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Livro - Círculos de Leitura - A Arte Do Encontro
Livro - Círculos de Leitura - A Arte Do Encontro
A arte do encontro
Organização
Catalina Pagés
Maria Aparecida Lamas
Editor-chefe Capa
Norman Gall Eduardo Chazan Breitbarg
Organização Fotografia
Catalina Pagés e Maria Aparecida Lamas Carlos Diego Carvalho Silva, Emilly Monte, Fabio Knoll,
Fábio Tavares de Barros, Márcio Jotta, Rita Dadario e
Coordenação editorial Suely Guimarães. Imagens Adobe Stock (págs. 85, 95,
ReCriar editorial 111, 118, 129, 131, 138, 145 e 156).
ISBN 978-85-85055-00-4
18-18529 CDD-807
Patrocínio: Apoio:
Realização:
Sumário
Prefácio ......................................................................................................................................................................................... 6
Introdução ................................................................................................................................................................................ 11
Convite à Odisseia ............................................................................................................................................................ 13
1. Bases metodológicas e filosóficas de nosso trabalho ............................................................................................ 17
1.1 As bases da metodologia ........................................................................................................................................ 20
1.2 Aspectos pedagógicos da metodologia ............................................................................................................ 27
1.3 Arte, inclusão social e pertencimento ................................................................................................................. 31
2. Nosso percurso ................................................................................................................................................................... 35
2.1 Círculos de Leitura – Relato de uma experiência ............................................................................................. 35
2.2 O programa Círculos de Leitura em São Paulo ................................................................................................. 38
Círculos de Leitura no interior de São Paulo ..................................................................................................... 42
Círculos de Leitura nas Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) do Centro Paula Souza ............................. 46
2.3 O programa Círculos de Leitura no Ceará .......................................................................................................... 50
As Gaivotas do Ceará ................................................................................................................................................. 50
O êxito do programa Círculos de Leitura no Ceará ......................................................................................... 69
Os jovens do Ceará .................................................................................................................................................... 74
2.4 O programa Círculos de Leitura cruza o Atlântico e chega a Roma .......................................................... 85
3. A conversa dos jovens com os clássicos ..................................................................................................................... 91
3.1 Cartas das obras do repertório .............................................................................................................................. 93
Fernão Capelo Gaivota .............................................................................................................................................. 93
A comédia humana .................................................................................................................................................. 103
O Pequeno Príncipe ................................................................................................................................................... 113
Kouros: tempo, caráter e destino .........................................................................................................................123
Noites brancas .............................................................................................................................................................133
Dom Casmurro ............................................................................................................................................................141
3.2 Cartas temáticas .......................................................................................................................................................149
Aretê .............................................................................................................................................................................149
Realização ....................................................................................................................................................................152
Medo .............................................................................................................................................................................159
4. A arte do encontro: os efeitos, as transformações ................................................................................................167
Agradecimentos ................................................................................................................................................................... 190
Referências ..............................................................................................................................................................................191
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Cambralenta/Adobe Stock
Prefácio
D
e repente, Aline Jacó joga um verso de Ferreira Gullar: “Uma par-
te de mim/ é todo mundo:/ outra parte é ninguém:/ fundo sem
fundo”. Do outro canto da sala, Lindemberg responde na lata:
“Uma parte de mim/ é multidão:/ outra parte estranheza/ e solidão”. O
desafio segue por algumas estrofes. Logo alguém interrompe mudando
o registro para Sophia de Mello Breyner: “Há mulheres que trazem o mar
nos olhos/ Não pela cor/ Mas pela vastidão da alma.”
É noite, estamos na pequena casa encantada da rua (devia ser ruazi-
nha, viela, tão humilde ela é) Tinhorão, ao lado da praça Vilaboim, Higie-
nópolis, São Paulo. Casinha de história de fada, daquelas que parecem
feitas de pão de mel, que Catalina Pagés comprou e transformou na mo-
rada da poesia e da fantasia. Sede informal do programa Círculos de Lei-
tura fundado pelo Instituto Fernand Braudel, o sobradinho é a entrada
secreta para o mundo dos livros, versos, romances, ensaios de filosofia.
Olhando do lado de fora, a casa é uma graça, mas esconde com pudor
o espaço infinito que a arquitetura expandiu, afundando pelo quintalzi-
nho, subindo a escada de madeira ladeada de livros, abrindo-se para o
terraço e o céu iluminado de estrelas.
Na Casinha reúnem-se num círculo de cadeiras e sofás meninas, mo-
ças e rapazes vindos de periferias longínquas, de Quixeramobim, do
Brasil profundo do qual trazem o rosto moreno, os olhos brilhantes, a
energia de quem começa a viver. Vieram para ler a Odisseia, Guerra e
Paz, Sagarana, Grande Sertão, Tom Sawyer, Huckleberry Finn, poemas de
Fernando Silveira
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vocação de estudar a realidade diretamente, por meios empíricos de
pesquisa local, Norman Gall, o diretor-executivo do Braudel, foi um dos
primeiros, se não o primeiro, estudioso a detectar e a examinar o que
se tornaria lugar-comum mais tarde, até explorado com exagero pela
política: o aparecimento, nas periferias de uma sociedade vibrante, de
modesta classe média em ascensão, empenhada em melhorar o nível de
vida, em adquirir casa própria, aparelhos eletrodomésticos, investir na
educação, própria e na dos filhos.
O impulso de autoaprimoramento batia de frente com o obstáculo
maior: a baixa qualidade da escola pública, sem bibliotecas, com dire-
tores desmotivados e professores ausentes. Havia exceções parciais. Em
uma delas, escola de Ensino Médio de Diadema (SP), então distrito cam-
peão em número de homicídios, a boa vontade da diretora fez nascer
uma ideia em Catalina: reunir as meninas e os rapazes mais interessados
no estudo para organizar um grupo de leitura.
Catalina inspirou-se na sua prática de clínica psicológica, na qual vi-
nha há tempos utilizando textos de O Banquete, de Platão, para estimular
a autoanálise e a reflexão. Com a participação pessoal de Norman, viu-se
que o método permitiria ao Instituto passar da reflexão à ação com vis-
tas a transformar a vida das pessoas que buscavam crescer mediante o
estudo como autodidatas.
De Platão e Homero foram-se ampliando os limites da leitura para a
ficção, a poesia, os estudos de sociologia, economia, política. Aos pou-
cos, os Círculos cresceram em número de participantes, viram-se ado-
tados por outras escolas de diversos bairros da periferia de São Paulo e
de outros estados. A experiência expandia-se constantemente, à medida
que antigos membros dos grupos se convertiam em multiplicadores, em
pessoas capazes de organizar e dirigir novos Círculos.
Houve tentativas de trabalhar com secretarias de Educação de vários
estados brasileiros, a começar por São Paulo, com a intenção de incluir
os Círculos entre as atividades regulares do ensino. Nem sempre foi pos-
sível avançar no setor governamental em razão dos obstáculos usuais de
burocratização, rigidez, interesses corporativos. O êxito principal ocor-
reu no estado do Ceará, possivelmente o único que vem demonstrando
na prática a capacidade de dar ênfase à educação na ação administrati-
va. Como balanço desses muitos anos de trabalho, contam-se hoje em
alguns milhares os jovens que passaram pelos grupos de leitura, com
maior ou menor tempo de permanência.
Como se vê por essa breve história, os Círculos de Leitura brotaram
da própria realidade, não de um conceito abstrato e teórico qualquer.
Sua inspiração original provém do reconhecimento da importância de
desenvolver a mente e o caráter dos jovens por meio do contato direto
com os grandes livros da história da humanidade. Em lugar de currículos
compostos de comentários de segunda ou terceira mão, estimula-se a
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pessoa a ir direto à fonte, a ler Tolstói, Dostoiévski, Charles Dickens, Pla-
tão, Homero, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector.
Esse método foi utilizado nos anos 1940, na Universidade de Chicago,
sob o comando de Robert Maynard Hutchins e deu origem à coleção
The Great Books. Um dos participantes da experiência, Mortimer Adler,
explicou na obra How to read a book (Como ler livros, na versão em por-
tuguês) que um grande livro deve preencher três critérios: ter valor para
o homem contemporâneo; ser inesgotável, podendo ser lido e relido in-
contáveis vezes; encarnar as grandes ideias e temas que ocuparam as
maiores inteligências dos últimos 25 séculos.
Os Círculos tomaram por base algumas dessas inspirações, mas foram
muito mais longe na iniciativa de ir às periferias, ao interior dos estados,
em busca dos jovens. Os membros dos grupos de leitura são estimu-
lados a dialogar com os grandes livros como ponto de partida de uma
transformação completa de suas existências, como plataforma para um
crescimento contínuo: intelectual, cultural, criativo e, acima de tudo, de
construção do caráter, de desenvolvimento de uma personalidade rica e
harmoniosa.
Nesses anos, os exemplos de transformação individual são impressio-
nantes, em termos de moças e rapazes que conseguiram ingressar nas
melhores universidades públicas, obter bolsas de estudo, completar cur-
sos considerados difíceis, desabrochar talentos de poetas e de escritores,
estudar no exterior, alcançar postos importantes em empresas competi-
tivas. No entanto, mais que as provas de sucesso exterior, o que conta de
verdade é a riqueza humana dessas vidas renovadas e iluminadas pela
poesia e pela arte.
Para sentir o que estou dizendo, é preciso tomar o caminho da Casinha
da rua Tinhorão, bater à porta, ser acolhido pelas vozes que recitam poe-
mas, pelos acordes do violão, sentar-se à mesa para partilhar o lanche do
fim do dia, escutar o que dizem as moças e os rapazes sobre os livros que
descobrem. E perceber que, de tudo o que eles, elas e nós aprendemos,
o principal, o centro de tudo, se encontra no poema de John Donne, que
os frequentadores da Casinha repetem de cor:
8
H
á muito acompanho os Círculos de Leitura, esta incrível inicia-
tiva criada pelo Instituto Braudel e liderada por Catalina Pagés
há aproximadamente 18 anos. Pude coordenar como volun-
tária um dos Círculos e guardo boas lembranças desses jovens, então
com idades variando entre 13 e 17 anos, lendo textos como Grande
Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ou O Banquete, de Platão.
Juntos aprendemos muito: o contato com o que de melhor a litera-
tura nacional e internacional produziram expandiu os horizontes dos
adolescentes de forma impressionante, especialmente pela metodolo-
gia adotada, em que cada um lia um trecho do texto e, depois, bus-
cávamos, coletivamente, uma compreensão mais profunda do que ali
estava contido e de eventuais lições para a condição humana, espe-
cialmente, para nossa época.
A possibilidade de entender os impasses éticos que personagens
vivem em cenários ficcionais, eventualmente distintos dos nossos, ou
a maneira como lidavam com situações fora de seu controle levavam
o grupo a desenvolver sua capacidade de analisar, de trabalhar cola-
borativamente na busca de saídas para impasses e fugir de soluções
simplistas e desumanizadoras.
Mas o trabalho dos Círculos não se limitava à leitura, à produção
textual a partir das discussões de livros; fazia parte da rotina dos par-
ticipantes uma agenda cultural voltada a ampliar o repertório desses
adolescentes que, normalmente, não teriam essas oportunidades em
sua vida. Mais de uma vez, acompanhei-os em idas para assistir a or-
questras e óperas.
Os Círculos de Leitura têm mais impacto quando o programa se
soma a políticas educacionais, ou seja, quando conseguem atuar den-
tro de redes de escolas públicas, de forma consistente. Naturalmen-
te, a descontinuidade de administrações traz desafios a um trabalho
como esse, que demanda tempo e solidez para trazer resultados. Mes-
mo assim, o caso do Ceará se destacou como o mais promissor e pro-
dutivo, onde os Círculos floresceram e deram muitos frutos.
Acompanho até hoje muitos dos jovens que passaram pelos Círcu-
los em São Paulo. Boa parte deles ingressou em boas universidades, a
despeito da origem humilde e da limitada escolaridade de seus pais.
Esses jovens atuam em diferentes carreiras, mantendo uma atuação
cidadã em prol de uma educação de qualidade para todos e de um
Cláudia Costin
Foi Secretária de Educação desenvolvimento mais inclusivo.
da cidade do Rio de Janeiro Acredito que a política educacional tem muito a aprender com o
de 2009 a 2014. Atuou como trabalho que é feito nos Círculos de Leitura. Em tempos incertos, em
diretora sênior para Educação
no Banco Mundial, de 2014 a que as competências a serem desenvolvidas nos jovens são outras,
2016. Atualmente é diretora do dadas as características de um mundo em contínua mudança – com
Centro de Excelência e Inovação a extinção de postos de trabalho baseados em tarefas rotineiras e a
em Políticas Educacionais –
CEIPE/ FGV EBAPE. criação de novos, que demandam maior capacidade de concepção,
9
colaboração e criatividade –, o trabalho dos Círculos mostra que é
possível construir aprendizagens mais profundas, que levem os jovens
a aprender ao longo da vida e a navegar com sucesso na chamada 4ª
Revolução Industrial.
Se Secretarias de Educação puderem se inspirar nesse exemplo e
introduzir abordagens assemelhadas, os jovens terão muito a ganhar,
especialmente aqueles que vêm de meios mais vulneráveis. Afinal, o
conhecimento e o acesso ao que de mais belo e instigante a Huma-
nidade produziu não apenas ensinam a pensar e a ser um aprendiz
permanente, constituem-se em um direito de cada cidadão.
Longa vida aos Círculos de Leitura!
Cláudia Costin (no centro) em encontro com antigos multiplicadores na casa sede dos Círculos de Leitura.
10
Introdução
I
dealizado por Catalina Pagés, filósofa e psicanalista, com especiali-
zação em dinâmicas de grupo, o programa Círculos de Leitura, ini-
ciativa do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, tem sido
desenvolvido com crianças e jovens de comunidades e escolas públi-
cas em vários estados do Brasil: São Paulo, Ceará, Minas Gerais, Pernam-
buco e Bahia.
São Paulo foi o estado onde nasceu o programa, no ano 2000, com
um pequeno grupo de alunos na Escola Municipal Conforja, em Dia-
dema, visando contribuir para a diminuição da violência escolar. Esse
primeiro grupo nasceu como aqueles bons encontros que acontecem
de forma inesperada e vão abrindo caminhos.
Em 2002, esse projeto piloto já havia beneficiado um total de 400
alunos em três escolas estaduais de Diadema e em centros comunitá-
rios de São Bernardo do Campo.
Em 2003, por meio de uma parceria com a Diretoria Regional de
Ensino de São Bernardo do Campo, os Círculos de Leitura ampliaram
sua atuação para mais seis escolas estaduais, localizadas em áreas de
periferia com altos índices de violência. Desde então, o programa vem
ampliando sua parceria com mais escolas da rede pública.
Em 2006, com o apoio de vários parceiros, 29 escolas já eram benefi-
ciadas, na capital paulista e em São Bernardo do Campo. Daí em diante,
o programa foi crescendo e alcançando cada vez mais escolas. Uma das
preocupações sempre foi chegar até a periferia, atender os alunos que
mais precisam; com esse intuito, o programa já foi implementado em
regiões de São Paulo como Caieiras, Franco da Rocha, Vila Sônia e São
Miguel Paulista.
Continuamente aprimorado, em uma fecunda parceria com pro-
fessores, diretores, secretarias municipais e estaduais de Educação, o
programa Círculos de Leitura se apresenta como um parceiro da escola
na tarefa de formação integral dos jovens, desenvolvendo, por meio
da leitura e do diálogo, valores como ética, empatia, respeito mútuo,
responsabilidade social, ao mesmo tempo que promove e estimula o
protagonismo juvenil.
É importante destacar que esse trabalho em prol do desenvolvimen-
to integral tem sido viabilizado pelo apoio de inúmeras empresas que
compartilham da visão de que a formação das crianças e jovens é o bem
11
maior de um povo, sendo, portanto, responsabilidade de toda a sociedade.
Ao completar 18 anos, sentimos a necessidade e ficamos muito felizes
em compartilhar com nossos parceiros e amigos um pouco dessa história
que tem sido construída graças a tantos bons encontros.
Para coroar esse aniversário, que traz consigo um profundo simbolismo,
comemoramos outras duas conquistas. Primeiro, a premiação do progra-
ma Círculos de Leitura, em novembro de 2017, na segunda edição do Prê-
mio IPL – Retratos da Leitura, conferido pelo Instituto Pró-Livro, que visa:
Instituto Pró-Livro
Catalina Pagés e Maria Aparecida Lamas (no centro) em cerimônia de entrega do Prêmio IPL – Retratos da Leitura,
oferecido pelo Instituto Pró-Livro (2017).
12
Convite à Odisseia
V
enha fazer parte desta aventura! Os barcos já estão prontos!
Vamos para o mar descobrir o que existe no nosso mundo.
Vamos aprender com o mar a enfrentar a vida.
Mais do que aprender com o mar, vamos aprender com um
grande herói – Ulisses – e com todos aqueles que o cercam, os que
querem ajudar e os que querem atrapalhar. Ele está à nossa espera.
Sem nós, ele não conseguirá voltar para casa!
E Ulisses já está há tanto tempo longe de casa... Precisamos aju-
dá-lo. Sua esposa, a bela Penélope, está esperando-o em casa, e o
filho Telêmaco, que era bebê quando ele saiu, já é um jovem bonito
e forte. Se ele não voltar logo, sua família estará falida! Um bando
de aproveitadores está desrespeitando a sua casa e não podemos
deixar um herói nessa situação. Ele já fez muito por nós. Se você
ainda não conhece a sua história, terá uma grande oportunidade
de descobrir tudo o que ele fez e qual sua influência em nossa vida
até hoje. E você pode se perguntar: Até hoje? Sim! Você descobrirá
como, na viagem que faremos até a Grécia antiga. Não acredita que
podemos voltar ao passado? Eu já fiz esse trajeto e garanto: ele é
seguro. Só voltei para lhe buscar!
Calma! Não vamos usar uma daquelas grandes máquinas do
tempo, que se veem em filmes e que geralmente costumam fa-
lhar. Esses meios realmente ainda não são seguros... Vamos usar um
meio bem mais antigo: um livro.
Não tenha medo dos livros, companheiro. Vamos usar nossos li-
vros não apenas para enfeitar as estantes; vamos viajar com eles!
Você acha que não pode? Não se preocupe, não estará sozinho. Es-
taremos todos no mesmo barco, descobrindo juntos, ao longo do
caminho, um mundo diferente do nosso. Além de ser muito diver-
tido, vamos descobrir que os antigos tinham problemas muito pa-
13
recidos com os nossos e encontraremos, sem dúvida, respostas que
irão nos ajudar.
Ah, que bom que você decidiu aceitar nosso convite! Prepare seu
coração, pois vamos viajar com os Círculos de Leitura. Não tenha
medo; somos guiados por grandes heróis. Um deles é Homero: sua
obra se inspira na natureza humana e nas leis eternas que gover-
nam o mundo. Sua voz tem ressoado através dos tempos, tão bela
e comovente como na primeira vez em que contou os feitos glo-
riosos dos heróis e a onipotência dos deuses. É uma história genial,
cujo fascínio só tem aumentado com o passar do tempo.
Como as pirâmides, que se ergueram entre as criações eter-
nas, e como as grandes cordilheiras, que em um momento preciso
emergiram das águas, a Odisseia tornou-se símbolo da vitória so-
bre o tempo. Por essa razão a tomamos emprestada como símbo-
lo do percurso dos Círculos de Leitura, a história que começamos
a contar agora.
MoreVector/Adobe Stock
14
Catalina Pagés, coordenadora-geral do programa Círculos de Leitura.
1. bases metodológicas e
filosóficas dE nosso trabalho
D
esde a Antiguidade o ser humano comunica-se transmitindo
mensagens. Inicialmente, isso ocorreu por meio de desenhos fei-
tos nas paredes das cavernas, símbolos simples e complexos. Mais
tarde, com as letras, passaram-se a formar palavras, frases e textos, que
hoje perpetuam o conhecimento que antes era transmitido oralmente.
A tradição oral tem sua continuidade por meio da literatura. Nos Círcu-
los de Leitura, integramos essas duas fontes, voltamos a um tempo passa-
do e recuperamos a memória coletiva. Nas palavras de Roberto Mesquita:
O princípio da A tradição constantemente retorna à fonte para nutrir seus ramos com
metodologia é muito o vigor original oferecido pelo clássico. Mas preocupa-se em igual pro-
porção com os herdeiros, aceitando que o clássico assuma as cores do
simples: lemos para tempo e da cultura em que novamente se manifestam e se reatuali-
recuperar aquele zam; com isso, vivemos na idade do clássico e ele na nossa (RIBEIRO,
2015, p. 3).
saber que nos deixa
sonhar. Nos Círculos de Leitura, resgata-se a tradição oral. Sentados em círculo,
os participantes leem em voz alta e refletem em grupo sobre as ideias
contidas no texto. Nesse ambiente, as muitas vozes, a sonoridade e a mu-
sicalidade das palavras despertam o saber do corpo, deixando aflorar os
sentimentos – alicerces da mente. Alguns falam mais, outros menos; mas
todos participam do diálogo. O tempo passa sem ser percebido. E nes-
se ambiente de fala e de escuta atenta surge um conhecimento sempre
novo, produto de um fazer coletivo.
A leitura e a reflexão em grupo oferecem um espaço para que os jo-
vens compartilhem experiências e ampliem seu universo de conheci-
mento para agir no mundo. O princípio da metodologia é muito simples:
lemos para recuperar aquele saber que nos deixa sonhar.
17
Assim como na Távola Redonda da história do Rei Arthur, nos Círculos
de Leitura todos são iguais. Todos sentam em círculo porque essa figura
geométrica não apresenta extremidades, é constante em toda a sua ex-
tensão. Não importa a posição social ou o grau de formação/instrução,
mas, sim, como esse participante contribui para que o diálogo em grupo
ocorra de maneira produtiva, divertida e saudável. Cada participante tem
sua peculiaridade, o que propicia ao grupo um apanhado de diferentes
conhecimentos, que são adquiridos na leitura de uma mesma obra.
O repertório dos Círculos de Leitura é composto de obras diversas,
que vão desde contos infantis singelos, como O pintor, a cidade e o
mar, de Monika Feth, a grandes clássicos da literatura brasileira e uni-
versal, como Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Otelo, de William
Shakespeare. Independentemente do título, todos eles, lidos em grupo,
provocam um encontro autêntico entre os jovens, e de cada um consigo
mesmo. Como um multiplicador um dia relatou, nos grupos é possível
ver-se as almas nuas.
Essas grandes obras não foram escritas para um público especiali-
zado, mas para o leitor interessado. Os livros não são difíceis, como se
costuma pensar; são profundos e atemporais, abrangendo um mar de
conhecimentos. Dessa forma, os Círculos de Leitura fornecem aos jovens
uma base sólida para o exercício do protagonismo, pautado nos valores
éticos que essas obras transmitem.
21
O repertório
A escrita
22
acompanhar o progresso de cada participante e do grupo, bem como
perceber o que foi internalizado.
É natural que o leitor projete no livro ideias que são suas; ao escre-
ver, seus textos refletirão esse fenômeno. Com a vivência no grupo, ou-
vindo ideias diferentes, e com a prática que os Círculos proporcionam
de correlacionar as obras, os participantes aos poucos vão conseguindo
“entrar” no texto para captar a mensagem central que a obra transmi-
te, tornando-se aptos a desenvolver argumentos para “defender” essas
obras quando for necessário.
As atividades complementares
23
Culminância na EE Reverendo Tércio Moraes Pereira, em São Paulo (2017).
Multiplicadores da Etec Itaquera II na casa sede dos Círculos de Leitura (2018). Ao centro, Maria Aparecida Lamas,
coordenadora pedagógica do Instituto Fernand Braudel.
24
Visita dos multiplicadores do Ceará à Pinacoteca do estado de São Paulo (2016).
26
1.2 Aspectos pedagógicos da metodologia
O estudo foi para mim o remédio soberano contra
os desgostos da vida, não tendo existido jamais uma dor
que uma hora de leitura não afastasse de mim.
Montesquieu.
27
Leitura da peça Kouros na Etec Professora Maria Cristina Medeiros, em Ribeirão Pires.
28
Essas “competências” são exigidas de nós todos os dias e são parte
fundamental do processo de crescimento humano. Muitas escolas têm
adotado a seguinte formulação para o processo de educação integral:
aprender a conhecer, aprender a conviver, aprender a trabalhar e apren-
der a ser.
Nos Círculos de Leitura, além de provocar nos jovens o encantamento
com a leitura e a vivência em grupo, trabalhamos para desenvolver suas
competências socioemocionais.
No livro Uma questão de caráter, o escritor e jornalista americano Paul
Tough (1967) explica que as competências socioemocionais não são ina-
tas e fixas: “[...] elas são habilidades que você pode aprender; são habili-
dades que você pode praticar; e são habilidades que você pode ensinar
[...]”. E isso pode ser feito tanto no ambiente escolar quanto em casa.
O processo educativo compreende, fundamentalmente, a relação da
aprendizagem das crianças e dos adolescentes com sua vida e com sua
comunidade. Para isso, conforme propõe o documento federal Série Mais
Educação:
Multiplicadores da EMEF Benta Maria Ragassi Scutti, no município de Matão, com a professora
parceira Ana Paula Pedro recebem novo Livro de poesias (2017).
29
O programa Círculos de Leitura se enquadra nessa perspectiva de for-
mação integral dos jovens, mobilizando simultaneamente três aspectos:
• Desenvolvimento das competências socioemocionais: Os tex-
tos literários apresentam personagens e situações com as quais os
jovens se identificam. Os diferentes heróis, como Fernão Capelo
Gaivota, servem de inspiração para a superação de dificuldades.
Obras como A comédia humana, Otelo e Dom Casmurro retratam
experiências comuns dos homens que ressoam até hoje. Essas
Essas obras,
obras, lidas em grupo, contribuem para o desenvolvimento da
lidas em grupo, criatividade, capacidade de enfrentar problemas, autoconfiança,
contribuem para o responsabilidade e resiliência, imprescindíveis para o desenvolvi-
desenvolvimento mento integral dos jovens, a fim de que possam superar as dificul-
da criatividade, dades e construir um projeto de vida.
• Desenvolvimento cognitivo: Despertando o gosto e o hábito da
capacidade de
leitura, há uma contribuição significativa para o aperfeiçoamento
enfrentar problemas, das habilidades de interpretação, reflexão e escrita.
autoconfiança, • Despertar da fruição estética: A literatura, o cinema, o teatro, a
responsabilidade, música, a dança, enfim, a Arte nas suas mais diversas expressões,
resiliência [...]. possibilitam ao ser humano construir e reconhecer sua própria cul-
tura. Nas palavras de Ademir Antonio Engelmann:
Multiplicadores da EMEF Pref. Celso de Barros Perche, município de Matão, com a diretora Tatiane Cardoso (2017).
30
1.3 Arte, inclusão social e pertencimento
Desde 2000, o Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, em
seu trabalho nas escolas públicas, tem se utilizado de estratégias que
se apoiam no reconhecimento do poder da obra de arte para a inclusão
social.
No decorrer desses anos, nossa experiência nos mostrou que a frui-
ção da obra de arte não é algo que acontece naturalmente: é necessário
preparo, tempo de dedicação. Buscamos sensibilizar os jovens, por meio
da leitura e da reflexão em grupo, para o encontro com as obras de arte.
A obra de arte – produto de um mergulho no inconsciente da huma-
nidade – tem o poder de nos tornar seres grandes e generosos, consti-
tuindo um auxílio precioso para nossa travessia. Sua luz pode ser o me-
lhor guia para que o ser humano possa, como escreveu Van Gogh em
Cartas a Theo, “esquecer de si, realizar grandes coisas, atingir a generosi-
dade e ultrapassar a vulgaridade na qual se arrasta a existência de quase
todos os indivíduos”. O contato com obras de arte, produto do trabalho
de seres extraordinários, é uma dádiva que, quando recebida, pode des-
pertar nosso núcleo tanto de criação quanto de generosidade. Quando
recebemos um bem simbólico de tamanha grandeza, ele não fica apenas
dentro de nós; transborda e se desdobra em vontade de compartilhar.
A história por trás do museu The Frick Collection, em Nova York, ilustra
bem esse efeito da arte. Henry Clay Frick (1849-1919), um dos industriais
mais bem-sucedidos de seu tempo, era também um grande amante e
colecionador de obras de arte. Quando voltava do trabalho, sentava-se
confortavelmente à frente de uma obra e, no mais profundo silêncio, pas-
sava horas contemplando sua beleza, esquecido do tempo. Esse ritual
alimentava sua alma, preparando-o para as realizações do dia seguinte.
Ao morrer, Henry Frick quis que sua mansão, com todos os quadros e es-
culturas, fosse transformada em um museu, a fim de que outras pessoas
pudessem também usufruir daquele bem-estar que havia sentido.
No Brasil, também há histórias que ilustram essa ideia: Lasar Segall
(1889-1957) e Armando Álvares Penteado (1884-1947) são alguns exem-
plos de destaque.
Pessoas como Segall, Penteado e Frick nos fazem pensar em como
ocorre a passagem da arte do espaço privado para o público. Eram pes-
soas que amavam a arte, usufruíram de sua beleza e força, e essa fruição
tornou-os grandes, por sentirem que as obras feitas por seres extraordi-
nários pertenciam não somente ao colecionador, mas ao mundo.
O contato com obras de arte nos faz sentir pertencentes ao mundo, e
essa seria a “grande saúde” de que Friedrich Nietzsche (1844-1900) fala-
va. Descobrimos que existe essa outra vida, atemporal, e que o passado
continua vivo. Atravessados por essa experiência, não teremos medo do
futuro, tampouco de nossos semelhantes. O que nos dá esse sentimento
31
de pertencimento é a possibilidade de acessar esse enraizamento, essa
participação no legado comum a todos, mas especial para cada um e
sempre aberto a novas interpretações.
Todo artista, ao criar sua obra, mergulhou nas camadas mais profun-
das da psique humana, naquele espaço que o psiquiatra suíço Carl Jung
(1875-1961) chama de “inconsciente coletivo”, em que tudo é de todos.
Em contato com as produções do inconsciente, cuja essência é sempre
misteriosa – e, justamente, por isso, sempre em mudança, sempre in-
completa –, essas obras nos levam a querer perpetuar o ato da criação,
de diferentes formas. Uns serão mobilizados a preservar as obras de arte
e sua memória; outros se tornarão artistas.
Esse contato com as obras gera uma necessidade de criação que pode
se expandir para outros campos. Empenhados e comprometidos com o
mistério e o devir humano – conceito filosófico que qualifica a mudança
constante e a perenidade de algo ou alguém –, os artistas participam
desse arsenal que, como diz Jung, “transcende todas as diferenças de
cultura e de atitudes conscientes”.
A arte instaura uma “comunidade das almas”, que estão sempre em
diálogo nesse outro tempo e nessa outra geografia, que são a da alma e
da interioridade. Por ser fruto dessa transcendência, a arte nos dá passa-
Carmen Gutiérrez
32
gem para uma vida mais livre dos condicionamentos e conformismos. O
contato com as obras de arte, portanto, nos abre, como diz Ana Cristina
Carvalho, “janelas coloridas de passagem para o mundo, para encontrar,
quem sabe, outro universo”, a fim de que possamos nos tornar aqueles
seres extraordinários, enraizados e generosos que Van Gogh acreditava
que podíamos vir a ser.
A partir da nossa proposta de sensibilização, quando estamos traba-
lhando com os jovens em São Paulo, onde temos a Casinha (sede do pro-
grama Círculos de Leitura), levamos o maior número possível de jovens
multiplicadores e demais participantes a conhecer museus e outros es-
paços públicos artísticos. Com o apoio de um mediador, no percurso da
Casinha até a chegada ao museu, a rua deixa de ser um simples espaço
de passagem por onde se caminha e se transforma em um itinerário de
descobertas – reino de encontro com múltiplas subjetividades e tempo-
ralidades.
Brota, em consequência, uma gama de desejos: a curiosidade, a von-
tade de registrar o novo olhar (fotografias), para perpetuar o momento e
poder compartilhar.
É um longo processo, com muitas idas e vindas, paradas, momentos
de reflexão.
Percebe-se que os jovens passam a ver o mediador que os acompa-
nha de outra forma. Ocorrem, então, os desdobramentos do passeio: as
aberturas, o interesse mútuo, os diálogos, a partir da vivência em comum
naquele reino há pouco adentrado, onde as fronteiras são permeáveis.
Sensibilizam-se as zonas de contato, algo que atrai o jovem. Ele co-
meça a se perceber e a perceber o outro; a ser tocado pela beleza e pela
história das obras visitadas. Sente-se fazendo parte desse universo maior
que teve início há muito, muito tempo. Para as obras de arte, o tempo
não conta.
O objetivo final começa a ser atingido: o espaço que “não era de nin-
guém” passa a ser de cada um e de todos. Nasce o respeito, a vontade de
compartilhar, de preservar e de cuidar.
O homem generoso começa a despontar.
33
34
Filipe Frazão/Adobe Stock
2. Nosso Percurso
G
ostaria de contar uma história que fala sobre aqueles encontros
que acontecem na nossa vida da forma mais inesperada e que
abrem caminhos; quando algo novo ganha vida. Foi assim que
teve início meu trabalho com os Círculos de Leitura, que venho desen-
volvendo há 18 anos e que me dá muita alegria.
Foi por meio da compra de um consultório que conheci Sara, psi-
canalista lacaniana que, ao saber de minha formação em filosofia,
convidou-me para ler com ela o livro A ética, de Jacques Lacan (1901-
1981). Lendo esse livro, encontrei referências à obra O banquete, de Pla-
tão. Voltei a lê-lo e, à luz da psicanálise, o livro agora era Outro. Apaixona-
mo-nos por aqueles diálogos, pela forma como os personagens criados
por Platão defendiam suas ideias, apresentando seus argumentos com
tamanha convicção. Líamos também O Seminário – Livro 8: a transferên-
cia, obra de Lacan que narra os seis meses em que o psicanalista leu com
seus discípulos a obra O banquete.
Nosso entusiasmo era tanto que decidimos formar grupos no consul-
tório, nos quais a proposta seria não falar dos problemas, mas ler O ban-
quete. Conversar sobre o que era o amor para os personagens do livro.
Assim nasceu uma proposta de saúde: “Mais Platão e menos Prozac®”1.
Depois de algum tempo, recebi um novo convite: ampliar a experiência
desenvolvida no consultório para escolas de Diadema (São Paulo). O Ins-
tituto Fernand Braudel de Economia Mundial, em 2000, desenvolvia um
estudo sobre a violência naquele município, analisando as causas e, ao
mesmo tempo, tentando implementar soluções práticas. Fui convidada a
desenvolver em escolas o trabalho com leitura que antes desenvolvia com
Catalina Pagés
Filósofa e psicanalista,
fundadora e coordenadora-geral
do Programa Círculos de Leitura. Medicamento antidepressivo.
1
35
meus pacientes e em grupos com colegas; isso faria parte das ações de
prevenção. O desafio para mim era imenso.
Dessa vez, o trabalho seria desenvolvido por meio de duas institui-
ções, o Instituto Braudel e a Prefeitura de Diadema, o que requeria habi-
lidades que eu julgava não possuir. Mas tantas ajudas foram aparecendo
que consegui dar conta da tarefa e os grupos foram acontecendo.
Descobri que em cada escola havia jovens que pareciam estar à espe-
ra de alguém que conversasse com eles: do porquê de estarem ali; que
lugar tinha a escola em suas vidas; quais eram seus medos; quais eram
seus sonhos.
Os grupos começavam lendo poesias e a obra Fernão Capelo Gaivota,
de Richard Bach, que fala de uma gaivota que era diferente, que desejava
voar alto e que não desistiu de seu sonho. Depois que os grupos esta-
vam consolidados, avançávamos para a leitura da Odisseia, de Homero.
Os jovens, que participavam ativamente, conheciam a Odisseia de cor e a
contavam para seus pais e amigos.
Certa ocasião, os jovens foram convidados a assistir a uma apresenta-
ção da Odisseia, que estava sendo encenada em um teatro de Diadema.
Na peça, Ulisses era apresentado como um anti-herói. Os jovens ficaram
tão indignados com o que viram que quiseram conversar com o diretor,
o que foi muito instrutivo para todos. Foi maravilhoso ver como defen-
diam Ulisses: o herói deles precisava ser respeitado! Eles sentiam que não
podiam permitir tamanha distorção com um personagem tão grandioso.
Fui me dando conta, então, de que os jovens possuíam tan-
ta identificação com as obras que deveriam ser eles os responsáveis
38
A sublime linguagem te ensina
A epopeia de jovens da periferia que, embebidos de literatura clássica, refizeram sua jorna-
da para ganhar outros universos
U
ma regra não escrita vigora nas escolas públi- Quem vive na periferia se sente muitas vezes in-
cas do Brasil: é proibido sonhar alto. Quando timidado de ir para os bairros mais ricos, onde estão
se pergunta a um jovem pobre o que quer ser os chamados “equipamentos culturais”. Desde pegar o
quando crescer, ele não paga o mico de citar uma pro- ônibus ou o trem para atravessar São Paulo até entrar
fissão que envolva entrar em uma boa universidade, nesses espaços que, ainda que “públicos”, não parecem
sob pena de ser ridicularizado. Isso não é para ele. feitos para os mais pobres, é uma aventura para quem
A irmã mais velha de Keila Cândido resolveu mora nos extremos da cidade. A leitura de clássicos e
descumprir essa regra e estudar Direito na Faculda- a companhia de jovens como eles os encorajam a fazer
de Metodista, em São Bernardo do Campo. Keila de- essa travessia, que coincide com sua transição para a
cidiu que não faria faculdade depois de testemunhar vida adulta.
o sofrimento dos pais para ajudar a irmã a pagar as O programa forma grupos de 8 a 12 alunos. Sentados
mensalidades. Seu sonho adaptado à realidade era ser em círculo, eles leem pausadamente em voz alta alguns
recepcionista em uma empresa de plano de saúde. parágrafos e correlacionam o texto com suas vidas. Um
Os pais de Keila vieram de Orós, no Ceará, há 40 coordenador faz um relatório sobre as discussões. A
anos. Sua mãe, costureira, parou de estudar na 8ª sé- equipe do programa o examina e escolhe o texto do
rie porque precisava trabalhar. Seu pai fez apenas até encontro da semana seguinte, de acordo com os temas
a 4ª série e trabalha como cegonheiro (motorista de mais importantes para o grupo. O jovem sente que não
caminhão que transporta automóveis), mesma pro- está sozinho porque outras pessoas o ouvem atenta-
fissão de três de seus tios, do irmão de 29 anos e de mente, contam suas histórias também, e porque vê que
vários primos. Ela não tem fotos de quando era crian- seus dramas e dilemas de adolescente foram vividos
ça, porque sua infância coincidiu com a fase de maior ao longo dos séculos pelos personagens dos clássicos.
penúria da família. Aos 13, o destino de Keila pare- “Foi essencial para mim”, garante Keila. “Meus
cia selado. Foi quando ela conheceu os Círculos de colegas da escola continuam na mesma vida, muitas
Leitura, programa do Instituto Fernand Braudel, que meninas engravidaram cedo. Não sabiam que podiam
atende alunos de escolas públicas em São Paulo e em sonhar ir para a universidade.” Com a ajuda de custo de
64 cidades do Ceará. multiplicadora, ela pagou um curso de informática aos
“Depois que entrei no programa Círculos de Leitura, sábados, enquanto seus pais bancavam o de inglês aos
fui abrindo a mente e pensei que até seria possível en- domingos. Já no primeiro ano de jornalismo, em 2008,
trar na universidade.” Inspirada no jornalista Norman entrou para estágios nas revistas da Editora Globo. Saiu
Gall, que dirige o Instituto Braudel, Keila prestou ves- da Época para trabalhar em uma agência para investi-
tibular para jornalismo na Metodista. Com sua nota no dores do Banco do Brasil. Não lhe pagaram. Entrou na
Enem, ganhou 100% de bolsa do ProUni. Justiça e foi estagiar na Veja. Com o dinheiro da ação
“Eu não lia até os 13 anos”, recorda Keila. “Sabia contra a agência, fez intercâmbio na Nova Zelândia.
ler, mas não lia. Não tinha incentivo. O programa Cír- Depois trabalhou na IstoÉ Dinheiro.
culos de Leitura me apresentou os escritores e me tirou Seu interesse pela China surgiu em um seminário
da periferia. Fiz a jornada. Vim para São Paulo”, diz em 2008 no Instituto Braudel com o economista An-
ela, usando um tema recorrente no programa. Inspira- tônio Barros de Castro, ex-presidente do BNDES. “As
dos na leitura da Odisseia, de Homero, os jovens enten- relações com o Brasil estavam crescendo, e eu queria
dem que sair da periferia e vir à região central, visitar mudar de vida. Pensei em investir nesse sonho, mas
museus, teatros e parques e participar da formação de não tinha noção de como conseguir trabalho.” Mesmo
multiplicadores na sede do programa equivale à jornada assim, estudou mandarim. Em 2014, foi selecionada
de Telêmaco, filho de Odisseu, em busca de seu pai. para uma vaga na Xinhua.
39
Indo morar em Pequim, Keila se tornou um sím- vaga remanescente no curso de economia da Meto-
bolo do quão longa pode ser a travessia de um jovem dista, em uma cota para negros. “Mesmo pagando só
da periferia. Mas seu caso é apenas um de muitos nos metade da mensalidade, foi muito difícil”, lembra Jac-
Círculos de Leitura. Iniciado em 2000, o programa já queline, que fez estágio na Vanguarda Agro, na Pirelli
produziu uma geração de jovens adultos que ocupam e na Bloomberg, e foi voluntária em uma pesquisa da
posições de destaque em grandes empresas. São pessoas ONU sobre o nível de conectividade dos cidadãos, que
que agarram a oportunidade com a faca nos dentes. a forçou a aperfeiçoar seu inglês.
Diferente de Keila, William Veras sempre gostou de William cursou Mecatrônica no ensino médio, Me-
ler. “Eu era o estranho do colégio, vivia sozinho.” Seu cânica no Senai, Administração na Metodista e Enge-
pai era mecânico na indústria automobilística e não nharia de Produção na Mauá. Aproveitando os cursos
via futuro nas aptidões intelectuais do filho. “Tinha gratuitos de línguas oferecidos pela Escola Estadual
preceitos na minha casa”, explica William, hoje com Rudge Ramos, em São Bernardo, estudou francês e
24 anos, funcionário executivo da Mercedes-Benz, na alemão. Ganhou bolsa do Instituto Goethe e foi apren-
divisão que atende o Peru, Chile, Nicarágua, Costa der alemão em Mannheim. O espanhol e o inglês ele
Rica e Panamá. “Leitura não era coisa para homem. aperfeiçoou sozinho. Entrou na Mercedes como mecâ-
Eu tinha de ser mecânico.” nico de produção, no “chão de fábrica”, e foi galgando
O programa apareceu na vida de William em um posições. Ele atribui sua capacidade de argumentação
momento crítico. Ele tinha 15 anos e estava passando e de trabalhar com projetos à experiência como multi-
da 8ª série para o 1º ano do ensino médio. Tinha ga- plicador nos Círculos de Leitura.
nhado bolsas de estudo em vários colégios particulares [...] observa Rogério Pontes Carvalho, de 23 anos,
renomados, mas seu pai se recusou a pagar o material outro ex-multiplicador dos Círculos e estagiário do
didático e o transporte escolar. “Fiquei muito chate- Instituto Braudel, que hoje trabalha na área de finanças
ado. Parei de ir à escola. Vivia na biblioteca, queria e controle da Nestlé e cursa economia na Universidade
estudar sozinho. O programa Círculos de Leitura me Federal do ABC. Rogério entrou no programa com 11
salvou, me ajudou a me encontrar. Mostrou que, por- anos, quando fazia a 5ª série em uma escola estadual
que você não está num bom colégio, não quer dizer de São Bernardo. Na 6ª tornou-se multiplicador vo-
que não vai estudar. Obrigou-me a responder: ‘Qual o luntário e coordenava grupos da 8ª série e do 1º ano
seu sonho?’” do ensino médio. “Antes, não tinha aptidão para ler”,
Os participantes do programa têm de falar toda se- conta Rogério. “Era estudioso, mas lia por obrigação,
mana como anda seu “projeto de vida”. Esse é o pri- não por prazer.” Aos 13, começou a ser remunerado
meiro grande desafio que a leitura e a discussão dos como multiplicador, e aos 15 foi morar sozinho. Na
clássicos os ajudam a vencer: começar a sonhar e casa com os pais e seis irmãos, não tinha ambiente
acreditar em si mesmos. Além das sessões de leitura para ler e estudar. Para complementar o dinheiro do
e das visitas a centros culturais, o programa lhes pro- aluguel e se manter, foi trabalhar na feira com seu tio.
porciona também encontros com adultos, que passam Hoje, toda essa experiência o ajuda na Nestlé.
a servir de referência concreta para eles. Em 2015 e 2016, esses e outros ex-multiplicadores
“Antes dos Círculos de Leitura eu não imagina- voltaram a se reunir em sábados alternados, na Casi-
va nada”, relembra Jacqueline Carvalho, de 25 anos, nha, sede do programa, em São Paulo, para ler Guerra
que trabalha com auditoria externa na Ernst & Young. e paz, de Leon Tolstói. A partir de 2017, passaram a ler
“Nasci e cresci em um lugar bem humilde.” Sua mãe é e discutir textos de filosofia política, como parte de um
manicure e seu pai é mecânico industrial. “Meus pais esforço do Instituto Braudel de formar novos líderes
trabalhavam e eu cuidava da casa e do meu irmão. Não para a esfera pública. Não vai ser um passeio. Mas
tinha perspectiva nenhuma. Meu acesso a informação quem disse que esse pessoal veio ao mundo a passeio?
era tão limitado que eu não sabia que podia frequen-
tar uma universidade.” Jacqueline participou dos Cír-
culos quando tinha 14 anos e depois da Academia de
Ciência, outro programa do Instituto Braudel, patro- Lourival Sant’Anna é repórter e analista interna-
cinado pela Basf, também em escolas estaduais. Com cional, foi editor-chefe e correspondente em Londres
indicação do instituto, onde trabalhou, conseguiu uma do Estadão.
40
Dramatização da obra As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, na EE Reverendo Tércio Moraes Pereira (2017).
Visita dos multiplicadores da Etec Juscelino Kubitschek de Oliveira à casa sede dos Círculos de Leitura.
41
Círculos de Leitura no interior de São Paulo
Tínhamos pela frente um novo desafio: era a primeira vez que traba-
lharíamos com escolas de Ensino Fundamental II e fora da capital. Isso
porque a implementação dos Círculos com alunos dessa faixa escolar
demanda um maior acompanhamento da equipe. Mas, como sempre,
encontramos grandes parceiros: professores, diretores, a Secretaria
Municipal de Educação, que nos ajudaram a concretizar a tarefa com
muito sucesso.
A primeira ação do programa em Matão ocorreu com a realização da
1ª formação de diretores, professores e técnicos da Secretaria Municipal
de Educação de Matão, nos dias 15, 16 e 17 de maio de 2017, no auditório
do Centro de Artes e Esportes Unificados (CEU). Durante os três dias, ges-
tores e educadores conheceram a metodologia e as bases filosóficas do
programa e realizaram vivências de leitura em grupo das principais obras.
Após a formação de professores, ocorreu a formação dos jovens nos
dias 24, 25 e 26 de maio de 2017 no anfiteatro do CEU do Portal Terra da
Saudade. Depois disso, os jovens iniciaram a condução dos grupos em
suas escolas.
Em agosto do mesmo ano, foi a vez dos multiplicadores da Etec Syl-
vio de Mattos Carvalho receberem a formação e iniciarem os grupos
nessa escola.
No mês de novembro, 30 alunos das duas escolas de Ensino Funda-
mental e os multiplicadores da Etec Sylvio de Mattos Carvalho visitaram
a Casinha. Todos mostravam grande entusiasmo com a tarefa de condu-
ção dos grupos e resultados alcançados.
E, para fechar o ano, no dia 1º de dezembro de 2017, as três escolas
foram reunidas no anfiteatro do CEU de Matão; os jovens encantaram a
todos apresentando performances de leitura dramática, música e poesia.
42
Grupos dos Círculos de Leitura na EMEF Pref. Celso de Barros Perche, município de Matão.
Águas de Matão
Sustentabilidade
43
deramento das comunidades por meio de ações que priorizam um canal
de comunicação com seu entorno, com objetivo de ouvir críticas e suges-
tões como forma de maximizar sua contribuição para o desenvolvimento
sustentável, minimizando impactos e envolvendo a comunidade em suas
operações. Assim, a comunidade pode compreender a importância do
abastecimento de água tratada em suas residências e a importância da
coleta e do tratamento de esgoto para o meio ambiente urbano.
Saúde Nota 10 é um programa de educação ambiental que tem como
objetivo despertar a consciência de estudantes para a importância da uti-
lização de água e esgoto tratados na preservação do meio ambiente, na
saúde da população e na melhoria da qualidade de vida. Eles aprendem,
entre outras importantes lições, qual é o papel de cada um na conserva-
ção dos recursos hídricos.
Em 2017, a concessionária Águas de Matão, no âmbito de sua política
de investimento social, abriu outra frente de atuação, dessa vez relaciona-
da à educação pública, levando para o município de Matão o programa
Círculos de Leitura. Em parceria com a Secretaria Municipal de Educação,
o programa atendeu duas escolas municipais de Ensino Fundamental II, a
EMEF Benta Maria Ragassi Scutti e a EMEF Prefeito Celso de Barros Perches
e a Etec Sylvio de Mattos Carvalho.
Dentro do projeto, a empresa também apoia a publicação deste livro –
Círculos de Leitura – a arte do encontro –, que conta um pouco dos 18 anos
de existência do programa.
Instituto Aegea
44
Além disso, o Instituto tem como meta buscar as melhores práticas para
que a empresa realize seu investimento com foco e de forma estratégica,
contribuindo para o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida
nos municípios em que a Aegea atua.
A parceria com o Instituto Braudel, na realização do programa Círculos
de Leitura, reafirma o nosso compromisso com a educação como forma de
abrir caminhos e romper as fronteiras do conhecimento, contribuindo para
a construção de uma sociedade mais justa, equitativa e tolerante no que
diz respeito ao debate de ideias e à diversidade em todos os seus aspectos.
45
Círculos de Leitura nas Escolas Técnicas Estaduais (Etecs)
do Centro Paula Souza
46
Formação de multiplicadores na Etec Irmã Agostina.
As Gaivotas do Ceará
50
des começaram com 33 participantes, divididos em três grupos de
10 alunos e um multiplicador, representando uma média de 630 alu-
nos no estado. Em 2013, o número de alunos participantes já havia
subido para 2560.
Paulo Sérgio Fontenele, diretor da EEEP Monsenhor Expedito da
Silveira, em Camocim, uma das 21 primeiras escolas a receberem o
programa no estado do Ceará, conta um pouco dessa experiência
com os Círculos:
51
científico e cultural, eventos de nível nacional e interna-
cional. O programa também contribui para os resultados
satisfatórios na área de redação Enem.
Os Círculos de Leitura hoje é um dos programas indis-
pensáveis à nossa escola por todas as questões citadas.
E nós já estamos incluindo as práticas dos Círculos de
Leitura nos coletivos de estudos, procurando ressignificar
nossos estudos, promovendo maior interação e discussão
colaborativa aos fazeres pedagógicos.
Os grupos dos Círculos de Leitura ocupam todos os espaços na EEEP Monsenhor Expedito da Silveira.
52
Grupos dos Círculos de Leitura na EEEP Monsenhor Expedito da Silveira.
54
Multiplicadores e o diretor Werbson, da EEEP José Maria Falcão.
Diretor João Paulo (à esquerda), professora parceira Maria Divan e multiplicadores da EEEP Amélia Figueiredo de Lavor.
55
Esse protagonismo juvenil a que a professora Rejane faz referência
– presente nas escolas e nos Círculos de Leitura – tornou-se algo tão
forte que as escolas de tempo integral passaram a apadrinhar as esco-
las regulares, responsabilizando-se pela implementação e pelo acom-
panhamento dos Círculos de Leitura.
Antonia Cyra Esmeraldo Arrais, gestora da EEEP Governador Virgílio
Távora, escola veterana em Crato que recebeu o programa em 2012,
também fala sobre a importância do protagonismo juvenil:
56
mesmo tempo em que ensinamos a encadear logicamen-
te o pensamento, desenvolvendo habilidades para corre-
lacionar o conteúdo, associar ideias a autores e a desen-
volver um pensamento crítico e autônomo.
Segundo Marcuschi, escrever é “uma invenção perma-
nente do mundo e a leitura é uma reinvenção”.
O que se oferece aqui é uma reflexão que contribui
para uma melhor análise sobre as estratégias de supera-
ção da defasagem de leitura e de escrita sem a pretensão
de esgotar o problema.
Bianca Melo, aluna da EEEP Rita Matos Luna, de Jucás, hoje forma-
dora contratada pelo Instituto Braudel, em 2016 já falava de maneira
entusiasmada sobre seu trabalho como multiplicadora, que conside-
rava a tarefa mais importante de que já havia sido incumbida:
57
Todas as sextas-feiras as Gaivotas se espalham pela EEEP Governador Virgílio Távora.
61
indicadas pelo Instituto Fernand Braudel, classificadas pela
literatura brasileira e internacional como verdadeiros clás-
sicos (a citar: Otelo, O mouro de Veneza, de Shakespeare; O
caminho de Homero, de William Saroyan; Dom Casmurro, de
Machado de Assis; Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach,
entre outros).
Os alunos participantes do programa começam a revelar
uma boa desenvoltura em falar em público, bom desempe-
nho na apresentação de seminários e minicursos. Há ainda
uma considerável contribuição na formação do caráter. As
Gaivotas, nome carinhoso com que denominamos aos que
participam dos Círculos de Leitura, fazendo menção à obra
Fernão Capelo Gaivota: são pessoas solidárias, com uma
compreensão de mundo mais aguçada e ainda com um
compromisso social.
Além de tudo, é histórico o considerável percentual de
participantes do programa que conquistam sua vaga no
ensino superior. Em 2014 e em 2015, contatamos que 100%
dos estudantes do 3º ano do Ensino Médio, integrantes do
programa, conseguiram ingressar na universidade. O que
nos chama mais a atenção é o fato de esses estudantes ga-
nharem destaque também nesta etapa dos estudos, tornan-
do-se alunos bolsistas de iniciação científica ou monitoria.
Há seis anos o programa Círculos de Leitura é desenvolvido
em nossa escola. Os impactos sociais mencionados e carac-
terísticas intrínsecas de protagonismo juvenil revela a todos
os educadores da EEEP Amélia Figueiredo que o programa
precisa permanecer em nossas escolas do Ceará, alçando
voos ainda maiores.
62
Visita da formadora Chris Bianca à EEM Maria Daurea Lopes.
65
E foi ali que nós nos conduzimos pela arte de Gabriel García Márquez por
meio do conto O afogado mais bonito do mundo e pela arte de Catalina. Ela
construiu seus caminhos e fez suas descobertas na confluência da filosofia e
psicanálise, com pitadas generosas de uma firme e adorável fé no mundo,
nas pessoas, na juventude.
Colocar em círculos os grupos de jovens para saborearem O banquete, de
Platão, “viverem” o drama de Otelo, os atos heroicos na Odisseia, entre outros,
é surpreendente e potente. A descoberta de Catalina com os círculos diz res-
peito também à capacidade que muitos jovens têm para mobilizar e envolver
os seus pares, com ganhos de escala e qualidade no programa.
Então, trata-se disso, do compromisso em mudar o mundo através da estraté-
gia mais garantida e sustentável: a transformação de si mesmo. É simplesmente
esta a síntese do compromisso do programa Círculos de Leitura.
66
C
írculos de Leitura: o autoconhecimento e o desa-
brochar da consciência de estar na vida como uma
relação “eu e tu”.
Minhas amigas Catalina e Cidinha, mentoras e motoras
dos Círculos de Leitura, pediram para eu dizer algo sobre
os Círculos por ocasião do 18º aniversário desta experiên-
cia ímpar.
Soube da existência dos Círculos de Leitura em 2008,
quando estava em busca de conhecer conceitos e práti-
cas que pudessem “preencher” a proposta curricular das
escolas de tempo integral da rede estadual do Ceará (as
escolas de Ensino Médio denominadas Escolas Estaduais
de Educação Profissional – EEEPs). É que essas escolas não são meras agências formadoras
de mão de obra de nível técnico para o mercado de trabalho; elas são lugar de encontro
da juventude consigo mesma e com o futuro. Pelo menos assim as concebemos e conti-
nuamos a nos esforçar, cada dia, para nos aproximar desse ideário.
Bem, naquele momento já tínhamos uma certeza, que até aqui só fez se aprofundar: a
de que uma escola para jovens precisa ter como um de seus sustentáculos o protagonis-
mo desses mesmos jovens. Exprimo o que entendo ser a essência do protagonismo juve-
nil pelas palavras corresponsabilidade, alegria de aprender uns com os outros e alegria de
se descobrir capaz de contribuir com o bem comum.
Agora voltando aos Círculos. Por que quis conhecê-los? Porque ouvi que, nos Círculos,
os jovens liam, conversavam e apreciavam leituras como Fernão Capelo Gaivota e O Pe-
queno Príncipe… e Platão... e Shakespeare… e – cúmulo da alegria para mim – Guimarães
Rosa. Entre outros, ressalte-se. A lista é infinita e capaz de impressionar mesmo os mais
afeitos à “alta cultura”.
Mas não apenas “ouvi que”. Eu os vi e os ouvi e reli e conversei e apreciei com eles tesou-
ros que eu também havia recolhido nessas leituras. Na verdade, para mim a alegria da lei-
tura começou por volta dos 11 anos com Emília/Lobato me levando ao “país da gramática”
e à Grécia de Hércules em pleno cumprimento de seus 12 heroicos “trabalhos”.
Compartilho frequentemente com jovens e adultos uma convicção íntima: a de que
aprender (qualquer coisa ou sobre qualquer tema) é uma das mais prazerosas experiên-
cias humanas... e (pelo menos para mim) a literatura é o método mais completo dessa
aprendizagem. Haveria muito o que dizer sobre isso, mas para ser prático vou citar Harold
Bloom em sua introdução à obra Como e por que ler:
Não existe apenas um modo de ler bem, mas existe uma razão precípua por que ler.
Nos dias de hoje, a informação é facilmente encontrada, mas onde está a sabedoria? Se
tivermos sorte, encontraremos um professor que nos oriente, mas, em última análise,
vemo-nos sós, seguindo nosso caminho sem mediadores. [...] Ler nos conduz à alterida-
de, seja à nossa própria ou à de nossos amigos, presentes ou futuros. Literatura de ficção
é alteridade e, portanto, alivia a solidão. Lemos não apenas porque, na vida real, jamais
conheceremos tantas pessoas como através da leitura [...].
[...] Uma das funções da leitura é nos preparar para uma transformação, e a transformação
final tem caráter universal. (BLOOM, 2001)
67
É algo semelhante que vejo acontecer na experiência dos jovens que (às vezes apenas
no início, timidamente) se achegam aos Círculos de Leitura. A descoberta da sabedoria na
descoberta da “alteridade” dos personagens que conhecem, com os quais refletem, sobre
quem dialogam. A descoberta da legitimidade de sua identidade na universalidade das
questões, dilemas e situações que vivem e que são igualmente vividas pelos personagens.
E a experiência de “comunhão” que experimentamos ao descobrir/fazer amigos reais entre
as pessoas com quem partilhamos a experiência comum da compaixão e do maravilha-
mento que as histórias nos inspiram. Essa experiência que me diz que eu sou um Eu e que
tenho diante de mim um Tu que me enriquece e que se enriquece no nosso encontro.
Quem quiser saber o que isso significa que procure ler/conhecer o sábio Martin Buber
(1878-1965).
Então, nesse ensejo em que ressurgem as memórias, o que ainda tenho a dizer é que
me sinto gratificado por ter participado de um momento/movimento que tem proporcio-
nado a tantos jovens alunos das escolas públicas cearenses a alegria da descoberta que
eu também experimentei um dia. Era o ano 1975, tinha 11 anos, e a pequena biblioteca de
minha escola pública cearense fez-se porta para que eu adentrasse os novos mundos até
então insuspeitados que habitavam meu mundo. De lá para cá, cada encontro com um
livro por meio das pessoas e com uma pessoa por meio dos livros é sempre a renovação
dessa experiência de felicidade humana... e humanizadora.
Por isso sou grato ao “povo dos Círculos”. À Catalina, ao Norman, à Cidinha, à Patrícia
– estes em São Paulo – e, no Ceará, à Izolda, à Andrea, à Valdenice, à Aila e à Sandra (na
Seduc), ao Aliel e ao Josimar (diretores de escola), à Aline Jacó e ao Lindemberg, a exemplo
de tantos outros alunos que encontrei nessa bela ciranda.
Sou grato também à Fundação Itaú Social, que nos últimos anos veio se juntar ao es-
forço do estado do Ceará para manter e ampliar a existência dos Círculos de Leitura nas
escolas estaduais cearenses.
Por isso, também, sou grato à vida.
68
O êxito do programa Círculos de Leitura no Ceará
70
importante haver uma compreensão da liderança, de pro-
fessores conduzindo o processo, trabalhando com a gestão,
avaliando; enfim, fazendo o trabalho educacional necessário
para que o programa realmente tenha bons resultados.
Em nossa escola, graças à proatividade da nossa equipe,
temos obtido sucesso em avaliações externas como o Enem.
Também temos percebido incremento importantíssimo nas
produções textuais dos alunos – apesar de o programa ter o
foco principal voltado para a redação, tem auxiliado muito
nesse processo de escrita.
Nossa escola desenvolve um projeto de redação. E o pro-
grama Círculos de Leitura faz parte dos projetos da escola,
dando subsídios para que nosso aluno se potencialize cada
vez mais, do ponto de vista das avaliações externas.
Além dos resultados alcançados no Enem, alguns de
nossos alunos se destacam como líderes, como o Webert,
que hoje é um dos educadores sociais do Instituto Braudel,
atuando nas formações no Ceará.
Mas o programa Círculos de Leitura não trabalha só a
questão da leitura; trabalha a ética, o respeito, o sentido de
trabalho em equipe, o respeito à opinião do colega... Justa-
mente tudo o que norteia o projeto pedagógico da escola. É
um programa que veio realmente para somar!
Eu quero parabenizar o Instituto Braudel, que atua não
somente na área educacional, mas em questões relaciona-
Diretor Gilmar, da EEEP Professora Luiza Teodoro Vieira, com as professoras parceiras Leidiane e Régia (à esquerda).
71
das à economia e à política, por exemplo. É uma instituição
cujas ações visam melhorar a vida no Brasil e até na Amé-
rica do Sul. Que bom seria se tivéssemos mais instituições
preocupadas com a situação brasileira, do ponto de vista da
educação, da saúde, da política... Que bom se tivéssemos
instituições como essa espalhadas em todo o Brasil.
Diretor Luciano e professora parceira Gegardênia com a veterana Wana Duarte e membros da equipe pedagógica da
EEEP Adolfo Ferreira de Sousa.
72
dação de foco”, no qual há um foco e o professor de Lín-
gua Portuguesa trabalha a disciplina sob diversos ângulos,
com pesquisas desenvolvidas pela Universidade de Brasília,
com processo de redação no Enem. Mas não adianta tra-
çar técnicas e estratégias para os alunos, indicar quais são
as competências dos seus níveis etc., porque a “massa” que
vai preencher aquela grade curricular é a mundividência,
ou seja, o conhecimento do mundo, o repertório cultural,
e isso só se consegue, só se configura e só se consolida por
meio da leitura.
Para quem gosta também da aprendizagem cooperativa,
no Círculos de Leitura há um reforço muito forte, que é a in-
teração promotora: à medida que esses meninos se reúnem
e se encontram, eles estimulam os mais introspectivos a se
igualarem aos outros em participação e interação, e isso é
muito bom para nós!
Então, em poucas palavras, é dizer que é uma oportuni-
dade real de emancipação cultural; não é nada utópico, não
é nada romântico, é algo que vai servir para esses meninos
para toda a vida. Muito obrigado!
73
deles, após ingressarem na universidade, continuam participando na li-
nha de frente, levando os Círculos para novas escolas a fim de replicar o
programa.
A diretora Cyra Arraes, da EEEP Virgílio Távora, em uma formação re-
gional realizada no Crato, destacou que achava muito importante poder
fortalecer ainda mais os laços de toda a equipe escolar com o programa:
Os jovens do Ceará
74
Reinaldo Jacó, ex-multiplicadora da EEEP Amélia Figueiredo de Lavor, de
Iguatu. Hoje, Lindemberg cursa Engenharia no Mackenzie, em São Paulo,
e Aline é aluna do curso de Direito da PUC-SP. O Ceará é hoje o estado
que consegue colocar mais jovens vindos de escolas públicas direta-
mente em universidades públicas.
Aline Jacó conta um pouco dessa experiência:
75
Formação de multiplicadores na casa sede dos Círculos de Leitura. Ao centro, Catalina Pagés.
76
A maioria desses alunos é de origem humilde. Vários deles são nasci-
dos na zona rural e serão os primeiros em suas famílias a completar o En-
sino Médio e Superior. É o caso do jovem Manoel Vieira do Nascimento,
11º filho em uma família de lavradores e hoje aluno do curso de Medici-
na na Universidade Federal do Ceará. (Manoel ainda participa de forma-
ções de multiplicadores e professores como voluntário sempre que tem
disponibilidade.)
77
de de Medicina na Universidade Federal do Ceará, continuo
voluntariamente à disposição do programa, como multipli-
cador. Sempre que participo de alguma formação é motivo
de felicidade e encantamento.
Dedico a conquista de chegar ao curso de Medicina ao
Círculos de Leitura e a todos que compõem esse grupo
coeso, que está causando uma verdadeira revolução no Bra-
sil, despertando e multiplicando o amor ao conhecimento.
E como dizem nossos amigos poetas, a palavra mágica
para definir o meu sentimento pelo programa, “dorme na
sombra de um livro raro e não sei como desencantá-la”. Só
sei que “mesmo um dia estando mudo, eu farei versos como
quem chora”. Pois “uma parte de mim é todo mundo” e “ler é
viver a vida que os outros sonharam”. “Sou parte do gênero
Humano”!
79
Grupos dos Círculos de Leitura na EEEP Adolfo Ferreira de Sousa.
80
mudanças em mim, como: capacidade de interpretar melhor
os textos que lia, já que nos Círculos sempre somos levados a
refletir profundamente sobre as obras; passei a escutar mais
o meu próximo, a me colocar no lugar do outro; a acreditar
sempre nos meus sonhos, na força do trabalho em equipe; a
ver o mundo com outros olhos. Tudo isso são temas aborda-
dos nos textos, temas que dialogam com nossa vida.
Quando entrei no programa, eu também era muito tí-
mido e não tinha confiança em mim mesmo. Depois de um
tempo, os Círculos me ajudaram a superar isso e hoje falo
sem medo em público, apresento seminários na faculdade
com bastante segurança e me relaciono bem com todos.
Depois de um ano participando dos Círculos, no 2º ano
do Ensino Médio, fiz o Enem e ingressei na Universidade Re-
gional do Cariri, no curso de Enfermagem. O programa foi
peça-chave para meu sucesso nas provas.
Mesmo na universidade, continuo no programa porque
vejo que, a partir dele, posso ajudar o meu próximo, aju-
dando-os a acreditarem em si mesmos, a nunca desistirem
dos seus sonhos, a verem o mundo e as pessoas com outros
olhos, assim como os personagens das obras que lemos.
Sempre que possível, participo de formações de pro-
fessores e multiplicadores aqui no estado do Ceará e já fui
também realizar formações na Bahia. Só tenho recordações
boas desses encontros. Ver jovens que assim como eu fazem
Diretora Cyra (na frente) com multiplicadores. À esquerda, o veterano Hiago, e à direita, a professora parceira Simone e o
formador Aldênio, na EEEP Virgílio Távora.
81
parte dos Círculos de Leitura e ver que o programa mudou
também a vida deles para melhor não tem preço. Eu lembro
que uma garota durante essas formações me disse: “Hiago,
dá um abraço bem forte na equipe dos Círculos de Leitura e
diz a todos que muito obrigado por tudo que eles fazem por
nós, mesmo distantes”.
82
Grupos dos Círculos de Leitura na EEEP Dom Walfrido Teixeira Vieira.
83
que tenho aprendido, e essa experiência me deixa muito
realizado. Já formei muitos grupos, tive encontros maravi-
lhosos com outros jovens.
Conclui o Ensino Médio, mais um ciclo de minha vida,
mas não quis perder esse tesouro que a vida me deu. Levo
comigo valores como compreensão, generosidade, res-
ponsabilidade, amor e vontade de sempre ir mais longe; e
mesmo na faculdade, continuo repassando tudo isso para
outros jovens através dos Círculos de Leitura. Pretendo
continuar atuando como formador e levando o amor pela
leitura. Assim, acredito que estou dando a minha contribui-
ção para melhorar o mundo em que vivemos.
84
2.4 O programa Círculos de Leitura cruza o
Atlântico e chega a Roma
É
uma honra, uma emoção e uma alegria enorme receber este convite e ter a
oportunidade de falar com vocês nesta cidade maravilhosa.
Agradeço imensamente à professora Lucia de Anna, à doutora Marta San-
chez, à Universidade de Roma e à presença de todos.
Do mesmo modo, sou grata a muitas pessoas do Brasil e penso que aqui e ali é
sempre o mesmo ânimo e objetivo que nos sustenta: a vontade de viver em um mundo
mais fraterno na diversidade, mais inclusivo e amoroso.
Refletir sobre a possibilidade desse nosso encontro, focado na inclusão social, me
fez lembrar do conto O túnel, de Máximo Gorki (1868-1936), que integra o repertório
dos Círculos de Leitura e que os jovens costumam adorar. Vou relatar um pequeno tre-
cho, para depois trabalharmos o conto em sua totalidade. O objetivo é apresentar al-
gumas de nossas preciosas ferramentas básicas: livros, associação de ideias e contação
de histórias. Era uma vez...
Homens de diversas procedências cavavam o túnel de Simplon, que liga a Áustria à
Itália, e um deles narra, depois de se passarem muitos anos:
Nós e aqueles que vinham do outro lado nos encontramos treze semanas depois da
morte do meu pai... Foi um dia de loucura, senhor! Oh, quando ouvimos ali, debaixo da
terra, na escuridão, o ruído dos outros trabalhadores o rumor dos que vinham ao nos-
so encontro debaixo da terra – procure compreender senhor, debaixo do enorme peso
da terra que poderia, se quisesse, esmagar-nos a nós, pequeninos, a todos duma vez!
Por muitos dias, nós ouvimos aqueles ruídos, tão sonoros, a cada dia eles ficavam mais
claros, mais nítidos, e nós éramos dominados pela loucura jubilosa dos vencedores.
Trabalhávamos como espíritos malignos, como desencarnados, sem sentir fadiga, sem
observar instruções. Era bom, bom como uma dança num dia de sol, palavra de hon-
ra! E todos nós ficamos tão amáveis e tão bons, como se fôssemos crianças. Ah, se o
senhor soubesse como é forte, como é insuportavelmente apaixonado o anseio de
encontrar um ser humano nas trevas, debaixo da terra, no interior da qual a gente
penetrou à força, como uma toupeira, durante longos meses!
Receber o convite foi como ouvir o ruído do outro lado e sentir que o trabalho rea-
lizado do lado de lá, no Brasil, tão singelamente, é escutado, encontra ressonância e se
“completa”, por assim dizer, no trabalho realizado do lado de cá, por vocês, para minha
imensa alegria e de todos os companheiros de labuta.
Em outros sentidos ainda esse conto nos descreve. Vivemos hoje quase sufocados,
soterrados por montanhas de informações irrelevantes, incitações ao consumo, convi-
tes ao imediatismo, poluição da terra, ar e água, a tal ponto que, no limite, a própria vida
na Terra está ameaçada. Escasseiam as possibilidades de encontros significativos e tão
Conferência realizada na improváveis quanto este que experimentamos agora.
Universidade de Roma pela No encontro de hoje, pretendo contar como foram cavados túneis, ou foram cons-
psicanalista Celina Ramos.
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truídas pontes que nos trouxeram até aqui. Com o auxílio de todos se faça ouvir. É comum que certas passagens sejam li-
Gorki, pretendo descrever a construção de alguns túneis ou das muitas e muitas vezes, porque são belas, porque alguém
pontes, que visam diminuir distâncias, proporcionar encontros. deseja comentar, ou alguém não entendeu, ou alguém queria
Do lado de lá, temos o programa Círculos de Leitura, como ouvir a passagem na voz de um outro, ou porque o multipli-
túnel ou ponte, que une educadores e jovens de diversas regiões. cador pergunta: “O que vocês acham disso?”, ou “Como é isso
É um túnel construído ou pavimentado pela leitura coletiva, em para vocês?”.
voz alta, de textos contemporâneos e clássicos. Essas pausas, repetições e perguntas, além do texto em si,
Falarei mais tarde do túnel ou ponte que liga o Brasil a causam, de início, certo estranhamento. Não estamos acostu-
Roma. Penso eu que ele resulta de uma visão de mundo pa- mados a ser interpelados no mundo contemporâneo. Ninguém
recida, do pertencimento a um mesmo eixo epistemológico quer saber nossa opinião; ao contrário, querem impingir as de
e da comunhão de um mesmo objetivo: a construção de um outrem, e, pior, como se fossem nossas. Todos querem rapidez,
conhecimento prudente para uma vida decente. “liquidez”, mas o ritmo das reuniões dos Círculos é lento. Os
O programa Círculos de Leitura é uma das ações desenvol- livros e as novas informações são assimilados muito vagarosa-
vidas pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, mente. Trata-se de um tipo de “slow food”.
tendo à frente a figura encantada e encantadora de Catalina O autor do livro Sociedade do cansaço, Byung-Chul Han,
Pagés, que, em determinado momento, resolveu que levaria a relembra o que recomendava Nietzsche: devemos aprender a
leitura em grupo de obras clássicas e contemporâneas da lite- ler, devemos aprender a pensar, devemos aprender a falar e a
ratura para jovens de escolas públicas da periferia de São Paulo. escrever. Aprender a ver significa “habituar o olho ao descan-
O encantamento de Catalina pela literatura é anterior à cria- so, à paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si, isto é, capacitar
ção dos Círculos. A convicção de que a leitura é um poderoso o olho a uma atenção profunda e contemplativa, para formar
fortificante da potência criativa da alma é, para ela, muito an- o caráter do espírito, o que significa ser capaz de oferecer re-
tiga. Mesmo antes dos Círculos, ela promovia leituras coletivas sistência a um estímulo”.
de O banquete, de Platão, em um manicômio, espalhando, por A leitura assim concebida é um tipo de resistência. Apren-
contaminação e contágio, sementes de Eros, de amor filosófico, der a escutar e esperar seu tempo para falar é também uma
entre os presos e os funcionários que compunham, por sua livre inestimável arma para a vida. Ser capaz de articular seus
vontade, os grupos. Um deles, que certa vez estava encarre- pensamentos e escrevê-los em um texto com as próprias im-
gado de passar o cadeado na porta da sala de reunião, disse: pressões é fundamental, ajuda a memorizar; e é assim que se
“É a primeira vez que tranco a mim mesmo, e por gosto.” costumam finalizar muitos dos encontros de leitura, com um
Existe um belíssimo filme italiano, Cesare deve morire, di- texto escrito pelos participantes.
rigido pelos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, vencedor do Fes- O ritmo lento, os comentários de todos e as repetições per-
tival de Berlim 2012, que relata uma experiência semelhan- mitem que o estranho vá sendo traduzido, torne-se familiar,
te. No filme, a peça teatral Júlio César, de William Shakespeare, seja conhecido de cor, de coração. E esse tema do estranho é
é encenada por um grupo de prisioneiros da prisão de segu- caro a todos nós que trabalhamos com inclusão.
rança máxima Rebibbia, em Roma. Ao mesmo tempo que é Caetano Veloso trabalha essa questão na música “Sampa”
um registro documental, o filme trabalha a ficção por trás da quando relata suas impressões ao sair da sua bela cidade e
trama original. Toda a equipe cinematográfica e teatral inves- chegar à enorme, frenética e esfumaçada cidade de São Paulo.
tiu pesado no poder transformador da arte. Como a equipe Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto,
dos Círculos de Leitura faz no Brasil. chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto o mau gosto.
É que Narciso acha feio o que não é espelho,
O primeiro grupo dos Círculos de Leitura aconteceu em Dia-
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho,
dema, que então apresentava os maiores índices de violência
[...] quando não somos mutantes.
do Brasil e um dos maiores do mundo.
Um encontro dos Círculos de Leitura reúne entre 12 e 13 Essa “mutação”, para ele, se deu mediante a tradução de
participantes. Nos encontros, todos têm em mãos o texto a Rita Lee, que lhe “explica” a cidade, fazendo com que a veja com
ser lido. É indispensável que se leia em voz alta, que a voz de novos olhos e que passe a senti-la como um local de liberdade
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Quando contava (aos amigos) sobre livros que tinha lido,
possível, nem tão feio assim. Toda essa assimilação do estranho encontrava-me mais uma vez contando-lhes de forma
aumenta a amplitude de seu olhar e de sua compreensão, e diferente, distorcendo, agregando ao relato algo tirado
Caetano se torna um “mutante”, cidadão do mundo. É Nietzsche, de minha própria experiência. Isto ocorria porque, para
outra vez, quem nos dá uma descrição e uma receita preciosa mim, literatura e vida haviam se fundido em uma coisa
de como atravessar estranhamentos: só; um livro era o mesmo tipo de manifestação de vida
É preciso aprender a amar. – Eis o que nos acontece em que um homem; um livro era também uma realidade vi-
música: é preciso aprender a ouvir em geral um tema, vente e falante, e era menos um objeto que todos os ou-
um motivo, é preciso percebê-lo, distingui-lo, isolá-lo e tros objetos criados, ou por se criar, pelo homem. (GORKI,
87
a linguagem em que se busca a sua pulsação original. Os deza na leitura, incompatível talvez com as duras exigências
livros tornam-se, assim, algo além de um campo visual: do mundo externo. Daiane, uma das meninas, respondeu:
o território do canto, procura-se “dançar” com o autor. “Com isso, o senhor não se preocupe; em minha casa a vida
Busca-se, em grupo, a sintonia com ele, com quem pronun- sempre foi muito dura. Soubemos o que é passar fome; pos-
ciou a frase, com o escritor, com seus ritmos, dicção, tempo, so dizer para o senhor que nada se compara com a fome da
entonação, timbre, pulsações e cintilações da palavra. São alma, e dessa, estamos cuidando aqui”.
livros para bailar. Outra visita importante que recebemos foi a de uma tur-
“A leitura compartilhada desperta tanta energia que o ma do mestrado da Universidade de Roma, por volta de
Universo dança, e juntos dançamos ao som das palavras do 2007, quando vários grupos dos Círculos foram formados; to-
seu uni-verso”, afirma Catalina. dos leram Guimarães Rosa, um dos melhores e mais comple-
Como campo de forças, as palavras esboçam gestos. xos escritores brasileiros.
Trata-se de reverenciar e revivenciar esses gestos. O escritor Certas atividades, como a exibição de filmes, idas a mu-
uruguaio Eduardo Galeano, por exemplo, escreveu um livro seus, a concertos ou peças de teatro, congregam muitos gru-
intitulado O livro dos abraços, o que, a depender da maneira pos pequenos em um grande. Além disso, naturalmente, os
que for lido, pode ser encarado como apenas um nome, ou o jovens se encontram fora das atividades dos Círculos.
aviso de que um imenso abraço de ternura envolverá a todos Esse método de trabalho garante algumas coisas interes-
nós, leitores acarinhados. santes: primeiro, o fato de não ter centro, de a discussão ser
Do repertório fazem parte autores como Homero, coletiva. Depois, a apropriação das histórias garante que os
Shakespeare, Sófocles, Platão, Gabriel García Márquez, jovens admirem profundamente os heróis, mas sem sentir o
Neruda, Saramago, Rosa, Drummond, Machado de Assis e efeito paralisante dos ídolos e modelos. É visível que reveren-
tantos outros. O clássico também mantém seu apelo à reno- ciam alguns protagonistas, mas também é evidente o orgu-
vação e ao pensamento, às emoções ao longo dos anos. E lho que sentem ao falar das próprias tarefas e das práticas a
concordamos totalmente com as definições de Ítalo Calvino: que se dedicam.
“Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem É muito importante que os jovens e todos nós reconhe-
a dizer”; ou “Os clássicos são livros que quanto mais se julga çamos nossa própria nobreza, proclamando igualmente a no-
conhecê-los por ouvir falar, mais se descobrem como novos, breza alheia. Trata-se, afinal, de um exercício pleno de Anar-
inesperados e inéditos”. quia coroada, em que ou não subsiste um único centro, ou
Como leem bem, os jovens são excelentes contadores de sabe-se que ele se encontra em todos os lugares. Que assim
história, função que exercem com graça e habilidade, tam- a nobreza se espalhe.
bém em conjunto. Isso funciona mais como quem joga, di- O clima dos grupos é de alegria e potência. Os jovens são
gamos, futebol ou quem toca um improviso de jazz do que amigos, e ainda está por ser estudado o quanto a Amizade
como um jogral ensaiado. Os contos “partidas” são improvisa- pode estimular a faculdade do pensamento. A esse respei-
dos, imprevisíveis (quem passa a bola, ou a fala, para quem?), to, Erasmo de Rotterdam dizia que nem o parentesco nem a
e os que se dispõem a contar costumam jogar bem em todas consanguinidade unem as almas com laços de amizade tão
as posições. Essa habilidade técnica exige um treinamento e íntimos e sólidos como os produzidos pela comunhão dos
uma intimidade com a bola (e a bola da vez são os livros). estudos humanísticos.
Os jovens dos Círculos têm interlocutores de peso. Vou ci- É importante frisar que os grupos oferecem a oportunida-
tar apenas dois exemplos. de de uma espécie de vivência pública e política, que é cada
Para começar, temos Felipe Gonzáles, que foi primeiro-mi- vez mais rara nesses isolados tempos pós-modernos, a ponto
nistro da Espanha por 12 anos e participou de um encontro de perdermos a noção de seu sentido mais profundo.
dos Círculos com os jovens sobre “O conto da ilha desconhe- Na esfera pública, em contato com os outros, diferentes
cida”, de José Saramago. No final desse encontro, “Seu Felipe”, de nós – ao contrário do espaço social da família –, podemos
como foi então chamado, disse aos jovens que se preocupa- exercer a faculdade propriamente humana de aparecer, bus-
va com eles, pois demonstravam tanta sensibilidade e delica- car a excelência, que pode ser presenciada, admirada e reme-
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morada por muitos. A esfera pública digna desse nome con- Esse mecanismo de ocultação ou minimalização do so-
templa o bem comum, não a necessidade ou algum interesse frimento alheio deve ter ocupado um lugar importante nas
individual. mentes e nos corações de alemães na Alemanha nazista
O declínio do homem público é o nome de um livro muito (1936 a 1945), quando uma maioria não pensava nem imagi-
interessante de Richard Sennett, que tem como subtítulo: As nava ou concebia os sofrimentos e terrores a que uma parte
tiranias da intimidade. De fato, em vez de haver, como no es- da população estava sendo submetida.
paço público, uma esfera em que se busca a excelência, con- No Brasil, atualmente, existe uma onda fortíssima no sen-
substanciada nos belos gestos e palavras voltados ao bem tido de negar ou desvalorizar o sofrimento do outro, consi-
comum, a ênfase passou do que se é para o que se tem. derar queixas legítimas um “mimimi”, o que constitui o fim
Não é à toa que coincide com o declínio da esfera pública de qualquer solidariedade.
o boom da depressão, que substituiu a histeria como mal do Essa atenção mais acurada dirigida ao sofrimento pode-
final do século XX e deste início de século XXI. ria sugerir que o trabalho da emancipação privilegia a tris-
Afinal, é próprio do homem ser um animal político dota- teza, o que não é toda a verdade. Ao contrário do eixo da
do de fala, e essa dimensão fundamental – a política, estar regulação, o eixo emancipatório valoriza a dimensão esté-
entre seus pares – lhe foi tomada pelos tempos modernos, tico-expressiva do conhecimento e do senso comum. Des-
devendo ser laboriosamente reedificada. se modo, vai contra a colonização do prazer, que o mundo
Todos estamos, em certa medida, desiludidos e asfixia- moderno pretende enclausurar em certas formas de lazer e
dos com a macropolítica. Então, projetos como os Círculos de ocupação dos tempos livres, propostos pelas indústrias cul-
Leitura trabalham a rearticulação de novas possibilidades de turais e pela ideologia e prática do consumismo. Assim, o
reinvenção da esfera pública, de reencantamento do mundo riso, a ludicidade, a alegria, a jouissance que resistem ao en-
e reinvestimento no homem humano. Afinal, isso é o que so- clausuramento e difundem o jogo entre os seres humanos;
mos e o que temos de melhor. enfim, o “reencantamento do mundo” e o investimento em
No início desta fala, prometi falar sobre uma visão de utopias constituem algumas das principais pautas do eixo
mundo que nos aproxima; para tanto, mudo o registro da emancipação.
outra vez. Um de nossos grandes escritores e pensadores, Oswald
Se usarmos as categorias de Boaventura de Sousa Santos, de Andrade, afirma: “A alegria é a prova dos nove”. E para fe-
sociólogo português que se ocupa dos saberes e fazeres mo- char o tema do sofrimento, nenhuma outra frase seria me-
dernos e pós-modernos, podemos dizer que o trabalho de lhor do que a de Italo Svevo, em A consciência de Zeno: “Não
vocês aqui da Universidade de Roma e o dos Círculos de Lei- é pelo fato de a vida doer que ela deve ser considerada uma
tura integram o mesmo eixo epistemológico, o eixo da eman- doença”.
cipação, não importa quão diferente seja o nosso trabalho, a Antes de terminar, devo dar conta de que muitos dos jo-
dimensão ou a idade de nossas instituições. vens dos primeiros tempos dos Círculos continuam em con-
Para todos nós, a solidariedade é uma forma de conheci- tato conosco e são nossos amados interlocutores. A maioria
mento. Não negamos jamais a precariedade do outro, seu so- concluiu estudos superiores. Entre eles, temos professores
frimento e, sobretudo, afirmamos vigorosamente sua poten- primários, executivos em grandes empresas. Alguns traba-
cialidade. Aprendemos com eles. Não somos colonizadores, lham com projetos destinados à difusão do hábito da leitu-
mas parceiros e aprendizes. ra, e temos até mesmo um escritor laureado com o Prêmio
Do ponto de vista de Sousa Santos, o contato com o sofri- Governo de Minas Gerais de Literatura. Todos igualmente
mento e também com a alegria é algo fundamental na cons- nos enchem de orgulho! Creditamos o sucesso deles aos es-
trução de um saber digno desse nome: “o paradigma de um forços e talentos de cada um, mas reivindicamos nossa mi-
conhecimento prudente para uma vida decente”. núscula parcela na tarefa da inclusão social: ao menos umas
Na verdade, diz Boaventura, temos um conhecimento li- pitadas de sabor o trabalho dos Círculos de Leitura acrescen-
mitado da situação humana. Para exemplificar esse ponto, re- tou ao seu saber e à sua competência.
corro a um exemplo antigo e a outro bastante atual. Obrigada!
89
90
3. A Conversa dos Jovens
com os Clássicos
O
conjunto de textos que apresentamos nos Círculos de Leitura,
escritos por diferentes autores, em distintas épocas, dialogam
entre si e nos convidam a fazer parte desse diálogo.
O grupo é um espaço privilegiado, no qual a leitura em voz alta, re-
petidas vezes, cria um ambiente em que o som das palavras nos envolve
com sua musicalidade. E nesse estado de entrega a poesia se revela.
Nietzsche recomenda paciência e ternura para que a obra de arte se
apresente com toda a sua beleza e esplendor.
O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) apresenta cinco
condições necessárias para o entendimento do simbólico das obras de
arte: simpatia, intuição, inteligência, compreensão e graça. Esta última,
segundo o escritor, é a mais difícil de ser definida.
William Anderson (1962-) define as obras de arte como “depósitos de
energia”. Para esse escritor americano, elas requerem uma qualidade de aten-
ção que, uma vez alcançada, promove uma conexão entre nós, como leitores,
e a mente do artista, no momento da criação de sua obra.
Após esse fazer, que envolve a hospitalidade, o entendimento, a apro-
priação e a troca de experiências, obtemos a recompensa última: ouvir
o silêncio. Trata-se de uma verdadeira conquista, que abrange o todo e
revela nosso verdadeiro Ser, sempre em devir.
[...] há mais na vida do que comer, brigar ou ter poder no bando? [...]
há uma coisa chamada perfeição.
[...] nossa finalidade em viver é encontrar e ostentar essa perfeição.
93
Podemos começar com o tempo, se você quiser — lembrou Chiang.
[...] Nessa ocasião, você estará pronto para iniciar o voo mais difícil,
mais poderoso, mais divertido de todos. Estará pronto para começar a
voar para o alto e aprender o significado da bondade e do amor.
Querida Letícia,
O caminho percorrido por Fernão não foi tranquilo o tempo todo. Houve
um momento em que ele quase desistiu de aprimorar seu voo para agradar
aos pais. Ele se sentia tão frustrado por não conseguir satisfazer nem aos
pais nem a si mesmo que até pensou em se deixar afundar nas turvas águas
do oceano.
Mas, nesse momento de desespero, Fernão ouviu a voz cavernosa que
emergia de seu interior, lhe despertando uma grande força que o ajudou a
superar a angústia e a continuar treinando.
Muito tempo depois, quando pensava já ter aprendido tudo sobre o voo,
Fernão é surpreendido pela presença de duas gaivotas brilhantes, que voa-
vam como ele e que o convidaram para ir com elas, dizendo-lhe que tinha
que voltar para casa. Fernão hesitou. Não sabia o que fazer. Mas como elas
voavam de forma tão bela, decidiu acompanhá-las.
Fernão nos mostra Ao contar uma história aparentemente singela sobre uma gaivota que
que a autoconfiança queria aprimorar seu voo, Richard Bach nos traz uma reflexão profunda so-
bre a busca do conhecimento e a necessidade de compartilhá-lo, fazendo
não é o ponto de
da transmissão do saber uma forma de doação de amor. Essas Ideias tam-
partida, mas, sim, o bém estão presentes na obra de nosso grande filósofo Platão, que Bach
ponto de chegada. traduziu de forma leve e cativante em seu livro. O autor coloca em práti-
ca os ensinamentos do filósofo, compartilhando o seu conhecimento e
tornando-o acessível a todos. Percebemos que, ao tomarmos os clássicos
como nossos mestres, nos tornamos criativos e até, quem sabe, um dia,
famosos como Richard Bach!
Vimos no diário que surgiu a ideia da autoconfiança, e esse é sem dúvida
um conceito importante para a nossa vida. Fernão nos mostra que a auto-
confiança não é o ponto de partida, mas, sim, o ponto de chegada, após
um longo processo no qual somos testados muitas vezes, pois sabemos que
ninguém nasce autoconfiante.
Um abraço,
Catalina e Cidinha
94
Querida Jaqueline e grupo,
95
Querida professora Gegardênia e grupo,
Um abraço,
Catalina e Cidinha
96
Querido Ruan e grupo,
Um abraço a todos,
Catalina e Aline
97
Querida Adenyse e grupo,
Algumas pessoas têm o dom de acreditar nos seus projetos, nos seus
sonhos, ainda que não exista nada de palpável. Há uma força que os im-
pele a fazer algo, acreditando que aquilo é bom; a essas pessoas chama-
mos de visionários.
Fernão estava convicto de que perseguia algo muito bom. Ao ser ex-
pulso, ficou triste por não conseguir transmitir ao grupo a alegria que o
voo proporcionava. Ao ser forçado a sair do bando, deixou para trás gaivo-
tas que não acreditavam no que ele fazia e, longe delas, pôde dedicar-se
de corpo e alma às novas descobertas, o que o deixava muito feliz.
Ao longo da história, encontramos vários exemplos de personagens
que foram visionários, como os grandes navegadores e cientistas, os
quais, mesmo não tendo algo concreto, acreditavam na sua intuição,
pesquisas e cálculos feitos a partir de demorados estudos. É assim que
surgem os grandes avanços para a humanidade.
Nos Círculos de Nos Círculos de Leitura, acreditamos e abraçamos com muita força
Leitura, acreditamos o projeto de transformar a sociedade, diminuindo as diferenças sociais
e abraçamos com através de um trabalho de colaboração e respeito mútuo. Procuramos
fazer o que estamos fazendo da melhor forma possível, buscando a per-
muita força o projeto
feição, assim como Fernão; e isso nos proporciona uma imensa alegria.
de transformar a Nietzsche vê o ser humano como uma obra de arte em construção
sociedade. e a sua realização irá depender dos bons encontros ao longo da vida.
Kazantzakis, discípulo de Nietzsche, ao reescrever o mito de Teseu, se ins-
pira nas suas ideias. Teseu, na obra Kouros, fala: “[...] luto incessantemente
para me tornar aquele homem que eu desejo ser”.
Do mesmo modo, no conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, Gui-
marães Rosa diz que estamos no mundo com alguma tarefa a realizar;
todos nós temos uma vocação e uma missão a cumprir. O importante
é descobrirmos nossa vocação e desenvolvê-la para não nos tornarmos
“homens pela metade”, ficando a outra metade no caminho.
Nossa concepção de perfeição implica um objetivo a ser alcançado, e
o essencial é o empenho para obter sua realização. Teseu, à procura de si
mesmo, partiu para a ação e para a conquista, libertando tanto o mino-
tauro como sua nação e se tornando “aquele homem que desejava ser”.
Na leitura dos diários, vimos que o grupo, assim como Fernão, per-
cebeu a importância de um mestre. Fernão, mesmo tendo aprendido a
voar muito bem, lembra o quanto teria sido mais rápido e divertido o seu
aprendizado se tivesse encontrado o mestre Chiang mais cedo.
Um abraço,
Catalina e Cidinha
98
Querida Taislândia,
A partir dos relatos, notamos que os temas principais das discussões fo-
ram: “família e amigos” e a “determinação aplicada ao desafio de aprender
em um ambiente hostil”.
Desde o início, vemos Fernão como uma gaivota diferente das outras do
bando da qual fazia parte. Não é fácil buscar o conhecimento, quando isso
A autoestima é algo não é incentivado pelo meio, mas existem pessoas que, assim como Fernão,
muito importante têm a capacidade de aprender mesmo em situações adversas e desenvolver
quando estamos habilidades que as fazem superar os problemas.
A autoestima é algo muito importante quando estamos aprendendo,
aprendendo,
principalmente se a busca por esse conhecimento está em desacordo com
principalmente se as ideias de pessoas que amamos.
a busca por esse Gostamos muito da reflexão que o Eduardo fez sobre Fernão: “... ele não
conhecimento está pensava em desistir, até um momento em que subiu tão alto e caiu, e ele
em desacordo com desejou morrer, pelo fracasso que tivera”. Muitos esquecem que, em um
dado momento, Fernão quase se entregou à tristeza de não satisfazer os
as ideias de pessoas
requisitos exigidos nem conseguir alcançar suas metas. Tal comportamento
que amamos. é algo muito comum quando estamos desenvolvendo nossas habilidades.
Porém, a alegria trazida pela conquista supera as decepções que sofremos
no processo de desenvolvimento.
Fernão se sentiu tão fortalecido depois de aprender tanto com sua ex-
periência que, mesmo sendo expulso, não sentiu raiva, mas uma profun-
da tristeza, pois o seu bando estava se privando do conhecimento que iria
libertá-los dos limites impostos pela mentalidade do bando.
Muito interessante a maneira como vocês caracterizaram Fernão: “uma
gaivota estudiosa”. Realmente, ele apresenta as características de um pes-
quisador no desenvolvimento de um método. Grandes homens da história
também dedicaram toda a vida para lapidar o conhecimento ao ponto de
eternizá-lo. Descartes, importante filósofo francês, levou muitas décadas
para desenvolver o chamado “método cartesiano”, que revolucionou a filo-
sofia moderna. Ele, assim como Fernão, sentiu receio de expor sua pesquisa,
pois vivia em uma sociedade com valores fixos, precisou deixar a França,
sua terra natal, e mudar-se para a Holanda. No último capítulo do seu livro,
O discurso do método, o pesquisador fala da angústia e do medo que en-
frentou em sua trajetória.
Os Círculos de Leitura se baseiam em um método que nos ajuda a de-
senvolver nossas habilidades de ler, ouvir, entender e conhecer as obras e
o universo que elas apresentam. Estamos em constante aperfeiçoamento e,
às vezes, nos encontramos em situações difíceis, mas, como a nossa gaivota
Fernão, sentimos prazer na busca da perfeição do voo.
Abraços,
Aline Jacó
99
[…] o homem faz aquilo que ele e somente ele deve fazer, com total
liberdade e sob sua exclusiva responsabilidade. Por outro lado, esse
mesmo homem, ao exercer uma profissão, compromete-se a fazer o
que a sociedade necessita.
(Ortega y Gasset, Missão do bibliotecário, p.13)
Um abraço a todos,
Aline Jacó
100
[...] quero encontrar a Ilha desconhecida, quero saber quem sou eu
quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a
saber quem és...
(José Saramago, Conto da ilha desconhecida, p. 40)
sentimentos do
De seu amigo,
mundo: a gratidão. Fernão Capelo Gaivota
101
102
A comédia humana
O tema das relações humanas, com seus conflitos, encontros e de-
sencontros, é o fio condutor que perpassa a obra A comédia humana,
mostrando-nos que, mesmo em um ambiente marcado pelas tensões da
guerra, é possível preservarem-se valores como a compreensão, a cama-
radagem, a generosidade e a empatia.
Ao longo de sua trajetória, Homero amadurece, até o momento em
que fala para a mãe que estava vendo realmente a cidade em que vivia
pela primeira vez, passando a conhecer as pessoas que lá moravam.
Impossível não estabelecer um paralelo com a obra clássica Odisseia,
de Homero, na qual acompanhamos a trajetória de Ulisses, suas viagens
e aventuras, sempre ajudado pela deusa Palas Atenas. Mas, enquanto
Ulisses chega ao conhecimento da alma humana depois de muito viajar,
o nosso herói Homero o faz conhecendo as dores e o sofrimento dos
moradores de Ítaca (metáfora para alma humana).
Aqui também se distingue o tipo de ajuda, pois, para o jovem, o au-
xílio veio de pessoas do seu convívio, como sua mãe, seus colegas de
trabalho, seu irmão, todas dotadas de nobres traços de caráter. Em A co-
média humana, não temos apenas um herói, mas vários, cujo heroísmo
se distingue pela forma solidária e digna com que enfrentam a vida.
Homero é daquelas pessoas que acreditam que o mundo pode ser
melhor e, ao começar a trabalhar, encontra a oportunidade para fazer
algo para si e para a sociedade.
Homero possui um profundo traço de humanidade, que é logo per-
cebido pelo Sr. Spangler, que lhe dá o emprego de mensageiro. O dono
da agência percebe que o jovem se empenharia ao máximo e que estava
disposto a ajudar as pessoas, a “fazer alguma coisa para as crianças do
mundo”.
A expressão “crianças do mundo” representa as pessoas, tanto as que
encontraram seu lugar no mundo quanto aquelas que, por alguma ra-
zão, em algum momento, fecharam-se em si mesmas ou se perderam
(mas que, como diz o Sr. Spangler, continuam sendo “sempre pessoas”).
O entusiasmo e o desejo de Homero em fazer algo pelas pessoas nos
remete ao filósofo Henri Bergson ao falar sobre a “alegria divina” que
sentimos quando produzimos ou criamos algo. Quando fazemos nosso
trabalho de corpo e alma, nosso potencial pode se manifestar – como
aconteceu com Homero, que, assim como Ulisses, conseguiu encontrar
seu lugar no mundo e chegar à sua Ítaca.
103
Queridos multiplicadores,
Um abraço,
Catalina e Cidinha
104
Queridos Lucas e grupo,
Abraços,
Francilene
105
Queridos Anderson e grupo,
Abraços,
Catalina
106
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas
(Carlos Drummond de Andrade, Mãos dadas)
Um abraço,
Catalina e Cidinha
107
Prefiro pensar que um dia a vida será mais justa, que os homens
não se olharão a procurar defeitos uns nos outros. Que haverá sem-
pre a ideia de que em todos há um lado bom. Nesse dia, será com
prazer que um procurará ajudar o outro.
(Oscar Niemeyer)
Um abraço,
Cidinha Lamas
108
Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem
por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo.
(José Saramago)
Um abraço,
Manoel Vieira
109
Homero sentiu a dor da Senhora Sandoval de uma forma tão profunda
que aquela tristeza transpassou o seu corpo.
(Antônio Wilson)
Um abraço,
Aline Jacó
110
Querido Ayron e grupo,
Abraços,
Iris Macias
111
112
Elena Schweitzer/Adobe Stock
O Pequeno Príncipe
Gostaria de ter começado essa história como nos contos de fadas.
Gostaria de ter começado assim: Era uma vez um Pequeno Príncipe
que habitava um planeta pouco maior que ele, e que tinha
necessidade de um amigo. [...]
“A Léon Werth
Peço perdão às crianças por dedicar este livro a uma pessoa grande.
Tenho um bom motivo: essa pessoa grande é o melhor amigo que possuo.
Tenho um outro motivo: essa pessoa grande é capaz de compreender
todas as coisas, até mesmo os livros de criança. Tenho ainda um terceiro
motivo: essa pessoa grande mora na França e ela tem fome e frio. Ela
precisa de consolo. Se todos esses motivos não bastam, eu dedico então
este livro à criança que essa pessoa grande já foi. Todas as pessoas grandes
foram um dia criança – mas poucas se lembram disso. Corrijo, portanto,
a dedicatória:
A Léon Werth, quando ele era criança.”
113
Querida Lívia e grupo,
Abraços,
Alanne de Souza
114
“Por isso mesmo, vivi sozinho, sem ter com quem de fato con-
versar, até meu avião sofrer uma pane no deserto do Saara, há seis
anos. [...] Era uma questão de vida ou morte. “
Vimos que surge no grupo a ideia de como algo que foi feito, ou de-
veria ter sido feito, pode interferir em nosso futuro na forma de remorso.
O Aviador, por não ter conseguido expressar o seu medo e por não reco-
nhecer que tinha um problema de comunicação, fechou-se para outras
relações. Tornou-se um adulto que se comportava como uma criança
que desejava ter seus desejos adivinhados e acabou, sem perceber, ado-
É importante tando uma postura de superioridade no contato com as outras pessoas.
lembrar que, para Aquele homem arrogante, que no primeiro contato testava as
pessoas, optou pela carreira de aviador para manter-se distante e bem
aprendermos e
acima das pessoas. Quando sofre uma queda com sua aeronave e cai em
levarmos conosco pleno deserto, vê-se forçado a parar e a refletir sobre o rumo que tinha
os ensinamentos tomado a sua vida e se reconcilia com sua criança interior, representada
de outras pessoas, pelo Pequeno Príncipe.
precisamos cativá-las. Outra ideia importante que foi destacada no grupo é a de que é pre-
ciso tomar cuidado com o que está em nossa volta, não deixar que os
baobás cresçam demais e se alastrem, tomando conta de todo o nosso
planeta.
Durante a nossa trajetória de vida, encontraremos muitas pessoas
diferentes que nos deixarão bons ou maus exemplos. A passagem do
principezinho por diversos planetas mostra isso. É importante lembrar
que, para aprendermos e levarmos conosco os ensinamentos de outras
pessoas, precisamos cativá-las , estando receptivos para elas; precisamos
oferecer nosso tempo e compartilhar o que sabemos.
Abraços,
Cidinha e Íris
115
Querida Terezinha e grupo,
Abraços,
Alanne de Souza
116
Olá, meus queridos,
117
Queridos multiplicadores e grupo,
Um abraço,
Lindemberg Vidal
118
Querido Felipe e grupo,
Um abraço,
Aline Jacó
119
Querida Aline,
Com carinho,
Alanne
120
Queridas Francisca Andrine e Alana Carolina,
Quando dedicamos “Eu não tenho necessidade de ti, e tu não tens necessidade de mim”,
explica a raposa para o Pequeno Príncipe. Para sentir necessidade,
nosso tempo precisa ser cativada. A raposa diz que ele precisa cativá-la, mas ele
para cativar outra responde que não tem tempo, pois busca amigos e tem muitas coisas
a conhecer. No entanto, para ter esses amigos, ele precisa fazer justa-
pessoa, também mente o que a raposa lhe aconselha: aprender a cativar, fazer vínculos,
somos cativados, pois só conhecemos bem aquilo que cativamos. E para criar vínculos
precisamos de tempo, pois é o tempo que dedicamos às coisas que
e essa relação tira as torna especiais. Como nos diz Proust, em sua obra Em Busca do
as mágoas e os Tempo Perdido: “E iremos amá-la durante muito mais tempo que às
outras, pois teremos levado muito mais tempo até amar”. (Módulo de
ressentimentos que O Pequeno Príncipe)
nos impedem de
viver a alegria da A raposa disse ao principezinho: “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa
vida. que a fez tão importante”. Quando dedicamos nosso tempo para cativar
outra pessoa, também somos cativados, e essa relação tira as mágoas e
os ressentimentos que nos impedem de viver a alegria da vida.
Os diários enviados trouxeram-nos muitas reflexões a respeito dos
traumas que as pessoas vivem, da necessidade dos encontros e da arte
de cativar. Gostaríamos muito de continuar pensando sobre essas ques-
tões. Leiam essa carta em grupo e escrevam sobre o que pensaram.
Um abraço a todos,
Aline Jacó
121
Lefteris Papaulakis/Adobe Stock
Kouros: tempo, caráter e destino
123
As areias assemelham-se às pessoas com mais experiência,
que nos ajudam a enfrentar os desafios da vida.
Um abraço,
Aline Jacó
124
Querida Larissa e grupo,
125
Querida Járcia e grupo,
Um grande abraço,
Nicolas Tavares
126
Caro Samuel e grupo,
Um grande abraço,
Nicolas Tavares
127
Queridos Mailson, Mayara e Inaraykla,
Primeiro, Ariadne aparece para Teseu como uma barreira, alguém com
o objetivo de desviá-lo de seu destino. Utilizando um jogo de sedução,
ela tenta conduzir o jovem príncipe para o caminho do esquecimento.
Diante da jovem, ele age com cautela e determinação para não se deixar
desviar de sua trajetória, o que demonstra a plenitude de seu caráter.
Teseu, quando partiu para Creta, via o Minotauro e os governantes
daquela ilha como inimigos a serem derrotados. Ao longo da narrativa,
notamos que há um processo de transformação e amadurecimento, em
que a calma e o silêncio são elementos primordiais.
O silêncio é essencial O silêncio é essencial para ouvir aqueles sinais que indicam o tempo
para ouvir aqueles certo de agir. Com calma, ouvindo as sábias palavras do seu antigo ini-
migo, Teseu consegue libertar o Minotauro, cumprindo com o seu pro-
sinais que indicam o pósito: proteger seu povo para não sacrificar a juventude.
tempo certo de agir. Alguns participantes estranharam o fato de Teseu chamar o rei Minos
de pai. Se pensarmos na maneira com que o Rei agiu com Teseu, trans-
mitindo para ele toda a sua experiência para que o príncipe saísse vito-
rioso, notaremos que, nesse momento, nasce entre eles um sentimento
de cooperação. Tal relação é tão forte que, no final da história, após Teseu
retornar do labirinto, Minos contraria a vontade de Ariadne pela primeira
vez, negando-se a matar o príncipe de Atenas.
Um abraço a todos,
Aline Jacó
128
Querida Tereza e grupo,
Um abraço,
Catalina e Cidinha
129
Querido multiplicador e grupo,
E transmite para E o rei complementa dizendo que ter um deus dentro de si é impor-
ele o ensinamento tante, mas não é suficiente. E transmite para ele o ensinamento de que
também precisaria aprender a ter calma, paciência e estar atento aos si-
de que também
nais para saber agir no momento certo.
precisaria aprender a
ter calma, paciência Seja paciente, controle sua forca, se for forte. A juventude é tola,
apressada, condescendente. E as palavras que estou prestes a lhe con-
e estar atento aos fiar podem acabar sendo desperdiçadas.
sinais para saber agir
E lhe orienta:
no momento certo.
Primeiro, quando você descer às entranhas da terra e alcançar a escu-
ra e divina caverna, curve-se e cumprimente nosso deus com respeito;
ele é um grande guerreiro, dentro dele se encontram os três poderes
básicos da terra e do céu: Animal, Homem e Deus. Ele luta para trazer
ordem e eu luto ao lado dele. Você compreende?
Um abraço,
Catalina e Aline Vieira
130
Não se preocupe então, fale livremente. Eu me curvo perante a ve-
lhice que deu frutos. Quais são suas instruções finais, velho guerreiro?
Queridos multiplicadores,
Abraços,
Lindemberg Vidal
131
132
Aphonua/Fotolia
Noites brancas
Noites brancas tem sido uma das obras mais trabalhadas no progra-
ma Círculos de Leitura e apresenta um dos temas mais caros à Fiódor
Dostoiévski, presente em praticamente todas as suas obras: a força dos
bons encontros.
O escritor russo sempre apresentou e defendeu em seus escritos
a ideia de que um bom encontro é um elixir poderoso, que fica reser-
vado em nossa alma e que, nos momentos de necessidade, pode vir a
nos salvar. No Círculos de Leitura, trabalhamos esse tema utilizando
outras obras do autor, como o conto O mujique Marey e o romance Os
irmãos Karamazov.
Na tentativa de nos aproximarmos cada vez mais da alma de Dos-
toiévski, buscamos diferentes traduções, mas a verdadeira aproxima-
ção só aconteceu quando certo dia Vera Mlodok Guedes, nossa amiga
russa, visitou-nos na Casinha e, tomada pelo entusiasmo dos jovens,
ofereceu-se para nos ajudar a elaborar uma nova tradução do livro.
À medida em que ia traduzindo o romance, em busca das palavras
adequadas para estar à altura da genialidade de Dostoiévski, Vera foi se
aprofundando na obra e encontrando novos sentidos. Nesse processo,
recuperou um livro que já havia lido em sua juventude, agora com ou-
tra intensidade.
Quando Vera nos entregou a tradução, na primavera de 2011, pas-
samos a revisá-la juntos e ficamos muito emocionados, agradecendo
profundamente por sua ajuda e dedicação. Vera nos respondeu que
era ela quem nos agradecia, pois o tempo dedicado à tradução da
obra de Dostoiévski a levara a um mergulho nas camadas mais profun-
das do espírito humano, nosso desejo desde o princípio. A gratidão
que sentimos ao completar a tarefa a que tínhamos nos entregado foi
semelhante àquela vivenciada pelos personagens de Noites brancas:
Nástenka e o Sonhador, que recuperarem suas vidas ao reencontrarem
a crença nos bons encontros.
133
Querida Joana e grupo,
Abraços,
Catalina e Alanne
134
Querida Nástenka,
135
retirá-lo ou simplesmente eliminá-lo de mim, não havia jeito. Teria de
conviver com o amor que ardia e queimava meu coração. Um dia, pro-
vavelmente, as feridas cicatrizariam.
Passei muitos dias solitários, sobrevivendo apenas com o pouco que
Matriona conseguia obrigar-me a comer. Com o passar do tempo é que
fui percebendo, até não haver mais nenhuma dúvida. Você, Nástenka,
não havia entrado na minha vida por acaso. Ao contrário, foi parte fun-
damental em meu destino. Você acendeu a chama que dormia dentro de
mim. Considerei-me um completo estúpido por não ter percebido antes
que você não me fez mal algum, somente me fez renascer.
Voltei a Petersburgo decidido a levar uma nova vida. E realmente con-
segui, Nástenka, você me fez conseguir. Me fez enxergar o quão fácil era
sair do casulo, bater asas e voar. Fiz novos amigos, acredite. Boas pessoas.
Bom, apaixonei-me novamente, também. Ela não é como você, Nástenka,
mas eu gosto dela e hoje posso dizer que a amo. Nos casamos. Tivemos
uma pequena, simples e bela festa de casamento. Queria ter-lhe convida-
do, Nástenka, mas, na época, receei esse reencontro. Tive medo de que, se
a visse de novo, aquela chama insistente do meu amor por você pudesse
se reacender num piscar de olhos. Espero que não fique brava.
Finalmente, Nástenka, me senti feliz como nunca antes. Quando era
apenas um Sonhador, sentia-me angustiado quase todo o tempo, porém
essa angústia foi substituída por alegrias. Tive filhos. Dois filhos lindos e
espertos, que, às vezes, lembram-me muito de você, com o seu jeitinho
meigo e infantil de ser.
Por fim, agradeço-lhe, Nástenka. Se não a houvesse encontrado na-
quele banco chorando sozinha, se não a tivesse salvado daquele senhor
bêbado e se não a tivesse ajudado por tão pouco tempo, mas por tem-
po suficiente, a se resolver com o seu amor, certamente eu não teria
acordado para a realidade. Continuaria sonhando e sonhando... Apenas
sonhando.
P.S. Perdoe-me por não ter respondido antes e, por favor, não chore.
Letícia Lopes (multiplicadora).
136
Meu querido sonhador,
É verdade, já faz muito tempo que não nos falamos. Confesso que não
o procurei novamente por medo de sua reação depois que recebesse
minha carta. Vejo que você está feliz, que utiliza muitas palavras positi-
vas, como amor, alegria e esperança. Como você mudou, meu Sonhador;
agora é um homem do mundo real, se casou e teve filhos.
Como você mesmo disse, já se passaram trinta anos. Durante esses
anos também fui uma sonhadora: sonhava com você, com o nosso re-
encontro, com suas perguntas engraçadas, com o seu jeito maravilhoso
Sempre achei que
de contar histórias, falando como se lesse um livro. Mas, meu sonhar não
heróis só existiam me privava do mundo real, pois também aprendi com você que uma mu-
nos livros que lia lher só é verdadeiramente feliz quando sente o toque de um cavalheiro
para minha avó; pegar-lhe o braço, protegendo-a de um bêbado. Sempre achei que heróis
porém, quando só existiam nos livros que lia para minha avó; porém, quando o conheci,
tive a certeza de que eles existem no mundo real.
te conheci, tive a
Se sonhei com tudo isso, é porque sei que quando se ama, não dura
certeza de que eles muito o ressentimento. E você me ama! Eu escrevi essa frase naquela
existem no mundo carta. Hoje o mundo é prova do nosso amor, sim, nós nos amamos! Nos
real. amamos tanto que cuidamos um do outro, que cultivamos sonhos e dei-
xamos uma boa lembrança. Bem, mas, assim como na nossa segunda
noite, vou contar-lhe minha história:
O meu Inquilino foi ao meu encontro na noite marcada, mas ao che-
gar nos viu juntos e resolveu ir embora e nunca mais procurar-me. Dias
depois, já estava com a viagem marcada para a manhã seguinte, resolveu
passear mais uma vez nas praças da bela Petersburgo. Viu-me novamente,
mas dessa vez eu também o vi, e aconteceu aquilo que você presenciou.
Eu disse em minha carta que nos casaríamos na semana seguinte, mas
resolvemos esperar um pouco mais. Queria que você estivesse em meu
casamento, ele também, pois você cuidou de mim, me salvou da morte,
pois pensei em pular da ponte naquela noite em que nos conhecemos.
Mas como você demorou muito a responder; nos casamos dois anos de-
pois. Também tive uma filha, ela se chama Ana, que significa, em hebraico,
cheia de luz. Escolhi esse nome pensando em você e no nosso encontro.
Em novembro deste ano, eu e o Inquilino, agora meu esposo, comple-
taremos 25 anos de casados – bodas de prata. Faremos uma festa relem-
brando a nossa história de amor, e você é nosso convidado. Quero que
leve seus filhos e sua esposa.
De sua eterna, doce e pequena,
Nástenka.
Aline Jacó
137
Queridos multiplicadores e grupo,
Um abraço,
Catalina e Cidinha
138
Querida Rozana e grupo,
Uma das várias coisas importantes que este livro nos leva a refletir é
a maneira como nem sempre é necessário um “final feliz”, como vemos
nos contos de fada, para que a história seja bonita e traga lições interes-
santes.
Em Noites brancas, Dostoiévsky retrata um tipo de amor diferente, o
amor amigo. De um lado, temos o Sonhador, que vivia solitário e não
tinha coragem de se aproximar de ninguém, de outro, Nástenka, que
também vivia solitária, mas, ao contrário do Sonhador, esperava o retor-
no de um homem com quem planejava se casar. Conhecendo a história
dos dois, podemos entender o grande aprendizado e crescimento que
proporcionou para o Sonhador a partida de Nástenka com seu Inquilino,
apesar do sofrimento que inevitavelmente ele sofreu. Mas o importante
é que agora ele vivia, se alegrava e sofria com situações da vida real e não
mais se perdia em um mundo imaginário.
Outro ponto interessante, comentado por vocês, é a forma como o
amor é capaz de mudar a concepção que temos das pessoas. Ele mobi-
liza o que há de melhor em nós e nos faz capazes de olhar as pessoas de
maneira especial, observando os detalhes mais simples e de mais valor. E
amar é isso: é ter um segundo olhar, é ver com os olhos do coração.
Pensando nisso, me lembrei da história do Pequeno Príncipe, mais
especificamente de quando a raposa ensina o principezinho a arte de
cativar. Quando o príncipe tem de ir embora, a raposa diz que guardará
dele as boas lembranças, já que ambos tinham cativado um ao outro. Em
Noites brancas, vemos uma semelhança com essa história: o Sonhador
não sabia cativar, mas aprendeu em sua relação com Nástenka. Com isso,
aprendeu também a deixar partir aquele que se ama, ficando apenas
com as boas lembranças.
Desejo-lhes ótimas leituras e que as reflexões sejam, a cada livro, mais
empolgantes para o grupo. Espero por novas reflexões!
Abraços,
Alanne de Souza
139
140
Retrato de Machado de Assis por Henrique Bernardelli (1905).
Dom Casmurro
Uma das atividades de Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma ópera”,
escrita que realizamos dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu...
nos Círculos de Leitura
é incentivar os jovens Bentinho, por não conseguir lidar com seus sentimentos, vive susten-
a escreverem para os tando as máscaras que julga serem convenientes.
personagens. Com esse
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro,
exercício, realizam um que aprendeu no conservatório do céu. Satanás suplicou ainda, sem
mergulho profundo na melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consen-
obra e nas inquietações tiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro
especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as
apresentadas pelos
partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
personagens.
Percebemos dois momentos bem marcados na história: a primeira fase,
marcada por descobertas e conquistas, quando o jovem encontra o pri-
meiro amor e, apesar das dificuldades, consegue conquistar tudo o que
sonhava: formar-se advogado e casar-se com a mulher que amava desde
a infância. Essa felicidade é marcada com o presságio: “Tu serás feliz, Ben-
tinho”; a segunda fase corresponde ao “declínio”, quando, após ter conse-
guido tudo o que desejava – uma bela carreira, uma esposa apaixonada,
um filho –, Bentinho vive dividido entre o amor que dedica à Capitu e ao
filho e o ciúme doentio que o atormentava.
O narrador, solitário e caminhando para a velhice, vê-se atormentado
por inquietas sombras. E na tentativa de livrar-se delas e finalmente ter paz
de espírito, decide reviver toda a sua vida escrevendo as suas memórias.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhi-
ce a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem
o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me
faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pes-
soas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.
141
Bentinho,
Pensei muito em ti e tenho algo a dizer-te. Quero te falar do olhar, da
atenção, da intensidade, da amizade, do encontro de almas, da vertigem
do amor e, por que não, também do medo que ele nos causa, ao nos
sentirmos levados sem saber por quem nem para onde.
Tu, Bentinho, relatas nas tuas memórias de juventude momentos su-
blimes que nem todas as pessoas tiveram a alegria de viver. José Dias,
com a sua denúncia mal-intencionada, acabou dando nome ao que
tu sentias sem saber que é assim que nos sentimos quando amamos.
Tua inocência e felicidade me comoveram. Quando José Dias falou dos
“olhos dissimulados” de Capitu, tu quiseste conferir. Foi aí no olhar que
tu lhe deste, na atenção, na compenetração, teus olhos nos dela, nesse
encontro atento e profundo, que algo sobrenatural aconteceu.
Abraços,
Catalina
Mamãe,
Preciso dizer-te algo que é muito importante para minha vida futura.
Tentei outro dia dizer-te isso através de uma conversa, mas senti que não
consegui dizer tudo o que precisava; portanto, escolhi escrever uma car-
ta, porque me sinto mais à vontade com as palavras escritas.
A verdade é que não posso ser padre. No início, não estava muito cer-
to disso, mas em uma conversa com meu amigo Escobar, ele me disse
que eu não seria um bom padre, que na verdade nem seria padre e que
Deus protegia os sinceros. Isso me fez me sentir muito bem, pois através
dele pude entender o que eu estava sentindo. Eu ainda não estou certo
de qual seja a minha verdadeira vocação, mas sei que ela virá com o tem-
po. Ah! Não se preocupe com a promessa, pois Deus é bom e entenderá
que isso é o melhor para mim.
Mas há outra coisa que preciso lhe contar: eu estou vivendo agora
em um novo tempo, um tempo mágico, que imagino que você, mamãe,
também já tenha vivido nos seus tempos de mocidade, uma vez que
sei do amor que existiu entre você e papai durante este tempo e que,
aliás, pode viver até hoje, já que é na ausência, na saudade, que pode-
mos pensar e recriar o vivido com intensidade ainda maior. Eu também
estou vivendo o amor por uma bela moça. Confesso que, por vezes, tive
medo de olhar-lhe profundamente nos olhos, mas nesta semana recebi
uma carta de uma amiga e defensora do amor (ela se chama Catalina)
que me disse que esse medo é normal no início, mas que depois ele vai
embora, pois, ao olhar nos olhos de minha amada, poderei entrar em
contato com algo muito maior, que ainda não entendi bem o que seja,
mas sei que no momento certo saberei.
Com amor!
Bentinho
142
Olá, Nairáh,
Abraços,
Raquel
143
Bentinho,
Soube de uma conversa que teve com Capitu, na qual foi apontado
por ela que você sentia medo. Mas, pelo que me parece, você não re-
conhece isso, e ficou bastante surpreso. Ao mesmo tempo, percebi que
também ficou instigado a entender o porquê de Capitu dizer isso. Creio
que seu estado de desconforto diante deste diálogo é um passo mui-
to importante para uma possível compreensão do fato e, consequente-
mente, de si mesmo.
Em contrapartida, conhecendo outra característica sua – a de achar
que as coisas vão até as pessoas de uma forma pronta, sem que seja pre-
ciso um esforço para que sejam construídas e entendidas –, acho bem
provável você não levar essa conversa adiante, pois não há saídas pron-
tas para ela.
Bentinho, uma vez li em um livro de Kazantzakis que o visitante é um
deus disfarçado ou um enviado dos deuses. Coloco a Capitu nesta ca-
tegoria. Aquele que vem de fora sempre nos traz algum novo conheci-
mento, revelando algo que, anteriormente, era estranho dentro de nós;
precisamos acolher este outro.
Você escreveu um livro no qual conta a sua história de vida e se coloca
como uma lacuna dentro dela. Creio que deve ter sido duro perceber
isso; afinal, essa afirmação equivale a dizer que você não teve vida. Tão
duro que, após dar esta informação, você faz um relato em que sua his-
tória aparece de forma superficial. Essa sua resistência deve estar ligada
a outra característica sua, que eu observo com clareza através da leitura
de sua narrativa e que, como eu disse anteriormente, Capitu o alertara:
trata-se do medo de viver.
Talvez, como no passado, ao ler essas palavras, suas reações sejam as
mesmas. É provável que esteja perplexo e sem entender esses dizeres.
Proponho-lhe, então, que dialoguemos mais sobre estas questões e ou-
tras que, muito provavelmente, virão. O que o senhor acha?!
A não ser que tenha escrito a história somente para um tipo de leitor,
talvez um pouco casmurro também. Nesse caso, sei que, infelizmente,
respostas eu não terei! Mas sou esperançosa e considero esta carta como
uma possível forma de preencher uma parte, mesmo que pequena, da
lacuna que deixou.
Um abraço,
Marina
144
Caro Bentinho,
Desejo dizer-lhe que a vida é curta e que a única certeza de que nós
temos é que um dia vamos morrer, pode ser amanhã ou daqui a 100 anos.
Então, meu caro, não se prive de desfrutar das coisas que a vida tem a lhe
oferecer, sejam elas sentimentos, conhecimentos, emoções, experiências.
Enfim, viva intensamente, cada gotinha de vida que possui, cada sentimen-
to, cada amor, cada dor, cada coisa que faça você sentir-se vivo por dentro.
Reflita mais sobre a sua vida e aprenda com os seus erros. Bons amigos
ajudam nesse processo. Faça dos bons momentos eternos, porque é algo
que você viveu, é real, e isso não pode morrer.
Aprenda a confiar Aprenda a confiar nas pessoas que ama. Não sinta receio de mostrar
nas pessoas que o que você realmente pensa, o que você realmente quer; afinal, se você
ama. Não sinta não for verdadeiro com as pessoas que ama, com quem você poderá ser?
E não se esqueça de que não importa o tempo que você passe com
receio de mostrar o alguém; você nunca vai parar de aprender e conhecer sobre a pessoa.
que você realmente Então preste mais atenção nas pessoas à sua volta, principalmente nas
pensa, o que você mais queridas. Bom, apenas quero pedir-lhe que pare um pouco e pense
realmente quer. nessas coisas que estou dizendo-lhe, pense na sua vida e no rumo que
ela está tomando, e, acima de tudo, pense no que você quer, no que você
almeja, no que você quer ser.
Você tem tudo para ser feliz e ter uma vida maravilhosa, meu caro. E
eu espero profundamente que você aproveite alguma coisa dita nesta
carta e que desfrute de uma vida feliz de verdade! E que, lá na frente,
quando você já tiver vivido muito, possa olhar para trás e sentir orgulho
da pessoa que você se tornou, de ter vivido a vida que você escolheu ter
vivido, um caminho traçado pela sua vontade e, assim, poder dizer para si
mesmo que você é uma pessoa realizada! Bom, meu caro Bentinho, aqui
me despeço de você.
Atenciosamente,
Guilherme
145
Cara Dona Glória,
Beijos,
Vitor Hugo
146
Prezada Dona Glória Santiago,
Sem mais,
Guilherme
147
148
Masik0553/Adobe Stock
3.2 Cartas temáticas
Aretê
Um abraço,
Catalina e Cidinha
149
Catalina e Lindemberg,
2
E então ele deu a si mesmo um novo nome, como foi apropriado para sua renova-
ção interior, e ele se chamou Don Quixote, e com esse nome ele ganhou a eterni-
dade da fama. E ele fez bem em mudar de nome, porque com o novo ele se tornou
um verdadeiro cavalheiro, se aderirmos à doutrina do dito médico Huarte, que nos
trabalhos acima mencionados nos diz: O espanhol que inventou esse nome, fidalgo,
deixou claro que os homens têm dois gêneros de nascimento. Um é natural, no qual
todos são iguais, e o outro, espiritual. Quando o homem faz algum feito heroico ou
alguma virtude e façanha nova, ele nasce de novo e recebe outros pais melhores, e
perde o ser que tinha antes. Ontem foi chamado filho de Pedro e neto de Sancho;
agora ele é o filho de suas obras. (Tradução nossa)
150
Querida Patrícia,
Um abraço,
Catalina e Nícia
151
Realização
Queridos multiplicadores,
Um abraço,
Catalina e Cidinha
152
Querida Catalina e equipe,
Um abraço,
Hiago Feitosa
153
Como eu buscasse contestá-la, repreendeu-me sem aspereza,
mas com alguma força, e eu tornei a ser o filho submisso que era.
Querido Hiago,
Um abraço,
Catalina
154
Olá, Hiago,
155
Olá, Hiago,
Danila Alves
156
Querida equipe e colegas dos Círculos,
Abraços a todos,
Manoel Vieira
157
Hiago,
Um abraço,
Marcos
158
Medo
Um abraço,
Equipe da Casinha/Multiplicadores de São Paulo
159
Olá, Catalina,
160
Caros multiplicadores do Ceará,
Por acaso cai-me às mãos uma carta dirigida a vocês, aqui na Casinha,
logo em minha primeira visita. Não resisto. Deixo-me mover pelo convite
e pela fascinação que é a experiência da leitura em comum, tão bem
articulada por esse centro, que a cultiva e a promove.
Na carta que tenho diante de mim, leio no começo a palavra “medo” e,
no final, a palavra “travessia”. São ambas palavras muito fortes, ponho-as em
relação. Quero entrar na conversa que se situa entre uma e outra.
Sobre o medo, lembrei-me de um trecho de Aristóteles, em sua Ética
a Nicômaco, quando situa a coragem entre os extremos da covardia e
da inconsequência. Coragem, de fato, não é a ausência de medo, mas a
capacidade de avançar apesar e além do medo. Ou seja, travessia.
Em minha experiência, de fato a não ser quando o enfrentamento co-
O medo é como loca em risco minha vida ou a de outrem, a melhor reação ao medo é
uma cortina. atravessá-lo. O medo é como uma cortina. Cega, esconde e desaparece
Cega, esconde e quando o atravessamos. A literatura traduz muitas vezes esse evento da
desaparece quando travessia do medo como uma viagem difícil – veja-se a viajem de Jonas,
no Livro de Jonas contido na Bíblia –, ou como uma passagem secreta,
o atravessamos. mágica ou desconhecida – feito em Alice quando entra no País das Ma-
ravilhas. O medo é uma passagem.
E atravessamos vários medos, várias fases em nossas vidas. Ao leva-
rem adiante os Círculos de Leitura, vocês vão superando ciclos como fez
Fernão Capelo Gaivota. O medo nos transforma. Não somos os mesmos
do outro lado da ponte, e às vezes quase nos desconhecemos quando
nos olhamos no espelho após a viagem. Crescemos com as passagens.
Cada livro, cada história é um degrau.
Às vezes tenho medo de ler certos livros. Certas palavras mexem com
a gente. Li há pouco A elegância do ouriço, de Muriel Barbery. Logo de-
pois de começar, fiquei com medo do que ia acontecer, e o final mexeu
comigo. Um livro lindo, bem escrito, apenas revelador de um lado que a
vida contém inevitavelmente. Leio não para fugir do mundo, mas para
vê-lo melhor.
E devo, enfim, confessar que tive certo medo de escrever esta carta.
Conheci hoje, sem esperar, a turma dos Círculos e logo me puseram sen-
tado com este computador às mãos e uma pasta cheia de cartas diante
de mim. Respirei fundo, atravessei a cortina do medo e aqui estou eu já
me sentindo parte do grupo. Tenho mais sede que medo, parece, e gos-
tei da aventura.
Adiante!
Roberto
161
Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a
ausência do medo.
Mark Twain
Um abraço,
Catalina e Cidinha
162
Caro professor Tiago Ernandes,
Obrigada e um abraço,
Lais
163
Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal;
isso nada tem a ver com a coragem.
Jean Paul Sartre
Um grande abraço,
Amanda Melo
164
165
166
4. A Arte do Encontro:
OS EFEITOS, AS TRANSFORMAÇÕES
A
o chegarmos ao final da jornada de memórias que empreende-
mos por meio deste livro comemorativo, apresentamos alguns
depoimentos que evidenciam “a arte do encontro” que se cons-
titui a essência dos Círculos de Leitura. São contribuições de professores,
diretores, coordenadores, jovens de longe e de perto, ex-colaboradores,
todos parte dessa história de 18 anos que temos muita alegria de contar.
Esses depoimentos mostram os efeitos das discussões, divagações,
experimentações suscitadas nos envolvidos com o programa ao longo
desses anos de existência dos Círculos, efeitos produzidos pelo diálogo
com a literatura, pelo mergulho na arte que alimenta corpo e alma.
Cada um, à sua maneira, pôde sentir os efeitos transformadores dessa
experiência – transformações que extrapolam o âmbito individual e entram
no coletivo, social. Veremos um pouco disso a seguir, começando com a
fala de Nilson Vieira Oliveira, um dos veteranos do programa.
Nilson, filho de pai mineiro e mãe cearense, nasceu em 1967 no interior
do Paraná, onde foi boia-fria, sorveteiro e seminarista. Estudou História
e, em Curitiba, iniciou sua graduação em Economia.
Convidado para integrar a equipe do Instituto Fernand Braudel em
novembro de 1991, passou a ser coordenador-geral do Instituto, onde
permaneceu por duas décadas, até o ano 2012. Nesse período, concluiu
sua graduação e depois seu mestrado em Políticas Públicas pela Fundação
Getulio Vargas (FGV-SP). Durante sua trajetória no Instituto, desempenha-
va outras funções, como pesquisador e analista em inclusão econômica,
segurança pública e educação. Foi com esses programas de pesquisa que
acompanhou os Círculos de Leitura, desde seu início, em escolas públicas
ameaçadas pela violência urbana em bairros periféricos de Diadema e
São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.
167
escolas públicas das periferias de grandes cidades ou de ci-
dades esquecidas pelo desenvolvimento econômico, cidades
do interior do país, representa uma dessas luminosas jane-
las de oportunidade. Através da leitura e reflexão em grupo
de obras de autores clássicos, esses jovens, depois levados a
exercer protagonismo junto a outros como multiplicadores,
fazem transbordar conhecimento, solidariedade, civilidade
e espírito de liderança.
São beneficiados, assim, esses mesmos jovens e suas famí-
lias e comunidades. Mas muito mais beneficiada é a sociedade
humana, porque deixa de perder valores pessoais tão caros,
raros e necessários para um mundo mais digno e culto.
168
sentirem-se partícipes em todas as ações da escola e, sobre-
tudo, construtores do seu projeto de vida.
Como Superintendente Escolar cujo foco de trabalho é o
acompanhamento aos indicadores de aprendizagem e per-
manência dos alunos na escola, posso testemunhar o cresci-
mento perceptível dos estudantes nos debates, nas reflexões
e nos diálogos acerca das leituras realizadas, o que contribui
de forma determinante para que o educando desenvolva va-
lores fundamentais ao seu crescimento como ser humano.
A metodologia e as estratégias dos Círculos contribuem
para o rompimento de antigos paradigmas no qual o aluno
era concebido como mero receptor de informação, passando
a atuar de forma autônoma na construção do conhecimen-
to. Esperamos que as ações do programa Círculos de Leitura
sejam cada vez mais fortalecidas e sistematizadas pela nossa
rede educacional.
Diretora Sandra (na frente), à esquerda prof. parceiro Kleber com multiplicadores,
na EEEP Otília Correia Saraiva.
169
entusiasmo dos jovens envolvidos, que desenvolvem, além
de desenvoltura e senso crítico, resultados diferenciados no
processo de aprendizagem – fator visivelmente comprovado
nos resultados internos e externos, inclusive com um índice
espetacular de aprovações em vestibulares e bons desempe-
nhos no Enem.
Dessa forma, é desejo de quem já usufrui das atividades
e acompanhamento do programa que ele seja prioridade de
adesão por instituições que desejem colaborar com a quali-
dade da educação.
170
cação viva que parte do encantamento, do respeito às múlti-
plas ideias, do saber-se humano, integrado, que vai além dos
conteúdos prefixados no currículo escolar, porque trabalha
aspectos socioemocionais importantes para nosso desen-
volvimento integral; por isso, os momentos de vivência são
únicos, possibilitam um encontro com nós mesmos, e esta
riqueza é imensurável.
Palavras escapam, são insuficientes para descrever os fru-
tos que o programa Círculos de Leitura permite. O segredo
talvez esteja no encontro do Pequeno Príncipe com a Rapo-
sa, na descoberta de uma “Arte de ser feliz” cotidiana e nas
outras tantas histórias de infinitas redescobertas íntimas. As-
sim, chega-se à conclusão de que pouco importa o solo, pois
as boas sementes semeadas com amor sempre frutificarão
no coração daqueles que compartilham boas histórias.
171
fazem rir, chorar, conhecer lugares que jamais poderíamos
nos imaginar estar, conhecer pessoas, entender alguns pen-
samentos e nos transformar em pessoas melhores.
Em 2013, fui convidada pela gestão da EEE Manoel Mano,
em Crateús, onde eu trabalhava, para assumir a coordena-
ção dos Círculos de Leitura. Só pelo título do programa já me
interessei. Não sabia eu que era apenas o início das muitas
surpresas e descobertas que iriam ocorrer na minha prática
docente e na minha vida. Participei da formação que ocorreu
em dezembro do mesmo ano em Maracanaú (Fortaleza-CE).
Foi uma experiência única e indescritível: saí de lá com a cer-
teza de que estava no lugar certo e fazendo a coisa certa.
A partir daquele momento, teria a oportunidade de ajudar
aos meus alunos, jovens que muitas vezes precisam de opor-
tunidade e de programas como esse que transformam, edi-
ficam e mudam o modo de pensar e agir das pessoas que
vivenciam atividades realizadas como no programa Círculos
de Leitura.
Em 2015, mudei para Quixeramobim e passei a lecionar
na EEEP Doutor José Alves da Silveira. Chegando lá, fui con-
vidada a assumir como professora parceira dos Círculos de
Leitura.
Já são 6 anos de muito aprendizado vivido e compartilha-
do, de perceber mudanças nos alunos que participam, como
melhoria na oralidade, escrita, raciocínio, concentração, in-
terpretação de texto, timidez, liderança, confiança, autoco-
nhecimento e, acima de tudo, assim como Fernão Capelo
Gaivota (um dos personagens dos livros trabalhados), que
acreditam nos seus sonhos e correm atrás para conseguir
o que desejam. Agradeço sempre a Deus, aos responsáveis
pelo programa (Catalina Pagés, Cidinha Lamas e Norman
Gall), à gestão das duas escolas e, principalmente, aos meus
alunos, que realizam comigo a missão de crescermos juntos
e procurarmos sermos melhores todos os dias.
O programa Círculos de Leitura proporciona aos estudan-
tes, em um único “pacote”, a melhoria no aprendizado, além
de proporcionar ao leitor um conhecimento amplo e diversi-
ficado sobre diversos assuntos.
Quem lê muito conversa sobre qualquer coisa e conse-
gue formar opiniões bem fundamentadas. Esse programa é
um presente em minha vida. Como afirma Saint-Exupéry, “Só
se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.
Essas frases nos ensinam a ver além das aparências, a ten-
tar entender as pessoas, as suas atitudes, as situações, e não
172
julgar apenas pelo que é visível. O que é verdadeiro não se
pode ver, apenas sentir! Isso representa o programa Círculos
de Leitura em sua essência: não pode ser compreendido até
que seja sentido; deixe marcas em sua alma, assim como dei-
xou na minha. Como diz o poeta Manoel de Barros:
173
dos Círculos de Leitura e libertar-se do medo, da inseguran-
ça, mergulhar no mundo maravilhoso da leitura e poder en-
contrar-se no meio em que estão inseridos e se reconhecer
participantes de tudo que está à sua volta.
Os nossos jovens, ao participarem dos Círculos de Leitura,
não são mais os mesmos: algo acontece, pois mudam de pos-
tura, tornam-se mais participativos, expressivos, aumentando
assim a capacidade de refletir sobre o mundo e sua própria vida.
A EEEP Monsenhor teve a oportunidade ímpar de ser agra-
ciada com esse programa. Em 2012, foi escola-piloto e até os
dias atuais abraçamos e defendemos a sua proposta pelos
resultados obtidos, que não se referem apenas ao desenvolvi-
mento do hábito de ler, mas porque proporcionam algo mais
profundo; as palavras e as expressões seriam transformação,
mudança, encontro consigo e com o outro.
Sem dúvida, não poderíamos deixar de mencionar os re-
sultados de aprendizagem dos jovens. Com os Círculos de
Leitura, nossos jovens leem melhor e produzem textos mais
coerentes e coesos.
O programa Círculos de Leitura se tornou parte de todos
nós da EEEP Monsenhor Odorico de Andrade.
174
No início, muitos alunos resistiam ao fato de se expressa-
rem na frente dos colegas, por timidez ou por não gostarem
de ler e refletir em grupo. Durante algum tempo, a resistên-
cia da maioria dos educandos se manteve, enquanto outros
começavam a descobrir e se encantar com os Círculos e com
a oportunidade de conhecer novas experiências.
Hoje, os alunos relatam que gostam muito dos Círculos
de Leitura, pois conseguem expor seus problemas, opiniões,
conhecer o outro através das ideias apresentadas dentro dos
temas discutidos. Os momentos de leitura acontecem em
pequenos grupos e por meio de multiplicadores responsá-
veis por repassar algo ainda não conhecido pelo todo.
175
turmas de 1º ano. Em 2016, foi expandido para as turmas de
2º ano e, em 2017, para as turmas de 3º ano. Por conta do
estágio supervisionado e da redução da carga horária no se-
gundo semestre do 3º ano, o projeto torna-se inviável.
Os Círculos de Leitura foram inseridos e agregados na
grade curricular das turmas utilizando o horário para pro-
jeto interdisciplinar, semanalmente, o que permite que to-
dos os alunos participem.
As obras que são trabalhadas no projeto abordam va-
lores fundamentais nas habilidades socioemocionais e,
consequentemente, contribuem na formação humana e
profissional dos nossos jovens. Todo material é fornecido
pela Instituto Braudel.
Desde o princípio, houve uma excelente aceitação por
parte dos alunos e professores; os multiplicadores vetera-
nos são responsáveis pela formação dos novatos. Alguns
de nossos multiplicadores tiveram a oportunidade de
colaborar com a formação de outros jovens em diversos
municípios da Região Norte. É uma experiência gratifican-
te e de muito crescimento para eles.
Podemos dizer que o programa trouxe muitos im-
pactos positivos. Ele vai muito além do que incentivar
o gosto pela leitura: a ideia é levar os alunos ao auto-
conhecimento e ao conhecimento do mundo em que
vivem, fortalecendo, assim, o protagonismo juvenil e
possibilitando ao aluno reinventar sua própria vida atra-
vés do mundo da leitura.
177
consciência social, a capacidade de resolver conflitos etc., os
jovens já estão preparados para trabalhar esses temas com
os colegas de sala, coordenando os seus próprios grupos de
leitura. Assim, o compartilhamento de ideias e a liderança
dos jovens realmente se fazem presentes nesse trabalho. Por
fim, me sinto muito grata de estar participando de mais essa
etapa dos Círculos, e que alcancemos novos voos!
178
Já no primeiro encontro achei legal, pois se tratava de
ler e interpretar contos e clássicos da literatura universal,
refletir sobre um tema e defender uma opinião. Uma di-
nâmica gostosa, em que a conclusão do tema sempre nos
deixa um aprendizado a ser praticado em nosso dia a dia.
Me senti muito bem acolhido.
No ano seguinte, em 2002, com o início dos grupos dos
Círculos em novo colégio, o Cefam, no centro de Diadema,
passei a ser agente multiplicador no projeto, o que aumen-
tou a minha autoestima e me fez acreditar que um futuro
brilhante estaria por vir.
No ano de 2003, atuando como auxiliar de projetos,
lembro-me com orgulho de quando fui pessoalmente
apresentar o projeto ao Instituto Unibanco. A alegria de fa-
lar de um projeto que realmente eu acreditava ser benéfi-
co para todas as idades! No ano 2004, tornei-me educador
social, ensinando o que havia aprendido e descobri que o
mundo do saber é infinito e o quanto a literatura nos ajuda
a crescer.
O maior orgulho que carrego em minha bagagem foi
poder montar um grupo, já como educador, no colégio
Conforja, que foi onde tudo começou, desta vez com pes-
soas da terceira idade. E foi para mim uma honra poder
expor o projeto no dia da inauguração da biblioteca, ten-
do ainda mais emoções ao ser recebido pela minha antiga
professora Marli, que agora era diretora e que, cheia de or-
gulho, recebeu o projeto e a mim de portas abertas.
Hoje, 14 anos depois, posso dizer que o meu reencontro
com o projeto é uma realização pessoal. Poder voltar para
todas aquelas histórias, que também são minhas, e sentir
florescer novamente sentimentos e recordações de temas,
diálogos e dilemas e poder usar todo esse conteúdo como
auxílio em decisões e no próprio cotidiano para acreditar
que este é o caminho mais correto é prazeroso a se seguir.
Círculos de Leitura: meu passado, meu presente e o meu
futuro.
179
Uma das propostas ímpares para o desenvolvimento cog-
nitivo e precursor do estímulo da leitura foi a introdução do
programa Círculos de Leitura na escola. Durante minha vi-
vência como participante e, logo depois, como multiplicado-
ra dos Círculos de Leitura, obtive aprendizagens fundamen-
tais e que me acompanharão para sempre.
Os Círculos de Leitura possibilitam de forma prazerosa o
gosto pela leitura. Já como ser humano, agucei minha criti-
cidade, me tornei mais justa e consciente de princípios que
são fundamentais para a vivência em comunidade ou para o
trabalho em equipe. A participação no programa me ajudou
a superar a timidez, passei a interagir e expor minhas ideias.
Nos Círculos o aluno deixa de ser coadjuvante e assume pa-
pel de protagonista.
Desde criança fui fascinada pela leitura, preferia livros a
brinquedos ou roupas. e meus pais nunca precisaram me
forçar a ler. Mas desde pequena tive uma admiradora que
sempre me acompanhou em todas as histórias que lia: mi-
nha mãe. Qualquer livro que eu lia, ia correndo atrás dela,
que ficava muito emocionada me vendo recontar a história
com minhas próprias palavras.
Hoje, quando lembro dela tão feliz ao me ver contar o
resumo do livro, entendo perfeitamente o motivo: ela tinha
uma grande dificuldade em interpretar textos. Então come-
cei a ajudá-la com as técnicas que aprendia nos Círculos de
Leitura. E hoje ela lê sem minha ajuda. E quando lemos o
mesmo livro, há uma diversidade de temas e reflexões. As-
sim como diz Pedro Bom Jesus: “A leitura é a chave para se ter
um universo de ideias e uma tempestade de palavras”.
180
Multiplicadores da EEEP Luiza de Teodoro Vieira. Na frente, o diretor Gilmar; à
direita, os veteranos Weberty e Alynne Ferreira.
181
poder transformador desses encontros de leitura. Foi nes-
se ano que me tornei multiplicadora. Eu possuía naqueles
momentos uma responsabilidade infinita de escutar com
atenção cada pequena Gaivota. Eu vi, semana após sema-
na, jovens em situações difíceis não só escolares, mas que
carregam nas raízes sofrimentos e injustas, se transforma-
rem em estudantes curiosos, compreensivos, empáticos e
sobretudo leitores não só de obras clássicas, mas da vida.
Também acompanhei o desenvolver de pensamentos crí-
ticos que surpreendiam nos comentários e aumentava a
crescente linha imaginária que nos levava para um lugar de
sonhos possíveis e realizáveis.
No final do Ensino Médio, foi difícil nos despedirmos do
programa, mas é infinitamente mais fácil encarar a vida após
ter participado.
Hoje, faço parte dos jovens que resolveram inserir nos
seus objetivos trabalhar com a perspectiva de mobilizar e
motivar as pessoas a realizarem seus sonhos. Talvez eu traba-
lhe com educação, talvez pinte uma parede da minha futura
casa ou trabalhe com gaivotas a sobrevoar. Talvez eu viva um
amor igual ao de Nástenka e o Sonhador de Dostoiévski. Tal-
vez eu precise da coragem de Homero. Talvez as histórias do
viajante sejam um dia as minhas.
Catalina Pagés visita Círculos de Leitura na EEEP Dr. José Alves da Silveira (2016).
182
Me chamo Lívia Marques, sou ex-aluna da EEEP Júlio Fran-
ça, onde fiz o Ensino Médio integrado com o curso técnico
em Contabilidade. Atualmente curso uma licenciatura em
Pedagogia, pelo interesse dos métodos de estudo e ensino,
pois acredito que a educação tem um papel fundamental de
formação na sociedade.
Iniciei no projeto no ano 2014, passei um ano como gaivo-
ta, conhecendo o projeto, obras e compartilhando vivências.
No ano seguinte, em 2015, um voo alcançado, fui convidada
para ser multiplicadora desse maravilhoso programa: iria re-
passar meus conhecimentos para novos alunos. Experiência
maravilhosa! No mesmo ano, participei de uma formação
com veteranos do programa, onde o amor aumentou mais,
vendo que cada pessoa tem algo a dizer sobre determinada
obra, conceitos e gostos diferentes. Desde então continuei
na caminhada.
Em agosto de 2016, fiz minha primeira formação exter-
na: tudo novo, pessoas novas, perguntas rodeavam na ca-
beça – “Quem são? De onde são? Que escola será?”. E mais
uma nova experiência e voo adquiridos: como são queridos,
como são amáveis, como é bom conhecer pessoas que gos-
tam de conhecer, de se apaixonar pelos personagens, de ver
o interior de cada um, de sentir e de amar.
Hoje, Ensino Médio e Técnico concluídos, ainda vivo o
programa. Sou veterana! Participei de várias formações
externas, nas quais o sentimento é indescritível, o amor, a
atenção, o carinho, as vivências, os rostos felizes, o sorriso,
a imaginação para saber o que se passa no final da obra, as
perguntas, os laços que criamos, as histórias contadas rela-
cionadas à obra, um tia pra cá e pra lá, é tudo tão simples, tão
lindo de se ver, os abraços, as risadas, os choros, as despedi-
das. Isso tudo se transforma no prazer de missão cumprida,
o mesmo prazer experimentado por Fernão Capelo Gaivota,
na primeira obra dos Círculos.
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Lívia Marques Araújo.
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das formações, se encantam com o programa, seja pelos li-
vros, seja pela filosofia que eles trazem, seja pela metodolo-
gia que inspira os novos multiplicadores a, assim como eu,
desejarem compartilhar o que descobrem e aprendem nos
grupos. Para mim, a satisfação de formar novos multiplica-
dores e fazer parte do processo de expansão do programa é
imensa. E percebo que trabalhar como formador educacio-
nal do programa tem ajudado também na minha formação
como futuro pedagogo e educador.
Posso dizer, com toda certeza, que esse programa mudou
a minha vida.
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Com o passar do tempo e o entendimento do método
e a compreensão das obras, cresceu em mim a vontade de
participar ainda mais. Foi quando surgiu a oportunidade de
ser multiplicador. No começo foi complicado para mim, mas
com a ajuda dos outros multiplicadores do programa rece-
bi o apoio necessário e fui aprendendo a como cativar cada
membro do grupo que estava comigo.
Para mim, a principal mudança que o programa Círculos
de Leitura trouxe foi essa amizade verdadeira que encontra-
mos nos grupos, porque o encontro dos Círculos é um es-
paço em que as pessoas se entregam ao momento e vivem
aquele sentimento realmente; as amizades construídas são
com base na compreensão.
Os valores aprendidos são coisas que às vezes esque-
cemos na correria do dia a dia, e todas as obras trabalham
esses valores com maestria, sempre nos mostrando que o
amor e o companheirismo são essenciais e nos fazendo ver
a importância do foco, da resiliência e da dedicação para al-
cançar os objetivos.
E, além de tudo isso, ainda nos desperta uma paixão pela
literatura clássica, pelas poesias e, principalmente, por com-
partilhar nossos conhecimentos e experiências para ajudar
o outro.
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Benjamin chamava de pérolas da humanidade, patrimônio
que nos é legado, sem fronteiras de tempo ou espaço, de
centro ou periferia. Podemos nos reconhecer nos medos
e esperanças dos personagens, dilemas e escolhas. Pode-
mos aprender com seus erros e acertos. Com a história de
Romeu e Julieta, os jovens refletem juntos sobre o que po-
deria ter sido feito para evitar a tragédia – menos ódio na
cidade e mais espaço para o amor, por exemplo. E a cada
leitura, por conta da natureza dessas obras, novas camadas
e reflexões surgem. Lembro-me de Matias, um participante
do sétimo ano, de Vila Esperança, uma comunidade na pe-
riferia de São Bernardo, que me disse uma vez sobre como
os livros que tinha ganhado nos Círculos – até aquele mo-
mento, cinco – eram uma biblioteca imensa, porque “den-
tro de cada um existem muitos, muitos”. Nunca alguém
realmente termina de ler um clássico, diria também em ou-
tras palavras o escritor Ítalo Calvino.
Quando alguém me pergunta se encontramos resistên-
cia dos jovens ao serem introduzidos a essas obras, sempre
me lembro de que as maiores resistências vieram de adul-
tos. Uma vez, um visitante de uma fundação do setor pri-
vado perguntou a um grupo se aquelas leituras não eram
muito difíceis para eles, diferente da linguagem do rap,
“tão mais próxima do seu mundo”. Os próprios jovens tra-
taram de responder, contando a ele a história. “Assim você
pode entender melhor”, disse um participante, no esforço
de defender o direito a um mundo que abarque também
Homero, Machado, Guimarães, Adélia, Dostoiévski e tantos
outros mestres e mestras. Em vez de subestimar a capaci-
dade dos jovens de se identificarem e se apropriarem da
grandeza dessas obras, os Círculos apostam justamente na
força desse encontro.
Outro elemento fundante dos Círculos é o método do
grupo, onde o encontro se dá. A leitura em voz alta, com-
partilhada, vai permitindo que as palavras ganhem corpo e
ritmo, abrindo espaço interno em cada um, para que uma
conversa de verdade aconteça. E cada um tem seu jeito de
se expressar, um gaguejo aqui, uma pausa ali; uns mais tí-
midos, outros menos.
Todo jovem multiplicador é formado para promover
um ambiente de respeito e abertura. Assim, os que sentem
vergonha de falar em voz alta podem sentir que ali é um
espaço seguro e, no seu tempo, vão encontrando voz e pa-
lavra. Igualmente aprendem aqueles que chegam agitados,
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cheios de certezas e preconceitos, sem costume de prestar
atenção aos outros. No grupo, aprendemos a desenvolver
um novo olhar diante de nossas ideias pré-concebidas. A
leitura e a discussão no pequeno grupo se torna, graças
à formação do jovem multiplicador, uma travessia, como
Heidegger falaria, de “companheiros no oficio de pensar”.
Por isso, é um aprendizado de escuta, reflexão, empatia e
colaboração. Tudo isso mediado por um profundo amor à
beleza e ao mistério da arte.
Certa vez outro visitante, o ex-presidente da Espanha
Felipe González, se encontrou com um grupo de jovens
do programa e lhes perguntou se não tinham medo de
ficarem frágeis, “sensíveis demais para esse mundo”. Os
próprios jovens explicaram que a experiência do grupo, e
tudo o que aquelas obras nos ensinam, na verdade os for-
taleciam. González não duvidou, e quase confessou ter ele
mesmo, como líder, precisado se apoiar nessa sabedoria
maior que nos transcende e ao mesmo tempo é nossa.
Quando penso em cada jovem tocado pelos Círculos de
Leitura, ao longo desses 18 anos, e nos caminhos de cada
um, penso nessa sensibilidade que fortalece. É dela que
falava o jovem herói Aliosha Karamazov, de Dostoiévski,
quando antes de partir explica a um grupo de crianças que
uma boa lembrança fica para sempre guardada em nós,
mesmo quando dela, já adultos, nos esquecemos. Ela fica
à nossa espera, até que possa vir ao nosso auxílio mais tar-
de, quando a vida nos trouxer tribulações, medos e surpre-
sas. Protetora, assim como Palas Atenas protegeu Ulisses
e Telêmaco em suas travessias. Que nos próximos 18 anos
mais crianças e jovens brasileiros possam ter essa boa e
guardiã lembrança de um Círculo de Leitura, para sempre
os acompanhando no caminho.
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Agradecimentos
• Aegea*
• Avianca*
• Banco Bradesco*
• BASF (Academia de Ciência)
• BNP Paribas*
• Fundação Itaú Social*
• Fundação Lemann
• Fundação Odebrecht
• General Electric
• Grupo Edson Queiroz
• Instituto de Desenvolvimento do Baixo Sul – IDES
• Instituto Unibanco
• Instituto Votorantim
• Natura
• Poliedro - São José dos Campos
• TNT Brasil
• Unilever
* Atuais patrocinadores
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Referências
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Este livro foi composto na tipologia Myriad Pro e impresso pela Margraf em
papel couché 150 g/m2 em agosto de 2018.