envolverem em assuntos econômicos e
políticos, e é necessário que eles sirvam a sociedade civil em suas funções de acordo com sua
vocação. Quando os piedosos desempenham essas funções, a fim de obedecer a Deus, eles
agradam a Deus e seu trabalho se torna um ato de culto a Ele. Além disso, essas atividades
envolvem muitas virtudes significativas. Portanto, os cristãos agem corretamente e piedosamente
ao exercerem funções de autoridade, judiciais, militares, ao acusarem criminosos em tribunais,
defenderem casos legítimos e aplicarem punições justas a condenados.
É necessário que os magistrados e juízes que não desprezam Deus compreendam isso.
Existem evidências claras da necessidade de cidadãos, mesmo aqueles que verdadeiramente
creem no Evangelho, cumprirem funções políticas de acordo com sua vocação. Romanos 13. 5
declara: “Portanto, é necessário que se sujeitem, não apenas por causa da ira, mas também por
questão de consciência”. Em Lucas 3. 14, lemos: “Nem tampouco a ninguém tratem
injustamente, nem deem denúncia falsa; e contentem-se com o seu salário”. E Isaías 1. 17 nos
instrui: “Aprendam a fazer o bem; busquem o juízo, reparem o oprimido, lutem pelo órfão,
defendam a causa da viúva”. O leitor diligente observará palavras semelhantes em muitos outros
lugares, pois esses preceitos são frequentemente reiterados.
Sobre o que constitui o culto a Deus, os profetas frequentemente fazem advertências. Eles
criticam a superstição, que considera apenas as cerimônias como o culto a Deus, e que resulta na
negligência das responsabilidades civis. Além disso, os monges consideravam que a vida
econômica e política dificilmente agradava a Deus. Os profetas priorizam as responsabilidades
políticas em relação às cerimônias religiosas e afirmam que recompensas estão ligadas a essas
ações. Em Isaías 1. 17, encontramos a instrução: “As suas festas da lua nova e as suas
solenidades as aborrece a Minha alma; já Me são pesadas; estou cansado de as sofrer”. E Isaías
58. 7 nos lembra: “Não é partilhar o Teu pão com o faminto, e recolher em casa os pobres
desamparados?”. Miqueias 6. 7 questiona: “O Senhor se agradará de milhares de carneiros, ou de
dez mil ribeiros de azeite?”. E continua dizendo: “Ele lhe declarou, ó homem, o que é bom; e que
é o que o Senhor pede de você, senão que pratique a justiça, e ame a misericórdia, e ande
humildemente com o seu Deus?”. Zacarias 7. 6 reforça a importância dessas ações: “Quando
comeram, e quando beberam, não era para vocês mesmos que comiam e bebiam?”. E Deus
declara: “Assim diz o Senhor dos Exércitos: Administrem a verdadeira justiça, mostrem
misericórdia e compaixão cada um a seu irmão”.
A beleza dessas ações é melhor compreendida quando se considera a própria ordem política
e as razões para a existência dela. Deus criou a humanidade para viver em sociedade e desejou
que as amarras dessa sociedade fossem a geração, a educação, o governo, os contratos e as artes.
Nenhum indivíduo gera outro por si só, nem uma única mulher, e uma criança recém-nascida não
pode sobreviver sem a ajuda dos outros. Assim, a natureza humana está intrinsecamente ligada
por laços eternos. Qual é o propósito principal disso? É para que, assim como a sociedade é
necessária para a geração e educação, a comunidade seja fundamental para o ensino. Deus deseja
ser reconhecido e adorado, e, para que as pessoas possam ensinar outras sobre Deus e outras
coisas boas, os seres humanos foram criados para viver em sociedade, cujas amarras são
representadas pelos magistrados, leis e cargos políticos.
Em primeiro lugar, nestas responsabilidades, nossa obediência a Deus deve ser evidente.
Em segundo lugar, nossa confissão deve brilhar na sociedade. Fomos especialmente criados
para a sociedade para que o conhecimento de Deus e de Seu Filho, nosso Senhor, Jesus Cristo,
seja amplamente propagado. Mostre o que você pensa sobre Deus e testemunhe que você se
compromete a professar a verdade e a fazer o que é justo em nome de Deus.
Em terceiro lugar, uma vez que a economia e a política estão repletas de dificuldades e
perigos enormes, quão desumano é ignorar os perigos da geração e da educação, bem como a
imensa carga de responsabilidades nos tribunais e nos campos de batalha! Nestas aflições e
perigos, a fé e a invocação de Deus devem brilhar. Portanto, dada a natureza frágil da
humanidade sobrecarregada por essas dificuldades, devemos usar esses desafios como uma
oportunidade para espalhar amplamente o conhecimento de Deus. Os trabalhos econômicos e
políticos se tornam, portanto, atos de culto a Deus, porque se destinam a prestar obediência a
Deus e porque, nesses mesmos trabalhos, a invocação de Deus deve estar presente. Assim como
Davi, prestes a lutar, e Salomão, ao iniciar seu reinado, invocavam a Deus, como está escrito no
Salmo 20. 8: “Uns confiam em carros e outros em cavalos; nós, porém, faremos menção do
nome do Senhor, nosso Deus”.
Em quarto lugar, nestes trabalhos, o amor ao próximo, a tolerância e a devoção na
preservação da verdade sobre Deus são exercidos. Portanto, muitas virtudes estão envolvidas nos
trabalhos econômicos e políticos, e é por meio dessas virtudes que nossas ações se tornam
sacrifícios ou culto a Deus, ou seja, obras pelas quais Deus julga ser honrado.
O que Davi faz quando ele está em batalha?
Em primeiro lugar, ele reconhece que deve obediência a Deus em sua vocação, ou seja, no
cargo político no qual foi colocado. Em segundo lugar, ele professa ser um cidadão do povo de
Israel e invoca o Deus eterno, que Se revelou a ele e confiou Sua Palavra ao povo de Israel por
meio de testemunhos específicos. Em terceiro lugar, ele exercita sua fé em tempos de perigo e
invoca a Deus. Quarto, ele presta serviço a seus concidadãos com esse trabalho, e até luta por
essas paredes, dentro das quais crianças aprendem a leitura das Escrituras dos Profetas, para que
a doutrina divina seja preservada e propagada. Além disso, muitas outras virtudes são cultivadas,
como justiça, tolerância, mansidão e outras virtudes necessárias a um governante. Quinto, em
relação a essas virtudes mencionadas, algo de grande valor surge nesses trabalhos: o testemunho
da presença de Deus, que fortalece o temor e a fé. Vemos ladrões e tiranos sendo punidos,
experimentamos Deus protegendo o governo, que é o refúgio da Igreja. Isaías e Ezequias
experimentam suas preces sendo ouvidas em favor do governo que eles lideram. E Davi
testemunha a presença de Deus com os governantes, dizendo (Salmo 144. 1): “Bendito seja o
Senhor, minha Rocha, que treina minhas mãos para a batalha” e (Salmo 144. 10): “Ele dá vitória
aos reis”.
Essas são as razões e os objetivos por trás do trabalho na esfera econômica e política, que
devem ser frequentemente considerados pelos piedosos. Devem ser feitas comparações entre a
vida política e a vida monástica, bem como entre o governante piedoso e o ímpio.
A causa fundamental que demanda obediência na esfera política é Deus. Aqui é feita menção
da causa eficiente. A causa final é que a confissão seja evidente na sociedade. A causa final mais
ampla é que o próximo seja servido e que a posse da doutrina divina seja defendida. Os efeitos
são testemunhos da presença de Deus, que aumentam o temor e a fé. Refletir sobre essas causas e
efeitos enriquece a vida política e conforta os piedosos diante da grandeza dos trabalhos, além de
avivar o temor a Deus e a fé em suas mentes.
Agora, comparemos um eremita com o Rei Davi. O eremita, como se estivesse fugindo do
campo de batalha, sai da ordem política e não cumpre a obediência devida a Deus que ele deve à
sociedade comum. Ele foge para a solidão a fim de evitar o trabalho árduo, perigos, resultados
incertos de negócios, injúrias, ingratidões e, finalmente, o fardo de preocupações e dores. Ao
fazer isso, ele também evita o exercício da fé, da invocação a Deus e da confissão. Ele não serve
ao próximo, não ensina, nem contribui para a preservação do conhecimento. Qual seria a
qualidade de vida, como as artes seriam desenvolvidas e como seria a geração, incluindo a
proteção de mães e bebês, se todos optassem por ser eremitas? Portanto, devemos rejeitar o tipo
de vida que negligencia a obediência a Deus devida na ajuda e proteção da sociedade em geral.
Aqui também podemos comparar o soldado piedoso com o soldado mundano. Quando Celso
caluniou o Evangelho por proibir a vingança e alegou que a militância estava proibida, Orígenes
respondeu que a militância cristã era pedir a Deus por ordens. Embora Orígenes tenha
respondido corretamente sobre nossas funções, ele não disse o suficiente. Ambos os aspectos
devem ser abraçados, pois o cristão luta no campo de batalha de acordo com sua vocação e usa a
oração a Deus para auxiliá-lo, assim como Davi se preparou com orações e uma funda antes de
enfrentar Golias. Portanto, o soldado cristão supera o mundano. Além disso, os propósitos são
diferentes. Davi luta para defender o conhecimento divino, enquanto Júlio luta para defender sua
própria dignidade. Assim, o governante Josafá supera Cícero: Cícero traz apenas seu próprio
julgamento, habilidade e diligência para a administração, enquanto Josafá traz orações, sabedoria
e muitas vezes clama a Deus quando diz 2 Crônicas 20. 12: “Não sabemos o que fazer; os nossos
olhos estão voltados para Ti”.
Essas são algumas observações breves sobre a segunda regra, que os leitores piedosos devem
considerar cuidadosamente para entender a dignidade da vida política e para discernir a diferença
entre uma pessoa piedosa envolvida em assuntos políticos e alguém profano.
A terceira regra é que o Evangelho não ordena que nossa política seja governada pelas leis
civis de Moisés, nem estabelece um novo sistema político terreno. Pelo contrário, instrui-nos a
obedecer às autoridades civis e às leis existentes, desde que essas leis não entrem em conflito
com a lei natural. O Evangelho nos encoraja a apoiar e enriquecer as estruturas políticas
existentes. O apóstolo Paulo expressou isso claramente quando disse em Romanos 13. 1: “Toda
alma esteja sujeita às potestades superiores”. Incluí essa regra porque lembro-me de muitos,
como os monasterienses, Struthius e outros, que argumentaram que os cristãos deveriam resolver
disputas legais com base nas leis de Moisés e que a lei romana que usamos atualmente nos
tribunais deveria ser abolida. Isso não era nada além de tentar restaurar o sistema político
mosaico, que Deus claramente demonstrou não ser necessário, ao excluí-lo completamente como
um exemplo terrível.
Já foi dito muitas vezes que o Evangelho prega a justiça espiritual e eterna, como Paulo
disse: “O Evangelho é o ministério do espírito” e não estabelece um sistema político terreno
específico. Em vez disso, ele nos permite usar as diversas estruturas políticas das nações, de
acordo com os tempos, desde que essas leis não entrem em conflito com a lei natural, mas em
vez disso, aprovem o que é honesto e punam o que é desonesto. Pois um juiz cristão deve seguir
essa regra, como Paulo também a citou em Romanos 13. 2-4: “As autoridades são encarregadas
de premiar o que é bom e punir o que é mau, e o que é bom e o que é mau em questões morais é
determinado pela lei da natureza”.
Em seguida, não importa para a Igreja questões relacionadas às leis positivas, seja a
diferença entre as leis francesas em termos de punições, divisão de heranças em comparação com
as leis germânicas. Um cristão pode seguir as leis políticas de sua nação, seja na Armênia, na
França ou na cidade de Veneza, ele segue as leis locais. Lembro-me de pessoas que não queriam
que nenhum ladrão fosse punido com a pena de morte porque a lei de Moisés punia o ladrão com
restituição de quatro vezes o valor roubado. Embora em culturas onde os ladrões agissem com
violência, como bandidos, as leis antigas também punissem com a pena de morte. E, por esse
motivo, alguns argumentavam a favor do uso dessas leis antigas, pois em muitas culturas
bárbaras, os ladrões frequentemente agiam como bandidos, armados com armas e intenções de
causar danos, como verdadeiros criminosos. Entretanto, um juiz cristão deve considerar que o
principal é que a lei cumpra a regra de punir ações más. Além disso, ele deve lembrar que a
severidade da pena deve ser adaptada às circunstâncias locais, de acordo com a legislação local, e
que em algumas culturas, onde a disciplina é mais frouxa, pode ser necessária uma punição mais
rigorosa para os ladrões do que em outras culturas onde existem outras formas de controle
disciplinar. Isso não significa que Deus desaprova a severidade, porque nossos pecados, sem
dúvida, merecem a morte pelas leis divinas. A Lei de Moisés também exigia que um filho
rebelde fosse levado aos juízes e apedrejado até a morte. Embora agora consideremos essa lei
excessivamente rígida, ela demonstra que Deus valoriza a disciplina rigorosa. Não entrarei em
uma discussão mais longa sobre isso, pois mencionei isso apenas para lembrar os leitores mais
leigos de que não devemos permitir que os clamores daqueles que argumentam pela introdução
das leis mosaicas e a abolição das leis romanas no tribunal nos perturbem.
E quanto ao costume de jovens e suas inquietações[151], de criticar as antigas instituições
como medíocres, promulgar novas leis, prescrever uma ordem mais eficiente nos tribunais,
regular os tribunais como magistrados através de editais, estabelecer os preços dos bens
negociáveis, como eu me lembro, Mustela ensinou nas aulas sobre a ordem dos julgamentos.
Não estou agora querendo criticar o zelo dos sábios governantes, mas sim a inquietação juvenil,
que é útil frear, especialmente para aqueles que servem no ministério do Evangelho. Eles devem
promover o ensino sobre a verdadeira invocação de Deus e outros deveres de piedade. Deixem a
gestão de tribunais e julgamentos para outros especialistas e lembrem-se dos preceitos usuais de
que cada um deve se contentar com o seu domínio. Como Cleon diz em Aristófanes, “um pé na
corte e o outro no acampamento”, essas pessoas agitadas têm um pé na corte e o outro na igreja,
e às vezes confundem a cidade da mesma forma que um macaco em uma fábula de Hermogenes,
que, tendo visto cidades, casas, encontros humanos, teatros, espetáculos, jogos, após ser
capturado por humanos, volta para os macacos e conta o que viu, os encorajando a construir
casas para se abrigarem de tempestades e a erguer muralhas para se proteger dos leões, lobos e
outros humanos. A ideia parecia boa, não só pela utilidade, mas também pela possibilidade de
reproduzir os teatros e os espetáculos. Assim, o plano foi aprovado, e as macacas mais jovens
foram enviadas para cortar madeira ou carregar pedras. No entanto, elas perceberam sua própria
estupidez, pois estavam sem machados e não tinham ideia de como cortar madeira ou construir
com pedras, em resumo, faltava-lhes completamente a habilidade arquitetônica. Portanto, as
circunstâncias as forçaram a abandonar o projeto tolo que haviam iniciado. Muitos arquitetos de
cidades se encaixam nessa descrição, incluindo Struthius, Mustela e outros. Portanto, eles devem
lembrar o preceito mais sensato apresentado nesta terceira regra e não se aventurar em reformas
políticas a menos que elas envolvam óbvios atos de depravação.
A quarta regra estabelece que a doutrina do Evangelho ordena a obediência de maneira tão
rígida que afirma que desobedecer aos mandamentos de uma autoridade legítima é um pecado
mortal, desde que esses mandamentos não se oponham aos mandamentos de Deus.
Essa regra é explicitamente apresentada em Romanos 13. 5, que diz: “Portanto, é necessário
que sejamos submissos, não apenas por causa da ira, mas também por causa da consciência”.
Primeiro, ensina a necessidade da obediência e, em seguida, esclarece essa necessidade. Não
apenas por causa da ira, significa que a punição corporal imposta pelas autoridades aos
desobedientes não é a única razão para obedecer, mas também por causa da consciência, é
necessário obedecer. Portanto, isso atesta que a desobediência ofende a Deus e torna a
consciência culpada, porque Deus exige essa obediência.
Refletindo sobre isso, perceba a gravidade de ter uma consciência culpada perante Deus, que
resulta no abandono por parte de Deus, a falta de orientação e proteção divina, e torna a pessoa
sujeita a punições nesta vida e, a menos que se arrependa, à ira eterna após a morte. Pois Deus
segue essa regra para punir a obstinação, mesmo nesta vida, com exemplos terríveis, como se
pode ver nas histórias de Absalão, Simei, Joabe e muitos outros.
O leitor atento pode comparar a filosofia política com essa pregação de Paulo. Até que ponto
as filosofias políticas se fortalecem com base na pregação de Paulo? Essa é a mais sólida defesa
das autoridades. Pois as almas dos justos e dos medianos não são convencidas pelo medo ou pela
autoridade das autoridades, mas sim por essa doutrina celestial, que os leva a obedecer
respeitosamente às leis, autoridades e governantes.
As próprias leis dos governantes demandam principalmente obediência externa, tanto em
tempos de paz quanto de guerra, requisitando que as pessoas cumpram tarefas corporais, paguem
impostos e cumpram deveres externos em toda a vida civil. No entanto, a doutrina celestial exige
mais do que isso; ela ordena que os magistrados sejam honrados. Este é o mais alto grau de
obediência, que não se limita apenas a prestar serviços externos, mas envolve também uma
opinião honrosa na mente e benevolência. De fato, esses são os principais significados da palavra
“honra”. A opinião honrosa inclui a noção de que a ordem política, as autoridades e os
magistrados são instituições divinamente estabelecidas e aprovadas por Deus, e que são
sustentadas pela intervenção divina. Além disso, significa que Deus deseja que a humanidade
seja governada por essa forma de vida civil, limitando sua liberdade e proporcionando exemplos
claros de Seu julgamento sobre os crimes humanos, como as punições para homicídios, incestos,
tiranos e perjúrios, que demonstram claramente que Deus se indigna com tais pecados. Portanto,
uma opinião honrosa pressupõe que a ordem política, autoridades, magistrados, leis, tribunais e
punições são as obras de Deus, nas quais se manifesta a sabedoria, justiça e bondade divina em
relação à humanidade. A outra parte da honra deriva do fato de que essas instituições são divinas.
Portanto, devemos nos submeter de boa vontade e de forma verdadeira às autoridades por amor a
Deus e amar essas instituições e os próprios magistrados, que são os guardiões da ordem política.
Este é o significado do mandamento que ordena honrar os magistrados.
No entanto, como mencionei anteriormente, é importante fazer uma distinção entre coisas e
pessoas. O apóstolo Paulo reconhecia e sabia com certeza que o Império Romano havia sido
estabelecido pelo desígnio singular de Deus e com o apoio divino. Ele amava e reverenciava a
ordem e as leis romanas, mas odiava e abominava Nero como uma terrível praga e um
instrumento do Diabo. Ele orava a Deus para que Nero fosse removido, e isso acabou
acontecendo. Embora Paulo tenha sido martirizado por Nero anteriormente, permitindo que ele,
um apóstolo querido de Deus e dotado de dons abundantes, fosse morto por um governante tão
terrível, naquele mesmo ano Nero cometeu suicídio.
Este é o cerne da honra: invocar a Deus em oração por causa da nação e pelas autoridades.
Isso certamente é feito com fervor por aqueles que realmente acreditam que a ordem política é
uma obra e um dom de Deus, e que bons magistrados são estabelecidos e auxiliados por Deus,
como é o caso. As civilizações e as artes não sobreviveriam sem que, de tempos em tempos,
Deus levantasse reformadores, como Josias, que restaurou o reino após a decadência durante o
governo de Manassés. Aqueles que reconhecem essas bênçãos de Deus, oram fervorosamente
pelas autoridades, como Paulo instrui em 1 Timóteo 2. 2: “Rogo, pois, antes de tudo, que se
façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por
todos os que exercem autoridade”. O propósito disso é garantir uma vida tranquila, não para nos
entregarmos ao ócio e ao prazer, mas para que haja ordem moral, para que o Evangelho seja
ensinado e propagado, para que a Igreja cresça e o nome de Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo
seja celebrado. Jeremias também instruiu as pessoas a orar pela paz e bem-estar da Babilônia, a
nação onde os israelitas haviam sido exilados, pois, ao buscar a paz da cidade onde estavam no
exílio, eles encontrariam paz para si mesmos.
Acrescento a esta discussão a regra transmitida pela voz dos Apóstolos em Atos 5. 29: “Mais
importa obedecer a Deus do que aos homens”. Portanto, quando os seres humanos, seja o rei, o
príncipe ou o sumo sacerdote, ordenam que façamos algo em desacordo com os mandamentos de
Deus, não devemos obedecer a eles, mas devemos dar prioridade aos mandamentos de Deus,
como ensinado na história de Daniel, capítulo 3.
Agora, mencionei as principais coisas que a igreja precisa saber sobre as razões e a
dignidade da ordem política e das autoridades. Muitas coisas poderiam ser ditas sobre os deveres
dos governantes, mas não é nossa intenção abranger toda a doutrina política. Existem livros de
filósofos e juristas que tratam dos deveres dos governantes. No entanto, em resumo, fornecerei
uma regra geral. Aristóteles apresentou uma definição instrutiva de governantes em poucas
palavras que, quando analisadas, contêm uma ampla doutrina: “O governante é o guardião da
lei”[152]. Quando você pergunta quais são os deveres dos governantes, considere esta definição. E
imagine um governante com duas tábuas da lei de Moisés penduradas do pescoço. Deve ser o
guardião dessas leis para regular a disciplina pública. Pois essas leis são os princípios
fundamentais a partir dos quais todas as leis corretas (uma vez que é necessário haver várias leis
para governar a vida pública e os tribunais) são derivadas, como de fontes.
Portanto, como o governante é o guardião das leis, ele mesmo deve obedecer a elas, obrigar
os outros a obedecer e defender a autoridade delas vigorosamente. É por isso que ele é investido
com a espada por Deus. Para entender a distinção entre o governante na Igreja e o governante
político e ao mesmo tempo perceber seus deveres, apresento a seguinte definição de um
governante político: “O governante político é o ministro de Deus que guarda a disciplina externa
adequada ao seu governo, mantém a paz e coage e pune os desobedientes com punições
corporais legítimas”.
Aqui estão as diferenças entre o mestre do Evangelho e o governante político. O mestre do
Evangelho apresenta a palavra de Deus e administra os sacramentos pelos quais Deus chama
aqueles que ouvem para a vida eterna, e é eficaz na ação deles. Além disso, ele apenas coage e
pune com a palavra de Deus, ou seja, com a voz do Evangelho e com a excomunhão, sem o uso
de força física. Por outro lado, o governante político é o guardião da disciplina externa e da paz,
e com uma espada ele coage e pune os desobedientes com punições corporais legítimas.
Quando digo que o governante é o guardião da disciplina, entenda que ambas as tábuas dos
Dez Mandamentos devem ser mantidas por ele. Isso significa que ele não é apenas um guardião
da paz, como um pastor, nem apenas do sustento, mas deve, antes de tudo, servir à glória de
Deus no que diz respeito aos comportamentos externos. Como todas as nações estabeleceram
punições contra juramentos falsos, muitas delas também estabeleceram punições contra aqueles
que professam o ateísmo ou o ceticismo, como os epicuristas ou os ateus que afirmam
publicamente que não há Deus ou que Deus não se importa. No entanto, nós seguimos a lei de
Deus, que diz: “Fujam dos ídolos” (Levítico 19. 4). Da mesma forma, “Aquele que blasfemar o
nome do Senhor deverá ser morto” (Levítico 24. 10). E “Derrubem os altares dos ídolos”
(Deuteronômio 12. 3). Além disso, “Não deve haver entre vocês quem pratique adivinhação, ou
se dedique à magia, ou faça presságios, ou pratique feitiçaria” (Deuteronômio 18. 10).
Esses preceitos fazem parte da lei natural e estão relacionados ao segundo mandamento:
“Não tomará o nome do Senhor seu Deus em vão”. Pois o Senhor não deixará impune aquele que
profanar o Seu nome. Essa regra se aplica a todos os seres humanos e, na verdade, a todas as
criaturas inteligentes. Cada um deve proibir manifestas blasfêmias contra Deus em seu próprio
lugar. Portanto, as autoridades têm o dever de proibir e punir discursos epicuristas, adoração de
ídolos, juramentos falsos, alianças com demônios e a propagação de dogmas ímpios. O Salmo 2.
10 em diante diz: “E agora, ó reis, sejam prudentes; deixem-se advertir, juízes da terra. Sirvam
ao Senhor...”. E Provérbios 25. 5: “Tire de sua presença o ímpio, e o trono se firmará na justiça”.
E 1 Samuel 2. 30: “Aqueles que me honram, honrarei, mas os que me desprezam serão
desprezados”.
Logo, não apenas os reis piedosos de Judá, mas também reis de outras nações, depois de
aprenderem a verdadeira doutrina sobre Deus, proibiram blasfêmias contra o verdadeiro Deus,
como Nabucodonosor e Dario, o Medo. Da mesma forma, Constantino e Teodósio agiram
corretamente ao destruir ídolos. Embora o magistrado não julgue nem altere crenças secretas na
mente, ele deve proibir delitos externos em prol da glória de Deus e para evitar que a
licenciosidade e exemplos corrompam mais pessoas.
Portanto, reis, príncipes e magistrados devem continuar a supervisionar as igrejas neste
tempo e garantir que sejam ensinadas corretamente. Isso é fundamental para direcionar as mentes
das pessoas para a verdadeira invocação a Deus e outros deveres de piedade. Eles devem proibir
a adoração de ídolos e a propagação de falsas crenças que estejam em conflito com o Evangelho,
não importando de que grupo de pessoas essas práticas se originem. Devemos obedecer à voz do
Pai Eterno, que nos ordena a ouvir nosso Senhor Jesus Cristo: “Este é o Meu Filho, o escolhido;
a Ele ouçam!” (Lucas 9. 35). Portanto, abracemos e iluminemos o Evangelho de nosso Senhor
Jesus Cristo, rejeitando a fúria dos pagãos, dos judeus, dos muçulmanos e dos hereges.
Que os líderes da Igreja eliminem a doutrina pagã do Papa, os rituais pagãos de invocação
dos mortos e as terríveis profanações da Ceia do Senhor. Isso é o que os mandamentos eternos e
imutáveis de Deus ordenam: “Não tomará o nome do Senhor, seu Deus, em vão” e “A Ele
ouçam”. Deus confiou aos magistrados a responsabilidade de proteger os assuntos divinos, ou
seja, o conhecimento e a invocação verdadeira de Deus, bem como a justiça e a paz. Como
podem ser chamados de representantes de Deus se nem mesmo reconhecem o Senhor e não
fazem com que Ele seja reconhecido por outros?
Em outra discussão mais detalhada, mostrei que a reforma das igrejas está relacionada ao
dever dos magistrados, especialmente quando os bispos estão ausentes ou se opõem ao
Evangelho. Alguns argumentam que o magistrado secular não deve julgar disputas sobre
doutrinas religiosas. No entanto, a verdadeira e clara resposta a isso é que a Igreja deve ser a
juíza e seguir a norma do Evangelho no julgamento. E, uma vez que o magistrado piedoso seja
realmente um membro da Igreja, ele também deve julgar junto com outros piedosos e eruditos de
acordo com a norma que mencionei. Todos os membros da Igreja foram instruídos a “cuidar dos
falsos profetas” e que “se alguém os anunciar outro evangelho além do que já receberam, seja
anátema” (Gálatas 1. 9). Portanto, assim como outros piedosos, os magistrados devem considerar
as doutrinas e, se alguém estiver espalhando ou defendendo opiniões falsas e ímpias, devem
considerá-lo amaldiçoado ou contê-lo. Os líderes estão muito enganados se acham que esse
cuidado não lhes diz respeito.
Quanto aos outros deveres dos magistrados, como governar a moral civil, defender a paz,
exercer funções judiciais ou administrativas, demonstrar rigor e justiça, exercer a misericórdia,
lidar com assuntos econômicos e financeiros, esses assuntos devem ser tratados por outros
especialistas, ou seja, pelos juristas. O Evangelho mostra as causas e a dignidade da ordem
política e, em termos gerais, ensina que os magistrados devem obedecer aos mandamentos de
Deus, porque Deus também dá comandos aos reis, príncipes e ao povo. Igualmente, Deus julgará
reis, príncipes e o povo, como está escrito (Marcos 16. 15): “Vão e preguem o evangelho a toda
criatura”. E em Zacarias 10. 3, diz: “Sobre os pastores se acendeu a Minha ira”. E em Miqueias
3. 9 e 12: “Ouçam, vocês, chefes da casa de Jacó, não é para vocês que está o reto proceder?”.
Ezequiel 33. 34-7-9 também diz: “Por isso, ó pastores, ouçam a palavra do Senhor...”.
Adicionarei apenas um aviso. Não é permitido aos reis, príncipes e magistrados agir contra o
direito divino e o direito natural. Este preceito faz parte do direito divino e natural, conforme
expresso no mandamento “Não furtarás” (Êxodo 20. 15). Essa proibição distingue as
propriedades e bens de cada indivíduo, cercando-os como um muro. O povo também possui bens
próprios por direito divino e humano. E a lei “Não furtarás” limita os governantes, impedindo
que tomem das propriedades de seus súditos quanto desejarem ou acreditem que nada pertence
aos cidadãos.
Deus, em Sua Lei, estabeleceu distinções nas propriedades dos israelitas e sancionou a
liberdade. Portanto, não era permitido a Acabe coagir Nabote a vender sua vinha ou expulsá-lo
de sua propriedade. A lei “Não furtarás” os protegia contra a apropriação indevida. Deus
identifica esta injustiça especificamente e a puniu com um exemplo memorável para que os
governantes entendam que devem respeitar os bens de seus cidadãos.
Deve ficar claro que os cidadãos têm obrigações tributárias normais, como ensina Paulo em
Romanos 13. 6, que João Batista chama de “stipendia”. Quando a defesa do Estado ou uma causa
justa exigir contribuições adicionais, é justo que os cidadãos ajudem suas igrejas e sua pátria. O
trecho na história de Samuel (1 Samuel 8. 11-18) discute a questão dos salários. Ele não concede
uma licença ilimitada aos governantes para retirar dos bens dos cidadãos o quanto desejarem,
pois alguns bens são considerados propriedades divinas e humanas.
Restam também as questões sobre contratos, das quais os piedosos devem estar cientes.
Contratos são uma parte da ordem política e coisas ordenadas por Deus. Na verdade, nos
contratos, está impressa uma imagem magnífica do julgamento e da vontade de Deus. Através
deles, Deus nos ensina que a justiça é igualdade, para que, ao considerar a vontade de Deus,
saibamos que ela é justa, isto é, igual para aqueles que são iguais. Os tiranos não tratam seus
súditos como iguais, mas favorecem alguns com interesses particulares, enquanto negligenciam
outros, ou seja, aqueles que são seus pares ou até superiores. Essa desigualdade é chamada de
acepção de pessoas (προσωπολήψια), que não está em Deus, pois saiba que Deus é igual tanto a
você quanto ao ladrão na cruz, a Moisés e a Elias. Ele estabeleceu uma regra segundo a qual
mantém a igualdade, irando-se com o pecado de todos, e novamente acolhendo a todos que
buscam refúgio no Mediador, Jesus Cristo.
Podemos ver o exemplo da justiça e igualdade de Deus na expiação da Sua ira. Os pecados
não seriam perdoados a menos que houvesse um resgate (λυτρον) igual por nós, ou seja, o Filho
de Deus. Os contratos cotidianos, como compras, vendas, trocas, aluguéis e acordos de
compensação por ofensas, nos lembram dessa igualdade.
Por fim, essa igualdade requerida nos contratos nos ensina a interpretação do mandamento
“Ame o próximo como a si mesmo” (Mateus 19. 19). Isso significa que deve haver igualdade
entre você e o próximo; você não deve buscar seu próprio benefício à custa do prejuízo do outro,
não deve oprimir o próximo para aumentar sua própria estima, não deve tirar dos recursos do
próximo para enriquecer a si mesmo. Em suma, não deve buscar vantagem injusta
(πλεσνεκτηματα), mas sim amar a igualdade, dando ao próximo o que você acredita que deve
receber.
Já falei anteriormente sobre contratos e agora estou apresentando essa regra. Ela pode ser
entendida a partir das fontes da doutrina jurídica, que recomendam a aprovação dos contratos,
mantendo a igualdade que um sábio e justo jurista considera necessária.
Aqui, embora nossas exortações tenham pouca autoridade, acrescentarei que é
particularmente incumbência dos governantes cuidar da educação e das instituições de ensino,
nas quais as letras e as artes necessárias para a igreja são transmitidas e auxiliadas. Por isso, em
Isaías 49. 23, é dito que “reis serão seus protetores e rainhas suas amas”, isto é, reis e príncipes,
bem como as repúblicas ou cidades, devem oferecer abrigo e sustento às igrejas e nutrir mestres
e alunos nas doutrinas de Deus e nas artes que são necessárias para a igreja.
Para este dever, grandes recompensas são prometidas. Mateus 10. 42 diz: “E quem der de
beber, ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este Meu discípulo,
em verdade lhes digo que de modo algum perderá a sua recompensa”.
Que esses preceitos e promessas possam mover e incentivar os governantes a apoiar o estudo
das letras. Que nosso Senhor Jesus Cristo, que com certeza em algum lugar preservará algumas
escolas e relíquias literárias, ajude aqueles que estão envolvidos na promoção do estudo e na
educação. Portanto, devemos nutrir a esperança de que a igreja permanecerá, mesmo que no
último estágio da existência terrena haja mais confusão, mas é certo que haverá escolas,
comunidades e instituições literárias. Com essa esperança, continuemos nosso estudo das letras e
roguemos ao Deus eterno, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, para que Ele guie e apoie nossos
esforços de ensino e aprendizado, nos torne instrumentos de misericórdia benéfica para a igreja
de Deus e para nós.
21. Os Preceitos Humanos na Igreja
A parte superior deste trabalho primeiro apresenta os dogmas próprios da Igreja sobre Deus
e questões eternas, sobre a lei de Deus, sobre o pecado, o Evangelho, a graça, a justiça e os
sacramentos. Em seguida, aborda também a doutrina sobre a vida civil. Agora, falaremos sobre o
grau das obras, que está muito abaixo da doutrina e das obras mencionadas anteriormente, ou
seja, sobre as cerimônias instituídas na Igreja por autoridade humana, das quais existem grandes
distinções. Algumas delas são úteis para manter uma boa ordem. Assim como nas escolas, as
horas e os assuntos das lições são distribuídos e as classes dos alunos são organizadas, ou como
um chefe de família prescreve uma ordem para as crianças, onde eles começam o dia com
orações, depois tomam o café da manhã, aprendem a ler e depois fazem algumas tarefas
domésticas, da mesma forma, em reuniões públicas da Igreja, a natureza humana requer algum
tipo de ordem.

Mas, além dessas cerimônias úteis, que


foram instituídas para a boa ordem (ευταξια) da
igreja, as pessoas ao longo do tempo
acrescentaram muitas outras, algumas por
superstição, outras por avareza, e algumas por
orientação tirânica. Algumas delas entram
claramente em conflito com os mandamentos
divinos.
No entanto, devido à fraqueza humana,
as pessoas muitas vezes admiram tanto esses
rituais que acreditam que eles são a maneira
principal de apaziguar a ira de Deus. Quando
esta admiração leva à perda da luz do
Evangelho, que trata do Mediador Cristo e da fé,
e resulta em grande escuridão e discórdia na
igreja de Deus, é necessário que o Evangelho
julgue e esclareça essas leis e práticas.
Primeiramente, devo alertar o leitor
que, neste contexto, não estou falando sobre as
leis dos magistrados civis ou sobre seus deveres
civis, que estão relacionados à governança dos
magistrados civis e são estabelecidos para a
defesa comum da paz e da ordem pública. Estou
discutindo a autoridade dessas leis que foram
estabelecidas por seres humanos na igreja e são
consideradas como exercícios peculiares de
devoção ou culto a Deus, tal como o celibato,
formas específicas de jejum, batismos, etc.
Mesmo que os homens políticos, que
não amam o Evangelho, lamentem
dramaticamente a queda na autoridade das leis,
porque algumas estão sendo relaxadas, e
argumentem que isso é um exemplo prejudicial,
ainda assim a glória de Cristo e a salvação
daqueles que precisam ser educados devem ser
priorizados em relação a essas reclamações. Isso
é necessário para que a luz do Evangelho seja
retida e a distinção seja feita entre adorações
necessárias a Deus e superstições
arbitrariamente inventadas.
Nem deve a causa da liberdade nos
afastar desta explicação, porque muitos abusam
da doutrina da liberdade. No entanto, ambas as
questões devem ser vigorosamente combatidas
no ensino; a doutrina necessária, dada
divinamente, deve ser apresentada de maneira
pura e fiel, e os abusos, quaisquer que sejam,
devem ser rigorosamente condenados e aqueles
que, sob o pretexto dessa liberdade adquirida
pelo sangue de Cristo, permitem que desejos
corruptos prosperem e encorajam
comportamentos que afastam as pessoas
moderadas do Evangelho devem ser
disciplinados.
Portanto, apresentarei três regras.
Primeira Regra. Assim como Eva pecou obedecendo ao Diabo, que a instigou a
desobedecer ao mandamento de Deus, assim pecam todos aqueles que obedecem a leis ou
decretos que ordenam agir contra os mandamentos de Deus, seja essas leis promulgadas por
bispos, reis, outros magistrados ou até mesmo pelos demônios. Pois é verdade o que os
Apóstolos dizem em Atos 5. 29: “É necessário obedecer a Deus antes que aos homens”. Portanto,
quando o rei da Babilônia ordenou que uma estátua de ouro fosse adorada, era necessário não
obedecer e demonstrar grande fé e constância na adoração verdadeira a Deus, como fizeram os
três israelitas, conforme narrado em Daniel. Os Apóstolos, da mesma forma, ensinam o
Evangelho em desobediência ao mandamento do sumo sacerdote, testemunhando publicamente
que o mandamento de Deus deve ser priorizado.

Aqui, os piedosos devem considerar as


leis dos pontífices e os editais dos reis que
ordenam agir contra os mandamentos de Deus.
Em todos os lugares, são apresentados editais
ímpios para que o povo não ouça, leia e aprenda
a pura doutrina do Evangelho. Os sacerdotes são
forçados, como de costume, a multiplicar a
profanação da Ceia do Senhor na Missa. A
invocação dos mortos é retida obstinadamente, o
casamento é proibido para os sacerdotes,
embora nem todos sejam adequados ao celibato,
e Deus ordena o casamento para todos que não
vivem uma vida celibatária sem mancha. Como
está em 1 Coríntios 7. 2: “Mas, por causa da
impureza, tenha cada homem sua própria
esposa: que cada mulher tenha o seu próprio
marido”, e depois “É melhor casar do que se
abrasar”.
Agora, pense na imensa quantidade de
pessoas oprimidas por essas leis injustas, que
não podem invocar a Deus devido ao peso em
suas consciências e são afastadas de Deus,
enfrentando a perdição eterna. Pontífices e reis
pecam terrivelmente ao estabelecerem leis que
impedem a verdadeira invocação a Deus, ou
seja, quando ordenam a prática de algo que não
pode ser feito sem manchar a consciência.
Assim como Eva pecou ao obedecer à
voz do Diabo, da mesma forma, os outros
pecam ao preferir leis ímpias ao mandamento de
Deus e permitem que a verdadeira invocação a
Deus seja tirada deles.
Ninguém pode lamentar o suficiente a magnitude dos pecados que essa escravidão terrível
impõe; de fato, não há sabedoria humana que possa entender adequadamente a gravidade desses
males. Uma grande parte do povo chamado de Igreja jaz oprimida por leis tirânicas que
estabelecem a adoração de ídolos, erros, desejos infames e impedem a verdadeira invocação a
Deus. E essas leis são defendidas com grande crueldade nas punições. Muitas pessoas honestas e
piedosas são mortas quando violam alguma lei ímpia. Muitos sacerdotes piedosos foram
cruelmente mortos por causa do casamento, embora nenhuma barbárie tenha jamais tirado vidas
por uma razão semelhante.
Embora os políticos insistam que nenhuma mudança nas leis deve ser concedida, para evitar
a extrema anarquia que pode ocorrer, e depois as doutrinas necessárias e leis divinas serão
abaladas, devemos dar prioridade à eterna e imutável lei (Deuteronômio 6. 5): “Amará ao Senhor
seu Deus de todo o coração” e (Levítico 19. 4): “Fujam dos ídolos”. Portanto, é necessário
criticar essas leis ímpias e obedecer ao mandamento de Deus ao ensinar.
Não estou me referindo à servidão do corpo ou às adversidades que surgem na vida
cotidiana, como negligências, dificuldades na governança civil, disputas legais, injúrias e
horrores da guerra. Estou lamentando a escravidão das consciências, que impede que as pessoas
busquem verdadeiramente a invocação de Deus e as leva ao desdém de Deus ou à desesperança
eterna. Ai daqueles que promulgam leis injustas, como diz o profeta Isaías: “Ai daqueles que
fazem decretos iníquos” (Isaías 10. 1). E ai daqueles que, hoje em dia, defendem essas leis com
punições e argumentos sofísticos. Um indivíduo chamado Pígio ousa proferir uma afirmação
vergonhosa que consta em seus escritos: “É menos pecaminoso para um sacerdote se envolver na
prostituição do que se casar com uma mulher”. Alguns tolos aplaudem essas palavras. No
entanto, tais leis supersticiosas, que revelam impiedade, jamais devem ser preferidas à verdadeira
invocação de Deus e à salvação das almas. Mesmo que alguns tentem disfarçar esses enganos
com argumentos, existem verdades tão evidentes que nenhuma sofisma ou adulação pode
obscurecê-las. A miséria decorrente da obrigação de celibato é manifesta. É impossível pensar
nisso sem sentir tristeza e lágrimas, considerando o obscurecimento da doutrina da penitência, da
fé, da verdadeira invocação, da profanação da Ceia do Senhor e da invocação dos mortos.
Em relação a esta primeira regra, não tenho a intenção de iniciar uma discussão, pois o
assunto é claro. No entanto, sinto a necessidade de expressar uma queixa que, embora breve e
tênue, não reflete a magnitude dos males que afligiram a Igreja ao longo dos séculos devido a
leis injustas e tirânicas. Essas leis continuam a surgir e se multiplicar, até que nosso Senhor Jesus
Cristo, o Filho de Deus, liberte Sua Igreja, ressuscitando os mortos. Suplico a Ele que alivie as
aflições da Igreja, preserve alguma relíquia e purifique os filhos de Levi, ou seja, que levante
mestres em todos os lugares que ensinem com fidelidade, e que não permita que a luz do Seu
Evangelho seja extinta.
Segunda regra: Existem certas práticas conhecidas como adiáforas, ou seja, indiferentes, que
não são prescritas nem proibidas pela lei de Deus, como o consumo de carne ou a escolha de
roupas comuns ou vestes monásticas. Embora seja permitido realizar essas ações indiferentes
sem cair na superstição, é necessário se opor às leis que regulam tais assuntos indiferentes por
meio do ensino, uma vez que muitos erros prejudiciais estão associados a essas tradições. Aqui
estão resumidamente enumerados sete desses erros.
- O primeiro erro: Muitas pessoas ensinaram e ainda ensinam que o jejum e práticas
semelhantes podem levar ao perdão dos pecados, tanto da culpa como da punição. Esse erro
farisaico tende a prender facilmente as mentes das pessoas e obscurecer a doutrina sobre os
benefícios de Cristo e a fé. Quando as pessoas acreditam que podem conquistar o perdão dos
pecados por meio de seus rituais, elas transferem a honra que pertence a Cristo para esses rituais.
Isso pode temporariamente gerar vã confiança ou nutrir dúvidas que, no final, são prejudiciais. É
por causa desse erro que Paulo se opõe firmemente à circuncisão e a outras cerimônias da lei
mosaica, para que a luz da doutrina não seja apagada na Igreja. Ele enfatiza que é somente por
meio de Cristo, o Mediador, que obtemos o perdão dos pecados e somos considerados justos e
herdeiros da vida eterna, não devido à circuncisão e outras cerimônias de Moisés ou similares.
Sem dúvida, esse erro farisaico merece forte condenação.
- O segundo erro, embora menos aparente, é igualmente prejudicial. Alguns argumentam
que, embora essas cerimônias não mereçam o perdão dos pecados, ainda são consideradas boas
obras e atos de culto a Deus. Portanto, eles defendem essas tradições, comparando-as à
abstinência dos nazireus sob a Lei de Moisés, que, embora não resultasse no perdão dos pecados,
era agradável a Deus e constituía um culto aceitável a Ele, trazendo recompensas.
Alguns recentemente aprenderam a pintar essas tradições com verniz novo, mas não estão se
afastando dessas adiáforas (coisas indiferentes), mas estão tentando estabelecer outros abusos
horríveis. Os piedosos devem se precaver contra as artimanhas dessa doutrina. Esse grande erro
reside nessa tinta. O exemplo de Moisés não é citado corretamente. Há uma grande diferença
entre as obras instituídas e ordenadas por Deus e aquelas que as pessoas inventam, não ordenadas
nem instituídas por Deus. Os rituais na lei eram obras ordenadas por Deus, embora não
merecessem o perdão dos pecados. Mas as “vontades religiosas”( ἐ θελοθρησκείαι), inventadas
por homens sem mandamento de Deus, não foram nem são culto a Deus, assim como as
cerimônias pagãs e celebrações não foram culto a Deus, embora muitas delas fossem elegantes.
Cristo clama (Mateus 15. 9): “Em vão Me adoram ensinando doutrinas que são preceitos de
homens”. E em muitas outras ocasiões, profetas e apóstolos rejeitam rituais não instituídos pela
palavra de Deus. No entanto, em 1 Timóteo 4. 1, eles são chamados de “doutrinas de demônios”.
A gravidade desse dito deve realmente mover mentes piedosas a considerar com prudência como
coisas indiferentes podem ser aceitas. Mesmo que, por questão de ordem, certos rituais honestos
precisem ser mantidos, como a ordem das lições nas escolas, é muito diferente dar a esses rituais
a honra de serem considerados culto a Deus, ou seja, obras que Deus aprova, a ponto de julgar a
Si mesmo honrado por meio deles. E, no entanto, com a adoção desse erro, eles vão além,
acreditando que esses rituais podem merecer o perdão dos pecados. Deus rejeita e detesta essa
audácia dos seres humanos que inventam cultos por seu próprio conselho. Assim como os
israelitas apresentavam a figura de um bezerro e estabeleciam rituais por seu próprio conselho,
assim também fizeram os pagãos. Por que a conduta deles é repreendida se é permitido a
qualquer um inventar o culto a Deus de acordo com sua própria vontade? No entanto, esse
pecado oculto não é compreendido pelos seres humanos, a menos que a doutrina do Evangelho
seja bem compreendida. Eles amam suas próprias invenções e as adornam com muitas desculpas,
não apenas como disciplina, mas até como sacramentos pelos quais afirmam que Deus age
eficazmente, elogiando o entusiasmo, como fizeram os corimbantes, maniqueístas e agora os
anabatistas.
Tais furores são frequentemente acompanhados pela admiração de tradições humanas, o que
de alguma forma explica por que o Espírito Santo as chama de “doutrinas de demônios”. Isso
ocorre porque as pessoas fascinadas por esses rituais abandonam o verdadeiro conhecimento de
Cristo, a fé e a tolerância. Eles inventam novos dogmas e se entregam à insanidade, sem fim.
Isso aconteceu com os marcionitas e maniqueístas do passado e, de fato, nossa era testemunhou
claramente o mesmo acontecendo com os anabatistas e fanáticos, que vaguearam em um frenesi
semelhante ao de Pelágio.
Portanto, é de suma importância estabelecer com precisão o que constitui o culto a Deus. O
culto a Deus é uma ação que é ordenada por Deus ou estabelecida com um claro testemunho da
Sua vontade, através da qual Deus demonstra como Ele deve ser honrado. Esse culto deve ter
como propósito imediato ou principal a obediência a Deus e a celebração da Sua glória,
motivado pela fé em Cristo.
O objetivo imediato do primeiro mandamento é que Deus seja honrado, reconhecido e
glorificado. O objetivo imediato da segunda tábua dos mandamentos é a preservação da
integridade do nosso corpo e do bem-estar do próximo. No caso de um soldado piedoso, o
objetivo imediato pode ser lutar pela salvação comum, mas o objetivo principal é honrar a Deus.
No entanto, os hipócritas criam uma ilusão de que o objetivo imediato para não comer carne no
sexto dia é honrar a Deus, o que é uma mera opinião inventada por eles. Portanto, uma definição
precisa expõe de maneira clara as falsas práticas religiosas desses enganadores modernos[153] que
inventam tradições humanas.
- Terceiro erro. Além disso, os hipócritas afirmam que as obras das tradições humanas, ou
seja, as obras que agradam a Deus mais do que as ordenadas pelo Decálogo, são a verdadeira
perfeição. Eles colocam o monasticismo acima do governo da Igreja, da política e do casamento,
acreditando que tais obras são mais agradáveis a Deus. Essa loucura é completamente condenada
e foi rejeitada por Gerson[154].
- Quarto erro. Eles acrescentam a noção de necessidade, ou seja, afirmam que a observância
das tradições humanas é necessária, mesmo fora do caso de escândalo. E, por causa dessa
convicção, eles condenam aqueles que não observam esses rituais como desertores da Igreja,
rebeldes, cismáticos, excluídos do povo de Deus e excluídos da Igreja, assim como alguns foram
condenados no passado por não observarem o Dia de Páscoa junto com os outros. Essa noção de
necessidade precisa ser especialmente condenada para que não se pense que a justiça do
Evangelho seja uma política externa desse tipo, e para evitar conflitos devido à diversidade de
tais rituais. A liberdade concedida pelo Evangelho não pode ser revogada pela autoridade
humana. Assim, Cristo deseja que entendamos que os rituais, sejam eles mosaicos ou tradições
humanas, não são necessários. Como está escrito em Colossenses 2: “Portanto, ninguém os
julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados”. Ninguém deve
obrigar ou condenar a consciência de alguém por causa desses rituais. E novamente em Gálatas
5: “Fiquem, portanto, firmes na liberdade com que Cristo os libertou e não se sujeitem
novamente ao jugo da escravidão”. Ele ordena que mantenhamos uma atitude de liberdade para
que as consciências não sejam afligidas de forma insensata ou causem conflitos quando alguém
não observa nossos rituais humanos.
- Quinto erro. A noção de necessidade deu origem a uma grande escuridão, ou seja, uma
espécie de fanatismo excessivo (κακοζηλια) em relação à lei mosaica. Após essa persuasão ter
tomado conta das mentes, assim como as cerimônias eram consideradas necessárias na Lei de
Moisés, agora também são vistas como necessárias na Igreja. Isso transformou o reino de Cristo
em algo semelhante à política judaica. Eles estabeleceram um único homem como o sumo
sacerdote de toda a Igreja e criaram graus de sacerdotes e um sacrifício externo. Além disso,
deram ao sumo sacerdote o poder de instituir cerimônias e a lei do celibato. Esse fanatismo
lançou uma grande escuridão nas mentes, obscurecendo a compreensão tanto da Lei quanto do
Evangelho, e foi fortemente condenado na epístola aos Gálatas e na epístola aos Hebreus. Os
sacerdotes levitas nos mostram os ministros do Evangelho, e os sacrifícios da Lei de Moisés
representam o ministério do Evangelho e em nossas mentes envolvem arrependimento, a justiça
renovada pelo Espírito, invocação, confissão, a tolerância da cruz, etc. Como está escrito em
João 4: “Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito
e em verdade”. E em 1 Pedro 2: “Vocês também, como pedras vivas, estão sendo edificados em
uma casa espiritual e um sacerdócio santo, a fim de oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a
Deus por meio de Jesus Cristo”.
- Sexto erro. Além disso, os bispos arrogam para si o poder de criar tradições, o que, no
entanto, não lhes é concedido pelo Evangelho. No entanto, quando a crença de que as obras
inventadas por homens sem a Palavra de Deus são consideradas o culto a Deus, os bispos (pois
estão no comando, a fim de parecerem promover a piedade) aumentam as tradições, como
fizeram Gregório I, Inocêncio e muitos pontífices. Eles até mesmo endurecem e reforçam a
noção de necessidade para ampliar sua autoridade, alegando que aqueles que não obedecem às
tradições estabelecidas pelos bispos estão sujeitos à ira eterna de Deus. Este erro é refutado pelas
passagens que mencionei anteriormente. Como em Colossenses 2: “Portanto, ninguém os julgue
por causa de comida e bebida”. E em Atos dos Apóstolos 15: “Pedro repreendeu severamente
aqueles que queriam impor às nações o jugo das cerimônias mosaicas, perguntando: “Por que
vocês estão tentando a Deus, impondo aos discípulos um jugo que nem nossos pais, nem nós,
fomos capazes de suportar?”.
Tentar Deus não é um pecado leve, pois isso não ocorre por fraqueza, mas por desprezo de
Deus, indo contra a Sua Palavra, como se estivéssemos disputando com Ele, estabelecendo algo
diferente de Sua vontade e competindo (και φιλονεικειν) com a Sua sabedoria. Deus ordenou ao
povo de Israel que não sacrificasse em nenhum outro lugar senão onde Ele designou, no local
onde estabeleceu o colégio de instrutores e a arca. Em contraste, a sabedoria humana raciocina
sem a Palavra de Deus, decidindo que Deus deve ser adorado em todos os lugares e com vários
rituais. Isso leva à criação de santuários e altares em todo lugar e sacrifícios não apenas de
animais, mas até mesmo de seres humanos, com o objetivo de demonstrar nosso zelo em uma
grande e difícil tarefa. Tais foram e são as fontes do culto idólatra. Assim, a era moderna
introduziu Missas e o celibato. No entanto, devemos lembrar as palavras de Pedro, que ensinam
que defender tais leis e opiniões é um crime grave. Não se trata de um erro trivial, mas de tentar
a Deus, ou seja, exaltando nossa sabedoria sobre a sabedoria de Deus, provocando a Sua ira ao
buscar algo que contraria a Sua Palavra e competir com Ele. Essas são maldições ocultas que a
sabedoria política não pode julgar. Mas na Igreja, devemos considerá-las, a fim de nos
submetermos à Palavra de Deus e não desejarmos ser governados por nossas próprias opiniões.
- Sétimo erro. Quando a crença na justiça ou na necessidade das tradições humanas persiste,
surgem graves discórdias, como as antigas dissensões sobre a Páscoa e o fermento. E agora os
pontífices não apenas ameaçam com a excomunhão os sacerdotes casados e dividem a Igreja
com severidade injusta, mas também, com crueldade semelhante à de Nero, matam sacerdotes
piedosos por causa das tradições injustas que eles violaram.
Devido a esses sete erros, a maioria das pessoas, se não todas, acabam defendendo tradições
humanas, como evidenciado por seus próprios escritos nos quais se apresentam como oponentes
das nossas igrejas. Portanto, mesmo quando tratam de tradições relacionadas a questões
adiáforas, é imperativo que esses erros sejam expostos e condenados, algo que é
consistentemente enfatizado por Deus, bem como pelos profetas, Cristo e os apóstolos. Portanto,
não é apropriado que os doutores da igreja permaneçam em silêncio quando rituais impuros
contaminam a igreja ou quando as consciências das pessoas são enredadas pelos laços de
tradições puramente humanas.
Também é proveitoso refutar esses erros por meio de exemplos, uma vez que a doutrina
sobre os verdadeiros cultos foi transmitida de maneira moderada. Isso ocorre porque a crença
supersticiosa tende a se firmar ainda mais quando não se apresenta nenhum exemplo de
liberdade. Portanto, podemos observar como Paulo recusou a circuncisão de Tito, oferecendo um
exemplo claro de liberdade. Além disso, ele repreendeu Pedro por seu exemplo que confirmava a
teimosia daqueles que insistiam em observar os rituais mosaicos.
Também podemos mencionar a história do Bispo Espiridião do Chipre, que é digna de
memória. Quando um hóspede veio até ele em um dia de jejum e não havia comida comum
disponível para comprar ou preparar imediatamente, Espiridião ordenou que a carne que havia
sido guardada fosse servida. O hóspede, no entanto, relutou: “Não vejo como posso comer isso
hoje, pois sou cristão”. Espiridião respondeu: “É precisamente por ser cristão que você deve
comê-lo, pois toda criatura de Deus é boa, e nada deve ser rejeitado quando é recebido com ação
de graças”. O hóspede seguiu o conselho de Espiridião e, por meio desse exemplo, compreendeu
que é mais importante prestar culto a Deus do que se ater a distinções alimentares. Na própria
Ceia, ele oferece um culto mais significativo, agradece a Deus e reflete sobre a liberdade
concedida por nosso Senhor Jesus Cristo, que não apenas nos libertou de restrições alimentares,
mas, de forma mais ampla, nos resgatou de laços mais rígidos e nos redimiu da lei que nos
condenaria.
Mencionei tudo isso para que os piedosos possam compreender por que e como as tradições
humanas devem ser criticadas e confrontadas por meio de exemplos. Essa memória dos erros
passados deve ser transmitida aos novos oradores que, atualmente, aprenderam a adornar essas
tradições humanas com sofisticação notável, como se pudessem justificar religiões pagãs com
truques semelhantes. No entanto, devemos expulsar o amor pela sofisticação da igreja e falar
com sinceridade, evitando jogos de palavras. Após expor e condenar os erros ligados às
tradições, passarei a discutir como os ritos adiáforos devem ser considerados nas igrejas
reformadas[155], uma vez que esses erros foram removidos.
Terceira regra: Nas igrejas reformadas, alguns ritos adiáforos são mantidos, pois as
atividades da vida devem ser organizadas de alguma forma. A natureza humana compreende e
valoriza a ordem, o que é especialmente apropriado para a igreja e suas reuniões públicas.
Portanto, Paulo enfatizou fortemente em 1 Coríntios 14: “Tudo deve ser feito com decência e
ordem”[156]. Isso não se refere apenas à ordem, mas também à especial atenção dedicada à
decência (εύσχημόνως) desse arranjo, e podemos ver como isso se relaciona a pessoas, lugares e
tempos. Deve haver uma modéstia maior nas igrejas do que em um teatro; as ações e orações dos
mestres devem ser mais serenas e reverentes nas reuniões divinamente convocadas, nas quais
Cristo e os anjos estão presentes, do que em um palco.
Portanto, afirmo que os ritos adiáforos devem ser observados nas igrejas reformadas, com o
objetivo de manter uma boa ordem, mas sem adicionar a crença em justiça, culto ou necessidade,
ou outros erros que mencionei acima. E deve ser entendido que, fora do caso de escândalo, essas
tradições podem ser violadas sem pecado. Quais escândalos devem ser evitados, vou explicar em
breve.
Gerson investigou amplamente a flexibilidade das tradições (επιεικεία) em meio a uma
grande variedade de rituais. Ao perceber a grande quantidade de rituais que oprimiram as
consciências das pessoas, especialmente daqueles mais modestos, bem como a tendência
daqueles menos pacientes em relação às leis de adotar uma atitude epicurista em relação à
religião como um todo, porque não conseguiam cumprir tantas tradições, Gerson propôs uma
abordagem com diferentes níveis de exigência. Ele afirmou que algumas tradições eram
instituídas por motivos de ornamentação, enquanto outras eram essenciais por razões de
necessidade.
No entanto, as considerações mais brandas de Gerson não conseguiram aliviar as
consciências, uma vez que a autoridade divina, conforme expressa pelas vozes dos Apóstolos,
rejeitou claramente a ideia de justiça ou necessidade em relação a essas tradições. Além disso, a
paz pública é mantida por meio desta doutrina, que afirma que, devido à boa ordem, certos
rituais devem ser mantidos, e aqueles que deliberadamente os violam em igrejas reformadas
pecam, causando escândalo. Isso representa uma verdadeira flexibilidade (επιεικεία) das
tradições, que alivia as consciências e contribui para a paz.
Alguns indivíduos, por natureza, podem desconsiderar todas as leis como uma espécie de
prisão. Para essas pessoas, é útil lembrá-las da razão por trás das leis, ou seja, a promoção do
bem-estar comum e a necessidade de evitar escândalos, não vivendo apenas para si, mas para os
outros, inclusive a Igreja de Deus.
Por outro lado, algumas pessoas, com uma disposição mais tranquila e sensata, entendem
que nasceram para a sociedade, e veem como sua tarefa contribuir para ajudar e fortalecer a
Igreja. Elas voluntariamente observam rituais honrados e úteis e evitam causar escândalos.
Sabem que esses rituais foram estabelecidos com a sabedoria e benevolência divinas e, com o
consentimento e o favor de Deus, buscam manter a ordem, a tranquilidade e a seriedade dessas
reuniões nas igrejas e nas escolas, sobretudo porque a ordem frequentemente serve para ensinar a
população menos instruída. A série de festividades não foi instituída ao acaso, pois nem toda a
história pode ser contada em um único dia, mas é mais conveniente apresentar diferentes partes
em momentos oportunos. Isso não apenas torna as celebrações mais agradáveis, mas também
ajuda na preservação da memória.
Não apenas os seres humanos observaram um calendário específico de dias, mas Deus
próprio, com Suas maravilhosas ações, estabeleceu a ordem de certas festividades no Antigo e no
Novo Testamento. Assim como no início da primavera, Deus ordenou o sacrifício de um
cordeiro, na mesma época do ano, nosso Senhor Jesus Cristo foi crucificado e ressuscitou. Da
mesma forma, 50 dias após a saída do Egito, a Lei foi promulgada com evidente testemunho no
Monte Sinai, e 50 dias após a Páscoa, o Espírito Santo foi dado com evidente testemunho.
Agora, encontramo-nos no ano de 1544 depois do nascimento de Cristo. Deus, nosso Senhor
Jesus Cristo, os profetas e toda a Igreja de Deus, desde a saída do Egito até este ano, mantiveram
os rituais da Páscoa e do Pentecostes, totalizando 3049 anos. Considerando essa harmonia entre
Deus e Sua Igreja, bem como esses exemplos, qualquer observador sensato concluiria que é
apropriado fazer parte deste grupo eterno de Deus e da Igreja. Devemos nos ver como
espectadores dos eventos que Deus designou para essas épocas. De fato, essas solenes reuniões
são uma representação da comunhão eterna com Deus, Cristo, os Pais, os Profetas, os Apóstolos
e todos os fiéis. Quando esses rituais são mantidos de maneira útil e sem superstições, eles
servem como meios de ensino. Onde não há ordem e disciplina, a educação se torna inviável.
Portanto, a pregação do Evangelho se faz necessária. Pois Deus reúne Sua Igreja apenas por
meio da proclamação do Evangelho, e o Espírito Santo age de forma eficaz somente através
deste. A verdadeira Igreja dos eleitos só pode ser concebida neste grupo visível, onde o
Evangelho é ensinado corretamente e com pureza. Portanto, devemos amar e apoiar essa
congregação visível e manter o ministério do Evangelho, reunindo-nos em reuniões dignas e
ordenadas.
Além disso, cada chefe de família deve incentivar seus filhos a ler e recitar alguma coisa
pela manhã e à noite, e não deixar um dia passar sem orações e agradecimentos. Fomos criados e
redimidos para louvar a Deus, e esses exercícios são úteis para aprender e fortalecer o temor e a
fé. Nessas práticas, lembremos das palavras de Cristo: “Quanto mais o Pai celestial dará o
Espírito Santo àqueles que O pedirem!”. Portanto, ao pedir para ser ensinado, dirigido e
santificado pelo Espírito Santo, devemos pedir com certeza de que isso ocorrerá e lembrar que o
Espírito Santo é eficaz por meio da meditação do Evangelho.
22. A Mortificação da Carne
Alguns defendem leis sobre jejuns, satisfações, como eles chamam, e superstições
monásticas sob o pretexto de sentenças que pregam sobre a mortificação. Uma vez que a
mortificação, dizem eles, é uma obra boa e piedosa, por que essas leis humanas sobre jejuns e
ritos semelhantes não são também elogiadas? Aqui, novamente, a hipocrisia arma armadilhas
contra a verdadeira doutrina e culto. Devem ser discernidos os mandamentos divinos dos
mandamentos humanos, e deve ser considerado o que Paulo realmente chama de mortificação,
para não transferirmos o termo para coisas importantes que Deus ordena, para ritos fúteis e
ociosos, nos quais a arrogância dos hipócritas ostenta seus títulos distintivos e os comercializa.
A mortificação significa ou a paciência ordenada por Deus em dores reais, no sentido da ira
de Deus, em temores e aflições, ou a temperança ordenada por Deus, que controla os desejos;
não significam prática religiosa voluntária[157] ou rituais inventados sem o mandamento de Deus.
No primeiro gênero, ou seja, sobre a tolerância em verdadeiras dores e na cruz, Paulo fala
em 2 Coríntios 4. 10: “Levamos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que também a
vida de Jesus se manifeste em nosso corpo”. No entanto, as palavras seguintes esclarecem o que
ele chama de “morte de Cristo”. Ele diz: “Porque nós, que vivemos, somos sempre entregues à
morte por amor de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste também em nossa carne mortal;
de modo que a morte opera em nós, mas em vocês, vida” (2 Coríntios 4. 11-12). Ele está se
referindo a ser frequentemente exposto à morte, a ser levado para o tormento por causa da
confissão de Cristo, a ser atormentado pelos terrores do Diabo. Isso é o que ele chama de “morte
de Cristo”, ou seja, semelhante aos sofrimentos de Cristo e próprio da Igreja. Sobre esse assunto,
ele também diz em Romanos 12. 1: “Rogo a vocês pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que
apresentem os seus corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o seu culto
racional”. Paulo não está falando sobre cerimônias ou uma prática simulada, mas sobre a cruz, ou
seja, sobre a tolerância em dores verdadeiras e grandes. Isso é o sacrifício daqueles que
sustentam a fé no Filho de Deus, como o Salmo 50. 19 diz: “O sacrifício aceitável a Deus é o
espírito quebrantado; ao coração quebrantado e contrito não desprezará, ó Deus”. Sobre esse
assunto, já foi dito anteriormente no título sobre a cruz.
No segundo gênero, ou seja, sobre a temperança ordenada por Deus, muitas sentenças são
pregadas em todos os lugares. Lucas 21. 34 diz: “Olhem por vocês mesmos, para que seus
corações não fiquem sobrecarregados com dissipação, embriaguez, e com os cuidados da vida”.
Mateus 17. 21 diz: “Mas esta casta de demônios não se expulsa senão pela oração e pelo jejum”.
Efésios 6. 4 diz: “E vocês, pais, não provoquem à ira seus filhos, mas os criem na disciplina e na
admoestação do Senhor”, ou seja, ensinem à juventude a doutrina sobre Deus e os acostumem à
piedosa disciplina, guiem seus comportamentos para que sejam modestos, castos, piedosos, e os
exercitem com trabalho certo e honesto, para que, como costuma acontecer, a ociosidade e o luxo
não gerem vícios que afastam o Espírito Santo.
Portanto, se a mortificação significa tolerância na cruz ou temperança, está falando sobre as
obras dos mandamentos, mas é verdade que é livre para qualquer pessoa escolher livremente
exercícios honestos e adequados à sua idade e forças, assim como é livre para o governador da
escola estabelecer a ordem das lições e disputas. Por isso, Paulo diz em 1 Coríntios 9. 27:
“Castigo o meu corpo e o reduzo à servidão”, etc. Isso é feito para que a intemperança não
obstrua o Espírito Santo, a intenção da mente na oração, nos estudos e nos negócios. O jejum não
estabelece imediatamente esse fim, ou seja, que Deus seja honrado por tal obra.
E a temperança, em geral, é objeto de preceitos, mas diferentes exercícios são adequados
para diferentes pessoas. Portanto, a escolha entre eles seja livre. Os idosos ocupados com
preocupações, dores e negócios devem governar seus corpos de uma maneira, enquanto os
jovens vigorosos, não afligidos pela angústia, devem fazê-lo de outra forma. Assim como Davi,
antes do exílio, precisava mais de exercícios do que depois, quando, enfraquecido pela
intensidade das dores, mal arrastava seus membros cansados. A boa saúde do corpo e a
vigorosidade dos sentidos são dons notáveis de Deus, necessários para estudos e negócios.
Portanto, devem ser preservados, e o corpo não deve ser prejudicado por excesso de indulgência
ou jejum excessivo. E Paulo ordena que o corpo seja honrado.
Portanto, uma vez havendo uma grande diferença, a Igreja não impõe leis que prescrevam
um único modo de jejum ou exercício, mas, em geral, ela exige temperança e adverte para que os
exercícios não se transformem superstitiosamente em cultos. Ela também ordena que se faça uma
distinção entre as obras ordenadas por Deus e os exercícios que escolhemos. Por isso, Paulo diz
em 1 Timóteo 4 (versículos 7 em diante): “Exercite-se para a piedade; pois o exercício corporal é
de pouco proveito, mas a piedade é proveitosa para tudo”. É uma advertência muito séria que faz
uma distinção entre as obras necessárias e ordenadas por Deus e os exercícios escolhidos por
nosso arbítrio. No entanto, ele ordena que as obras ordenadas por Deus, como o arrependimento,
o temor de Deus, a fé, a invocação, a confissão, a paciência, a castidade, a temperança e a
diligência na vocação, sejam muito mais valorizadas. Ele diz que essas virtudes são úteis para
tudo, ou seja, Deus recompensa e enriquece essas virtudes com grandes bênçãos nesta vida, com
maior luz e sabedoria espiritual, com força na fé, com conselho, consolação e sucesso no
governo público e doméstico, com castidade, paz e sustento; e após esta vida, serão concedidas
recompensas eternas. Mas o exercício do corpo é de pouco proveito. No entanto, ele entende
esses exercícios escolhidos por nós, como quando alguém deseja comer apenas uma vez e em
pouca quantidade durante o dia. Quando essas práticas são feitas sem superstição, não são
completamente rejeitadas, mas são colocadas abaixo das obras ordenadas por Deus. Elas são
úteis em certa medida, pois a intenção da mente é maior em estados sóbrios, na invocação, nos
estudos e nos negócios. Festas, associações e conversas profanas relaxam as mentes, tornando-as
mais suscetíveis a incêndios de paixões, como aconteceu com Davi no ócio. E são conhecidos os
versos (Ovídio, A Arte de Amar, I. 238):
“O ócio seguro é prejudicial e perigoso.
A preocupação foge e se dissolve no vinho abundante.”
E Sêneca diz sobre as associações: “Nunca retomo os hábitos que abandonei. Os
embriagados não conseguem suportar preocupações tanto em suas mentes quanto em seus
corpos, perdem momentos oportunos para realizar suas tarefas e, descuidados, caem facilmente
em grandes crimes. Mas o mais triste de tudo isso é que a invocação de Deus é extinta nos
embriagados”.
No entanto, é um ditado comum que não deve ser desprezado: Evitar os pecados é evitar as
ocasiões dos pecados. Portanto, as mentes virtuosas devem entender as ocasiões e as causas
preliminares das quedas e, com certa diligência, evitar os perigos para não se envolverem
demasiadamente em associações, amar a temperança e assumir tarefas certas e úteis, nas quais
possam frequentemente misturar a invocação a Deus.
Também é muito benéfico para a saúde e para os costumes não confundir a ordem dos
tempos prescrita pela natureza. Assim como muitos dedicam parte do dia inteiro ao sono e parte
às festividades, e depois passam a noite dedicados aos estudos ou negócios. Verdadeiramente,
como disse Sêneca: “Isso é o propósito da luxúria, deleitar-se com coisas perversas e não apenas
se afastar do correto, mas afastar-se o mais longe possível”.
O Diabo não descansa quando vê as mentes livres de preocupações, mas ele mesmo oferece
ocasiões de quedas. Esses males devem ser evitados tanto pela nossa diligência quanto pela
busca do governo divino, como está escrito: “Quanto mais o Espírito Santo será dado aos que
pedem!”.
Os monges tentaram abranger em suas regras os exercícios dessa diligência, mas surgiram
opiniões supersticiosas e tolas, e essa diversidade não pode ser abrangida pelas leis. Portanto, as
tradições não devem ser defendidas sob o pretexto dessa distinção de alimentos, mas os bons e
sábios pregadores devem frequentemente advertir os jovens sobre essa diligência. E os
educadores devem se esforçar para restringi-la com disciplina, tanto quanto possível, e os
governantes devem nos ajudar a preservar a disciplina. Abordei brevemente a mortificação e a
disciplina, rejeitando a hipocrisia, para que aprendamos a compreender e amar as verdadeiras
virtudes e exercícios úteis.
23. Escândalo
A palavra grega é “σκάνδαλον,” derivada do verbo “σκάζω,” que significa “claudicar” ou
“mancar”. Essa palavra se refere a um “escândalo” ou “ofensa”, ou seja, algo com o qual alguém
tropeça, escorrega ou fica perturbado ao entrar em contato.
A palavra “scandalum” ou “escândalo” refere-se a um evento ou exemplo que leva alguém a
se tornar pior, seja porque reforça um erro, porque alguém imita um mau exemplo ou porque
aumenta o ódio contra o Evangelho. Essa explicação da palavra deve ser considerada em
primeiro lugar. Enquanto a Igreja utiliza a palavra “escândalo” dessa forma, esse uso é
desconhecido para outros escritores que se referem a exemplos prejudiciais como “exempla” ou
“παραδείγματα”. Além disso, o termo correlato de “scandalo” é “offensio”, e às vezes as
palavras “scandalo” e “offensio” são usadas indistintamente, onde “scandalo” se refere ao objeto
que causa a ofensa em si.
O escândalo é de duas naturezas, ou seja, há duas formas de ofensa. A primeira é a ofensa
dos fariseus, ou como eles chamam, o “escândalo recebido”. Isso ocorre quando os ímpios ficam
irritados com a verdadeira doutrina do evangelho ou com ações justas e necessárias. Eles não
querem que a verdadeira doutrina seja ensinada, não querem que erros sejam corrigidos e não
querem abandonar a adoração de ídolos. Além disso, eles não querem que um sacerdote viva
uma vida piedosa em seu casamento.
Existem várias razões pelas quais os ímpios se irritam com a verdadeira doutrina ou com as
mudanças necessárias. Alguns lutam por motivos egoístas, como aqueles que não querem perder
grandes lucros que obtêm com missas ou invocações aos mortos. Outros discordam por causa da
autoridade. Alguns são persuadidos por suas próprias ilusões e não querem que as coisas que eles
admiram e aprovam sejam corrigidas. Eles estão tão fascinados por sua própria justiça que não
querem ouvir a voz que diz que os homens não são justos por causa de sua própria dignidade e
pureza.
Os políticos não querem se envolver em discussões sobre doutrina porque veem que as
disputas de opinião podem causar divisões entre os governantes, guerras e perturbações na
disciplina. No entanto, exemplos de tais ofensas foram, são e continuarão a ser muitos ao longo
da história da Igreja.
Os sacerdotes se opuseram a Jeremias quando ele pregava a destruição de Jerusalém,
alegando razões plausíveis. Muitos se opuseram a Cristo e aos apóstolos, especialmente aqueles
que tinham autoridade e influência sobre o povo judeu. Eles viam a abolição da lei mosaica
como um grande pecado, acreditando que apagar a única lei dada por Deus a toda a humanidade
resultaria na destruição da bela política que não foi estabelecida por Sólon ou Augusto, mas sim
pela clara voz de Deus e testemunhos divinos. Isso certamente irritou profundamente todos os
sábios naquela época, especialmente os fascinados pela ilusão de um reino messiânico terreno.
Embora o aniquilamento do povo também trouxesse tristeza aos próprios apóstolos, eles
desconsideram essa ofensa dos hipócritas e resistem vigorosamente às condenações deles. Eles
proclamam com clareza que a obediência a Deus é mais importante do que a obediência aos
homens, seguindo o mandamento de Cristo, que os instruiu a reunir a igreja pela pregação do
evangelho.
É necessário denunciar erros em relação a Deus e a idolatria, mesmo que o mundo
desmorone ao nosso redor. Pois o primeiro e o segundo mandamento devem ser colocados acima
de todas as coisas humanas, acima de nossas vidas, fortunas, reputações e da paz da república.
Portanto, devemos seguir esta regra: é necessário confessar a verdadeira doutrina, evitar a
idolatria e realizar as obras ordenadas por Deus, mesmo que os ímpios protestem e resistam, e
mesmo que concebam um ódio fervoroso pelo evangelho. Mesmo que dissensões graves surjam
devido à obstinação dos ímpios, eles são os culpados por se oporem ao evangelho, pois deveriam
crer na verdade. Aqueles que, de acordo com sua vocação, ensinam corretamente ou confessam o
evangelho não estão em falta. Este foi o caso de Faraó, que resistiu com grande furor à voz de
Deus proclamada por Moisés e aos testemunhos de Deus. Moisés não pecou, mesmo que essa
discórdia tenha causado muitos problemas no Egito.
Com esta regra, os piedosos sempre encontraram consolo nas contendas da igreja, e
precisamos desse consolo agora mais do que nunca. Pois, para almas moderadas, a visão do
desenrolar dos conflitos traz angústia, e não é fácil ignorar os insultos lançados sobre nós pelos
hipócritas, que nos chamam de inimigos de Deus, da igreja, parricidas, sediciosos e, em última
análise, pragas para a humanidade.
Para resistir a esses julgamentos severos, é necessário fortalecer nossas mentes com
evidências claras das Escrituras divinas. Como está escrito em Mateus 4. 10: “Ao Senhor seu
Deus adorará e só a Ele servirá; não seguirá deuses estranhos”. Aqui, Deus verdadeiro é distinto
dos ídolos fabricados, quando Ele se revela ao povo de Israel, dizendo que devemos adorar
somente a Ele, que nos entregou Sua palavra e testemunhou ser verdadeiramente Deus através de
maravilhas pelas quais nos libertou do Egito. Não devemos invocar outros deuses fictícios,
adorados sem a palavra revelada através dos profetas.
Outra passagem relevante é 1 Coríntios 10. 14: “Fuja da idolatria”. Esses preceitos são
imutáveis, e os profetas frequentemente repetiram essas mensagens, como em Oseias 13. 4: “Eu
sou o Senhor, seu Deus, desde a terra do Egito; e não conhecerá outro Deus senão a Mim, porque
não há Salvador, senão Eu”.
Portanto, é necessário invocar o verdadeiro Deus e evitar os ídolos, não dando-lhes nossa
aprovação. Esses mandamentos devem ser priorizados acima de todas as coisas, incluindo nossas
vidas, nossa reputação, a paz pública, a vida de nossos filhos e a benevolência dos governantes.
Como está escrito em Mateus 10. 33: “Mas qualquer que Me negar diante dos homens, Eu o
negarei também diante de Meu Pai, que está nos céus”. Além disso, há um consolo para que não
fiquemos perturbados pelo medo das dissensões: “Vim separar o homem de seu pai e a filha de
sua mãe”. Essas palavras tratam de questões importantes e perigos graves.
Portanto, devemos assegurar que defendemos opiniões verdadeiras e sólidas, sem causar
tumultos ou perturbar a igreja com falsas crenças ou truques vazios de sofismas, que às vezes são
inventados por mentes arrogantes movidas pela ambição ou pelo desejo de vingança. Como diz
em Gálatas 1. 9: “Se alguém os anunciar outro evangelho além do que já receberam, seja
anátema”. O “anátema” é o extremo de todas as maldições, é algo tão contaminado e condenado
por Deus que, se não for removido, nações inteiras sofrerão grandes calamidades, guerras, fome,
pestilência, conflitos civis e inúmeras confusões, como aconteceu com Sodoma ou com o ídolo
em Lâmpsaco, onde Priapo era adorado.
Quanto a serem tais defensores das doutrinas ímpias, Paulo afirma que isso pode ser mais
facilmente entendido quando examinamos os exemplos daqueles que defenderam ou ainda
defendem ferozes desvios evidentes, como os maniqueístas, samosatenianos, arianos,
maometanos e o trágico rei dos anabatistas, que matou uma esposa grávida e, por meio da
sedição, se autoproclamou rei com coroa e título real, afirmando que governava na igreja de
Deus.
Assim como os fariseus consideravam Cristo e os apóstolos como pragas para a humanidade,
os hipócritas que fervem de ódio pelo evangelho hoje sentem o mesmo em relação a nós, que
apresentamos a pura doutrina do evangelho. Isso fica evidente nas excomunhões e nos escritos
de Eck, Cochlaeus, Afonso e outros. No entanto, quando julgamentos semelhantes de homens
sábios e respeitáveis afligem profundamente as almas moderadas que têm crenças corretas,
devemos nos apegar ao consolo de Paulo, que afirma que esses indivíduos não são estudiosos do
evangelho, mas verdadeiros anátemas, malditos e difamadores. Portanto, devemos evitar a
companhia deles, para que a contaminação não prejudique os piedosos.
E Isaías diz em Isaías 51. 7: “Não temam os insultos dos homens”, e a Abraão é dito:
“Abençoarei os que lhe abençoarem”. O Salmo ameaça os inimigos do evangelho com a mais
terrível maldição, quando diz: “Eles se cobrem de maldição como com uma capa”. Ele consola
os piedosos para que não se perturbem com os raios das maldições dos inimigos, pois “eles
amaldiçoarão, mas Tu abençoarás”. Achei necessário lembrar desta advertência neste momento.
Já falei sobre o escândalo dos fariseus; agora devo falar sobre o outro tipo de escândalo,
chamado escândalo dado, sobre o qual se diz em Mateus 18. 7: “Ai do homem pelo qual vem o
escândalo”. Isso pode ser causado por falsa doutrina ou mau exemplo, prejudicando os outros de
várias maneiras: confirmando a licenciosidade em outros, convidando outros à imitação,
afastando alguns do evangelho, dando ocasião para difamar Cristo ou a igreja de Deus ou
espalhando outros pecados. Tais escândalos existiram desde os dias de Adão e Eva e continuarão
a existir, seja por meio de falsas doutrinas, adoração de ídolos, heresias ou tradições humanas
que não podem ser mantidas sem pecado, ou através de outros males que semeiam outros crimes
de qualquer maneira.
E sobre esse segundo tipo, devemos seguir uma regra absolutamente certa: que esses
escândalos, ou seja, falsas doutrinas, maus exemplos e verdadeiros pecados, são condenados
pelas palavras de Cristo: “Ai do homem pelo qual vem o escândalo”. Portanto, esses escândalos
devem ser evitados com grande cuidado e vigilância. Neste ponto, os piedosos devem refletir
sobre a quantidade de demônios e seres humanos culpados que existem e existiram devido a
crimes desse tipo. Consideremos alguns exemplos para aprendermos a temer a gravidade dos
pecados, pois veremos como a partir de um único delito surgem inúmeros pecados e castigos, e
como esses castigos aumentam ainda mais os pecados. A miséria da raça humana é indescritível.
O primeiro autor desse tipo de escândalo foi o diabo, quando enganou Eva. E quanto mal se
originou a partir da queda de Eva e Adão? O diabo triunfou sobre Deus, destruindo Sua obra de
maneira horrenda e aumentando as injúrias contra Deus que continuariam a afligir a humanidade.
Além disso, devido à queda dos primeiros pais, todos os crimes da raça humana se seguiram,
levando à perdição eterna de muitos. Quando Eva e Adão viram a morte de seu filho Abel,
reconheceram que esse triste espetáculo estava ligado ao seu próprio pecado. Assim, um único
pecado arrasta uma grande multidão de pecados e punições consigo.
Quantos males se originaram do adultério de Davi! Primeiro, seus filhos lutaram entre si,
depois um filho se rebelou contra o pai, profanou as esposas de seu pai e destruiu muitos
milhares de cidadãos. Que triunfos para os demônios, que tristeza para os piedosos, quanto o
Espírito Santo se entristeceu nas almas virtuosas? É plausível que essa tristeza tenha causado a
morte de muitos piedosos. Certamente, o pai realmente sentiu a gravidade desse ferimento, ele
entendeu que era culpado por tantos pecados, ele era a fonte de todos esses males, ele era
maldito, anátema, um flagelo para o povo de Deus. Não foi fácil para ele superar essa dor, pois
sentiu a ira de Deus, mas finalmente venceu, ajudado pelo Messias, como clamava: “Bem-
aventurados todos os que confiam na punição”.
Estou mencionando esses exemplos para que a reflexão sobre tantos males desperte o medo
da ira de Deus em nós, para que cada um olhe para seus próprios escândalos e lembre que um
único pecado pode desencadear muitos outros e aumentar os pecados nas próprias punições.
Nada é pequeno, diz Hipócrates, nada é desprezível. Essas são verdades muito mais importantes
quando se trata dos pecados humanos, mas a segurança humana não reconhece a grandeza de
suas próprias misérias e da ira de Deus. Por isso, não apenas proclamamos com palavras, mas
também com as mais tristes punições, para que comecemos de alguma forma a reconhecer e
temer o julgamento de Deus, e, lembrados pela voz de Deus e por nossos infortúnios, lutemos
um pouco para sair das trevas.
Muitas vezes, as causas de escândalos provêm mais da doutrina do que dos próprios pecados
morais, como quando o diabo, no princípio, infligiu um ferimento mortal a Eva ao insinuar falsas
persuasões. Em todas as eras seguintes, os promotores de opiniões ímpias, que ensinaram a
adoração de ídolos e espalharam blasfêmias e heresias, despedaçaram a Igreja de maneira
horrível. Quantas almas foram arrastadas para a perdição eterna por hereges como Ário, os
maniqueístas e muitos outros? A mente humana dificilmente pode conceber a magnitude dos
males que surgiram nos tempos mais recentes, seja por meio de Maomé ou pelos pontífices que
corromperam a Ceia do Senhor, instituíram a invocação dos mortos, obscureceram o evangelho
da fé e da verdadeira invocação de Cristo com falsas opiniões e defenderam leis sobre o celibato
dos sacerdotes e os votos. A lei de celibato feriu muitas consciências, impedindo que pudessem
invocar a Deus. Muitos foram oprimidos pela perdição eterna nesses assuntos, e o veneno recente
dos anabatistas tem prejudicado e continua prejudicando muitos. Fazemos menção desses
exemplos terríveis para que as almas de boa vontade pensem que não apenas maus exemplos de
conduta, mas também as falsas opiniões, são escândalos condenados por Deus e devem ser
evitados com extrema diligência.
Sobre ambos esses assuntos, Cristo adverte e diz: “Ai daquele por quem o escândalo vem”.
Não basta à diligência humana evitar erros e ilusões doutrinárias, mas deve-se sempre implorar a
Deus com fervorosas súplicas para que a luz do Espírito Santo guie nossas mentes, a fim de que
não nos desviemos para o erro, como o profeta deseja de todo o coração: “Dê-me entendimento,
para que eu possa examinar a Tua lei e guardá-la com todo o meu coração”. E Cristo diz no
Evangelho de acordo com Mateus 26. 41: “Vigiem e orem, para que não entrem em tentação”.
Até agora, falei sobre o que deve ser feito e evitado por necessidade, mas ainda não falei
sobre questões indiferentes. É evidente que a verdadeira doutrina deve ser apresentada de forma
necessária e não deve ser ocultada devido às ofensas dos ímpios. Dessa forma, um sacerdote
piedoso pode conduzir sua congregação honestamente, sem se preocupar com as ofensas
farisaicas. Mas uma terceira regra deve ser adicionada aqui sobre questões indiferentes, como o
consumo de carne no sexto dia e outros rituais inúteis. Sobre esses assuntos, a seguinte
abordagem deve ser adotada:
Primeiro: A doutrina que revela os verdadeiros cultos e condena os cultos inventados, e
explica a causa da liberdade em questões indiferentes, deve ser apresentada. Pois aqueles que não
aprenderam a causa da liberdade e ainda consideram esses rituais como culto, violando as
tradições com uma consciência duvidosa, a dúvida da consciência impede a invocação. Portanto,
entre aqueles que ainda não ouviram a doutrina e são pessoas modestas e dóceis, a mudança não
deve ser feita repentinamente, mas é mais útil ensiná-los, como Paulo aconselhou em sua carta
aos Romanos: “Aceitem o fraco na fé, não para discutir,” ou seja, acolham pessoas modestas
que, embora tenham abraçado o evangelho, ainda têm dúvidas sobre esses rituais. Eduque-os e
fortaleça-os para que saibam que não estão pecando, rejeitando esses rituais. Isso é feito para que
eles recebam confirmação e não os descartem com dúvidas, temendo a Deus em suas
consciências e perdendo a fé e a invocação. No entanto, quando mudanças precisam ser feitas, o
julgamento de uma mente piedosa deve prevalecer, não a petulância.
Após a doutrina sobre os cultos verdadeiros e falsos, bem como a liberdade, já ter sido
apresentada, foi permitido, por exemplo, que rituais inúteis fossem descartados, e a obstinação
daqueles que, embora reconheçam a doutrina verdadeira, fortemente condenam todos os rituais
não é louvável. Essa obstinação é um escândalo de várias maneiras, porque fortalece os
oponentes da verdadeira doutrina e leva à dúvida aqueles que não aprovam o uso da liberdade
por aqueles que se destacam em conhecimento ou autoridade. Às vezes, até mesmo os mais
fracos no Espírito Santo ficam entristecidos, enquanto lamentam receber críticas daqueles que se
consideram fortes. Nesse contexto, é digno de nota a história encontrada no livro quinto de
Eusébio.
Os nobres Átalo e Blandina estavam detidos em Lyon devido à sua profissão do evangelho e
muitas vezes foram levados a locais de tortura na tentativa de fazê-los renunciar à invocação de
Cristo. Havia outro cristão no mesmo cárcere que se mortificava com severidade, abstendo-se de
vinho e carne. Átalo recebeu uma revelação divina para instruir o outro prisioneiro a se alimentar
com comida comum, a fim de não apresentar um exemplo singular aos outros. A razão dada foi
que a austeridade deste cristão na alimentação era considerada um culto mais nobre a Deus. No
entanto, essa obstinação não deve ser encorajada, mas sim resistida.
Átalo explicou a revelação ao prisioneiro detido e aos outros no cárcere, e ele obedeceu. Os
outros também foram instruídos e fortalecidos por esse ensinamento. Essa história torna mais
evidente por que a obstinação daqueles que entendem a diferença nos cultos não deve ser
elogiada, para que o erro não seja fortalecido entre aqueles que são ignorantes e fracos.
Embora às vezes essa obstinação possa parecer austeridade, frequentemente existem outras
razões verdadeiras por trás disso. Não serve a Deus, mas busca o favor dos poderosos que se
opõem ao evangelho. Aqueles que colaboram com os inimigos do evangelho, oprimem os
verdadeiros mestres, obstruem astutamente o curso do evangelho e desejam um estado diferente
para a igreja, pecam muito mais. Nessas controvérsias, eles podem querer parecer justos
censores, não comprometidos com nenhuma das partes, íntegros e incorruptíveis. No entanto,
eles devem lembrar as palavras de Cristo: “Quem não está Comigo, está contra Mim”.
Em questões civis, muitas vezes é possível não formar um julgamento sobre um dos lados,
pois não é necessário que todos se envolvam nos assuntos alheios. Não era necessário para
Pompônio Ático investigar qual das causas era mais justa, a de Pompeu ou a de César. No
entanto, em disputas doutrinárias, é necessário que cada pessoa julgue, abrace e professe a
verdade, conforme a passagem (Gálatas 1. 9): “Se alguém os anunciar outro evangelho além do
que já receberam, seja anátema”. Além disso, a confissão é dada, pois, como Cristo disse
(Mateus 10. 22): “Aquele que Me confessar diante dos homens, Eu também o confessarei diante
de Meu Pai que está nos céus”.
Pessoas de mente nobre devem considerar isso e dedicar seus esforços para proteger e
defender corretamente as igrejas, para enfeitar o presente estado, como se diz: “Orne a Esparta
que você recebeu”[158]. Que eles não colaborem com os inimigos da verdade, nem busquem em
seus corações outra igreja ou outro ministério, uma vez que sabem qual é a igreja que ensina
corretamente. Deus deseja que protejamos a igreja que ensina corretamente e que o ministério do
evangelho seja tratado com honra e apoiado, como também o Salmo nos lembra (Salmo 121. 6):
“Orem pela paz de Jerusalém; haverá abundância para aqueles que a amam”.
Portanto, dado que é evidente que devemos defender nossas igrejas dos ídolos e dos erros
dos inimigos, e evitar a idolatria, e dado que é claro que nas nossas igrejas a doutrina está sendo
ensinada corretamente, é um dever piedoso apoiá-las e nos unirmos a elas. Devemos evitar todas
as fontes de escândalo, não devemos usar o pretexto do evangelho para promover nossos
interesses pessoais, não devemos oprimir os mestres que falam corretamente, nem devemos
obstruir o progresso da doutrina piedosa. Assim como as abelhas em uma colmeia contribuem
individualmente para o bem comum, nós também devemos dedicar todos os nossos esforços e
serviços para a salvação e a paz das igrejas que ensinam corretamente e devemos apoiar os
esforços piedosos, para que a doutrina pura sobre Deus e nosso Senhor Jesus Cristo seja
transmitida às gerações futuras.
No segundo mandamento, está escrito: “Deus não considerará inocente aquele que tomar o
Seu nome em vão”. Portanto, não há dúvida de que todos aqueles que mancham a doutrina do
evangelho com escândalos e desonras sofrerão as consequências de Deus. Nestes tempos atuais,
em que as opiniões e os governos estão tão misturados em várias confusões, devemos ser mais
cautelosos e vigilantes. Ora, devemos seguir a voz de Cristo que nos diz (Mateus 26. 41):
“Vigiem e orem, para que não entrem em tentação”. Devemos nos sustentar com a consolação de
que Cristo também disse (Lucas 22. 31): “Satanás pediu para lhes peneirar como trigo, mas Eu
orei por vocês, para que a sua fé não desfaleça”.
Oramos a Ti, Filho de Deus, Jesus Cristo, crucificado por nós e ressuscitado, tem
misericórdia de nós e, através do Teu Espírito Santo, acende a verdadeira luz em nossos
corações, aumenta e guia nossos costumes e nossos esforços.
24. A Liberdade Cristã
Se algum príncipe na Babilônia ouvisse os judeus no exílio se vangloriando de que lhes foi
divinamente concedida a liberdade, ele teria declarado que essas afirmações eram insensatez.
Assim, neste momento, eu creio que estamos sendo ridicularizados pelos políticos, enquanto,
nestas tristíssimas ruínas dos reinos, à medida que a servidão aumenta por toda parte e quando
vemos anualmente diante de nossos olhos muitos milhares de piedosos sendo levados pelos
turcos, quase como um espetáculo, e quando a crueldade é injustamente exercida por toda parte
contra os piedosos, ainda assim fazemos menção da liberdade e pregamos a nossa liberdade com
glória. Portanto, em primeiro lugar, é necessário pregar isso, que também lamentamos a sorte da
Igreja de Deus, que nestes tempos cruéis e tirânicos é oprimida em toda parte por uma servidão
dura, em meio a essa confusão dos reinos.
E embora a igreja seja o mais possível favorecida por governantes mais moderados, ainda
assim a igreja sempre é atormentada pelo diabo e, até agora, está enraizada na morte e em muitos
infortúnios nesta vida; em quais angústias viveram Adão e Eva quando viram as mortes e
pecados de seus descendentes, mesmo antes de existirem reinos régios ou tiranos. A igreja
sempre foi oprimida por enormes sofrimentos, está e estará antes da ressurreição da Igreja de
Deus.
Então, o que chamamos de liberdade? Não é um termo vazio, como são os paradoxos ou
absurdos dos estoicos, que afirmam que apenas os sábios são livres? A doutrina sobre a liberdade
é muito diferente no Evangelho, sobre a qual Cristo fala quando diz (João 8. 36): “Se o Filho os
libertar, verdadeiramente serão livres”. De fato, Ele diz, verdadeiramente livres, não apenas em
nome, ou sombra de liberdade, mas na realidade, com o pecado apagado, a ira de Deus aplacada,
a morte abolida, todas as calamidades humanas removidas; agraciados com justiça eterna, luz,
vida e glória.
Cristo aporta e proporciona à Sua igreja uma liberdade completa, que Ele próprio trouxe e
deu à Sua igreja com a Sua morte. Ora, de fato, esta verdadeira liberdade começa nesta vida, mas
será completa na ressurreição, quando a igreja desfrutará de todos os bens eternos em doce
comunhão com Deus e nosso Salvador Jesus Cristo. Ao ouvir a palavra “liberdade”, devemos
contemplar essa liberdade eterna e completa em nossas mentes, ao mesmo tempo em que
reconhecemos que ela começa nesta vida. Devemos rejeitar as ilusões da liberdade política dos
corpos, dos impérios, como os judeus ainda esperam pela liberdade e restauração do reino na
Palestina. Esses sonhos não têm relação com a doutrina de liberdade que o evangelho apresenta.
Portanto, embora a igreja seja oprimida não apenas por governos com servidão nesta vida,
mas também afligida por outras calamidades imensas, no entanto, a doutrina da liberdade oferece
consolo mesmo nesses mesmos males mais severos. Hércules, Príamo, Agamêmnon, Palamedes,
Catão, Cícero, Bruto e inúmeros outros, que não conheciam a Deus, foram afligidos, mas
sucumbiram às suas aflições. Eles não tinham um Deus que suavizasse os eventos ou fortalecesse
suas almas, mas foram oprimidos por desespero e trevas eternas em relação à providência e
justiça de Deus. Por outro lado, José, Davi, Jônatas, Ezequias, Jeremias, João Batista, Paulo e
outros, mesmo quando afligidos, reconheciam a presença de Deus, que fortalecia suas almas e
muitas vezes atenuava os próprios eventos. Mesmo quando oprimidos, eles sabiam que após esta
vida teriam uma glória eterna na ressurreição, e eles são a prova dos sofrimentos da igreja. Eles
sabem que, após esta vida, desfrutarão de uma glória eterna na ressurreição.
Assim, eles possuem uma liberdade iniciada nesta vida porque foram aceitos por Deus, são
governados por Ele, são defendidos e auxiliados por Ele, e sabem que após esta vida terão uma
liberdade completa. Pense em como é bom e quanta liberdade é ter Deus favorável, um ajudante,
um governante e um protetor, mesmo em meio a tribulações e à morte iminente.
Esta pregação sobre liberdade trata de verdades reais e certas que têm testemunhos evidentes
na igreja, que eu e você, assim como todos os piedosos, experimentamos. Ela não traz sonhos
vazios dos judeus, dos estoicos, dos anabatistas ou de Struthius, que queria liberar o povo de
impostos.
No entanto, para fins de ensino, divido a liberdade evangélica em quatro estágios.
O primeiro é que, uma vez que o pecado e a ira de Deus são males supremos, é necessário
primeiro falar sobre como somos libertados desses males. Portanto, o primeiro estágio da
liberdade é que, pela graça de Deus, a remissão dos pecados, a reconciliação, a justificação ou a
imputação da justiça, a aceitação para a vida eterna e a herança da vida eterna são concedidas
gratuitamente por causa do Filho de Deus.
Esta é a liberdade pela qual todos esses grandes benefícios são certamente dados
gratuitamente por causa de Cristo. Deus quer estabelecer-nos com certeza e crer que, quando nos
arrependemos, somos recebidos na graça, ouvidos e salvos gratuitamente por causa do Filho,
mesmo que a Lei e a nossa razão nos acusem e nos impeçam de receber esses benefícios.
Portanto, somos libertados do pecado, da ira de Deus, da condenação eterna, da acusação da Lei
e da condição de merecimento. E outra coisa é proposta e dada, por causa da qual recebemos a
remissão dos pecados e somos considerados justos, isto é, aceitos por Deus, ou seja, o Filho de
Deus como Mediador, não a Lei ou nossos méritos. E somos considerados justos, ou seja, aceitos
por Deus para a vida eterna, mesmo que estejamos longe da perfeição da Lei, mas por causa de
Cristo pela fé. Ó benefício imenso, pelo qual, embora ainda haja vestígios de pecado nos
reconciliados, embora sejamos oprimidos por uma grande quantidade de impurezas, ainda assim
somos certos de agradar a Deus por causa de Cristo, como se satisfizéssemos completamente a
Lei!
Neste grau de liberdade, Paulo prega quando diz (Gálatas 3. 13): “Cristo nos resgatou da
maldição da lei, fazendo-se maldição por nós”. Esta é uma breve declaração, mas supera em
muito a sabedoria de todos os anjos e homens, porque ela aponta para a verdadeira, imensa e
inefável ira contra o pecado, quando o Filho, em quem essa ira foi depositada, é chamado de
maldito. Ele se tornou nosso resgatador[159] e vítima. Sobre este benefício e esta libertação,
devemos sempre meditar e crer, que por causa do nosso Senhor Jesus Cristo, nossos pecados são
verdadeiramente perdoados, cobertos e sepultados, e que Ele realmente deseja nos receber, ouvir
e salvar por meio do Mediador. Com o exercício diário da oração, aumentará o entendimento
dessa liberdade, da qual este primeiro grau fala e que contém a doutrina da justificação,
conforme já foi amplamente explicado.
O segundo grau é a concessão do Espírito Santo, que acende uma nova luz em nossa mente e
novas disposições em nossa vontade e coração, nos governa e inicia em nós a vida eterna.
Embora este segundo grau esteja ligado ao primeiro, eu o divido para fins de ensino, para que
sempre que falemos de libertação da lei, entendamos não apenas a assistência, como
frequentemente Agostinho, mas também a imputação gratuita da justiça.
Agostinho frequentemente fala assim: “Fomos libertados da lei”, isto é, somos auxiliados
pelo Espírito Santo para obedecer à lei, e não mais lutamos em vão sob o jugo da lei. Ele fala
corretamente sobre a ajuda, mas é necessário também reconhecer outro benefício, ou seja, o
perdão gratuito dos pecados e a imputação da justiça que é concedida por causa de Cristo. Isso
deve ser reconhecido como um ato gracioso, para que a honra seja dada a Cristo, as consciências
tenham uma consolação verdadeira e sólida, e possamos invocar Deus.
Mas Cristo fala sobre ambos os graus quando diz: “Se o Filho os libertar, verdadeiramente
serão livres”; e Ele prega sobre o benefício completo. O Filho aplaca a ira de Deus, remove o
pecado e a morte, concede justiça e vida eterna, nos ressuscita para a glória eterna e alegria, que
desfrutaremos na comunhão com Deus, os anjos e toda a igreja. Este é o benefício completo da
liberdade sobre o qual Cristo prega, embora deva ser iniciado aqui.
Ainda estamos sujeitos à cruz e à morte do corpo, enfrentamos grandes calamidades, ainda
carregamos sujeira e muita escuridão dentro de nós, e somos atacados pelo diabo, que às vezes
nos envolve em males inextricáveis. Ninguém é tão cauteloso, tão diligente que nunca erre em
seus planos. Finalmente, não podemos governar por nós mesmos o curso muito difícil e perigoso
da vida e os assuntos de nossa vocação apenas com diligência humana, como Jeremias diz: “Eu
sei, Senhor, que o caminho do homem não está em seu controle”.
Portanto, embora ainda pareçamos estar presos em uma prisão triste, somos livres. Primeiro,
porque é certo que temos Deus propício e defensor por causa de Cristo, como ensina o primeiro
grau de liberdade. Em segundo lugar, porque somos ajudados e guiados pelo Espírito Santo.
Davi estava em conflito com um mal inextricável quando foi expulso do reino e viveu como
exilado, mas ele se sustentava com essa certeza de consolação, de que não foi abandonado por
Deus. Ele lembra a palavra de Natã: “O Senhor perdoou o seu pecado”. Em seguida, ele buscou a
ajuda e a orientação do Espírito Santo e experimentou que estava sendo socorrido por Deus. Já
Temístocles, exilado da Grécia, não conheceu nenhuma dessas consolações, mas enquanto ele
tinha refúgio e ajuda humana, suportou o exílio com um ânimo mais tranquilo.
Todos os santos aprenderam sobre o segundo grau de liberdade em situações de perigo,
quando experimentaram que estavam sendo ajudados e fortalecidos por Deus, como Estêvão em
seu testemunho no momento da morte, Lourenço e muitos outros em seus testemunhos.
Portanto, nós também, considerando nossa própria fraqueza e os perigos que enfrentamos,
devemos pensar nesse segundo grau. Devemos buscar a ajuda e a orientação do Espírito Santo,
como Cristo ordena, dizendo: “Peçam, e vocês receberão” e também: “Venham a Mim, todos os
que estão cansados e oprimidos, e Eu os aliviarei”. Quando invocamos, sem dúvida sentiremos
que estamos sendo ajudados, aconselhados, guiados em nossas saídas, perigos sendo afastados e
tribulações sendo aliviadas.
Esses exercícios de invocação nos ensinarão sobre esse segundo grau de liberdade. Cada um
de nós deve refletir sobre o quão grandes são os benefícios desses dois graus, pois são libertações
dos males mais graves: o pecado, a ira de Deus, a morte eterna, a concessão de justiça e vida
eterna, a defesa contra o diabo, a orientação em todos os assuntos e perigos, o governo de nossos
corações pelo Espírito Santo, que acende em nós a meditação da Palavra de Deus, e, finalmente,
a presença eterna de Deus que já nos envolve por causa de Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo.
Não há nada melhor ou maior do que esses bens.
Portanto, a liberdade adquirida pelo sangue de Cristo, que o evangelho oferece, é um bem
imenso e inestimável. Não é um nome vazio ou uma imaginação estoica, como os ímpios
costumam pensar.
Não é difícil para mentes sãs e piedosas distinguir entre essa libertação do pecado e da ira de
Deus e a liberdade política, ou seja, a libertação de tributos. Nessas duas etapas de libertação,
nada é dito sobre essa tranquilidade política externa ou servidão. A alma de José tem essas etapas
de liberdade, mesmo sendo escravo e lançado na prisão. Daniel as possui enquanto está entre os
leões, e Lourenço enquanto está deitado na grelha. Pois a liberdade ou servidão política não se
relaciona mais com essas duas etapas do que a força ou fraqueza do corpo, como é dito em
Gálatas 3. 26: “Pois todos vocês são filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pois não há judeu
nem grego, escravo nem livre”. Mas é fácil para os piedosos entenderem isso: há bens da alma e
há distinções nas coisas materiais.
Finalmente, o terceiro grau trata da vida externa e política, ou seja, que os cristãos não estão
ligados à política de Moisés ou a qualquer política de uma única nação, mas devemos obedecer
às autoridades e leis locais em cada local, desde que essas leis estejam de acordo com o direito
natural e não ordenem nada contra os mandamentos de Deus. Assim como usamos diferentes
espaços de tempo em diferentes regiões, também podemos usar diferentes formas de autoridades,
governos e leis, desde que essas leis, como mencionei, não ordenem nada contra os
mandamentos de Deus.
No entanto, é necessário ensinar os menos instruídos sobre esse terceiro grau de liberdade,
pois frequentemente perniciosas sedições são fomentadas por pessoas ignorantes que
argumentam que os cristãos devem ser governados pelas leis mosaicas. Esse erro deve ser
corrigido, como claramente ensinam os profetas, Cristo e os apóstolos, que o fim da política
judaica ocorreu após a paixão e ressurreição de Cristo, e a destruição de Jerusalém cerca de 1470
anos atrás testemunha que a política judaica foi abolida. Daqui, a regra é estabelecida de que os
rituais mosaicos foram abolidos, e as leis judiciais de Moisés não se aplicam à igreja de Cristo.
Essa política se aplicava a uma nação específica e tinha um período específico de duração, não se
aplica a outras nações ou épocas. Isso é confirmado por muitas passagens claras, como Atos 10.
35, Gálatas 3. 28 e 5. 6: “Em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm valor
algum, mas sim a fé, que age pelo amor”.
Contudo, surge a questão: quando se fala na abolição da lei, a lei como um todo é abolida, ou
apenas duas partes, ou seja, os rituais cerimoniais e as leis judiciais? No entanto, a lei moral é um
fardo maior e um cárcere mais severo do que esses rituais externos das cerimônias?
Respondo: a resposta sobre os rituais cerimoniais e as leis judiciais não é difícil. Assim
como as leis de Sólon em Atenas ou as Leis dos Dez na República Romana se extinguiram
quando a República mudou, as leis cerimoniais e judiciais de Moisés foram promulgadas para
durar por um tempo específico e foram anuladas quando o sistema político mosaico foi
destruído. Além disso, já discutimos a diferença entre o Antigo e o Novo Testamento e por que
esse sistema político foi estabelecido.
Mas quanto à lei moral, a resposta é mais complexa, como explicada por Cristo e pelos
apóstolos, e não é compreendida por pessoas ímpias que vivem sem arrependimento; pois a lei
moral não é uma lei mutável, como as cerimônias ou as Leis dos Dez, mas a lei moral é uma
regra eterna e imutável na mente divina, que ordena o que deve ser feito, proíbe o que não deve
ser feito e pune o desrespeito.
Assim como esta proposição é eterna e imutável: “Deus é sábio, bom e justo”, essas
proposições também são eternas e imutáveis: “Deus julga ser justo ser amado e preferido por
todas as criaturas racionais”, “Deus julga que os desejos vagos dos seres humanos são maus”,
“Deus aprova a obediência que Ele exige” e “Deus fica irado com a rebeldia”.
E a sentença dessa lei foi implantada nas criaturas racionais e, enquanto elas existirem, não
pode ser abolida, da mesma forma que o conhecimento dos números não pode ser abolido.
Portanto, esta regra, ou seja, a lei moral, sempre permanece, e a ordem da mente divina
sempre exige obediência das criaturas. Todas as leis obrigam à obediência ou à punição.
Portanto, como os seres humanos não obedeceram, foi necessário que eles mesmos
sofressem a punição ou que outro pagasse o resgate (λύτρα) por eles. Foi assim que o Filho de
Deus, com um plano maravilhoso e inefável, pagou o resgate por nós e atraiu para Si a ira que
nós deveríamos ter suportado. Assim, Deus não mitigou Sua lei sem compensação, mas manteve
a justiça em exigir a punição.
Portanto, Cristo disse (Mateus 5. 17): “Não vim abolir a lei, mas cumpri-la”, ou seja,
suportando a punição em nome da humanidade e ensinando e restaurando-a para aqueles que
creem. A explicação disso é complexa, mas eu peço aos piedosos que ponderem sobre o que eu
disse. Quando Cristo pagou o resgate, fomos libertados da lei por causa d’Ele, para que não
permanecêssemos sob a maldição, desde que apliquemos Seu benefício a nós pela fé. Portanto,
Paulo disse claramente que fomos libertados da maldição da lei, porque Cristo pagou o resgate.
Os pecados não foram perdoados pela vontade de Deus sem causa, mas houve uma grande
compensação devido à justiça de Deus.
Assim, mesmo antes de Moisés, os primeiros patriarcas, como Abraão, Isaque e Jacó, e
depois Moisés, Samuel, Davi e João Batista, sentiam que seus pecados eram perdoados e que
eram aceitos por causa do Filho de Deus, não por causa da lei. Eles sabiam que haviam sido
libertados da lei por causa do Filho, que eles sabiam que pagaria o resgate, como João Batista
disse (João 1. 29): “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”, ou seja, a vítima
designada por Deus. Este é o cancelamento da lei moral sobre o qual Paulo prega, dizendo
claramente que fomos redimidos da maldição da lei por meio de Cristo. Assim, fomos libertados
se aplicarmos pela fé o benefício de Cristo a nós.
Essa doutrina nos lembra de duas coisas importantes: a imensa ira de Deus contra o pecado,
que não é perdoado sem compensação, e o incrível benefício de Cristo. Deus sempre abomina o
pecado, mas, porque direcionou Sua ira para o Filho, Ele nos aceita. A lei, como mencionei
antes, nos obriga à obediência ou à punição, e a punição foi paga pelo Filho.
Agora, em resposta à pergunta principal, digo que fomos libertados da maldição da lei moral
porque o Filho pagou o resgate, e fomos aceitos por causa do Filho. No entanto, a ordem eterna e
imutável de Deus permanece: a ordem de que a criatura deve obedecer ao Criador. A lei não
acusa nem condena os reconciliados, mas a ordem divina permanece na mente de Deus e na
nossa mente, para que possamos obedecer a Deus. Nesse sentido, a lei é dita como sendo abolida
no que diz respeito à maldição, não no que diz respeito à obediência. Portanto, o Espírito Santo é
dado para que, posteriormente, haja verdadeiras disposições em nossos corações em harmonia
com a Lei de Deus, como afirmado em 2 Coríntios 3. 18: “E todos nós, que com a face
descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo
transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito”.
Dessa maneira, podemos entender o que Paulo disse em Romanos 6. 14: “Pois não estão
debaixo da Lei, mas debaixo da graça”. Isso significa que a punição foi transferida para Cristo, e
aqueles que creem foram libertados da ira e agora são justos ou aceitos por causa de Cristo,
mesmo que ainda haja vestígios de pecado neles, aos quais eles se opõem pelo Espírito. O que é
dito em 1 Timóteo 1. 9, “A lei não é feita para o justo”, claramente se refere, no contexto de
Paulo, à disciplina, isto é, ele diz que a lei foi estabelecida para os ímpios, adúlteros, homicidas,
etc., para que sejam restringidos, acusados e punidos. No entanto, essa disciplina e essa prisão
não se aplicam ao justo, ou seja, àquele que foi regenerado pelo Espírito Santo. O justo não
precisa ser coagido, mas é governado pelo Espírito Santo, que lidera com a Palavra de Deus,
sabendo que a criatura racional está sujeita a Ele. Nesse contexto de Paulo, há ênfase na palavra
“premit” (κεϊται, pressionar), ou seja, a Lei não o oprime ou esmaga o justo.
O quarto grau de liberdade, ensinado pelo evangelho, afirma que os rituais feitos por
autoridade humana na igreja, quando se trata de coisas indiferentes, não merecem a remissão dos
pecados, não constituem a justiça do evangelho, não devem ser mantidos com a opinião de
necessidade, mas podem ser omitidos, exceto em casos de escândalo. Isso é claramente ensinado
em passagens como Mateus 15. 9, onde Jesus diz: “E em vão Me adoram, ensinando doutrinas
que são preceitos de homens”, e também em Colossenses 2. 16: “Ninguém, pois, lhes julgue por
causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados”.
Eu mencionei anteriormente os erros que os hipócritas adicionam a esses rituais humanos, e
como é necessário refutar esses erros. Agora, a questão desse grau de liberdade na igreja precisa
ser abordada. Deus deseja que Ele e Sua vontade sejam conhecidos por meio de Sua Palavra, e
Ele não nos concede a licença de inventar opiniões por nossa própria vontade, como fizeram os
pagãos e os adoradores de ídolos ao longo da história. Pois aqui está a fonte de muitos erros,
quando as pessoas acham que têm a liberdade de criar opiniões sobre Deus e instituir cultos de
acordo com seu próprio arbítrio.
Pensam que é piedoso pedir a Deus por uma colheita abundante de uvas, então instituem os
Bacanais; pensam que é piedoso pedir a Deus por uma colheita bem-sucedida de trigo, então
adoram Ceres e sua filha; pensam que é piedoso pedir a Deus por vitória nas guerras, então
adoram Marte, e assim por diante. Esses cultos são abundantes.
No entanto, todos esses erros têm uma única fonte, que é a crença de que as pessoas têm a
liberdade de inventar opiniões sobre Deus e cultos de acordo com seu próprio arbítrio. Isso é
semelhante ao erro de Arão, que inventou um culto ao bezerro de ouro, e ao audacioso ato de
Jeroboão ao afastar o povo de Israel do templo de Deus para seus próprios sacrifícios.
Aqui, os sábios argumentam: o que há de errado nisso? Por que não deveríamos ser capazes
de enriquecer práticas nobres? O que os pagãos, Arão e Jeroboão queriam senão preservar o
conhecimento de Deus, convidar o povo à oração e acostumá-lo a boas obras por meio de
exercícios virtuosos? Essas aparências e presunções[160] sempre enganaram, enganam e
continuarão enganando a humanidade.
Agora, os sábios argumentam da seguinte forma: qual é o mal em oferecer Cristo a muitos e
a cada um individualmente? Ali, orações são feitas por vivos e pelos mortos. Qual é o mal em
cercar a parte sagrada do sacramento? A invocação do povo aumenta, e o sacramento é honrado.
Qual é o mal em pedir aos mortos, que vivem junto a Deus, que intercedam por nós? Sem
dúvida, a igreja como um todo, tanto no céu como na terra, sempre une suas orações. Essas são
coisas belas e podem ser enfeitadas por oradores habilidosos.
Mas estes belos argumentos e presunções desviam os homens da palavra de Deus. Portanto,
esses jogos foram proibidos por Deus; pois com uma audácia semelhante, hereges inventam seus
erros, cada um o seu, de forma que, enquanto a consciência luta com a questão do perdão dos
pecados e da vontade de Deus nas grandes calamidades, as mentes se acostumam a seguir
opiniões da razão e perdem as verdadeiras consolações fornecidas por Deus.
Sobre coisas triviais, os homens políticos dizem: “Há conflitos sobre questões triviais que
são prejudiciais para os impérios; discórdias persistem e crescem com o zelo e o ódio das
facções. As pessoas discordam imoderadamente. Por que, então, vocês estão fazendo tanto alarde
sobre leite, ovos e carne? Por que vocês não priorizam a concórdia pública e a tranquilidade
sobre essas pequenas questões?”.
A resposta verdadeira e firme é que não estamos lutando por coisas triviais, mas sim por
muitas coisas importantes que devem preceder em nossa vida, superando todos os confortos
corporais, impérios e concórdia pública. Isso inclui o verdadeiro conhecimento e invocação de
Deus, para que não busquemos opiniões fora da Palavra que Ele nos deu, como fizeram os
pagãos e todos os espíritos fanáticos, como Samósatenes, Ário, Maniqueus, Pelágio e Maomé.
Esse tipo de loucura é condenado, mesmo que apresente diferentes temas, pois é da mesma
escuridão que surgem as Bacanais, Samósatenes, as leis Maniqueístas sobre alimentos, as leis
dos sacerdotes celibatários e a temeridade dos sacerdotes sobre a venda de missas e a invocação
dos mortos.
Deus deseja que nossas mentes estejam ligadas à Sua Palavra, pois quando nos afastamos
dela, seguem-se inúmeras ilusões e ídolos sem fim. Portanto, lutemos por esta regra para que não
nos afastemos da Palavra de Deus. É por isso que estamos enfatizando a questão mais importante
de todas para a igreja, e fazemos isso por ordem divina. Pois como está escrito (Gálatas 1. 9):
“Se alguém os anunciar outro evangelho além do que já receberam, seja anátema”.
Além disso, os sábios políticos estão enfocando detalhes insignificantes, como o consumo de
carne ou ovos, e dizem que a concórdia pública deveria ser priorizada sobre essas coisas. No
entanto, não estamos lutando apenas sobre o consumo de carne ou questões triviais. Como
mencionei, estamos destacando a origem dos erros - o afastamento da Palavra de Deus, que não
apenas inventou leis sobre alimentos, embora essas sozinhas gerem muitos erros, mas também
criou ídolos mais evidentes, como a venda de missas por vivos e mortos, invocação dos mortos, a
lei do celibato e outros. E isso não tem fim. Agora, os anabatistas, com uma fúria semelhante,
estão inventando novas opiniões e ritos. Portanto, a igreja precisa de ensinamentos sobre esse
quarto grau de liberdade, e a causa deve ser considerada diligentemente, para que a igreja seja
advertida a não se afastar da Palavra de Deus, como o salmista diz (Salmo 118. 105): “Lâmpada
para os meus pés é a Tua palavra”.
No entanto, os deslizes são fáceis e no início podem parecer obscuros. Quando essa luz é
afastada, as mentes humanas abraçam opiniões humanas, que estabelecem ídolos e buscam
argumentos que, como o próprio Paulo diz, têm a aparência de sabedoria, embora sejam
imposturas. “O que impede”, eles dizem, “que, juntamente com toda a igreja, nos céus e na terra,
oremos constantemente a Deus, pedindo que Ele não permita que a verdadeira doutrina seja
extinta, mas que a reúna e governe a igreja? Certamente eles sabem que esse é o desejo dos
piedosos”. Essas palavras podem parecer plausíveis, mas que crimes esse pretexto pode
perpetuar?
Ouvir as súplicas de indivíduos e discernir os movimentos dos corações pertence apenas a
Deus, à natureza onipotente, como claramente é dito em 2 Crônicas 6. 30: “Tu apenas conheces o
coração dos filhos dos homens”. Aqueles que tentam compelir cada indivíduo a fazer isso estão
atribuindo a honra devida apenas a Deus aos mortos. Além disso, eles caem em delírios ainda
maiores ao afirmar que os mortos são socorristas e atribuir a eles outros dons. Isso é muito
semelhante ao que os pagãos faziam ao pedir riqueza a Júpiter, sabedoria a Palas Atena, amor
feliz a Vênus, vitórias a Marte e assim por diante. Os delitos se acumulam quando, inicialmente,
parece que não estamos longe da Palavra de Deus devido a argumentos plausíveis. No entanto, é
evidente que não há exemplo de invocação dos mortos nos escritos proféticos e apostólicos. É
evidente que a audácia humana não deve instituir tais invocações. Essas regras devem ser
opostas a essas desculpas enganosas, com as quais alguns astutos pintam ídolos, assim como
antigamente, nas festividades, estátuas eram pintadas com bagas de sabugueiro vermelhas e
tintura vermelha[161].
Disse isso para lembrar aos estudiosos, para que não permitam serem enganados por essas
apologias que justificam erros e ídolos e os afastam da verdade. Pois, se concedermos a esses
astutos apologistas a liberdade de seus ídolos audaciosos, que confusões religiosas surgirão?
Estremeço ao pensar nessas conspirações do diabo. E como nenhum cuidado humano pode
afastar suficientemente essas tentações[162], rogo a nosso Senhor Cristo, crucificado por nós e
ressuscitado, para que Ele mesmo possa defender a pureza de Seu evangelho, e destruir todos os
ídolos, e governar nossas mentes, para que possamos ensinar e praticar verdades salutares.
Agora, vou responder ao argumento comum que é apresentado. É necessário obedecer à
autoridade; a autoridade eclesiástica estabelece rituais, tanto em questões indiferentes quanto em
outras. Portanto, é necessário seguir os rituais, especialmente em questões indiferentes.
Devemos responder a isso com uma consideração mais ampla, que não é verdadeira quando
a autoridade ordena que ensinemos ou façamos coisas ímpias. Nesse caso, é necessário seguir
aquelas regras que afirmam (Atos 5. 29): “Devemos obedecer a Deus antes dos homens”.
Portanto, quando as tradições ordenam claramente coisas que não podem ser feitas sem pecar,
está claro que essas são doutrinas de demônios e não devemos obedecer a elas, mas voltar para
os mandamentos de Deus. Muitas tradições papais se enquadram nessa categoria, como os
abusos na Ceia do Senhor, a invocação dos mortos e a lei do celibato. Essas tradições devem ser
rejeitadas, e devemos obedecer aos mandamentos de Deus. O primeiro mandamento afirma
(Êxodo 20. 3): “Não terá outros deuses diante de Mim”. Portanto, não invoquemos os mortos,
mas invoquemos o Deus Todo-Poderoso, o Criador de todas as coisas, que se revelou por meio
do Evangelho e enviou Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado por nós.
Assim, invoquemos como Ele nos ensinou, com fé no Filho Mediador e assim por diante.
Então, mesmo quando as tradições tratam de coisas que, por sua natureza, são indiferentes,
elas se tornam ímpias e ensinamentos de demônios devido aos erros que são apresentados e
defendidos ao mesmo tempo. Esses erros incluem a ideia de que essas tradições podem garantir a
remissão dos pecados, ou que são formas de culto a Deus, ou seja, obras pelas quais Deus julga
que merece ser honrado, ou que os bispos têm o poder de instituir tais cultos. Esses erros
precisam ser rejeitados. Um exemplo disso é que a igreja deve se opor a eles para entender que
não devemos nos afastar da Palavra de Deus e não devemos afrouxar as rédeas da audácia
humana, permitindo que as pessoas inventem opiniões e cultos à sua vontade. Por essas razões,
Cristo desculpa os apóstolos por violarem a tradição dos fariseus, conforme registrado em
Mateus 15.
Essa primeira explicação é muito clara e óbvia, mas deve ser mantida junto com outra, que
também é verdadeira e sólida. A maior verdade diz respeito à obediência, conforme ensinado
pelo Evangelho. No que diz respeito às coisas de direito divino, a consciência deve
necessariamente obedecer aos pastores, como afirmado em Lucas 10. 16: “Quem os ouve, a Mim
ouve”. Quanto aos rituais indiferentes, que são instituídos para a boa ordem, o Evangelho instrui
que não devemos considerá-los como cultos necessários ou coisas que exigem justiça, mas
permite que eles sejam mantidos sem a opinião de retidão ou necessidade. Essa sentença
divinamente entregue não pode ser abolida por autoridade humana. Portanto, mesmo quando os
bispos ordenam, a obediência deve ser tal que não apague o ensinamento que vem de Deus.
Essas respostas são verdadeiras e sólidas, e não entram em conflito com as palavras de
Cristo em Mateus 23. 2: “Os escribas e os fariseus estão sentados na cadeira de Moisés. Portanto,
façam e observem tudo o que eles lhes disserem”. Pois essa sentença não nos instrui a fazer ou
crer em algo que vá contra os mandamentos de Deus. Pelo contrário, em outro lugar, somos
advertidos em Lucas 12. 15 a “guardar-nos do fermento dos fariseus”. Além disso, em Mateus
15, as tradições humanas que corrompem as leis divinas são explicitamente rejeitadas. Paulo
também afirma em Gálatas 1. 9: “Se alguém os anunciar outro evangelho além do que já
receberam, seja anátema”. As interpretações dos fariseus, que afirmavam que os sacrifícios
levíticos obtinham remissão dos pecados, que o Messias não seria uma vítima pelos pecados,
mas assumiria o domínio do mundo e distribuiria reinos aos judeus, não devem ser de forma
alguma aceitas. Tais delírios certamente não deveriam ser adotados. Portanto, a declaração de
Cristo não se aplica a tradições ou opiniões que entram em conflito com a Palavra de Deus.
Além disso, não se afirma isso para diminuir de forma alguma a verdadeira autoridade do
ministério evangélico e dos pastores. Pelo contrário, essa autoridade é fortalecida. Afirmamos
que devemos necessariamente obedecer àqueles que ensinam corretamente em todas as coisas
que são de direito divino, conforme o dito: “Quem os ouve, a Mim ouve”. No entanto, essa
sentença não pode ser aplicada a opiniões ou leis que entram em conflito com o Evangelho, nem
estabelece um reino separado do Evangelho. Além disso, acrescentamos que, quando, por razões
de boa ordem, tempos e leituras são prescritos, esses rituais devem ser observados de modo a
evitar escândalos. E, especialmente em igrejas bem ordenadas, devemos lembrar da honra devida
ao ministério do Evangelho.
O principal benefício de Deus é este ministério, frequentemente restaurado por Deus com
grandes milagres e defendido entre a humanidade. Deus deseja que Seu evangelho seja
proclamado em reuniões públicas e em assembleias dignas, como está escrito (Salmo 149. 1):
“Louvai ao Senhor na congregação dos santos”. Lá, Seu nome é invocado e celebrado. Ele deseja
que isso ocorra com uma certa frequência e acrescenta a promessa à congregação (Mateus 18.
20): “Porque onde estiverem dois ou três reunidos em Meu nome, aí estou Eu no meio deles”.
Novamente, Ele diz (versículo 19): “Se dois de vocês concordarem na terra acerca de qualquer
coisa que pedirem, isso lhes será feito por Meu Pai que está nos céus”. Ele também deseja que
essas reuniões públicas sirvam como testemunhas de Sua confissão e que mostrem a distinção
entre a verdadeira igreja que mantém o evangelho e as convenções de outras seitas.
Portanto, as reuniões públicas da igreja são necessárias para a manutenção do ministério do
evangelho. Portanto, em igrejas que são bem ensinadas, todos devem amar e apoiar as reuniões
públicas e obedecer aos pastores que ensinam corretamente e que organizam tempos e leituras.
Sempre que você entrar no templo, pense no imenso benefício de Deus, que reuniu para Si uma
igreja eterna por meio do ministério e da pregação do evangelho, e também na completa doutrina
da criação e redenção da humanidade. Lembre-se da promessa de Sua presença. Deus deseja ser
invocado e ouvido nesses encontros. Aqui, você deve mostrar em sua invocação e uso dos
sacramentos que é membro do povo de Deus e ouvinte de Cristo. Ao mesmo tempo, repita
consigo mesmo aquela voz que você deseja que esteja inscrita nas paredes de todos os templos
(Romanos 8. 30): “A quem predestinou, a esses também chamou”. Não há eleitos em nenhum
outro lugar senão neste encontro de chamados; busque o povo de Deus apenas entre os
chamados. São ditos chamados aqueles que são membros desta congregação, que ouvem o
evangelho e estão inseridos nessa comunhão por meio dos sacramentos. Quão consolador é para
uma mente piedosa saber que a herança da vida eterna está apenas nestas reuniões e não em
outro lugar! Portanto, agradeça ao Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, por tê-lo
chamado ao conhecimento do evangelho e a essas reuniões e assembleias. E, com todo o seu
esforço, apoie e proteja a frequência dessas reuniões. Ame também os pastores que ensinam
corretamente, obedeça-lhes reverentemente em seu ministério e contribua generosamente para
sustentá-los quando necessário. Tudo isso deve ser considerado pelos piedosos e feito com
verdadeiro zelo.
Assim também com relação às escolas, onde ressoa a voz do evangelho, devemos entender
que é a vontade de Deus que existam tais reuniões de professores e alunos. Essas são partes da
igreja na qual muitos são escolhidos como herdeiros da vida eterna. De fato, é a partir dessas
reuniões que a igreja obtém seus professores, através dos quais o ministério público do
evangelho é preservado. Cristo reina à direita do Pai eterno para dar dons aos homens, pastores e
professores. Portanto, Ele está presente nessas piedosas reuniões escolares e, a partir delas,
escolhe e prepara, pelo Espírito Santo, estudantes piedosos para servirem à Sua igreja e
auxiliarem na propagação do evangelho. Portanto, essas reuniões devem ser amadas e
encorajadas, e essas assembleias devem ser apoiadas, as quais, de fato, nos lembram da vida
eterna.
Pois essa eternidade infinita será uma contínua prática da reunião da igreja para ouvir a
sabedoria de Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo, e para trocar conversas com os antigos pais,
profetas, apóstolos e outros cujas palavras nos trarão alegria. De fato, toda vez que participamos
de reuniões na igreja ou nas escolas, devemos desejar que o dia mais feliz chegue logo, no qual o
Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, ressuscitará os mortos e nos mostrará essa reunião de
toda a Sua igreja e essa escola.
Apêndice I. Sobre o Casamento
Os desígnios de Deus na criação não podem ser todos explicados, mas Ele desejou revelar a
causa de certas obras, ou seja, das mais importantes. É certo que Deus criou anjos e seres
humanos como seres com naturezas distintas, aos quais Ele comunicaria Sua sabedoria, justiça,
virtudes e alegria eterna, pois Ele é bom e compartilha de Si mesmo. Além disso, para que possa
ser reconhecido por eles, Deus infundiu em nossas mentes uma sabedoria congruente com a Sua
própria mente, para que haja em nós um testemunho de quem Ele é, qual é a Sua natureza e que
Ele é o juiz. Nessa obra, o plano de Deus não é obscuro. Não é necessário buscar todas as causas,
mas devemos obedecer reverentemente a Deus. Ele criou os anjos ao mesmo tempo, sem
reprodução, pois eles não têm uma natureza de procriação. Em relação aos seres humanos, Ele os
criou de forma diferente, desejando que houvesse reprodução a partir de um pequeno número.
Contudo, Ele criou inicialmente apenas dois, porque sempre quis que houvesse uma comunidade
de crentes. Ele desejava que a compreensão das virtudes, justiça, verdade, castidade, bondade e
outras fosse evidente neles, porque Ele queria que esses conhecimentos distinguissem a natureza
divina das naturezas justas e impuras. Não abraçamos Deus com os braços do corpo, mas
devemos contemplá-Lo com a mente e a fé na oração, discernindo Sua natureza por meio da
atribuição dessas virtudes e observando os testemunhos da revelação divina, etc. A castidade faz
uma distinção notável, pois os demônios e os seres humanos impuros estão excluídos. Portanto,
ao orar, sempre devemos considerar que estamos nos dirigindo a um Deus puro.
Portanto, Ele estabeleceu a ordem e proibiu desejos lascivos vagos, punindo-os severamente.
Ele deseja que as pessoas conheçam e reverenciem as leis específicas do casamento que Ele
mesmo instituiu, sendo as primeiras delas dadas no próprio paraíso.
A primeira delas é que o casamento seja a união indissolúvel de um homem e uma mulher:
“Serão os dois uma só carne”, ou seja, um único homem e uma única mulher inseparavelmente
unidos. Com essa declaração, fica claro que todos os desejos lascivos são proibidos. Em seguida,
Ele adiciona: “O homem deixará pai e mãe e se unirá à sua esposa”. Posteriormente, leis divinas
sobre incesto e outras questões foram acrescentadas por meio da voz divina.
Portanto, o casamento é uma união legítima e indissolúvel de um homem e uma mulher
instituída divinamente. Devemos reconhecer que Deus é uma mente pura e, assim, servir a Ele na
castidade. Desta forma, a raça humana é propagada e a eterna Igreja de Deus é formada, sendo
que o início da igreja foi a primeira sociedade formada por um casal.

Partes da definição:
A primeira parte da definição inclui a partícula “legítima união”, que abrange quatro
restrições discutidas pelas leis divinas e humanas. Sua autoridade é verdadeira e digna de
reverência, e trata das questões de pessoas, consentimento, condições e erro.

PESSOAS
É notável o capítulo 18 do livro de Levítico, onde são listadas as pessoas que não podem se
casar. Pois Deus, em Sua sabedoria, quis que a castidade fosse entendida e para que fosse
compreendida, Ele não permitiu de forma alguma que os desejos lascivos se espalhassem. Em
vez disso, Ele estabeleceu o número e o grau das pessoas que não podem se casar e, nesta vida,
pune universalmente os desejos lascivos com penalidades evidentes. É importante notar que as
leis em Levítico que proíbem a mistura de pessoas são leis naturais e vinculam todas as nações,
como o texto expressamente afirma. Os egípcios e cananeus foram punidos por causa de desejos
incestuosos, então também os desejos incestuosos foram proibidos para outras nações fora da
comunidade de Moisés.
Os parentes ou parentes consanguíneos, como diz um jurisconsulto, são aqueles que
descendem e se originam do mesmo tronco. A consanguinidade é um vínculo entre pessoas que,
por terem surgido do mesmo tronco, estão mais intimamente ligadas pelo sangue e pela natureza.
No entanto, eles são distinguíveis por linhas e graus.
Existem três linhas: ascendente, descendente e colateral.
Os graus são as distâncias pelas quais se determina qual pessoa está mais próxima do tronco.
A prática comum de contar os graus atualmente e mais conveniente é iniciar a série a partir de
um tronco, como Abraão. Os ancestrais mais velhos dele são colocados acima, e os filhos e netos
são colocados a seguir:

Terá
Harã Abraão Naor
Isaque
Jacó
José

1 - A primeira regra é transmitida sobre a linha reta, a força dos ascendentes e dos
descendentes.
Tantas são as pessoas, tantos são os graus, começando com um único tronco, a partir do qual
o cálculo deve ser iniciado. Por exemplo, José está a três graus de distância de Abraão, Jacó a
dois e Isaque a um. Portanto, um filho representa o primeiro grau, um neto o segundo, um
bisneto o terceiro e um trineto o quarto. E uma antiga opinião é transmitida sobre a linha reta:
nenhuma pessoa ascendente ou descendente pode contrair casamento entre si. Portanto, se Adão
estivesse vivo hoje, ele não poderia se casar.
2 - A segunda regra sobre garantias.
Na mesma linha, cada grau difere um do outro por um grau comum. No total, eles estão
separados por um único grau entre si. Portanto, dois irmãos, ou um irmão e uma irmã, constituem
apenas um grau, ou seja, o primeiro grau, como Jacó estava ligado a Esaú no primeiro grau.

Éaco
Peleu Telamão Foco
Aquiles Ajax Epeu
Pírro Eurísaces
Portanto, se você deseja saber a que grau Aquiles e Ajax estão conectados entre si, examine
uma única linha e observe a que grau Aquiles está distante do tronco; ele está separado por dois
graus. Portanto, Aquiles e Ajax também estão separados entre si por dois graus. Desta forma, é
fácil calcular a relação entre as pessoas seguintes.
Outro exemplo:

Pelope
Piteu Lisídice
Etra Alcmena
Teseu Hércules
Portanto, Teseu e Hércules eram parentes de origem materna, primos-irmãos ligados pelo
terceiro grau de parentesco.
Outro:

Ernesto, Duque da Áustria


Frederico III, imperador Margarida da Áustria (irmã)
Maximiliano Ernesto, eleitor da Saxônia
João, Príncipe das Astúrias João, Eleitor da Saxónia
Carlos V, imperador. João Frederico I (primo)

Agora, os casamentos entre parentes colaterais até o quarto grau são proibidos. No passado,
era permitido que os filhos de irmãos e irmãs se casassem entre si, inclusive pelas leis romanas,
como quando Orestes casou-se com sua prima Hermíone:

Atreu
Agamêmnon Menelau
Orestes Hermíone
Há um exemplo semelhante em Gênesis:

Betuel
Rebeca Labão
Raquel e
Jacó
Lia
Jacó juntou-se à sua prima Raquel no segundo degrau.
Outro exemplo:

Jefoné
Calebe Cenas
Acsa Otoniel

3 - Terceira regra: Em uma linha desigual, eles estão separados por um número igual de
graus em relação ao tronco comum e, portanto, estão igualmente distantes entre si.

Terá
Abraão Harã
Sara
Sara está a dois graus de distância do ancestral comum: portanto, ela estava unida a Abraão
no segundo grau. Neste grau em uma linha desigual, os casamentos são proibidos pelo direito
divino, porque Deus deseja universalmente que um grau superior seja mais respeitado do que um
igual.

Portaon
Eneu Agrios
Tideu Tersites
Diomedes
Diomedes foi ligado a Tersites pelo terceiro grau em uma linha desigual.

Terá
Abraão Naor
Isaque Betuel
Rebeca
Rebeca está a três graus de distância do tronco, portanto, também está a três graus de
distância de Isaque.

Parentesco.
O parentesco (ou afinidade) é a proximidade entre pessoas que não estão ligadas por vínculo
carnal, como no caso de Davi, que não tinha afinidade direta com Jônatas, mas se tornou parente
de Jônatas porque casou com a irmã dele.

Regra.
O grau de parentesco consanguíneo indica o quão próximo alguém é de mim pelo sangue.
Da mesma forma, o grau de afinidade se estende a esposa desse alguém. Por exemplo, se um
irmão e eu estamos ligados por um parentesco consanguíneo de primeiro grau, então a esposa do
meu irmão é ligada a mim por afinidade de primeiro grau.

Príamo
Heleno Heitor, esposo de Andrômaca
Portanto, Andrômaca estava ligada a Heleno por parentesco de primeiro grau por afinidade.

Herodes
Filipe, esposo de
Herodes
Herodias
Portanto, Herodias estava ligada a Herodes por parentesco de primeiro grau por afinidade.
Jacó Bila
Rúben

Portanto, Rúben estava envolvido em um relacionamento incestuoso de primeiro grau de


afinidade com sua madrasta. No entanto, o pecado de Rúben foi considerado ainda mais
abominável do que o de Heleno, porque Ruben violou o leito de seu próprio pai, a quem era
devida uma reverência maior do que o leito de seu irmão. Isso está de acordo com o dito: “O
homem deixará pai e mãe e se unirá à sua esposa”. E como Rúben foi amaldiçoado, fica claro
que a proibição dos primeiros graus de parentesco está enraizada na lei natural.

Pelope
Atreu Tiestes
Clitemnestra Agamêmnon Egisto
Portanto, Egisto estava relacionado a Clitemnestra por afinidade de segundo grau.

Casimiro da
Polônia
Sigismundo, rei da Barbara, esposa do
Polônia duque George
Edwiges, segunda Filha, primeira
esposa do marquês esposa do marquês
Portanto, a filha de Sigismundo era parente de segundo grau da filha do duque George, e,
portanto, era parente do marquês no segundo grau.
A afinidade não se estende amplamente; pois meus parentes não são parentes por afinidade
dos parentes de minha esposa. Eu devo me abster da parente de minha esposa, assim como meus
parentes devem se abster de minha esposa, não dos parentes de minha esposa. Portanto, dois
irmãos podem se casar com duas irmãs; pois eles não são impedidos pela afinidade. Pai e filho,
mãe e filha podem se casar. No entanto, algumas pessoas têm nomes para isso.

Sogro Sogra
έκυρος, Cunhado (pai do έκυρα, Cunhada (mãe do
marido) marido)
πενθερος, Sogro (pai da esposa) πενθερα, Sogra (mãe da esposa)
Genro Nora
Padrasto Madrasta
Enteado
Cunhada (irmã do marido),
Cunhado (irmão do marido)
Cunhada (esposa do irmão)
Esposas de dois irmãos (ambas
as esposas de irmãos)
Esses termos aparecem na Ilíada, Livro 6, onde Helena chama Heitor de “δαερα” (cunhado).
Mais tarde, Hector pergunta se Andrômaca foi a algum lugar visitar as irmãs do marido ou as
esposas dos irmãos: “ήε πη ές γαλοαν η εινατερων ευπεπλων” (ou se ela foi para a casa das irmãs
do meu marido ou das esposas dos meus irmãos).

Otávio
Augusto Irmã de Otávio
Agripa Julia Marcelo
Portanto, Augusto era parente de Agripa no primeiro grau, mas não era parente do irmão de
Agripa.

Uma dupla proibição.


Essa sentença foi frequentemente repetida e deve ser ponderada repetidamente: as noções de
virtude são transmitidas por Deus às criaturas racionais para testemunhar a existência de Deus,
ensinar qual é a Sua natureza e que Ele é o juiz e vingador.
A castidade, em particular, estabelece uma clara distinção entre Deus e o diabo. Portanto,
Deus estabeleceu a ordem do casamento para que a castidade seja entendida, e Ele pune
severamente as uniões incestuosas, como o exemplo das punições de Sodoma, dos cananeus, de
Édipo, de Agamêmnon, de Egisto, de Páris, dos reis egípcios, de Davi e de seus filhos.
Universalmente, muitos infortúnios públicos são castigos pelas imoralidades, como está escrito:
“Deus julgará os adúlteros e fornicadores”. Portanto, devemos cuidar da castidade com grande
diligência, e saiba que existem duas proibições em relação aos graus de parentesco proibidos:
uma é de direito divino e a outra é de direito humano.
A proibição divina está presente em Levítico 18 e deve ser compreendida como proibindo a
mistura entre todos os graus ascendentes e descendentes na linhagem familiar. Nos parentescos
colaterais, proíbe o primeiro e o segundo grau na mesma linha, ou seja, que um irmão não case
com uma irmã, um sobrinho não case com uma tia ou tia materna, e uma sobrinha não case com
um tio ou tio paterno. A interpretação da lei sobre os graus se aplica não apenas às pessoas, mas
também aos graus, para evitar equívocos.
No entanto, a lei divina não proíbe casamentos no segundo grau na mesma linha, ou seja,
permite o casamento entre os filhos de dois irmãos, como no caso em que Orestes pôde se casar
com Hermione.
Agamêmnon Menelau
Orestes Hermione

Matã
Jacó En
Maria José
Embora o sistema legal de Moisés não se aplique a nós, a regra de que os mandamentos
naturais são para todos os seres humanos e para todas as épocas deve ser mantida. Isso ocorre
porque são normas de justiça imutáveis na mente e na vontade divina. Portanto, imediatamente
no paraíso, na primeira geração ascendente e descendente, uma proibição foi estabelecida: “O
homem deixará pai e mãe e se unirá à sua esposa”. Posteriormente, a vontade de Deus foi
declarada por meio da voz do pai, como no caso de Jacó amaldiçoando seu filho que tocou em
sua própria madrasta. O texto em Levítico também afirma que os cananeus foram punidos por
suas lascívias incestuosas.
Quando Deus pune as nações que estão fora do sistema de Moisés e que existiram antes de
Moisés, fica claro que essas proibições são mandamentos eternos e imutáveis, aplicáveis a todos
os seres humanos. Portanto, o apóstolo Paulo também repreendeu os coríntios, por conta de um
envolvimento impróprio com uma madrasta.
Além disso, devemos considerar os exemplos de punições que são encontrados ao longo da
história de todas as épocas. Portanto, é importante reconhecer que as dispensações que permitem
a união em graus proibidos no texto de Levítico 18 não têm validade.
Além das proibições divinas, também existem algumas proibições humanas em graus
próximos, como no segundo grau em linha igual e no terceiro grau. Portanto, é prudente manter
essas proibições humanas com respeito às proibições divinas, com reverência à sua autoridade
divina.
No entanto, é importante que todos os líderes entendam a diferença entre proibições divinas
e proibições humanas. As proibições divinas não podem ser revogadas por autoridade humana,
embora, às vezes, uma razão plausível possa justificar a flexibilização das proibições humanas.
Isso deve ser feito com cuidado e sabedoria pelos pastores e governantes, e não por iniciativa
particular.
Além disso, as proibições relacionadas à afinidade espiritual devem ser rejeitadas, como a
proibição de casar com alguém que tenha sido batizado junto. Cabe aos magistrados, em cada
localidade, tomar decisões sábias e bem fundamentadas sobre quais proibições humanas desejam
manter.

Os exemplos dos pais.


Também vimos muitas pessoas que costumavam negligenciar as leis do casamento porque
liam exemplos diferentes do casamento de poligamia e dos casamentos de Jacó, que casou com
duas irmãs. No entanto, não devemos julgar com base em exemplos, mas sim pelas leis, e nesta
questão importante, devemos considerar os mandamentos divinos. É absolutamente certo que a
primeira lei do casamento, conforme estabelecida no paraíso, prescrevia que a união consistia
apenas em um homem e uma mulher: “Serão dois em uma carne, inseparavelmente unidos”.
Embora mais tarde, Lameque tenha se afastado dessa ordem e depois do dilúvio Deus tenha
tolerado exemplos diferentes em Seu povo, o Filho de Deus nos conduz de volta à primeira
instituição, dizendo em Mateus 19. 8: “Desde o princípio não foi assim”, e repete a declaração:
“Serão dois em uma carne”. Paulo também afirma: “O marido não tem poder sobre o seu próprio
corpo, mas a mulher”. Além disso, em relação aos graus de parentesco, uma vez que as
proibições já existem em Levítico, é necessário obedecer a elas. Não devemos questionar como
os pais podem ser desculpados, porque mesmo os santos não estão livres de falhas, e em todas as
épocas todos nós temos algumas manchas decorrentes dos erros e vícios de nosso tempo. No
entanto, porque os pais adoravam verdadeiramente a Deus na verdadeira invocação do Redentor,
eram guardiões fiéis da doutrina e sobressaíam em todas as virtudes, mantinham uma boa
consciência e cobriam tais defeitos que já eram os costumes políticos de sua época.

CONSENTIMENTO
Foi dito na definição: casamento é a união legítima. Essa restrição ensina a distinção entre as
pessoas e também ordena o consentimento.
Portanto, primeiro deve haver um consentimento expresso do noivo e da noiva, como a regra
frequentemente repetida na lei ensina que casamentos são unidos por consentimento mútuo.
Nesse consentimento, erros e violência devem estar ausentes. Em relação à violência, deve-se
entender que não há consentimento nem casamento quando uma pessoa é forçada a prometer
casamento por meio da violência. Nesse assunto, muitos erros tristes ocorrem.

O consentimento dos pais.


As leis antigas exigem o consentimento dos pais no noivado, de modo que, na ausência desse
consentimento, os pais podem até permitir a dissolução dos noivados antes da união conjugal ser
realizada. Ambrosio, na história de Rebeca, também requer o consentimento dos pais e considera
isso tão honroso e conforme à natureza que os poetas também ensinam o mesmo. Ele cita versos
de Eurípides da peça “Andrômaca”, nos quais Orestes pede a mão de Hermíone, e ela responde
que essa questão depende da vontade de seu pai. Os versos são os seguintes:
“Quanto aos meus casamentos, meu pai decidirá. Não sou eu quem deve julgar isso.”[163]
Não vou prolongar a discussão, uma vez que essa prática é observada nas igrejas desta
região, onde o consentimento dos pais é exigido, e os noivados são considerados inválidos
quando os pais se opõem. No entanto, cabe aos juízes avaliar se os pais têm uma razão adequada
para se opor ou não. Também é importante observar que, após a consumação do casamento, os
casamentos não podem ser desfeitos pela autoridade dos pais, pois a questão já não diz respeito a
um casamento futuro, e a autoridade dos pais foi violada, o que causaria injustiça à mulher
desamparada.

CONDIÇÕES.
Existem diferentes condições relacionadas ao casamento, algumas são dignas e relevantes
para o casamento, outras são estranhas e não relacionadas ao casamento, algumas são
vergonhosas e outras impossíveis.

A primeira regra é a perpetuidade.


Uma condição digna e relevante para o casamento, acrescentada no início do contrato, se não
for cumprida, dissolve o contrato. Exemplos de tais condições são: se os pais consentirem; o dote
será dado por nós, adequado às nossas posses. No entanto, quando ocorre a relação sexual, sem
aguardar o cumprimento da condição, essa união é considerada um casamento, porque as partes
envolvidas abandonam a condição.

Outra regra.
Se, no entanto, a condição for estranha e não relacionada ao casamento, como: “Vou casar
com você se você me der cem moedas de ouro”, onde não há menção de dote, essa condição é
considerada sem efeito e o casamento é considerado válido. O mesmo ocorre quando são
acrescentadas condições indecentes ou impossíveis, como: “Vou me casar com você se você
permanecer virgem”, ou ainda: “Vou me casar com você se você me der Bizâncio”. Essas
condições são rejeitadas, talvez porque as autoridades quisessem evitar sofisma, petulância e
enganos em relação ao sexo feminino frágil e vulnerável.

ERRO
A regra é transmitida.
Os esponsais e o casamento podem ser dissolvidos devido a um erro na identidade da pessoa,
não devido a um erro nas circunstâncias, ou seja, quando o engano envolve a pessoa em si, como
no caso de Jacó, a quem foi dada Lia em vez de Raquel. No entanto, Jacó optou por seguir
adiante com o casamento e, portanto, não tinha base legal para dissolver o contrato.
Em relação a um erro nas circunstâncias, como alguém acreditar que o cônjuge é rico, nobre
ou não tem filhos, esse tipo de erro não afeta a validade essencial do casamento.
Um erro particularmente difícil de resolver é quando alguém casa com uma pessoa que foi
violada (que teve relações sexuais) ou forçada a fazê-lo, seja por outra pessoa ou pelo próprio
cônjuge. A questão de se os esponsais e o casamento podem ser dissolvidos nesses casos é
debatida, e muitas vezes é decidida de acordo com a lei local e os costumes. Em muitas
jurisdições, a prática é permitir que o noivo ou o cônjuge mantenha uma pessoa que tenha sido
violada, consciente ou inconscientemente. Em algumas jurisdições mais recentes, as leis podem
ter sido estabelecidas para tornar mais difícil a dissolução do casamento e para evitar a leveza
daqueles que descartam facilmente suas esposas por qualquer motivo.
Deve-se observar a prática atual, para a qual existem regulamentos claros no direito
canônico. No entanto, no livro de Deuteronômio, capítulo 22, encontramos uma regra diferente
que prescreve apedrejar uma mulher que foi violada por outro homem, mas que posteriormente
se casou com outro. Se a mulher for acusada e o marido buscar o divórcio, essa era a antiga
severidade estabelecida na lei divina. Alguns grupos, incluindo os gregos, seguiram essa prática
por um tempo, como evidenciado na história de Creusa, que se casou grávida de Xuto, e
posteriormente deu à luz a Ion. A mãe inicialmente abandonou a criança, mas depois a redimiu,
temendo punição, e ela foi salva por Palas Atena. Em outra história, em “Hécira”, o personagem
Pânfilo se recusa a aceitar sua esposa, acreditando que ela engravidou de outro homem. Portanto,
divórcios eram comuns nesses casos.
No entanto, devemos abordar agora algumas situações específicas que podem exigir
aconselhamento adequado.

Primeiro.
A lei de Moisés ordenava que aquele que tivesse violado uma jovem deveria casar com ela e
dar-lhe um dote, quer tivesse prometido o casamento ou não. No entanto, nossas leis não
obrigam que você case com a pessoa que violou, a menos que tenha prometido casamento, mas
ainda assim mencionam a obrigação de fornecer um dote. Isso também era uma prática comum
no direito ateniense.

Um segundo lembrete.
Talvez por isso, devido à antiga tradição, tenhamos aprendido uma abordagem mais recente
que busca manter a pessoa que sofreu violência sexual pelo autor do ato. Isso ocorre porque, se
permitíssemos acusações frequentes de recém-casados, muitas vezes inocentes correriam o risco
de enfrentar suspeitas ou ofensas injustas. Além disso, segredos criminosos seriam
frequentemente revelados, e é muito mais honroso e útil mantê-los em sigilo, como diz o ditado:
“O amor cobre todas as faltas”. Portanto, os governantes decidiram desencorajar acusações, e
essa decisão não deve ser censurada.
Embora eu não aprove a criação de novas leis, posso modestamente sugerir o que parece ser
benéfico: primeiro, deve-se tentar a reconciliação, de modo que aquele que cometeu o erro de
violar (que teve relações sexuais com) uma mulher mantenha um relacionamento com ela,
especialmente se ela for modesta. Isso ocorre porque, frequentemente, divórcios acarretam
grandes consequências, pelas quais o juiz e o autor do ato devem prestar contas. No entanto, se a
reconciliação não for possível, um juiz sábio, com autoridade para isso, pode seguir o exemplo
da lei mosaica e permitir o divórcio, desde que seja anunciado de antemão. Como é sabido, as
leis mosaicas não se aplicam às nossas sociedades, mas elas nos mostram o que Deus aprova.
Portanto, os legisladores podem promulgar essa lei em seu devido lugar, para que, em tais
casos, se a reconciliação não for bem-sucedida, o divórcio possa ocorrer. O erro neste caso é
muito mais intolerável do que se alguém, sem saber, casasse com uma serva. Pode haver outras
razões honestas para isso, mas o exemplo da lei mosaica fortalece mais as consciências do que
outros argumentos, porque o testemunho da lei divina deixa os legisladores e juízes
absolutamente certos de que não estão agindo contra a vontade de Deus.
Outro caso.
Muitas vezes, também se questiona sobre este caso: se alguém que já é casado, como Davi,
pode depois de seus primeiros cônjuges falecerem, casar-se com uma mulher que manteve
relações com outro enquanto era casada com seu primeiro marido, ou se a mulher em questão era
esposa de outro homem. As leis canônicas proíbem o casamento nesse caso e também proíbem se
houver uma conspiração para assassinar o cônjuge do outro. Essas decisões foram tomadas com
sabedoria para desencorajar a prática de adultério. No entanto, o exemplo de Davi mostra que,
neste caso, o casamento pode ser permitido, e um juiz pode usar seu discernimento,
especialmente quando as autoridades civis não punem o adultério e Deus desaprova fortemente
uniões adúlteras.

Outra pergunta.
Quanto à questão de um cristão se casar com uma pessoa de outra religião ou alguém que
discorda da sua religião, os cânones proíbem o casamento com não-cristãos e hereges, o que foi
estabelecido com sabedoria. Isso porque a lei divina também proíbe casamentos com filisteus.
No entanto, é importante entender que o evangelho não abole as políticas do mundo, mas prega a
justiça do coração. Portanto, na vida externa, podemos seguir as leis políticas desde que não
entrem em conflito com as leis naturais, assim como usamos diferentes períodos do dia. Paulo,
por exemplo, instrui explicitamente os cristãos a manterem seus cônjuges, mesmo que eles não
compartilhem da mesma religião, e acrescenta consolo: “O marido descrente é santificado pela
mulher, e a mulher descrente é santificada pelo marido”, ou seja, o casamento de um crente com
um não-crente é aceito e não desagrada a Deus, assim como o uso de alimentos é aceitável
quando acompanhado de oração. Portanto, exemplos de casamentos entre cônjuges de diferentes
religiões, nos quais um deles se converteu posteriormente, são comuns na história, o que é
relevante também nos dias atuais para evitar que casais se separem devido às diferenças
religiosas quando desejam permanecer juntos no matrimônio, assim como frequentemente é
difícil separar famílias devido à descendência, e o cônjuge cristão deve buscar manter a afeição
do cônjuge não-cristão por meio de atos de bondade, mesmo que pareça que ele está buscando
uma oportunidade para o divórcio.
Divórcio.
Foi dito na definição que o casamento é uma união legítima e indissolúvel entre um homem
e uma mulher, e não há dúvida de que essas restrições se aplicam à primeira instituição. Deus
queria que a humanidade não se assemelhasse a animais vagando em suas uniões, mas que
homens e mulheres fossem unidos de acordo com uma ordem específica e observassem essa
ordem como uma obediência devida a Ele. Ele estabeleceu essa ordem com leis rigorosas e
punições severas, e em todos os tempos da história humana, Ele puniu as transgressões a essa
ordem com castigos, como evidenciado no Dilúvio, na destruição de Sodoma, nas quedas de
civilizações como Síbaris, Tebas e Troia, e em muitas outras situações. A razão para essa
severidade é que Deus deseja que a humanidade compreenda o significado da castidade,
reconhecendo que Ele mesmo é puro de mente e ama a castidade, e mencionando essa virtude,
podemos distingui-Lo da impureza natural.
Portanto, desde o início, Deus estabeleceu que os casamentos não deveriam ser dissolvidos,
como é dito: “serão dois em uma só carne”, ou seja, unidos inseparavelmente. O próprio Senhor
cita essa sentença em Mateus 19. Essa ordem foi obedecida sem dúvida pelos primeiros pais,
Adão, Sete e outros, que a transmitiram a outros.
No entanto, mais tarde, a disciplina antiga foi relaxada e o divórcio foi permitido, e embora
fossem práticas comuns antes de Moisés, foram permitidas pela voz da lei mosaica. No entanto,
cercou-se de limitações para que não fossem realizadas com leviandade, mas primeiro as causas
eram consideradas em julgamentos.
A lei também proibiu que uma mulher repudiada voltasse a se casar depois de ter se casado
com outro, pois Deus detesta a confusão sexual. Entre os antigos atenienses, costumava-se julgar
casos de divórcio nos tribunais. Mas mais tarde, entre judeus e outras nações, prevaleceu uma
maior laxidão e licença, e o divórcio foi concedido com base em caprichos particulares, fossem
as causas graves ou leves, ou mesmo inexistentes. Alguns divórcios também foram revertidos,
como o caso de Catão, que inicialmente cedeu sua esposa Marcia a Hortênsio, mas depois ela se
juntou novamente a ele após a morte de Hortênsio. Essa leviandade deu origem à questão que foi
apresentada a Jesus em Mateus 19, onde Ele proibiu o divórcio, exceto em um caso, ou seja,
adultério, onde a pessoa com seu próprio pecado dissolve o casamento e deve ser removida.
Nesse caso, a pessoa inocente não é a causa da dissolução, e a palavra do Filho de Deus absolve
o inocente devido às ações do culpado. Também existe outro caso mencionado em 1 Coríntios 7
sobre abandono.
O caminho para prosseguir.
No entanto, o divórcio não deve ser concedido sem o conhecimento de juízes legítimos. A
pessoa inocente, se desejar obter o divórcio, deve pedir ao juiz que chame a pessoa que cometeu
o erro. Quando ambas as partes comparecem perante o juiz, primeiro devem ser exortadas a se
reconciliarem mutuamente. Se a reconciliação não for possível, a parte inocente não pode ser
forçada a receber de volta a parte culpada.
Portanto, após ouvir as partes e confirmada a acusação, se o acusador tiver vivido
honestamente e solicitar uma sentença, o juiz deve declarar da seguinte forma: “Visto que a
pessoa que cometeu o erro dissolveu o casamento por seu próprio pecado, o juiz, com a
autoridade do evangelho, declara que a pessoa inocente é livre e expressamente permite que ela,
em boa consciência, contraia outro casamento”.
Os cânones pontifícios permitem o divórcio apenas no nome, não na realidade, ou seja, não
permitem que a pessoa inocente contraia outro casamento. No entanto, quando o evangelho
concede o divórcio nesses casos, entende-se que ele se refere a uma verdadeira libertação, na
qual a pessoa inocente não está mais vinculada. Essa foi a prática antiga na igreja, conforme
registrado por Orígenes no comentário de Mateus e também por Eusébio em sua história
eclesiástica, onde ele menciona um relato de Justino Mártir sobre uma mulher piedosa que
obteve um divórcio devido aos pecados flagrantes de seu marido e recebeu publicamente uma
certidão de divórcio. Além disso, Jerônimo relata a história de Fabíola, uma nobre matrona
romana, que obteve um divórcio devido aos pecados de seu marido e se casou novamente.
Lembrar esses exemplos é útil para confirmar a prática dos tribunais em nossas igrejas.
Se a pessoa que cometeu o erro não comparecer perante o tribunal, seja por contumácia ou
por não poder ser encontrada, e se o acusador apresentar uma acusação confirmada junto com
testemunhas que atestem sua boa reputação e solicitar sua liberação, o juiz deve declarar que a
pessoa é livre, conforme mencionado anteriormente.
Mas o que será do condenado? Ou será concedido a ele, se estiver presente, viver nos
mesmos lugares?
Respondo: O magistrado político deve punir o adultério; portanto, a pessoa condenada, se
não for punida com rigor, deve ser expulsa dos lugares onde a pessoa inocente reside. A pessoa
condenada deve ser tratada como se estivesse morta, e essa severidade é da competência do
magistrado político.

Deserção.
Na questão do divórcio, a voz divina liberta a pessoa inocente quando o cônjuge quebrou o
vínculo matrimonial através do adultério. A pessoa inocente, como mencionei, é permitida a
contrair um novo casamento, e isso é mantido dessa maneira em nossos tribunais eclesiásticos. O
mesmo é aplicado à pessoa injustamente abandonada, pois Paulo diz em 1 Coríntios 7. 15: “Se o
descrente se separar, que se separe; o irmão ou a irmã não está sujeito à escravidão em tais
casos”. Paulo declara expressamente que a pessoa injustamente abandonada é livre, ou seja, não
deve ser forçada a seguir o cônjuge desertor.
Embora algumas pessoas restrinjam essa declaração ao caso da diferença religiosa, ela se
aplica verdadeiramente a qualquer abandono injusto, pois não há motivo para fazer essa
distinção. É razoável supor que os desertores que não conseguem suportar o jugo conjugal
subsequentemente não se abstenham de outros relacionamentos com mulheres. Dado que existem
várias razões para abandonos, é necessário definir o que constitui um desertor, e o casamento da
pessoa abandonada não deve ser permitido sem a avaliação de juízes. Portanto, um desertor é
alguém que se separa do cônjuge ou fica ausente por um período prolongado sem uma causa
justa, seja por leviandade, impaciência injusta em relação ao vínculo conjugal ou outras causas
não necessárias que o levam a vagar. Há muitos que são tão dominados pelos demônios que
negligenciam até mesmo seus filhos. Um desertor desse tipo, devido à sua traição e perversidade,
deveria ser punido com uma pena pública.
Portanto, é justo prestar assistência à pessoa inocente que foi abandonada. Além disso, como
mencionei, a avaliação de juízes é necessária. Portanto, a pessoa abandonada deve ser convocada
a comparecer perante o tribunal, e se ela não comparecer, os testemunhos sobre a integridade da
pessoa inocente devem ser ouvidos, e ela deve ser declarada livre, etc.
No entanto, não é considerado desertor aquele que está ausente por razões legítimas, como
um enviado especial, um soldado convocado legalmente para o serviço militar, ou se um marido
está ausente devido a negócios legítimos, como uma viagem de negócios ou outras atividades
honrosas. Nem a captura em cativeiro nem o exílio forçado dissolvem o vínculo matrimonial,
como afirmou a lei de Alexandre Severo no Código de Divórcio: “O matrimônio não é
dissolvido pelo exílio ou pela proibição de água e fogo, se o comportamento do marido não tenha
mudado o afeto da esposa, isto é, se não ocorreu um delito que, de outra forma, dissolveria o
casamento”.
Sobre o soldado, uma constituição de Justiniano nas Autênticas menciona que antigamente,
se um marido não desse notícias significativas à sua esposa durante um período de quatro anos,
permitia-se que a mulher contraísse outro casamento. Justiniano criticou essa brevidade de
tempo, afirmando que era mais triste para um soldado perder sua esposa em casa por causa do
serviço militar do que ser capturado por inimigos. Portanto, ele estabeleceu um prazo mais longo
e exigiu uma investigação cuidadosa sobre a vontade do marido. No entanto, essa lei se refere a
soldados legítimos, não a homens levianos que, para vagar livremente, assumem o título de
soldados sem motivo de coragem ou serviço militar. Esse é outro ponto que o juiz deve
considerar.
O tempo após o qual outros casamentos poderão ser concebidos.
Se o divórcio ocorreu devido a adultério, não há prescrição de tempo para a parte inocente
após o julgamento do caso. No entanto, na questão da deserção, é necessário considerar um
período de anos para determinar se a pessoa foi verdadeiramente abandonada, não apenas
pretextando leveza ou perfídia como abandono.
Uma lei em um código permite que uma noiva se case com outra pessoa após dois anos se o
noivo, que ainda está na mesma província, adiar a celebração pública do casamento contra a
vontade dela. Outra lei fala sobre um noivo estrangeiro, permitindo que a noiva se case com
outra pessoa após três anos, a menos que ele, com o consentimento dela, permaneça ausente por
mais tempo.
As constituições pontifícias não concedem o casamento à parte abandonada, mesmo que seja
inocente, em nenhum momento, a menos que seja comprovado que a pessoa desertora está
morta. No entanto, mencionei anteriormente o ensinamento de Paulo aos Coríntios, que liberta a
parte inocente, e frequentemente a pessoa que abandona é simultaneamente culpada de adultério.
Portanto, não se deve, de forma alguma, prejudicar a parte inocente devido aos erros alheios. A
liberação neste caso não deve ser apenas uma palavra vazia, mas deve conceder o casamento à
pessoa liberada.
Justiniano expressamente permite o casamento da pessoa abandonada após dez anos. Uma
glosa em um capítulo afirma: “Onde após sete anos presume-se provavelmente a morte do
marido, a mulher é desculpada se se casar”. Esta glosa é mais branda do que o texto original, mas
quando um juiz investiga o caso e descobre que a queixa de abandono não é uma mera desculpa
e vê que o comportamento da parte inocente é respeitável, ele pode seguir a lei de Constantino de
quatro anos ou o ditame de cinco anos nos Digestos sobre divórcio. Essa moderação não parece
absurda; no entanto, não prescrevo um período fixo, mas sugiro que um juiz sábio considere o
que é apropriado por uma questão de exemplo e evite armar armadilhas para a consciência da
parte inocente.

A natureza dos eunucos.


Os indivíduos que não são de forma alguma adequados para a relação conjugal são
chamados respeitosamente de “spadones”, quer tenham essas características devido à natureza ou
tenham sido castrados por meio de cirurgia.
É importante notar que essas pessoas não podem se tornar cônjuges. Quando a impotência
sexual é comprovada, o juiz declara que essas pessoas são livres. Não ocorre divórcio nesses
casos, porque não houve um casamento real, conforme estabelecido em Mateus 19. Em vez
disso, é uma declaração para informar a outras pessoas que essa união não era um casamento, e a
pessoa que ainda possui capacidade física completa pode buscar uma relação conjugal mais feliz
e legítima.
Para determinar a impotência, a lei estabeleceu um período de espera, se houver dúvidas,
para que a separação não ocorra antes de três anos.
Da mesma forma, o juiz faz uma decisão semelhante para aqueles em quem a natureza foi
danificada de tal maneira por feitiços ou venenos que não podem ser curados por meios médicos,
após três anos de tentativas frustradas de tratamento.
Há casos em que a força de algumas mulheres é tão grande que elas conseguem esconder a
impotência de seus maridos. Como um exemplo, o sogro do erudito Simon Grynaeus narrou que
ele se casou com uma viúva virgem que havia sido casada com um homem impotente por onze
anos, e ela nunca revelou isso a ninguém até a morte de seu primeiro marido.

Divórcios por causa de crueldade, envenenamento e tramas estruturadas da vida.


O texto de Mateus 19 aborda apenas a questão do adultério, e algumas pessoas argumentam
que o divórcio não pode ocorrer devido à crueldade e ameaças à vida. No entanto, no Código de
Leis de Teodósio, que acredito ter sido cuidadosamente escrita por considerações piedosas para
restringir divórcios a casos específicos, o divórcio é permitido mesmo nessas situações.
Embora algumas pessoas rejeitem essa lei e afirmem que ela entra em conflito com o
evangelho, elas não entendem corretamente a diferença entre a lei e o evangelho. Quando o
Senhor afirma expressamente que, na política de Moisés, o divórcio era permitido devido à
dureza do coração, ele indica que há um governo para as pessoas justas, que são membros da
igreja e desejam obedecer ao evangelho, e outro governo para os ímpios e obstinados, que se
recusam a seguir as leis.
Portanto, se alguém for um marido que exerce crueldade contra sua esposa, e após ser
advertido pelos pastores, ele continua a agir com fúria, perturba as reuniões da igreja e trata sua
esposa de forma tão cruel que coloca a vida dela em perigo, então ele certamente deve ser
controlado pelas autoridades civis. O dever das autoridades civis não é apenas proteger a vida da
pessoa inocente, mas também considerar sua consciência para que ela não seja quebrada pela dor
e indignação, levando-a eventualmente a abandonar a fé ou a cometer alguma ação injusta. Nesse
caso, em relação a uma pessoa cruel que não faz parte da igreja, as leis de Teodósio podem ser
aplicadas pelo governo civil.
Os governos políticos são ordenados por Deus para honra dos justos e para servir de terror
para os maus. Deus deseja que aqueles cujas ações são justas sejam protegidos e que lhes seja
concedida a paz para a adoração, educação e criação dos filhos. Ele deseja que os ladrões sejam
reprimidos, quer pratiquem roubo em casa ou fora dela. Não faltam pessoas obstinadas e injustas
em governos, exercendo sua crueldade sobre os outros, exatamente como o Senhor menciona em
sua pregação, referindo-se a esses indivíduos como “duros de coração”.

É possível divorciar-se dele por causa de doenças contagiosas e incuráveis, como a lepra?
Respondo claramente e afirmo que nunca se deve realizar divórcios devido a doenças, nem
deve-se abandonar um cônjuge doente. Sempre deve ser mantida a firme e imutável regra: “O
que Deus uniu, o homem não separe”. Portanto, qualquer pessoa viva que, de livre vontade,
inicie um processo de separação, está, sem dúvida, cometendo um pecado terrível, semelhante a
alguém que comete adultério ou abandona o cônjuge, indo contra a ordem divinamente
estabelecida pela voz de Deus e pela lei.
Se uma pessoa saudável iniciar um processo de separação, ela será semelhante a alguém que
comete adultério ou abandono e será culpada de um grande pecado. A adversidade que ocorre
durante a vida, sem culpa, nunca dissolve o vínculo conjugal. Portanto, todas as declarações que
proíbem a separação devem ser consideradas por aqueles que temem a Deus. A Bíblia diz:
“Portanto, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher; e eles serão uma só
carne” (Gênesis 2. 24). Além disso, “O marido deve cumprir os seus deveres conjugais para com
a esposa, e da mesma forma a esposa para com o marido” (1 Coríntios 7. 4). Portanto, é claro que
uma pessoa doente não deve ser abandonada, mas deve receber amor e apoio como se fosse o
próprio corpo do cônjuge.
O casamento é o mais alto grau de amizade, e é extremamente injusto abandonar um amigo
necessitado de ajuda em tempos difíceis, buscando a bondade e a lealdade do amigo. É injusto e
pecaminoso abandonar o cônjuge em tempos de aflição, quando não há culpa envolvida. Alguns
podem argumentar cruelmente que, se alguém contrair uma doença contagiosa como a lepra, o
cônjuge saudável pode buscar o divórcio. Esse argumento é refutado pela clara crueldade. Os
mortos não precisam da ajuda de outras pessoas, mas uma pessoa doente ainda precisa. Portanto,
em termos de deveres de verdadeira amizade, a pessoa doente ainda está viva. É a sua carne e a
lei divina continua sendo aplicável: “Ninguém jamais odiou o seu próprio corpo”[164].
Portanto, uma pessoa saudável deve ser obrigada pelas autoridades a não abandonar uma
pessoa doente e a prestar assistência a esta pessoa. Embora essa opinião possa parecer dura para
alguns, todas as mentes justas entendem que é legítma. Se um marido piedoso precisar de
orientação, ele deve consultar pastores instruídos e respeitáveis que compreendem a doutrina da
igreja. Isso pode evitar que sua consciência fique confusa e que sua fé e devoção sejam
prejudicadas ao buscar aconselhamento sobre a questão.

O casamento de jovens.
É crucial compreender corretamente o antigo direito das promessas de casamento,
conhecidas como “sponsalia”. A antiguidade menciona as promessas de casamento apenas como
aquelas em que são feitos acordos para um casamento futuro, que não é o começo do casamento
atual. Por exemplo, isso ocorre quando um jovem como Otavio faz uma promessa de casamento
com Servília, que ainda é uma criança. Nesse caso, o objetivo é apenas estabelecer, por meio de
palavras, um casamento que ocorrerá algum tempo depois.
As leis antigas afirmam que, de acordo com o desejo das partes envolvidas, as promessas de
casamento podem ser dissolvidas, como quando Otavio não se casou com Servília. Aqui, é
importante observar como a antiguidade se expressou. Tempos posteriores introduziram
ambiguidade: eles mencionam promessas de casamento para o futuro e outras para o presente,
quando o contrato, no qual o casamento é prometido categoricamente, já é o início de um
casamento atual.
É sábio considerar cuidadosamente quando as promessas são feitas para o futuro, e não
julgar isso apenas pelas palavras, mas sim pelas muitas circunstâncias que cercam o acordo e se
as partes envolvidas pretendiam estabelecer algo que não poderia ser mudado posteriormente
devido a uma causa séria, para a qual possivelmente houve uma razão naquela época.
As promessas de casamento para o futuro são todas aquelas em que uma condição honesta é
acrescentada, e a razão para isso deve ser considerada ao fazer o julgamento. Por exemplo,
quando alguém diz: “Vou me casar com você se seus pais concordarem”. Foi mencionado
anteriormente que tais promessas são consideradas nulas se a condição não for cumprida.
Também existem promessas de casamento para o futuro quando os pais ou tutores fazem
uma promessa de casamento entre menores, quando eles estiverem maduros o suficiente, ou
quando os próprios menores, ou outra pessoa cuja idade ainda não é apropriada, fazem uma
promessa de casamento para o futuro. É certo que essas promessas podem ser dissolvidas quando
a vontade dos menores não se concretiza, e nenhuma das partes envolvidas deve ser forçada se
ela mesma não se comprometeu posteriormente quando já estava em idade para casar e podia
tomar sua própria decisão.
Assim como as pessoas muitas vezes abusam de muitos outros bens, a instituição do
casamento também é frequentemente obscurecida por desejos insensatos ou más inclinações.
Muitas vezes, acordos são feitos com base em dinheiro ou interesses, quando, nesse sagrado
compromisso, deve prevalecer o julgamento correto e a mútua benevolência daqueles que estão
unidos. Não é apropriado que os destinos dos filhos sejam vendidos por dinheiro ou outros
ganhos mesquinhos. Deus pune claramente essa corrupção da ordem divina com punições
evidentes. Portanto, pais dignos, ao considerar a ordem divina, devem agir de acordo com o bem-
estar de seus filhos e filhas e não devem forçá-los a casamentos que vão contra sua inclinação
natural. Grandes razões devem ser removidas nesse assunto. Quando não há amor mútuo entre os
cônjuges, a discórdia reina nas mentes, interrompe a invocação de Deus, perturba a vida
doméstica e leva a muitos pecados. Às vezes, quando as vontades estão divididas, ocorrem
adultérios e punições, e muitos caem em novos crimes e tragédias terríveis.
Os pais, que podem de alguma forma compreender essas más consequências, devem
considerar e temer esses males e evitar que ocorram com seus filhos e filhas. Eles devem recorrer
a Deus com ferventes orações para que Ele os guie. Além disso, devem tomar cuidado para não
tomar decisões tolas ou ímpias.
Em muitas deliberações, os pais são negligentes demais e fúteis quando se trata do
casamento de seus filhos. Isso leva a calamidades terríveis e faz com que suas famílias não sejam
a verdadeira igreja de Deus, como deveriam ser, mas sim lugares de corrupção. Muitas pessoas
aflitas em meio a essas calamidades caem na indignação contra Deus, na desesperança e na
destruição eterna.
Portanto, eu oro ao Deus eterno, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Criador da raça
humana e o guardião da sociedade honesta, para que Ele mesmo nos governe e faça com que
nossos casamentos e nossas famílias sejam verdadeiramente parte da igreja doméstica. Que
possamos invocá-Lo corretamente e obedecer a Ele ao preservar a ordem que Ele estabeleceu.
Que Ele não permita que as discórdias domésticas atrapalhem nossa invocação e outros deveres
necessários. Amém.

O dever dos magistrados em manter as leis do casamento.


É absolutamente certo que o governo salutar é uma obra de Deus. É evidente que este
ordenamento foi divinamente instituído na raça humana para que haja autoridades para governar
a multidão. Deus atribuiu a esses magistrados quatro deveres principais: primeiro, que eles
proclamem a voz da lei divina na manutenção da disciplina, pois a lei divina deve ser a primeira
e imutável norma de vida; segundo, que sejam vigilantes guardiões da lei divina, que, com
severidade de punições, repreendam e castiguem os desobedientes e protejam os obedientes.
Deus estabeleceu essa ordem dessa maneira, e é evidente que as leis são desrespeitadas onde não
há exemplos de punições; isso é elogiado corretamente por uma declaração de Ésquines citada
por Demóstenes: “Não há benefício para o Estado quando não há nervos para punir os infratores
da lei”[165]. O terceiro dever é que os magistrados possam acrescentar algumas leis humanas às
divinas, que não entrem em conflito com as divinas, mas que sejam meios para a preservação
mais cuidadosa das leis divinas; o quarto é que eles protejam essas leis com a severidade das
punições.
Esses deveres dos magistrados devem ser considerados na defesa do casamento. Eles devem
saber que Deus ordena severamente que as leis do casamento sejam preservadas e que punam o
adultério, as paixões lascivas e impuras, e removam do meio deles essas abominações terríveis
que provocam a ira de Deus e poluem a raça humana com confusões lascivas. Pois é certo que
Deus fica terrivelmente irado tanto com essas confusões lascivas quanto com a negligência dos
governantes que não as punem e não removem os culpados do meio deles. Devido a esses
crimes, muitas punições públicas, guerras, devastação, dispersão de pessoas e outras grandes
calamidades ocorrem na raça humana, como mostram os exemplos de Sodoma, dos cananeus, da
tribo de Benjamim, do exílio de Davi, da queda de Troia e inúmeros outros. Portanto, a voz
divina adverte em Levítico 18. 28 sobre incesto: “Cuidado para que a terra não lhes vomite
também, como vomitou os cananeus”, por fazerem semelhante; e especificamente ordena aos
governantes que removam os culpados, dizendo: “Toda pessoa que fizer alguma dessas
abominações seja exterminada deste povo”.
Esses mandamentos foram frequentemente repetidos, como no caso do adultério, que é
mencionado em Deuteronômio 22. 22: “Se um homem for apanhado deitado com a mulher de
outro, ambos morrerão, o homem que se deitou com a mulher e a mulher; assim, exterminarão o
mal do meio de Israel”. Foi concedido que em muitos lugares os magistrados são negligentes
nessa questão crucial, e sua negligência provoca ainda mais a ira de Deus. Assim, as punições se
acumulam na raça humana, como se vê na história da tribo de Benjamim, que quase foi
completamente destruída porque os anciãos não puniram o estupro da concubina do levita.
É absolutamente certo que Deus pune todas as paixões lascivas, mesmo quando os
magistrados são negligentes, porque a castidade e a justiça de Deus permanecem imutáveis, e Ele
sempre protege essa regra. Deus pune os adúlteros e os fornicadores. Embora Deus, devido a Seu
Filho, amenize as punições para os convertidos, como no caso de Davi, a quem Ele não permitiu
ser completamente destruído, e não acendeu toda a Sua ira, como está escrito nos Salmos, ainda
assim, a magnitude das punições deve ser considerada. A família é poluída pela mistura
incestuosa, os filhos lutam entre si, o pai é exilado, e uma revolta ocorre, resultando na morte de
muitos cidadãos. As mulheres queridas por Deus são poluídas pelo crime dos filhos. Esses males
eram muito mais graves para Davi do que a morte de seu próprio corpo. Ambos mostram que
Deus realmente Se irrita com os pecados e os pune, mas, ao mesmo tempo, Ele livra da
condenação eterna aqueles que recorrem ao Filho Mediador, em quem a maior punição foi
infligida, o preço pago por nós.
Essa doutrina, tanto sobre as punições quanto sobre a conversão, deve ser considerada por
todos. Os magistrados devem ser encorajados e exortados a lembrar do mandamento divino de
seu dever, a pensar que Deus é casto e justo, e que foram colocados nessa posição divina para
serem a imagem de Deus, ou seja, para serem castos e justos, e para preservar a castidade e a
justiça no povo.
Esses deveres são agradáveis a Deus e benéficos para os governantes e o povo.
Em muitas regiões, os governantes políticos são muitas vezes negligentes na defesa da
castidade, pois em grande parte deixam essa responsabilidade para o tribunal dos bispos. No
entanto, quando certas práticas contrárias à norma estabelecida por Deus ocorrem lá, as leis
desses próprios governantes muitas vezes impedem a imposição de penas justas, uma vez que
não têm o poder da espada. Além disso, como os próprios juízes muitas vezes estão manchados
por desejos lascivos, eles mostram menos indignação contra crimes semelhantes, como disse
Aristóteles, citando Eurípides: “Os depravados não repreendem os depravados, e o mal se une ao
mal”[166]. Às vezes, eles aceitam subornos de mulheres miseráveis, e Deus é grandemente
zombado em tais julgamentos.
Portanto, os tribunais devem ser adequadamente estabelecidos para lidar com questões
matrimoniais. A autoridade política deve incluir indivíduos instruídos e honestos, escolhidos de
todo o corpo da igreja, e eles devem proferir decisões após investigações justas e bem
fundamentadas. Ao impor punições, eles devem agir como ministros de Deus, removendo da
vida de todos aqueles que se contaminaram com práticas contrárias à natureza, como incesto,
adultério, rapto, deserção, adultérios e deserções. Isso evitará que Deus destrua cidades e nações
devido a esses mesmos pecados e à negligência dos governantes.
Governantes íntegros também devem demonstrar amor pela castidade na defesa do
matrimônio. Eles devem abolir leis ímpias e diabólicas dos bispos sobre o celibato do clero e
permitir casamentos piedosos para todos aqueles que são adequados a esse estilo de vida, de
acordo com a lei divina: “Cada um tenha a sua própria esposa para evitar a fornicação”.
Os governantes, sendo a imagem e ministros de Deus, devem amar a castidade, pois sabem
que Deus é puro e exige rigorosamente a manutenção da ordem da castidade. Eles não devem
agir como a imagem e ministros do diabo, que incita miseráveis seres humanos a se
contaminarem com a confusão dos desejos carnais, a aumentar a ira de Deus e a mergulhar essa
miserável criatura em uma maior depravação, levando-a à destruição eterna. Todos aqueles que
de alguma forma promovem a lascívia, seja através da defesa da lei do celibato pontifício ou
negligenciando as punições, estão ajudando essas terríveis fúrias do diabo.
Na presente vida, a visibilidade e a magnitude desses crimes horrendos ainda não são
completamente evidentes. No entanto, esses graves males serão julgados no juízo final, quando
Deus mostrará a todos os anjos e seres humanos a feiura do pecado e a malignidade dos
demônios. Mesmo assim, nesta vida, os governantes honestos e piedosos devem considerar a
vontade de Deus sobre esse assunto e governar de acordo com a lei divina. Eles devem fazer o
possível para evitar o acúmulo de pecados e punições, conforme expresso por Isaías: “Ai dos que
escrevem leis iníquas!”.
Eu oro, através do Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado por
nós, verdadeiramente amante da castidade e do matrimônio casto, para que Ele incline os
corações de todos aqueles que O invocam para a castidade. Peço também que Ele defenda as leis
do matrimônio e repreenda o diabo, que tenta incitar miseráveis seres humanos ao pecado de
várias maneiras, levando-os à poluição e à perdição. A fraqueza da natureza humana aumenta
com o envelhecimento deste mundo, e a raiva nos demônios também cresce, pois eles sabem que
o julgamento final está próximo, no qual sua vileza será claramente revelada a todos os anjos e
seres humanos. Portanto, eu oro a Ti, Filho de Deus, Senhor Jesus Cristo, crucificado por nós e
ressuscitado, para que Tu nos conduzas, à medida que envelhecemos, a nossa juventude e nossas
famílias. Oro para que, pelo Espírito Santo, Tu inclines nossos corações à castidade e à
verdadeira invocação do Pai eterno. Amém.
Apêndice II. Definições de Termos
DEFINIÇÕES DE MUITOS TERMOS USADOS NA IGREJA, fornecidas por Philipp
Melanchthon em Torgau e Wittenberg, nos anos de 1552 e 1553.
DEUS é uma essência espiritual, inteligente, eterna, verdadeira, boa, justa, misericordiosa,
pura, totalmente livre, de poder e sabedoria infinitos, distinta de todos os corpos e criaturas do
mundo. O Pai eterno gerou o Filho à Sua imagem desde a eternidade, e o Filho, sendo a imagem
do Pai, é igualmente eterno. O Espírito Santo procede do Pai e do Filho, como a divindade revela
claramente pela Palavra e testemunhos divinos. O Pai eterno, junto com o Filho e o Espírito
Santo, criou e sustenta o céu, a terra e todas as criaturas. Ele está presente em todas as criaturas
para mantê-las e, no gênero humano criado à Sua imagem, une a Si mesmo através de uma
obediência confiável para formar Sua Igreja. Assim, esta única e verdadeira divindade deve ser
reconhecida e adorada de acordo com a palavra divinamente transmitida e todos os cultos que
fingem outros deuses devem ser condenados. Esta verdadeira divindade será celebrada na vida
eterna e será o juiz dos bons e dos maus.
Esta definição de Deus é conhecida apenas na Igreja, onde as pessoas são reveladas e
distintas por meio de testemunhos específicos. Isso deve ser considerado diariamente na
invocação e nas evidências fornecidas no batismo de Cristo, nosso batismo e em passagens como
o primeiro capítulo de Gênesis e o primeiro capítulo de João, entre outros. Deus deseja que a
distinção entre as Pessoas seja de alguma forma reconhecida, porque Ele quer que saibamos que
o Filho é o Mediador e a vítima, e não outra Pessoa.
Os pagãos têm uma definição de Deus sem o conhecimento das Pessoas. A natureza humana
possui uma inata compreensão da Lei, que é um testemunho claro e imutável, mostrando quem é
Deus, como Ele é e que Ele é um Juiz. Deus quer que seja conhecido através de muitos vestígios,
como a ordem do mundo físico, os movimentos celestiais, a preservação constante das espécies e
até a própria distinção entre o que é certo e errado na mente humana. Portanto, Platão definiu
Deus como “uma mente eterna, a causa do bem na natureza”. No entanto, ele não mencionou a
distinção das Pessoas. Portanto, devemos olhar e manter a definição revelada na Igreja conforme
mencionada acima quando invocamos a Deus.
PESSOA é uma substância individual, inteligente e intransferível, não apoiada em outra
natureza. A Igreja utiliza esse termo e faz uso da palavra “pessoa” dessa maneira. Os gregos
usaram os termos “hypostasis” e “ousia,” que significam “subsistência”. Essa definição pode ser
explicada de várias maneiras. O corpo humano, por si só, não é considerado uma pessoa, no
contexto em que estamos discutindo, não apenas porque não é uma entidade inteligente, mas
também porque é algo sustentado por outro. Enquanto a alma está presente, o corpo vive, mas
quando a alma parte, o corpo se dissolve. Assim, no caso de Cristo, nascido da Virgem Maria, a
natureza humana foi extraordinariamente unida à “logos” (a Palavra de Deus) de tal maneira que
teria sido aniquilada se não fosse sustentada pelo divino. Essa consideração ampla contém uma
doutrina de grande importância. Toda a humanidade teria sido extinta se o Filho de Deus,
coeterno com o Pai eterno, não tivesse assumido a substância desta natureza. Portanto, Ele nos
preserva como membros de Sua própria natureza, tendo em vista a natureza assumida, como é
dito em Gênesis 2. 23: “Carne de Minha carne, osso de Meus ossos”.
PAI ETERNO é a primeira pessoa da divindade, não gerada, não criada, não procedente de
outra natureza, que gerou a partir da eternidade o Filho, Sua própria imagem, e, juntamente com
o Filho e o Espírito Santo, criou todas as criaturas, mantendo suas substâncias.
FILHO ETERNO é a segunda pessoa da divindade, não criada a partir do nada, mas
eternamente gerada pelo Pai, de Sua própria substância, sendo “homoousios” (όμοούσιος, de
uma substância comum) com o Pai. Ele é a imagem substancial e completa do Pai eterno, gerado
pelo Pai desde a eternidade, e revelado a nós como o “Logos” e a Pessoa através da qual o Pai
emite Seu decreto e todo o plano da criação e redenção da humanidade. Ele é enviado para
manifestar imediatamente o Evangelho, assumir a natureza humana, e servir como o Mediador,
Redentor e Salvador, reunindo a Igreja em toda a humanidade por meio da pregação do
Evangelho e ressuscitando-a para a vida eterna.
ESPÍRITO SANTO é a terceira pessoa da divindade, eternamente procedente do Pai e do
Filho e igualmente “homoousios” (όμοούσιος) com eles. Ele é o amor e a alegria substanciais e é
enviado pelo Evangelho para entrar nos corações dos crentes, santificando-os. Sua ação inclui
iluminar suas mentes para entender a doutrina, fortalecer a fé, gerar movimentos congruentes
com Deus e inspirar orações e alegria em Deus.
LEI DE DEUS, também chamada de “Lei Moral”, é a sabedoria eterna e imutável de Deus,
a norma de justiça em Sua vontade, que discerne entre o certo e o errado. Esta lei foi revelada à
criatura racional na criação e, subsequentemente, foi frequentemente confirmada e sancionada
pela voz divina na Igreja. Ela revela a natureza e caráter de Deus, Sua posição como juiz e obriga
todas as criaturas racionais a se conformarem a essa norma de Deus. Aqueles que não se
conformam a essa norma de Deus são condenados, a menos que haja reconciliação através do
Mediador. Isso é expresso nas Escrituras, por exemplo: “Maldito aquele que não confirmar as
palavras desta lei, não as cumprindo” (Deuteronômio 27. 26) e “Tu não és um Deus que tenha
prazer na iniquidade” (Salmo 5. 4).
PECADO refere-se a qualquer coisa que esteja em conflito com a Lei de Deus. É um
defeito, inclinação ou ação que está em oposição à lei de Deus e torna a criatura sujeita à ira
eterna, a menos que haja reconciliação através do Mediador.
LIVRE ARBÍTRIO, ou a liberdade da vontade em Deus, é a capacidade que Deus tem, em
Sua retidão, de criar coisas, agir e governar o mundo de acordo com Sua sabedoria, sem qualquer
compulsão ou necessidade, desde que isso esteja de acordo com Sua retidão.
LIBERDADE DA VONTADE HUMANA antes da queda é a capacidade que Adão tinha
de permanecer na retidão em que foi criado e de obedecer a Deus sem qualquer compulsão.
LIBERDADE DA VONTADE HUMANA após a queda, mesmo naqueles que não foram
regenerados, é a capacidade de dirigir as ações externas de acordo com a Lei de Deus. No
entanto, essa liberdade não é capaz de remover dúvidas mentais ou inclinações viciosas do
coração sem a luz do Evangelho e o Espírito Santo. Quando alguém é atraído pelo Espírito
Santo, essa liberdade pode cooperar com ou resistir a essa atração. A verdadeira liberdade ocorre
quando um coração regenerado é governado pelo Espírito Santo, permitindo que a pessoa
obedeça, retenha ou resista a pensamentos e movimentos do coração que são agradáveis a Deus,
enquanto rejeita os que não o são. Isso é uma verdadeira liberdade em que uma pessoa
regenerada espontaneamente obedece à vontade de Deus, mas também pode, sem coação, se
desviar da vontade de Deus.
EVANGELHO é a pregação do arrependimento e a promessa divinamente revelada na qual
Deus declara que, gratuitamente e não com base em nossos méritos ou dignidade, mas por causa
da obediência do Filho, Ele certamente perdoará os pecados daqueles que creem no Filho,
imputando-lhes justiça e reconciliação. Através do Evangelho, o Filho de Deus consola e vivifica
os corações dos crentes, libertando-os da morte eterna e tornando-os templos de Deus,
capacitados pelo Espírito Santo. O Espírito Santo os santifica, incita movimentos semelhantes a
Ele próprio e concede herança de vida eterna aos crentes, para que eles possam receber
gratuitamente o perdão dos pecados, a justiça imputada, a reconciliação e a herança da vida
eterna, tudo por causa d'Ele.
VIRTUDE na natureza íntegra é a verdadeira conformidade dos movimentos do coração e
de todas as faculdades com Deus, conforme Ele se revela na Lei, e está relacionada
principalmente a dar a Deus a devida obediência e glorificá-Lo. Ela é, na verdade, uma
conformidade efetuada por Deus quando Ele está presente em todas as coisas, derramando Sua
luz sobre nós, e isso é verdadeiramente chamado de Virtude. Para pessoas que têm uma natureza
corrompida, mesmo que sejam ajudadas por nobres intenções, como no caso de heróis como
Cipião, é apenas uma sombra fraca da virtude que esconde uma deformidade externa. Portanto, a
virtude ou disciplina é a governança racional da locomotiva de acordo com a Lei de Deus, que é
mais firme em algumas pessoas do que em outras. A virtude é mais sólida em Cipião do que em
Alexandre, embora ambos mostrem impulsos heroicos.
JUSTIÇA UNIVERSAL é a obediência a todas as leis, e é chamada assim quando alguém é
considerado justo por cumprir todas as leis, como Aristides[167]. Frequentemente, as Escrituras
falam dessa justiça da lei quando querem se referir a uma obediência universal.
JUSTIÇA PARTICULAR é a virtude que dá a cada um o que lhe é devido.
FÉ é concordar com cada palavra de Deus transmitida a nós e é a aceitação dessa promessa
de graça por causa do Filho de Deus, que inclui a compreensão da promessa de perdão dos
pecados e reconciliação. É a confiança que nos faz descansar em Deus por meio do Mediador. É
a confiança que nos eleva em verdadeiros temores, nos faz experimentar a vida e a alegria em
Deus, nos leva a nos aproximarmos de Deus, a invocá-Lo reconhecendo Sua misericórdia e Sua
presença, clamando “Aba, Pai”. Essa é a verdadeira definição da fé sobre a qual Paulo fala
quando diz que somos justificados pela fé. Paulo inclui na fé a apreensão de conhecimento e
consentimento, bem como a confiança no coração e na vontade. Deve-se notar que o
conhecimento apreende, enquanto a fé é o movimento da vontade em que nos rendemos ao
objeto apreendido. Os antigos diziam que a fé era uma virtude apreensiva, pois ela forma
imagens enquanto contempla o objeto. No entanto, outra definição de fé é a que se refere apenas
ao conhecimento da história, como a que os ímpios têm. Essa fé consiste em conhecer a história
e concordar com ela. Ela é imperfeita porque não confirma a promessa divina que se aplica a
você. Os demônios e Judas acreditavam que a promessa de reconciliação era oferecida a outros,
mas não a eles próprios. Portanto, eles não creem em todos os artigos da fé, pois rejeitam o artigo
“Creio na remissão dos pecados”, isto é, “Creio que essa promessa também se aplica a mim”.
AMOR (CARIDADE) é a obediência a todos os mandamentos de Deus, feita com fé e
confiança na misericórdia divina por meio do Mediador prometido, e é acompanhada de alegria
em Deus. Como 1 João 5. 3 diz: “Pois este é o amor a Deus: que obedeçamos aos seus
mandamentos”. Também é apropriado aplicar aqui o ditado: “Deus é amor”, ou seja, Deus é o ser
supremamente amoroso, ordenando, por Sua sabedoria, um certo relacionamento conosco e, por
meio desse relacionamento, produzindo em nós o amor e a ordem que são semelhantes a Ele. No
entanto, é importante fazer uma distinção entre o Criador, Deus, e as criaturas, a fim de
compreender Deus como a causa eficiente da sabedoria e do amor, que são como a luz criada e
acesa por Deus.
ESPERANÇA é a expectativa certa da vida eterna, que é dada gratuitamente por meio do
Mediador, e é a expectativa de alívio das aflições nesta vida, de acordo com o conselho de Deus.
É necessário observar a diferença entre a fé e a esperança. A fé reconhece, deseja e aceita o
perdão e a reconciliação na presente vida, à medida que os corações são vivificados pelo Filho de
Deus em temores que são contemplados pela fé. A esperança é o desejo de uma libertação futura
que ainda não chegou, aceitando o bem que será concedido no futuro. A vontade não se contenta
a menos que algum bem, seja ele presente ou futuro, seja revelado a ela. Costuma-se mencionar
essas três virtudes teológicas: fé, esperança e amor. No entanto, há muitas outras virtudes
necessárias em cada pessoa, mas que podem ser relacionadas a essas três.
PACIÊNCIA é o desejo de obedecer a Deus ao suportar adversidades, que Ele manda
suportar, sem agir contra os Seus mandamentos por causa da dor. Isso implica não desistir de
Deus, não cair em desespero ou ódio por causa da dor, não ferir injustamente os outros por causa
da dor, mas, ao mesmo tempo, manter a fé e a esperança na ajuda divina na adversidade. Na fé e
na esperança, a pessoa sente alívio da dor, como Paulo disse: “A paz de Deus governará os seus
corações” (Filipenses 4. 7). E Isaías também disse: “Na tranquilidade e na esperança estará o seu
poder” (Isaías 30. 15).
GLÓRIA é a aprovação da consciência que julga corretamente, assim como a aprovação dos
julgamentos justos dos outros. A respeito dessa glória, 2 Coríntios 1. 12 diz: “Pois esta é a nossa
glória: o testemunho da nossa consciência”. E Gálatas 6. 4 afirma: “Cada um examine o seu
próprio trabalho, e então poderá orgulhar-se do que fez, sem compará-lo com ninguém”. Isso
significa que cada pessoa deve fazer corretamente as tarefas de sua vocação e, ao fazê-lo, terá
glória em si mesmo, ou seja, aprovação verdadeira de sua consciência não ferida. Essa aprovação
não é baseada em aplausos vazios dos que estão errados ou em detratores. Assim, uma pessoa
que age corretamente e que não é popular na multidão ainda pode ter a aprovação da consciência.
Essa verdadeira aprovação da consciência é algo bom e desejável, pois é baseada na verdade
e não em falsidade. Deus deseja que sejamos verdadeiros em nossos julgamentos, como quando
José se recusou a tocar na esposa de seu senhor. Um comandante como Cipião deve discernir
entre o que é certo e errado e repreender atos errados. Quando alguém age incorretamente, a
reprovação de sua ação é natural e acompanhada de dor no coração. Por outro lado, quando age
corretamente, reconhece que sua ação foi correta e a aprova. Portanto, o resultado de um
julgamento correto é a aprovação, acompanhada de alegria no coração. Essa é uma ordem
divinamente estabelecida na sabedoria de Deus para que a humanidade possa discernir entre o
que é certo e errado, entender Deus e as Escrituras, reconhecer os pecados e orientar a conduta.
Portanto, Salomão diz: “Melhor é ter bom nome do que muitas riquezas” (Provérbios 22. 1).
Gloria, de acordo com essa definição verdadeira, é algo bom e desejável. No entanto, é
importante observar que a definição menciona um “julgamento correto”. Isso envolve a
compreensão da diferença entre o certo e o errado, a capacidade de reconhecer a Deus acima de
todas as outras coisas e a capacidade de avaliar ações corretas ou incorretas. Quando alguém age
incorretamente e se autoatribui méritos que não possui, isso não é um julgamento correto.
Portanto, o orgulho de Alexandre, que se considerava vitorioso apenas devido às suas próprias
virtudes, não é um julgamento correto. Além disso, a vaidade de Trasão, que mente sobre si
mesmo, também não é um julgamento correto.
Em contraste, José fez um julgamento correto ao recusar a esposa de seu senhor,
reconhecendo que Deus o ajudou a manter sua castidade. Da mesma forma, Jó fez um
julgamento correto quando afirmou que era justo diante de Deus, mas reconheceu que não era
justo por suas próprias virtudes, mas pela graça do Redentor.
Portanto, a glória, como definida, é algo bom e desejável, desde que esteja em conformidade
com um julgamento correto, que é baseado na verdade e não na falsidade. E, finalmente, a paz do
coração segue naturalmente essa aprovação da consciência, como uma ordem divina.
TEMOR, em termos gerais, é uma emoção percebida no coração que envolve o medo de um
mal iminente, acompanhado de sofrimento emocional. Esta emoção está assim disposta de modo
que pode ser subjugada pela alegria ou destruída pela tristeza. Deus quis, por meio dessas
diversas emoções, revelar o Seu julgamento à criatura racional. Isso visa manter os obedientes e
destruir os rebeldes, com as próprias emoções atuando como executores desse julgamento.
Afinal, a lei sem execução seria como um som vazio. Primeiramente, quanto ao medo, é
importante notar que o termo latino “timor” é usado para indicar não um pensamento ocioso, mas
emoções intensas que são percebidas no coração.
TEMOR SERVIL é o medo que ocorre quando alguém sente a ira de Deus e o castigo, mas
sem fé. Isso leva a um terrível sofrimento emocional, acompanhado pela fuga de Deus, como
ocorreu com Saul, Judas e outros.
TEMOR FILIAL nos seres humanos nesta vida é o medo acompanhado pela fé. Ou seja, é
uma tristeza genuína que surge da consciência da misericórdia de Deus, prometida por meio de
Seu Filho, e da verdadeira invocação a Deus. Quando isso acontece, o coração se submete a
Deus com verdadeira reverência e não deseja ofendê-Lo. O livro de Provérbios (1. 7) declara que
“o temor do Senhor é o princípio da sabedoria”, e o livro de Eclesiastes (Eclesiastes 12. 13) nos
instrui a “temer a Deus e obedecer aos Seus mandamentos”. Essa é a regra para todas as pessoas.
Em muitos lugares, a palavra latina “timor” significa essencialmente a mesma coisa que o culto
verdadeiro e não simulado a Deus. Nesse contexto, “culto” se refere a uma obediência universal,
que é a reverência a Deus. É importante entender essa definição simples do termo, pois ela é
necessária para explicar muitos outros ditos. Em uma epístola de João (1 João 4. 18), é
mencionado que o “amor perfeito lança fora o medo”. Isso se refere ao medo servil, no qual o
coração foge de Deus com um medo terrível. No entanto, quando a fé e o amor entram em cena,
ou seja, quando há alegria em Deus, nos aproximamos d'Ele e não fugimos. Esse medo servil é
então superado, e em seu lugar surge uma verdadeira reverência ao se submeter a Deus.
CONSCIÊNCIA é como um raciocínio prático que ocorre na mente, onde a premissa
principal é a Lei de Deus ou qualquer instrução divina que nos dá orientações. A premissa
secundária e a conclusão desse raciocínio são a aplicação que aprova quando fazemos o que é
certo ou condena quando cometemos uma transgressão. Essa aprovação é seguida por uma
sensação de alegria no coração, enquanto a condenação causa tristeza, seguindo uma ordem
estabelecida por Deus na natureza. Deus deseja que, nas criaturas racionais, esse conhecimento
de Seu julgamento e execução funcione como um testemunho de Sua divindade, de Sua
autoridade para estabelecer o que é justo e proibir o que é injusto, além de Sua capacidade de
punir. Deus usa esse processo de julgamento em nós quando nos corrige, e com o tempo, Ele
pode aumentar o temor em relação a esses julgamentos, como mencionado em Deuteronômio 4.
24: “O Senhor, seu Deus, é um fogo consumidor”. Paulo também faz referência a isso em
Romanos 7. 11, ao falar sobre “a Lei que trouxe a morte”. No caso de Davi, depois de seu
pecado, ele sentiu imediatamente a condenação e alguma dor, mas ainda era fraco. No entanto,
quando Deus enviou o profeta Natã para repreendê-lo, Ele intensificou essa dor, ferindo o
coração de Davi com um senso de Sua ira. Deus deseja que o coração humano esteja alinhado
com a Lei, mesmo antes de pecar, mas muitas vezes a resistência persiste. Deus deixa esse
julgamento em nós após o pecado porque deseja ser reconhecido como Deus que dá
mandamentos justos, proíbe o que é injusto e pune as transgressões. Devemos refletir
frequentemente sobre esse propósito de Deus e o testemunho Dele em nossas consciências. O
apóstolo Paulo alude a esse julgamento em Colossenses 2. 14, onde ele menciona a “escrita do
decreto que era contra nós” - esse é o processo de pensamento em que a Lei e qualquer instrução
divina que nos dá orientações representam a premissa principal, a aplicação em relação a nós é a
premissa secundária, e a conclusão, pela qual somos condenados, é o impacto horrível em nossa
própria consciência. Muitas passagens das Escrituras corroboram esse entendimento, e Ovídio
também faz referência a isso quando afirma:
“A consciência de cada um concebe pensamentos em seu interior,
E, em nossos corações, nutre esperanças e temores de acordo com nossos méritos.”
LIBERDADE EM DEUS é a capacidade de criar e não criar coisas. Sendo Ele
imutavelmente bom, essa liberdade permite dar coisas boas ou não dá-las, preservar a natureza
ou não preservá-la, agir através das criaturas de acordo com a ordem da natureza que Ele
instituiu ou modificar essa ordem e, em alguns casos, agir diretamente sem o uso de criaturas.
Nesse sentido, Deus é supremo sobre a natureza, agindo como o Ser mais livre, como
proclamado no Salmo 113. 3: “Ele faz tudo o que Lhe apraz”.
VERDADEIRA VIRTUDE em anjos e humanos é um movimento divino que está em
conformidade com a lei de Deus. Esse movimento é acendido por Deus, como a castidade em
José e a coragem em Davi. Isso está de acordo com as palavras de Filipenses 2. 13: “porque é
Deus quem produz em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a Sua boa vontade”.
E também 1 Coríntios 12. 4: “Há diferentes tipos de dons, mas o Espírito é o mesmo”.
OBRAS DA LEI são os pensamentos humanos e os comandos da vontade, guiados por um
conhecimento que orienta as ações externas para que estejam de acordo com a Lei de Deus. Os
filósofos chamam esse esforço humano de virtude.
JUSTIÇA UNIVERSAL significa a mesma coisa que virtude, e é a conformidade com toda
a Lei, ou seja, é estar em conformidade com Deus. Dizer que alguém está em conformidade com
Deus é o mesmo que dizer que está em conformidade com a Lei de Deus, pois Deus é descrito de
acordo com a Lei.
JUSTIÇA PARTICULAR é a virtude que concede a cada um o que lhe é devido. Platão
adotou essa definição de Simônides. Clemente de Alexandria fornece uma definição que
combina os conceitos de justiça universal e particular: “A justiça é a harmonia da alma com
igualdade”. É evidente que os autores desejavam abranger, no primeiro membro da definição, os
movimentos inspirados pelo Espírito Santo em relação a Deus e, em seguida, os deveres em
relação ao próximo. A igualdade referida aqui deve ser entendida como uma igualdade ordenada.
AVISOS são ações da mente e do cérebro pelas quais imagens são formadas, que são a luz
pela qual as coisas são mostradas, como quando Júlio pensa em Pompeu ausente, ele forma a
imagem dele com esse mesmo pensamento. Que isso acontece, sabemos que é um fato; como
acontece, ainda não sabemos, mas aprenderemos na eterna academia. Enquanto isso, devemos
considerar esta maravilhosa obra de Deus em nós e entender que essa formação de imagens nos
foi dada para que de alguma forma possamos pensar que o Filho de Deus é a imagem gerada na
mente do Pai eterno, como afirma a Epístola aos Hebreus (1. 3): “O Filho é a expressão exata da
essência d'Ele”. Além disso, os avisos se tornam mais notáveis quando Deus próprio acende essa
luz, ou seja, quando o Filho de Deus traz consolo às nossas mentes e mostra o Pai por meio da
Palavra do Evangelho, como ocorre no verdadeiro consolo. É assim que está escrito na Epístola
aos Hebreus (4. 12): “A palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada
de dois gumes; ela penetra até a divisão da alma e do espírito, das articulações e medulas, e é
apta para discernir os pensamentos e intenções do coração, etc.”. E quando o Filho diz conforto
às mentes, Ele também derrama o Espírito Santo nos corações, que acende novos movimentos,
semelhantes a Ele, e mistura-se com os espíritos vivos, tornando o aviso mais notável com
movimentos congruentes do coração. Portanto, a sabedoria, em termos gerais, é um aviso
verdadeiro e notável, reconhecendo as coisas que Deus deseja serem vistas e consideradas, como
está escrito em Deuteronômio 4. 6: “Esta é a sua sabedoria e entendimento perante os povos, que
ouvindo todos estes estatutos, dirão: Este grande povo é na verdade uma gente sábia e
entendida”.
FÉ é concordar com toda a palavra de Deus que nos foi transmitida e também com a
promessa da graça. É a confiança no coração, que se submete a Deus por meio do Mediador,
acesa pela Palavra de Deus e pelo Espírito Santo. Com a fé, o coração, reconhecendo a ira de
Deus e a misericórdia de Deus, revive, se alegra em Deus, se aproxima d'Ele e O invoca como
“Aba, Pai”, como está escrito em Romanos 5. 1: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz
com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo”. E também Romanos 8. 15: “Pois não
receberam um espírito de escravidão, para viverem, outra vez, atemorizados, mas receberam um
Espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai”.
ESPERANÇA é a expectativa certa da vida eterna, que é dada gratuitamente por meio do
Mediador. É a expectativa de mitigação ou libertação das aflições presentes, de acordo com o
conselho de Deus, conforme 1 Pedro 1. 13: “Portanto, estejam com a mente preparada, sejam
sóbrios e esperem inteiramente na graça que lhes está sendo trazida na revelação de Jesus
Cristo”. O “esperem inteiramente” aqui significa sem fingimento.
AMOR A DEUS é uma obediência universal a todos os mandamentos por amor a Deus e
está ligada a uma verdadeira alegria em Deus, como afirma a passagem 1 João 5. 3: “Pois este é
o amor a Deus: que obedeçamos aos Seus mandamentos”.
PACIÊNCIA FILOSÓFICA é seguir a razão ao suportar adversidades que a razão
aconselha a suportar, sem ser quebrada pela dor, a fim de não agirmos contrariamente a alguma
virtude, como fez Catão[168] ao se suicidar em oposição à Justiça.
PACIÊNCIA CRISTÃ é obedecer a Deus ao suportar adversidades que Deus nos ordena
suportar, sem sermos quebrados pela dor, para que não ajamos contra algum mandamento de
Deus. Envolve aliviar a dor através do reconhecimento da vontade de Deus e do Espírito Santo,
que é a alegria em Deus, mantendo a esperança de libertação ou alívio, e pedindo a Deus por
libertação e alívio, conforme declarado nos Salmos 37. 7: “Confie no Senhor e faça o bem”. E
também em Salmos 37. 34: “Espere no Senhor e siga o Seu caminho”.
CULTO A DEUS é uma obra ordenada por Deus, realizada com fé no reconhecimento do
Filho de Deus e na confiança n'Ele, cujo objetivo principal, direto ou indireto, é honrar a Deus,
ou seja, através dessa obediência, testemunhar que Ele é verdadeiramente Deus, a quem
cultuamos dessa maneira.
TEMOR À DEUS é o verdadeiro temor que surge do reconhecimento da ira de Deus contra
o pecado. Torna-se um temor filial quando a fé entra em cena, elevando o coração com conforto
e gerando um tipo de temor que é desprovido de ódio a Deus. Este temor deseja reverenciar Deus
e obedecer a Ele com respeito, buscando não ofendê-Lo. Dessa forma, o temor de Deus abrange
todo o culto, como mencionado no Salmo 127: “Bem-aventurados todos os que temem o
Senhor”.
TIMOR SERVIL é o temor e a ansiedade sem fé, caracterizado por um terror e uma fuga
terrível, como vemos no exemplo de Saul e Judas. Sobre esse tipo de temor, diz-se que o “amor
perfeito lança fora o temor”, ou seja, um amor genuíno e maduro elimina o medo.
JURAMENTO é uma invocação a Deus na qual pedimos que Ele seja testemunha de nossas
intenções, afirmando que não pretendemos enganar as pessoas sobre o assunto em questão. Ao
mesmo tempo, pedimos que Deus seja o árbitro caso venhamos a falhar, sendo que essa
invocação divina estabelece um elo de verdade entre as pessoas. Deus Se compromete a
recompensar aqueles que cumprem a promessa e, sem qualquer dúvida, a punir aqueles que não a
cumprem, uma vez que Ele deseja que a verdade seja reconhecida, para que saibamos que Ele
existe e é veraz.
VERDADE às vezes significa uma crença, uma doutrina ou uma afirmação que corresponde
à realidade. Há uma correspondência entre as palavras e os fatos, como quando pensamos ou
dizemos que a neve é branca. Outras vezes, a verdade é uma virtude chamada Veracidade, que
abraça, ama e preserva consistentemente as crenças verdadeiras, a doutrina correta e as palavras
sinceras, evitando mentiras e sofismas. A veracidade assegura que as palavras e as promessas
correspondam aos atos e que as palavras e ações estejam em harmonia com as intenções. Deus
deseja que entendamos a verdade, que saibamos que Ele existe e que Ele é veraz. Portanto, Ele
deseja que aceitemos as crenças verdadeiras por causa d'Ele e em benefício de nossa vida, como
Ele declara em passagens como “Não digam falso testemunho” (Êxodo 20. 16) e “Seja, porém, o
seu falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna” (Mateus 5.
37). Se fosse permitida uma arrogância infinita e vãs disputas, como foi o caso dos Pirrônicos,
até mesmo a existência de Deus seria questionada. Demóstenes afirmou que os seres humanos se
assemelham a Deus por duas coisas: Verdade e Bondade. E, como está escrito no livro de
Zacarias (8. 19): “Amem a verdade e a paz.”
SUPERSTIÇÃO é a observância de ritos específicos ou a atribuição de efeitos
sobrenaturais ou mudanças naturais a ações não ordenadas por Deus ou não respaldadas por
causas naturais. Essa definição não se aplica a cerimônias políticas que envolvem símbolos sem
elementos sobrenaturais, como a coroação de um rei, onde não há uma alteração natural, mas um
símbolo para lembrar aos outros sobre a distinção das ordens e dos deveres.
IGREJA VISÍVEL é uma congregação visível de pessoas que abraçam a doutrina
imaculada do Evangelho e fazem uso correto dos sacramentos. Nesse grupo, o Filho de Deus é
eficaz por meio do ministério do Evangelho e regenera muitos para a vida eterna. Embora nesse
grupo haja muitas pessoas não santas, elas concordam com a doutrina e a profissão externa. Esta
é uma definição simples da Igreja Visível.
REINO DE CRISTO é o estabelecimento e a manutenção do ministério do Evangelho pelo
Filho de Deus. É a coleta da Igreja e a eficácia real dela nos crentes, vivificando-os pela palavra
do Evangelho e santificando-os pelo Espírito Santo para a vida eterna. O Reino de Cristo
também envolve proteger os crentes contra a tirania dos demônios e as artimanhas demoníacas,
bem como ressuscitar os santos para a vida eterna. Além disso, ele implica a entrega do reino ao
Pai, ou seja, conduzir a Igreja eterna perante o Pai, para que, posteriormente, a divindade reine
abertamente neles, não por meio do ministério do Evangelho. Até que a Igreja seja “coletada”
pelo ministério do Evangelho, esse é chamado o Reino de Cristo nesta vida. Isso ocorre porque o
Filho, que é a Palavra, declara o Evangelho do seio do Pai eterno, e o Pai é reconhecido quando,
por meio dessa consolação, reconhecemos que somos recebidos pelo Pai eterno por meio da
palavra do Evangelho. No entanto, o reino do Filho é eterno, pois Ele reina eternamente junto
com o Pai e o Espírito Santo e permanece como a cabeça da Igreja.
MINISTRO DO EVANGELHO é uma pessoa ordenada por Deus, direta ou indiretamente,
para ensinar o Evangelho e administrar os sacramentos, bem como para punir com palavras, não
com força física.
MAGISTRADO POLÍTICO é uma pessoa ordenada por Deus, direta ou indiretamente,
para ser a voz e executor da Lei divina na disciplina externa e em outras leis justas. Eles são os
guardiões da paz, reprimem e punem os desobedientes com força física, guerras e punições,
incluindo a pena de morte. Para executar essas funções, é necessário ter forças militares e
recursos financeiros, recursos que não são atribuídos ao Ministro do Evangelho.
LEGÍTIMA DEFESA é uma maneira adequada de reprimir uma violência notória, como as
leis estabelecem que um viajante deve reprimir um ladrão em uma situação de perigo iminente.
Da mesma forma, é permitido reprimir uma autoridade que, em uma situação de perigo iminente,
sequestrasse a filha ou a esposa de outra pessoa. No entanto, é importante distinguir entre a
defesa em um contexto de perigo iminente e a imposição de uma pena após um crime atroz, onde
até mesmo a gravidade da dor justa às vezes pode servir de justificativa para os pais que punem
crimes cruéis, como no caso de Hárpago e um cidadão de Vicenza, a quem um tirano raptou a
filha e a devolveu após tê-la violentado, resultando em seu corpo desmembrado em quatro partes.
GUERRA pode ser uma defesa legítima ou uma pena legítima imposta por uma autoridade
regular por uma causa justa.
SEDIÇÃO é um levante dos súditos que tomam as armas contra a autoridade de um governo
do qual não sofreram injustiças evidentes, resultando em uma falta de moderação na defesa e na
busca pelo controle.
AFEIÇÃO (ΣΤΟΡΓΗ, storgi) é um sentimento inato nos seres humanos, implantado
divinamente, que é congruente com a lei de Deus, como o amor por pais, filhos, cônjuges, irmãos
e aqueles que merecem bem.
NÊMESIS ou ZELO, isto é, indignação contra uma injustiça atroz ou vileza. Além disso,
existem os afetos (στοργαί), inatos nos seres humanos, para nos lembrar de Deus, quem Ele é, e
muito mais.
GRATIDÃO é uma virtude que abrange a verdade e a justiça. Verdade, pois Deus deseja
que reconheçamos e declaremos de onde vieram os benefícios que recebemos. Justiça, pois nos
obriga a retribuir com bondade mútua e cumprir certos deveres.
AFETOS são movimentos do coração, relaxamentos ou contrações, que seguem o
conhecimento e perseguem ou evitam objetos que, quando causam dano ou prazer, sempre
acompanham os afetos extremos: dor, dano à natureza, ou prazer, isto é, alegria que descansa no
objeto. Esses dois são os afetos finais, pois Deus deseja que o bem e o mal sejam discernidos;
portanto, Ele formou o coração de tal maneira que Ele serve como um juiz, e a dor destrói o ser
humano por causa do mal, enquanto a alegria é a vida que deve ter objetos bons que estejam de
acordo com Deus.
DOR ou Tristeza, no coração, é a fuga do objeto que causa dano, é um sentimento de
destruição, como se o coração estivesse sendo apertado ou comprimido. Nesse aperto, ele é
aterrorizado e o sangue e os espíritos são consumidos como se fosse um incêndio, e todas as
ações do coração enfraquecem até que a vida seja completamente extinta. Em outros contextos, a
dor em outras partes do corpo é apenas um sentimento de lesão nos nervos, que foram formados
para perceber movimentos agradáveis e desagradáveis. Não é necessário procurar outra causa,
exceto que Deus deseja que saibamos as distinções entre a preservação e a destruição, e deseja
que o que é justo seja bom e o que é injusto seja destruído.
ALEGRIA é um movimento agradável no coração e uma espécie de relaxamento, onde o
sangue é aquecido, e chamas copiosas e claras dos espíritos são geradas, que aquecem todo o
corpo. A partir desses inícios, a maioria dos outros afetos podem ser de alguma forma descritos,
porque a maioria deles é composto ou misto.
IRA é a dor do coração fugindo do objeto contrário, ao mesmo tempo em que deseja repeli-
lo. A dor é causada por contração. Portanto, o sangue flui para fornecer ajuda ao coração. No
entanto, o desejo de repulsa é causado por relaxamento, onde o coração envia sangue e espíritos
para os membros mais distantes, como se os equipasse. Com ambos os movimentos crescentes,
ocorre o incêndio do coração e dos espíritos. Daí as descrições (Ovídio, Artes de Amar, III, 503,
504):
“As bochechas incham com raiva, as veias escurecem com sangue,
E os olhos brilham com o veneno da terrível Górgona.”
ÓDIO é a ira contínua, como um fogo eterno ou chama no coração.
AMOR é uma combinação de alegria e atração pelo objeto agradável. É uma expansão do
coração, como se estivesse abraçando o objeto atraente, tornando a coisa agradável uma só coisa
no coração, como está escrito: “Dois corpos, mas uma alma”.
MANSIDÃO é uma virtude que modera a raiva, ou seja, não a derrama nem se submete a
ela, a menos que a lei de Deus ordene ficar com raiva e punir.
Uma virtude próxima é a NÊMESIS ou ZELO, que é ficar com raiva e punir de acordo com
os mandamentos de Deus. Como o exemplo de Fineias, que ficou com raiva por causa da glória
de Deus e matou um israelita que estava pecando com uma mulher midianita. Não está correto
afirmar, como os estoicos fazem, que a punição deve ser executada sem raiva, pois Deus deseja
que os corações sejam sinceramente afetados, portanto, Ele deu tais movimentos aos seres
humanos, e o Espírito Santo os provoca em santidade, conforme diz no Salmo 68. 10: “O zelo da
Tua casa me devora”.
MISERICÓRDIA é uma virtude pela qual lamentamos a aflição dos justos, ou a aflição
justa por uma razão provável, daqueles que, no entanto, caíram em erro ou fraqueza, e nos
esforçamos para aliviar a miséria.
AMIZADE é a justiça na qual, devido à bondade que surge de razões honestas, retribuímos
a bondade e somos obrigados a atos justos e possíveis de reciprocidade.
COMPAIXÃO ( Ἐ πιείκεια) é uma virtude que mitiga a severidade da lei estrita por causa
de uma razão provável, pois, de fato, há uma causa de atenuação na circunstância, como quando
o ateniense Trasíbulo sancionou que os cidadãos que fossem reintegrados não recuperassem as
posses que lhes foram tomadas, porque a recuperação acenderia uma nova guerra. Assim, Paulo
diz em Filipenses 4 (v. 5): “Que a sua benignidade seja conhecida de todos os homens”. Pois ele
quer que a bondade se destaque nos cristãos, perdoando muitas ofensas privadas em prol da
tranquilidade pública, como também o Senhor diz (Lucas 6. 37): “Perdoem, e serão perdoados”.
E são conhecidos os doces versos de Nazianzo:
Ειδ' οίδας όπλων, και πρόχρησον το πράον,
Οίκτω γαρ οίκτος, τω θεώ σταθμίζεται.
(Se você souber usar armas, use primeiro a mansidão,
Pois a misericórdia, que é misericórdia, é medida por Deus.)
Mas a ἐ πιείκεια mais ilustre é aquela que Deus manifesta no Evangelho, recebendo a
obediência incipiente por causa do Filho e, por assim dizer, dispensando a Sua Lei.
As virtudes vizinhas da Compaixão ( ἐ πιείκεια) são a justiça severa, a liberalidade e a
parcimônia, assim como a mansidão e a vingança, assim como a verdade e a franqueza. Pois a
franqueza é uma virtude em qualquer interpretação, não só não depravando as palavras corretas
com calúnias, mas também inclinando as ambíguas para uma melhor interpretação. E há um
preceito sobre a franqueza: (Mateus 7. 1): “Não julguem, para que não sejam julgados” etc.
FORÇA é a virtude da coragem e firmeza do coração, suportando dores e perigos, tanto
resistindo quanto afastando-os de acordo com a lei de Deus, que mostra o que deve ser suportado
e onde a defesa deve ser usada. Essa firmeza do coração, como vista em Davi resistindo às
injúrias ou lutando contra Golias, é um movimento divino e, em geral, a coragem heroica, como
vista em Aquiles, é um movimento divino que não é adquirido por pensamento humano, pois
reside no coração. Não se limita apenas a controlar as ações externas, como na coragem comum.
GLÓRIA, comumente referida à glória do homem, é a aprovação da consciência, que julga
corretamente, assim como outros julgam corretamente. Paulo fala sobre essa glória em Gálatas 6.
4, dizendo: “Cada um examine as suas próprias ações. Então, tal poderá orgulhar-se de si
mesmo, sem se comparar com ninguém”. Isso significa que, se você fizer o que é certo em seu
dever, terá a aprovação da consciência, o que traz tranquilidade, e não buscará glória através da
detração de outros ou dos aplausos populares.
SOBERBA é uma mistura de muitos vícios. É um erro de julgamento que não reconhece sua
própria fraqueza, presume estar seguro e sem temor a Deus, atribui a si maior poder do que
realmente possui e tem uma autoconfiança que o leva a desejar mais do que sua vocação permite.
Também inclui desprezar e oprimir os outros, bem como ficar zangado com Deus e as pessoas
quando seus desejos são frustrados. Por exemplo, quando Antônio, como que embriagado, se
admirou olhando para si mesmo, julgou-se digno de reinar sozinho e buscou a monarquia após
abandonar sua vocação. Salomão condenou esse mal em Provérbios 16. 5, ao afirmar: “Todo
coração soberbo é abominação ao Senhor”. E Tiago 4. 6 afirma: “Deus se opõe aos orgulhosos”,
porque vários pecados se unem na soberba: o coração perde o temor de Deus, se envaidece em
sua própria força, tumultua suas vocações e se revolta contra Deus quando a cobiça é frustrada.
Vale a pena recordar a afirmação de Heródoto: “Deus costuma humilhar ou mutilar todas as
coisas elevadas”.
HUMILDADE, ou ταπεινοφροσυνη, é uma virtude composta por várias qualidades. Ela
reside na verdadeira consciência de nossa própria fraqueza, no temor a Deus e na confiança na
ajuda divina para servir a nossa vocação, sem ansiar por mais do que nos é devido, reconhecendo
que a providência de Deus é essencial, pois Ele pode fazer instrumentos eficazes mesmo com os
mais fracos. Por isso, a humildade inclui a Justiça, que concede a cada um o seu devido lugar,
não menosprezando os outros nem prejudicando-os. Não se revolta contra Deus em tempos
difíceis, mas atribui a Deus o mérito da justiça, como afirma Daniel 9. 7: “A Ti, Senhor, pertence
a justiça”. Um exemplo notável disso foi Jônatas, que compreendeu que a grandeza do reino não
poderia ser sustentada apenas com recursos humanos e, especialmente no povo de Deus, um rei
não poderia ser feliz sem ser divinamente designado. Por isso, ele não buscou o trono, mas o
entregou a Davi, e, em meio às dificuldades, ele obedientemente serviu a Deus. Sobre tais
pessoas, Tiago 4. 6 diz: “Deus concede graça aos humildes”.
MODESTIA é uma virtude que mantém a adequação de acordo com o julgamento correto
em nossa opinião sobre nós mesmos, em nossas palavras e em nossas ações.
ACEPÇÃO DE PESSOAS é dar tratamento desigual a iguais ou igualar desiguais, levando
em consideração não o principal, mas as circunstâncias pessoais. Isso ocorre quando um juiz
pune um adúltero pobre e perdoa um adúltero rico, seguindo o ditado: “Perdoa os corvos,
censura as pombas”[169]. Quando a justiça é distribuída de forma desigual, a acepção de pessoas
entra em conflito com a justiça distributiva, pela qual Deus deseja que sejam feitas distinções
entre o que é honroso e o que é desonroso, como está escrito em Romanos 13. 3: “Os
governantes não devem ser temidos pelas pessoas boas, mas pelos que fazem o mal”. Deus
estabeleceu essa ordem para que reconheçamos quem Ele é, ou seja, justo e castigador do que é
injusto.
CASTIDADE é a virtude que evita todas as uniões e derramamentos de sêmen proibidos
pela Lei de Deus.
CASAMENTO é a união legítima e indissolúvel de um homem e uma mulher, ordenada por
Deus para a procriação e para evitar as paixões lascivas, de acordo com o ditado (Gênesis 2. 24):
“Serão os dois uma só carne”, ou seja, inseparavelmente unidos. Quando se fala em união
legítima, isso inclui as leis divinamente estabelecidas sobre graus de parentesco e outras leis
éticas. Pois a união proibida com parentes, de acordo com a lei divina, é chamada incesto, ou
seja, aquela à qual não pode ser aplicada a solenidade matrimonial, na qual a noiva estava vestida
com um cinto chamado “kestos” (κεστός), daí a prática incestuosa é chamada de “incesta”, como
se fosse “sem cinto”, ou seja, sem as leis do casamento.
DILIGÊNCIA é uma virtude pela qual, de acordo com os mandamentos de Deus,
executamos diligentemente nossos próprios trabalhos e os necessários para nossa vocação, e nos
restringimos dentro dos limites de nossa vocação. Sobre essa virtude, ou seja, sobre a
preservação de nossa vocação e diligência no trabalho, Paulo explicitamente instrui em 1
Tessalonicenses 4 (versículos 10 em diante): “Exortamos a vocês, também, a que disto façam
maior caso, e procurem viver quietos, e tratar dos seus próprios negócios, e trabalhar com suas
próprias mãos, como já os temos mandado”. E em Romanos 12 (versículo 8), fala sobre
diligência: “O que exorta, faça-o com dedicação”. E no capítulo 9 (versículo 10) do Eclesiastes:
“Tudo quanto lhe vier à mão para fazer, faça-o conforme as suas forças”. E no capítulo 11
(versículo 6): “Pela manhã semeia a sua semente, e à tarde não retire a sua mão, porque você não
sabe qual prosperará, se esta, se aquela, ou se ambas igualmente serão boas”. Também (no
mesmo capítulo, versículo 1): “Lança o seu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o
achará”. Isso significa que, mesmo que o trabalho pareça inútil para muitos, como se
estivéssemos lançando pão na água, ainda haverá alguns para os quais nosso trabalho será
proveitoso. Paulo também nos consola, dizendo em 1 Coríntios 15. 58: “Portanto, meus amados
irmãos, sejam firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o seu
trabalho não é vão no Senhor”. Os extremos viciosos são a preguiça e a inquietude[170], que levam
as pessoas a se desviarem de sua vocação e a negligenciarem o que é necessário. Algumas
pessoas se tornam ociosas, enquanto outras se tornam excessivamente ambiciosas, outras ainda
se perdem em imitações tolas e vãs (κοζηλία). Por exemplo, depois que Matatias Macabeus
liderou com sucesso a libertação do povo, muitos quiseram imitá-lo, mas eram infelizes, porque
não foram chamados e inspirados divinamente. Da mesma forma, houve imitadores infelizes de
figuras como Temístocles, Péricles e Demóstenes. E sobre esses assuntos, vale a pena lembrar
uma observação feita por Políbio: “Muitos não tentam imitar as ações dos bem-sucedidos, mas,
ansiosos, exibem sua própria insensatez no palco, desejando avidamente as atividades
secundárias, enquanto negligenciam imitar as obras das pessoas mais prósperas”[171].
ROUBO é o ato de ocupar ou tirar algo pertencente a outrem, contra a vontade do
proprietário.
PROPRIEDADE é a propriedade adquirida de maneira justa, na qual o proprietário tem o
direito de dispor da coisa conforme seu arbítrio, a menos que seja proibido por lei ou contrato.
DOMÍNIO é um direito, ou seja, uma autoridade estabelecida pela lei divina ou humana
pela qual alguém detém uma coisa e a administra de acordo com seu próprio arbítrio, a menos
que seja proibido pela lei ou contrato. A própria palavra do mandamento - “Não furtarás” -
estabelece a distinção entre propriedades. Aqui está uma explicação:

1. As coisas naturais são imutáveis.


2. O uso comum das coisas é um direito natural, como geralmente é dito.
3. Portanto, é imutável.

Em resposta à primeira afirmação, as coisas naturais são imutáveis, ou seja, os


conhecimentos naturais das artes e preceitos, mas não as utilidades que teriam existido na
natureza íntegra, como saúde corporal perpétua e outras comodidades. Uma comunidade desse
tipo poderia ter existido na natureza íntegra, mas não teria sido um preceito.
CONTRATO é o mútuo e legítimo consentimento de duas ou mais partes para transferir
algo de forma legítima, seja no que diz respeito à propriedade, ao uso ou a obrigações
divinamente ordenadas. Deus deseja que, uma vez que todos necessitam de coisas que não
possuem, a igualdade seja preservada por meio de contratos legítimos e uma comunicação
legítima, para que entendamos que a justiça é a igualdade e saibamos que Ele mesmo é igual.
Esses contratos são confirmados em Levítico 19. 35: “Não pratiquem injustiça no juízo, na
medida, no peso ou na balança”.
COMPRA é um contrato pelo qual uma coisa é transferida em termos de propriedade por
um preço justo, e o comprador não retém o direito de retirar o preço. Os elementos essenciais da
compra são a mercadoria, o preço e o consentimento do comprador e do vendedor.
EMPRÉSTIMO é um contrato pelo qual dinheiro, grãos ou outros bens de consumo são
transferidos com a obrigação de devolver a mesma quantidade após um certo período. O doador
do empréstimo retém o direito de exigir a mesma quantidade que emprestou.
USURA é o lucro buscado devido a um empréstimo. A busca por usura é expressamente
proibida em Levítico 25 e Deuteronômio 23, e no Evangelho está escrito em Lucas 6. 35:
“Emprestem, sem esperar coisa alguma em troca”. A usura é contrária à igualdade. Ninguém
deve lucrar com o que pertence a outra pessoa. Quem recebe juros está lucrando com algo que
não é naturalmente produtivo. Portanto, esse lucro não é justo. Esse entendimento é a base para a
grande desigualdade que empobrece grande parte da população e frequentemente leva a revoltas
em sociedades. Para mitigar isso, algumas nações estabeleceram leis sobre a centésima parte,
onde a taxa de juros era limitada a um centésimo do capital emprestado. Essa lei foi mencionada
no livro de Esdras (também conhecido como Neemias) em Neemias 5. 11, e a lei da centésima
parte foi frequentemente reforçada, por exemplo, por Lúculo na Ásia, por Cícero na Cilícia, e por
Júlio e Augusto em todo o Império Romano.
INTERESSE é uma consequência de outros acordos e é uma palavra usada para descrever
uma coisa justa, baseada na igualdade natural, como dizem: “Ninguém deve enriquecer à custa
do prejuízo de outra pessoa”. Portanto, o INTERESSE é devido, o que significa que alguém
deve, de acordo com a lei natural, compensar quem causou um dano a outra pessoa de forma
injusta ou prejudicou os lucros justos de outra pessoa. Por exemplo, se alguém danificar uma
propriedade alugada, deve pagar o valor do dano, mesmo que não tenha sido especificado um
acordo prévio. É importante mencionar que o uso da palavra INTERESSE para justificar juros
cruéis é uma manipulação prejudicial.
LOCAÇÃO é um contrato em que um bem é transferido por um período determinado, para
uso a um preço específico, mas não em termos de propriedade. Os bens entregues são dados
como garantia ao locatário.
MENTIRA é quando alguém fala ou age de forma enganosa, geralmente por desobediência
ou desejo de prejudicar os outros. Isso acontece quando alguém diz ou faz algo que contradiz o
que realmente pensa ou sente. No entanto, o termo mendacium não se aplica a figuras retóricas
ou situações em que algo é ocultado com base em uma razão provável, mas não necessariamente
dito. Por exemplo, quando Raabe nega ter espiões em sua casa por motivos de segurança. Figuras
de linguagem como essa são consideradas “mentiras oficiosas”. Este conceito também se aplica a
desculpas e poemas, que podem ser vistos como formas de figura de linguagem ou metáforas.
MALDIÇÃO é quando alguém acusa outra pessoa de cometer crimes, seja falsamente ou
com dúvida, com o objetivo de prejudicar ou espalhar boatos maliciosos, fora do contexto dos
tribunais. Esse tipo de comportamento é proibido, conforme indicado em Levítico 19. 16: “Não
andará como mexeriqueiro entre o teu povo”. Isso inclui difamações, sejam falsas ou
verdadeiras, que são proferidas por vaidade ou desejo de prejudicar alguém. Também inclui
calúnias, que envolvem a deturpação de ações ou palavras corretas, a interpretação de coisas
ambíguas de maneira negativa ou a invenção de crimes, como no caso de Palamedes ou Nabote.
O livro de Eclesiastes adverte que a calúnia pode perturbar um sábio e enfraquecer seu coração.
Também compara o caluniador a uma serpente venenosa. Existem muitos outros vícios
relacionados à língua, alguns mais graves do que outros.
TAGARELICE, futilidade, vaidade, jactância, maledicência, zombaria, mentira, calúnia,
insipidez, obscenidade, que é usar palavras obscenas, fazer piadas inadequadas em situações
sérias, fazer zombarias insultuosas ou fazer comentários difamadores sobre pessoas respeitáveis,
como Semei ao maldizer Davi.
LIBERDADE CIVIL é a liberdade cívica, que é o direito de mover o corpo de acordo com
as leis, escolher ações corporais justas, possuir propriedades e ter o domínio sobre elas, além de
ter o direito de se defender e defender seus bens de maneira legal. Por exemplo, um escravo não
tem a liberdade de mover seu corpo ou fazer escolhas e não pode sair de seu mestre. Essa
liberdade é chamada de “faculdade ordenada pelas leis” porque não é uma licença ilimitada. É
uma capacidade de usar o corpo e os bens de maneira justa, que é mais livre do que a dos
prisioneiros ou escravos, mas ainda assim está sujeita a limites, como a Lei Divina e outras leis
que protegem o uso dessa faculdade. Como Lúcio Crasso disse: “Somos escravos das leis para
que possamos ser livres”.
ESCRAVIDÃO, quando Deus a aprova, é quando alguém é legalmente privado da
capacidade de possuir propriedades e fazer escolhas por si mesmo. Isso pode incluir a capacidade
de transferir seu próprio corpo ou propriedades. No entanto, essa servidão também tem suas
limitações de acordo com a Lei Divina ou Natural, para que os senhores não obriguem os servos
a agir contra as leis divinas. Por exemplo, quando os Turcos sequestram filhos e filhas de seus
súditos e os levam para sua religião, isso é contrário à lei divina, pois Deus é o Senhor Supremo,
e nenhuma criatura deve pedir ou ordenar algo contrário aos mandamentos divinos. O princípio
de que é necessário obedecer a Deus em vez dos homens é observado. De acordo com o ditado
de Platão: “Ambas, a liberdade moderada e a servidão moderada, são as melhores. A liberdade
moderada e a servidão imoderada são ambas as piores”.
BEM NÃO CRIADO é Deus próprio, que é a essência sábia, eterna, onipotente, que deseja
coisas de acordo com o que ele ordena em sua lei. Ele é o criador e preservador do mundo e a
causa do bem, ou seja, da sabedoria, da justiça, da alegria e da ordem nas criaturas. A respeito
deste bem perfeito, é dito que “Ninguém é bom, exceto o Único, que é Deus”.
BEM CRIADO é a harmonia criada nas criaturas, com a mente divina conhecendo e
ordenando todas as coisas. Isso inclui a sabedoria, a justiça e a alegria em seres conscientes, bem
como a ordem estabelecida por Deus em toda a natureza. Esta definição se refere ao bem em
geral, chamado de bem natural, e é dito que Deus, quando olhou para tudo o que havia criado,
viu que era “muito bom”, isto é, em perfeita harmonia com a mente divina, incluindo a
sabedoria, a justiça e a alegria em seres conscientes e a ordem na natureza como um todo.
BOA CRIAÇÃO MORAL HONESTA refere-se a ações da vontade em anjos e humanos
que estão de acordo com a Lei de Deus ou com Deus mesmo. Essas formas de expressão se
referem à mesma coisa, e essas ações devem ser governadas pela consideração da Lei de Deus.
Osiander chama a justiça de Deus em si mesma, mas é necessário distinguir a justiça não criada
da justiça criada, ou seja, das ações que são congruentes com Deus e que ocorrem na vontade do
anjo ou do ser humano. Em termos simples, algumas dessas ações são causadas pela vontade do
anjo ou do ser humano, que não é completamente passiva, ou seja, Deus não age nela como o Sol
irradia sua luz. João diz que seremos semelhantes aos Filhos de Deus, e Paulo diz que seremos
transformados para ser a imagem de Deus. A imagem não é o arquétipo. Portanto, há algum bem
moral criado que começa na vida dos regenerados, e mais tarde será perfeito. A filosofia fala
sobre ações morais, que, embora imperfeitas, ainda podem ser chamadas de bem moral ou
criado, como a ação da vontade de Cipião, ordenando que todos os membros se abstenham de
tocar na esposa de outro. Essa ação seria mais perfeita se a mente e a vontade estivessem focadas
em Deus, como a ação de José ao fugir da adúltera. Isso é explicado com mais detalhes em
outros lugares. No entanto, é correto dizer que existe algum bem moral ou criado, embora seja
necessário distinguir as ações dos bem-aventurados, dos regenerados nesta vida e dos pagãos
virtuosos, das ações dos anjos, de José e de Cipião.
BONS BENEFÍCIOS são todas as informações dos sentidos e da mente, bem como todas as
coisas e ações organizadas para a preservação da vida, como a ordem nos elementos e nas coisas
que crescem, como o trigo, os metais e outras coisas. Não me desagrada chamar de bem moral as
informações verdadeiras na mente, quando a vontade está de acordo. No entanto, quando a
vontade não está de acordo, elas são chamadas de bem natural e útil, como o ouro, que os seres
humanos às vezes usam inadequadamente.
BEM SUAVE (ou Boa Economia) no sentido físico é a harmonia entre o objeto e os nervos,
como quando a água quente alivia os nervos afetados pelo frio, ou quando uma bebida agradável
refresca a língua ressecada e outros membros do corpo. Ou é o bem suave na mente e na vontade,
a alegria que surge do entendimento da beleza, ou seja, da ordem e harmonia com Deus ou com a
natureza.
MAL NATURAL é a privação de sabedoria, justiça e alegria em seres racionais e é a
destruição da ordem em qualquer natureza, como doenças, morte e qualquer destruição das
coisas.
MAL MORAL é a privação de justiça ou virtude em seres racionais, ou seja, é a
discrepância da Lei de Deus ou de Deus. Geralmente é chamado de mal da culpa, e na Igreja é
chamado de pecado. Deve-se manter firmemente a regra de que Deus não é, de forma alguma, a
causa do mal da culpa, ou seja, Deus não quer, não aprova, não causa e não ajuda o pecado.
Outra coisa é o MAL DA PENA, que é a destruição que segue o mal da culpa, como doenças
e morte. Esse mal é a justa execução da pena, como a opressão de Faraó. Não é absurdo dizer
que Deus quer e ajuda essa justa execução, como é expressamente dito sobre Sodoma (Gênesis
19. 24): “O Senhor fez chover fogo e enxofre sobre Sodoma” e (Deuteronômio 4. 24): “Deus é
um fogo consumidor”. Sobre esse mal da pena, entenda-se o que diz (Amós 3. 6): “Haverá mal
em uma cidade que o Senhor não tenha feito?”, ou seja, o Senhor nos aflige com todos os tipos
de penalidades, como doenças, pestilências, fome, guerras, etc.
A oposição deve ser cuidadosamente considerada. O bem moral e o mal da culpa são opostos
entre si, como virtude e privação, ou como movimentos contrários, como coragem e timidez,
amor fraterno em Caim e ódio. Eles diferem do bem natural e do mal natural. Coisas como
conhecimento, ouro e vinho são bens naturais, mas não são bens morais. A morte é um mal
natural, não moral. Portanto, não é conflitante com o bem moral, como é dito no Salmo 116. 15:
“Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos Seus santos”.
ANJO BOM é uma pessoa espiritual criada não a partir de elementos, mas do nada, de
modo que a divindade possa se revelar entre as naturezas espirituais. Na criação, ele é dotado de
conhecimento da lei e de outras coisas, liberdade de vontade e justiça. Posteriormente, ele é
confirmado no bem, ou seja, no amor a Deus, a outros anjos e a seres humanos piedosos. Ele é
caracterizado por sua verdade e castidade, a fim de que nunca se afaste de Deus. Sua natureza é
ordenada de tal maneira que, embora seja superior, ele serve à Igreja e executa a vontade de
Deus, que deseja que os mais fortes sirvam aos mais fracos. Salmo 91. 11 diz: “Pois Ele dará
ordens a Seus anjos a seu respeito, para o proteger em todos os seus caminhos”.
ANJO MAU é uma pessoa espiritual, criada não a partir de elementos, mas do nada, com
conhecimento da lei e de outras coisas, liberdade de vontade e justiça. No entanto, por sua
própria vontade, ele se afasta de Deus, despreza o Filho de Deus e é condenado a punições
eternas. Ele é caracterizado por odiar a Deus, mentir, blasfemar e exercer crueldade em relação à
humanidade. Ele incita outros a cometer pecados, blasfêmias, mentiras, assassinatos e ações
imorais, não para o benefício deles, mas por malícia e para afligir Deus, nosso Senhor Jesus
Cristo e a Igreja com ultrajes. Portanto, esses dois títulos lhe são atribuídos, chamando-o de
mentiroso e homicida. Ele é chamado Diabo porque corrompe as mentes das pessoas com
calúnias contra a Palavra de Deus, e Satanás porque se opõe a Deus, ao nosso Senhor Jesus
Cristo e à Igreja. Ele é chamado de Belzebu, pois voa pelo ar como vespas, perturbando a
humanidade, especialmente a Igreja. Assim como Paulo menciona que o Diabo é o príncipe das
potestades do ar, influenciando aqueles que desprezam Deus. Esta definição deve ser considerada
com atenção para aumentar a devoção na busca de ajuda contra os demônios. De fato, o Filho de
Deus está disposto a nos auxiliar, pois o Diabo nos odeia principalmente por causa d'Ele.
“Portanto, invocamos a Ti, Filho de Deus, Jesus Cristo, crucificado por nós e ressuscitado,
protetor de Sua Igreja, para que Tu nos governe e nos proteja”.
PROFETAS no Antigo Testamento eram mestres chamados diretamente por Deus para
purificar a doutrina, especialmente para esclarecer a promessa do Messias e para aconselhar em
questões políticas. Eles foram agraciados com testemunhos de milagres para que a natureza
divina de sua doutrina fosse confirmada, garantindo que não errassem na doutrina, pois Deus
testemunhava a favor deles. Alguns desses profetas incluíram Adão, Sete, Noé, Abraão, Isaque,
Jacó, José, Moisés, Davi, Elias, Eliseu, Isaías, Jeremias, Daniel e outros. João, o Batista,
declarou que não era um profeta, pois não foi enviado para assuntos políticos, ao contrário das
expectativas judaicas de um profeta semelhante a Samuel ou Elias, que lideraria uma guerra
contra os romanos.
APÓSTOLOS são mestres no Novo Testamento imediatamente chamados por Cristo para
ensinar o Evangelho e administrar publicamente os sacramentos, não para lidar com assuntos
políticos. Eles foram agraciados com testemunhos do Espírito Santo e de milagres, garantindo
que sua doutrina fosse divina e que não errassem nela, pois Deus testemunhava a favor deles.
Eles tinham a autoridade para ensinar em todos os lugares.
Quanto à citação de Barnabé, encontrada no segundo livro de coletâneas de Clemente,
página 161, ela se refere ao processo de transformação do coração humano. Antes de crermos em
Deus, o coração humano era como um templo frágil e corruptível, cheio de idolatria e habitado
por demônios. No entanto, com a remissão dos pecados e a esperança no nome de Cristo, somos
renovados e nos tornamos novas criações. É nesse sentido que o verdadeiro templo do Senhor é
construído com glória. Como? Pela habitação de Deus em nós, o que ocorre quando em nosso
coração habitam a palavra da fé, a convocação da promessa, a sabedoria da justificação e os
mandamentos da doutrina.
EPÍSCOPO ou PASTOR é um mestre chamado por Deus, mas de forma mediada, ou seja,
através da igreja, para ensinar o Evangelho e administrar publicamente os Sacramentos em um
local específico. Ele segue a doutrina transmitida pelos Apóstolos. Quando se afasta dessa
doutrina, pode errar, como frequentemente ocorre, e não tem a autoridade de ensinar em todos os
lugares. É importante notar que a vocação do bispo ou pastor é confirmada por testemunhos que
demonstram que Deus deseja que os ministros do Evangelho sejam chamados com o suporte da
comunidade, e que por meio desse chamado humano, eles se tornam eficazes. O apóstolo Paulo
instrui Tito a nomear presbíteros em várias cidades e enfatiza que pessoas idôneas devem ser
escolhidas para ensinar os outros.
DOUTOR é uma pessoa chamada a ensinar o Evangelho, mas não tem a autoridade de
liderar a igreja como um bispo ou pastor. Historicamente, esses indivíduos eram chamados de
catequistas, e agora podem ser considerados mestres nas escolas ou instrutores de doutrina
religiosa.
EVANGELISTAS eram pessoas frequentemente enviadas a várias igrejas ou congregações
para ensinar o Evangelho. Eles foram chamados de evangelistas, e alguns, como Panteno, foram
mencionados por Eusébio, viajando por várias igrejas no Oriente para ensinar e instruir.

Acerca dos Hábitos


Anteriormente, abordamos o tema das Noções e das Virtudes, e o que são as Noções Atuais
pode ser explicado de diversas formas. No entanto, há uma considerável obscuridade em relação
aos Hábitos.
A Noção Atual, que reside em parte no conhecimento, operando através do cérebro, envolve
a formação de imagens. Essas imagens são moldadas no cérebro por espíritos, como se fossem
selos que deixam sua impressão no cérebro, e o movimento do cérebro age como uma língua que
cria palavras. Por exemplo, ao pensar em um amigo, formamos uma imagem dele em nosso
cérebro.
A obra de Deus na natureza humana é verdadeiramente maravilhosa, fruto de um desígnio
singular. Uma recordação que deve sempre estar presente é a de Deus como uma Essência
Inteligente. A partir disso, derivam-se muitas outras recordações em todo o domínio do
Conhecimento, dos Números, do Raciocínio, das Leis, e é frequente meditar sobre os benefícios
de Deus. Devemos elevar nossas mentes para que, de alguma maneira, possamos contemplar o
Criador.
Mas o que são Hábitos de Conhecimento?
Acredita-se que esses hábitos são como memórias, ou seja, imagens impressas que são
mantidas em uma parte específica do cérebro, retidas como imagens gravadas em cera por selos.
Quanto mais forte e frequente for a impressão, mais rapidamente ocorre a recordação.
Esses hábitos, no entanto, são algo mais do que meras memórias. Podemos percebê-los
através das habilidades que não apenas mantêm o conhecimento, mas também controlam as
ações externas, como a habilidade de um pintor em guiar os dedos ao traçar linhas. Nesse caso,
não faltam memória e intenção no aprendizado do aluno, mas seus dedos podem não ser tão
ágeis quanto os de um mestre habilidoso. O mesmo ocorre com um tocador de cítara e muitos
outros artistas. Portanto, embora a memória desempenhe um papel dominante, também há algo
que chamamos de hábito, ou seja, agilidade adquirida pela prática e recordação frequente.
Podemos pensar na natureza humana como tal, de modo que a mente, o coração e até o corpo
seguem a recordação frequente e o treinamento com uma espécie de agilidade ou velocidade, que
é chamada de “ ἕ xis” (έξις, posse), embora a natureza exata desse termo permaneça um tanto
obscura.
Os vícios são mais evidentes. Primeiramente, falaremos sobre as ações externas, que
frequentemente surgem de afetos depravados. Não é obscuro o que são esses afetos depravados.
As pessoas são propensas a incêndios de paixões, como amor, raiva, ódio, medo e outros afetos.
Esses movimentos se manifestam de maneira variada. Por exemplo, Páris e Helena, que se
encontram e convivem frequentemente, se inflamam mutuamente, impulsionados pela atração
natural dos sexos. Posteriormente, com o coração inflamado, a vontade de Páris decide o
seguinte: “Vou levar Helena para a Ásia”. Aqui temos a origem da ação externa e podemos
compreender o que é essa ação. Os hábitos não são necessários nesse contexto.
Pode-se afirmar de forma clara que boas ações externas têm origem em pensamentos
corretos, que seguem a instrução da lei e em uma vontade que governa as ações exteriores,
ordenando os movimentos do corpo para que esteja em conformidade com a lei. Por exemplo,
pense em Cipião, que tinha o pensamento: “Não deves tocar na esposa de outro homem”. Esse
pensamento e a vontade subsequente que controlam os nervos são as causas que restringem as
ações exteriores para evitar comportamentos inadequados.
Essa disciplina de direcionar as ações externas pode ser realizada pela razão humana, mesmo
naqueles que não renasceram. Paulo se refere a essas ações como as obras da lei, não como
virtudes, pois é difícil definir o que é virtude em indivíduos não renascidos e o que são esses
hábitos aos quais Aristóteles se refere. E, se de fato esses hábitos existem na natureza frágil dos
não renascidos, eles são fracos e facilmente desalojados ou enfraquecidos.
Por outro lado, nos renascidos, como no caso de José e Davi, podemos facilmente identificar
o que é virtude, pois é o próprio Espírito Santo que inspira tais movimentos e fortalece os
corações. Aqui, a virtude pode ser chamada pelo próprio Espírito Santo ou pelos movimentos
que Ele gera. É importante distinguir entre o Criador e a criatura, como Paulo faz, afirmando que
é Deus quem age em nós para querermos e realizarmos o que Lhe agrada. Quando a causa é
mencionada, a fonte é indicada, como no Salmo 17. 2: “Tu és o meu Deus, a minha fortaleza”.
Em algumas ações virtuosas de não renascidos, a consideração natural do afeto (στοργή)
desempenha um papel significativo. Por exemplo, os pais suportam grandes fardos na criação de
seus filhos devido ao afeto natural que os move e fortalece. No entanto, a mesma atitude não
pode ser encontrada em todos, pois algumas pessoas não conseguem suportar a mesma carga.
Aqui podemos observar a causa dessas ações, que é, de fato, a virtude. Portanto, é apropriado
chamar essas inclinações, que são inerentes à natureza humana criada por Deus e que servem
como sementes de boas ações, isto é, ações que estão em conformidade com a lei divina.
A capacidade de pensamento também é auxiliada em muitas pessoas de temperamento
moderado pelo bem-estar de seus corpos e mentes, pois uma mente focada é mais forte e o
coração resiste mais facilmente às emoções desenfreadas. Por exemplo, Ciro não é dominado
pela ira, ao contrário de Alexandre quando está embriagado, o que prejudica sua capacidade de
discernir o quão prejudicial é a ira. Além disso, um coração agitado e tumultuado torna seus
movimentos menos ordenados.
No entanto, a disposição física de uma pessoa não pode ser alterada por meio do hábito, mas
os movimentos externos podem ser controlados. A prática é uma diligente instrução mental, onde
as leis e as punições são relembradas e a intenção torna-se mais forte, considerando a beleza da
virtude. Isso leva o coração a se submeter com mais facilidade. Quando repetimos e
consideramos atentamente os preceitos da temperança e as punições pela intemperança, somos
mais propensos a evitar a intemperança. À medida que experimentamos os benefícios da
temperança, a apreciamos mais e somos fortalecidos, a ponto de rejeitar indulgências
prejudiciais. Isso resulta em uma firmeza na mente e no coração, chamada de “hábito”, que é
uma nova força que, de certa forma, purifica a mente e a torna mais resistente e maleável.
Portanto, embora o que seja exatamente um hábito na mente e no coração seja obscuro, a
repetição da doutrina, a intensidade do pensamento e a supressão dos desejos fornecem, com
certeza, uma certa firmeza, por menor que seja.
É útil considerar todos esses aspectos para reconhecer nossa fraqueza e não supor,
erroneamente, que em pessoas não renascidas reside uma grande força interior chamada virtude.
Precisamos entender que, de alguma forma, a mente governa as ações externas por meio do
pensamento da lei. Daí a expressão “obras da lei”. Reconhecendo nossa fraqueza, devemos
também reconhecer o Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, enviado para nos santificar.
Devemos orar para que, sendo o Verbo (λόγος) do Pai Eterno, Ele possa ser eficaz em nossos
corações pela voz do Evangelho, ser o sol da justiça em nossas almas, revelar-nos a vontade de
Seu Pai e converter nossos corações a Deus. Além disso, Ele deve fortalecer nossa fé para que
confiemos constantemente na palavra divina e, com a dádiva do Espírito Santo, inspire em nós
ações que estejam de acordo com a lei de Deus e que sejam benéficas para nós e para os outros,
assim como Ele governou a vida de José, Samuel, Daniel e outros piedosos. Jesus nos instrui de
forma severa para buscarmos refúgio n'Ele e pedirmos ajuda, como em Mateus 11. 28: “Venham
a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e Eu os restaurarei”. Além disso, em João
16. 24, Ele nos exorta a pedir para receber: “Peçam, e vocês receberão”. Com esses
mandamentos e promessas, somos estimulados a invocar a Deus. Quando o fazemos, percebemos
Sua presença e aprendemos o que a verdadeira virtude representa, como Paulo afirmou em 2
Coríntios 3. 18: “Mas todos nós, com rosto descoberto, contemplando, como por espelho, a
glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo
Espírito do Senhor”.
É importante destacar que há uma grande diferença entre as virtudes nas pessoas renascidas
e os dons heroicos nas pessoas não renascidas. Em figuras como Aquiles, Alexandre e Júlio
César, vemos um tipo de fortitude heroica, que é, na verdade, um dom de Deus. Este dom se
manifesta como uma força criada nos corações dessas figuras, permitindo-lhes enfrentar perigos
com menos medo do que outros e lutar de forma mais corajosa e eficaz. No entanto, essa
fortitude heroica em figuras como Aquiles não é governada pela luz divina, verdadeiro
conhecimento e invocação de Deus. Além disso, não é direcionada ao propósito de que suas
vitórias sirvam como testemunho de Deus ou contribuam para a defesa da verdadeira Igreja.
Essas figuras também não buscam a orientação de Deus para suas ações ou O invocam.
Por outro lado, em figuras como Davi, vemos o conhecimento da voz divina. Nelas, a
presença do Filho de Deus, que revela o Pai eterno, e o Espírito Santo, que incita a alegria no
cumprimento da obediência e verdadeira invocação, são evidentes. Seus esforços são
direcionados para o propósito de testemunhar a existência do verdadeiro Deus e defender a
Igreja. Portanto, existe uma diferença significativa entre Davi e Aquiles. Em Davi, Deus habita, a
luz da Palavra de Deus guia seus esforços e o Espírito Santo fortalece seu coração, permitindo
que ele combata em nome de Deus. No entanto, Deus não habita em Aquiles, embora sua
fortitude seja um dom criado por Deus, assim como a força física. O Espírito Santo é dito habitar
apenas naqueles em quem brilha o conhecimento do verdadeiro Deus, aceso pela Palavra divina,
juntamente com a invocação do verdadeiro Deus.
Essas antíteses destacam as diferenças entre as pessoas e suas ações, que devem ser
consideradas para evitar confusão entre a Igreja e os pagãos. Portanto, oramos ao Filho de Deus,
nosso Senhor Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado por nós, para que Ele sempre reúna a Igreja
eterna entre nós e a governe com a luz de Sua doutrina e o Espírito Santo. Amém.
Phillipp
Melanchthon
Philipp Melanchthon (1497-1560) nascido Philipp Schwartzerdt, foi um importante
reformador protestante alemão e um dos principais colaboradores de Martinho Lutero na
Reforma Protestante do século XVI. Nascido em Bretten, no estado de Baden-Württemberg, no
sul da Alemanha, Melanchthon recebeu uma educação humanista em Heidelberg e Tübingen,
onde estudou filosofia, hebraico, grego e teologia.
Em 1518, aos 21 anos, Melanchthon tornou-se professor de grego na Universidade de
Wittenberg, onde conheceu Martinho Lutero. Impressionado com seus conhecimentos e
habilidades intelectuais, Lutero o convidou para ajudar na tradução do Novo Testamento para o
alemão e, posteriormente, para colaborar na Reforma Protestante. Melanchthon se tornou um dos
principais defensores da doutrina protestante, pregando em diversas cidades alemãs e escrevendo
numerosas obras teológicas, filosóficas e pedagógicas.
Em 1521, Melanchthon participou do famoso Debate de Leipzig, onde defendeu a doutrina
da justificação pela fé contra os representantes da Igreja Católica. Nesse mesmo ano, ele
publicou sua obra mais importante, a “Loci Communes”, que se tornou uma das obras
fundamentais da teologia protestante e estabeleceu as bases para a confissão de Augsburgo,
documento que resume as crenças luteranas.
Além de seu trabalho teológico, Melanchthon foi um defensor da educação humanista e da
reforma escolar. Em 1528, ele criou um sistema de ensino primário e secundário em Wittenberg,
que serviu de modelo para outras cidades alemãs. Ele também foi o fundador da Universidade de
Tübingen e trabalhou na reforma da Universidade de Leipzig.
Durante os anos 1540, Melanchthon esteve envolvido em várias disputas teológicas dentro
do movimento protestante, particularmente em relação à doutrina da Eucaristia. Ele se opôs às
visões mais radicais de reformadores como Andreas Bodenstein von Karlstadt e Thomas
Müntzer, que defendiam a destruição de imagens e a violência contra os católicos. Philipp
Melanchthon faleceu em 19 de abril de 1560, em Wittenberg, aos 63 anos.
Sua caneta pronta, pensamento claro e estilo elegante, fez dele o escriba da Reforma, a
maioria dos documentos públicos daquele lado sendo redigidos por ele. Ele nunca alcançou toda
a independência de Lutero, apesar de gradualmente modificar algumas de suas posições daquelas
do puro luteranismo com o qual se estabeleceu. Como reformador educacional, Melanchthon
contribuiu para o estabelecimento das ciências naturais de hoje nas universidades.
Trabalhos:

Loci Communes (1521, expandido outras vezes – 1535, 1543 e em 1559):


Grammatica Latina (1527)
Confissão de Augsburgo (1530);
Apologia da Confissão de Augsburgo (1531);
Sobre o poder e autoridade do Papa (1537);
Grammatica Graeca (1538)
Comentário de Romanos (1540);
História da vida e atos de Lutero (1548)
Confissão Saxônica (1551).

Diversas outras obras, cartas e tratados podem ser encontrados no compêndio “Corpus
Reformatorum”.
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[1]
MELANCHTHON, Philipp. Loci praecipui theologici 1559, Lat.-Dt., Bd. 1. Leipzig: 2018. Traduzido por Sven Grosse.
[2]
MELANCHTHON, Philipp. Loci Comunes 1555. Oxford University Press, 1965. Traduzido por Clyde L. Manschreck
[3]
MELANCHTHON, Philipp. Loci communes 1543. Concordia Publishing House, 1992. Traduzido por J.A.O. Preus.
[4]
HOECKX, M. (2022). Philip Melanchthon’s Moral Philosophy between Scholasticism and Lutheranism. [Thesis fully internal
(DIV), University of Groningen]. University of Groningen.
[5]“É um grande crédito para Calvino que, apesar de sua sensibilidade e intolerância contra os oponentes de seu dogma favorito,
ele respeitou o julgamento do mais eminente teólogo luterano, e deu prova disso ao publicar uma tradução francesa da edição
melhorada de Loci Praecipui Theologici de Melanchthon em 1546, com um prefácio elogioso de sua autoria, no qual diz que o
livro era um breve resumo de todas as coisas necessárias para um cristão saber sobre o caminho da salvação, declaradas da
maneira mais simples pelo autor profundamente erudito. Ele não esconde a diferença de pontos de vista sobre o tema do livre
arbítrio, e diz que Melanchthon parece conceder ao homem alguma parte na sua salvação; contudo, de tal maneira que a graça de
Deus não seja diminuída de forma alguma, e nenhum motivo nos seja deixado para nos orgulharmos.
Este é o único exemplo de um reformador republicando e recomendando o trabalho de outro reformador, que era o único rival
formidável de seu trabalho principal sobre o mesmo assunto (as Institutas), e diferia dele em vários pontos.” – Philip Schaff,
History of the Christian Church, Volume VIII: Modern Christianity. The Swiss Reformation
[6]
João Maier ou Johannes Eck (1486-1543), Johannes Cochlaeus (1479-1552), Afonso Salmerón (1515-1585).
[7]
ἐ πέχειν, tal como em Filipenses 2. 16.
[8]
έποχήν.
[9]
ἐ λεγχος, tal como em Hebreus 11. 1.
[10]
Foi um filósofo helenístico grego. Ele foi o fundador do Ceticismo Acadêmico e o que é várias vezes chamado de Segunda ou
Média ou Nova Academia - a fase da Academia Platônica na qual abraçou o ceticismo filosófico.
[11]
Foi um poeta grego antigo, que viveu por volta do século VII antes de Cristo. Alguns autores também o consideraram o
primeiro filósofo grego.
[12]
Albert Pighius, ou Pigghe (1490-1542).
[13]
ουσίαν et υπόστασιν.
[14]
A união das naturezas humana e divina na pessoa de Cristo.
[15]
Próso̱ po: rosto, face, semblante.
[16]
ομοούσιος.
[17]
Verbo, Palavra.
[18]
ἀ παύγασμα.
[19]
λόγφ.
[20]
όμοούσιοι.
[21]
ταντολογια - insistência frívola de uma mesma ideia, expressada como algo novo, mas de modo diferente, não havendo,
porém, acúmulo de conhecimento inovador.
[22]
ύπόστασις.
[23]
ζφιστέ έλέησον.
[24]
Melanchthon cita duas formas de Logos: λόγος (Palavra no sentido de razão, causa, como em João 1. 1) e λόγον (palavra,
como em Mateus 12. 32).
[25]
Paulo de Samósata (200-275), Fotino (-morto em 376), Miguel Serveto (1511-1553).
[26]
João 8. 58.
[27]
ύπόστασιν.
[28]
περί αρχών (Sobre os primeiros princípios).
[29]
ἀ νυπόσιατον.
[30]
Mateus 3. 17.
[31]
λόγφ.
[32]
“Contra as Heresias”, Livro 3, capítulo 19.
[33]
όμοούσιον.
[34]
θρόμβοι.
[35]
Isaías 63. 11-14.
[36]
Efésios 4. 7.
[37]
Eusébio de Cesareia (265-339).
[38]
Ezequiel 33. 11.
[39]
Salmo 50. 15.
[40]
και μεσίτης και ικέτην.
[41]
Isaias 59. 21.
[42]
De finibus bonorum et malorum (Nas extremidades do bem e do mal), de Cícero.
[43]
Epistulae ex Ponto (Cartas do Mar Negro / Cartas Pônticas), de Ovídio.
[44]
São Lourenço ou Lurenço de Huesca (225-258).
[45]
Salmo 24. 5.
[46]
A teoria heliocêntrica de Copérnico ainda estava em discussão na década de 1550 (fora publicada em 1543). Melanchthon se
opôs a teoria, mas, durante suas comprovações (ainda que o telescópio só tivesse sido inventado por Galileu em 1609), autorizou
seu ensino como modelo conceitual.
[47]
“Édipo”, de Sêneca.
[48]
Salmo 145. 18.
[49]
Lorenzo Valla (1407-1457).
[50]
Clito foi um oficial do exército macedônio liderado por Alexandre, o Grande. Mesmo tendo salvado a vida de Alexandre na
Batalha do Grânico em 334 a.C, Clito foi, mais tarde, morto a mando ou pelas mãos do próprio Alexandre.
[51]
Pirro (318 a.C.-272 a.C.), Antígono Monoftalmo (382 a.C.-301 a.C.).
[52]
Metamorfoses, Ovídio.
[53]
μονον θεληδον, και θεος πφοαπανια.
[54]
ό δε ελκων, ιόν βουλόμενον ἔ λκει.
[55]
ίλικούς καί χοϊκούς.
[56]
Política ou políticos aqui no sentido dos legisladores.
[57]
O longobardo ou langobardo, também conhecido como lombardo, é a língua extinta falada pelos lombardos (Langobardi), um
povo germânico que se estabeleceu na Itália no século VI.
[58]
Deuteronômio 27. 26
[59]
λογομαχίας (ver 1 Timóteo 6. 4).
[60]
Agostinho de Hipona (354-430), Boaventura (1221-1274), Hugo de São Vítor (1096-1141).
[61]
πλ ἀ σμα.
[62]
γνωμαι.
[63]
ἀ ναεία.
[64]
αταξίαν.
[65]
φιλοσιοφγία.
[66]
ἀ πάθειαν.
[67]
ἀ στοργία.
[68]
φιλανθρωπία.
[69]
στοργ ἀ ς.
[70]
Marco Pórcio Catão Uticense - Marcus Porcius Cato Uticensis (95 a.C.- 46 a.C.).
[71]
ἀ ταξία.
[72]
αλλοτριοεπισκόκουζ.
[73]
Cícero, De officiis (I, 10, 33).
[74]
κοινα έννοία e προληψει.
[75]
Ou: consequentemente, o poder de concordância ou consentimento é menos resistente, semelhante a um cocheiro que é levado
pelos cavalos que puxam a carruagem, incapaz de ouvir ou controlar as rédeas do veículo.
[76]
História Eclesiástica, livro 5, I. 17.
[77]
Salmo 143. 2.
[78]
Salmos 130. 3; 32. 5; 110. 4.
[79]
Comparar com Lucas 24. 47.
[80]
λαω μη πιστευε, πολυτροπος εστιν όμιλος.
[81]
Uma tradução aproximada de τό δητόν seria “a própria coisa” ou “o próprio assunto”. Essa expressão é usada para enfatizar
algo específico ou essencial em um contexto. Ela pode transmitir a ideia de foco, importância ou resumo do assunto discutido. No
entanto, a tradução exata pode variar dependendo do contexto em que é usada.
[82]
“Farsália” (também conhecida como “A Guerra Civil”) de Lucano. Livro VII, versos 560-561.
[83]
λογικον.
[84]
Georgio Vicelio, ou Georg Witzel (1501-1573) foi um teólogo contemporâneo de Lutero e Melanchthon, que adotou
inicialmente os ideias da Reforma mas logo adotou uma posição particular, se aproximando de Erasmo e da Igreja Católica.
[85]
1 Pedro 5. 8.
[86]
Salmos 143. 2; Salmo 19. 12.
[87]
Miriam. Ambos os nomes vêm da palavra hebraica ‫( מרים‬Miriam), que significa “amarga” ou “mar”.
[88]
“Tu dominaris, non regnet peccatum”, possivelmente se referindo à Gênesis 4. 7.
[89]
“Dilectio”, também podendo ser entendido como caridade.
[90]
ἐ πιείκεια. Também traduzido como “clemência” ou “indulgência” (ver Romanos 5. 8; Efésios 4. 32; Colossenses 3. 12).
[91]
Conferir Lucas 7. 47.
[92]
Lucas 7. Comparar com Tiago 5. 20.
[93]
Alexandre Magno (356 a.C.-323 a.C.), Lúcio Cornélio Sula (138 a.C.-78 a.C.), Caio Mário (157 a.C.-86 a.C.).
[94]
Hebreus 10. 17.
[95]
Isaías 63. 16.
[96]
Sólon foi um legislador grego que viveu no século VI a.C. Ele é considerado o pai da democracia ateniense, promovendo,
dentre outras leis, a abolição da escravidão por dívidas, a divisão da sociedade em quatro classes e a criação de um tribunal
popular.
[97]
κακοζηλίαι.
[98]
Êxodo 32. 6.
[99]
“As mentes se tornam em luxúria quando tudo está indo bem, e não é fácil suportar a boa sorte com uma mente equilibrada”
(“Ars Amatoria”, Livro II, 437-38).
[100]
Provérbios 28. 14; Mateus 26. 41.
[101]
Colossenses 3. 6.
[102]
Lucas 15. 7-10.
[103]
Lucas 9. 35.
[104]
άθεοι.
[105]
πολυπραγμοσύνην.
[106]
Gálatas 1. 8; 1 Reis 19. 18.
[107]
Mateus 18. 17.
[108]
Aqui a referência não é clara, mas pode se referir à rebelião ocorrida em Münster em 1532, promovida por radicais
anabatistas que tomaram as igrejas da cidade.
[109]
Gênesis 12. 3.
[110]
Cf. Juízes 14. 8.
[111]
κακοζηλία.
[112]
έιδωλολατρίαν.
[113]
ενθεσιασμούς.
[114]
σφραγίδες.
[115]
Os rituais de Elêusis eram um festival religioso, dedicados às deusas Deméter e Perséfone, que acontecia na cidade de
Elêusis, na Grécia Antiga. Eram realizados anualmente, durante nove dias, no outono. Eles começavam com uma procissão de
Atenas para Elêusis, que era liderada por um sacerdote vestido de Deméter. Durante a procissão, os participantes faziam preces e
cantavam para as deusas. Ao chegarem em Elêusis, os participantes se reuniam no santuário das deusas e participavam de uma
série de rituais secretos. Os rituais incluíam a purificação dos participantes, o consumo de uma bebida especial chamada kykeon,
e a visualização de um drama sagrado que retratava o rapto de Perséfone por Hades, o deus do submundo.
[116]
A expressão latina citada aqui, “ex opere operato”, significa “pela obra operada”. Ela é usada na teologia católica para
descrever a eficácia dos sacramentos. De acordo com esta doutrina, os sacramentos são eficazes por si mesmos,
independentemente da fé ou disposição do receptor. O protestantismo, por outro lado, rejeita esta doutrina, crendo que os
sacramentos são eficazes apenas para aqueles que têm fé e estão dispostos a recebê-los.
[117]
εύχαριστία.
[118]
κοινωνικούς.
[119]
Καθαροί (“cátaros” ou “puros”), também conhecidos como albigenses, seguidores da corrente heterodoxa mais conhecida e
radical do cristianismo medieval, o Catarismo.
[120]
No Textus Receptus e na Septuaginta, “αδύνατον” (Hebreus 6. 4).
[121]
πλεονεκτικός.
[122]
Flávio Maurício Tibério Augusto (539-602), imperador romano oriental (bizantino) de 582 a 602; Flávio Focas Augusto
(547-610) imperador romano oriental (bizantino) de 602 a 610.
[123]
Tobias 4. 11.
[124]
Mateus 17. 5.
[125]
Mateus 7. 7; Lucas 11. 13; Mateus 25. 29; Salmo 68. 28.
[126]
Romanos 8. 30.
[127]
Romanos 10. 6.
[128]
αύτόματα.
[129]
έκούσια.
[130]
Πλείη γαια κακών, πλείη δε θάλασσα.
[131]
Aqui Melanchthon provavelmente cita o livro “Crônicas de Carion” (uma referência à Johannes Carion), o qual trata de
tradições sobre relatos que não estão documentados como, por exemplo, a morte do profeta Jeremias.
[132]
φιλων έρημος, ώ τάλας άπόλλυμαι. Citação da interessante Carta A (ou 1) para Dionísio, sendo a autoria atribuída de forma
contestada à Platão.
[133]
Relativo à perseguição deciana de cristãos, que ocorreu em 250 d.C. sob o imperador romano Décio.
[134]
Daniel 9. 8.
[135]
ότω γαρ,ανδρι εις εαυτον ανηρτηται παντα τα προς ευδαιμονιαν φεροντα, ή εγγυς τουτου, και μη εν άλλοις ανθρωποις
αιωρειται, εξ ων ή ευ ή κακως πραξαντων πλανασθαι ήναγκασται, και τα εκεινου, τουτω άριστα παρασκευασθαι ζην.
[136]
και μεσιτης και ικετην.
[137]
Johann Tauler (1300-1361).
[138]
Em outras versões da obra “As Suplicantes”, de Eurípedes, τί δ' α ἰ σχρ ὸ ν ἀ νθρώποισι τ ἀ λλήλων κακά (O que é
vergonhoso para os homens é o mal uns dos outros?), frase mencionada na peça por Evadne, uma princesa tebana.
[139]
Melancthon ficou muito satisfeito com estes versos de seu amigo Joachim Camerarius (1500-1574), e obteve grande conforto
deles em 1546, quando tantos perigos se acumulavam ao seu redor (Historical Notes to the Lyra Germanica, Oxford University,
1865).
[140]
κενοι κενα λογιζονται δια επιθυμιας. Provavelmente uma citação de Heráclito.
[141]
óο κυριος μου και θεος μου.
[142]
λόγε και είκων αιδιου πατρός.
[143]
παντοτε χαιρετε, αδιαλείπτως προσευχεσθε, εν παντι ευχαρισθειτε.
[144]
και ακαταστασιας
[145]
Peter Paludanus (1277-1342).
[146]
Νομάδες άκούει ούδεν ούδεις ούδενός. Cicl. 120 ed. Barnes.
[147]
Comparar com Romanos 13. 1-5.
[148]
Andreas Karlstadt, em latim Carolstadius (1486-1541), Ambrósio Pelargus (1493/94-1561), Jacobus Struthio (teólogo
relacionado ao debate da Santa Ceia de Zuínglio).
[149]
Αέγει δη και νυν ουτος ο λογος αληθεια χρωμε νος, ως δσων αν πολεων μη θεος, αλλα τις αρχει θνητος, ουκ έστι κακων
αυτοις, ουδε πονων αναπαυσις.
[150]
Uma referência ao submundo.
[151]
πολυπραγμοσυνη.
[152]
άρχων έστι φύλαξ νόμου.
[153]
Melanchthon usa duas palavras aqui: Agyrtae( ἀ γύρται), que tem origem em mendigos errantes, originados do Oriente e que
eventualmente migraram para a Itália, que frequentemente alegavam uma posição sacerdotal, e sustentavam-se por meio de
práticas como leitura de sorte e habilidades similares; e Eurybati, que aparece em um poema em Heroides, de Ovídio, que pode se
referir a um personagem ou a “Eurybates”, arautos citados como fazendo parte dos exércitos gregos durante a Guerra de Tróia.
Pelo sentido do texto, a ideia é de impostores, como adota Preus em sua tradução.
[154]
Jean Charlier de Gerson (1363-1429).
[155]
Alguns consideram emendatis como sendo “reformada”, como traduz Herbert Thorndike (Theological works of Herbert
Thorndike, página 235).
[156]
Παν τα εύσχημονως και κατα ταξιν γινεσθω.
[157]
εθελοθρησκεία.
[158]
“Spartam, quam nactus es, orna”, algo como “Procure cumprir a tarefa que lhe foi atribuída, digna do seu ofício” (Cartas para
Ático, de Cícero).
[159]
λύτρον.
[160]
πιθανολογιαι.
[161]
Éclogas de Virgílio, X. 27.
[162]
γοητείας.
[163]
Νυμφευματων μεν των έμων πατηςέμος Μεριμναν εξει, κουκ εμον κρινειν ταδε.
[164]
Efésios 5. 29.
[165]
ουδεν οφελος της πολιτειας, μη έχoυσης νευρα καταω αδικουν πων.
[166]
οι φαυλοι φαυλοις ηδεις, και κακος κακο συντετηκεν.
[167]
Provavelmente Aristides (530–468 a.C.).
[168]
Marco Pórcio Catão Saloniano (nascido em 154 a. C), filho de Catão, o Velho.
[169]
Sátira II, de Juvenal.
[170]
Polipragmasia, πολυπραγμοσύνη.
[171]
πολλοί τά μέν έργα των ευτυχούντων ού πειρώνται μιμείσθαι, τα δε πάρεργα ζηλούντες έκθεατρίζουσι τήν εαυτών άκισίαν.

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