Você está na página 1de 194

Círculos de Leitura

A arte do encontro

Organização
Catalina Pagés
Maria Aparecida Lamas

São Paulo, 2018


Ficha técnica
Coordenação geral Revisão de texto
Catalina Pagés Pedro Fandi

Coordenação pedagógica Direção de arte e projeto gráfico


Maria Aparecida Lamas Givanilson L. Góes

Editor-chefe Capa
Norman Gall Eduardo Chazan Breitbarg

Organização Fotografia
Catalina Pagés e Maria Aparecida Lamas Carlos Diego Carvalho Silva, Emilly Monte, Fabio Knoll,
Fábio Tavares de Barros, Márcio Jotta, Rita Dadario e
Coordenação editorial Suely Guimarães. Imagens Adobe Stock (págs. 85, 95,
ReCriar editorial 111, 118, 129, 131, 138, 145 e 156).

Edição de texto Ilustração


Cibely Aguiar de Souza Sala Daniel Dias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Círculos de leitura : a arte do encontro / organização


Catalina Pagés, Maria Aparecida Lamas. -- São Paulo : Recriar
Editorial, 2018.

ISBN 978-85-85055-00-4

1. Incentivo à leitura 2. Inclusão social 3. Leitores 4. Leitura


5. Literatura - Estudo e ensino I. Pagés, Catalina. II. Lamas,
Maria Aparecida.

18-18529 CDD-807

Índices para catálogo sistemático:

1. Leitura literária : Ensino 807


2. Literatura : Estudo e ensino 807

Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014

Patrocínio: Apoio:

Realização:
Sumário

Prefácio ......................................................................................................................................................................................... 6
Introdução ................................................................................................................................................................................ 11
Convite à Odisseia ............................................................................................................................................................ 13
1. Bases metodológicas e filosóficas de nosso trabalho ............................................................................................ 17
1.1 As bases da metodologia ........................................................................................................................................ 20
1.2 Aspectos pedagógicos da metodologia ............................................................................................................ 27
1.3 Arte, inclusão social e pertencimento ................................................................................................................. 31
2. Nosso percurso ................................................................................................................................................................... 35
2.1 Círculos de Leitura – Relato de uma experiência ............................................................................................. 35
2.2 O programa Círculos de Leitura em São Paulo ................................................................................................. 38
Círculos de Leitura no interior de São Paulo ..................................................................................................... 42
Círculos de Leitura nas Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) do Centro Paula Souza ............................. 46
2.3 O programa Círculos de Leitura no Ceará .......................................................................................................... 50
As Gaivotas do Ceará ................................................................................................................................................. 50
O êxito do programa Círculos de Leitura no Ceará ......................................................................................... 69
Os jovens do Ceará .................................................................................................................................................... 74
2.4 O programa Círculos de Leitura cruza o Atlântico e chega a Roma .......................................................... 85
3. A conversa dos jovens com os clássicos ..................................................................................................................... 91
3.1 Cartas das obras do repertório .............................................................................................................................. 93
Fernão Capelo Gaivota .............................................................................................................................................. 93
A comédia humana .................................................................................................................................................. 103
O Pequeno Príncipe ................................................................................................................................................... 113
Kouros: tempo, caráter e destino .........................................................................................................................123
Noites brancas .............................................................................................................................................................133
Dom Casmurro ............................................................................................................................................................141
3.2 Cartas temáticas .......................................................................................................................................................149
Aretê .............................................................................................................................................................................149
Realização ....................................................................................................................................................................152
Medo .............................................................................................................................................................................159
4. A arte do encontro: os efeitos, as transformações ................................................................................................167
Agradecimentos ................................................................................................................................................................... 190
Referências ..............................................................................................................................................................................191
Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit.
Cambralenta/Adobe Stock
Prefácio

D
e repente, Aline Jacó joga um verso de Ferreira Gullar: “Uma par-
te de mim/ é todo mundo:/ outra parte é ninguém:/ fundo sem
fundo”. Do outro canto da sala, Lindemberg responde na lata:
“Uma parte de mim/ é multidão:/ outra parte estranheza/ e solidão”. O
desafio segue por algumas estrofes. Logo alguém interrompe mudando
o registro para Sophia de Mello Breyner: “Há mulheres que trazem o mar
nos olhos/ Não pela cor/ Mas pela vastidão da alma.”
É noite, estamos na pequena casa encantada da rua (devia ser ruazi-
nha, viela, tão humilde ela é) Tinhorão, ao lado da praça Vilaboim, Higie-
nópolis, São Paulo. Casinha de história de fada, daquelas que parecem
feitas de pão de mel, que Catalina Pagés comprou e transformou na mo-
rada da poesia e da fantasia. Sede informal do programa Círculos de Lei-
tura fundado pelo Instituto Fernand Braudel, o sobradinho é a entrada
secreta para o mundo dos livros, versos, romances, ensaios de filosofia.
Olhando do lado de fora, a casa é uma graça, mas esconde com pudor
o espaço infinito que a arquitetura expandiu, afundando pelo quintalzi-
nho, subindo a escada de madeira ladeada de livros, abrindo-se para o
terraço e o céu iluminado de estrelas.
Na Casinha reúnem-se num círculo de cadeiras e sofás meninas, mo-
ças e rapazes vindos de periferias longínquas, de Quixeramobim, do
Brasil profundo do qual trazem o rosto moreno, os olhos brilhantes, a
energia de quem começa a viver. Vieram para ler a Odisseia, Guerra e
Paz, Sagarana, Grande Sertão, Tom Sawyer, Huckleberry Finn, poemas de
Fernando Silveira

Drummond, de Fernando Pessoa, estudos sobre a evolução das insti-


tuições políticas de Francis Fukuyama, e isso é uma pequena amostra,
talvez nem 10%, do que já leram.
Rubens Ricupero Esses jovens recebem exemplares da obra que vão ler para estudá-las
Diplomata de carreira de em casa; na reunião, cada um lê em voz alta um ou dois parágrafos, in-
1961 a 2004, assumiu, entre terrompidos por perguntas, discussões, comentários. De tempos em
outras funções, a de assessor
internacional do presidente tempos, escrevem sobre o que leram e debateram, respondem a ques-
eleito Tancredo Neves de 1984 tões, analisam os textos.
a 1985. Foi representante Quando tudo começou, 20 anos atrás ou mais, ninguém imaginava
permanente do Brasil junto
aos órgãos da ONU sediados o que iria acontecer. O Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial
em Genebra (1987-1991) tinha completado o primeiro ciclo de sua existência ajudando a socie-
e embaixador nos Estados dade brasileira a tomar consciência do perigo da hiperinflação. O pro-
Unidos (1991-1993). Em 1986
foi agraciado com a Grã- blema havia ficado para trás; o Instituto voltava sua atenção ao estudo
Cruz da Ordem do Infante da periferia de São Paulo e das grandes cidades brasileiras. Ali é que se
D. Henrique de Portugal. É concentravam os desafios da explosão populacional e da urbanização
Presidente Emérito do Instituto
Fernand Braudel. ocorridas no Brasil e na América Latina desde os anos 1950. Fiel à sua

6
vocação de estudar a realidade diretamente, por meios empíricos de
pesquisa local, Norman Gall, o diretor-executivo do Braudel, foi um dos
primeiros, se não o primeiro, estudioso a detectar e a examinar o que
se tornaria lugar-comum mais tarde, até explorado com exagero pela
política: o aparecimento, nas periferias de uma sociedade vibrante, de
modesta classe média em ascensão, empenhada em melhorar o nível de
vida, em adquirir casa própria, aparelhos eletrodomésticos, investir na
educação, própria e na dos filhos.
O impulso de autoaprimoramento batia de frente com o obstáculo
maior: a baixa qualidade da escola pública, sem bibliotecas, com dire-
tores desmotivados e professores ausentes. Havia exceções parciais. Em
uma delas, escola de Ensino Médio de Diadema (SP), então distrito cam-
peão em número de homicídios, a boa vontade da diretora fez nascer
uma ideia em Catalina: reunir as meninas e os rapazes mais interessados
no estudo para organizar um grupo de leitura.
Catalina inspirou-se na sua prática de clínica psicológica, na qual vi-
nha há tempos utilizando textos de O Banquete, de Platão, para estimular
a autoanálise e a reflexão. Com a participação pessoal de Norman, viu-se
que o método permitiria ao Instituto passar da reflexão à ação com vis-
tas a transformar a vida das pessoas que buscavam crescer mediante o
estudo como autodidatas.
De Platão e Homero foram-se ampliando os limites da leitura para a
ficção, a poesia, os estudos de sociologia, economia, política. Aos pou-
cos, os Círculos cresceram em número de participantes, viram-se ado-
tados por outras escolas de diversos bairros da periferia de São Paulo e
de outros estados. A experiência expandia-se constantemente, à medida
que antigos membros dos grupos se convertiam em multiplicadores, em
pessoas capazes de organizar e dirigir novos Círculos.
Houve tentativas de trabalhar com secretarias de Educação de vários
estados brasileiros, a começar por São Paulo, com a intenção de incluir
os Círculos entre as atividades regulares do ensino. Nem sempre foi pos-
sível avançar no setor governamental em razão dos obstáculos usuais de
burocratização, rigidez, interesses corporativos. O êxito principal ocor-
reu no estado do Ceará, possivelmente o único que vem demonstrando
na prática a capacidade de dar ênfase à educação na ação administrati-
va. Como balanço desses muitos anos de trabalho, contam-se hoje em
alguns milhares os jovens que passaram pelos grupos de leitura, com
maior ou menor tempo de permanência.
Como se vê por essa breve história, os Círculos de Leitura brotaram
da própria realidade, não de um conceito abstrato e teórico qualquer.
Sua inspiração original provém do reconhecimento da importância de
desenvolver a mente e o caráter dos jovens por meio do contato direto
com os grandes livros da história da humanidade. Em lugar de currículos
compostos de comentários de segunda ou terceira mão, estimula-se a

7
pessoa a ir direto à fonte, a ler Tolstói, Dostoiévski, Charles Dickens, Pla-
tão, Homero, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector.
Esse método foi utilizado nos anos 1940, na Universidade de Chicago,
sob o comando de Robert Maynard Hutchins e deu origem à coleção
The Great Books. Um dos participantes da experiência, Mortimer Adler,
explicou na obra How to read a book (Como ler livros, na versão em por-
tuguês) que um grande livro deve preencher três critérios: ter valor para
o homem contemporâneo; ser inesgotável, podendo ser lido e relido in-
contáveis vezes; encarnar as grandes ideias e temas que ocuparam as
maiores inteligências dos últimos 25 séculos.
Os Círculos tomaram por base algumas dessas inspirações, mas foram
muito mais longe na iniciativa de ir às periferias, ao interior dos estados,
em busca dos jovens. Os membros dos grupos de leitura são estimu-
lados a dialogar com os grandes livros como ponto de partida de uma
transformação completa de suas existências, como plataforma para um
crescimento contínuo: intelectual, cultural, criativo e, acima de tudo, de
construção do caráter, de desenvolvimento de uma personalidade rica e
harmoniosa.
Nesses anos, os exemplos de transformação individual são impressio-
nantes, em termos de moças e rapazes que conseguiram ingressar nas
melhores universidades públicas, obter bolsas de estudo, completar cur-
sos considerados difíceis, desabrochar talentos de poetas e de escritores,
estudar no exterior, alcançar postos importantes em empresas competi-
tivas. No entanto, mais que as provas de sucesso exterior, o que conta de
verdade é a riqueza humana dessas vidas renovadas e iluminadas pela
poesia e pela arte.
Para sentir o que estou dizendo, é preciso tomar o caminho da Casinha
da rua Tinhorão, bater à porta, ser acolhido pelas vozes que recitam poe-
mas, pelos acordes do violão, sentar-se à mesa para partilhar o lanche do
fim do dia, escutar o que dizem as moças e os rapazes sobre os livros que
descobrem. E perceber que, de tudo o que eles, elas e nós aprendemos,
o principal, o centro de tudo, se encontra no poema de John Donne, que
os frequentadores da Casinha repetem de cor:

Nenhum homem é uma ilha;


Nenhum deles está só.
A alegria de cada homem me contagia;
A dor que cada um sente me corrói.
[...]
Sou parte do gênero humano.

8
H
á muito acompanho os Círculos de Leitura, esta incrível inicia-
tiva criada pelo Instituto Braudel e liderada por Catalina Pagés
há aproximadamente 18 anos. Pude coordenar como volun-
tária um dos Círculos e guardo boas lembranças desses jovens, então
com idades variando entre 13 e 17 anos, lendo textos como Grande
Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ou O Banquete, de Platão.
Juntos aprendemos muito: o contato com o que de melhor a litera-
tura nacional e internacional produziram expandiu os horizontes dos
adolescentes de forma impressionante, especialmente pela metodolo-
gia adotada, em que cada um lia um trecho do texto e, depois, bus-
cávamos, coletivamente, uma compreensão mais profunda do que ali
estava contido e de eventuais lições para a condição humana, espe-
cialmente, para nossa época.
A possibilidade de entender os impasses éticos que personagens
vivem em cenários ficcionais, eventualmente distintos dos nossos, ou
a maneira como lidavam com situações fora de seu controle levavam
o grupo a desenvolver sua capacidade de analisar, de trabalhar cola-
borativamente na busca de saídas para impasses e fugir de soluções
simplistas e desumanizadoras.
Mas o trabalho dos Círculos não se limitava à leitura, à produção
textual a partir das discussões de livros; fazia parte da rotina dos par-
ticipantes uma agenda cultural voltada a ampliar o repertório desses
adolescentes que, normalmente, não teriam essas oportunidades em
sua vida. Mais de uma vez, acompanhei-os em idas para assistir a or-
questras e óperas.
Os Círculos de Leitura têm mais impacto quando o programa se
soma a políticas educacionais, ou seja, quando conseguem atuar den-
tro de redes de escolas públicas, de forma consistente. Naturalmen-
te, a descontinuidade de administrações traz desafios a um trabalho
como esse, que demanda tempo e solidez para trazer resultados. Mes-
mo assim, o caso do Ceará se destacou como o mais promissor e pro-
dutivo, onde os Círculos floresceram e deram muitos frutos.
Acompanho até hoje muitos dos jovens que passaram pelos Círcu-
los em São Paulo. Boa parte deles ingressou em boas universidades, a
despeito da origem humilde e da limitada escolaridade de seus pais.
Esses jovens atuam em diferentes carreiras, mantendo uma atuação
cidadã em prol de uma educação de qualidade para todos e de um
Cláudia Costin
Foi Secretária de Educação desenvolvimento mais inclusivo.
da cidade do Rio de Janeiro Acredito que a política educacional tem muito a aprender com o
de 2009 a 2014. Atuou como trabalho que é feito nos Círculos de Leitura. Em tempos incertos, em
diretora sênior para Educação
no Banco Mundial, de 2014 a que as competências a serem desenvolvidas nos jovens são outras,
2016. Atualmente é diretora do dadas as características de um mundo em contínua mudança – com
Centro de Excelência e Inovação a extinção de postos de trabalho baseados em tarefas rotineiras e a
em Políticas Educacionais –
CEIPE/ FGV EBAPE. criação de novos, que demandam maior capacidade de concepção,

9
colaboração e criatividade –, o trabalho dos Círculos mostra que é
possível construir aprendizagens mais profundas, que levem os jovens
a aprender ao longo da vida e a navegar com sucesso na chamada 4ª
Revolução Industrial.
Se Secretarias de Educação puderem se inspirar nesse exemplo e
introduzir abordagens assemelhadas, os jovens terão muito a ganhar,
especialmente aqueles que vêm de meios mais vulneráveis. Afinal, o
conhecimento e o acesso ao que de mais belo e instigante a Huma-
nidade produziu não apenas ensinam a pensar e a ser um aprendiz
permanente, constituem-se em um direito de cada cidadão.
Longa vida aos Círculos de Leitura!

Instituto Fernand Braudel

Cláudia Costin (no centro) em encontro com antigos multiplicadores na casa sede dos Círculos de Leitura.
10
Introdução

É necessário toda a aldeia para educar uma criança.


Provérbio africano.

I
dealizado por Catalina Pagés, filósofa e psicanalista, com especiali-
zação em dinâmicas de grupo, o programa Círculos de Leitura, ini-
ciativa do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, tem sido
desenvolvido com crianças e jovens de comunidades e escolas públi-
cas em vários estados do Brasil: São Paulo, Ceará, Minas Gerais, Pernam-
buco e Bahia.
São Paulo foi o estado onde nasceu o programa, no ano 2000, com
um pequeno grupo de alunos na Escola Municipal Conforja, em Dia-
dema, visando contribuir para a diminuição da violência escolar. Esse
primeiro grupo nasceu como aqueles bons encontros que acontecem
de forma inesperada e vão abrindo caminhos.
Em 2002, esse projeto piloto já havia beneficiado um total de 400
alunos em três escolas estaduais de Diadema e em centros comunitá-
rios de São Bernardo do Campo.
Em 2003, por meio de uma parceria com a Diretoria Regional de
Ensino de São Bernardo do Campo, os Círculos de Leitura ampliaram
sua atuação para mais seis escolas estaduais, localizadas em áreas de
periferia com altos índices de violência. Desde então, o programa vem
ampliando sua parceria com mais escolas da rede pública.
Em 2006, com o apoio de vários parceiros, 29 escolas já eram benefi-
ciadas, na capital paulista e em São Bernardo do Campo. Daí em diante,
o programa foi crescendo e alcançando cada vez mais escolas. Uma das
preocupações sempre foi chegar até a periferia, atender os alunos que
mais precisam; com esse intuito, o programa já foi implementado em
regiões de São Paulo como Caieiras, Franco da Rocha, Vila Sônia e São
Miguel Paulista.
Continuamente aprimorado, em uma fecunda parceria com pro-
fessores, diretores, secretarias municipais e estaduais de Educação, o
programa Círculos de Leitura se apresenta como um parceiro da escola
na tarefa de formação integral dos jovens, desenvolvendo, por meio
da leitura e do diálogo, valores como ética, empatia, respeito mútuo,
responsabilidade social, ao mesmo tempo que promove e estimula o
protagonismo juvenil.
É importante destacar que esse trabalho em prol do desenvolvimen-
to integral tem sido viabilizado pelo apoio de inúmeras empresas que
compartilham da visão de que a formação das crianças e jovens é o bem

11
maior de um povo, sendo, portanto, responsabilidade de toda a sociedade.
Ao completar 18 anos, sentimos a necessidade e ficamos muito felizes
em compartilhar com nossos parceiros e amigos um pouco dessa história
que tem sido construída graças a tantos bons encontros.
Para coroar esse aniversário, que traz consigo um profundo simbolismo,
comemoramos outras duas conquistas. Primeiro, a premiação do progra-
ma Círculos de Leitura, em novembro de 2017, na segunda edição do Prê-
mio IPL – Retratos da Leitura, conferido pelo Instituto Pró-Livro, que visa:

Reconhecer, promover, dar visibilidade, mapear e difundir ações exi-


tosas de fomento à leitura e de acesso ao livro, promovidas por orga-
nizações sociais (ONGs), mídia, empresas da cadeia produtiva do livro
e bibliotecas públicas.

A segunda conquista, também em 2017, foi a apresentação dos


Círculos de Leitura além-mar: o programa atravessou o Atlântico e foi
apresentado para centenas de pessoas na Universidade de Roma.
Este livro representa a possiblidade de nos lançarmos nos mares da
imaginação e da memória, para juntos revivermos a grande e venturo-
sa viagem que temos realizado nesses 18 anos de existência.

Instituto Pró-Livro

Catalina Pagés e Maria Aparecida Lamas (no centro) em cerimônia de entrega do Prêmio IPL – Retratos da Leitura,
oferecido pelo Instituto Pró-Livro (2017).
12
Convite à Odisseia

Os clássicos não necessariamente nos ensinam algo que não


sabíamos; às vezes, descobrimos nele algo que sempre soubéramos,
mas desconhecíamos que ele dissera primeiro. Esta é uma surpresa
que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma
origem, de uma relação, de uma pertinência. Com isso, poderíamos
definir que os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhe-
cer por ouvir dizer, quando são lidos de fato, mais se revelam nobres,
inesperados, inéditos.
Ítalo Calvino.

V
enha fazer parte desta aventura! Os barcos já estão prontos!
Vamos para o mar descobrir o que existe no nosso mundo.
Vamos aprender com o mar a enfrentar a vida.
Mais do que aprender com o mar, vamos aprender com um
grande herói – Ulisses – e com todos aqueles que o cercam, os que
querem ajudar e os que querem atrapalhar. Ele está à nossa espera.
Sem nós, ele não conseguirá voltar para casa!
E Ulisses já está há tanto tempo longe de casa... Precisamos aju-
dá-lo. Sua esposa, a bela Penélope, está esperando-o em casa, e o
filho Telêmaco, que era bebê quando ele saiu, já é um jovem bonito
e forte. Se ele não voltar logo, sua família estará falida! Um bando
de aproveitadores está desrespeitando a sua casa e não podemos
deixar um herói nessa situação. Ele já fez muito por nós. Se você
ainda não conhece a sua história, terá uma grande oportunidade
de descobrir tudo o que ele fez e qual sua influência em nossa vida
até hoje. E você pode se perguntar: Até hoje? Sim! Você descobrirá
como, na viagem que faremos até a Grécia antiga. Não acredita que
podemos voltar ao passado? Eu já fiz esse trajeto e garanto: ele é
seguro. Só voltei para lhe buscar!
Calma! Não vamos usar uma daquelas grandes máquinas do
tempo, que se veem em filmes e que geralmente costumam fa-
lhar. Esses meios realmente ainda não são seguros... Vamos usar um
meio bem mais antigo: um livro.
Não tenha medo dos livros, companheiro. Vamos usar nossos li-
vros não apenas para enfeitar as estantes; vamos viajar com eles!
Você acha que não pode? Não se preocupe, não estará sozinho. Es-
taremos todos no mesmo barco, descobrindo juntos, ao longo do
caminho, um mundo diferente do nosso. Além de ser muito diver-
tido, vamos descobrir que os antigos tinham problemas muito pa-

13
recidos com os nossos e encontraremos, sem dúvida, respostas que
irão nos ajudar.
Ah, que bom que você decidiu aceitar nosso convite! Prepare seu
coração, pois vamos viajar com os Círculos de Leitura. Não tenha
medo; somos guiados por grandes heróis. Um deles é Homero: sua
obra se inspira na natureza humana e nas leis eternas que gover-
nam o mundo. Sua voz tem ressoado através dos tempos, tão bela
e comovente como na primeira vez em que contou os feitos glo-
riosos dos heróis e a onipotência dos deuses. É uma história genial,
cujo fascínio só tem aumentado com o passar do tempo.
Como as pirâmides, que se ergueram entre as criações eter-
nas, e como as grandes cordilheiras, que em um momento preciso
emergiram das águas, a Odisseia tornou-se símbolo da vitória so-
bre o tempo. Por essa razão a tomamos emprestada como símbo-
lo do percurso dos Círculos de Leitura, a história que começamos
a contar agora.

MoreVector/Adobe Stock

14
Catalina Pagés, coordenadora-geral do programa Círculos de Leitura.
1. bases metodológicas e
filosóficas dE nosso trabalho

Ler, ler, ler, viver a vida / que outros sonharam.


Ler, ler, ler, a alma se esquece / das coisas que passaram.
Restam as que ficam, as ficções, /
As flores de uma caneta /
As ondas, as humanas emoções, / O decantar da espuma.
Ler, ler, ler serei leitura / amanhã também eu?
Serei meu criador, minha criatura, / Serei o que passou?
Miguel de Unamuno.

D
esde a Antiguidade o ser humano comunica-se transmitindo
mensagens. Inicialmente, isso ocorreu por meio de desenhos fei-
tos nas paredes das cavernas, símbolos simples e complexos. Mais
tarde, com as letras, passaram-se a formar palavras, frases e textos, que
hoje perpetuam o conhecimento que antes era transmitido oralmente.
A tradição oral tem sua continuidade por meio da literatura. Nos Círcu-
los de Leitura, integramos essas duas fontes, voltamos a um tempo passa-
do e recuperamos a memória coletiva. Nas palavras de Roberto Mesquita:

O princípio da A tradição constantemente retorna à fonte para nutrir seus ramos com
metodologia é muito o vigor original oferecido pelo clássico. Mas preocupa-se em igual pro-
porção com os herdeiros, aceitando que o clássico assuma as cores do
simples: lemos para tempo e da cultura em que novamente se manifestam e se reatuali-
recuperar aquele zam; com isso, vivemos na idade do clássico e ele na nossa (RIBEIRO,
2015, p. 3).
saber que nos deixa
sonhar. Nos Círculos de Leitura, resgata-se a tradição oral. Sentados em círculo,
os participantes leem em voz alta e refletem em grupo sobre as ideias
contidas no texto. Nesse ambiente, as muitas vozes, a sonoridade e a mu-
sicalidade das palavras despertam o saber do corpo, deixando aflorar os
sentimentos – alicerces da mente. Alguns falam mais, outros menos; mas
todos participam do diálogo. O tempo passa sem ser percebido. E nes-
se ambiente de fala e de escuta atenta surge um conhecimento sempre
novo, produto de um fazer coletivo.
A leitura e a reflexão em grupo oferecem um espaço para que os jo-
vens compartilhem experiências e ampliem seu universo de conheci-
mento para agir no mundo. O princípio da metodologia é muito simples:
lemos para recuperar aquele saber que nos deixa sonhar.

17
Assim como na Távola Redonda da história do Rei Arthur, nos Círculos
de Leitura todos são iguais. Todos sentam em círculo porque essa figura
geométrica não apresenta extremidades, é constante em toda a sua ex-
tensão. Não importa a posição social ou o grau de formação/instrução,
mas, sim, como esse participante contribui para que o diálogo em grupo
ocorra de maneira produtiva, divertida e saudável. Cada participante tem
sua peculiaridade, o que propicia ao grupo um apanhado de diferentes
conhecimentos, que são adquiridos na leitura de uma mesma obra.
O repertório dos Círculos de Leitura é composto de obras diversas,
que vão desde contos infantis singelos, como O pintor, a cidade e o
mar, de Monika Feth, a grandes clássicos da literatura brasileira e uni-
versal, como Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Otelo, de William
Shakespeare. Independentemente do título, todos eles, lidos em grupo,
provocam um encontro autêntico entre os jovens, e de cada um consigo
mesmo. Como um multiplicador um dia relatou, nos grupos é possível
ver-se as almas nuas.
Essas grandes obras não foram escritas para um público especiali-
zado, mas para o leitor interessado. Os livros não são difíceis, como se
costuma pensar; são profundos e atemporais, abrangendo um mar de
conhecimentos. Dessa forma, os Círculos de Leitura fornecem aos jovens
uma base sólida para o exercício do protagonismo, pautado nos valores
éticos que essas obras transmitem.

Multiplicador Felipe Freire, da E.E. Reverendo Tércio, apresentando temas da obra


As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain.
18
Norman Gall (ao centro) coordena grupo de leitura da obra As Aventuras de Huckleberry Finn, na casa sede dos Círculos de Leitura (2017).

Norman Gall, diretor executivo do Instituto Fernand Braudel.


19
1.1 As bases da metodologia
A formação de grupos pequenos, interativos e sentados
em círculo

Os grupos formados são pequenos, porque entendemos que assim


há melhores condições para o jovem dialogar e formar vínculos.
O espaço é organizado com as cadeiras dispostas em círculo, para
que todos possam se ver. Nesses pequenos círculos, os participantes se
alternam, lendo em voz alta, fazendo pausas para discutir o significado
dos trechos lidos. Cada obra é lida ao longo de quatro encontros (um
mês). Os encontros são semanais, com uma hora de duração.
De cada grupo emergem multiplicadores, jovens da escola/comuni-
dade que se destacam por sua dedicação, empatia e comprometimento
com as obras. A cada ano novos grupos são formados.
Assim, os encontros dos Círculos de Leitura são conduzidos por esses
jovens multiplicadores, os quais são preparados previamente para essa
tarefa pelos formadores do Instituto Braudel ou por multiplicadores
veteranos de outras escolas que já desenvolvem o programa há mais
tempo.

Multiplicadores da Etec Sylvio de Mattos Carvalho, no município de Matão.


20
A leitura em voz alta

Como uma música, a sonoridade e o ritmo das palavras nos envol-


vem, deixando aflorar nossa sensibilidade. Esse primeiro contato com o
texto desperta uma forma afetiva de conhecimento, em que as palavras
se fazem corpo e imaginação ao mesmo tempo. Por essa razão, a leitura
em voz alta é fundamental no desenvolvimento do método. Percebe-
mos o quão rico é um texto por meio da emoção que ele consegue des-
pertar em nós.
No decorrer da leitura são realizadas algumas pausas para reflexão,
momentos em que se estabelece uma relação entre as ideias contidas
nas obras e a realidade dos participantes – suas inquietações e expec-
tativas. O multiplicador destaca alguns trechos importantes da obra; no
transcorrer dos encontros, os participantes vão ganhando autonomia e
confiança para exporem suas ideias.

O diálogo e a reflexão em grupo sobre clássicos da


literatura e temas universais
Os clássicos são
atemporais, Nos Círculos de Leitura, trabalhamos com obras literárias que trazem
questionam a em suas histórias temas universais, com os quais os jovens podem se
identificar, ampliando seu repertório cultural e relacionando suas ex-
ordem cronológica periências com histórias que sobrevivem ao tempo. Os clássicos são
e encerram o atemporais, questionam a ordem cronológica e encerram o verdadeiro
verdadeiro espírito espírito da humanidade. São obras de autores que possuem o dom de
da humanidade. penetrar na alma humana.
Os participantes são mobilizados pela história dos personagens, es-
tabelecendo uma relação de identificação, oposição ou complementa-
riedade. O psicolinguista Evelio Cabrejo-Parra (1942-), no artigo “A leitu-
ra antes dos textos escritos”, afirma:

O mesmo livro suporta [várias] interpretações, isto é, encenações


inesgotáveis. A pessoa que lê contos para as crianças faz a cada vez
uma encenação diferente do mesmo livro. Todos esses contos têm em
comum [...] o que podemos chamar os fantasmas psíquicos, o amor, o
ódio, o ciúme... Quem não tem uma experiência de ódio? Quem não
tem uma experiência de amor? Quem não tem uma experiência de
ciúme? Quem não tem uma experiência de mentira? Esses pequenos
fantasmas psíquicos são inerentes à espécie humana. Os contos os
encenam. Permitem dizer à criança, não diretamente, que aqueles
fantasmas são um problema que pertence a todos e que não há razão
de se preocupar. (CABREJO-PARRA, 2010).

21
O repertório

Fazem parte do repertório do programa Círculos de Leitura as seguin-


tes obras: Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach; O Pequeno Príncipe, de
Antoine de Saint-Exupéry; A comédia humana, de Willian Saroyan; Kouros,
de Nikos Kazantzakis; Noites brancas, de Fiódor Dostoiévski; Dom Cas-
murro, de Machado de Assis; Otelo, Macbeth e Romeu e Julieta, de William
Shakespeare; Odisseia, de Homero; O Banquete, de Platão; Vidas secas,
de Graciliano Ramos; Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa;
O velho e o mar, de Ernest Hemingway; O Mágico de Oz, de Frank Baum;
Guerra e paz, de Liev Tolstói. Além disso, também faz parte do repertó-
rio uma lista extensa de contos de autores nacionais e internacionais,
como Clarice Lispector, Gabriel García Márquez, Guimarães Rosa, José
Saramago, Machado de Assis, Marina Colasanti, Máximo Gorki e Rachel
de Queiroz.
Nas palavras de Roberto Mesquita:
Apresentamos
homens e mulheres Os clássicos constituem um veículo de um dinamismo, de uma série
de questões, de uma visão de mundo, de uma abordagem própria
extraordinários da realidade que nos questiona, que interrompe nosso caminho, pro-
como modelos, voca-nos e nos incita a reagir, a travar a batalha da interpretação – o
clássico é o oposto da estabilidade. (RIBEIRO, 2015, p. 3).
pois conhecendo os
heróis e convivendo Nosso repertório atende a essa necessidade dos jovens de entrar em
com eles, podemos contato com as obras universais que representam o conhecimento hu-
nos tornar também mano acumulado ao longo do tempo; são obras que traduzem os valores
mais elevados do espírito humano. Apresentamos homens e mulheres
extraordinários.
extraordinários como modelos, pois conhecendo os heróis e convivendo
com eles, podemos nos tornar também extraordinários.
Os livros são trabalhados sistematicamente. Cada obra é escolhida de
acordo com determinada sequência: um tema encaminha para outro e,
assim, tecemos uma rede de significados compartilhados.
Faz parte também da metodologia aprender a demorar-se, a concen-
trar-se em uma tarefa. Os jovens aprendem a falar de uma obra com pro-
priedade, mas de forma simples e familiar, de modo a envolver aquele
que está ouvindo. Com isso, atingimos uma das tarefas primordiais de
que nos fala o escritor Elias Canetti (1905-1994): “Criar mais e mais es-
paço dentro de si próprio... espaço para os seres humanos com os quais
convive”.

A escrita

A escrita constitui parte importante da metodologia. É nesse momen-


to que os participantes se apropriam individualmente do conhecimen-
to coletivo que alcançaram no grupo. Esses escritos são utilizados para

22
acompanhar o progresso de cada participante e do grupo, bem como
perceber o que foi internalizado.
É natural que o leitor projete no livro ideias que são suas; ao escre-
ver, seus textos refletirão esse fenômeno. Com a vivência no grupo, ou-
vindo ideias diferentes, e com a prática que os Círculos proporcionam
de correlacionar as obras, os participantes aos poucos vão conseguindo
“entrar” no texto para captar a mensagem central que a obra transmi-
te, tornando-se aptos a desenvolver argumentos para “defender” essas
obras quando for necessário.

As atividades complementares

Com o objetivo de promover a constante socialização entre os diver-


sos grupos da escola e a aproximação dos jovens com outras formas de
expressão artística, além daquelas propiciadas pela literatura nos encon-
tros semanais, promovemos também outras atividades:
• Leitura dramática: A realização de leituras dramáticas, com a
mudança de papéis, tem se mostrado uma ferramenta importante
ao permitir que os jovens percebam como cada um se sente ao
interpretar determinado personagem, tendo a possibilidade de
vivenciá-lo. Após essas leituras dramáticas, propomos uma apre-
sentação, na qual cada jovem escolhe um personagem com o qual
sinta mais afinidade. Esse processo de leitura dramática, que cul-
minará em uma apresentação para todos os alunos ou para a co-
munidade, é uma atividade que também serve para despertar o
interesse de outros alunos.
• Intervalo cultural: Alguns colégios realizam os “intervalos culturais”.
Em conjunto com os professores de Língua Portuguesa, Arte e com
os responsáveis pela sala de multimeios, uma vez por mês, durante
o intervalo (que nesse dia é prolongado), os jovens apresentam nú-
meros artísticos, integrando música, teatro, leitura de poesias, teste
de habilidades, entre outros. Nesses eventos, as obras do repertório
dos Círculos de Leitura são aproveitadas de várias formas.
• Visitas a espaços culturais diversos: Procuramos propiciar
oportunidades para que os jovens criem vínculos com o território
em que vivem. Nesse sentido são muito enriquecedoras as visitas
(sempre acompanhadas por professores) dos alunos a asilos, cre-
ches, casas de abrigo e outras escolas para a realização de grupos
ou de leituras dramáticas. Também é importante a programação
de passeios a espaços públicos de arte e cultura, como museus,
parques, teatros etc.

23
Culminância na EE Reverendo Tércio Moraes Pereira, em São Paulo (2017).

Multiplicadores da Etec Itaquera II na casa sede dos Círculos de Leitura (2018). Ao centro, Maria Aparecida Lamas,
coordenadora pedagógica do Instituto Fernand Braudel.
24
Visita dos multiplicadores do Ceará à Pinacoteca do estado de São Paulo (2016).

Multiplicadores da EMEF Benta Maria Ragassi Scutti, no município de Matão (2017).


25
Lendo poesias...
Você, meu leitor, que pulsa de vida e
orgulho e amor, assim como eu:
para você, por isso, os cantos que aqui seguem.
Walt Whitman.

Queridos amigos: para cuidarmos de nosso espírito e de nosso cora-


ção, sugerimos a leitura de pelo menos uma poesia toda noite antes de
dormir. Ao terminar de ler, recomece, mas no ritmo e no modo que os
façam se sentir mais à vontade.
Podemos ler quantas poesias quisermos e quantas vezes desejarmos,
em voz alta ou em voz baixa, sozinhos ou acompanhados, para nós mes-
mos ou para alguém. Descobrimos, então, o que acontece quando lemos
uma ou mais poesias pela segunda vez. As palavras certamente serão as
mesmas. Mas será que as poesias nos parecerão iguais? O que mudará?
Quando despertamos para a magia desse segundo olhar, percebe-
mos que uma obra de arte nunca tem fim. Dentro desse nosso mundo,
há muitos mundos a descobrir e muitas ideias sobre as quais refletir.
Quando descobrimos o mundo da poesia, o que encontramos? Como
nos sentimos?
Fazendo a leitura repetidas vezes, nos apropriamos dos versos lidos.
Podemos anotar trechos que nos falam mais alto ao coração. Um bom
exercício é anotar nossas conclusões, sentimentos, sonhos experimen-
tados durante o sono após a leitura, e poderemos chegar a criar nossas
próprias poesias.
Saber uma poesia de cor é colocá-la dentro do coração. Trata-se de
um ato de paixão, de encantamento e de entrega!
Se gostar do convite e quiser conhecer um mundo novo e diferente,
decore uma ou mais poesias entre aquelas que mais lhe fizeram sonhar.
Permita que a poesia se hospede dentro de você e, como diz o poeta
Paul Celan, “Para ela, lance sua alma”. Estamos à sua espera! Queremos
ouvir todas as histórias, todos esses mundos novos que você certamente
descobrirá.

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber... repetir,


repetir – até ficar diferente.
“Uma didática da invenção”, Manoel de Barros.

26
1.2 Aspectos pedagógicos da metodologia
O estudo foi para mim o remédio soberano contra
os desgostos da vida, não tendo existido jamais uma dor
que uma hora de leitura não afastasse de mim.
Montesquieu.

Minha avó lia sem parar. E eu apanhava tudo que me caía


nas mãos [...].
Com doze anos, descobri ‘Guerra e paz’ e não fiquei mais
doente.
Continuo acreditando que Tolstói me salvou.
Sergio Pitol.

A metodologia do programa Círculos de Leitura contribui para


despertar nas crianças e nos jovens o gosto pela leitura, facilitando o
acesso ao conhecimento por meio da discussão e reflexão em grupo
de obras literárias que ressaltam valores e modelos de conduta ética,
estimulando uma visão solidária, responsável e transformadora. Ao
mesmo tempo, apresenta aos jovens um repertório literário universal,
utilizando-se a literatura como um elemento promotor de mobilidade
social.
A dinâmica desenvolvida cria um ambiente próprio à fruição da lite-
ratura e ao envolvimento pessoal do jovem com grandes obras.

O exercício constante das ideias contidas nos livros desperta os par-


ticipantes para a ética da relação, preparando-os para atitudes dife-
renciadas e ações de cidadania no decorrer de sua vida.

Maria Celeste Pereira, Diretora Executiva do Instituto Direito e Cidadania em


2014. Fundação Odebrecht. Disponível em: <http://www.fundacaoodebrecht.
org.br/Imprensa/Noticias/Noticia/1302/Projeto-Circulos-de-Leitura-forma-novos-
protagonistas#.WwAgYO4vzDc>. Acesso em: 7 maio 2017.

A leitura e o debate em grupo criam um espaço para os jovens divi-


direm suas experiências e ampliarem o universo de conhecimento por
meio das palavras e do vínculo com o outro. Esse processo ocorre por
meio da leitura e da troca de ideias sobre os dramas, perdas, descober-
tas e conquistas de personagens presentes em obras como Odisseia,
Romeu e Julieta e Dom Casmurro.
A capacidade de leitura e reflexão constitui-se uma habilidade es-
Maria Aparecida Lamas sencial ao exercício da cidadania. Avaliações nacionais e internacionais
Mestre em Linguística Aplicada, demonstram a grande dificuldade que as escolas enfrentam para for-
especialista em Educação, é mar leitores competentes para compreender, contextualizar e correla-
coordenadora pedagógica do
Instituto Fernand Braudel. cionar ideias.

27
Leitura da peça Kouros na Etec Professora Maria Cristina Medeiros, em Ribeirão Pires.

Para o antropólogo Jack Goody (1919-2015), da Universidade de


Cambridge, a leitura não é uma atividade que ocorre naturalmente à
mente humana; aprende-se a ler com um esforço concentrado no decor-
rer do tempo. O exercício da leitura proporciona ao cérebro a capacidade
As competências de lembrar e organizar informações e experiências compartilhadas por
socioemocionais indivíduos e comunidades de geração para geração, ampliando a escala
são fundamentais e a complexidade da atividade humana.
Nos últimos anos, temos vivenciado uma mudança na visão sobre a
para que saibamos educação e o papel da escola, a qual, durante muito tempo, teve o de-
gerenciar nossas senvolvimento cognitivo como principal (ou único) foco. Muitos autores,
emoções, nos nas últimas décadas, têm destacado as “competências socioemocionais”
relacionar de como tão importantes quanto as competências cognitivas para que os
maneira positiva alunos tenham êxito pessoal e profissional. Por isso, redes particulares
e secretarias estaduais de educação têm se interessado em incorporar
e construtiva com nas grades curriculares atividades que estimulem esse desenvolvimento.
as outras pessoas, As competências socioemocionais podem ser definidas como as ha-
formular objetivos e bilidades que cada um de nós precisa desenvolver para lidar satisfatoria-
projetos de vida. mente com os desafios, as dificuldades, as frustrações e as situações inu-
sitadas que farão parte de nossa trajetória. Além disso, são fundamentais
para que saibamos gerenciar nossas emoções, nos relacionar de maneira
positiva e construtiva com as outras pessoas, formular objetivos e proje-
tos de vida.

28
Essas “competências” são exigidas de nós todos os dias e são parte
fundamental do processo de crescimento humano. Muitas escolas têm
adotado a seguinte formulação para o processo de educação integral:
aprender a conhecer, aprender a conviver, aprender a trabalhar e apren-
der a ser.
Nos Círculos de Leitura, além de provocar nos jovens o encantamento
com a leitura e a vivência em grupo, trabalhamos para desenvolver suas
competências socioemocionais.
No livro Uma questão de caráter, o escritor e jornalista americano Paul
Tough (1967) explica que as competências socioemocionais não são ina-
tas e fixas: “[...] elas são habilidades que você pode aprender; são habili-
dades que você pode praticar; e são habilidades que você pode ensinar
[...]”. E isso pode ser feito tanto no ambiente escolar quanto em casa.
O processo educativo compreende, fundamentalmente, a relação da
aprendizagem das crianças e dos adolescentes com sua vida e com sua
comunidade. Para isso, conforme propõe o documento federal Série Mais
Educação:

[...] é necessário que o conjunto de conhecimentos sistematizados e


organizados no currículo escolar também inclua práticas, habilidades,
costumes, crenças e valores que estão na base da vida cotidiana e
que, articulados ao saber acadêmico, constituem o currículo necessá-
rio à vida em sociedade (p. 27).

Multiplicadores da EMEF Benta Maria Ragassi Scutti, no município de Matão, com a professora
parceira Ana Paula Pedro recebem novo Livro de poesias (2017).
29
O programa Círculos de Leitura se enquadra nessa perspectiva de for-
mação integral dos jovens, mobilizando simultaneamente três aspectos:
• Desenvolvimento das competências socioemocionais: Os tex-
tos literários apresentam personagens e situações com as quais os
jovens se identificam. Os diferentes heróis, como Fernão Capelo
Gaivota, servem de inspiração para a superação de dificuldades.
Obras como A comédia humana, Otelo e Dom Casmurro retratam
experiências comuns dos homens que ressoam até hoje. Essas
Essas obras,
obras, lidas em grupo, contribuem para o desenvolvimento da
lidas em grupo, criatividade, capacidade de enfrentar problemas, autoconfiança,
contribuem para o responsabilidade e resiliência, imprescindíveis para o desenvolvi-
desenvolvimento mento integral dos jovens, a fim de que possam superar as dificul-
da criatividade, dades e construir um projeto de vida.
• Desenvolvimento cognitivo: Despertando o gosto e o hábito da
capacidade de
leitura, há uma contribuição significativa para o aperfeiçoamento
enfrentar problemas, das habilidades de interpretação, reflexão e escrita.
autoconfiança, • Despertar da fruição estética: A literatura, o cinema, o teatro, a
responsabilidade, música, a dança, enfim, a Arte nas suas mais diversas expressões,
resiliência [...]. possibilitam ao ser humano construir e reconhecer sua própria cul-
tura. Nas palavras de Ademir Antonio Engelmann:

Quando o homem se reconhece como um ser fazedor de cultura, ele


tem condições de criar uma consciência filosófica que lhe permite re-
criar, repensar, elaborar novos questionamentos, atribuir novos signifi-
cados às coisas e também desenvolver a arte. (ENGELMANN, 2008, p. 24)

Multiplicadores da EMEF Pref. Celso de Barros Perche, município de Matão, com a diretora Tatiane Cardoso (2017).
30
1.3 Arte, inclusão social e pertencimento
Desde 2000, o Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, em
seu trabalho nas escolas públicas, tem se utilizado de estratégias que
se apoiam no reconhecimento do poder da obra de arte para a inclusão
social.
No decorrer desses anos, nossa experiência nos mostrou que a frui-
ção da obra de arte não é algo que acontece naturalmente: é necessário
preparo, tempo de dedicação. Buscamos sensibilizar os jovens, por meio
da leitura e da reflexão em grupo, para o encontro com as obras de arte.
A obra de arte – produto de um mergulho no inconsciente da huma-
nidade – tem o poder de nos tornar seres grandes e generosos, consti-
tuindo um auxílio precioso para nossa travessia. Sua luz pode ser o me-
lhor guia para que o ser humano possa, como escreveu Van Gogh em
Cartas a Theo, “esquecer de si, realizar grandes coisas, atingir a generosi-
dade e ultrapassar a vulgaridade na qual se arrasta a existência de quase
todos os indivíduos”. O contato com obras de arte, produto do trabalho
de seres extraordinários, é uma dádiva que, quando recebida, pode des-
pertar nosso núcleo tanto de criação quanto de generosidade. Quando
recebemos um bem simbólico de tamanha grandeza, ele não fica apenas
dentro de nós; transborda e se desdobra em vontade de compartilhar.
A história por trás do museu The Frick Collection, em Nova York, ilustra
bem esse efeito da arte. Henry Clay Frick (1849-1919), um dos industriais
mais bem-sucedidos de seu tempo, era também um grande amante e
colecionador de obras de arte. Quando voltava do trabalho, sentava-se
confortavelmente à frente de uma obra e, no mais profundo silêncio, pas-
sava horas contemplando sua beleza, esquecido do tempo. Esse ritual
alimentava sua alma, preparando-o para as realizações do dia seguinte.
Ao morrer, Henry Frick quis que sua mansão, com todos os quadros e es-
culturas, fosse transformada em um museu, a fim de que outras pessoas
pudessem também usufruir daquele bem-estar que havia sentido.
No Brasil, também há histórias que ilustram essa ideia: Lasar Segall
(1889-1957) e Armando Álvares Penteado (1884-1947) são alguns exem-
plos de destaque.
Pessoas como Segall, Penteado e Frick nos fazem pensar em como
ocorre a passagem da arte do espaço privado para o público. Eram pes-
soas que amavam a arte, usufruíram de sua beleza e força, e essa fruição
tornou-os grandes, por sentirem que as obras feitas por seres extraordi-
nários pertenciam não somente ao colecionador, mas ao mundo.
O contato com obras de arte nos faz sentir pertencentes ao mundo, e
essa seria a “grande saúde” de que Friedrich Nietzsche (1844-1900) fala-
va. Descobrimos que existe essa outra vida, atemporal, e que o passado
continua vivo. Atravessados por essa experiência, não teremos medo do
futuro, tampouco de nossos semelhantes. O que nos dá esse sentimento

31
de pertencimento é a possibilidade de acessar esse enraizamento, essa
participação no legado comum a todos, mas especial para cada um e
sempre aberto a novas interpretações.
Todo artista, ao criar sua obra, mergulhou nas camadas mais profun-
das da psique humana, naquele espaço que o psiquiatra suíço Carl Jung
(1875-1961) chama de “inconsciente coletivo”, em que tudo é de todos.
Em contato com as produções do inconsciente, cuja essência é sempre
misteriosa – e, justamente, por isso, sempre em mudança, sempre in-
completa –, essas obras nos levam a querer perpetuar o ato da criação,
de diferentes formas. Uns serão mobilizados a preservar as obras de arte
e sua memória; outros se tornarão artistas.
Esse contato com as obras gera uma necessidade de criação que pode
se expandir para outros campos. Empenhados e comprometidos com o
mistério e o devir humano – conceito filosófico que qualifica a mudança
constante e a perenidade de algo ou alguém –, os artistas participam
desse arsenal que, como diz Jung, “transcende todas as diferenças de
cultura e de atitudes conscientes”.
A arte instaura uma “comunidade das almas”, que estão sempre em
diálogo nesse outro tempo e nessa outra geografia, que são a da alma e
da interioridade. Por ser fruto dessa transcendência, a arte nos dá passa-

Carmen Gutiérrez

32
gem para uma vida mais livre dos condicionamentos e conformismos. O
contato com as obras de arte, portanto, nos abre, como diz Ana Cristina
Carvalho, “janelas coloridas de passagem para o mundo, para encontrar,
quem sabe, outro universo”, a fim de que possamos nos tornar aqueles
seres extraordinários, enraizados e generosos que Van Gogh acreditava
que podíamos vir a ser.
A partir da nossa proposta de sensibilização, quando estamos traba-
lhando com os jovens em São Paulo, onde temos a Casinha (sede do pro-
grama Círculos de Leitura), levamos o maior número possível de jovens
multiplicadores e demais participantes a conhecer museus e outros es-
paços públicos artísticos. Com o apoio de um mediador, no percurso da
Casinha até a chegada ao museu, a rua deixa de ser um simples espaço
de passagem por onde se caminha e se transforma em um itinerário de
descobertas – reino de encontro com múltiplas subjetividades e tempo-
ralidades.
Brota, em consequência, uma gama de desejos: a curiosidade, a von-
tade de registrar o novo olhar (fotografias), para perpetuar o momento e
poder compartilhar.
É um longo processo, com muitas idas e vindas, paradas, momentos
de reflexão.
Percebe-se que os jovens passam a ver o mediador que os acompa-
nha de outra forma. Ocorrem, então, os desdobramentos do passeio: as
aberturas, o interesse mútuo, os diálogos, a partir da vivência em comum
naquele reino há pouco adentrado, onde as fronteiras são permeáveis.
Sensibilizam-se as zonas de contato, algo que atrai o jovem. Ele co-
meça a se perceber e a perceber o outro; a ser tocado pela beleza e pela
história das obras visitadas. Sente-se fazendo parte desse universo maior
que teve início há muito, muito tempo. Para as obras de arte, o tempo
não conta.
O objetivo final começa a ser atingido: o espaço que “não era de nin-
guém” passa a ser de cada um e de todos. Nasce o respeito, a vontade de
compartilhar, de preservar e de cuidar.
O homem generoso começa a despontar.

33
34
Filipe Frazão/Adobe Stock
2. Nosso Percurso

2.1 Círculos de Leitura – relato de


uma experiência

O mundo parece cantar uma única canção: a nossa canção refe-


rente à nossa pergunta. É assim que funciona quando constelamos
uma pergunta originária; o lugar vazio da alma mobiliza e aguça
uma escuta peculiar, e o que é mais incrível: o mundo todo responde!
Amenéris Ângela Maroni.

G
ostaria de contar uma história que fala sobre aqueles encontros
que acontecem na nossa vida da forma mais inesperada e que
abrem caminhos; quando algo novo ganha vida. Foi assim que
teve início meu trabalho com os Círculos de Leitura, que venho desen-
volvendo há 18 anos e que me dá muita alegria.
Foi por meio da compra de um consultório que conheci Sara, psi-
canalista lacaniana que, ao saber de minha formação em filosofia,
convidou-me para ler com ela o livro A ética, de Jacques Lacan (1901-
1981). Lendo esse livro, encontrei referências à obra O banquete, de Pla-
tão. Voltei a lê-lo e, à luz da psicanálise, o livro agora era Outro. Apaixona-
mo-nos por aqueles diálogos, pela forma como os personagens criados
por Platão defendiam suas ideias, apresentando seus argumentos com
tamanha convicção. Líamos também O Seminário – Livro 8: a transferên-
cia, obra de Lacan que narra os seis meses em que o psicanalista leu com
seus discípulos a obra O banquete.
Nosso entusiasmo era tanto que decidimos formar grupos no consul-
tório, nos quais a proposta seria não falar dos problemas, mas ler O ban-
quete. Conversar sobre o que era o amor para os personagens do livro.
Assim nasceu uma proposta de saúde: “Mais Platão e menos Prozac®”1.
Depois de algum tempo, recebi um novo convite: ampliar a experiência
desenvolvida no consultório para escolas de Diadema (São Paulo). O Ins-
tituto Fernand Braudel de Economia Mundial, em 2000, desenvolvia um
estudo sobre a violência naquele município, analisando as causas e, ao
mesmo tempo, tentando implementar soluções práticas. Fui convidada a
desenvolver em escolas o trabalho com leitura que antes desenvolvia com
Catalina Pagés
Filósofa e psicanalista,
fundadora e coordenadora-geral
do Programa Círculos de Leitura. Medicamento antidepressivo.
1

35
meus pacientes e em grupos com colegas; isso faria parte das ações de
prevenção. O desafio para mim era imenso.
Dessa vez, o trabalho seria desenvolvido por meio de duas institui-
ções, o Instituto Braudel e a Prefeitura de Diadema, o que requeria habi-
lidades que eu julgava não possuir. Mas tantas ajudas foram aparecendo
que consegui dar conta da tarefa e os grupos foram acontecendo.
Descobri que em cada escola havia jovens que pareciam estar à espe-
ra de alguém que conversasse com eles: do porquê de estarem ali; que
lugar tinha a escola em suas vidas; quais eram seus medos; quais eram
seus sonhos.
Os grupos começavam lendo poesias e a obra Fernão Capelo Gaivota,
de Richard Bach, que fala de uma gaivota que era diferente, que desejava
voar alto e que não desistiu de seu sonho. Depois que os grupos esta-
vam consolidados, avançávamos para a leitura da Odisseia, de Homero.
Os jovens, que participavam ativamente, conheciam a Odisseia de cor e a
contavam para seus pais e amigos.
Certa ocasião, os jovens foram convidados a assistir a uma apresenta-
ção da Odisseia, que estava sendo encenada em um teatro de Diadema.
Na peça, Ulisses era apresentado como um anti-herói. Os jovens ficaram
tão indignados com o que viram que quiseram conversar com o diretor,
o que foi muito instrutivo para todos. Foi maravilhoso ver como defen-
diam Ulisses: o herói deles precisava ser respeitado! Eles sentiam que não
podiam permitir tamanha distorção com um personagem tão grandioso.
Fui me dando conta, então, de que os jovens possuíam tan-
ta identificação com as obras que deveriam ser eles os responsáveis

Formação de multiplicadores na Etec Prof. Adhemar Batista Heméritas (2018).


36
pela condução dos grupos. Foi assim que começaram a emergir os
multiplicadores.
Depois de um tempo, percebi que os jovens precisavam conviver com
jovens de outras escolas. Para isso, organizamos passeios pela cidade,
ida a museus, à Sala São Paulo (sala de concertos em São Paulo), Parque
Ibirapuera (conhecido parque da cidade de São Paulo). Aqueles jovens
eram o que podemos chamar de “espiritualmente ambiciosos” e, como
tinham feito as mesmas leituras, puderam desenvolver diálogos ricos e
profundos.
Hoje, temos a alegria de ter realizado os Círculos de Leitura em vários
estados do Brasil, como Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, e de ter um
grande crescimento em escala e qualidade em São Paulo e no Ceará. E
para continuar aproximando os jovens, agora contamos com a ajuda que
as mídias digitais nos oferecem: plataformas on-line, redes sociais, aplica-
tivos como WhatsApp etc.
Desejo finalizar essa história voltando a lembrar dos bons encontros
que abrem caminhos para algo novo. Não tenho dúvida de que tudo
aconteceu no tempo certo, com o apoio da Providência.
Trabalhar em grupo, com essas obras, nos torna receptivos para ouvir
os sinais e reconhecer o momento oportuno para agir no mundo, esse
mundo comum a todos.

Kairós, o momento fugaz onde tudo se decide, onde a duração


toma um curso favorável a nossos desejos.
Píndaro.

Encontro dos Círculos de Leitura na Etec Juscelino Kubitschek de Oliveira, em Diadema.


37
2.2 O programa Círculos de Leitura
em São Paulo

O programa Círculos de Leitura sempre contou com o apoio de im-


portantes empresas para a realização de seu trabalho em São Paulo. Po-
demos citar, entre elas: General Eletric, Natura, Votorantim, Unilever.
A Votorantim, que possuía uma planta na região de São Miguel Paulis-
ta, apoiou o programa em escolas públicas da região durante seis anos,
e nosso trabalho na comunidade continua ativo e com a adesão de cada
vez mais escolas. Atualmente, em São Miguel Paulista, são quatro escolas
participantes: E. E. Revendo Tércio, E. E. Manoel da Nóbrega, E. E. Profª.
Célia Ribeiro Landim e E. E. Pedro Viriato Parigot.
Com a Unilever o programa estabeleceu uma parceria ainda mais
ampla, de 2002 a 2017. Durante muitos anos, a empresa desenvolveu
o Programa Aquarela, que visava oferecer oportunidades aos jovens de
baixa renda da comunidade, preparando-os para o competitivo merca-
do de trabalho. Também apoiava o desenvolvimento dos coordenadores
e trainees da Unilever para que pudessem avançar profissionalmente,
exercendo cargos de liderança.
Assim, nas escolas que recebiam os Círculos de Leitura, era feito um
convite aos jovens multiplicadores que estavam concluindo o 3º ano
do Ensino Médio para participarem de uma seleção. Vários jovens que
participaram da seleção conseguiram ser aprovados para fazer parte do
Programa Aquarela. A empresa fornecia ajuda de custo para fazerem o
curso preparatório ao vestibular da Fundação Instituto de Administração
da USP. Ingressando na universidade, faziam estágio remunerado no Ins-
tituto Braudel e na própria Unilever. Graças a essa fecunda parceria, de-
zenas de jovens oriundos de famílias humildes construíram uma carreira
de sucesso na Unilever e em outras empresas.
Sobre a história dos Círculos de Leitura em São Paulo, berço de seu
nascimento, o jornalista Lourival Sant’Anna escreveu um artigo, publica-
do no jornal O Estado de S. Paulo em 2016, que retrata histórias de jovens
que romperam as barreiras sociais e construíram seus projetos de vida a
partir da vivência nos Círculos de Leitura.

38
A sublime linguagem te ensina
A epopeia de jovens da periferia que, embebidos de literatura clássica, refizeram sua jorna-
da para ganhar outros universos

U
ma regra não escrita vigora nas escolas públi- Quem vive na periferia se sente muitas vezes in-
cas do Brasil: é proibido sonhar alto. Quando timidado de ir para os bairros mais ricos, onde estão
se pergunta a um jovem pobre o que quer ser os chamados “equipamentos culturais”. Desde pegar o
quando crescer, ele não paga o mico de citar uma pro- ônibus ou o trem para atravessar São Paulo até entrar
fissão que envolva entrar em uma boa universidade, nesses espaços que, ainda que “públicos”, não parecem
sob pena de ser ridicularizado. Isso não é para ele. feitos para os mais pobres, é uma aventura para quem
A irmã mais velha de Keila Cândido resolveu mora nos extremos da cidade. A leitura de clássicos e
descumprir essa regra e estudar Direito na Faculda- a companhia de jovens como eles os encorajam a fazer
de Metodista, em São Bernardo do Campo. Keila de- essa travessia, que coincide com sua transição para a
cidiu que não faria faculdade depois de testemunhar vida adulta.
o sofrimento dos pais para ajudar a irmã a pagar as O programa forma grupos de 8 a 12 alunos. Sentados
mensalidades. Seu sonho adaptado à realidade era ser em círculo, eles leem pausadamente em voz alta alguns
recepcionista em uma empresa de plano de saúde. parágrafos e correlacionam o texto com suas vidas. Um
Os pais de Keila vieram de Orós, no Ceará, há 40 coordenador faz um relatório sobre as discussões. A
anos. Sua mãe, costureira, parou de estudar na 8ª sé- equipe do programa o examina e escolhe o texto do
rie porque precisava trabalhar. Seu pai fez apenas até encontro da semana seguinte, de acordo com os temas
a 4ª série e trabalha como cegonheiro (motorista de mais importantes para o grupo. O jovem sente que não
caminhão que transporta automóveis), mesma pro- está sozinho porque outras pessoas o ouvem atenta-
fissão de três de seus tios, do irmão de 29 anos e de mente, contam suas histórias também, e porque vê que
vários primos. Ela não tem fotos de quando era crian- seus dramas e dilemas de adolescente foram vividos
ça, porque sua infância coincidiu com a fase de maior ao longo dos séculos pelos personagens dos clássicos.
penúria da família. Aos 13, o destino de Keila pare- “Foi essencial para mim”, garante Keila. “Meus
cia selado. Foi quando ela conheceu os Círculos de colegas da escola continuam na mesma vida, muitas
Leitura, programa do Instituto Fernand Braudel, que meninas engravidaram cedo. Não sabiam que podiam
atende alunos de escolas públicas em São Paulo e em sonhar ir para a universidade.” Com a ajuda de custo de
64 cidades do Ceará. multiplicadora, ela pagou um curso de informática aos
“Depois que entrei no programa Círculos de Leitura, sábados, enquanto seus pais bancavam o de inglês aos
fui abrindo a mente e pensei que até seria possível en- domingos. Já no primeiro ano de jornalismo, em 2008,
trar na universidade.” Inspirada no jornalista Norman entrou para estágios nas revistas da Editora Globo. Saiu
Gall, que dirige o Instituto Braudel, Keila prestou ves- da Época para trabalhar em uma agência para investi-
tibular para jornalismo na Metodista. Com sua nota no dores do Banco do Brasil. Não lhe pagaram. Entrou na
Enem, ganhou 100% de bolsa do ProUni. Justiça e foi estagiar na Veja. Com o dinheiro da ação
“Eu não lia até os 13 anos”, recorda Keila. “Sabia contra a agência, fez intercâmbio na Nova Zelândia.
ler, mas não lia. Não tinha incentivo. O programa Cír- Depois trabalhou na IstoÉ Dinheiro.
culos de Leitura me apresentou os escritores e me tirou Seu interesse pela China surgiu em um seminário
da periferia. Fiz a jornada. Vim para São Paulo”, diz em 2008 no Instituto Braudel com o economista An-
ela, usando um tema recorrente no programa. Inspira- tônio Barros de Castro, ex-presidente do BNDES. “As
dos na leitura da Odisseia, de Homero, os jovens enten- relações com o Brasil estavam crescendo, e eu queria
dem que sair da periferia e vir à região central, visitar mudar de vida. Pensei em investir nesse sonho, mas
museus, teatros e parques e participar da formação de não tinha noção de como conseguir trabalho.” Mesmo
multiplicadores na sede do programa equivale à jornada assim, estudou mandarim. Em 2014, foi selecionada
de Telêmaco, filho de Odisseu, em busca de seu pai. para uma vaga na Xinhua.
39
Indo morar em Pequim, Keila se tornou um sím- vaga remanescente no curso de economia da Meto-
bolo do quão longa pode ser a travessia de um jovem dista, em uma cota para negros. “Mesmo pagando só
da periferia. Mas seu caso é apenas um de muitos nos metade da mensalidade, foi muito difícil”, lembra Jac-
Círculos de Leitura. Iniciado em 2000, o programa já queline, que fez estágio na Vanguarda Agro, na Pirelli
produziu uma geração de jovens adultos que ocupam e na Bloomberg, e foi voluntária em uma pesquisa da
posições de destaque em grandes empresas. São pessoas ONU sobre o nível de conectividade dos cidadãos, que
que agarram a oportunidade com a faca nos dentes. a forçou a aperfeiçoar seu inglês.
Diferente de Keila, William Veras sempre gostou de William cursou Mecatrônica no ensino médio, Me-
ler. “Eu era o estranho do colégio, vivia sozinho.” Seu cânica no Senai, Administração na Metodista e Enge-
pai era mecânico na indústria automobilística e não nharia de Produção na Mauá. Aproveitando os cursos
via futuro nas aptidões intelectuais do filho. “Tinha gratuitos de línguas oferecidos pela Escola Estadual
preceitos na minha casa”, explica William, hoje com Rudge Ramos, em São Bernardo, estudou francês e
24 anos, funcionário executivo da Mercedes-Benz, na alemão. Ganhou bolsa do Instituto Goethe e foi apren-
divisão que atende o Peru, Chile, Nicarágua, Costa der alemão em Mannheim. O espanhol e o inglês ele
Rica e Panamá. “Leitura não era coisa para homem. aperfeiçoou sozinho. Entrou na Mercedes como mecâ-
Eu tinha de ser mecânico.” nico de produção, no “chão de fábrica”, e foi galgando
O programa apareceu na vida de William em um posições. Ele atribui sua capacidade de argumentação
momento crítico. Ele tinha 15 anos e estava passando e de trabalhar com projetos à experiência como multi-
da 8ª série para o 1º ano do ensino médio. Tinha ga- plicador nos Círculos de Leitura.
nhado bolsas de estudo em vários colégios particulares [...] observa Rogério Pontes Carvalho, de 23 anos,
renomados, mas seu pai se recusou a pagar o material outro ex-multiplicador dos Círculos e estagiário do
didático e o transporte escolar. “Fiquei muito chate- Instituto Braudel, que hoje trabalha na área de finanças
ado. Parei de ir à escola. Vivia na biblioteca, queria e controle da Nestlé e cursa economia na Universidade
estudar sozinho. O programa Círculos de Leitura me Federal do ABC. Rogério entrou no programa com 11
salvou, me ajudou a me encontrar. Mostrou que, por- anos, quando fazia a 5ª série em uma escola estadual
que você não está num bom colégio, não quer dizer de São Bernardo. Na 6ª tornou-se multiplicador vo-
que não vai estudar. Obrigou-me a responder: ‘Qual o luntário e coordenava grupos da 8ª série e do 1º ano
seu sonho?’” do ensino médio. “Antes, não tinha aptidão para ler”,
Os participantes do programa têm de falar toda se- conta Rogério. “Era estudioso, mas lia por obrigação,
mana como anda seu “projeto de vida”. Esse é o pri- não por prazer.” Aos 13, começou a ser remunerado
meiro grande desafio que a leitura e a discussão dos como multiplicador, e aos 15 foi morar sozinho. Na
clássicos os ajudam a vencer: começar a sonhar e casa com os pais e seis irmãos, não tinha ambiente
acreditar em si mesmos. Além das sessões de leitura para ler e estudar. Para complementar o dinheiro do
e das visitas a centros culturais, o programa lhes pro- aluguel e se manter, foi trabalhar na feira com seu tio.
porciona também encontros com adultos, que passam Hoje, toda essa experiência o ajuda na Nestlé.
a servir de referência concreta para eles. Em 2015 e 2016, esses e outros ex-multiplicadores
“Antes dos Círculos de Leitura eu não imagina- voltaram a se reunir em sábados alternados, na Casi-
va nada”, relembra Jacqueline Carvalho, de 25 anos, nha, sede do programa, em São Paulo, para ler Guerra
que trabalha com auditoria externa na Ernst & Young. e paz, de Leon Tolstói. A partir de 2017, passaram a ler
“Nasci e cresci em um lugar bem humilde.” Sua mãe é e discutir textos de filosofia política, como parte de um
manicure e seu pai é mecânico industrial. “Meus pais esforço do Instituto Braudel de formar novos líderes
trabalhavam e eu cuidava da casa e do meu irmão. Não para a esfera pública. Não vai ser um passeio. Mas
tinha perspectiva nenhuma. Meu acesso a informação quem disse que esse pessoal veio ao mundo a passeio?
era tão limitado que eu não sabia que podia frequen-
tar uma universidade.” Jacqueline participou dos Cír-
culos quando tinha 14 anos e depois da Academia de
Ciência, outro programa do Instituto Braudel, patro- Lourival Sant’Anna é repórter e analista interna-
cinado pela Basf, também em escolas estaduais. Com cional, foi editor-chefe e correspondente em Londres
indicação do instituto, onde trabalhou, conseguiu uma do Estadão.

40
Dramatização da obra As Aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, na EE Reverendo Tércio Moraes Pereira (2017).

Visita dos multiplicadores da Etec Juscelino Kubitschek de Oliveira à casa sede dos Círculos de Leitura.
41
Círculos de Leitura no interior de São Paulo

Com o apoio da Águas Guariroba, Águas de Matão – Instituto Equi-


pav, em 2017 conseguimos realizar um antigo desejo: levar o programa
Círculos de Leitura para o interior de São Paulo. O apoio foi concedido
por meio da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura, e a abertura dos grupos
no interior fez parte da história dos 18 anos de existência do programa,
que está sendo contada neste livro.
Matão, localizada a 306 quilômetros de São Paulo, na região central
do estado, foi o primeiro município fora da grande São Paulo a receber
os Círculos de Leitura. O trabalho foi iniciado com três escolas, duas de
Ensino Fundamental II e uma Escola Técnica:

• EMEF Benta Maria Ragassi Scuti;


• EMEF Celso de Barros;
• Etec Sylvio de Mattos Carvalho.

Tínhamos pela frente um novo desafio: era a primeira vez que traba-
lharíamos com escolas de Ensino Fundamental II e fora da capital. Isso
porque a implementação dos Círculos com alunos dessa faixa escolar
demanda um maior acompanhamento da equipe. Mas, como sempre,
encontramos grandes parceiros: professores, diretores, a Secretaria
Municipal de Educação, que nos ajudaram a concretizar a tarefa com
muito sucesso.
A primeira ação do programa em Matão ocorreu com a realização da
1ª formação de diretores, professores e técnicos da Secretaria Municipal
de Educação de Matão, nos dias 15, 16 e 17 de maio de 2017, no auditório
do Centro de Artes e Esportes Unificados (CEU). Durante os três dias, ges-
tores e educadores conheceram a metodologia e as bases filosóficas do
programa e realizaram vivências de leitura em grupo das principais obras.
Após a formação de professores, ocorreu a formação dos jovens nos
dias 24, 25 e 26 de maio de 2017 no anfiteatro do CEU do Portal Terra da
Saudade. Depois disso, os jovens iniciaram a condução dos grupos em
suas escolas.
Em agosto do mesmo ano, foi a vez dos multiplicadores da Etec Syl-
vio de Mattos Carvalho receberem a formação e iniciarem os grupos
nessa escola.
No mês de novembro, 30 alunos das duas escolas de Ensino Funda-
mental e os multiplicadores da Etec Sylvio de Mattos Carvalho visitaram
a Casinha. Todos mostravam grande entusiasmo com a tarefa de condu-
ção dos grupos e resultados alcançados.
E, para fechar o ano, no dia 1º de dezembro de 2017, as três escolas
foram reunidas no anfiteatro do CEU de Matão; os jovens encantaram a
todos apresentando performances de leitura dramática, música e poesia.

42
Grupos dos Círculos de Leitura na EMEF Pref. Celso de Barros Perche, município de Matão.

Águas de Matão

Águas de Matão é a concessionária responsável pelo sistema de cap-


tação e distribuição de água do município de Matão, pelo sistema de
coleta de esgoto e pelo tratamento de esgoto no distrito de São Louren-
ço do Turvo. A empresa, administrada pela holding Aegea, iniciou suas
atividades em fevereiro de 2014. Em um curto período de tempo, os in-
vestimentos realizados em tecnologia e infraestrutura já refletem na re-
gularidade do abastecimento de água e na contribuição para a melhoria
de vida da população.

Sustentabilidade

Um dos diferenciais da holding Aegea é a interação com a comuni-


dade na qual suas empresas estarão inseridas. O grupo busca continua-
mente a preservação ambiental no desenvolvimento de suas atividades
de saneamento, a fim de preservar o meio ambiente e melhorar a quali-
dade de vida e o desenvolvimento humano da população.
Alinhada à política de sustentabilidade da Aegea, a concessionária
Águas de Matão chegou à cidade trazendo inicialmente dois importan-
tes programas socioambientais: Afluentes e Saúde Nota 10.
Afluentes é um programa de relacionamento entre a empresa e as li-
deranças comunitárias e associações de bairros da cidade. Visa ao empo-

43
deramento das comunidades por meio de ações que priorizam um canal
de comunicação com seu entorno, com objetivo de ouvir críticas e suges-
tões como forma de maximizar sua contribuição para o desenvolvimento
sustentável, minimizando impactos e envolvendo a comunidade em suas
operações. Assim, a comunidade pode compreender a importância do
abastecimento de água tratada em suas residências e a importância da
coleta e do tratamento de esgoto para o meio ambiente urbano.
Saúde Nota 10 é um programa de educação ambiental que tem como
objetivo despertar a consciência de estudantes para a importância da uti-
lização de água e esgoto tratados na preservação do meio ambiente, na
saúde da população e na melhoria da qualidade de vida. Eles aprendem,
entre outras importantes lições, qual é o papel de cada um na conserva-
ção dos recursos hídricos.
Em 2017, a concessionária Águas de Matão, no âmbito de sua política
de investimento social, abriu outra frente de atuação, dessa vez relaciona-
da à educação pública, levando para o município de Matão o programa
Círculos de Leitura. Em parceria com a Secretaria Municipal de Educação,
o programa atendeu duas escolas municipais de Ensino Fundamental II, a
EMEF Benta Maria Ragassi Scutti e a EMEF Prefeito Celso de Barros Perches
e a Etec Sylvio de Mattos Carvalho.
Dentro do projeto, a empresa também apoia a publicação deste livro –
Círculos de Leitura – a arte do encontro –, que conta um pouco dos 18 anos
de existência do programa.

Instituto Aegea

Fundado pelo Grupo Equipav em 2013 e atendendo a um antigo dese-


jo das matriarcas das famílias Toledo e Vettorazzo, o Instituto Equipav (IE)
nasceu para impactar positivamente a educação, a cultura, o esporte e a
sustentabilidade nas praças onde as empresas do grupo atuam e, assim,
estabelecer uma assinatura de sustentabilidade para o grupo.
Entre 2013 e 2017, o IE foi responsável por destinar e monitorar os in-
vestimentos sociais do Grupo Equipav e do Grupo Aegea por meio de
projetos transformadores, que causassem impactos positivos e gerassem
novas perspectivas de vida para o seu público-alvo.
Ao longo desses anos, o Instituto Equipav aportou mais de R$ 10 mi-
lhões em diversas ações e em projetos incentivados e não incentivados,
que trouxeram experiências memoráveis para crianças, jovens e idosos de
mais de 40 cidades distribuídas por 10 estados da federação.
Em 2018, incorporando as novas tendências de atuação no setor, o
Instituto Equipav migrou para a estrutura do Grupo Aegea e passou a se
chamar Instituto Aegea. O principal objetivo do Instituto Aegea é ser um
catalisador de inteligência no que de melhor vem sendo desenvolvido
no Brasil e no mundo nas áreas de saúde, educação e geração de renda.

44
Além disso, o Instituto tem como meta buscar as melhores práticas para
que a empresa realize seu investimento com foco e de forma estratégica,
contribuindo para o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida
nos municípios em que a Aegea atua.
A parceria com o Instituto Braudel, na realização do programa Círculos
de Leitura, reafirma o nosso compromisso com a educação como forma de
abrir caminhos e romper as fronteiras do conhecimento, contribuindo para
a construção de uma sociedade mais justa, equitativa e tolerante no que
diz respeito ao debate de ideias e à diversidade em todos os seus aspectos.

As atividades dos Círculos de Leitura proporcionaram


aos participantes uma maneira singular de absorver conhe-
cimento, mais colaborativa, por meio de uma combinação
harmoniosa entre conto de histórias e expressão individual,
tornando o aprendizado mais dinâmico e inclusivo, além de
contribuir diretamente para a formação dos participantes,
que têm como função replicar esse conhecimento com o
intuito de construir, pouco a pouco, uma rede de conheci-
mento consistente e transformar a realidade de onde atuam.

Maria Aparecida Draheim,


coordenadora de projetos socioambientais da
concessionária Águas de Matão.

Cheguei a pensar que não mais conseguiria ver o sorriso


de um jovem apreciando um simples livro, mas o programa
Círculos de Leitura foi capaz de tirar deles não apenas sor-
risos, um brilho no olhar, foi capaz de criar uma fidelidade
com a leitura. Certamente estes jovens carregarão, para sua
vida e da sua comunidade, o prazer de apreciar um bom e
simples livro.

Paulo César Guerreiro Junior,


supervisor de projetos socioambientais da
concessionária Águas de Matão.

45
Círculos de Leitura nas Escolas Técnicas Estaduais (Etecs)
do Centro Paula Souza

Em 2017, o programa Círculos de Leitura abriu uma nova frente de


atuação no estado de São Paulo por meio de uma parceria com o Centro
Paula Souza, implantando o programa em Escolas Técnicas Estaduais (Etecs).
Para o desenvolvimento do programa nas Etecs foi dada continuidade
à estratégia já utilizada ao longo de 18 anos e constantemente aprimora-
da em parceria com gestores educacionais e professores: formar alunos,
professores e gestores da rede estadual de ensino na metodologia dos
Círculos de Leitura, visando à sustentabilidade e à ampliação do progra-
ma e mantendo a formação de jovens multiplicadores nas escolas. Isso é
parte fundamental da metodologia do programa, que prevê o incentivo
ao protagonismo juvenil e à formação de jovens lideranças.
Foram realizadas formações centralizadas de professores e gestores
do Centro Paula Souza e de multiplicadores nas escolas, e grupos foram
formados, sob a condução dos alunos formados.
Para dar continuidade à formação dos multiplicadores e oferecer su-
porte aos professores parceiros, alunos e professores participam de en-
contros na Casinha aos sábados. Mais de 400 jovens estudantes das Etecs
já participaram de atividades na Casinha entre 2017 e 2018.
Atualmente, 11 Etecs desenvolvem o programa:
• Etec Professor Adhemar Batista Heméritas
• Etec de Carapicuíba
• Etec de Ferraz de Vasconcelos
• Etec Irmã Agostina
• Etec Itaquera II
• Etec Lauro Gomes (São Bernardo do Campo)
• Etec Professora Maria Cristina Medeiros (Ribeirão Pires)
• Etec Martin Luther King
• Etec Sylvio de Mattos Carvalho (Matão)
• Etec Tiquatira
• Etec Juscelino Kubitschek de Oliveira

46
Formação de multiplicadores na Etec Irmã Agostina.

Encontro dos Círculos de Leitura na Etec Riberão Pires.


47
2.3 O programa Círculos de Leitura
no Ceará

As Gaivotas do Ceará

Gaivotas. É assim que se autointitulam os multiplicadores que


participam dos Círculos de Leitura. Oriundos de todas as partes do
estado do Ceará, desde a região litorânea (como Camocim e Fortale-
za), passando pelas serras de São Benedito e chegando aos sertões
de Crateús, Quixadá e Juazeiro do Norte, jovens de escolas profissio-
nalizantes, de tempo integral e regulares, têm tomado para si, assim
como o personagem principal da obra Fernão Capelo Gaivota, a ta-
refa de transmitir para outros jovens o interesse e a paixão pelo co-
nhecimento e pela leitura.
As primeiras Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs)
surgiram no estado em 2008, com a proposta de desenvolver a for-
mação plena dos jovens, aliando conhecimento teórico e prático. Ini-
cialmente foram criadas 25 escolas nesse modelo; atualmente, che-
gam a 115 escolas, localizadas tanto na capital quanto nas cidades
do interior.
O diferencial dessas escolas está na forma como o ensino foi
pensado e está sendo aplicado, não apenas no que se refere ao
conteúdo escolar – uma vez que o ensino profissional possui uma
base técnica –, mas no profundo envolvimento de professores, de
diretores e de todas as pessoas que compõem a equipe escolar,
que funciona como um organismo vivo. Os jovens, imersos nesse
ambiente, tornam-se protagonistas do processo de ensino-aprendi-
zagem, colocando em prática os conhecimentos construídos. Dessa
forma, aprendem a se posicionar diante dos desafios da vida.
Esse protagonismo juvenil é passado de uma geração à outra. Um
exemplo é que todo ano, no início do período letivo, os veteranos
apresentam a dinâmica da escola aos calouros, os quais, por sua vez,
vão exercer essa tarefa no ano seguinte. O ciclo vai se repetindo: to-
dos aprendem e se responsabilizam uns pelos outros.
Nessa atmosfera de convívio dos jovens na escola, em tempo in-
tegral, o programa Círculos de Leitura encontrou o ambiente ideal
para desenvolver plenamente sua metodologia e seus objetivos. Fru-
to de uma parceria inicialmente firmada entre a Secretaria de Edu-
cação do Estado do Ceará (Seduc) e o Instituto Fernand Braudel, o
programa foi implementado em 2012 em 21 escolas profissionalizan-
tes de tempo integral, na Superintendência das Escolas Estaduais de
Fortaleza (Sefor) e em todas as Coordenadorias Regionais de Desen-
volvimento da Educação (Credes) do estado. Nas escolas, as ativida-

50
des começaram com 33 participantes, divididos em três grupos de
10 alunos e um multiplicador, representando uma média de 630 alu-
nos no estado. Em 2013, o número de alunos participantes já havia
subido para 2560.
Paulo Sérgio Fontenele, diretor da EEEP Monsenhor Expedito da
Silveira, em Camocim, uma das 21 primeiras escolas a receberem o
programa no estado do Ceará, conta um pouco dessa experiência
com os Círculos:

Os jovens dos Círculos de Leitura se beneficiam em


dois campos importantes. O primeiro é o campo cogni-
tivo, com o desenvolvimento expressivo das habilidades
ligadas à leitura: capacidade de ler, interpretar, debater
e escrever, permitindo que os alunos adquiram um grau
maior de comprometimento com os estudos, com im-
pacto positivo no rendimento escolar. Penso que o Insti-
tuto Braudel desenvolve o programa Círculos de Leitura
porque acredita que o compartilhamento do saber é um
dos pilares da civilização que possibilitam, com eficácia,
o aprendizado entre os pares e o refinamento das com-
petências socioemocionais.
O segundo campo é de ordem existencial: ao se aproxi-
mar da vida dos personagens, os jovens aprendem a se (re)
conhecer, a refletir sobre suas condições de vida presente
e a desenvolver projetos futuros, desenvolvendo habilida-
des como a liderança e a capacidade de resolver conflitos
nas comunidades carentes onde vivem. A leitura também
proporciona a ampliação efetiva do universo cultural e so-
cial do adolescente, contribuindo para a autoconfiança, o
respeito pelas instituições e a inclusão social.
Durante a prática dos Círculos de Leitura, emergem os
multiplicadores – jovens que se destacam pelo talento,
dedicação, ambição e potencial de liderança, promoven-
do assim o protagonismo estudantil e juvenil.
Em nossa EEEP o programa funciona desde o ano
2012 e já impactou muito positivamente a vida de nos-
sos alunos, alargando o gosto pela leitura, aprimorando
as competências orais voltadas à dialética e às diversas
formas de interpretar e interpelar os textos, sejam eles
orais ou escritos. Esses impactos foram muito claramente
percebidos nos projetos de iniciação científica, nos quais
alunos oriundos dos Círculos se mostraram excelentes
alunos pesquisadores, motivados e inclinados à pesquisa
e muito bons expositores em feiras e eventos de cunhos

51
científico e cultural, eventos de nível nacional e interna-
cional. O programa também contribui para os resultados
satisfatórios na área de redação Enem.
Os Círculos de Leitura hoje é um dos programas indis-
pensáveis à nossa escola por todas as questões citadas.
E nós já estamos incluindo as práticas dos Círculos de
Leitura nos coletivos de estudos, procurando ressignificar
nossos estudos, promovendo maior interação e discussão
colaborativa aos fazeres pedagógicos.

Na escola, aprendem-se diversos conteúdos, tais como a comuni-


cação humana, os fenômenos da natureza e as formas de equacio-
ná-los, as relações geopolíticas mundiais e como isso afeta o indi-
víduo, o corpo humano e o corpo dos diversos outros seres vivos.
Esses conhecimentos são divididos em disciplinas, como História, Fí-
sica, Matemática, Português, Biologia etc. Mas qual matéria ensina-
ria sobre a vida, aquele conhecimento inequacionável que nela en-
contramos? Essa matéria não existe em nenhuma grade de ensino. O
programa Círculos de Leitura colabora com a escola nessa tarefa de
formar integralmente o jovem.

Os grupos dos Círculos de Leitura ocupam todos os espaços na EEEP Monsenhor Expedito da Silveira.
52
Grupos dos Círculos de Leitura na EEEP Monsenhor Expedito da Silveira.

Multiplicadores, equipe pedagógica e o diretor Paulo, na EEEP Monsenhor Expedito da Silveira.


53
A professora Rejane Silva, que foi articuladora dos Círculos de Lei-
tura, na EEEP Júlio França, em Bela Cruz, outra das 21 escolas vetera-
nas que iniciaram o programa no Ceará, é uma das grandes aliadas
nas formações em outras escolas do estado, tanto oferecendo seus
multiplicadores quanto auxiliando na equipe de formação do Institu-
to Braudel, como professora parceira.

O programa Círculos de Leitura existe na EEEP Júlio Fran-


ça desde 2012. De lá até o ano em curso, essa ferramenta,
que perpassa da leitura até a formação do eu, muito contri-
buiu para o crescimento dos nossos alunos. Todo o processo
se inicia com Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach, obra
de identificação direta dos adolescentes, já que trata de um
universo jovem repleto de desafios, sonhos e irreverências.
Na sequência, temos uma releitura da Comédia humana, de
William Saroyan, com O caminho de Homero, enredo que
trata das relações humanas e do desenvolvimento da sen-
sibilidade ao olhar para si e para o mundo do outro. Poste-
riormente, enveredamos em O Pequeno Príncipe, de Antoine
de Saint-Exupéry, história encantadora que nos leva a refletir
sobre quem são os que encontramos pela vida e quem so-
mos, descobrindo quão importantes são as coisas simples,
a necessidade de cativarmos e sermos cativados, aprendiza-
dos que nos conduzem à reflexão sobre os relacionamentos
que construímos ao longo da vida. Tais abordagens se entre-
laçam com poesias e se complementam com muitas outras
obras de autores renomados como Shakespeare, Nikos Ka-
zantzakis, Dostoiévski, Machado de Assis, entre outros.
Ter o programa na escola é uma forma de contribuir para
a formação e a valorização do hábito de ler, bem como seus
bons reflexos na vida dos leitores. De maneira interligada, au-
xilia no exercício da escrita e, consequentemente, melhora a
produção textual, além de ser fator que ajuda na preparação
dos nossos alunos para ingressarem no ensino superior.
Observamos também outros ganhos que dificilmente
conseguiríamos evidenciar numericamente, já que se refe-
rem ao exercício do protagonismo juvenil que acontece me-
diante a condução e a orientação dos grupos, acrescido do
conhecimento e desenvolvimento de mecanismos de auto-
ajuda a partir da leitura dos clássicos, além das suas contri-
buições para análises pessoais e coletivas acerca do compor-
tamento humano. Por tudo isso, somos reconhecedores da
importância dos Círculos, programa que alia conhecimento
à formação humana, tão necessários à nossa sociedade.

54
Multiplicadores e o diretor Werbson, da EEEP José Maria Falcão.

Diretor João Paulo (à esquerda), professora parceira Maria Divan e multiplicadores da EEEP Amélia Figueiredo de Lavor.
55
Esse protagonismo juvenil a que a professora Rejane faz referência
– presente nas escolas e nos Círculos de Leitura – tornou-se algo tão
forte que as escolas de tempo integral passaram a apadrinhar as esco-
las regulares, responsabilizando-se pela implementação e pelo acom-
panhamento dos Círculos de Leitura.
Antonia Cyra Esmeraldo Arrais, gestora da EEEP Governador Virgílio
Távora, escola veterana em Crato que recebeu o programa em 2012,
também fala sobre a importância do protagonismo juvenil:

Vejo os Círculos de Leitura como uma grande oportuni-


dade para despertar no aluno o gosto pela leitura. É muito
bom ver os alunos em Círculos, lendo e discutindo obras
dos clássicos da literatura.
Hoje, na escola, o programa Círculos de Leitura é mui-
to mais que isso: desenvolve o protagonismo juvenil, pro-
porciona ao corpo discente autonomia de aprendizagem,
contribui consideravelmente para a melhoria da qualida-
de do ensino-aprendizagem e também nos indicadores
da escola.

A EEEP José Maria Falcão, em Pacajus, também é uma das 21 es-


colas veteranas e uma das que têm apresentado os melhores resul-
tados. Além disso, é a escola que mais oferece multiplicadores para
realizar formações em outras escolas. A professora Denise Santos
Teixeira, importante parceira do programa, sempre que possível é
liberada para compor a equipe de formação do Instituto Braudel.
Para ela:

O programa Círculos de Leitura surgiu como uma pos-


sível saída para a superação da defasagem de leitura dos
alunos. Acredito que contribui na superação das dificul-
dades de expressão oral e escrita e no baixo nível das re-
dações, além de valorizar os estudos humanísticos na so-
ciedade atual, haja vista que procura integrar o estudo da
língua ao estudo da literatura.
Percebe-se um amadurecimento dos jovens em rela-
ção às apresentações orais, à apresentação de trabalhos
escritos, refletindo em uma melhoria atitudinal.
Usando Dostoiévski, Machado de Assis, Graciliano
Ramos, entre outros, estimulamos questões profundas,
aperfeiçoando, a partir da leitura, a capacidade dos jo-
vens participantes de analisar, contextualizar, sintetizar e
decidir. Ampliamos seus horizontes e sua ligação com o
mundo. Trabalhamos valores éticos e o protagonismo ao

56
mesmo tempo em que ensinamos a encadear logicamen-
te o pensamento, desenvolvendo habilidades para corre-
lacionar o conteúdo, associar ideias a autores e a desen-
volver um pensamento crítico e autônomo.
Segundo Marcuschi, escrever é “uma invenção perma-
nente do mundo e a leitura é uma reinvenção”.
O que se oferece aqui é uma reflexão que contribui
para uma melhor análise sobre as estratégias de supera-
ção da defasagem de leitura e de escrita sem a pretensão
de esgotar o problema.

Bianca Melo, aluna da EEEP Rita Matos Luna, de Jucás, hoje forma-
dora contratada pelo Instituto Braudel, em 2016 já falava de maneira
entusiasmada sobre seu trabalho como multiplicadora, que conside-
rava a tarefa mais importante de que já havia sido incumbida:

No grupo, todos leem e ficam à vontade para falar, o


que não acontece muito na sala de aula. Porque nos gru-
pos acabamos criando um tipo de vínculo muito forte
tanto entre nós como também com os livros que lemos.
E o principal é que todos se ouvem e respeitam a opinião
dos outros. Isso ajuda bastante, porque passamos o dia
juntos na escola, e nem sempre é fácil o convívio, princi-
palmente no primeiro ano.

No final de 2013, quando acompanhava uma formação intensiva


com jovens e professores, o professor Maurício Holanda, representan-
do a professora Izolda Cela, então Secretária de Educação do estado
do Ceará, conversou com um grupo de multiplicadores que lhe ex-
pôs o desejo de levar os Círculos de Leitura também para as escolas
regulares. Os jovens falavam de forma muito entusiasmada sobre sua
vivência nos Círculos de Leitura e relatavam os avanços que sentiam
estar alcançando, tanto nas habilidades de leitura e de escrita quanto
no âmbito existencial: sentiam que a participação nos grupos ajuda-
va a elevar a autoestima, a romper a insegurança ou timidez, a ga-
nhar mais foco e autoconfiança. E, para esses jovens, tudo isso preci-
sava ser levado também para os alunos das escolas regulares.
Assim, a partir de 2014, as escolas profissionalizantes veteranas es-
colheram um colégio regular que ficasse próximo para multiplicar os
Círculos de Leitura. Nesse processo, 15 escolas regulares foram incor-
poradas, ampliando para 36 o total de colégios contemplados pelo
programa. Esse movimento foi muito importante por oferecer aos jo-
vens mais uma oportunidade de desenvolverem o protagonismo e o
potencial de liderança.

57
Todas as sextas-feiras as Gaivotas se espalham pela EEEP Governador Virgílio Távora.

Leitura da obra Kouros na EEEP Governador Virgílio Távora.


58
Acervo do Círculos de Leitura. Em destaque, conto Sequência, de Guimarães Rosa.

Livro de poesias dos Círculos de Leitura.


59
Grupos dos Círculos de Leitura na EEEP Rita Matos Luna.

Multiplicadores dos Círculos de Leitura da EEEP Rita Matos Luna.


60
Na região de Iguatu, o programa Círculos de Leitura teve um desen-
volvimento surpreendente! Multiplicadores da EEEP Amélia Lavor, com o
apoio da professora Maria Divan e do então diretor Elival Pereira, levaram
o programa para mais seis colégios, realizando de forma voluntária for-
mações em outras escolas da região.
Elival Pereira também foi diretor da escola profissionalizante Rita Ma-
tos Luna, de Jucás. Quando visitamos a escola recém-inaugurada, em
2014, Elival olhava para as montanhas ao redor e dizia:

Para alguém como eu, que vim de uma família humilde e


tive que me esforçar tanto para estudar, é um orgulho mui-
to grande estar como diretor de uma escola que é o prédio
mais imponente e bonito da cidade. Esse é um marco das
mudanças que ocorreram no Ceará.

Ao falar de sua identificação com os Círculos de Leitura, ele relatou:

Alguns dos pontos centrais que norteiam a educa-


ção no Ceará é o desenvolvimento e o fortalecimento do
protagonismo juvenil e da cooperação. E eu entendo que
a metodologia dos Círculos de Leitura também se apoia
nesses valores. Nos Círculos, ao assumirem a tarefa de
multiplicadores, os jovens responsabilizam-se uns pelos
outros, o conhecimento que adquirem não fica apenas
para eles, mas é repassado em uma rede contínua. E não
apenas na sua própria escola; através do apadrinhamento,
os jovens levam os Círculos para outros colégios e locais
onde convivem. É a mesma ideia envolvida na semana do
acolhimento, quando os próprios alunos recepcionam os
estudantes que estão chegando. Eu acredito que os Círcu-
los complementam essa política, dando uma base sólida
de valores para os jovens apoiarem as ações de protago-
nismo propostas pelo colégio.

João Paulo Benevides Lopes, que assumiu a direção da EEEP Amélia


Figueiredo Lavor em 2014, também traz seu depoimento:

Em 2014, quando comecei a trabalhar na EEEP Amélia


Figueiredo de Lavor, o programa Círculos de Leitura fora
apresentado a mim como um dos principais desenvolvidos
na escola. Ao conhecê-lo com mais propriedade, comecei a
compreender o porquê. Primeiro, não se reduz a um clube
de leitura, em que amigos se reúnem para ler obras com as
quais se identificam. Ao contrário, as leituras são de obras já

61
indicadas pelo Instituto Fernand Braudel, classificadas pela
literatura brasileira e internacional como verdadeiros clás-
sicos (a citar: Otelo, O mouro de Veneza, de Shakespeare; O
caminho de Homero, de William Saroyan; Dom Casmurro, de
Machado de Assis; Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach,
entre outros).
Os alunos participantes do programa começam a revelar
uma boa desenvoltura em falar em público, bom desempe-
nho na apresentação de seminários e minicursos. Há ainda
uma considerável contribuição na formação do caráter. As
Gaivotas, nome carinhoso com que denominamos aos que
participam dos Círculos de Leitura, fazendo menção à obra
Fernão Capelo Gaivota: são pessoas solidárias, com uma
compreensão de mundo mais aguçada e ainda com um
compromisso social.
Além de tudo, é histórico o considerável percentual de
participantes do programa que conquistam sua vaga no
ensino superior. Em 2014 e em 2015, contatamos que 100%
dos estudantes do 3º ano do Ensino Médio, integrantes do
programa, conseguiram ingressar na universidade. O que
nos chama mais a atenção é o fato de esses estudantes ga-
nharem destaque também nesta etapa dos estudos, tornan-
do-se alunos bolsistas de iniciação científica ou monitoria.
Há seis anos o programa Círculos de Leitura é desenvolvido
em nossa escola. Os impactos sociais mencionados e carac-
terísticas intrínsecas de protagonismo juvenil revela a todos
os educadores da EEEP Amélia Figueiredo que o programa
precisa permanecer em nossas escolas do Ceará, alçando
voos ainda maiores.

A partir de 2015, o programa ganhou um importante impulso com o


desenvolvimento de um plano específico para formação de professores
da rede estadual de ensino, em parceria com a Fundação Itaú Social. Na
medida em que formações regionais foram acontecendo, novas escolas
foram incorporadas, e o número de participantes também deu um salto,
pois, com novos professores parceiros, foi possível atingir um número
muito maior de alunos. Para atender todo o estado, as Credes e a Sefor
foram divididas em cinco polos. Todos os polos já foram atendidos, con-
tabilizando 21 Credes e três unidades da Sefor. Foram formados, nesse
processo de capacitação intensiva, 175 professores e 107 técnicos e di-
retores, de escolas do estado.
O grupo de Gaivotas aumentou ainda mais e no ano de 2018 chegou
a 113 escolas de Ensino Médio, em 68 municípios, beneficiando mais de
25 mil jovens!

62
Visita da formadora Chris Bianca à EEM Maria Daurea Lopes.

Multiplicadores da EEEP Lucas Emmanuel Lima Pinheiro.


63
Grupo dos Círculos de Leitura do Liceu Doutor José Gondim.

Multiplicadores do Liceu Doutor José Gondim.


64
O
meu contato inicial com o programa Círculos
de Leitura se deu quando a Secretaria da
Educação do Ceará começou a desenvolvê-lo
em escolas estaduais. Havia boas referências sobre o
programa e, de partida, identificamos muita conver-
gência com o movimento de promoção do protago-
nismo juvenil que a Secretaria buscava desenvolver
em diversas frentes.
Por óbvio, eu poderia registrar aqui informações
sobre objetivos, metodologia, exemplos de textos
utilizados, dinâmicas de capacitação e alcance da
ação. Tudo isso poderia ser emoldurado nos entu-
siasmados relatos da equipe técnica da Seduc e, principalmente, de equipes
das escolas sobre as realizações dos Círculos. Teria que fazer menção também
à nota dissonante que é ainda a grande dificuldade de o setor público abrir
espaços de cooperação mais extensivos e permanentes, com saberes e expe-
riências oriundos de instituições privadas.
Mas a melhor inspiração para traçar algumas linhas sobre o programa Círcu-
los de Leitura é evocar a memória do que eu pude presenciar. Afinal, o que
os olhos veem o coração sente com mais realidade. Uma dessas vivências foi
acompanhar um grupo já experiente de uma escola estadual realizando um
Círculo com jovens de outra instituição educacional. Eles apresentaram o texto
que foi lido em voz alta de forma compartilhada. Os jovens que conduziam o
processo fizeram um semidirecionamento na sequência da leitura, com perguntas
mobilizadoras e incentivos à participação. Era Fernão Capelo Gaivota e seu
voo maravilhoso. Uma professora ali, presença disponível, mas não impositiva.
Os jovens eram efetivamente os protagonistas.
Sim, trata-se de promover a prática e o gosto pela leitura. Mas é bem
mais do que isso. O que se presencia ali é a possibilidade de encontros.
Encontros mediados por textos que, como regra, são clássicos da literatura
brasileira e universal. Textos que trazem para o círculo em suas histórias e
através de seus personagens os grandes dilemas éticos da humanidade, os
pecados, as virtudes, as escolhas e seus efeitos, os atos heroicos, as histórias
de sofrimento e de superação.
Sim, trata-se de desenvolver faculdades intelectuais que a leitura e a inter-
pretação de texto promovem. Mas é bem mais do que isso. Abre-se ali uma
oportunidade de promover o gosto pela escuta ativa do outro e também
a confiança de se expressar. Abre-se um espaço rico para as subjetividades
aflorarem, sustentadas por uma de suas mais valiosas âncoras, a arte. Estão
depositadas nas obras de arte literárias riquezas que podem mobilizar uma
energia psíquica transformadora.
Outra experiência saborosa foi participar de um círculo mediado pela admi-
rável e inspiradora Catalina Pagés no ambiente da Casinha, em São Paulo. A
Casinha, local de encontros e formação do programa, é bonita e acolhedora.

65
E foi ali que nós nos conduzimos pela arte de Gabriel García Márquez por
meio do conto O afogado mais bonito do mundo e pela arte de Catalina. Ela
construiu seus caminhos e fez suas descobertas na confluência da filosofia e
psicanálise, com pitadas generosas de uma firme e adorável fé no mundo,
nas pessoas, na juventude.
Colocar em círculos os grupos de jovens para saborearem O banquete, de
Platão, “viverem” o drama de Otelo, os atos heroicos na Odisseia, entre outros,
é surpreendente e potente. A descoberta de Catalina com os círculos diz res-
peito também à capacidade que muitos jovens têm para mobilizar e envolver
os seus pares, com ganhos de escala e qualidade no programa.
Então, trata-se disso, do compromisso em mudar o mundo através da estraté-
gia mais garantida e sustentável: a transformação de si mesmo. É simplesmente
esta a síntese do compromisso do programa Círculos de Leitura.

Izolda Cela, vice-governadora do Estado do Ceará, foi secretária de educação do


Estado de 2007 a 2014. Na Secretaria de Educação do Município de Sobral foi secretária
adjunta de 2001 a 2003 e secretária de educação de 2004 a 2006.

66
C
írculos de Leitura: o autoconhecimento e o desa-
brochar da consciência de estar na vida como uma
relação “eu e tu”.
Minhas amigas Catalina e Cidinha, mentoras e motoras
dos Círculos de Leitura, pediram para eu dizer algo sobre
os Círculos por ocasião do 18º aniversário desta experiên-
cia ímpar.
Soube da existência dos Círculos de Leitura em 2008,
quando estava em busca de conhecer conceitos e práti-
cas que pudessem “preencher” a proposta curricular das
escolas de tempo integral da rede estadual do Ceará (as
escolas de Ensino Médio denominadas Escolas Estaduais
de Educação Profissional – EEEPs). É que essas escolas não são meras agências formadoras
de mão de obra de nível técnico para o mercado de trabalho; elas são lugar de encontro
da juventude consigo mesma e com o futuro. Pelo menos assim as concebemos e conti-
nuamos a nos esforçar, cada dia, para nos aproximar desse ideário.
Bem, naquele momento já tínhamos uma certeza, que até aqui só fez se aprofundar: a
de que uma escola para jovens precisa ter como um de seus sustentáculos o protagonis-
mo desses mesmos jovens. Exprimo o que entendo ser a essência do protagonismo juve-
nil pelas palavras corresponsabilidade, alegria de aprender uns com os outros e alegria de
se descobrir capaz de contribuir com o bem comum.
Agora voltando aos Círculos. Por que quis conhecê-los? Porque ouvi que, nos Círculos,
os jovens liam, conversavam e apreciavam leituras como Fernão Capelo Gaivota e O Pe-
queno Príncipe… e Platão... e Shakespeare… e – cúmulo da alegria para mim – Guimarães
Rosa. Entre outros, ressalte-se. A lista é infinita e capaz de impressionar mesmo os mais
afeitos à “alta cultura”.
Mas não apenas “ouvi que”. Eu os vi e os ouvi e reli e conversei e apreciei com eles tesou-
ros que eu também havia recolhido nessas leituras. Na verdade, para mim a alegria da lei-
tura começou por volta dos 11 anos com Emília/Lobato me levando ao “país da gramática”
e à Grécia de Hércules em pleno cumprimento de seus 12 heroicos “trabalhos”.
Compartilho frequentemente com jovens e adultos uma convicção íntima: a de que
aprender (qualquer coisa ou sobre qualquer tema) é uma das mais prazerosas experiên-
cias humanas... e (pelo menos para mim) a literatura é o método mais completo dessa
aprendizagem. Haveria muito o que dizer sobre isso, mas para ser prático vou citar Harold
Bloom em sua introdução à obra Como e por que ler:

Não existe apenas um modo de ler bem, mas existe uma razão precípua por que ler.
Nos dias de hoje, a informação é facilmente encontrada, mas onde está a sabedoria? Se
tivermos sorte, encontraremos um professor que nos oriente, mas, em última análise,
vemo-nos sós, seguindo nosso caminho sem mediadores. [...] Ler nos conduz à alterida-
de, seja à nossa própria ou à de nossos amigos, presentes ou futuros. Literatura de ficção
é alteridade e, portanto, alivia a solidão. Lemos não apenas porque, na vida real, jamais
conheceremos tantas pessoas como através da leitura [...].
[...] Uma das funções da leitura é nos preparar para uma transformação, e a transformação
final tem caráter universal. (BLOOM, 2001)

67
É algo semelhante que vejo acontecer na experiência dos jovens que (às vezes apenas
no início, timidamente) se achegam aos Círculos de Leitura. A descoberta da sabedoria na
descoberta da “alteridade” dos personagens que conhecem, com os quais refletem, sobre
quem dialogam. A descoberta da legitimidade de sua identidade na universalidade das
questões, dilemas e situações que vivem e que são igualmente vividas pelos personagens.
E a experiência de “comunhão” que experimentamos ao descobrir/fazer amigos reais entre
as pessoas com quem partilhamos a experiência comum da compaixão e do maravilha-
mento que as histórias nos inspiram. Essa experiência que me diz que eu sou um Eu e que
tenho diante de mim um Tu que me enriquece e que se enriquece no nosso encontro.
Quem quiser saber o que isso significa que procure ler/conhecer o sábio Martin Buber
(1878-1965).
Então, nesse ensejo em que ressurgem as memórias, o que ainda tenho a dizer é que
me sinto gratificado por ter participado de um momento/movimento que tem proporcio-
nado a tantos jovens alunos das escolas públicas cearenses a alegria da descoberta que
eu também experimentei um dia. Era o ano 1975, tinha 11 anos, e a pequena biblioteca de
minha escola pública cearense fez-se porta para que eu adentrasse os novos mundos até
então insuspeitados que habitavam meu mundo. De lá para cá, cada encontro com um
livro por meio das pessoas e com uma pessoa por meio dos livros é sempre a renovação
dessa experiência de felicidade humana... e humanizadora.
Por isso sou grato ao “povo dos Círculos”. À Catalina, ao Norman, à Cidinha, à Patrícia
– estes em São Paulo – e, no Ceará, à Izolda, à Andrea, à Valdenice, à Aila e à Sandra (na
Seduc), ao Aliel e ao Josimar (diretores de escola), à Aline Jacó e ao Lindemberg, a exemplo
de tantos outros alunos que encontrei nessa bela ciranda.
Sou grato também à Fundação Itaú Social, que nos últimos anos veio se juntar ao es-
forço do estado do Ceará para manter e ampliar a existência dos Círculos de Leitura nas
escolas estaduais cearenses.
Por isso, também, sou grato à vida.

Mauricio Holanda foi Secretário de Educação Adjunto no Ceará, no período de 2007 a


2013 e Secretário de Educação de 2014 a 2016. Foi um dos grandes responsáveis pela con-
cretização e expansão dos Círculos de Leitura no estado do Ceará.

68
O êxito do programa Círculos de Leitura no Ceará

Seis anos após termos iniciado o convênio com a Seduc, ficamos


muito orgulhosos dessa parceria e fazemos um agradecimento especial
aos professores e diretores das 21 EEEPs que receberam em 2012 o pro-
grama, acreditaram na ideia e fizeram com que os Círculos de Leitura
fosse exitoso em suas escolas. Podemos dizer que foram fundamentais
na construção da grande rede de colaboração que nos permitiu che-
gar ao número de 104 escolas envolvidas, sempre com o entusiasmo e
a participação de jovens e educadores, que são a marca registrada do
programa no Ceará. 
E, nas palavras de Valdenice Gomes, da Coordenadoria de Protagonis-
mo Juvenil da Seduc:

A palavra-chave dos Círculos de Leitura é “encantamento”.


Todo professor quer ver um clima melhor na escola, quer
os alunos lendo mais para ter uma consciência crítica e cola-
borativa, para melhorar a sua redação. Tudo o que queremos
ver na escola e nos alunos encontramos no Círculos de Leitu-
ra. O programa casa perfeitamente com as ações da escola!
Foi perguntado em uma reunião para os diretores: “O que
vocês querem? No que a Secretaria de Educação pode aju-
dar para que vocês deem uma ‘sacudida’ na escola?”. Muitas
escolas responderam: “Nós queremos os Círculos de Leitu-
ra, aprendizagem cooperativa, aulas de reforço em Língua

Multiplicadores da EEEP Luíza de Teodoro Vieira.


69
Portuguesa e Matemática”. Não estamos vendendo um pro-
grama; são as escolas que estão pedindo esse programa, e
é muito bom quando há uma formação que a escola pede
para participar, porque já sabemos que, naquela escola, vai
dar tudo certo (a direção e o professor parceiro já vêm para
a formação inicial convencidos de que o programa vai fazer
muito bem para a escola).
Em relação aos alunos, quando eles falam dos livros que
leem nos grupos, nos encantam! Fico imaginando como as
atividades devem ser prazerosas para eles e no modo como
estão atuando; sim, porque são protagonistas! Eles estão no
dia a dia na escola e se sentem bem no espaço escolar. Eles
cantam na escola, leem poesia, conversam sobre os livros.
Essa é a escola que nós queremos! Uma escola em que o alu-
no acorde feliz porque vai passar o dia lá, porque vai ter Cír-
culos de Leitura. Que ele acorde e diga: “Hoje eu vou para a
escola porque hoje vai ter aula com aquele professor, que é
maravilhoso”.
O programa Círculos de Leitura vai ajudar essa escola a
ser mais feliz, vai ajudá-la a ser aquela escola onde o aluno
tem vontade de ir, uma escola da qual sentimos saudade nos
domingos.

Gilmar Costa, diretor da EEEP Professora Luiza Teodoro Vieira, em Pa-


catuba, também traz seu depoimento sobre o programa:

Falar do Círculos de Leitura é falar de um programa que


veio somar na escola. Quando nos deparamos com esse pro-
grama, achávamos que objetivasse apenas melhorar a leitura
e enriquecer a textualização dos nossos alunos. Achávamos,
em síntese, que era um programa de melhoria da redação.
Percebemos, na realidade, que é muito mais do que isso!
A priori, participaria do programa o aluno que tivesse
atração por leitura (a participação era por iniciativa própria).
Com o tempo, percebemos que o programa era tão bom
que resolvemos universalizá-lo na escola. Isso aconteceu de
modo gradativo: inicialmente, participaram do Círculos de
Leitura aqueles alunos que realmente queriam. Então, foi
sendo realizado um trabalho para despertar nos outros tam-
bém esse interesse, o que acabou acontecendo.
Muito importante também é a participação dos profes-
sores para conduzir o processo, sendo pertinente haver uma
liderança entre eles. Evidentemente, surgirão problemas, os
quais a gestão às vezes não tem como resolver. Por isso, é

70
importante haver uma compreensão da liderança, de pro-
fessores conduzindo o processo, trabalhando com a gestão,
avaliando; enfim, fazendo o trabalho educacional necessário
para que o programa realmente tenha bons resultados.
Em nossa escola, graças à proatividade da nossa equipe,
temos obtido sucesso em avaliações externas como o Enem.
Também temos percebido incremento importantíssimo nas
produções textuais dos alunos – apesar de o programa ter o
foco principal voltado para a redação, tem auxiliado muito
nesse processo de escrita.
Nossa escola desenvolve um projeto de redação. E o pro-
grama Círculos de Leitura faz parte dos projetos da escola,
dando subsídios para que nosso aluno se potencialize cada
vez mais, do ponto de vista das avaliações externas.
Além dos resultados alcançados no Enem, alguns de
nossos alunos se destacam como líderes, como o Webert,
que hoje é um dos educadores sociais do Instituto Braudel,
atuando nas formações no Ceará.
Mas o programa Círculos de Leitura não trabalha só a
questão da leitura; trabalha a ética, o respeito, o sentido de
trabalho em equipe, o respeito à opinião do colega... Justa-
mente tudo o que norteia o projeto pedagógico da escola. É
um programa que veio realmente para somar!
Eu quero parabenizar o Instituto Braudel, que atua não
somente na área educacional, mas em questões relaciona-

Diretor Gilmar, da EEEP Professora Luiza Teodoro Vieira, com as professoras parceiras Leidiane e Régia (à esquerda).
71
das à economia e à política, por exemplo. É uma instituição
cujas ações visam melhorar a vida no Brasil e até na Amé-
rica do Sul. Que bom seria se tivéssemos mais instituições
preocupadas com a situação brasileira, do ponto de vista da
educação, da saúde, da política... Que bom se tivéssemos
instituições como essa espalhadas em todo o Brasil.

Francisco Luciano Leite Filho, diretor da EEEP Adolfo Ferreira de Sousa


considera os Círculos de Leitura um caminho para a emancipação cultural:

Falar sobre o Círculos de Leitura é algo muito fácil, sobre-


tudo pela Cidinha Lamas, uma pessoa que tem carisma. A
Cidinha tem uma personalidade atraente, faz você comprar
a ideia, agarrar a oportunidade, se apaixonar por aquilo que
ela faz! Um programa de qualidade e uma pessoa que o faz
enxergar isso torna muito fácil desenvolver o programa com
êxito.
Assumi a direção em 2013. O programa teve início na
escola em 2012, de uma maneira bem ousada, porque con-
templou todas as turmas. Agarramos o programa como uma
oportunidade, porque nós, diretores, muitas vezes envere-
damos por um caminho administrativo e financeiro e vamos
perdendo o romantismo das coisas.
O Círculos de Leitura está coadunado com outros pro-
jetos. Nós temos um projeto de redação que se chama “re-

Diretor Luciano e professora parceira Gegardênia com a veterana Wana Duarte e membros da equipe pedagógica da
EEEP Adolfo Ferreira de Sousa.
72
dação de foco”, no qual há um foco e o professor de Lín-
gua Portuguesa trabalha a disciplina sob diversos ângulos,
com pesquisas desenvolvidas pela Universidade de Brasília,
com processo de redação no Enem. Mas não adianta tra-
çar técnicas e estratégias para os alunos, indicar quais são
as competências dos seus níveis etc., porque a “massa” que
vai preencher aquela grade curricular é a mundividência,
ou seja, o conhecimento do mundo, o repertório cultural,
e isso só se consegue, só se configura e só se consolida por
meio da leitura.
Para quem gosta também da aprendizagem cooperativa,
no Círculos de Leitura há um reforço muito forte, que é a in-
teração promotora: à medida que esses meninos se reúnem
e se encontram, eles estimulam os mais introspectivos a se
igualarem aos outros em participação e interação, e isso é
muito bom para nós!
Então, em poucas palavras, é dizer que é uma oportuni-
dade real de emancipação cultural; não é nada utópico, não
é nada romântico, é algo que vai servir para esses meninos
para toda a vida. Muito obrigado!

É importante reforçar que os resultados satisfatórios do programa no


estado do Ceará encontram sustentação nestes dois elementos: com-
prometimento de jovens e profissionais de educação e interação a dis-
tância.
A Coordenadoria de Protagonismo Estudantil da Seduc é o interlo-
cutor do Instituto Braudel com as Credes. Nas Credes encontramos im-
portante apoio nos superintendes escolares, os quais, ao visitarem as
escolas, ajudam a orientar diretores e professores no desenvolvimento
do programa.
A partir de 2014, adotamos a estratégia de realizar as formações nas
próprias escolas, conduzidas por multiplicadores veteranos e/ou profes-
sores da própria região. Formou-se uma rede de colaboração envolven-
do alunos, professores e diretores, os quais, movidos pelo comprometi-
mento com a educação, mobilizam-se para replicar o programa Círculos
de Leitura em outras escolas. Enquanto os alunos e os professores se
dispõem voluntariamente a ir para outros colégios (em alguns casos,
em outras cidades), além de conduzir e orientar os grupos em suas es-
colas, os diretores facilitam os processos para que multiplicadores e
professores possam sair da escola. As Credes auxiliam na logística.
Nesse processo, temos encontrado professores, diretores e técnicos
entusiasmados e altamente comprometidos, que se dispõem a expe-
rimentar fazer parte de uma rede de colaboração entre as escolas. Os
jovens multiplicadores, por sua vez, criaram um forte vínculo, e muitos

73
deles, após ingressarem na universidade, continuam participando na li-
nha de frente, levando os Círculos para novas escolas a fim de replicar o
programa.
A diretora Cyra Arraes, da EEEP Virgílio Távora, em uma formação re-
gional realizada no Crato, destacou que achava muito importante poder
fortalecer ainda mais os laços de toda a equipe escolar com o programa:

Os Círculos nos ajudam muito. Com ele, os jovens adqui-


rem mais responsabilidade: aprendem a se responsabilizar
por si e pelo outro. E é muito bom que a gente possa ter
cada vez mais professores preparados para levar essa meto-
dologia para outras escolas, para que elas possam se benefi-
ciar como nós nos beneficiamos lá na Vírgílio Távora. E para
nós é um orgulho muito grande ver jovens como o Hiago e
o Aldênio, que além de terem ingressado na universidade
com destaque, estão aqui hoje como formadores de outros
jovens e professores.

A interação a distância é outro eixo de sustentação do programa Cír-


culos de Leitura. Para o acompanhamento a distância, além da utilização
dos diários de bordo, em plataforma virtual, como estratégia de aproxi-
mação e mobilização, têm sido utilizadas redes sociais como Facebook e
aplicativos como WhatsApp.
Os Círculos de Leitura têm uma página no Facebook, da qual fazem
parte alunos, professores e diretores de escola. Nesse espaço, partici-
pantes de todas as regiões do estado interagem e compartilham textos,
reflexões sobre as obras, fotos dos encontros e eventos. Além disso, boa
parte das escolas já possui grupos dos Círculos de Leitura no aplicativo
WhatsApp. Com isso é possível fortalecer vínculos, motivando os jovens
a utlizarem as tecnologias de informação de forma produtiva. A maior
parte dos grupos é mediada por jovens multiplicadores veteranos, sob
orientação da equipe do Instituto Braudel.

Os jovens do Ceará

Os jovens do Ceará têm vencido barreiras econômicas e geográfi-


cas e estão escrevendo uma página nova na história desse estado que
sofreu tanto com a seca nas décadas passadas. Prova disso é o grande
número de estudantes oriundos da escola pública que têm ingressado
em universidades do Ceará e de estados vizinhos como Piauí e Pernam-
buco, bem como em universidades concorridas como PUC e Mackenzie
em São Paulo, conseguindo bolsa por meio do Programa Universidade
para Todos (Prouni). Esse é o caso dos jovens Lindemberg Vidal, ex-aluno
e ex-multiplicador da EEEP Luiza Teodoro Vieira, de Pacajus, e de Aline

74
Reinaldo Jacó, ex-multiplicadora da EEEP Amélia Figueiredo de Lavor, de
Iguatu. Hoje, Lindemberg cursa Engenharia no Mackenzie, em São Paulo,
e Aline é aluna do curso de Direito da PUC-SP. O Ceará é hoje o estado
que consegue colocar mais jovens vindos de escolas públicas direta-
mente em universidades públicas.
Aline Jacó conta um pouco dessa experiência:

Conheci o programa Círculos de Leitura em 2012, quando


estava no 2º ano do curso técnico de informática da EEEP
Amélia Figueiredo de Lavor – Iguatu/CE.
Primeiro participei de uma formação intensiva, e aqueles
cinco dias representaram um divisor de águas em minha his-
tória: eu era uma aluna inteligente, mas minhas competências
socioemocionais precisavam desenvolver-se, principalmente
no que se referia à relação com os outros. Na formação, a
cada leitura, descobria um mundo novo. Identifiquei-me com
Fernão e, ao final da leitura, queria ser como ele, multiplicar o
que aprendi. A partir de então fui tornando-me uma pessoa
mais empática e passei a valorizar o trabalho e o conheci-
mento construído em grupo.
No âmbito escolar, o programa também proporcionou
um avanço significativo. Minha escrita melhorou muito. Com
isso, já no 2º ano do Ensino Médio, graças à alta nota na re-
dação, fui aprovada para o curso de Ciências da Computação
na Universidade Federal da Paraíba, e antes de concluir o 3º
ano obtive a 18ª colocação no vestibular para o curso de Di-
reito na Universidade Regional do Cariri.
Minha vivência nos Círculos de Leitura foi fundamen-
tal, pois me proporcionou também o amadurecimento
e a coragem suficientes para adiantar o Ensino Médio e
ir para a faculdade. Fui para a universidade e continuei
atuando como multiplicadora voluntária em três locais:
em minha escola, em uma escola infantil de minha cida-
de e em um centro de detenção de menores. Essa última
experiência foi enriquecedora, pois com ela aprendi que,
realmente, “as paixões alegres são mais fortes que as tris-
tes” e que o prazer de ler em grupo é maior que os erros
do passado.
No final de 2013, prestei Enem, conseguindo obter 900 pon-
tos na redação, o que me proporcionou o 3º lugar em Direito
na Universidade Federal do Ceará e o 4º lugar em Direito na
PUC de São Paulo, com bolsa integral pelo Prouni.
Fui convidada para vir morar em São Paulo, estudar na
PUC e atuar como educadora dos Círculos de Leitura. Aceitei

75
Formação de multiplicadores na casa sede dos Círculos de Leitura. Ao centro, Catalina Pagés.

prontamente o convite feito pela Cidinha Lamas e validado


por Norman e Catalina, devido ao amor que tenho pelo
programa Círculos de Leitura.
Hoje, passados alguns anos desde a minha saída do Ceará,
tenho total convicção de que já não consigo definir os Círculos
de Leitura sem falar de mim mesma, pois foi lendo em grupo
as obras indicadas pelos Círculos que descobri o verdadeiro
sentido de minha vida.

É gratificante e emocionante ver quanto os Círculos marcaram (e mar-


cam) a vida desses jovens do Ceará. Pessoas como Aline nos dão a certe-
za de que, para além de estarmos ajudando jovens inteligentes a voarem
alto, também estamos formando pessoas generosas, com um forte sen-
so de solidariedade e comprometimento social, e, sem dúvida, é disso
que mais carecemos.
E nosso encontro com eles não ocorre apenas nas regiões centrais: va-
mos até as cidades mais afastadas, como Reriutaba e Tabuleiro do Norte,
onde o acesso é difícil, mas vale a pena! Nessas andanças, descobrimos
jovens resilientes e generosos, que encontram nos Círculos de Leitura
apoio para desenvolverem seu potencial. Como coordenadora peda-
gógica do programa e como educadora, fico emocionada ao receber as
mensagens via WhatsApp, Facebook, e-mail de Gaivotas contando que
ingressaram na universidade e que querem continuar atuando nos Círcu-
los voluntariamente para ajudar outros jovens a realizarem seus sonhos.

76
A maioria desses alunos é de origem humilde. Vários deles são nasci-
dos na zona rural e serão os primeiros em suas famílias a completar o En-
sino Médio e Superior. É o caso do jovem Manoel Vieira do Nascimento,
11º filho em uma família de lavradores e hoje aluno do curso de Medici-
na na Universidade Federal do Ceará. (Manoel ainda participa de forma-
ções de multiplicadores e professores como voluntário sempre que tem
disponibilidade.)

Quando cursava o 1° ano do Ensino Médio, em 2012, na


escola profissional Monsenhor Expedito da Silveira, em Ca-
mocim, fui convidado para participar da formação de um
programa relacionado à leitura. Bastaram apenas pequenas
doses de leitura dos clássicos para ser tomado por encanta-
mento, curiosidade e sede de mais conhecimento.
Era como um momento de epifania! Algo mágico pare-
cia acontecer: como era possível que jovens que até então
não se conheciam conseguissem, com tamanha cumplici-
dade, trocar ideias, aprendizados, vivências e conhecimen-
tos? Talvez a resposta esteja nos clássicos, e só lendo-os
para entender!
Nesse encontro, discutimos sobre muitas coisas, e ao
voltar para minha escola tinha a tarefa de compartilhá-las.
Formamos nosso primeiro grupo dos Círculos de Leitura e,
aos poucos, esses jovens foram contagiando outros e novos
Círculos foram multiplicados.
Hoje, sinto-me feliz de ter feito e ainda fazer parte des-
se programa que tanto contribui com a minha formação,
sobretudo humana. O programa despertou em mim o de-
sejo de alçar voos aparentemente impossíveis, fazendo com
que eu acreditasse nas minhas capacidades e na superação
dos meus limites. Cada personagem das histórias que tive
a oportunidade de conhecer somou para que hoje eu seja
uma pessoa mais generosa e para que, apesar dos obstácu-
los encontrados na trajetória, tenha resiliência e força para
transpô-los.
O efeito de uma obra trabalhada em conjunto e de ideias
criadas no coletivo é inexplicável, porque no grupo tudo se
intensifica. Apesar de sermos tão jovens, a leitura nos faz
amadurecer e passar a ser protagonista e autor de nossa
própria história. Não se trata apenas de um amadurecimen-
to intelectual, mas um amadurecimento enquanto pessoa.
É por essa razão e por acreditar que o programa Círculos
de Leitura possa transformar a vida de jovens da mesma for-
ma que transformou a minha que hoje, cursando a faculda-

77
de de Medicina na Universidade Federal do Ceará, continuo
voluntariamente à disposição do programa, como multipli-
cador. Sempre que participo de alguma formação é motivo
de felicidade e encantamento.
Dedico a conquista de chegar ao curso de Medicina ao
Círculos de Leitura e a todos que compõem esse grupo
coeso, que está causando uma verdadeira revolução no Bra-
sil, despertando e multiplicando o amor ao conhecimento.
E como dizem nossos amigos poetas, a palavra mágica
para definir o meu sentimento pelo programa, “dorme na
sombra de um livro raro e não sei como desencantá-la”. Só
sei que “mesmo um dia estando mudo, eu farei versos como
quem chora”. Pois “uma parte de mim é todo mundo” e “ler é
viver a vida que os outros sonharam”. “Sou parte do gênero
Humano”!

Não é possível mensurar a satisfação de acompanhar um trabalho


que impacta e cria vínculos tão fortes com os jovens.
Lívia Wana Duarte, ex-aluna da EEEP Adolfo Ferreira, de Redenção, é
uma das formadoras voluntárias do programa. Wana saía de casa toda
manhã às 4h30, na traseira de um caminhão pau de arara, para ir à es-
cola. Ela, assim como vários de nossos veteranos, servem de inspiração
para tantos outros jovens que acalentam o sonho de superar as dificul-
dades e chegar ao Ensino Superior.
Wana faz o curso de Engenharia de Energias Renováveis na Univer-

Manoel Vieira, ex-multiplicador da EEEP Monsenhor Expedito da S. de Sousa, com


seus pais em cerimônica na Faculdade de Medicina da UFC (Campus Sobral).
78
sidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
Sempre que há um recesso, Wana participa das formações regionais dos
Círculos de Leitura, viajando para outras cidades do estado, treinando
novos estudantes para serem multiplicadores. Ela vai a lugares isolados
e conhece estudantes que, como ela, andam de pau de arara para poder
estudar. Wana tenta compartilhar com eles, além do amor à leitura e aos
clássicos, ideias de esperança, persistência e autoconfiança, necessárias
para ir mais longe e, ou seja, até entrarem em uma universidade.

Faz algum tempo que ouvi pela primeira vez a história


de uma gaivota que acreditava existir na vida algo mais que
comer, lutar ou ter poder no bando. Existia algo chamado
perfeição, e é isso que buscamos todos os dias. A questão
não é ser perfeito em tudo, mas é algo que nos torna pessoas
melhores.
Minha história nos Círculos de Leitura começa justamente
com essa gaivota, nosso famoso Fernão. Com ele foi possível
aprender a nunca desistir dos nossos sonhos e a importân-
cia do trabalho em equipe e, principalmente, a trabalhar no
amor. E é esse amor que me faz continuar nos Círculos, mes-
mo estando na faculdade, esse amor que faz com que cada
obra seja inspiradora, esse amor que me ajudou a construir
tantas relações de amizade e que me faz querer ajudar vo-
luntariamente para que outros jovens possam participar do
programa Círculos de Leitura.
Participei da primeira formação por ser apaixonada pela
leitura e continuei ao descobrir que o programa só tinha a
somar na minha formação. Com o programa, perdi grande
parte da minha timidez, melhorando muito minha relação
com os outros. Percebi essa mudança durante as formações
regionais das quais tenho participado, pois preciso mostrar
minha capacidade como multiplicadora, ajudando outros
jovens. Sempre costumo comparar minha nota de redação
do Enem antes dos Círculos e depois dos Círculos: é possí-
vel observar uma diferença de cerca de 300 pontos, o que
me mostrou que, além da mudança como pessoa, houve a
mudança como aluna, tendo um efeito decisivo para minha
entrada na universidade.
Cada obra me leva a novos pensamentos e ao amadure-
cimento de ideias antigas. Com os Círculos aprendi a arte de
cativar e a cada formação me sinto mais cativada por cada
um que faz parte desse programa. Aprendi a sentir o que o
outro sente, a descobrir que nem tudo é como queremos e
que muitas vezes teremos que fazer o que é necessário, por

79
Grupos dos Círculos de Leitura na EEEP Adolfo Ferreira de Sousa.

mais que pareça absurdo, e que a cada encontro ficam as


lembranças, algo que também é muito precioso e que, às ve-
zes, valem mais que toda uma vida.
O programa Círculos de Leitura me faz uma pessoa me-
lhor, pois aprendo sempre a dar um segundo olhar para as
coisas, aprendo a respeitar as diferentes opiniões, aprendo
a ser mais responsável, a conhecer os meus próprios senti-
mentos e a perceber que é no grupo que tudo se intensifica;
por isso esse desejo enorme de estar perto, ajudando e mos-
trando para outros jovens que é possível mudar.

Saindo da região litorânea e indo para o sertão do Cariri, região em-


blemática e muita rica culturalmente no estado do Ceará, encontramos
José Hiago, ex-aluno da EEEP Virgílio Távora, em Crato, atualmente cur-
sando Enfermagem na Universidade Regional do Cariri e bolsista CNPq.
Hiago é também formador voluntário dos Círculos de Leitura.

Meu nome é Hiago Feitosa, participo do programa Círcu-


los de Leitura desde o ano 2012, quando foi implantado nas
escolas profissionalizantes aqui do Ceará. No primeiro con-
tato com o programa, foi amor à primeira vista, fiquei encan-
tado com a metodologia, com as obras trabalhadas e com a
equipe do programa.
Com pouco tempo nos Círculos, eu já percebia algumas

80
mudanças em mim, como: capacidade de interpretar melhor
os textos que lia, já que nos Círculos sempre somos levados a
refletir profundamente sobre as obras; passei a escutar mais
o meu próximo, a me colocar no lugar do outro; a acreditar
sempre nos meus sonhos, na força do trabalho em equipe; a
ver o mundo com outros olhos. Tudo isso são temas aborda-
dos nos textos, temas que dialogam com nossa vida.
Quando entrei no programa, eu também era muito tí-
mido e não tinha confiança em mim mesmo. Depois de um
tempo, os Círculos me ajudaram a superar isso e hoje falo
sem medo em público, apresento seminários na faculdade
com bastante segurança e me relaciono bem com todos.
Depois de um ano participando dos Círculos, no 2º ano
do Ensino Médio, fiz o Enem e ingressei na Universidade Re-
gional do Cariri, no curso de Enfermagem. O programa foi
peça-chave para meu sucesso nas provas.
Mesmo na universidade, continuo no programa porque
vejo que, a partir dele, posso ajudar o meu próximo, aju-
dando-os a acreditarem em si mesmos, a nunca desistirem
dos seus sonhos, a verem o mundo e as pessoas com outros
olhos, assim como os personagens das obras que lemos.
Sempre que possível, participo de formações de pro-
fessores e multiplicadores aqui no estado do Ceará e já fui
também realizar formações na Bahia. Só tenho recordações
boas desses encontros. Ver jovens que assim como eu fazem

Diretora Cyra (na frente) com multiplicadores. À esquerda, o veterano Hiago, e à direita, a professora parceira Simone e o
formador Aldênio, na EEEP Virgílio Távora.
81
parte dos Círculos de Leitura e ver que o programa mudou
também a vida deles para melhor não tem preço. Eu lembro
que uma garota durante essas formações me disse: “Hiago,
dá um abraço bem forte na equipe dos Círculos de Leitura e
diz a todos que muito obrigado por tudo que eles fazem por
nós, mesmo distantes”.

Na região de Crateús, as Gaivotas dos Círculos de Leitura também têm


crescido muito desde 2012. Antonio Vanutti Galvão, ex-aluno da EEEP
Manoel Mano, é acadêmico do curso de Engenharia Civil da Universida-
de Federal do Ceará e também faz parte da equipe de veteranos que
continua realizando formações de multiplicadores e professores sempre
que tem oportunidade.

Sempre digo que quem participa dos Círculos tem uma


maravilhosa oportunidade de crescer como ser humano.
Digo isso por experiência própria e por observar a tamanha
mudança que o programa causa nos jovens que participam.
Desde que me tornei multiplicador do programa, senti o pra-
zer e a realização de estar com meus colegas, lendo obras,
trazendo diversas lições para minha vida, desenvolvendo ha-
bilidades cognitivas, mas também emocionais, protagonis-
mo juvenil e, acima de tudo, me tornando uma pessoa mais
humana, que se preocupa com o próximo, que constrói seu
caráter e que sabe aonde quer chegar.
Agradeço por todos os momentos que já vivi com Gai-
votas encantadoras (como chamamos os participantes),
debatendo ideias e construindo outras novas. O programa
Círculos de Leitura tem um poder de cativar as pessoas ao
seu redor logo na primeira obra lida. Não tem como explicar
o porquê e como isso acontece, só se sabe que a partir da-
quele momento sentiremos necessidade de participar dos
encontros todas as semanas.
Fico pensando o quanto seria bom se todos tivessem a
oportunidade de participar dos Círculos, pois assim como
ele me ajuda, iria também ajudar outras pessoas a se encon-
trarem em seus pensamentos e devaneios, a se encontrarem
na sociedade em que vivemos e a se tornarem pessoas me-
lhores, com empatia, solidariedade e generosidade.

A região do sertão central, mais especificamente a partir da cida-


de de Iguatu, foi a responsável pelo primeiro grande movimento de
expansão do Círculos de Leitura. Moisés Sebastião Alves, ex-aluno da
EEEP Amélia Figueiredo Lavor, fez parte dessa história. Atualmente

82
Grupos dos Círculos de Leitura na EEEP Dom Walfrido Teixeira Vieira.

acadêmico do curso de Direito na Universidade Regional do Cariri,


continua participando de formações regionais de multiplicadores e
professores.

Quando ingressei na escola de tempo integral, tive mui-


to medo de não ser capaz de seguir em frente, e o período
que seria de adaptações parecia que nunca iria acabar. A
partir da metade do ano, ingressei no programa Círculos de
Leitura, e então passei a me dedicar mais à leitura.
No final do ano fui selecionado para ir à formação esta-
dual, uma experiência fantástica! Conheci vários jovens e
aprendi muito sobre generosidade, compreensão e a im-
portância dos bons encontros.
Sem dúvida nenhuma, os Círculos de Leitura me ajuda-
ram a superar meus medos. Com o programa, eu e muitos
outros alunos da escola desenvolvemos nossa capacidade
de interpretação de textos, resolução de problemas, e nossas
produções textuais evoluíram muito, elevando ainda mais as
nossas notas no Enem.
Em 2014, tornei-me multiplicador de um grupo na es-
cola. Com isso, pude desenvolver, além das habilidades de
comunicação oral e escrita, meu protagonismo. Atualmen-
te, participo também de formações em outros colégios da
cidade e do estado, repassando para outros jovens tudo o

83
que tenho aprendido, e essa experiência me deixa muito
realizado. Já formei muitos grupos, tive encontros maravi-
lhosos com outros jovens.
Conclui o Ensino Médio, mais um ciclo de minha vida,
mas não quis perder esse tesouro que a vida me deu. Levo
comigo valores como compreensão, generosidade, res-
ponsabilidade, amor e vontade de sempre ir mais longe; e
mesmo na faculdade, continuo repassando tudo isso para
outros jovens através dos Círculos de Leitura. Pretendo
continuar atuando como formador e levando o amor pela
leitura. Assim, acredito que estou dando a minha contribui-
ção para melhorar o mundo em que vivemos.

Como coordenadora pedagógica do programa e, antes de


tudo, como educadora, tenho encontrado cada dia mais moti-
vação no trabalho com o Ceará, um estado que vem investindo
massivamente na educação pública, pioneiro em levar para o
currículo escolar atividades voltadas para o desenvolvimento
de competências socioemocionais. Aprendo muito trabalhan-
do em parceria com professores, gestores e jovens veteranos,
formando equipes e construindo toda a logística que lhes pos-
sibilita cruzar o estado para abrir o trabalho em novas escolas.
Um grande sonho é levar para outros estados esse bem-
sucedido processo de investimento no protagonismo juvenil
que conseguimos desenvolver no estado do Ceará, o que en-
volve tarefas e metas bastante desafiadoras.

Maria Aparecida Lamas, coordenadora pedagógica do


Instituto Fernand Braudel.

84
2.4 O programa Círculos de Leitura cruza o
Atlântico e chega a Roma

É
uma honra, uma emoção e uma alegria enorme receber este convite e ter a
oportunidade de falar com vocês nesta cidade maravilhosa.
Agradeço imensamente à professora Lucia de Anna, à doutora Marta San-
chez, à Universidade de Roma e à presença de todos.
Do mesmo modo, sou grata a muitas pessoas do Brasil e penso que aqui e ali é
sempre o mesmo ânimo e objetivo que nos sustenta: a vontade de viver em um mundo
mais fraterno na diversidade, mais inclusivo e amoroso.
Refletir sobre a possibilidade desse nosso encontro, focado na inclusão social, me
fez lembrar do conto O túnel, de Máximo Gorki (1868-1936), que integra o repertório
dos Círculos de Leitura e que os jovens costumam adorar. Vou relatar um pequeno tre-
cho, para depois trabalharmos o conto em sua totalidade. O objetivo é apresentar al-
gumas de nossas preciosas ferramentas básicas: livros, associação de ideias e contação
de histórias. Era uma vez... 
Homens de diversas procedências cavavam o túnel de Simplon, que liga a Áustria à
Itália, e um deles narra, depois de se passarem muitos anos:
Nós e aqueles que vinham do outro lado nos encon­tramos treze semanas depois da
morte do meu pai... Foi um dia de loucura, senhor! Oh, quando ouvimos ali, debaixo da
terra, na escuridão, o ruído dos outros trabalhadores o rumor dos que vinham ao nos-
so encontro debaixo da terra – procure compreender senhor, debaixo do enorme peso
da terra que poderia, se quisesse, esmagar-nos a nós, pequeninos, a todos duma vez!
Por muitos dias, nós ouvimos aqueles ruídos, tão sonoros, a cada dia eles ficavam mais
claros, mais nítidos, e nós éramos dominados pela loucura jubilosa dos vencedores.
Trabalhávamos como espíritos malignos, como desencarnados, sem sentir fadiga, sem
observar instruções. Era bom, bom como uma dança num dia de sol, palavra de hon-
ra! E todos nós ficamos tão amáveis e tão bons, como se fôssemos crianças. Ah, se o
senhor soubesse como é forte, como é insuportavelmente apaixonado o anseio de
encontrar um ser humano nas trevas, debaixo da terra, no interior da qual a gente
penetrou à força, como uma toupeira, durante longos meses! 

Receber o convite foi como ouvir o ruído do outro lado e sentir que o trabalho rea-
lizado do lado de lá, no Brasil, tão singelamente, é escutado, encontra ressonância e se
“completa”, por assim dizer, no trabalho realizado do lado de cá, por vocês, para minha
imensa alegria e de todos os companheiros de labuta.
Em outros sentidos ainda esse conto nos descreve. Vivemos hoje quase sufocados,
soterrados por montanhas de informações irrelevantes, incitações ao consumo, convi-
tes ao imediatismo, poluição da terra, ar e água, a tal ponto que, no limite, a própria vida
na Terra está ameaçada. Escasseiam as possibilidades de encontros significativos e tão
Conferência realizada na improváveis quanto este que experimentamos agora.
Universidade de Roma pela No encontro de hoje, pretendo contar como foram cavados túneis, ou foram cons-
psicanalista Celina Ramos.

85
truídas pontes que nos trouxeram até aqui. Com o auxílio de todos se faça ouvir. É comum que certas passagens sejam li-
Gorki, pretendo descrever a construção de alguns túneis ou das muitas e muitas vezes, porque são belas, porque alguém
pontes, que visam diminuir distâncias, proporcionar encontros. deseja comentar, ou alguém não entendeu, ou alguém queria
Do lado de lá, temos o programa Círculos de Leitura, como ouvir a passagem na voz de um outro, ou porque o multipli-
túnel ou ponte, que une educadores e jovens de diversas regiões. cador pergunta: “O que vocês acham disso?”, ou “Como é isso
É um túnel construído ou pavimentado pela leitura coletiva, em para vocês?”.
voz alta, de textos contemporâneos e clássicos. Essas pausas, repetições e perguntas, além do texto em si,
Falarei mais tarde do  túnel ou ponte que liga o Brasil a causam, de início, certo estranhamento. Não estamos acostu-
Roma. Penso eu que ele resulta de uma visão de mundo pa- mados a ser interpelados no mundo contemporâneo. Ninguém
recida, do pertencimento a um mesmo eixo epistemológico quer saber nossa opinião; ao contrário, querem impingir as de
e da comunhão de um mesmo objetivo: a construção de um outrem, e, pior, como se fossem nossas. Todos querem rapidez,
conhecimento prudente para uma vida decente. “liquidez”, mas o ritmo das reuniões dos Círculos é lento. Os
O programa Círculos de Leitura é uma das ações desenvol- livros e as novas informações são assimilados muito vagarosa-
vidas pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, mente. Trata-se de um tipo de “slow food”.
tendo à frente a figura encantada e encantadora de Catalina O autor do livro  Sociedade do cansaço, Byung-Chul Han,
Pagés, que, em determinado momento, resolveu que levaria a relembra o que recomendava Nietzsche: devemos aprender a
leitura em grupo de obras clássicas e contemporâneas da lite- ler, devemos aprender a pensar, devemos aprender a falar e a
ratura para jovens de escolas públicas da periferia de São Paulo. escrever. Aprender a ver significa “habituar o olho ao descan-
O encantamento de Catalina pela literatura é anterior à cria- so, à paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si, isto é, capacitar
ção dos Círculos. A convicção de que a leitura é um poderoso o olho a uma atenção profunda e contemplativa, para formar
fortificante da potência criativa da alma é, para ela, muito an- o caráter do espírito, o que significa ser capaz de oferecer re-
tiga. Mesmo antes dos Círculos, ela promovia leituras coletivas sistência a um estímulo”.
de O banquete, de Platão, em um manicômio, espalhando, por A leitura assim concebida é um tipo de resistência. Apren-
contaminação e contágio, sementes de Eros, de amor filosófico, der a escutar e esperar seu tempo para falar é também uma
entre os presos e os funcionários que compunham, por sua livre inestimável arma para a vida. Ser capaz de articular seus
vontade, os grupos. Um deles, que certa vez estava encarre- pensamentos e escrevê-los em um texto com as próprias im-
gado de passar o cadeado na porta da sala de reunião, disse: pressões é fundamental, ajuda a memorizar; e é assim que se
“É a primeira vez que tranco a mim mesmo, e por gosto.” costumam finalizar muitos dos encontros de leitura, com um
Existe um belíssimo filme italiano, Cesare deve morire, di- texto escrito pelos participantes.
rigido pelos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, vencedor do Fes- O ritmo lento, os comentários de todos e as repetições per-
tival de Berlim 2012, que relata uma experiência semelhan- mitem que o estranho vá sendo traduzido, torne-se familiar,
te. No filme, a peça teatral Júlio César, de William Shakespeare, seja conhecido de cor, de coração. E esse tema do estranho é
é encenada por um grupo de prisioneiros da prisão de segu- caro a todos nós que trabalhamos com inclusão.
rança máxima Rebibbia, em Roma. Ao mesmo tempo que é Caetano Veloso trabalha essa questão na música “Sampa”
um registro documental, o filme trabalha a ficção por trás da quando relata suas impressões ao sair da sua bela cidade e
trama original. Toda a equipe cinematográfica e teatral inves- chegar à enorme, frenética e esfumaçada cidade de São Paulo.
tiu pesado no poder transformador da arte. Como a equipe Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto,

dos Círculos de Leitura faz no Brasil. chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto o mau gosto.
É que Narciso acha feio o que não é espelho,
O primeiro grupo dos Círculos de Leitura aconteceu em Dia-
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho,
dema, que então apresentava os maiores índices de violência
[...] quando não somos mutantes.
do Brasil e um dos maiores do mundo. 
Um encontro dos Círculos de Leitura reúne entre 12 e 13 Essa “mutação”, para ele, se deu mediante a tradução de
participantes. Nos encontros, todos têm em mãos o texto a Rita Lee, que lhe “explica” a cidade, fazendo com que a veja com
ser lido. É indispensável que se leia em voz alta, que a voz de novos olhos e que passe a senti-la como um local de liberdade

86
Quando contava (aos amigos) sobre livros que tinha lido,
possível, nem tão feio assim. Toda essa assimilação do estranho encontrava-me mais uma vez contando-lhes de forma
aumenta a amplitude de seu olhar e de sua compreensão, e diferente, distorcendo, agregando ao relato algo tirado
Caetano se torna um “mutante”, cidadão do mundo. É Nietzsche, de minha própria experiência. Isto ocorria porque, para
outra vez, quem nos dá uma descrição e uma receita preciosa mim, literatura e vida haviam se fundido em uma coisa

de como atravessar estranhamentos: só; um livro era o mesmo tipo de manifestação de vida

É preciso aprender a amar. – Eis o que nos acontece em que um homem; um livro era também uma realidade vi-

música: é preciso aprender a ouvir em geral um tema, vente e falante, e era menos um objeto que todos os ou-

um motivo, é preciso percebê-lo, distingui-lo, isolá-lo e tros objetos criados, ou por se criar, pelo homem. (GORKI,

limitá-lo em uma vida própria; pois é preciso um esforço 1998, p. 40)

e boa vontade para suportá-lo, malgrado sua estranhe-


za, para ter paciência com seu aspecto e sua expressão, Os jovens também se identificam na leitura, fundem li-
caridade pela sua estranheza; chega enfim o momento teratura e vida e encontram seus vizinhos e amores em Ve-
em que nos acostumamos com ele, quando esperamos, neza, Grécia, África, no passado, embora nenhum deles ja-
pressentimos que nos faria falta se não existisse; e agora mais tenha saído de seu bairro nem usado uma máquina do
continua exercendo sua opressão e seu encanto e tor- tempo.
namo-nos seus humildes e maravilhados apaixonados,
Atenas e Diadema, por exemplo, acabam por se tornar
que nada de melhor desejam do mundo que esse  tema
muito próximas, em uma operação semelhante à do padei-
e ainda esse motivo. Mas isso não acontece apenas com
a música; é da mesma forma que aprendemos a amar ro que, quando sova, alisa e dobra a massa, conjuga intima-
as coisas que amamos. Sempre, finalmente chega a re- mente os pontos que estavam mais distantes (na metáfora
compensa de nossa boa vontade, de nossa paciência, de do prêmio Nobel de Química de 1977,  Ilya Prigogine). Do-
nossa equidade, nossa suavidade relativamente ao estra- bram-se, assim, os lençóis do tempo e do espaço. 
nho, pois este despe lentamente seu véu e se apresenta Os grupos pequenos possibilitam que se coteje a histó-
como nova, indizível beleza. Da mesma forma aquele
ria lida com acontecimentos da vida de cada um. Os ges-
que ama a si mesmo aprendeu-o por esta via: não há
tos, as ações e as paixões dos personagens são discutidos
outra. Também no amor é preciso aprender. (NIETZSCHE,
1981, p. 214) apaixonadamente; eles acabam tornando-se muito íntimos.
(Ulisses fez isso: a hospitalidade de Telêmaco, a argumenta-
Eis o caminho da familiarização, assim explicado por Gorki: ção de um dos participantes do banquete, tudo são referên-
Meu avô era áspero e avarento, porém eu nunca o tinha cias corriqueiras para eles.)
visto e compreendido tão bem como o vi e compreendi Isso garante que os jovens desenvolvam uma memória
depois de ler a novela de Balzac Eugênia Grandet. O velho
viva e ágil, que é sempre convocada e está a serviço deles.
Grandet, o pai de Eugênia, também é um avarento áspero
Acontecem situações inusitadas na leitura, com pontos
e em geral muito parecido com o meu avô,  salvo que é
menos inteligente e menos interessante. Comparado com de vista improváveis. Até o vilão Iago, que envenena a alma
o francês, meu velho avô russo, de quem eu não gosta- de Otelo, encontra provisórios advogados de defesa; mas o
va, decididamente ganhava em estatura. O livro não me importante é que os jovens aprendem que nos Círculos de
induziu a mudar minha atitude sobre ele, mas foi para Leitura não há opinião certa ou errada, mas, sim, visões di-
mim um grande descobrimento comprovar que era capaz ferentes, que sempre merecem respeito.
de revelar-me algo que eu não havia percebido antes so-
A generosidade da juventude permite que eles se entu-
bre alguém a quem conhecia. (GORKI, 1998, p. 30)
siasmem com os belos gestos de palavras narradas.
  Umberto Eco, em O nome da Rosa, usa diversas vezes a Isso confirma as intuições de Simone Weil, filósofa fran-
expressão “De te fabula narratur”, que significa: “A anedo- cesa que desejava ler os clássicos e as tragédias gregas para
ta fala de ti, só que com outro nome (Sátiras, Horácio)”. Fre- os operários de uma fábrica.
quentemente, é essa a impressão que nossos jovens têm, eles O método dos Círculos de Leitura prevê que se  leia
também: ao lerem um livro, descobrem que o livro fala deles; também com os ouvidos. Trata-se, sempre, de privilegiar
encontram parentes, conhecidos e a si mesmos nas histórias. o processo em vez de o sistema, valorizar as associações,
Mas deixemos Gorki prosseguir: as metáforas intuitivas que ocorrem, em uma relação com

87
a linguagem em que se busca a sua pulsação original. Os deza na leitura, incompatível talvez com as duras exigências
livros tornam-se, assim, algo além de um campo visual: do mundo externo.  Daiane, uma das meninas, respondeu:
o território do canto, procura-se “dançar” com o autor. “Com isso, o senhor não se preocupe; em minha casa a vida
Busca-se, em grupo, a sintonia com ele, com quem pronun- sempre foi muito dura. Soubemos o que é passar fome; pos-
ciou a frase, com o escritor, com seus ritmos, dicção, tempo, so dizer para o senhor que nada se compara com a fome da
entonação, timbre, pulsações e cintilações da palavra.  São alma, e dessa, estamos cuidando aqui”.
livros para bailar. Outra visita importante que recebemos foi a de uma tur-
“A leitura compartilhada desperta tanta energia que o ma do mestrado da Universidade de Roma, por volta de
Universo dança, e juntos dançamos ao som das palavras do 2007, quando vários grupos dos Círculos foram formados; to-
seu uni-verso”, afirma Catalina.  dos leram Guimarães Rosa, um dos melhores e mais comple-
Como campo de forças, as palavras esboçam gestos. xos escritores brasileiros.
Trata-se de reverenciar e revivenciar esses gestos. O escritor Certas atividades, como a exibição de filmes, idas a mu-
uruguaio Eduardo Galeano, por exemplo, escreveu um livro seus, a concertos ou peças de teatro, congregam muitos gru-
intitulado O livro dos abraços, o que, a depender da maneira pos pequenos em um grande. Além disso, naturalmente, os
que for lido, pode ser encarado como apenas um nome, ou o jovens se encontram fora das atividades dos Círculos.
aviso de que um imenso abraço de ternura envolverá a todos Esse método de trabalho garante algumas coisas interes-
nós, leitores acarinhados. santes: primeiro, o fato de não ter centro, de a discussão ser
Do repertório fazem parte autores como Homero, coletiva. Depois, a apropriação das histórias garante que os
Shakespeare, Sófocles, Platão, Gabriel García Márquez, jovens admirem profundamente os heróis, mas sem sentir o
Neruda, Saramago, Rosa, Drummond, Machado de Assis e efeito paralisante dos ídolos e modelos. É visível que reveren-
tantos outros. O clássico também mantém seu apelo à reno- ciam alguns protagonistas, mas também é evidente o orgu-
vação e ao pensamento, às emoções ao longo dos anos.    E lho que sentem ao falar das próprias tarefas e das práticas a
concordamos totalmente com as definições de Ítalo Calvino: que se dedicam.
“Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem É muito importante que os jovens e todos nós reconhe-
a dizer”; ou “Os clássicos são livros que quanto mais se julga çamos nossa própria nobreza, proclamando igualmente a no-
conhecê-los por ouvir falar, mais se descobrem como novos, breza alheia. Trata-se, afinal, de um exercício pleno de Anar-
inesperados e inéditos”. quia coroada, em que ou não subsiste um único centro, ou
Como leem bem, os jovens são excelentes contadores de sabe-se que ele se encontra em todos os lugares. Que assim
história, função que exercem com graça e habilidade, tam- a nobreza se espalhe.
bém em conjunto. Isso funciona mais como quem joga, di- O clima dos grupos é de alegria e potência. Os jovens são
gamos, futebol ou quem toca um improviso de jazz do que amigos, e ainda está por ser estudado o quanto a Amizade
como um jogral ensaiado. Os contos “partidas” são improvisa- pode estimular a faculdade do pensamento. A esse respei-
dos, imprevisíveis (quem passa a bola, ou a fala, para quem?), to, Erasmo de Rotterdam dizia que nem o parentesco nem a
e os que se dispõem a contar costumam jogar bem em todas consanguinidade unem as almas com laços de amizade tão
as posições. Essa habilidade técnica exige um treinamento e íntimos e sólidos como os produzidos pela comunhão dos
uma intimidade com a bola (e a bola da vez são os livros). estudos humanísticos.
Os jovens dos Círculos têm interlocutores de peso. Vou ci- É importante frisar que os grupos oferecem a oportunida-
tar apenas dois exemplos. de de uma espécie de vivência pública e política, que é cada
Para começar, temos Felipe Gonzáles, que foi primeiro-mi- vez mais rara nesses isolados tempos pós-modernos, a ponto
nistro da Espanha por 12 anos e participou de um encontro de perdermos a noção de seu sentido mais profundo.
dos Círculos com os jovens sobre “O conto da ilha desconhe- Na esfera pública, em contato com os outros, diferentes
cida”, de José Saramago. No final desse encontro, “Seu Felipe”, de nós – ao contrário do espaço social da família –, podemos
como foi então chamado, disse aos jovens que se preocupa- exercer a faculdade propriamente humana de aparecer, bus-
va com eles, pois demonstravam tanta sensibilidade e delica- car a excelência, que pode ser presenciada, admirada e reme-

88
morada por muitos. A esfera pública digna desse nome con- Esse mecanismo de ocultação ou minimalização do so-
templa o bem comum, não a necessidade ou algum interesse frimento alheio deve ter ocupado um lugar importante nas
individual. mentes e nos corações de alemães na Alemanha nazista
O declínio do homem público é o nome de um livro muito (1936 a 1945), quando uma maioria não pensava nem imagi-
interessante de Richard Sennett, que tem como subtítulo: As nava ou concebia os sofrimentos e terrores a que uma parte
tiranias da intimidade. De fato, em vez de haver, como no es- da população estava sendo submetida.
paço público, uma esfera em que se busca a excelência, con- No Brasil, atualmente, existe uma onda fortíssima no sen-
substanciada nos belos gestos e palavras voltados ao bem tido de negar ou desvalorizar o sofrimento do outro, consi-
comum, a ênfase passou do que se é para o que se tem. derar queixas legítimas um “mimimi”, o que constitui o fim
Não é à toa que coincide com o declínio da esfera pública de qualquer solidariedade. 
o boom da depressão, que substituiu a histeria como mal do Essa atenção mais acurada dirigida ao sofrimento pode-
final do século XX e deste início de século XXI. ria sugerir que o trabalho da emancipação privilegia a tris-
Afinal, é próprio do homem ser um animal político dota- teza, o que não é toda a verdade. Ao contrário do eixo da
do de fala, e essa dimensão fundamental – a política, estar regulação, o eixo emancipatório valoriza a dimensão esté-
entre seus pares – lhe foi tomada pelos tempos modernos, tico-expressiva do conhecimento e do senso comum. Des-
devendo ser laboriosamente reedificada. se modo, vai contra a colonização do prazer, que o mundo
Todos estamos, em certa medida, desiludidos e asfixia- moderno pretende enclausurar em certas formas de lazer e
dos com a macropolítica. Então, projetos como os Círculos de ocupação dos tempos livres, propostos pelas indústrias cul-
Leitura trabalham a rearticulação de novas possibilidades de turais e pela ideologia e prática do consumismo.  Assim, o
reinvenção da esfera pública, de reencantamento do  mundo riso, a ludicidade, a alegria, a jouissance que resistem ao en-
e reinvestimento no homem humano. Afinal, isso é o que so- clausuramento e difundem o jogo entre os seres humanos;
mos e o que temos de melhor. enfim, o “reencantamento do mundo” e o investimento em
  No início desta fala, prometi falar sobre uma visão de utopias constituem algumas das principais pautas do eixo
mundo que nos aproxima; para tanto, mudo o registro da emancipação. 
outra vez. Um de nossos grandes escritores e pensadores, Oswald
Se usarmos as categorias de Boaventura de Sousa Santos, de Andrade, afirma: “A alegria é a prova dos nove”. E para fe-
sociólogo português que se ocupa dos saberes e fazeres mo- char o tema do sofrimento, nenhuma outra frase seria me-
dernos e pós-modernos, podemos dizer que o trabalho de lhor do que a de Italo Svevo, em A consciência de Zeno: “Não
vocês aqui da Universidade de Roma e o dos Círculos de Lei- é pelo fato de a vida doer que ela deve ser considerada uma
tura integram o mesmo eixo epistemológico, o eixo da eman- doença”.
cipação, não importa quão diferente seja o nosso trabalho, a Antes de terminar, devo dar conta de que muitos dos jo-
dimensão ou a idade de nossas instituições. vens dos primeiros tempos dos Círculos continuam em con-
Para todos nós, a solidariedade é uma forma de conheci- tato conosco e são nossos amados interlocutores. A maioria
mento. Não negamos jamais a precariedade do outro, seu so- concluiu estudos superiores. Entre eles, temos professores
frimento e, sobretudo, afirmamos vigorosamente sua poten- primários, executivos em  grandes empresas. Alguns traba-
cialidade.  Aprendemos com eles. Não somos colonizadores, lham com projetos destinados à difusão do hábito da leitu-
mas parceiros e aprendizes. ra, e temos até mesmo um escritor  laureado com o Prêmio
Do ponto de vista de Sousa Santos, o contato com o sofri- Governo de Minas Gerais de Literatura. Todos igualmente
mento e também com a alegria é algo fundamental na cons- nos enchem de orgulho! Creditamos o sucesso deles aos es-
trução de um saber digno desse nome: “o paradigma de um forços e talentos de cada um, mas reivindicamos nossa mi-
conhecimento prudente para uma vida decente”. núscula parcela na tarefa da inclusão social: ao menos umas
Na verdade, diz Boaventura, temos um conhecimento li- pitadas de sabor o trabalho dos Círculos de Leitura acrescen-
mitado da situação humana. Para exemplificar esse ponto, re- tou ao seu saber e à sua competência.
corro a um exemplo antigo e a outro bastante atual. Obrigada!

89
90
3. A Conversa dos Jovens
com os Clássicos

O
conjunto de textos que apresentamos nos Círculos de Leitura,
escritos por diferentes autores, em distintas épocas, dialogam
entre si e nos convidam a fazer parte desse diálogo.
O grupo é um espaço privilegiado, no qual a leitura em voz alta, re-
petidas vezes, cria um ambiente em que o som das palavras nos envolve
com sua musicalidade. E nesse estado de entrega a poesia se revela.
Nietzsche recomenda paciência e ternura para que a obra de arte se
apresente com toda a sua beleza e esplendor.
O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) apresenta cinco
condições necessárias para o entendimento do simbólico das obras de
arte: simpatia, intuição, inteligência, compreensão e graça. Esta última,
segundo o escritor, é a mais difícil de ser definida.
William Anderson (1962-) define as obras de arte como “depósitos de
energia”. Para esse escritor americano, elas requerem uma qualidade de aten-
ção que, uma vez alcançada, promove uma conexão entre nós, como leitores,
e a mente do artista, no momento da criação de sua obra.
Após esse fazer, que envolve a hospitalidade, o entendimento, a apro-
priação e a troca de experiências, obtemos a recompensa última: ouvir
o silêncio. Trata-se de uma verdadeira conquista, que abrange o todo e
revela nosso verdadeiro Ser, sempre em devir.

Grupo dos Círculos de Leitura na EEEP Dr. José Iran Costa.


91
92
3.1 Cartas das obras do repertório

Fernão Capelo Gaivota

[...] há mais na vida do que comer, brigar ou ter poder no bando? [...]
há uma coisa chamada perfeição.
[...] nossa finalidade em viver é encontrar e ostentar essa perfeição.

A história de Fernão vem cativando gerações de leitores de todo o


mundo por apresentar um tema fundamental: a necessidade de desco-
brir o significado de nossa vida, de encontrar a nossa vocação.
Fernão sempre intuiu que havia na vida uma finalidade maior e, por
isso, não cedeu às pressões externas, continuando firme e determinado
em sua vontade de aprender. Rompeu com a rotina daquele lugar onde
um dia era igual ao outro e tudo devia permanecer como estava. Por
ser diferente, foi expulso. Em sua trajetória, conhecemos seus compa-
nheiros, os quais, por sua vez, têm nomes que evocam heróis de várias
épocas e culturas.
Quem não se lembra de Teseu que, com a ajuda de Ariadne e do rei
Minos, desceu ao labirinto para transformar o Minotauro? E de Virgílio
narrando, em seu poema épico, a trajetória de Eneias, que fugindo das ru-
ínas de Troia conseguiu fundar uma nova nação – a Itália? Calvino é outro
nome que ficou na história porque contestou os dogmas da Igreja, pos-
sibilitando aos homens uma nova interpretação das sagradas escrituras.
Entre tantos personagens ilustres que, com seus feitos, contribuíram
para tornar a humanidade mais digna, encontramos Chiang, o mestre de
Fernão, que representa a milenar sabedoria oriental.
Richard Bach, ao evocar a nossa ancestralidade, confere à obra um
legado histórico próprio dos grandes clássicos e nos lembra de que as
dificuldades encontradas no caminho do desenvolvimento humano se
repetem, mas, sem dúvida, podem ser superadas pelas pessoas de cora-
gem e que buscam sabedoria.

93
Podemos começar com o tempo, se você quiser — lembrou Chiang.
[...] Nessa ocasião, você estará pronto para iniciar o voo mais difícil,
mais poderoso, mais divertido de todos. Estará pronto para começar a
voar para o alto e aprender o significado da bondade e do amor.

Querida Letícia,

O caminho percorrido por Fernão não foi tranquilo o tempo todo. Houve
um momento em que ele quase desistiu de aprimorar seu voo para agradar
aos pais. Ele se sentia tão frustrado por não conseguir satisfazer nem aos
pais nem a si mesmo que até pensou em se deixar afundar nas turvas águas
do oceano.
Mas, nesse momento de desespero, Fernão ouviu a voz cavernosa que
emergia de seu interior, lhe despertando uma grande força que o ajudou a
superar a angústia e a continuar treinando.
Muito tempo depois, quando pensava já ter aprendido tudo sobre o voo,
Fernão é surpreendido pela presença de duas gaivotas brilhantes, que voa-
vam como ele e que o convidaram para ir com elas, dizendo-lhe que tinha
que voltar para casa. Fernão hesitou. Não sabia o que fazer. Mas como elas
voavam de forma tão bela, decidiu acompanhá-las.
Fernão nos mostra Ao contar uma história aparentemente singela sobre uma gaivota que
que a autoconfiança queria aprimorar seu voo, Richard Bach nos traz uma reflexão profunda so-
bre a busca do conhecimento e a necessidade de compartilhá-lo, fazendo
não é o ponto de
da transmissão do saber uma forma de doação de amor. Essas Ideias tam-
partida, mas, sim, o bém estão presentes na obra de nosso grande filósofo Platão, que Bach
ponto de chegada. traduziu de forma leve e cativante em seu livro. O autor coloca em práti-
ca os ensinamentos do filósofo, compartilhando o seu conhecimento e
tornando-o acessível a todos. Percebemos que, ao tomarmos os clássicos
como nossos mestres, nos tornamos criativos e até, quem sabe, um dia,
famosos como Richard Bach!
Vimos no diário que surgiu a ideia da autoconfiança, e esse é sem dúvida
um conceito importante para a nossa vida. Fernão nos mostra que a auto-
confiança não é o ponto de partida, mas, sim, o ponto de chegada, após
um longo processo no qual somos testados muitas vezes, pois sabemos que
ninguém nasce autoconfiante.

Um abraço,
Catalina e Cidinha

94
Querida Jaqueline e grupo,

Lemos os dois últimos diários enviados a respeito do módulo Fernão


Capelo Gaivota e ficamos contentes em ver os assuntos tratados no gru-
po. A formação do caráter, a autoconfiança, o fazer bem-feito e a impor-
tância do mestre são temas que, quando discutidos, nos ajudam a de-
senvolver competências para a vida.
No primeiro diário, foi falado sobre a persistência de Fernão. Essa ca-
racterística é admirável, pois sabemos que não é fácil enfrentar as ad-
versidades de um bando hostil. Porém, é importante lembrarmos que,
apesar de ser uma ave persistente, Fernão pensou em desistir de seus
sonhos e se tornar igual aos outros. O desânimo foi tão intenso que pen-
Ser persistente e sou em desistir de viver. Lembramos essas passagens para mostrar que
autoconfiante não mesmo alguém persistente como ele passa por momentos de tristeza.
significa estar isento Fernão demonstrou sua grandiosidade quando soube interpretar a
de erros, mas saber voz cavernosa, seu chamado interior, sua vocação. Ser persistente e au-
toconfiante não significa estar isento de erros, mas saber se recompor
se recompor diante diante deles, ouvindo as pessoas que nos ajudam a buscar a perfeição
deles, ouvindo as naquilo que fazemos.
pessoas que nos Outra ideia muito interessante foi o papel do mestre. Mesmo sendo
ajudam a buscar a uma gaivota especial, Fernão precisou de alguém que o ajudasse a ir
perfeição naquilo além, para poder realizar seus planos de ser um instrutor. Há quem diga
que a vida ensina, mas, se pensarmos bem, chegaremos à conclusão de
que fazemos. que, para nos lançarmos no mundo, precisamos de um preparo prévio. É
por isso que vamos à escola. Foi por essa razão que Fernão precisou dos
ensinamentos de Chiang, antes de voltar ao bando, para ensinar através
da realização do belo espetáculo.

Um forte abraço a todos,


Aline Jacó

95
Querida professora Gegardênia e grupo,

Ficamos felizes por conseguir visualizar perfeitamente a dinâmica do


grupo pelo diário enviado. Chamou a nossa atenção a ideia de que Fer-
não, depois de sua queda no mar, no momento de desespero, prestes a
desistir, ouviu a voz cavernosa, que acaba despertando-o para o que ele
deveria fazer. Ele percebe, então, que é diferente daquele bando no qual
as gaivotas geralmente fazem pequenos voos, apenas para alcançar a
comida.
Ele sentia prazer na prática do voo e queria aprimorá-lo cada vez
mais, porém essa queda o fez perceber que não conseguia nem agradar
o bando nem a si mesmo. Dessa forma, sua vida não tinha sentido. Nesse
momento chegou a pensar em desistir, desejando morrer. Mas, ao ouvir
uma voz interna que saiu da profundidade do seu ser, Fernão estranhou,
porém conseguiu decifrá-la e, com isso, recuperou a vontade de viver.
Com base nessa passagem, o grupo concluiu ser necessário “saber in-
terpretar as mensagens enviadas pelo mundo interior”.
A nossa voz interior Sim, são essas vozes do nosso inconsciente que nos conectam e aju-
sem dúvida nos dam a realizar nossas ações no mundo exterior de forma harmoniosa.
Mas, quando o externo está muito conturbado, é difícil e quase impos-
potencializa, mas
sível. Precisamos buscar um espaço tranquilo para ouvir com atenção a
é igualmente nossa consciência.
importante saber Os livros, como todas as obras de arte, são preciosos aliados. “O ar-
ouvir aqueles que tista, no seu fazer criativo, descobre a força secreta do mundo.” As artes
estão conosco no existem primeiro como uma ideia, que a obra do artista concretiza e tor-
na visível para todos nós, dando intensidade à vida.
grupo.
A nossa voz interior sem dúvida nos potencializa, mas é igualmente
importante saber ouvir aqueles que estão conosco no grupo. As obras
compartilhadas em grupo nos tornam receptivos para ouvir os sinais e
reconhecer o momento oportuno para agir nesse mundo.
Em breve, vocês iniciarão a leitura da peça Kouros, onde está apresen-
tada a ideia da importância do silêncio e da calma para nos conectarmos
com esse outro tempo.

Um abraço,
Catalina e Cidinha

96
Querido Ruan e grupo,

Observamos que no grupo com os alunos do 1° ano de Agronegócio


foram debatidas ideias muito interessantes sobre a história de Fernão
Capelo Gaivota.
Será que somos O grupo discutiu dois temas que estão relacionados: como lidar com
estritamente produto um ambiente hostil e a falta de aprovação externa; eles representam a
das circunstâncias, maneira pela qual o meio social pode moldar o indivíduo. Tal discussão
é tão complexa que, ao longo da história, vem inquietando a mente de
ou há algo em nós vários pensadores: Será que somos estritamente produto das circunstân-
que norteia nosso cias, ou há algo em nós que norteia nosso comportamento?
comportamento? Na história de Fernão, conhecemos uma jovem gaivota que nasceu
em um ambiente fechado às mudanças, mas, apesar das dificuldades,
conseguiu desvendar os mistérios do voo e libertou-se das amarras do
comodismo das gaivotas daquele lugar. Mesmo sendo alguém especial
e inteligente, Fernão pensou em desistir, tentando ser uma ave comum
como as outras, mas havia nele uma força que o impulsionava a continuar
tentando descobrir como voar mais alto.
Esse pensamento nos faz lembrar de um filósofo espanhol, Ortega y
Gasset, que no ensaio “Hermenêutica e vocação” escreveu: “Muitos ho-
mens têm vocação de ser homem comum: de ser um médico qualquer,
um pintor qualquer, enfim, qualquer um”. Pessoas assim buscam sempre
ser o mais parecido possível com o grupo ao qual pertencem, fazendo
questão de não se diferenciar em nada; estão sempre em um status me-
diano. Fernão era diferente porque, além de querer aprender voos di-
ferentes, queria compartilhar suas conquistas com as outras gaivotas, e
por isso foi expulso do bando. Após a conversa com as gaivotas brilhan-
tes, ele conseguiu se aperfeiçoar e encontrou uma forma de ensinar as
outras gaivotas a voar pelo prazer de voar, realizando seu sonho de ser
instrutor, que era sua verdadeira vocação.
Acreditamos que podemos encontrar na sociedade um modo de
exercer a nossa vocação ouvindo a nossa voz interior e buscando a per-
feição naquilo que fazemos. Dessa forma, construiremos um meio social
mais justo e feliz.
Os diários enviados suscitaram muitas reflexões e continuamos pen-
sando sobre essas questões. Leiam a devolutiva em grupo e nos escre-
vam sobre o que pensaram.

Um abraço a todos,
Catalina e Aline

97
Querida Adenyse e grupo,

Algumas pessoas têm o dom de acreditar nos seus projetos, nos seus
sonhos, ainda que não exista nada de palpável. Há uma força que os im-
pele a fazer algo, acreditando que aquilo é bom; a essas pessoas chama-
mos de visionários.
Fernão estava convicto de que perseguia algo muito bom. Ao ser ex-
pulso, ficou triste por não conseguir transmitir ao grupo a alegria que o
voo proporcionava. Ao ser forçado a sair do bando, deixou para trás gaivo-
tas que não acreditavam no que ele fazia e, longe delas, pôde dedicar-se
de corpo e alma às novas descobertas, o que o deixava muito feliz.
Ao longo da história, encontramos vários exemplos de personagens
que foram visionários, como os grandes navegadores e cientistas, os
quais, mesmo não tendo algo concreto, acreditavam na sua intuição,
pesquisas e cálculos feitos a partir de demorados estudos. É assim que
surgem os grandes avanços para a humanidade.
Nos Círculos de Nos Círculos de Leitura, acreditamos e abraçamos com muita força
Leitura, acreditamos o projeto de transformar a sociedade, diminuindo as diferenças sociais
e abraçamos com através de um trabalho de colaboração e respeito mútuo. Procuramos
fazer o que estamos fazendo da melhor forma possível, buscando a per-
muita força o projeto
feição, assim como Fernão; e isso nos proporciona uma imensa alegria.
de transformar a Nietzsche vê o ser humano como uma obra de arte em construção
sociedade. e a sua realização irá depender dos bons encontros ao longo da vida.
Kazantzakis, discípulo de Nietzsche, ao reescrever o mito de Teseu, se ins-
pira nas suas ideias. Teseu, na obra Kouros, fala: “[...] luto incessantemente
para me tornar aquele homem que eu desejo ser”.
Do mesmo modo, no conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, Gui-
marães Rosa diz que estamos no mundo com alguma tarefa a realizar;
todos nós temos uma vocação e uma missão a cumprir. O importante
é descobrirmos nossa vocação e desenvolvê-la para não nos tornarmos
“homens pela metade”, ficando a outra metade no caminho.
Nossa concepção de perfeição implica um objetivo a ser alcançado, e
o essencial é o empenho para obter sua realização. Teseu, à procura de si
mesmo, partiu para a ação e para a conquista, libertando tanto o mino-
tauro como sua nação e se tornando “aquele homem que desejava ser”.
Na leitura dos diários, vimos que o grupo, assim como Fernão, per-
cebeu a importância de um mestre. Fernão, mesmo tendo aprendido a
voar muito bem, lembra o quanto teria sido mais rápido e divertido o seu
aprendizado se tivesse encontrado o mestre Chiang mais cedo.

Um abraço,
Catalina e Cidinha

98
Querida Taislândia,

A partir dos relatos, notamos que os temas principais das discussões fo-
ram: “família e amigos” e a “determinação aplicada ao desafio de aprender
em um ambiente hostil”.
Desde o início, vemos Fernão como uma gaivota diferente das outras do
bando da qual fazia parte. Não é fácil buscar o conhecimento, quando isso
A autoestima é algo não é incentivado pelo meio, mas existem pessoas que, assim como Fernão,
muito importante têm a capacidade de aprender mesmo em situações adversas e desenvolver
quando estamos habilidades que as fazem superar os problemas.
A autoestima é algo muito importante quando estamos aprendendo,
aprendendo,
principalmente se a busca por esse conhecimento está em desacordo com
principalmente se as ideias de pessoas que amamos.
a busca por esse Gostamos muito da reflexão que o Eduardo fez sobre Fernão: “... ele não
conhecimento está pensava em desistir, até um momento em que subiu tão alto e caiu, e ele
em desacordo com desejou morrer, pelo fracasso que tivera”. Muitos esquecem que, em um
dado momento, Fernão quase se entregou à tristeza de não satisfazer os
as ideias de pessoas
requisitos exigidos nem conseguir alcançar suas metas. Tal comportamento
que amamos. é algo muito comum quando estamos desenvolvendo nossas habilidades.
Porém, a alegria trazida pela conquista supera as decepções que sofremos
no processo de desenvolvimento.
Fernão se sentiu tão fortalecido depois de aprender tanto com sua ex-
periência que, mesmo sendo expulso, não sentiu raiva, mas uma profun-
da tristeza, pois o seu bando estava se privando do conhecimento que iria
libertá-los dos limites impostos pela mentalidade do bando.
Muito interessante a maneira como vocês caracterizaram Fernão: “uma
gaivota estudiosa”. Realmente, ele apresenta as características de um pes-
quisador no desenvolvimento de um método. Grandes homens da história
também dedicaram toda a vida para lapidar o conhecimento ao ponto de
eternizá-lo. Descartes, importante filósofo francês, levou muitas décadas
para desenvolver o chamado “método cartesiano”, que revolucionou a filo-
sofia moderna. Ele, assim como Fernão, sentiu receio de expor sua pesquisa,
pois vivia em uma sociedade com valores fixos, precisou deixar a França,
sua terra natal, e mudar-se para a Holanda. No último capítulo do seu livro,
O discurso do método, o pesquisador fala da angústia e do medo que en-
frentou em sua trajetória.
Os Círculos de Leitura se baseiam em um método que nos ajuda a de-
senvolver nossas habilidades de ler, ouvir, entender e conhecer as obras e
o universo que elas apresentam. Estamos em constante aperfeiçoamento e,
às vezes, nos encontramos em situações difíceis, mas, como a nossa gaivota
Fernão, sentimos prazer na busca da perfeição do voo.

Abraços,
Aline Jacó

99
[…] o homem faz aquilo que ele e somente ele deve fazer, com total
liberdade e sob sua exclusiva responsabilidade. Por outro lado, esse
mesmo homem, ao exercer uma profissão, compromete-se a fazer o
que a sociedade necessita.
(Ortega y Gasset, Missão do bibliotecário, p.13)

Querida Kézia Machado,

Lemos os diários enviados sobre os encontros em que o grupo leu a obra


Fernão Capelo Gaivota e percebemos que o tema que emergiu com mais
força no grupo foi “a liderança de Fernão”.
Fernão nasceu em um bando onde o voo era visto apenas como um meio
de obtenção de comida e poder. Como tinha uma visão diferente, ele es-
cutou o seu chamado interior e acabou sendo expulso para os penhascos
longínquos, sob a acusação de ter infringindo as regras do bando.
A vocação é uma Para o filósofo espanhol Ortega y Gasset, a vocação é uma “vozinha” que
“vozinha” que precisa ser ouvida. Depois de um bom tempo que passou sozinho, após ter
precisa ser ouvida. sido expulso de seu bando, Fernão foi encontrado pelas gaivotas brilhantes
e levado a um “outro lugar”. Nessa nova casa, ele conseguiu aperfeiçoar-se
ainda mais e encontrou sua verdadeira vocação: ser um mestre.
E foi ensinando para outras gaivotas o que havia aprendido, que Fernão
conseguiu organizar um grupo de alunos, que evoluíram tanto individual-
mente como em equipe. Ao mesmo tempo em que ajudava as gaivotas mais
jovens, ele se realizava como mestre. Nesse convívio em grupo, surgiu a figura
da grande gaivota: o belo coletivo, uma experiência estética que acelera o
processo de aprendizagem.
Alguns participantes falaram que Fernão foi autoritário no momento em
que tentou convencer seus alunos a voltarem ao bando. É importante re-
lembrar o que aconteceu: Fernão, como todo bom professor, reconheceu
que os seus alunos já estavam prontos para colocarem em prática o que
aprenderam, mas eles se sentiam inseguros. Sabendo que não poderia obri-
gar ninguém a evoluir, Fernão deixou-os sozinhos e, naturalmente, emergiu
um novo líder, que convenceu o resto do bando a ultrapassar mais um ciclo
do aprendizado.

Um abraço a todos,
Aline Jacó

100
[...] quero encontrar a Ilha desconhecida, quero saber quem sou eu
quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a
saber quem és...
(José Saramago, Conto da ilha desconhecida, p. 40)

Querida Aline Reinaldo,

Quando estava sozinho, no mundo do meio do nada, sentia uma in-


tensa alegria ao descobrir, cada dia mais, os limites do meu corpo. Esse
prazer vinha acompanhado de uma intensa falta de fôlego, resultado
das inúmeras quedas que ainda sofria. Sentia-me imensamente satisfei-
to ao executar um voo novo e, compenetrado naquele mundo de des-
cobertas, nunca parei para imaginar a grandeza do céu, a importância
do mestre e a busca pela perfeição. Ao fazer, eu aprendia; ao aprender,
eu fazia; tudo de uma forma que não sabia se daria certo, simplesmente
experimentava.
Um dia apareceram em minha frente duas gaivotas brilhantes que
vieram ao meu encontro. Ao falar de encontro, quero dizer resgate: eu fui
descoberto por belas gaivotas brilhantes. Elas tinham a voz doce e o voo
suave, coisas que eu ainda não compreendia, mas que conseguia sentir
com muita plenitude. O melhor de mim se manifestou quando senti a
presença delas, pois, pela primeira vez, vi que não era o único a sentir
prazer em desafiar os próprios limites.
Elas disseram que eram a minha família e eu, encantado com o es-
plendor daquela imagem, senti-me acompanhado pela primeira vez na
Eu precisei sair de vida. Acredito que esse foi o principal ponto que contribuiu para o meu
crescimento: sentir que os meus esforços foram reconhecidos e que a
mim e acreditar
providência enviou-me belas aves para despertar o que há de sensível
no outro para em minha alma.
conhecer-me e ser Como diria Saramago, é preciso sair da ilha para ver a ilha. Eu precisei
capaz de enxergar sair de mim e acreditar no outro para conhecer-me e ser capaz de enxer-
um dos mais belos gar um dos mais belos sentimentos do mundo: a gratidão.

sentimentos do
De seu amigo,
mundo: a gratidão. Fernão Capelo Gaivota

(Um aluno respondeu à carta de Aline Jacó usando o pseudônimo


do personagem de seu livro favorito.)

101
102
A comédia humana
O tema das relações humanas, com seus conflitos, encontros e de-
sencontros, é o fio condutor que perpassa a obra A comédia humana,
mostrando-nos que, mesmo em um ambiente marcado pelas tensões da
guerra, é possível preservarem-se valores como a compreensão, a cama-
radagem, a generosidade e a empatia.
Ao longo de sua trajetória, Homero amadurece, até o momento em
que fala para a mãe que estava vendo realmente a cidade em que vivia
pela primeira vez, passando a conhecer as pessoas que lá moravam.
Impossível não estabelecer um paralelo com a obra clássica Odisseia,
de Homero, na qual acompanhamos a trajetória de Ulisses, suas viagens
e aventuras, sempre ajudado pela deusa Palas Atenas. Mas, enquanto
Ulisses chega ao conhecimento da alma humana depois de muito viajar,
o nosso herói Homero o faz conhecendo as dores e o sofrimento dos
moradores de Ítaca (metáfora para alma humana).
Aqui também se distingue o tipo de ajuda, pois, para o jovem, o au-
xílio veio de pessoas do seu convívio, como sua mãe, seus colegas de
trabalho, seu irmão, todas dotadas de nobres traços de caráter. Em A co-
média humana, não temos apenas um herói, mas vários, cujo heroísmo
se distingue pela forma solidária e digna com que enfrentam a vida.
Homero é daquelas pessoas que acreditam que o mundo pode ser
melhor e, ao começar a trabalhar, encontra a oportunidade para fazer
algo para si e para a sociedade.
Homero possui um profundo traço de humanidade, que é logo per-
cebido pelo Sr. Spangler, que lhe dá o emprego de mensageiro. O dono
da agência percebe que o jovem se empenharia ao máximo e que estava
disposto a ajudar as pessoas, a “fazer alguma coisa para as crianças do
mundo”.
A expressão “crianças do mundo” representa as pessoas, tanto as que
encontraram seu lugar no mundo quanto aquelas que, por alguma ra-
zão, em algum momento, fecharam-se em si mesmas ou se perderam
(mas que, como diz o Sr. Spangler, continuam sendo “sempre pessoas”).
O entusiasmo e o desejo de Homero em fazer algo pelas pessoas nos
remete ao filósofo Henri Bergson ao falar sobre a “alegria divina” que
sentimos quando produzimos ou criamos algo. Quando fazemos nosso
trabalho de corpo e alma, nosso potencial pode se manifestar – como
aconteceu com Homero, que, assim como Ulisses, conseguiu encontrar
seu lugar no mundo e chegar à sua Ítaca.

103
Queridos multiplicadores,

Um dos temas recorrentes nos grupos, e que está bastante presente


nos diários de bordo, é a “vocação”. Fernão Capelo Gaivota, desde muito
cedo, tinha a convicção de que “nascera para ser instrutor”. E, enfrentan-
do todos os obstáculos que apareceram, seguiu firme em seu propósi-
to. Com algumas pessoas ocorre o mesmo: a vocação se manifesta com
muita clareza, logo cedo; com outros configura-se aos poucos, como
ocorreu com Homero.
No agrupamento O caminho de Homero, o senhor Grogan (velho te-
legrafista, orgulhoso de seu ofício e do reconhecimento que havia con-
quistado) pergunta ao jovem mensageiro: “Você já enxergou algum fu-
turo para você?”. E Homero responde: “ [...] não tenho certeza, mas acho
que vou querer ser alguém algum dia”. Em outra ocasião, conversando
com o velho telegrafista, Homero confidencia: “Não sei o que vou fazer,
mas alguma coisa vou fazer. Alguma coisa decente, quero dizer [...] não
gosto das coisas do jeito que elas estão, senhor Grogan. Não sei por que,
mas quero que elas melhorem. Acho que é porque eu acredito que elas
precisam ser melhores”.
Naquele momento, o país estava em guerra, por isso havia muita tris-
teza e insegurança. O menino ainda não sabia que profissão escolheria,
mas tinha certeza de que seria alguma que lhe permitisse ajudar as pes-
soas e tornar a sociedade melhor, porque acreditava firmemente que
as coisas poderiam ser melhores. Homero estava aberto para aprender
e vivenciar tudo da melhor forma possível. Acreditava no fazer de cada
dia, e que assim acabaria descobrindo o trabalho ideal para “ajudar as
crianças do mundo”. Conhecemos Homero com 14 anos em seu primeiro
emprego. Agora, passados muitos anos, ele já é um homem fazendo algo
no mundo.
Convidamos vocês a imaginarem o que Homero estaria fazendo. Como
desejava ajudar as pessoas, já temos algumas pistas. Teria ele se tornado
um médico? Ou um psicólogo, para cuidar da alma das pessoas? Ou se
tornara um embaixador, negociando acordos entre países para evitar as
guerras? Ou um escritor empenhado em nos contar o que sentiu ao ver
Ítaca pela primeira vez?

Um abraço,
Catalina e Cidinha

104
Queridos Lucas e grupo,

O grupo destacou em seu diário de bordo a valorização das relações


humanas – a essência da obra –, que faz com que possamos nos reco-
nhecer na história e compreender que os sentimentos expressados pelas
personagens também fazem parte de nós em vários momentos da vida.
Na obra, William Saroyan consegue transmitir todas essas emoções e nos
faz lembrar de nossas experiências pessoais, estimulando-nos a aplicar
as lições aprendidas em nossa própria vida.
Homero estava Quando lemos as cenas de entrega dos telegramas, aprendemos com
disposto a Homero a importância de sentir a empatia, aquele sentimento que o faz
se colocar no lugar do outro, mesmo em momentos tão difíceis, como
adquirir novos
dar uma notícia da morte.
conhecimentos, e Homero estava disposto a adquirir novos conhecimentos, e por isso
por isso aproveitou aproveitou cada oportunidade de crescimento e desenvolvimento no
cada oportunidade seu trabalho, buscando dar o melhor de si para ser o mensageiro mais
de crescimento e rápido que já existiu e, entre um telegrama e outro, conhecer verdadei-
ramente as pessoas de sua cidade e suas histórias.
desenvolvimento
No entanto, sabemos que as atividades de Homero em seu empre-
no seu trabalho, go não seriam fáceis. Como sempre nutriu empatia pelas pessoas, vê-las
buscando dar o tristes era o que o jovem menos queria, mas era a sua função entregar
melhor de si. os telegramas, mesmo que as notícias viessem carregadas de tristeza e
pesar. Mesmo não sendo fácil encarar todas essas dificuldades, ele não
desistiu, porque encontrou no seu caminho pessoas com quem pôde
contar. Em sua casa, teve todo o apoio, conselhos e companhia de sua
mãe, a alegria de Bess e as perguntas instigantes do pequeno Ulisses,
que o fizeram refletir sobre a sua vida e aprender bastante. Também pos-
sui a amizade do Sr. Grogan e Sr. Spangler em seu trabalho, sem contar
seus bons encontros diários que sempre refletem bons sentimentos.
O mundo seria muito melhor se nossos jovens fossem como Homero,
pois sua atitude para com o mundo é um agente de transformação na
sociedade onde ele vive, uma vez que ele busca formas de melhorar o
mundo. Sendo as vocações das pessoas diferentes, juntas, elas podem
agir em conjunto, cumprindo seus papéis na sociedade, seja entregando
telegramas, seja cuidando das crianças, dos idosos, da natureza. Cada
profissão que vocês escolherem pode proporcionar a oportunidade para
construir um mundo melhor.

Abraços,
Francilene

105
Queridos Anderson e grupo,

Ao lermos o seu diário de bordo, nos chamou a atenção a forma


contundente com que alguns integrantes defendiam a ideia de que
“aprendemos com nossos erros” e que “o sofrimento traz maturidade”, e
gostaríamos de apresentar outras formas de aprendizado e amadureci-
mento.
Ao observar as obras de arte, ficamos encantados com toda a sua
beleza, porque elas nos mostram como a humanidade enfrentou os
desafios do passado. Quando somos sensibilizados por esses grandes
feitos, aprendemos a não repetir os mesmos erros. Ver as obras de arte
nos conecta com as leis ocultas que regem o Universo, que nos ajudam
O ato de ajudar a compreender o mundo ao nosso redor. Para Platão, as pessoas come-
é resultado do tem erros simplesmente porque elas não têm conhecimento de qual é
amadurecimento o caminho certo.
que conseguimos A mãe de Homero, uma senhora sensível e atenta, ajuda-o a sair do
pesadelo e ir para o sonho, tendo papel fundamental para essa tran-
após passarmos sição, na qual Homero saiu fortalecido. O ato de ajudar é resultado do
por esses ciclos amadurecimento que conseguimos após passarmos por esses ciclos
anteriores anteriores, e isso somente é possível quando entendemos de forma
mais sensível o problema de outra pessoa.
Ulisses, quando viu Homero chorando enquanto dormia, percebeu
que ele precisava da ajuda de sua mãe. A Sr. Macauley compreendeu o
problema do filho simplesmente pelo seu choro, e com isso o amparou
sem acordá-lo, propiciando a transformação do pesadelo em sonho.
As obras de arte nos ajudam a conhecer, por meio das personagens,
a complexidade humana. Com isso, ganhamos experiência sobre como
agir em situações semelhantes com as quais nos deparamos ao longo
da vida. E na convivência em grupo, os indivíduos se aproximam por
meio da literatura – esse patrimônio que temos em comum –, que nos
ajudando a descobrir quem somos.

O homem, por intermédio da Arte, não fica restrito aos preceitos e


preconceitos de seu tempo, de seu nascimento, de sua pátria, de sua
raça; ele vai além disso, mais longe que pode, para alcançar a vida
total do Universo e incorporar a sua vida na do Mundo.
(O destino da literatura, conferência, Lima Barreto,1921)

Abraços,
Catalina

106
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas
(Carlos Drummond de Andrade, Mãos dadas)

Querida Letícia e grupo,

Homero é digno de admiração porque, apesar de sua pouca idade e


de lidar com situações totalmente novas, ele aprendia muito rápido. Ele
sabia ouvir e, com isso, conseguia desempenhar o que era esperado dele.
O jovem mensageiro se envolvia com os problemas das outras pessoas
porque assim era sua natureza; ele não poderia agir de outra forma. Mas,
ao ser tomado por esse sentimento de empatia, ele amadureceu muito, até
chegar ao ponto de “enxergar sua cidade como nunca tinha visto antes”.
As pessoas As pessoas envolvem-se mais ou menos de acordo com sua capaci-
dade de comprometer-se e de solidarizar-se, e não existe uma medida
envolvem-se mais
padrão para isso, o certo e o errado. As pessoas fazem o que é possível,
ou menos de acordo o que está ao seu alcance do ponto de vista prático e emocional. Nem
com sua capacidade todos possuem a mesma força e capacidade para se envolver e conse-
de comprometer-se e guir ajudar o outro em um momento de dificuldade e precisamos saber
de solidarizar-se. entender isso e não julgar.
Vemos Willian Saroyan como um imenso poeta, e os poetas sentem
tanto a dor quanto a alegria do mundo; por isso são grandes.
Enviamos um trecho de um texto de John Donne que dialoga com as
ideias aqui expostas.

Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é


um pedaço do continente, uma parte da terra firme. Se um torrão de
terra for levado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um
promontório, como se fosse o solar dos teus amigos ou o teu próprio;
a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gêne-
ro humano, e por isso não me perguntes por quem os sinos dobram;
eles dobram por ti.

Ficamos à espera de novos diários para darmos continuidade ao


nosso diálogo.

Um abraço,
Catalina e Cidinha

107
Prefiro pensar que um dia a vida será mais justa, que os homens
não se olharão a procurar defeitos uns nos outros. Que haverá sem-
pre a ideia de que em todos há um lado bom. Nesse dia, será com
prazer que um procurará ajudar o outro.
(Oscar Niemeyer)

Querido Héricles e grupo,

Há algo de intuitivo na empatia à qual nosso corpo responde de


É como se a forma imediata, sem a mediação da razão. É como se a intuição nos
intuição nos proporcionasse um saber inconsciente que nos preserva de sentir
proporcionasse um empatia, em situações nas quais não teríamos como ajudar, por mais
que desejássemos fazê-lo. Podemos ver um exemplo disso quando
saber inconsciente Homero vai entregar o telegrama para a mãe de Alan; aquela família
que nos preserva de encontrava-se tão fechada e inacessível que o jovem não teve como
sentir empatia, em ajudá-los; diferentemente de seu encontro com a Sra. Sandoval, que
situações nas quais estava disponível para aceitar o conforto de Homero. O jovem, ao
não teríamos como colocar-se no lugar do filho da Sra. Sandoval, ajudou aquela senho-
ra a despedir-se simbolicamente de seu filho. Por essa razão, não de-
ajudar. vemos nos sentir incomodados se nem sempre somos tomados pela
empatia.
Sobre o tema da superproteção dos pais, mães como Sra. Macauley
entendem que os filhos só crescem por meio das relações humanas,
e que estas ocorrem, em boa parte, no mundo, pois o amor dos pais
é um amor incondicional; na vida, porém, as relações são muito mais
complexas.
Em seu trabalho, Homero tem contato com pessoas bem diferentes, o
que consequentemente ajuda em seu crescimento. Com algumas delas,
tem certo convívio, deixando-se ser afetado por elas. A sua mãe não pre-
tende poupá-lo de conhecer o mundo; ao contrário, ela o estimula. Pois
como o Sr. Spangler, compartilha da ideia de que os filhos nascem para o
mundo e crescem dentro das relações estabelecidas nesse convívio com
pessoas de todos os tipos, mas sempre pessoas, afinal, como diz o Sr.
Spangler: “Gente é gente. Pessoas são pessoas.”.
Ficamos à espera de novas reflexões para darmos continuidade ao
nosso diálogo.

Um abraço,
Cidinha Lamas

108
Mesmo que a rota da minha vida me conduza a uma estrela, nem
por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo.
(José Saramago)

Queridos multiplicadores da E. E. E. P. Julio França,

Ao ler o diário de bordo do grupo da multiplicadora Thaís Prado, achei


muito pertinente uma ideia citada por uma das participantes, que diz
que “todo homem é responsável pelo que acontece consigo e com o
outro”. Percebemos o quanto a essência de O caminho de Homero se faz
presente nessa ideia, pois mesmo com a pouca idade, ele já sentia que
precisava fazer algo pelas crianças.
Essa ideia da empatia, definida como a capacidade de se colocar no
lugar do outro, percorre toda a história de Homero. É interessante notar
que essa característica não é exclusiva de Homero, mas está presente
também em outros personagens, como sua mãe, a Sra. Macauley. Nesse
ponto, é válido pensar: Como e quando desenvolvemos esse sentimento
tão nobre? O seio familiar é muito importante nesse processo, principal-
mente na infância, quando a criança começa a despertar para o mundo
e sua sociabilidade começa a ser desenvolvida. No caso de Homero, sua
mãe teve papel preponderante para explicar as experiências que ele es-
tava adquirindo diariamente com seu trabalho.
Fazendo um paralelo com nossa realidade, nota-se que estamos cada
vez mais individualistas e menos solidários uns com os outros. Essa ideia
Quando nos também é compartilhada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman,
que afirmava que o mundo globalizado provocou a fluidez nos relacio-
inspiramos na
namentos, caracterizando o momento atual de nossa sociedade como
figura de Homero, “modernidade líquida”.
podemos ser pessoas Toda essa mudança tem criado um ambiente fértil para a ocorrência
mais generosas, de guerras e conflitos entre os povos. Quando nos inspiramos na figu-
empáticas e mais ra de Homero, podemos ser pessoas mais generosas, empáticas e mais
felizes. E mesmo não conseguindo mudar o mundo por completo, esta-
felizes.
remos contribuindo para a melhoria do mundo que está à nossa volta.
Aguardo novas reflexões!

Um abraço,
Manoel Vieira

109
Homero sentiu a dor da Senhora Sandoval de uma forma tão profunda
que aquela tristeza transpassou o seu corpo.
(Antônio Wilson)

Querida Wládia e grupo,

Lemos dois diários enviados sobre o agrupamento “O caminho de


Homero” e notamos que o tema da empatia inspirou os diálogos.
A palavra “empatia” tem origem no termo grego enpathos (en = den-
tro; pathos = sentimento). Ou seja, empatia é aquilo que nasce dentro do
sentimento. Empatia é, para os gregos, a capacidade de sentir algo que
está dentro do outro como sendo seu.
Ao abraçar o Homero, na sua difícil tarefa de entregar telegramas de morte em
sofrimento da época guerra, foi invadido por uma dor misteriosa, uma tristeza profun-
senhora Sandoval, da que, como disse o Antônio, “transpassava o seu corpo”.
o jovem mensageiro Ao abraçar o sofrimento da senhora Sandoval, o jovem mensageiro
comportou-se como um herói, pois, apesar de “sentir-se doente por to-
comportou-se como
das as partes dentro de si”, ele foi tomado por compaixão e afeto, algo
um herói, pois, que não podia explicar. Apenas sentia que, naquele momento, ele estava
apesar de “sentir-se onde deveria estar.
doente por todas as Mais tarde, após conversar com sua mãe, senhora Macauley, Homero
partes dentro de si”, entendeu que o vazio que o invadiu e o fez chorar tornou-o um homem
bom, alguém responsável pelo outro, que um dia faria algo “pelas crian-
ele foi tomado por
ças do mundo”.
compaixão e afeto, Ficamos emocionados em ver a identificação do grupo com nosso
algo que não podia jovem mensageiro, pois, ao discutir os sentimentos de Homero, vocês
explicar. tocaram no ponto mais importante da obra: a importância das relações
humanas na construção do caráter. Talvez esse seja um bom tema para
uma próxima conversa.

Um abraço,
Aline Jacó

110
Querido Ayron e grupo,

Lemos os diários de bordo sobre a leitura e discussão com seus cole-


gas, do agrupamento “O caminho de Homero”.
Como bem perceberam, Homero apresentava muita maturidade e
responsabilidade em seu trabalho; traços de caráter valiosos, que ele de-
senvolveu ao passar por diversos desafios em sua jornada.
As atividades de Homero em seu novo emprego não eram fáceis. Mas
O importante é ele era um jovem destemido, que não se preocupava em correr por toda
que, ainda que não a cidade – aliás, para ele, isso era uma alegria, uma diversão. No entanto,
tivesse sido fácil como sempre nutriu empatia pelas pessoas, vê-las tristes era certamente
encarar todas essas o que mais gostaria de poder evitar, mas sua função no novo trabalho
era entregar telegramas, ainda que as notícias fossem muito ruins.
dificuldades, Homero O importante é que, ainda que não tivesse sido fácil encarar todas es-
sempre encontrou sas dificuldades, Homero sempre encontrou pessoas com quem pudesse
pessoas com quem contar. Em sua casa, tem tinha todo o apoio, conselhos e companhia de
pudesse contar. sua mãe, a alegria de Bess e as perguntas instigantes do pequeno Ulis-
ses, que muitas vezes faziam Homero refletir sobre sua vida e aprender
bastante.
Contava ainda com a amizade do Sr. Grogan, que estava sempre dis-
ponível para ensiná-lo. Conversam, cantavam e se ajudavam em meio
às dificuldades; e nesse ambiente de camaradagem, desenvolve-se uma
relação de confiança e de empatia entre os dois.
Todos os acontecimentos e as pessoas que entraram no caminho de
Homero ajudaram a formar o seu caráter, e foi enfrentando muitos desa-
fios que ele aprendeu e se desenvolveu a cada dia, tornando-se alguém
que cresceu para ajudar as crianças do mundo.

Abraços,
Iris Macias

111
112
Elena Schweitzer/Adobe Stock
O Pequeno Príncipe
Gostaria de ter começado essa história como nos contos de fadas.
Gostaria de ter começado assim: Era uma vez um Pequeno Príncipe
que habitava um planeta pouco maior que ele, e que tinha
necessidade de um amigo. [...]

A obra mais conhecida de Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Prín-


cipe, começa com a história de um homem que não conseguia expressar
o medo que sentia quando era criança. Por não ter sido compreendido,
esse menino torna-se um adulto solitário e sem amigos.
A trajetória do Pequeno Príncipe mostra que a realidade de muitas
crianças é oposta ao mito da “criança feliz”, no qual a infância é romanti-
zada, apresentada como um tempo em que as crianças são felizes e não
têm problemas. Na verdade, muitas crianças se sentem como o Pequeno
Príncipe e sofrem por não saber expressar seus medos.
Quando sentimos medo e não somos compreendidos, podemos nos
fechar para as relações humanas. Com isso, perdemos a possibilidade de
viver plenamente, pois são nos encontros e nas experiências reais que a
nossa alma nasce e o mistério e a magia da vida se manifestam.
Por não acreditar nas “pessoas grandes”, o menino torna-se um adulto
incompreendido e solitário. Mas, ao dedicar o livro a um adulto, o Avia-
dor mostra que, quando fala das pessoas grandes com hostilidade, não
está se referindo a todas elas, mas àquelas que, como ele, esqueceram a
criança que existe dentro de si.

“A Léon Werth
Peço perdão às crianças por dedicar este livro a uma pessoa grande.
Tenho um bom motivo: essa pessoa grande é o melhor amigo que possuo.
Tenho um outro motivo: essa pessoa grande é capaz de compreender
todas as coisas, até mesmo os livros de criança. Tenho ainda um terceiro
motivo: essa pessoa grande mora na França e ela tem fome e frio. Ela
precisa de consolo. Se todos esses motivos não bastam, eu dedico então
este livro à criança que essa pessoa grande já foi. Todas as pessoas grandes
foram um dia criança – mas poucas se lembram disso. Corrijo, portanto,
a dedicatória:
A Léon Werth, quando ele era criança.”

113
Querida Lívia e grupo,

Lemos aqui na Casinha as reflexões que surgiram no grupo duran-


te a leitura da obra O Pequeno Príncipe, escrita pelo francês Antoine de
Saint-Exupéry. Dos temas discutidos por vocês, os que mais nos cha-
maram atenção foram: a importância de se permitir conhecer o novo; a
valorização das “pequenas” coisas e a essência da infância, que, quando
nos acompanha ao longo da vida, nos ajuda a ter um segundo olhar.
Percebemos que o grupo ficou bastante mobilizado pela ideia de se
colocar a caminho para conhecer algo novo. E essa reflexão surge a partir
do momento em que acompanhamos a saída do principezinho do seu
planetinha, do seu mundo, para visitar cada um dos diferentes planetas,
conhecendo personalidades diversas.
A tarefa de se abrir para novas aventuras, para alguns, não é fácil, por-
que, na maioria das vezes, nos acomodamos na famosa “zona de confor-
to”, o que torna a ideia de enfrentar um novo desafio assustadora. Con-
tudo, é importante lembrar que o mundo está em constante movimento
e transformação.
Quando falamos em valorizar as pequenas coisas, queremos dizer as
mais simples, que são, na verdade, os maiores valores, como a relação
que temos com as pessoas, quando as cativamos e nos deixamos ser
cativados por elas. Todos os bons encontros, mesmo que sejam breves,
sempre nos deixam ensinamentos.
No começo do livro, o Aviador se refere a pessoas vazias, que dedicam
seu tempo apenas às preocupações e questões práticas do dia a dia, não
deixando espaço para os sonhos e para a amizade. Ele chega a acredi-
tar durante muito tempo que todas as “pessoas grandes” são assim. Mas,
ao longo da história, vemos o Aviador descobrir que, ao longo da vida,
Todos os bons nós adquirimos maturidade, novos costumes e pensamentos, mas que
isso não necessariamente significa perdermos a capacidade de sonhar e
encontros, mesmo
construir elos de amizade.
que sejam breves, Quando conseguimos aliar experiência de vida com a magia interior
sempre nos deixam da criança que um dia fomos, a vida pode ganhar mais cor e sentido. E
ensinamentos. com o tempo, adquirimos um novo olhar, um olhar mais demorado, que
nos faz ver as coisas como elas realmente são, porque aprendemos que
“o essencial é invisível aos olhos”.

Abraços,
Alanne de Souza

114
“Por isso mesmo, vivi sozinho, sem ter com quem de fato con-
versar, até meu avião sofrer uma pane no deserto do Saara, há seis
anos. [...] Era uma questão de vida ou morte. “

Querida Francisca e grupo,

Vimos que surge no grupo a ideia de como algo que foi feito, ou de-
veria ter sido feito, pode interferir em nosso futuro na forma de remorso.
O Aviador, por não ter conseguido expressar o seu medo e por não reco-
nhecer que tinha um problema de comunicação, fechou-se para outras
relações. Tornou-se um adulto que se comportava como uma criança
que desejava ter seus desejos adivinhados e acabou, sem perceber, ado-
É importante tando uma postura de superioridade no contato com as outras pessoas.
lembrar que, para Aquele homem arrogante, que no primeiro contato testava as
pessoas, optou pela carreira de aviador para manter-se distante e bem
aprendermos e
acima das pessoas. Quando sofre uma queda com sua aeronave e cai em
levarmos conosco pleno deserto, vê-se forçado a parar e a refletir sobre o rumo que tinha
os ensinamentos tomado a sua vida e se reconcilia com sua criança interior, representada
de outras pessoas, pelo Pequeno Príncipe.
precisamos cativá-las. Outra ideia importante que foi destacada no grupo é a de que é pre-
ciso tomar cuidado com o que está em nossa volta, não deixar que os
baobás cresçam demais e se alastrem, tomando conta de todo o nosso
planeta.
Durante a nossa trajetória de vida, encontraremos muitas pessoas
diferentes que nos deixarão bons ou maus exemplos. A passagem do
principezinho por diversos planetas mostra isso. É importante lembrar
que, para aprendermos e levarmos conosco os ensinamentos de outras
pessoas, precisamos cativá-las , estando receptivos para elas; precisamos
oferecer nosso tempo e compartilhar o que sabemos.

Abraços,
Cidinha e Íris

115
Querida Terezinha e grupo,

Quando nos deparamos com uma situação nova e, de alguma ma-


neira, sentimos medo, temos escolhas a fazer: deixar que esse medo nos
Quando nos aprisione e limite nossa vida, ou enfrentá-lo e, aos poucos, ir superando
deparamos com os nossos limites para descobrir coisas novas.
uma situação nova e, O livro de Exupéry não apenas nos ensina sobre amor, otimismo e
de alguma maneira, o valor da simplicidade, mas também sobre maturidade, saber deixar
partir e entender a necessidade de mudanças. Nesse processo, aprende-
sentimos medo, mos a valorizar os bons encontros, que de alguma maneira sempre nos
temos escolhas a deixam lições significativas. Durante sua viagem por diferentes planetas,
fazer: deixar que esse o Pequeno Príncipe encontra personalidades distintas e, após conhecer
medo nos aprisione e cada uma delas, leva consigo ensinamentos importantes.
limite nossa vida, ou Nas diferentes fases de nossas vidas, adquirimos novos gostos e cos-
tumes, aprendemos a lidar com responsabilidades, desfrutar de novas
enfrentá-lo. experiências, tornamo-nos “pessoas grandes”, como se refere o autor.
Essa mudança, ainda que difícil, é necessária. Contudo, é importante que
a façamos sem deixar que a luz da infância, que há em nós, se apague.
Se houvesse ingredientes para a felicidade, um deles, com certeza, seria
a magia de criança.
Da mesma forma que o principezinho aprendeu com a raposa, pode-
mos cativar aqueles que passam pela nossa vida, cada um à sua maneira.
E, assim, quando tivermos de lidar com a separação e a distância, do ou-
tro nos restarão as boas lembranças. Dando, inclusive, sentidos novos a
coisas e lugares, como a raposa que passa a ver o trigo como a lembran-
ça do cabelo dourado do principezinho, que havia lhe cativado.
Quando despertamos nossa criança interior, encontramos a nós mes-
mos, naturalmente, levados para novos desafios, cada um no seu tem-
po. Afinal, como já dizia Exupéry: “As estrelas são todas iluminadas... Não
será para que cada um possa um dia encontrar a sua?”.

Abraços,
Alanne de Souza

116
Olá, meus queridos,

O Aviador voltou a ter imaginação e, com o Pequeno Príncipe,


ele experimentou o prazer de ter um amigo de verdade.
(Juliana Alves)

Na leitura da obra O Pequeno Príncipe, os temas “mágoa” e “amizade”


foram trabalhados nos grupos. Lendo sobre a etimologia dessas pala-
vras, descobrimos que o termo “mágoa” tem origem latina, macula, que
representa uma sensação de amargura; daí mágoa – má água – aquilo
que torna ruim a água, que é fonte de vida. Portanto, mágoa é o que
retira a alegria da vida, tornando-a amarga.
Por outro lado, o termo “amizade” tem origem grega, amicus, que de-
riva da palavra amore, amor. Segundo alguns historiadores, o doce senti-
mento amizade nasceu do instinto de sobrevivência, como uma necessi-
dade de proteger e de ser protegido por outros seres. Amizade, portanto,
é amor à vida.
Essas palavras nos remetem ao encontro entre o Pequeno Príncipe e
o Aviador. De um lado, um menino, que foi amado pela Rosa e cativado
pela Raposa, e que, por isso, conhecia a arte do cativar e tinha, cada vez
mais, necessidade de um amigo; do outro, o Aviador, homem magoado,
tomado pela amargura do ressentimento.
O encontro dos dois ilustra muito bem a opinião da Juliana (que des-
tacamos no início da carta): “O Aviador voltou a ter imaginação e, com o
Pequeno Príncipe, ele experimentou o prazer de ter um amigo de verda-
de”. Nasce a amizade, iniciada pelo pedido: “Desenha-me um carneiro!”.
Vemos, logo de início, o desafio: desenhar após anos de afastamento dos
lápis e tintas. Depois, vem a negativa: “Não! Não! Eu não quero um ele-
fante numa jiboia. A jiboia é perigosa e o elefante toma muito espaço”.
O desafio é ainda maior: esquecer a mágoa – as jiboias, abertas ou fe-
chadas, e os elefantes. O Pequeno Príncipe, como um bom amigo, faz o
Aviador reviver a arte do desenho com a responsabilidade de desenhar
algo totalmente novo e inesperado: um carneiro.
Interessante observarmos o ritual de purificação interna que o Avia-
dor viveu através daquele encontro, voltando à infância e recuperando a
origem da vida, o tempo ancestral: “quando eu era pequeno, as luzes da
árvore de Natal, a música da missa da meia-noite e a doçura dos sorrisos
se refletiam nos presentes que ganhava”. A água da fonte, bebida pelo
Pequeno Príncipe, purificou a má água internalizada no Aviador; agora,
há vida para ambos, mesmo após a despedida.

Um abraço,
Aline Jacó

117
Queridos multiplicadores e grupo,

O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, é um livro encanta-


dor, que desperta a nossa adormecida criança interior. A falta de autoco-
nhecimento do principezinho foi um dos temas trabalhados nos grupos.
O autoconhecimento O autoconhecimento é essencial para que saibamos o verdadeiro va-
é essencial para lor da amizade. Aquele que nada sabe de si nada de proveitoso pode
que saibamos o absorver do outro. Ao estereotipar os habitantes de todos os pequenos
verdadeiro valor da planetas que visitou, fica ainda mais evidente o quanto o principezinho
não conhecia a si mesmo.
amizade. No trecho “Era uma vez um Pequeno Príncipe que habitava um pla-
neta pouco maior que ele e que tinha necessidade de um amigo.” Há a
relação entre o tamanho de seu planeta e seu nível de autoconhecimen-
to através da imensidão de sua solidão. O principezinho não conseguiu
compreender sua Rosa que, quando floresceu, mostrou-se linda, mas
muito difícil de lidar, pois era bastante vaidosa e queria toda a atenção.
Por outro lado, o principezinho também não sabia ainda como amar,
como ele mesmo conclui ao conversar com o Aviador.
O Pequeno Príncipe, ao dizer que “era jovem demais para saber amá-
la”, reconhece que, por nunca ter tido um amigo antes, não tinha os bons
encontros necessários para aprender a amar. Depois de seu encontro
com a raposa, ele aprende a criar laços e o verdadeiro valor da amizade,
finalmente entendendo o porquê de sua Rosa ser única no mundo.

Um abraço,
Lindemberg Vidal

118
Querido Felipe e grupo,

Lemos dois diários enviados sobre a obra O Pequeno Príncipe, de An-


toine de Saint-Exupéry, e nos chamou atenção a relação feita entre “a
internet e os baobás”. Gostaríamos de conversar mais sobre o assunto.
Logo na primeira leitura, percebemos que o grupo tem uma visão
muito negativa da internet, enxergando-a como um meio de exposição
extrema da vida pessoal, algo que afasta as pessoas e as torna insensí-
veis; ela foi comparada a um baobá grande, oco e muito perigoso. Relen-
do os diários, notamos que esse grupo é composto por alunos do 1° ano
de Informática, o que nos instigou ainda mais a dialogar sobre este tema.
O Pequeno Príncipe, em conversa com o Aviador, fala sobre sua preo-
cupação com os baobás – árvores grandes e ocas –, que, se não forem ar-
rancados cotidianamente, poderiam acabar com a vida em seu planeta.
Arrancá-los “é um trabalho sem graça, mas de fácil execução”.
Como o planeta do Pequeno Príncipe é um pouco maior do que ele, é
um local tão pequeno que não é capaz de comportar as raízes de uma ár-
vore de grande porte; por isso os babás são tão perigosos para seu planeta.
Na Terra também há baobás, porém seu hábitat não é um pequeno
planeta, mas todo o continente africano. São árvores muito importantes
para os indígenas do Senegal, que comem seus frutos e utilizam suas
folhas para a produção de medicamentos. Até em Fortaleza, no Ceará,
há cinco exemplares de baobás, que servem de pontos turísticos e visi-
tação. Vemos que, no planeta do Pequeno Príncipe, os baobás represen-
tam grande perigo à existência, mas na Terra eles são muito importantes
para a sobrevivência de algumas comunidades.
Vocês disseram que a internet é como os baobás. Isso é verdade, se
for utilizada na hora e local indevidos ou de forma incorreta, podendo
se tornar tão prejudicial quanto um baobá em um planeta pequeno. En-
tretanto, quando utilizada de forma correta, aproxima as pessoas através
do diálogo, dissemina informações e liga o mundo inteiro em um click.
O nosso trabalho no Ceará somente é possível graças à internet, pois,
com o Facebook, e-mail e WhatsApp, conseguimos superar a distância
física que nos separa. Estamos muito contentes em ver que vocês es-
tão trazendo para as leituras aquilo que estudam na sala de aula, o que
aprendem no curso técnico. É muito importante que continuem refletin-
do sobre o papel social da internet, dos computadores e da informática
na vida das pessoas, porque muitas profissões utilizam essas ferramen-
tas, além de fazerem parte de um grande avanço para a civilização.

Um abraço,
Aline Jacó

119
Querida Aline,

Lemos a carta que escreveu ao grupo do Felipe, sobre a obra O Peque-


no Príncipe, e, partindo do tema principal, que é a relação entre a internet
e os baobás, pensamos muito sobre a convivência humana e o modo
como as pessoas se relacionam. Lembramos de Platão, quando diz que
as coisas são as coisas, sem qualidade fixa atribuída a elas. Indo contra a
nossa tendência natural de julgarmos, de imediato, tudo como bom ou
ruim.
Durante o discurso de Pausânias, no banquete de Platão, ele diz: “To-
das as ações, com efeito, não são em si mesmas, em sua pura realização,
nem boas nem más [...], mas depende da maneira pela qual se atualiza
esta atividade para que se torne boa ou má.” Isto é, as coisas em si não
devem ser definidas como boas ou más, mas, sim, como coisas; e o que
virão a ser depende da maneira como lidaremos com elas. Precisamos,
então, de uma atenção maior e certa sensibilidade para entender que
uma mesma coisa pode ser boa ou má.
Os bons encontros podem acontecer em diversos momentos da vida,
mas em muitos deles há mal-entendidos. Mesmo assim, podemos levar
deles bons ensinamentos, tudo depende da maneira como serão inter-
pretados. E a maioria das pessoas interpreta as coisas da maneira que
Vemos, então, a melhor lhes convêm. Como, por exemplo, os conselhos de mãe, que dis-
internet como um pensamos em determinados momentos – por melhores que sejam, não
achamos úteis. Nossa vontade é soberana, impondo nosso desejo.
meio interessante de
A internet foi criada como uma ferramenta de comunicação, a fim
aproximação global, de melhorar as relações entre as pessoas, onde quer que elas estejam.
ou uma ferramenta Contudo, há diversas questões-problema na sociedade atual, causadas
perigosa que não devido ao abuso dessa ferramenta. Como o cyberbullying, a exposição
cumpre o propósito ilegal da vida pessoal de indivíduos, os vírus disseminados, entre outros
exemplos.
para o qual foi
Vemos, então, a internet como um meio interessante de aproximação
desenvolvida. global, ou uma ferramenta perigosa que não cumpre o propósito para
o qual foi desenvolvida; tudo depende do que fazemos com ela. Diante
disso, é importante levar em conta as diferentes interpretações e a com-
plexidade das relações.

Com carinho,
Alanne

120
Queridas Francisca Andrine e Alana Carolina,

Nas discussões sobre o livro O Pequeno Príncipe, ambos os grupos des-


tacaram dois assuntos muito interessantes: a frustração por causa das
opiniões alheias e a importância do cativar.
O Aviador é um homem ressentido. Quando criança, sentiu um gran-
de medo ao ver em um livro uma jiboia a engolir um elefante, mas não
conseguiu expressar esse sentimento, e por isso não foi compreendido.
Muitas crianças também têm seus medos ridicularizados e tornam-se
adultos fechados para as relações pessoais.
Se pensarmos no Sonhador, do livro Noites brancas, lembraremos que
ele também era um homem fechado em seu próprio mundo, pois um
dia fora pisado e maltratado, e ficou como um gatinho assustado. Tais
circunstâncias deixaram marcas profundas, que o prenderam em seu
próprio mundo, onde se refugiou.
Para ambas as personagens, a libertação das mágoas só foi possível
por meio do bom encontro. É no contato com alguém que sabe amar
que aprendemos a arte de cativar, como bem explicou a raposa:

Quando dedicamos “Eu não tenho necessidade de ti, e tu não tens necessidade de mim”,
explica a raposa para o Pequeno Príncipe. Para sentir necessidade,
nosso tempo precisa ser cativada. A raposa diz que ele precisa cativá-la, mas ele
para cativar outra responde que não tem tempo, pois busca amigos e tem muitas coisas
a conhecer. No entanto, para ter esses amigos, ele precisa fazer justa-
pessoa, também mente o que a raposa lhe aconselha: aprender a cativar, fazer vínculos,
somos cativados, pois só conhecemos bem aquilo que cativamos. E para criar vínculos
precisamos de tempo, pois é o tempo que dedicamos às coisas que
e essa relação tira as torna especiais. Como nos diz Proust, em sua obra Em Busca do
as mágoas e os Tempo Perdido: “E iremos amá-la durante muito mais tempo que às
outras, pois teremos levado muito mais tempo até amar”. (Módulo de
ressentimentos que O Pequeno Príncipe)
nos impedem de
viver a alegria da A raposa disse ao principezinho: “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa
vida. que a fez tão importante”. Quando dedicamos nosso tempo para cativar
outra pessoa, também somos cativados, e essa relação tira as mágoas e
os ressentimentos que nos impedem de viver a alegria da vida.
Os diários enviados trouxeram-nos muitas reflexões a respeito dos
traumas que as pessoas vivem, da necessidade dos encontros e da arte
de cativar. Gostaríamos muito de continuar pensando sobre essas ques-
tões. Leiam essa carta em grupo e escrevam sobre o que pensaram.

Um abraço a todos,
Aline Jacó

121
Lefteris Papaulakis/Adobe Stock
Kouros: tempo, caráter e destino

Nikos Kazantzakis, ao reescrever a história de Teseu, decide dar-lhe


outro final e, nessa reescrita, desafia o próprio destino, palavra que o au-
tor nomeia de 32 maneiras diferentes no decorrer da história.
Em sua narrativa, observamos que os fatos se repetem sempre iguais
até o momento em que aparece um herói determinado a enfrentar um
problema e que, com sua atitude, muda o rumo da história, fazendo a
roda da fortuna girar novamente. E acreditamos que se o destino estives-
se pré-determinado, não haveria espaço para o inesperado.
O príncipe de Atenas, durante muitos anos, viveu inconformado com
a situação de seu povo, que era forçado a entregar os jovens para ali-
mentar o Minotauro de Creta. Mas Teseu sente-se forte e confiante para
mudar essa situação, mesmo sabendo de todos os perigos que o aguar-
davam. Para ele, essa tarefa significava matar ou morrer.
Ao dirigir-se a Creta, não tinha certeza se era ou não o momento cer-
to. Sabia apenas que havia um problema e que precisava resolvê-lo. Ao
encontrar com Ariadne, percebe que chegara a Creta no momento opor-
tuno, também chamado de “momento kairótico”. Seu propósito estava
em consonância com o destino.
Até aquele momento, nosso herói havia tomado de forma ativa a de-
cisão sobre o que iria fazer; agora, adota uma atitude receptiva, aberta
ao que o destino poderá lhe proporcionar; estava em sintonia para sa-
ber lidar com o inesperado. No tempo kairótico, nem sempre é possível
prever antecipadamente como agir, o importante é estar preparado, o
que implica saber agir de forma adequada com o que se apresenta no
momento.
Teseu chega a Creta como opositor do rei e torna-se seu herdeiro.
Aquele que até então era seu inimigo transforma-se em aliado. Minos
é apresentado como um velho rei sábio que aceita com serenidade os
ciclos da vida, que reconhece que há um tempo certo para ocupar uma
função e que seu tempo como rei havia chegado ao fim.
A serenidade e a sabedoria mostradas pelo rei em seu encontro com
Teseu foram conquistadas com o tempo. No passado, quando jovem, to-
mado de certa arrogância, quisera opor-se à roda da fortuna, fazendo-a
girar conforme os seus desejos. Mas depois aprendeu que o destino fa-
vorece aqueles que agem sintonizados com a realização de sua essência.

123
As areias assemelham-se às pessoas com mais experiência,
que nos ajudam a enfrentar os desafios da vida.

Querida Lívia e grupo,

O conto A lenda das areias, sensibilizou bastante o grupo, inspiran-


do conversas sobre o papel das pessoas mais velhas na vida dos jovens.
Esse tema nos faz lembrar o livro Kouros, de Nikos Kazantzakis. Ao ler o
relato do grupo, de que “as areias se assemelham às pessoas com mais
experiência, que nos ajudam a enfrentar os desafios da vida”, logo nos
lembramos da trajetória de Teseu.
Teseu é um jovem extremamente corajoso e focado em seus obje-
tivos, que não se conforma em ter como destino tornar-se o rei de um
povo que envia seus jovens para a morte, oferecendo-os em sacrifício
para o Minotauro. Decide, então, colocar um fim nessa história de sub-
missão e sofrimento, e, para isso, ruma para Creta com o objetivo de ma-
tar o Minotauro, mesmo consciente de que poderá ser morto pela fera.
Teseu nunca imaginaria que no decorrer de sua jornada aquele que
até então fora o inimigo da sua pátria acabaria tornando-se um grande
aliado. O experiente Minos, rei do país inimigo, oferece-lhe todo o seu
saber através de conselhos, para que o jovem possa ser bem-sucedido
ao descer ao labirinto do Minotauro.
A princípio, Teseu reluta em ouvir os conselhos do rei, levado pela
pressa e impaciência, mas depois percebe que na verdade estava ali para
concluir uma tarefa que o rei Minos havia iniciado: a de transformar o
Minotauro, sem derramamento de sangue ou mortes. Percebe que as
orientações de Minos seriam de suma importância. Assim, juventude e
experiência finalmente entram em harmonia e Teseu diz: “Eu me curvo
diante da árvore que deu frutos”.
Teseu, apesar de toda sua coragem e força, não teria conseguido cum-
prir sua tarefa sem a ajuda de Minos. Depois de sair do labirinto, assim
como o jovem rio do conto A lenda das areias, passou por uma profunda
transformação, conhecendo a sua verdadeira identidade.
Ao redigir essa carta, lembramo-nos de tantos outros personagens:
Chiang, da obra Fernão Capelo Gaivota, a Sra. Macauley e o Sr. Groogan,
da obra A comédia humana, o Catador de Pensamentos, do conto de Mo-
nika Feth.

Um abraço,
Aline Jacó

124
Querida Larissa e grupo,

A obra Kouros, de Nikos Kazantzakis, é muito especial, pois nos apre-


senta alguns temas profundos como destino, transformação interior e
determinação.
Essa é a história de um homem extremamente focado em seu objeti-
vo – Teseu. O futuro rei de Atenas segue para Creta determinado a matar
o Minotauro e libertar o seu país da imposição de enviar seus jovens para
o sacrifício (morriam para alimentar a fera). Todos temiam o Minotauro,
mas isso não foi suficiente para atemorizar Teseu, mesmo conhecendo
todas as histórias e sem saber exatamente com o que estaria lidando. Em
momento algum vemos sinal de fraqueza: Teseu o tempo todo demons-
tra a coragem e objetividade de um verdadeiro guerreiro.
Quando chega a Creta, Teseu trava um longo diálogo antes de descer
ao labirinto. Primeiro, com a filha do rei, Ariadne; depois, com o próprio
rei Minos. Ariadne inicialmente apresenta um perfil muito oscilante e por
causa dessa primeira impressão é comum pensarmos que ela não tem
importância nenhuma na história; no entanto, é preciso ficarmos atentos
à sua participação durante a batalha de Teseu com o Minotauro.
O rei Minos representa uma voz mais sábia e experiente, que dialo-
ga com Teseu de forma respeitosa e sábia. Algo interessante é que, em
nenhum momento da conversa, surge um tom desrespeitoso. Indepen-
dentemente dos pensamentos a favor ou contra, ambos se respeitam,
Muitas vezes, temos sabem falar e ouvir-se um ao outro, mesmo lidando com uma situação
certeza daquilo que complicada. Esse é um grande exemplo, porque ao longo da vida passa-
mos por situações em que, mesmo tendo opinião divergente, precisa-
queremos, mas certa
mos manter o cuidado e respeito com o nosso interlocutor.
vivência amplia A batalha de Teseu com o Minotauro é algo muito peculiar. O guer-
nossa visão, assim reiro que antes só pensava em matar, lutando sozinho, aprende que a
como ocorreu com situação é diferente. Ele não vence a batalha sozinho nem mata o inimi-
Teseu. go, mas transforma a si mesmo e também o Minotauro. Ariadne ajuda
Teseu com sua música e o Minotauro sai da batalha transformado em um
homem. Teseu, que antes era um guerreiro feroz e decidido, sai do labi-
rinto diferente. Agora, vê o mundo com os olhos de alguém experiente.
Muitas vezes, temos certeza daquilo que queremos, mas certa vivência
amplia nossa visão, assim como ocorreu com Teseu.

Um grande abraço a todos,


Catalina e Cidinha

125
Querida Járcia e grupo,

Conforme foi citado no grupo, encontramos ao longo do tempo di-


versos obstáculos, que tornam um pouco mais difícil a conquista daqui-
lo que queremos. A peça Kouros apresenta isso muito bem, assim como
outras leituras do Círculos, como Fernão Capelo Gaivota.
Apesar de ter certeza daquilo que quer, desde o início da aventura,
ao chegar em Creta, Teseu passa por diversas situações que colocam
em cheque a possibilidade de alcançar seu objetivo. O capitão do na-
vio é o primeiro a tentar alertá-lo sobre os perigos de sua aventura. De-
pois, ele conhece Ariadne, uma jovem imatura e muito geniosa, cujas
opiniões e vontades oscilam a todo o momento, mas que cumpre um
papel importantíssimo na história. E, por fim, o rei Minos, um homem
muito experiente e sábio.
Com cada uma dessas pessoas, Teseu trava um diálogo em que ele
não esconde o seu desejo de matar o Minotauro para cessar os sacrifícios
de jovens de sua terra. Assim também é em nossa vida: por mais que
estejamos determinados a conseguir algo, encontramos em certas oca-
siões pessoas que, pelos mais diversos motivos, tentam nos convencer
a abandonar a nossa jornada. Alguns podem ter até bons motivos para
isso, enquanto outros apenas não desejam a nossa felicidade. No entan-
to, cabe a nós sabermos diferenciar as palavras boas das palavras ruins,
filtrando tudo aquilo que chega aos nossos ouvidos.
A batalha de Teseu com o Minotauro mostra que, mesmo tendo cer-
teza daquilo que queremos, as situações podem ocorrer de uma maneira
diferente daquela que imaginamos. Ainda que tenhamos certeza do que
queremos, podemos passar por situações como a de Teseu, que se depa-
rou com situações totalmente inesperadas. O futuro não depende ape-
nas de nossa vontade e de nosso esforço, mas de uma série de detalhes
e pessoas que estão ao nosso redor, uma vez que não vivemos sozinhos.
Por essa razão todo o conhecimento e experiência adquiridos são muito
importantes para sabermos agir de forma adequada em cada situação e
é nisso que se constitui a verdadeira inteligência.

Um grande abraço,
Nicolas Tavares

126
Caro Samuel e grupo,

Foi interessante ver como vocês se aprofundaram na leitura do livro


Kouros e tiveram a percepção da evolução nos diálogos à medida que
a história avança. Quando Teseu sai de sua cidade para ir lutar contra o
Minotauro, ele sabia que ia para matar ou morrer. Observamos como, na
sua trajetória, soube evitar as armadilhas e dialogou com diversas pes-
soas – o capitão e Ariadne –, que tentaram dissuadi-lo da sua missão de
descer ao labirinto.
Mas Teseu era um guerreiro de mente aberta e conversou com aque-
É bom nos les que apareceram em seu caminho. Soube ouvir seus conselhos de ma-
prepararmos para neira a levar para si o que fosse essencial.
situações inusitadas É bom nos prepararmos para situações inusitadas que podem ter
que podem ter grande influência em nossa vida. Nesses momentos, precisamos saber
ouvir familiares e amigos que nos ajudam a enfrentar os diversos obstá-
grande influência culos e a ver com mais lucidez.
em nossa vida. Aconselhado pelo rei Minos, Teseu deixou suas armas fora do labirin-
Nesses momentos, to e desceu acompanhado de Ariadne, que levava consigo a sua flauta.
precisamos saber Vemos que um ponto interessante da história é a saída de Teseu do la-
ouvir familiares e birinto, pois sua descida foi muito diferente do que havia planejado. Na
luta de Teseu com o Minotauro, ao se abraçarem, os dois entraram em
amigos. conexão, e ambos saíram transformados. A sintonia entre eles era tão
profunda que, em algum momento, Ariadne não sabia mais quem era Te-
seu e quem era Minotauro e precisou chamar Teseu pelo nome para que
eles conseguissem se separar. Ao sair do labirinto, Teseu viu o mundo
diferente, como se fosse a primeira vez, e sentiu-se um homem maduro,
experiente e com um novo olhar para o mundo.
Nas palavras de Teseu: “Como o mundo se tornou vasto agora, Ariad-
ne! O mundo – ou é minha mente que cresceu? Por que agora abraça
tanto amigos quanto inimigos! Como pode cumprimentar e acolher o
solo e a água, a terra e o céu, tudo, e vê-los como se fosse pela primeira
vez?”.
Depois de sua trajetória e descida ao labirinto, finalmente, Teseu con-
seguiu alcançar o seu objetivo de crescimento e evolução: “E luto inces-
santemente, com uma teimosia inabalável, para me tornar o homem que
desejo ser...”

Um grande abraço,
Nicolas Tavares

127
Queridos Mailson, Mayara e Inaraykla,

Lemos os três últimos diários de bordo enviados sobre a leitura da


peça Kouros e notamos que emergiram muitos temas interessantes.
Diante da decisão de Teseu de deixar o conforto do lar para lançar-se ao
mundo em busca da libertação do seu povo, surgiu no grupo a questão:
O que é o destino?
Perguntas como essa motivaram muitos pensadores ao longo da His-
tória. Ainda no século IV a.C., Píndaro dizia que o destino é a consequên-
cia dos nossos pensamentos, palavras, atos, hábitos e caráter:

Vigie os seus pensamentos, porque eles se tornarão palavras;


vigie suas palavras, pois elas se transformarão em atos;
vigie seus atos, porque eles se tornarão seus hábitos;
vigie seus hábitos, pois eles formarão seu caráter;
vigie seu caráter, porque ele será o seu destino.
Píndaro, Fragmentos, séc. VI a.C.

Primeiro, Ariadne aparece para Teseu como uma barreira, alguém com
o objetivo de desviá-lo de seu destino. Utilizando um jogo de sedução,
ela tenta conduzir o jovem príncipe para o caminho do esquecimento.
Diante da jovem, ele age com cautela e determinação para não se deixar
desviar de sua trajetória, o que demonstra a plenitude de seu caráter.
Teseu, quando partiu para Creta, via o Minotauro e os governantes
daquela ilha como inimigos a serem derrotados. Ao longo da narrativa,
notamos que há um processo de transformação e amadurecimento, em
que a calma e o silêncio são elementos primordiais.
O silêncio é essencial O silêncio é essencial para ouvir aqueles sinais que indicam o tempo
para ouvir aqueles certo de agir. Com calma, ouvindo as sábias palavras do seu antigo ini-
migo, Teseu consegue libertar o Minotauro, cumprindo com o seu pro-
sinais que indicam o pósito: proteger seu povo para não sacrificar a juventude.
tempo certo de agir. Alguns participantes estranharam o fato de Teseu chamar o rei Minos
de pai. Se pensarmos na maneira com que o Rei agiu com Teseu, trans-
mitindo para ele toda a sua experiência para que o príncipe saísse vito-
rioso, notaremos que, nesse momento, nasce entre eles um sentimento
de cooperação. Tal relação é tão forte que, no final da história, após Teseu
retornar do labirinto, Minos contraria a vontade de Ariadne pela primeira
vez, negando-se a matar o príncipe de Atenas.

Um abraço a todos,
Aline Jacó

128
Querida Tereza e grupo,

Quando nos reunimos em grupo para pensar e debater ideias, é uma


forma ativa de estar em sociedade. Observamos que vocês estão assu-
mindo o papel de protagonistas, contribuindo para a construção de um
mundo melhor. Ser protagonistas da história é trabalhoso, mas sem dú-
vida é uma aventura fascinante.
Quando nos Na peça Kouros, de Nikos Kazantzakis, temos um jovem, Teseu, que se
dispõe a resolver um problema que há muitos anos se mantinha – Ate-
reunimos em grupo
nas subjugada a Creta. Na história há uma passagem muito significativa
para pensar e em que Teseu diz ao capitão: “Muito nos aguarda – grandes feitos, e ho-
debater ideias, é uma mens que se recusam a fazê-los”.
forma ativa de estar Kazantzakis, leitor de Nietzsche, ao reescrever a história, decide es-
em sociedade. crever um outro final e, nessa reescrita, desafia o próprio destino, pa-
lavra que nomeia de 32 maneiras diferentes. Em sua peça, mostra que
as coisas permanecem fixas até o momento em que aparece um herói
determinado a colocar em movimento a roda do destino, enfrentando o
problema e permitindo que a história siga seu rumo. Estamos felizes em
acompanhar o fortalecimento do grupo e em constatar que tem surgido
reflexões tão significativas para a vida de vocês e para a sociedade.
Lembramos de uma poesia de Heidegger que dialoga com o tema: no
grupo nos tornamos companheiros na arte de pensar.

Nós nunca chegamos aos pensamentos.


Eles vêm a nós.
É a hora conveniente para a conversação.
Isto nos dispõe para a meditação em comum.
Esta nem considera o opinar contraditório, nem tolera o concordar
condescendente.
O pensar permanece firme ao vento da coisa.
De uma tal convivência
talvez alguns surjam como companheiros no ofício do pensar.
A fim de que inesperadamente um deles se torne mestre.

Um abraço,
Catalina e Cidinha

129
Querido multiplicador e grupo,

Em seu diário, referente ao encontro do dia 25 de fevereiro, você cita:


“Alguém pode ser ou ter um deus próprio? Ele representa o quê? Perfei-
ção – autossuficiência”. Essa ideia está presente em um diálogo da peça
Kouros, quando o rei Minos diz para Teseu:

Reconheço-me em você, Teseu. Quando eu era jovem, também pen-


sava que eu e meu deus poderíamos resolver tudo. Assim é a juven-
tude”.

E transmite para E o rei complementa dizendo que ter um deus dentro de si é impor-
ele o ensinamento tante, mas não é suficiente. E transmite para ele o ensinamento de que
também precisaria aprender a ter calma, paciência e estar atento aos si-
de que também
nais para saber agir no momento certo.
precisaria aprender a
ter calma, paciência Seja paciente, controle sua forca, se for forte. A juventude é tola,
apressada, condescendente. E as palavras que estou prestes a lhe con-
e estar atento aos fiar podem acabar sendo desperdiçadas.
sinais para saber agir
E lhe orienta:
no momento certo.
Primeiro, quando você descer às entranhas da terra e alcançar a escu-
ra e divina caverna, curve-se e cumprimente nosso deus com respeito;
ele é um grande guerreiro, dentro dele se encontram os três poderes
básicos da terra e do céu: Animal, Homem e Deus. Ele luta para trazer
ordem e eu luto ao lado dele. Você compreende?

Essa ideia de ter um deus dentro de si está presente em Platão, que,


em seus diálogos, nos diz:

... quem ama, tem um deus dentro de si e o amor infunde coragem”. É


esse amor que o leva a procurar o ser amado. Em Fernão Capelo Gai-
vota, Richard Bach nos diz que compartilhar o conhecimento é uma
forma de dar amor: E quanto mais praticava as lições de bondade, e
mais trabalhava para compreender a natureza do amor, mais queria
voltar à Terra. Isto porque, a despeito do passado solitário, Fernão Gai-
vota nascera para tornar-se um instrutor, e sua maneira de demons-
trar amor era doar um pouco da verdade que conhecera a uma gaivo-
ta que pedia apenas a oportunidade de vê-la por si mesma.

Ficamos à espera das reflexões do grupo sobre as obras do acervo.

Um abraço,
Catalina e Aline Vieira

130
Não se preocupe então, fale livremente. Eu me curvo perante a ve-
lhice que deu frutos. Quais são suas instruções finais, velho guerreiro?

Queridos multiplicadores,

Na peça Kouros, um dos temas abordados mais frequentemente é a


presença do divino dentro de si. Teseu, na busca incessante de libertar
seu povo do Minotauro, foi guiado por sua determinação a Creta para
derrotá-lo. Lá, com ajuda do rei Minos, descobriu que havia uma terceira
via para salvar a juventude de sua terra natal: não matar nem morrer, mas
transformar.
A sabedoria provinda das gerações passadas é recebida por Teseu
como um legado. Ainda que o jovem herói tenha escutado atentamente
às instruções do ancião, manteve-se fiel à sua determinação e àquilo que
seu deus interior dizia, libertando Atenas do domínio de Creta; porém,
descobriu também, durante a sua jornada, que aquele que antes fora o
touro era um ser feito a sua imagem e semelhança, que se tornou a en-
carnação do divino que habitava dentro dele.
No momento da saída do labirinto, o príncipe de Atenas soube que
seu destino não era outro se não partir pelo sem-fim do azul do Mar Me-
diterrâneo para encontrar um novo horizonte com seu par – a comple-
mentariedade do seu ser em carne –, pois agora encontrara a sua unida-
de ao descobrir que ele e seu deus eram apenas um.

Abraços,
Lindemberg Vidal

131
132
Aphonua/Fotolia
Noites brancas

Noites brancas tem sido uma das obras mais trabalhadas no progra-
ma Círculos de Leitura e apresenta um dos temas mais caros à Fiódor
Dostoiévski, presente em praticamente todas as suas obras: a força dos
bons encontros.
O escritor russo sempre apresentou e defendeu em seus escritos
a ideia de que um bom encontro é um elixir poderoso, que fica reser-
vado em nossa alma e que, nos momentos de necessidade, pode vir a
nos salvar. No Círculos de Leitura, trabalhamos esse tema utilizando
outras obras do autor, como o conto O mujique Marey e o romance Os
irmãos Karamazov.
Na tentativa de nos aproximarmos cada vez mais da alma de Dos-
toiévski, buscamos diferentes traduções, mas a verdadeira aproxima-
ção só aconteceu quando certo dia Vera Mlodok Guedes, nossa amiga
russa, visitou-nos na Casinha e, tomada pelo entusiasmo dos jovens,
ofereceu-se para nos ajudar a elaborar uma nova tradução do livro.
À medida em que ia traduzindo o romance, em busca das palavras
adequadas para estar à altura da genialidade de Dostoiévski, Vera foi se
aprofundando na obra e encontrando novos sentidos. Nesse processo,
recuperou um livro que já havia lido em sua juventude, agora com ou-
tra intensidade.
Quando Vera nos entregou a tradução, na primavera de 2011, pas-
samos a revisá-la juntos e ficamos muito emocionados, agradecendo
profundamente por sua ajuda e dedicação. Vera nos respondeu que
era ela quem nos agradecia, pois o tempo dedicado à tradução da
obra de Dostoiévski a levara a um mergulho nas camadas mais profun-
das do espírito humano, nosso desejo desde o princípio. A gratidão
que sentimos ao completar a tarefa a que tínhamos nos entregado foi
semelhante àquela vivenciada pelos personagens de Noites brancas:
Nástenka e o Sonhador, que recuperarem suas vidas ao reencontrarem
a crença nos bons encontros.

133
Querida Joana e grupo,

Lemos as reflexões que surgiram sobre a obra Noites brancas, que


achamos muito especial e que fala da linda amizade que nasce entre
Nástenka e o Sonhador e a confiança que os une, tirando-lhes da solidão
em que viviam. Também relacionamos algumas de nossas reflexões com
as ideias de vocês.
Dostoiévski, nessa história, retrata um tipo de amor diferente, o amor
amigo. De um lado, o Sonhador, que vivia tão solitário e que não pensava
e nem estava preparado para se casar, mas que precisava de alguém em
quem aprendesse a confiar e com quem pudesse conversar. De outro,
Nástenka, que também vivia solitária, à espera do retorno do noivo e
para quem, até então, o amor amigo era algo desconhecido.
Muitas vezes, sentimos dificuldade em encontrar amizades verdadei-
ras, mas será que isso também não se deve ao fato de que ainda não
aprendemos a cativar outras pessoas? Na história do Pequeno Príncipe,
por exemplo, vemos que ele aprendeu com a raposa como cativar, pas-
sando a ser um necessário para o outro e único no mundo. E quando o
principezinho teve de ir embora, a raposa queria chorar, mas não tinha
importância, pois ela ficaria com as boas lembranças; antes de conhecer
o príncipe, o trigo não tinha sentido algum para ela, mas como o prín-
cipe tinha cabelos dourados, agora, todas as vezes que olhasse o trigo
amarelo nos campos, se lembraria dele.
Em Noites brancas, podemos notar uma semelhança com essa his-
tória: o Sonhador não sabia cativar, mas, após conviver com Nástenka,
aprendeu a confiar, a cativar e ser cativado e também a deixar partir a
pessoa que se ama, ficando com as boas lembranças.
Como vocês veem, as ideias que surgiram no grupo se relacionam
muito com os temas tratados no romance Noites brancas. Partimos de
um tema tão interessante, como a amizade, e chegamos à reflexão sobre
a importância de estarmos abertos para os bons encontros.
Ao aprendermos a cativar, criamos uma amizade, que é um tipo de
amor diferente, um amor ampliado. E, aprendemos a nos preparar para
a separação, sabendo que tudo que foi vivido permanecerá para sempre
conosco em nossa lembrança e no nosso coração.
Aguardamos novas reflexões!

Abraços,
Catalina e Alanne

134
Querida Nástenka,

Já faz tanto tempo... recordo-me como se tudo tivesse acontecido


ontem mesmo. E como não lembrar da mulher que outrora me salvou?
Como não lembrar da bela e inocente Nástenka?
Ah, Nástenka... Nástenka! Minha querida e doce Nástenka, que, com
seu jeitinho simples e infantil, conquistou-me de tal forma que me vi
obrigado a fugir de meus devaneios, do meu ardente hábito de ser um
sonhador.
Você, Nástenka, saiu da minha vida tão de repente quanto entrou, po-
rém, seria tolo em declarar que não deixou marca alguma no ser em que
me tornei depois que você se foi. Você partiu com o seu Inquilino, mas
fez mais que isso – exigiu o meu perdão, exigiu que continuássemos a
ser tão bons amigos como costumávamos ser, exigiu que eu não ficasse
bravo com você.
Eu a perdoei, Nástenka, movido também por uma grande admiração
com tal ousadia sua. Para ser totalmente franco, digo que não a odiei, re-
conheci sua coragem e sinceridade para fazer o que fez. Entendi o fato de
você ter ido embora, mesmo depois do que havíamos planejado, já que
seu coração pertencia a outro, e fiquei muito grato por você ter se des-
culpado de forma tão sincera naquela carta. Era tudo que eu precisava.
Sim, Nástenka! Eu precisava de algo que me fizesse acordar para a
vida. Algo que não me permitisse mais me desligar do mundo ao meu
redor e voltar a acordar para o mundo real. E você, Nástenka, me deu um
forte e brusco empurrão para isso. Foi você, apenas você!
Não posso negar que Não posso negar que o que eu senti por você naquelas noites bran-
o que eu senti por cas mudou-me aos poucos. Tantas sensações confusas que só as reco-
você naquelas noites nheci porque antes, muito antes, as havia visto descritas em romances.
Tão fortes... Tão intensas... Um novo sentimento foi criado em meu ser
brancas mudou-me e senti que era capaz de amar. Eu fui capaz de amá-la, Nástenka, e isso
aos poucos. Tantas foi novo para mim. Você não pode imaginar o quanto tentei controlar
sensações confusas esse novo sentimento a fim de não a magoar, mas ele era muito for-
que só as reconheci te, fervia em meu peito. Percorria minhas veias gritando para ser livre e
porque antes, muito compartilhado.
Compartilhá-lo não foi possível. Seu coração pertencia a outro. Sei que
antes, as havia não pretendia, de modo algum, magoar-me. Inevitável. Sofri, Nástenka.
visto descritas em Por isso fugi. Por isso não lhe dei mais notícias. E, só agora, trinta anos
romances. depois, é que lhe escrevo esta carta, pois estou em dívida com você. Uma
dívida que pagarei informando-lhe brevemente como tem sido minha
vida depois que você se foi com o seu amor.
Saí de Petersburgo e mudei-me para um lugar no interior com Ma-
triona. Precisava de um refúgio. Precisa pensar, talvez sonhar. Como ex-
trair o amor que sentia por você de dentro de mim? Indagava-me. Mas
não obtinha resposta. Afinal, estava claro como água – não poderia

135
retirá-lo ou simplesmente eliminá-lo de mim, não havia jeito. Teria de
conviver com o amor que ardia e queimava meu coração. Um dia, pro-
vavelmente, as feridas cicatrizariam.
Passei muitos dias solitários, sobrevivendo apenas com o pouco que
Matriona conseguia obrigar-me a comer. Com o passar do tempo é que
fui percebendo, até não haver mais nenhuma dúvida. Você, Nástenka,
não havia entrado na minha vida por acaso. Ao contrário, foi parte fun-
damental em meu destino. Você acendeu a chama que dormia dentro de
mim. Considerei-me um completo estúpido por não ter percebido antes
que você não me fez mal algum, somente me fez renascer.
Voltei a Petersburgo decidido a levar uma nova vida. E realmente con-
segui, Nástenka, você me fez conseguir. Me fez enxergar o quão fácil era
sair do casulo, bater asas e voar. Fiz novos amigos, acredite. Boas pessoas.
Bom, apaixonei-me novamente, também. Ela não é como você, Nástenka,
mas eu gosto dela e hoje posso dizer que a amo. Nos casamos. Tivemos
uma pequena, simples e bela festa de casamento. Queria ter-lhe convida-
do, Nástenka, mas, na época, receei esse reencontro. Tive medo de que, se
a visse de novo, aquela chama insistente do meu amor por você pudesse
se reacender num piscar de olhos. Espero que não fique brava.
Finalmente, Nástenka, me senti feliz como nunca antes. Quando era
apenas um Sonhador, sentia-me angustiado quase todo o tempo, porém
essa angústia foi substituída por alegrias. Tive filhos. Dois filhos lindos e
espertos, que, às vezes, lembram-me muito de você, com o seu jeitinho
meigo e infantil de ser.
Por fim, agradeço-lhe, Nástenka. Se não a houvesse encontrado na-
quele banco chorando sozinha, se não a tivesse salvado daquele senhor
bêbado e se não a tivesse ajudado por tão pouco tempo, mas por tem-
po suficiente, a se resolver com o seu amor, certamente eu não teria
acordado para a realidade. Continuaria sonhando e sonhando... Apenas
sonhando.

Com uma enorme gratidão,


seu eterno Sonhador

P.S. Perdoe-me por não ter respondido antes e, por favor, não chore.
Letícia Lopes (multiplicadora).

136
Meu querido sonhador,

É verdade, já faz muito tempo que não nos falamos. Confesso que não
o procurei novamente por medo de sua reação depois que recebesse
minha carta. Vejo que você está feliz, que utiliza muitas palavras positi-
vas, como amor, alegria e esperança. Como você mudou, meu Sonhador;
agora é um homem do mundo real, se casou e teve filhos.
Como você mesmo disse, já se passaram trinta anos. Durante esses
anos também fui uma sonhadora: sonhava com você, com o nosso re-
encontro, com suas perguntas engraçadas, com o seu jeito maravilhoso
Sempre achei que
de contar histórias, falando como se lesse um livro. Mas, meu sonhar não
heróis só existiam me privava do mundo real, pois também aprendi com você que uma mu-
nos livros que lia lher só é verdadeiramente feliz quando sente o toque de um cavalheiro
para minha avó; pegar-lhe o braço, protegendo-a de um bêbado. Sempre achei que heróis
porém, quando só existiam nos livros que lia para minha avó; porém, quando o conheci,
tive a certeza de que eles existem no mundo real.
te conheci, tive a
Se sonhei com tudo isso, é porque sei que quando se ama, não dura
certeza de que eles muito o ressentimento. E você me ama! Eu escrevi essa frase naquela
existem no mundo carta. Hoje o mundo é prova do nosso amor, sim, nós nos amamos! Nos
real. amamos tanto que cuidamos um do outro, que cultivamos sonhos e dei-
xamos uma boa lembrança. Bem, mas, assim como na nossa segunda
noite, vou contar-lhe minha história:
O meu Inquilino foi ao meu encontro na noite marcada, mas ao che-
gar nos viu juntos e resolveu ir embora e nunca mais procurar-me. Dias
depois, já estava com a viagem marcada para a manhã seguinte, resolveu
passear mais uma vez nas praças da bela Petersburgo. Viu-me novamente,
mas dessa vez eu também o vi, e aconteceu aquilo que você presenciou.
Eu disse em minha carta que nos casaríamos na semana seguinte, mas
resolvemos esperar um pouco mais. Queria que você estivesse em meu
casamento, ele também, pois você cuidou de mim, me salvou da morte,
pois pensei em pular da ponte naquela noite em que nos conhecemos.
Mas como você demorou muito a responder; nos casamos dois anos de-
pois. Também tive uma filha, ela se chama Ana, que significa, em hebraico,
cheia de luz. Escolhi esse nome pensando em você e no nosso encontro.
Em novembro deste ano, eu e o Inquilino, agora meu esposo, comple-
taremos 25 anos de casados – bodas de prata. Faremos uma festa relem-
brando a nossa história de amor, e você é nosso convidado. Quero que
leve seus filhos e sua esposa.
De sua eterna, doce e pequena,
Nástenka.

Aline Jacó

Carta-resposta para Letícia Lopes (multiplicadora).

137
Queridos multiplicadores e grupo,

A obra Noites brancas, de Fiódor Dostoiévski, é uma das mais belas do


nosso repertório. O grupo ficou sensibilizado com a vida solitária do So-
nhador: um homem tímido, que se comunicava apenas com os prédios
ao seu redor.
Com o avanço da leitura, descobrimos que a solidão do Sonhador vi-
nha do passado. Ele se sentia como um gatinho que, após ser maltratado,
se esconde e foge do relacionamento humano.
Algo muito recorrente nos dias de hoje é o bullying. Muitas crianças
sofrem violência em virtude de algumas características físicas ou psicoló-
gicas, por terem algum problema de família – que é conhecido por aque-
les que estão ao seu redor –, ou simplesmente porque são menores do
que os “valentões” que praticam a violência e a utilizam como forma de
domínio, sentindo prazer em ver a dor do outro.
Quem sofre bullying tende a se isolar, em uma tentativa de se pro-
... o Sonhador teger. Mas, em alguns casos, a vítima pode desenvolver um sentimen-
descobriu que “viver to de ódio que a leva a reproduzir a violência sofrida, criando um ciclo
em isolamento era vicioso, que se reproduz em ambientes de convívio e afeta a vida em
sociedade.
pecado e delito”,
Outro fato interessante de observarmos é que, além de não ter ami-
porque não é da gos, o Sonhador não fala sobre a existência de nenhum familiar. A única
natureza humana pessoa que vemos próxima a ele é Matriona, a senhora que cuida de
viver sozinho. sua casa.
Mas, ao conhecer Nástenka, o Sonhador descobriu que “viver em
isolamento era pecado e delito”, porque não é da natureza humana vi-
ver sozinho. São necessários momentos para ficarmos sozinhos, mas é
importante haver um equilíbrio entre os momentos de isolamento e de
convívio social, respeitando a natureza de cada um.

Um abraço,
Catalina e Cidinha

138
Querida Rozana e grupo,

Uma das várias coisas importantes que este livro nos leva a refletir é
a maneira como nem sempre é necessário um “final feliz”, como vemos
nos contos de fada, para que a história seja bonita e traga lições interes-
santes.
Em Noites brancas, Dostoiévsky retrata um tipo de amor diferente, o
amor amigo. De um lado, temos o Sonhador, que vivia solitário e não
tinha coragem de se aproximar de ninguém, de outro, Nástenka, que
também vivia solitária, mas, ao contrário do Sonhador, esperava o retor-
no de um homem com quem planejava se casar. Conhecendo a história
dos dois, podemos entender o grande aprendizado e crescimento que
proporcionou para o Sonhador a partida de Nástenka com seu Inquilino,
apesar do sofrimento que inevitavelmente ele sofreu. Mas o importante
é que agora ele vivia, se alegrava e sofria com situações da vida real e não
mais se perdia em um mundo imaginário.
Outro ponto interessante, comentado por vocês, é a forma como o
amor é capaz de mudar a concepção que temos das pessoas. Ele mobi-
liza o que há de melhor em nós e nos faz capazes de olhar as pessoas de
maneira especial, observando os detalhes mais simples e de mais valor. E
amar é isso: é ter um segundo olhar, é ver com os olhos do coração.
Pensando nisso, me lembrei da história do Pequeno Príncipe, mais
especificamente de quando a raposa ensina o principezinho a arte de
cativar. Quando o príncipe tem de ir embora, a raposa diz que guardará
dele as boas lembranças, já que ambos tinham cativado um ao outro. Em
Noites brancas, vemos uma semelhança com essa história: o Sonhador
não sabia cativar, mas aprendeu em sua relação com Nástenka. Com isso,
aprendeu também a deixar partir aquele que se ama, ficando apenas
com as boas lembranças.
Desejo-lhes ótimas leituras e que as reflexões sejam, a cada livro, mais
empolgantes para o grupo. Espero por novas reflexões!

Abraços,
Alanne de Souza

139
140
Retrato de Machado de Assis por Henrique Bernardelli (1905).
Dom Casmurro

Acompanhando as memórias de Dom Casmurro, observamos toda a


complexidade do ser humano e que um dos grandes desafios que enfren-
ta, ao longo da existência, é aprender a distinguir entre aquilo que o cons-
trói e aquilo que o destrói.
A história vai muito além do tema da traição. Ater-nos apenas à questão
do adultério significa cair na “cilada” do personagem, que constrói toda a
narrativa procurando justificar o seu comportamento que em muitos mo-
mentos demonstra um profundo desequilíbrio.
Bento Santiago, cuja contradição é vivida até mesmo no nome – Bento
(santo) + Iago (o mal) –, levava uma vida focada nas convenções sociais e
aparências. Dissimulando seus sentimentos e sem construir sua identida-
de. No início da narrativa, Santiago já antecipa que sua vida fora vivida tal
qual a encenação de uma ópera.

Uma das atividades de Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma ópera”,
escrita que realizamos dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu...
nos Círculos de Leitura
é incentivar os jovens Bentinho, por não conseguir lidar com seus sentimentos, vive susten-
a escreverem para os tando as máscaras que julga serem convenientes.
personagens. Com esse
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro,
exercício, realizam um que aprendeu no conservatório do céu. Satanás suplicou ainda, sem
mergulho profundo na melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consen-
obra e nas inquietações tiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro
especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as
apresentadas pelos
partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
personagens.
Percebemos dois momentos bem marcados na história: a primeira fase,
marcada por descobertas e conquistas, quando o jovem encontra o pri-
meiro amor e, apesar das dificuldades, consegue conquistar tudo o que
sonhava: formar-se advogado e casar-se com a mulher que amava desde
a infância. Essa felicidade é marcada com o presságio: “Tu serás feliz, Ben-
tinho”; a segunda fase corresponde ao “declínio”, quando, após ter conse-
guido tudo o que desejava – uma bela carreira, uma esposa apaixonada,
um filho –, Bentinho vive dividido entre o amor que dedica à Capitu e ao
filho e o ciúme doentio que o atormentava.
O narrador, solitário e caminhando para a velhice, vê-se atormentado
por inquietas sombras. E na tentativa de livrar-se delas e finalmente ter paz
de espírito, decide reviver toda a sua vida escrevendo as suas memórias.

O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhi-
ce a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem
o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me
faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pes-
soas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.
141
Bentinho,
Pensei muito em ti e tenho algo a dizer-te. Quero te falar do olhar, da
atenção, da intensidade, da amizade, do encontro de almas, da vertigem
do amor e, por que não, também do medo que ele nos causa, ao nos
sentirmos levados sem saber por quem nem para onde.
Tu, Bentinho, relatas nas tuas memórias de juventude momentos su-
blimes que nem todas as pessoas tiveram a alegria de viver. José Dias,
com a sua denúncia mal-intencionada, acabou dando nome ao que
tu sentias sem saber que é assim que nos sentimos quando amamos.
Tua inocência e felicidade me comoveram. Quando José Dias falou dos
“olhos dissimulados” de Capitu, tu quiseste conferir. Foi aí no olhar que
tu lhe deste, na atenção, na compenetração, teus olhos nos dela, nesse
encontro atento e profundo, que algo sobrenatural aconteceu.
Abraços,
Catalina

Mamãe,
Preciso dizer-te algo que é muito importante para minha vida futura.
Tentei outro dia dizer-te isso através de uma conversa, mas senti que não
consegui dizer tudo o que precisava; portanto, escolhi escrever uma car-
ta, porque me sinto mais à vontade com as palavras escritas.
A verdade é que não posso ser padre. No início, não estava muito cer-
to disso, mas em uma conversa com meu amigo Escobar, ele me disse
que eu não seria um bom padre, que na verdade nem seria padre e que
Deus protegia os sinceros. Isso me fez me sentir muito bem, pois através
dele pude entender o que eu estava sentindo. Eu ainda não estou certo
de qual seja a minha verdadeira vocação, mas sei que ela virá com o tem-
po. Ah! Não se preocupe com a promessa, pois Deus é bom e entenderá
que isso é o melhor para mim.
Mas há outra coisa que preciso lhe contar: eu estou vivendo agora
em um novo tempo, um tempo mágico, que imagino que você, mamãe,
também já tenha vivido nos seus tempos de mocidade, uma vez que
sei do amor que existiu entre você e papai durante este tempo e que,
aliás, pode viver até hoje, já que é na ausência, na saudade, que pode-
mos pensar e recriar o vivido com intensidade ainda maior. Eu também
estou vivendo o amor por uma bela moça. Confesso que, por vezes, tive
medo de olhar-lhe profundamente nos olhos, mas nesta semana recebi
uma carta de uma amiga e defensora do amor (ela se chama Catalina)
que me disse que esse medo é normal no início, mas que depois ele vai
embora, pois, ao olhar nos olhos de minha amada, poderei entrar em
contato com algo muito maior, que ainda não entendi bem o que seja,
mas sei que no momento certo saberei.
Com amor!
Bentinho

142
Olá, Nairáh,

Li sua carta e me chamou a atenção quando você disse que “tenta-


mos saber realmente qual a verdadeira identidade de Bentinho, pois o
modo de viver pode tê-lo ajudado a não ter uma identidade. ” A fuga da
realidade fez com que Bentinho nunca soubesse quem era, já que é na
realidade que construímos nossa identidade. Como você diz, esse “modo
de viver” não permitiu que ele construísse sua identidade. Logo no iní-
“Se só me faltassem cio do livro, Bentinho diz: “Se só me faltassem os outros, vá, um homem
os outros, vá, um consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falta eu mesmo,
homem consola-se e esta lacuna é tudo”. Com isso, Bentinho demonstra que os outros não
têm muita importância para ele, mas sabemos que é justamente a partir
mais ou menos das
de nossas relações e da troca de experiências com os outros que constru-
pessoas que perde; ímos nossa identidade. Desse modo, Bentinho não consegue preencher
mas falta eu mesmo, a lacuna de sua vida
e esta lacuna é tudo”. O modo como age, sem fazer nada por completo, pode ser observado
no capítulo “Soneto”, no qual escreve aquilo que seriam os primeiros e os
últimos versos de um poema, sem se dar ao trabalho de escrever o meio.
Em sua vida também age dessa forma.
Outra questão interessante apresentada em sua carta foi o fato de
Bentinho escrever um livro para reviver seu passado a fim de preencher
a lacuna que há em sua vida. Sabemos que recuar para compreender o
passado é um recurso necessário em alguns momentos, para depois se-
guirmos em frente, como vemos em Um conto de Natal, em que Scrooge
precisou retornar à infância para deixar de ser rabugento e mesquinho.
Mas qual será a razão pelo qual para Bentinho essa volta ao passado não
o ajudou a compreender quem ele era? Bentinho olha para o passado
sem mudar seu olhar e continua culpando os outros pelo seu fracasso.
Quando você diz que “temos a ideia de traição quando lemos o livro,
porque quem o escreveu era a pessoa que acreditava ter sido traída”, não
posso deixar de concordar. Bentinho escreve o livro de tal modo que o
leitor acredite na traição de Capitu, quando, na verdade, foi Bentinho
que traiu a si próprio ao fugir da realidade e não se construir. Aqui, não
podemos deixar de lembrar do que Shakespeare nos ensina em Otelo:
“As almas ciumentas nunca ficam sossegadas; não são sempre ciumen-
tas por um motivo; são ciumentas porque são ciumentas. O ciúme é o
monstro gerado e nascido por si mesmo. ”

Abraços,
Raquel

143
Bentinho,

Soube de uma conversa que teve com Capitu, na qual foi apontado
por ela que você sentia medo. Mas, pelo que me parece, você não re-
conhece isso, e ficou bastante surpreso. Ao mesmo tempo, percebi que
também ficou instigado a entender o porquê de Capitu dizer isso. Creio
que seu estado de desconforto diante deste diálogo é um passo mui-
to importante para uma possível compreensão do fato e, consequente-
mente, de si mesmo.
Em contrapartida, conhecendo outra característica sua – a de achar
que as coisas vão até as pessoas de uma forma pronta, sem que seja pre-
ciso um esforço para que sejam construídas e entendidas –, acho bem
provável você não levar essa conversa adiante, pois não há saídas pron-
tas para ela.
Bentinho, uma vez li em um livro de Kazantzakis que o visitante é um
deus disfarçado ou um enviado dos deuses. Coloco a Capitu nesta ca-
tegoria. Aquele que vem de fora sempre nos traz algum novo conheci-
mento, revelando algo que, anteriormente, era estranho dentro de nós;
precisamos acolher este outro.
Você escreveu um livro no qual conta a sua história de vida e se coloca
como uma lacuna dentro dela. Creio que deve ter sido duro perceber
isso; afinal, essa afirmação equivale a dizer que você não teve vida. Tão
duro que, após dar esta informação, você faz um relato em que sua his-
tória aparece de forma superficial. Essa sua resistência deve estar ligada
a outra característica sua, que eu observo com clareza através da leitura
de sua narrativa e que, como eu disse anteriormente, Capitu o alertara:
trata-se do medo de viver.
Talvez, como no passado, ao ler essas palavras, suas reações sejam as
mesmas. É provável que esteja perplexo e sem entender esses dizeres.
Proponho-lhe, então, que dialoguemos mais sobre estas questões e ou-
tras que, muito provavelmente, virão. O que o senhor acha?!
A não ser que tenha escrito a história somente para um tipo de leitor,
talvez um pouco casmurro também. Nesse caso, sei que, infelizmente,
respostas eu não terei! Mas sou esperançosa e considero esta carta como
uma possível forma de preencher uma parte, mesmo que pequena, da
lacuna que deixou.

Um abraço,
Marina

144
Caro Bentinho,

Desejo dizer-lhe que a vida é curta e que a única certeza de que nós
temos é que um dia vamos morrer, pode ser amanhã ou daqui a 100 anos.
Então, meu caro, não se prive de desfrutar das coisas que a vida tem a lhe
oferecer, sejam elas sentimentos, conhecimentos, emoções, experiências.
Enfim, viva intensamente, cada gotinha de vida que possui, cada sentimen-
to, cada amor, cada dor, cada coisa que faça você sentir-se vivo por dentro.
Reflita mais sobre a sua vida e aprenda com os seus erros. Bons amigos
ajudam nesse processo. Faça dos bons momentos eternos, porque é algo
que você viveu, é real, e isso não pode morrer.
Aprenda a confiar Aprenda a confiar nas pessoas que ama. Não sinta receio de mostrar
nas pessoas que o que você realmente pensa, o que você realmente quer; afinal, se você
ama. Não sinta não for verdadeiro com as pessoas que ama, com quem você poderá ser?
E não se esqueça de que não importa o tempo que você passe com
receio de mostrar o alguém; você nunca vai parar de aprender e conhecer sobre a pessoa.
que você realmente Então preste mais atenção nas pessoas à sua volta, principalmente nas
pensa, o que você mais queridas. Bom, apenas quero pedir-lhe que pare um pouco e pense
realmente quer. nessas coisas que estou dizendo-lhe, pense na sua vida e no rumo que
ela está tomando, e, acima de tudo, pense no que você quer, no que você
almeja, no que você quer ser.
Você tem tudo para ser feliz e ter uma vida maravilhosa, meu caro. E
eu espero profundamente que você aproveite alguma coisa dita nesta
carta e que desfrute de uma vida feliz de verdade! E que, lá na frente,
quando você já tiver vivido muito, possa olhar para trás e sentir orgulho
da pessoa que você se tornou, de ter vivido a vida que você escolheu ter
vivido, um caminho traçado pela sua vontade e, assim, poder dizer para si
mesmo que você é uma pessoa realizada! Bom, meu caro Bentinho, aqui
me despeço de você.

Atenciosamente,
Guilherme

145
Cara Dona Glória,

Há tempos não nos falamos. Lembro-me, como se fosse hoje, do dia


de seu casamento, quando tirei aquela foto que tanto traduzia um amor
ideal. Sinto que foi vivido com muita intensidade. Prova disso foi a cons-
tituição de um ser que carrega parte de vocês: Bentinho.
Dona Glória, não nos podemos nos esquecer de que a vida tem movi-
mento. Você perdeu seu esposo, e sei o quanto isso hoje lhe afeta, pois é
visível que não digeriu essa separação.
Acredito que ser mãe é uma das funções mais sublimes de uma mu-
lher, porém não é a única; a mulher precisa ser e cultivar a feminilidade
que há nela.
Apresento-lhe por meio desta carta um amigo íntimo e filósofo espa-
nhol chamado José Ortega y Gasset. Ele me disse certa vez que quando
a mulher se torna somente mãe, dedicando-se só à maternidade, ela se
esquece de seus deveres e compromissos com a pátria, a história e a hu-
manidade. Sabe, Dona Glória, o que me deixa mais triste é que esse tipo
de mulher, ao deixar de cultivar sua feminilidade, rouba do homem o
tempo mítico, uma ligação direta com o divino, que ele só consegue ao
ver na mulher amada o seu ideal de feminilidade. Não permite, assim,
que o gênero humano desfrute e sinta o mais puro mel que pode existir
na alma das pessoas.
Soube que está envolvida em uma promessa e que isso está afetando
a vida de quem mais sinceramente ama, seu filho.
Diga-me, Dona Glória, a que Deus a senhora serve? Pois o meu é um
Deus que é misericordioso, um Deus que entende e perdoa. Sei que é
possível manter um contato com Ele e pedir que livre você desse medo
e temor. Essa força à qual todos nós estamos a serviço será capaz se sua-
vizar eliminar seu temor.
Rezando, sonhando, encontrando outro amor, podemos nos dirigir a
esse divino, identificando aquilo que podemos fazer de melhor para nós
e para os outros.
Que Deus a abençoe e apresente possibilidades.

Beijos,
Vitor Hugo

146
Prezada Dona Glória Santiago,

O propósito desta carta é interceder por uma pessoa a quem ambos


desejamos um futuro auspicioso: seu filho, Bento Santiago. Sou amigo
dele, no entanto, por uma questão de discrição e também por que esta
iniciativa é de minha total responsabilidade, preferi não me identificar.
Mas saiba que desejo o bem de Bentinho tanto quanto a senhora.
Não pretendo com isso dizer à senhora o que fazer para orientar a
vida de seu filho, pois sei que a senhora possui a melhor das intenções
e acredita que está fazendo o melhor para ele. Pretendo tão somente
alertá-la de que existe uma faceta desconhecida sobre seu filho, que ele,
por temor ou por respeito não consegue revelar-lhe.
Notei ultimamente que Bentinho andava taciturno e seu semblante
escondia uma grave preocupação; busquei conversar com ele e desco-
brir o motivo de sua angústia. Ele me confessou o desejo de não ingres-
sar no seminário, visto não possuir vocação para o sacerdócio e pelo fato
de seu coração já pertencer a uma moça.
Ora, existem dois Ora, existem dois modos de lidar com um problema: o primeiro é
modos de lidar com ignorá-lo; o segundo é reconhecer que ele existe e tentar resolvê-lo da
um problema: o melhor maneira possível. No primeiro caso, temo que seu filho um dia se
torne alguém profundamente amargurado, coisa que, creio eu, a senho-
primeiro é ignorá- ra não desejaria; no segundo, há a possibilidade de que doravante seu
lo; o segundo é filho seja um bom homem, além de alegre e confiante. Ele me disse que
reconhecer que chegou a expor-lhe o problema, mas que a senhora alegou estar presa a
ele existe e tentar uma promessa que fizera a Deus antes de dar-lhe à luz, cujo descumpri-
resolvê-lo da melhor mento, implicaria grande castigo para a senhora.
Bom, devo dizer-lhe que sou um devoto do mesmo Deus que a se-
maneira possível. nhora e que, além disso, tenho um profundo respeito por sua fé e reli-
giosidade. Não obstante, nossa crença no que diz respeito ao Altíssimo
guarda algumas sensíveis diferenças. A primeira, talvez a senhora tenha
esquecido, é que Deus é o sumo Bem e a suma Misericórdia; a segunda
é que o Seu desejo primeiro é que seus filhos sejam felizes e amem uns
aos outros e a Ele sobre todas as coisas.
Portanto, não creio que Ele queira ver um de seus filhos servindo-o
contra a vontade, uma vez que seu coração já reside em outra morada.
Também não creio que Ele castigaria a senhora por isso, pois sua infini-
ta sabedoria reconheceria o gesto de uma mãe que só quer proteger o
filho. Portanto, Dona Glória, eu lhe peço encarecidamente que ouça o
coração de Bentinho, pois a maior promessa que a senhora poderia fazer
perante a divindade é buscar a todo custo a felicidade daquele a quem
gerou com tanto carinho.

Sem mais,
Guilherme

147
148
Masik0553/Adobe Stock
3.2 Cartas temáticas
Aretê

Querida professora Dalva e grupo,

Ficamos muito felizes ao constatar que o grupo se apropriou perfei-


tamente das ideias centrais da história e que, mais do que apreender o
sentido do texto, os jovens ficaram encantados, como percebemos pelo
relato do Gabriel. Foi ele também quem se encarregou de ser o porta-voz
que levou para outros espaços, além da escola, esse movimento de com-
partilhamento do saber.
Uma das ideias presentes em Fernão Capelo Gaivota é justamente a
do prazer em compartilhar o conhecimento e, pelo que percebemos,
esse grupo está colocando isso em prática.
A ideia de perfeição, que também emergiu no grupo, remeteu-nos a
uma palavra de origem grega: aretê.
Aretê significa “perfeição, excelência, nobreza”. É uma palavra que
expressa o conceito grego de fazer bem feito, o bom cumprimento da
tarefa a que nos dedicamos. O fazer bem-feito nos leva ao encontro da
nossa essência. E, segundo Sócrates, esse fazer bem-feito, que nos faz
descobrir nossa essência, é fonte de uma intensa alegria.
Na Grécia Antiga, aretê significava também a coragem e a força de en-
frentar todas as adversidades, e era uma virtude a que todos aspiravam.
Carlos Roberto, na rodada final de discussão do grupo, disse que “o
discípulo pode ser mestre desde que busque conhecimentos”. Para Frie-
drich Nietzsche, “se retribui mal ao mestre quando se fica eternamente
discípulo”, pois o movimento desejável é que o aprendiz dê continuidade
ao conhecimento ancestral de que se fez herdeiro. Nesse sentido, nota-
mos que foi muito pertinente a observação feita pelo Carlos.

Um abraço,
Catalina e Cidinha

149
Catalina e Lindemberg,

Reencontrei o trecho sobre o qual conversamos, de Miguel de Unamuno,


a respeito dos dois tipos de nascimento. Está na página 50, quando ele diz:

Y luego se lo puso a si mismo, nombre nuevo, como convenía a su


renovación interior, y se llamó Don Quijote, y con este nombre ha co-
brado eternidad de fama. E hizo bien en mudar de nombre, pues con
el nuevo llegó a ser de veras hidalgo, si nos atenemos a la doctrina
del dicho doctor Huarte, que en la ya citada obra nos dice: El español
que inventó este nombre, hijodalgo, dio bien a entender... que tienen
los hombres dos géneros de nacimiento. El uno es natural, en el cual
todos son iguales, y el otro espiritual. Cuando el hombre hace algún
hecho heroico o alguna extraña virtud y hazaña, entonces nace de
nuevo y cobra otros mejores padres, y pierde el ser que antes tenía.
Ayer se llamaba hijo de Pedro y nieto de Sancho; ahora se llama hijo
de suas obras2.

Fiquei pensando na ligação dessa ideia de nascimento com a defini-


ção de aretê, de Platão, que relemos juntas. E, talvez, em como podemos
encontrar a ligação entre esse tipo de nascimento individual com o nas-
cimento do coletivo, a que se refere aquele outro trecho do Platão – o
grupo coeso, identificado com uma ideia, promove o nascimento de uma
nova sociedade. De certa forma, fiquei pensando que o surgimento des-
sas células germinais, desses pequenos grupos, não está ligado a identi-
dades biológicas, “naturais”, geográficas, mas, sim, à ordem da alma, do
espírito. Como relacionar no texto essas duas esferas de nascimento, da
alma individual e de uma alma coletiva, o nascimento desses pequenos
grupos, que, por sua vez, também promovem nascimentos da alma na-
queles que deles fazem parte?

Vamos nos falando...


...beijos,
Patrícia Guedes

2
E então ele deu a si mesmo um novo nome, como foi apropriado para sua renova-
ção interior, e ele se chamou Don Quixote, e com esse nome ele ganhou a eterni-
dade da fama. E ele fez bem em mudar de nome, porque com o novo ele se tornou
um verdadeiro cavalheiro, se aderirmos à doutrina do dito médico Huarte, que nos
trabalhos acima mencionados nos diz: O espanhol que inventou esse nome, fidalgo,
deixou claro que os homens têm dois gêneros de nascimento. Um é natural, no qual
todos são iguais, e o outro, espiritual. Quando o homem faz algum feito heroico ou
alguma virtude e façanha nova, ele nasce de novo e recebe outros pais melhores, e
perde o ser que tinha antes. Ontem foi chamado filho de Pedro e neto de Sancho;
agora ele é o filho de suas obras. (Tradução nossa)

150
Querida Patrícia,

Ao lermos suas reflexões sobre as ideias de Unamuno, ficamos pen-


sando sobre quão magnífica é a ideia de tornarmo-nos “filhos de algo”
– um fidalgo.
Na discussão com nossos jovens, surgiu o questionamento de como
Para nos tornarmos isso acontece. E, uma das respostas sugeridas foi a de que, para nos tor-
filhos de algo, essa narmos filhos de algo, essa criação precisa ser fruto de uma dedicação
criação precisa profunda e cuidadosa que, acabada, traga a sensação de plenitude. Para
ser fruto de uma Unamuno, nos construímos no fazer. E quando encontramos e realiza-
mos nossa aretê, nos tornamos fidalgos.
dedicação profunda Nesse momento, ganhamos autonomia para escolher o grupo ao qual
e cuidadosa que, queremos pertencer; essa é a essência da liberdade. Reunidos em torno
acabada, traga de uma causa comum, formamos um grupo coeso, realizando ações que
a sensação de somente são possíveis de se fazer em grupo.
plenitude. O fazer individual constrói a nossa alma; no fazer coletivo, alcançamos
a alma do mundo.
A história de Fernão Capelo Gaivota ilustra esses estágios de nossa
evolução. Durante o tempo em que esteve sozinho, Fernão aprimorou
o seu voo – tornou-se fidalgo. Depois, convidado a fazer parte de um
grupo no “céu”, continua seu aperfeiçoamento até o momento em que se
sente pronto para retornar ao antigo bando na terra, em busca de outras
gaivotas que também quisessem aprender a voar.
As ideias que apresentamos aqui dialogam com o conceito de “Paideia”
formulado por Platão:

Quando a comunidade sofre de uma doença orgânica que lhe afeta o


conjunto ou é destruída, a obra de sua reconstrução só pode ocorrer a
partir de um grupo reduzido, mas fundamentalmente são de homens
com idênticas ideias, o qual sirva de célula germinal para um novo
organismo; é sempre este o significado da amizade para Platão: é a
forma fundamental de toda comunidade humana que não seja pu-
ramente natural, mas sim uma comunidade espiritual e ética. (2013,
p. 718).

Patrícia, esperamos ter conseguido capturar a essência de suas refle-


xões, sempre muito bem-vindas!

Um abraço,
Catalina e Nícia

151
Realização

Queridos multiplicadores,

Reunidos na Casinha, fizemos a leitura de várias cartas e uma delas


levou a uma animada discussão, de onde surgiu a pergunta: O que é ser
realizado? Durante nosso diálogo, foram lembrados vários exemplos do
campo profissional.
Vemos ao nosso redor muitas pessoas que são bem-sucedidas pro-
fissionalmente, que conseguem uma boa colocação, retorno financeiro,
mas que não se sentem realizadas e felizes. Isso porque, na verdade, es-
forçaram-se para agradar outras pessoas, ou escolheram uma profissão
apenas por questões financeiras. Não encontraram a sua vocação, aquilo
que as faria alcançar a integração entre o fazer externo e a realização
interna.
Há outras que são realizadas internamente, fazendo algo que as desa-
fia e mobiliza sua inteligência, mas que mesmo assim, depois de algum
tempo, sentem a necessidade de mudar de trabalho. Acreditam que in-
tegrar um novo grupo, com desafios diferentes, lhes dará a possibilidade
“O segredo consiste de colocar em prática os conhecimentos que já trazem, agregando ou-
em encontrar um tros que serão adquiridos no novo ambiente profissional.
Antes, era comum conhecermos pessoas que iniciavam a carreira e
ideal que se torne o aposentavam-se em uma mesma empresa, e isso era visto com bons
objetivo único de sua olhos, como sinônimo de estabilidade, lealdade e dedicação por parte
existência. Assim, do profissional. Atualmente, há uma mudança de mentalidade e mudar
a ação adquire de trabalho buscando novos desafios passou a fazer parte das relações
nobreza, e a vida no mercado de trabalho.
Independentemente de tempo e lugar, o essencial é a relação que
adquire sentido.” estabelecemos com o trabalho. E nas palavras de Nikos Kazantzakis: “O
segredo consiste em encontrar um ideal que se torne o objetivo único de
sua existência. Assim, a ação adquire nobreza, e a vida adquire sentido.”

Um abraço,
Catalina e Cidinha

152
Querida Catalina e equipe,

Li todas as cartas enviadas, mas a que mais me chamou a atenção foi


a que aborda o tema da realização.
Quando me deparei com esse tema, não continuei a ler de imediato a
carta. Fiz essa pergunta a mim mesmo, e a resposta foi a seguinte: Serei
realizado se conseguir alcançar meu objetivo principal, que é ser um pro-
fissional da área de saúde, e com isso poder ajudar minha família e, além
disso, construir uma ONG para crianças pobres. Serei também realizado
deitando em minha cama sem nenhuma preocupação com algo pen-
dente, sem estar sofrendo com alguma necessidade, mas, sim, sentindo
um gostinho de conquista. Porém, fiz essa pergunta para alguns amigos
meus e a resposta que mais me chamou a atenção foi a de um deles que
disse que seria realizado se conseguisse ser professor; mas que seus pais
querem que ele seja advogado, que na visão deles é uma profissão que
possibilita ganhar muito dinheiro.
Com essa resposta, percebi que muitas vezes somos bem-sucedidos
com a profissão que temos, os bens materiais que possuímos, os conhe-
cimentos que adquirimos, mas, na maioria das vezes, falta o principal: a
felicidade e por isso não somos realizados. Essa felicidade, muitas vezes,
deixamos de lado para poder agradar às pessoas de quem gostamos e
que acreditam que aquilo que elas pensam é o melhor para nós; com
medo de magoar essas pessoas, fazemos o que elas querem.
Ele ainda continuou dizendo que fará a faculdade de Direito para dar
orgulho aos seus pais, mas cursará, em seguida, Matemática, mesmo
indo contra a ideia dos pais, porque é isso que trará sua felicidade.
Nessa continuação da sua resposta, pude observar que na maioria
das vezes perdemos um tempo preciso, que poderíamos estar utilizando
para fazer aquilo de que gostamos, porque outras pessoas pensam di-
ferente. Assim, nós mesmos nos tornamos subordinados e só consegui-
mos uma realização interna depois de muito tempo.
Aguardo respostas sobre mais reflexões acerca do assunto.

Um abraço,
Hiago Feitosa

153
Como eu buscasse contestá-la, repreendeu-me sem aspereza,
mas com alguma força, e eu tornei a ser o filho submisso que era.

Querido Hiago,

A leitura de sua carta me fez refletir sobre a sociedade como um todo:


aqueles jovens que descobrem a vocação e dedicam-se a ela, tornando-se
adultos realizados e felizes e aqueles que se submetem a uma vontade que
não é própria, abrindo mão de fazer o que realmente desejam e correndo
o risco de no futuro tornarem-se pessoas frustradas.
Algumas pessoas Algumas pessoas possuem a resiliência necessária para enfrentar as
possuem a resiliência adversidades, e conseguem fazer o que desejam; outras não se sentem
necessária para fortes o suficiente e, nesses casos, é muito importante ter alguém como
você por perto, um amigo, que as ajude e lhes dê força.
enfrentar as
Ao constatar o quanto esse tema tem sido recorrente, fiquei preo-
adversidades, e cupada e, ao mesmo tempo, mobilizada a tratar desse tema. E, como
conseguem fazer o sempre fazemos, recorremos a um clássico, nossos grandes amigos, que
que desejam. sempre têm as respostas para nossas inquietações. Neste caso, o livro es-
colhido foi Dom Casmurro, de Machado de Assis, ele será uma das obras
estudadas na próxima formação.
Na história, o personagem Bentinho não consegue dialogar com a
mãe e mostrar a ela que não poderia seguir a vida religiosa, por estar
apaixonado por Capitu. O jovem sai da conversa com a mãe sem con-
seguir convencê-la, sentindo-se “o filho submisso que sempre foi”. Esse
jovem, mais tarde, consegue casar-se com a mulher que ama, mas não
consegue confiar no seu amor.
Hiago, o seu amigo deve imaginar que estará tomando a decisão certa
seguindo primeiro o que os pais querem, para depois fazer o que realmen-
te deseja. No entanto, sabemos que existe outra possibilidade: dialogar
francamente com os pais, mostrando que só poderá ser bem-sucedido
profissional e pessoalmente seguindo a sua verdadeira vocação.

Um abraço,
Catalina

154
Olá, Hiago,

Eu sou a Maria, participo dos Círculos de Leitura, na Casinha e fiquei


um pouco preocupada com esse seu amigo. Como você mesmo expôs, é
necessário fazer o que gostamos, não o que os outros querem.
Porém, não estamos falando de quaisquer pessoas, mas dos pais dele.
Sendo assim, é muito importante você demonstrar a ele o quanto o diá-
logo é essencial. Desse modo, o seu amigo vencerá um obstáculo por vez,
em vez de primeiro cursar Direito e depois Matemática. As escolhas que
surgem no decorrer da nossa jornada são inúmeras; porém, se não tiver-
mos cuidado e atenção de escolher com calma e depois de ter avaliado a
situação, podemos nos arrepender.
Eu posso dizer que, de certa forma, eu o entendo, pois sempre estu-
dei em escola pública e venho de uma família humilde. No momento
em que eu estava terminando o Ensino Médio, me encontrei em uma
situação delicada. Eu sabia que precisava alcançar uma boa pontuação
no Enem para cursar Direito, mas também sabia que seria necessário ar-
rumar um emprego para poder arcar com as despesas dos livros que uti-
lizaria na faculdade.
Em meados de outubro, fui apresentada ao projeto Diversidade por
meio dos Círculos de Leitura, que acontecia na minha escola e atualmen-
te sinto grande prazer e alegria pela oportunidade de cursar Direito em
uma das melhores faculdades de São Paulo. No projeto Diversidade, de-
pois de ter enfrentado um extenso processo seletivo, tenho meus estu-
dos completamente pagos.
Em meio ao processo, minha mãe, que sempre me apoiou e esteve
comigo em todas as etapas, me aconselhou a fazer Administração, e ela
teve seus argumentos. Num primeiro momento, eu a entendi, mas decidi
seguir meu objetivo e, se não fosse minha coragem de seguir meu cora-
ção, não sei o que teria acontecido. Só sei que hoje, em meio há muitas
leituras e dificuldades de locomoção, por conta da distância da faculda-
de, estou me realizando. Essa é a grande motivação que nos impulsiona
a ir adiante: fazer o que gostamos.
Espero que você o convença. Boa sorte! Mostre a ele que será feliz
fazendo o que gosta e que seus pais acabarão o apoiando. Sei o que falo,
pois hoje sou motivo de alegria para minha mãe, e ela até me diz: “Minha
filha, se você tivesse me ouvido com a escolha da Administração não se-
ria tão feliz”

Maria das Dores

155
Olá, Hiago,

Gostei muito da sua reflexão sobre o tema da realização; aliás, esse é


um assunto que vem à cabeça das pessoas pelo menos uma vez na vida.
Para mim, “ser realizado” deve significar “ser feliz”. Isso significa fazer o
que gostamos, estar com quem queremos, no momento em que dese-
Muitas vezes, jamos. A felicidade também estava no seu texto e concordo com o seu
perdemos tempo pensamento quanto à questão de que, muitas vezes, perdemos tempo
e adiamos a e adiamos a nossa felicidade e realização pessoal quando não fazemos
nossa felicidade e aquilo que queremos, mas, ao contrário, tentamos realizar os planos que
outras pessoas traçam para nós.
realização pessoal De que adianta realizarmos aquilo que os outros querem, deixando
quando não nossa própria vontade de lado? Seremos realizados ocupando uma ca-
fazemos aquilo que deira que supostamente nos trará muito dinheiro e prestígio, se não nos
queremos. sentirmos felizes em ocupá-la e fazendo aquilo de que não gostamos e
que, consequentemente, não faremos bem?
Creio que essas reflexões devem ser feitas por nós em vários momen-
tos da vida – diante de uma decisão profissional ou pessoal –, se a nossa
felicidade estiver em jogo.
Enfim, acredito sempre que o melhor é seguir o nosso coração e, se
não der certo, pelo menos teremos consciência de que tentamos e não
nos traímos. Lembrando sempre que nunca é tarde para recomeçar e
que, se nos esforçamos e nos colocamos a caminho, as coisas darão certo.

Danila Alves

156
Querida equipe e colegas dos Círculos,

Segundo o sociólogo Émile Durkheim, durante as sociedades ditas “pri-


mitivas” ou “arcaicas”, predominou a Solidariedade Mecânica, pois os indi-
víduos que a integravam compartilhavam das mesmas noções e valores
sociais, tanto no que se refere às crenças religiosas como em relação aos
interesses materiais necessários à subsistência do grupo. Foi justamente
essa correspondência de valores que assegurou a coesão social. Naquela
época, não existiam diferenças entre profissões: se o pai fosse sapateiro, o
filho também deveria ser sapateiro.
Mas com a Revolução Industrial surgiu um novo modelo de sociedade,
as ditas “modernas” ou “complexas”, em que predominou a Solidariedade
Orgânica. Esse cenário possibilitou o surgimento de novas profissões, que
hoje formam um planeta multiprofissional. Muitas profissões conseguiram
grande ascensão, principalmente no campo financeiro, o que acaba atraindo
muitas pessoas. O resultado de tanta ambição é a formação de profissionais
alienados, que não sabem o que estão fazendo. Quem acaba sofrendo as
consequências são os clientes, os quais, na maioria das vezes, não recebem
atendimento adequado.
Muitas pessoas estão escolhendo as profissões pelo salário, não pela
vocação. Encontramos profissionais que demonstram arrogância, cansa-
ço e, principalmente, insatisfação, mas devido a uma ótima renda mensal
continuam a exercer um cargo que não lhes compete vocacionalmente.
Existem outros que lutam incansavelmente para realizar um bom traba-
lho e recebem muito pouco por isso, mas que mesmo com essa situação de
injustiça, se sentem felizes com o seu fazer. Um exemplo são os professores,
dignos de todo o reconhecimento, mas infelizmente muito desvalorizados
na sociedade atual.
Nós não precisamos nos prender a uma única profissão, desde que cada
uma seja exercida com amor, satisfação e, acima de tudo, profissionalismo.
Falando em profissão, lembrei de O caminho de Homero, em que o Sr.
Grogan, já um homem muito velho, de vez em quando acaba bebendo
demais; trabalha há muito tempo na agência de telégrafos e não quer, de
maneira alguma, aposentar-se. Ele pede humildemente a ajuda de Homero,
pois aquela profissão é era sentido da sua existência, e ele não queria se
afastar daquele ambiente.
O mais importante é a satisfação profissional, em que você faz o que
gosta.
“Aquele que tem uma profissão tem um bem; aquele que tem uma
vocação tem um cargo de proveito e honra. ” (Benjamin Franklin)

Abraços a todos,
Manoel Vieira

157
Hiago,

É cada vez mais comum ouvirmos todos os dias a história de algum


empreendedor bem-sucedido ou até mesmo de algum executivo que
saiu do zero e conquistou o mundo. Contudo, existe um problema básico
nessa repercussão em torno do sucesso: mostrar apenas os extremos;
lemos sobre a infância ou a adolescência da pessoa e, em seguida, sobre
onde ela está hoje.
Há alguns anos, enquanto trabalhava como auxiliar de desenvolvi-
“Não se pode mento de projetos em meu primeiro emprego, um colega de trabalho
julgar o sucesso de me disse uma frase que, a princípio, não fazia sentido algum para mim;
ninguém em função foi com o passar dos anos que a frase tomou forma e passei a entender
de onde ela está ou seu real significado: “Não se pode julgar o sucesso de ninguém em função
de onde ela está ou de onde veio. Você tem de avaliar as oportunidades
de onde veio. Você que lhe foram dadas. E como essas oportunidades foram aproveitadas. ”
tem de avaliar as É muito fácil atingir o “sucesso” em ambientes ideais. Contudo, o ver-
oportunidades que dadeiro sucesso está relacionado à superação, à sensação pessoal de
lhe foram dadas.” crescimento. Se analisarmos o processo que levou diversas pessoas à
realização, iremos perceber que os profissionais bem-sucedidos, tanto
na sua opinião quanto na visão dos outros, são aqueles que, desde cedo,
identificaram qual era sua “razão de ser”, identificaram desde cedo o que
as motivava a desafiar a média, o que elas realmente queriam fazer pelo
resto da vida.
Repare que, quando digo pelo “resto da vida”, não me refiro a fazer
uma única coisa pelo resto de sua vida, mas, sim, identificar o princípio
básico que lhe motiva a levantar da cama todos os dias. Uma vez identifi-
cado, você encontrará uma forma de colocá-lo em todas as suas ativida-
des, pois elas serão apenas uma maneira de transparecer aquilo em que
você acredita.
Pense por um segundo em todas as pessoas que você considera
bem-sucedidas. Não olhe diretamente para o que elas fazem, procure
olhar para o porquê de elas fazerem aquilo.
Olhando para os feitos, é de se pensar: “Steve Jobs é um gênio”. Ele
pode até ser mesmo, mas olhe para a essência de tudo o que ele fez. A
motivação básica de Steve era mostrar para o mundo que existia mais
de uma maneira de se fazer as coisas; a motivação básica dele era ino-
var. Primeiro, ele adquiria o sucesso próprio: todos os dias quando saía
de sua cama, ele se sentia um homem de sucesso por estar fazendo
as coisas de uma maneira diferente; só depois de atingir esse sucesso
e trabalhar muito o mundo passou a ver o que ele via, e então veio o
reconhecimento externo.

Um abraço,
Marcos

158
Medo

Queridos multiplicadores do Ceará,

Assim como vocês, os jovens daqui também se sentem um pouco in-


seguros ao começarem o trabalho de multiplicadores.
No sábado, conversamos sobre vários medos que nos acompanham,
alguns desde a infância, como medo da morte, do desconhecido, de per-
der os pais.
Surgiu a pergunta de como seria a vida se ninguém tivesse medo. Lou-
cura, arrogância. Na peça Otelo, somos lembrados de que há muitos pe-
rigos neste mundo e que, como Desdêmona, se não estivermos atentos,
podemos não os perceber
Diante do perigo, após vencido o medo, reagimos e descobrimos nossa
“Se suportamos o coragem. E conforme nos fala Nietzsche: “Se suportamos o caos, chega-
caos, chegaremos a remos a ver o nascimento de uma estrela”.
ver o nascimento de Também foi lembrado do Leão, do livro O Mágico de Oz, que tinha mui-
uma estrela.” to medo e que conseguiu, no caminho de sua viagem, superá-lo através
do companheirismo. Tanto o leão como os seus amigos fortaleceram-se
durante a travessia, porque o medo, quando compartilhado, pode gerar
o companheirismo.
Refletimos também sobre como a humanidade vem lidando com o
medo, ao longo dos tempos. Nossos ancestrais foram animando o mundo,
dando nome às coisas e projetando seus anseios e medos em pinturas,
danças, poesia. Porque quando criamos as coisas, estamos em movimento
e não há espaço para o medo.
Alguns jovens vieram à Casinha pela primeira vez, mas todos disseram
que estavam sentindo-se muito acolhidos e todos falaram que estavam
mais confiantes para iniciar a tarefa de multiplicadores. E mais uma vez
foi lembrada a importância do trabalho em grupo.
Todos nós viemos ao mundo com algum propósito, e quando fazemos
bem-feito aquilo que nos move, procurando alcançar a aretê, o destino
colabora. Com isso, não há espaço para o medo.
Por último, os jovens concordaram que a travessia daquele grupo estava
apenas começando, mas que todos estavam muito empolgados. Pediram
que lhes mandasse o seguinte recado: “Sabemos que, como Fernão e Doroty,
vamos nos empenhar muito e, com certeza, será uma aventura divertida.

Um abraço,
Equipe da Casinha/Multiplicadores de São Paulo

159
Olá, Catalina,

Eu me chamo Bianca e sou aluna da escola Rita Matos Luna, que se


encontra no município de Jucás, no estado do Ceará.
Esses dias tenho pensado muito nos sonhos que tenho e como eles
mudaram no decorrer do tempo; sei que isso é normal, já que somos
seres em construção. Não direi que estou aflita. Eu só estou com medo...
Medo de não superar as expectativas, de não conseguir realizar o que
falo tanto nos encontros dos Círculos de Leitura a respeito do meu amigo
Fernão. O que sinto mesmo, Catalina, é medo de não acordar dos meus
sonhos na hora certa, no tempo kairótico. Medo de engolir todos eles
para dentro de mim e acabar me afogando.
Anos atrás, um estudante de origem humilde não poderia nem so-
nhar em estudar em uma boa universidade e, agora, aqui estamos nós
usando um computador e frequentando boas escolas. Isso pode ficar
confuso, não tenho uma cabeça muito organizada (estou trabalhando
para melhorar isso), quero dizer que, agora, a sociedade espera mais da
gente, espera mais do aluno que passa o dia todo na escola, espera que
eles passem na universidade. Espera, espera, espera...
Estou sendo verdadeira, estou escrevendo o que sinto! De forma algu-
ma estou dizendo que isso é ruim, eu só estou dizendo... Eu sinto medo
disto: do vestibular, de ter que ir morar longe da família, de enfrentar o
carinha da padaria que perguntou o que eu queria ser. Tenho medo de
não ser! Peço-lhe desculpas pelo desabafo; estou quase chegando lá.
Apesar dos pesares, amo de todo o meu coração os meus sonhos,
amo de todo o meu coração os meus amigos, amo de todo o meu cora-
ção os encontros que a vida tem me proporcionado.
Hoje, quero agradecer por me “escutar” (agora mesmo). E quero dizer
que o programa Círculos de Leitura me ajudou a construir ainda mais
sonhos, juntamente com o sonhador e Nástenka. E esses medos que sin-
to, o seu Rabuja (aquele do lindo conto O catador de pensamentos) pega
todos os dias enquanto durmo, os leva para longe e acalma meu espírito.
Agradeço também aos meus companheiros de viajem na escola e agra-
deço aos livros, meus amigos fiéis!
Me despeço com saudades, saudades dos encontros que tivemos,
saudades das boas conversas e da comida gostosa da Casinha (risos).
Até breve, senhorita que cheira poesia.

Um abraço,
Chris Bianca Melo

160
Caros multiplicadores do Ceará,

Por acaso cai-me às mãos uma carta dirigida a vocês, aqui na Casinha,
logo em minha primeira visita. Não resisto. Deixo-me mover pelo convite
e pela fascinação que é a experiência da leitura em comum, tão bem
articulada por esse centro, que a cultiva e a promove.
Na carta que tenho diante de mim, leio no começo a palavra “medo” e,
no final, a palavra “travessia”. São ambas palavras muito fortes, ponho-as em
relação. Quero entrar na conversa que se situa entre uma e outra.
Sobre o medo, lembrei-me de um trecho de Aristóteles, em sua Ética
a Nicômaco, quando situa a coragem entre os extremos da covardia e
da inconsequência. Coragem, de fato, não é a ausência de medo, mas a
capacidade de avançar apesar e além do medo. Ou seja, travessia.
Em minha experiência, de fato a não ser quando o enfrentamento co-
O medo é como loca em risco minha vida ou a de outrem, a melhor reação ao medo é
uma cortina. atravessá-lo. O medo é como uma cortina. Cega, esconde e desaparece
Cega, esconde e quando o atravessamos. A literatura traduz muitas vezes esse evento da
desaparece quando travessia do medo como uma viagem difícil – veja-se a viajem de Jonas,
no Livro de Jonas contido na Bíblia –, ou como uma passagem secreta,
o atravessamos. mágica ou desconhecida – feito em Alice quando entra no País das Ma-
ravilhas. O medo é uma passagem.
E atravessamos vários medos, várias fases em nossas vidas. Ao leva-
rem adiante os Círculos de Leitura, vocês vão superando ciclos como fez
Fernão Capelo Gaivota. O medo nos transforma. Não somos os mesmos
do outro lado da ponte, e às vezes quase nos desconhecemos quando
nos olhamos no espelho após a viagem. Crescemos com as passagens.
Cada livro, cada história é um degrau.
Às vezes tenho medo de ler certos livros. Certas palavras mexem com
a gente. Li há pouco A elegância do ouriço, de Muriel Barbery. Logo de-
pois de começar, fiquei com medo do que ia acontecer, e o final mexeu
comigo. Um livro lindo, bem escrito, apenas revelador de um lado que a
vida contém inevitavelmente. Leio não para fugir do mundo, mas para
vê-lo melhor.
E devo, enfim, confessar que tive certo medo de escrever esta carta.
Conheci hoje, sem esperar, a turma dos Círculos e logo me puseram sen-
tado com este computador às mãos e uma pasta cheia de cartas diante
de mim. Respirei fundo, atravessei a cortina do medo e aqui estou eu já
me sentindo parte do grupo. Tenho mais sede que medo, parece, e gos-
tei da aventura.

Adiante!
Roberto

161
Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a
ausência do medo.
Mark Twain

Querido Hiago e grupo,


Diante de
situações novas Interessante observar como o grupo trouxe diferentes reflexões. Al-
é compreensível guns ressaltaram a questão do medo que sentimos diante de uma nova
sentirmos certo tarefa.
Diante de situações novas é compreensível sentirmos certo receio, e isso
receio, e isso é é positivo, pois nos leva a ter cautela. Esse sentimento nos resguarda de
positivo, pois nos assumirmos posturas arrogantes. O perigo é negar o que estamos sentindo,
leva a ter cautela. fazendo de conta que o medo não existe.
Mesmo grandes artistas, consagrados e com anos de carreira, confes-
sam sentir medo antes de subir ao palco. Para eles, cada espetáculo é
único, e é justamente esse cuidado que os faz grandes artistas, que mer-
gulham profundamente em sua arte, como se fosse sempre a primeira
vez.
Nos Círculos de Leitura, lemos várias vezes as obras que compõem
nosso repertório: Fernão Capelo Gaivota, Kouros, O caminho de Homero, e
a cada leitura algo novo se revela. Esse mistério que os clássicos encer-
ram nos fascina, essa atemporalidade que compreende a essência dinâ-
mica da vida.
Outros jovens falaram sobre o prazer que emerge quando se compar-
tilha o conhecimento.
Adquirimos conhecimento de várias formas. Ele expande nosso ser
e nos proporciona uma grande alegria. Esse contentamento divino que
sentimos transborda e deseja ser compartilhado.
A identificação que o grupo sentiu acontece quando vivenciamos a
obra, deixando-nos impregnar pela história.
Ficamos à espera de novas reflexões.

Um abraço,
Catalina e Cidinha

162
Caro professor Tiago Ernandes,

Estamos aqui na Casinha e começamos um diálogo sobre um tema


muito interessante e ao mesmo tempo comum, “o medo”.
Como estamos prestes a tornarmo-nos multiplicadores, esse tema
acaba nos levando a questionarmo-nos se temos ou não esse sentimen-
to em nós. Desejo partilhar com você um pouco deste tema e, assim,
tentar realizar o exercício de pensar junto sobre tudo isso.
O medo é um sentimento que parece muito claro, mas muitas vezes
está escondido em nós e somente é descoberto quando ficamos diante
de algo que nos é estranho.
Quando eu era uma garotinha, não havia tantos medos em mim, eu
acreditava ser alguém corajosa. Porém, assim que me tornei um pouco
mais velha, comecei a encarar o mundo de uma maneira diferente; até
o meu próprio “eu” começou a me assustar, as mudanças no corpo, na
mente e na alma foram aumentando. Então pude perceber que já não
era tão corajosa assim, pois estava vivendo algo novo, e este “novo” me
fascinava. Porém, eu não sabia o que me aguardava fora das portas de
casa e fora do aconchego do abraço da minha mãe.
E por falar em mãe, quem nunca sentiu o medo de imaginar-se sem
essa figura presente ao lado? Aquela que abriu mão da sua própria vida
para cuidar de uma nova. Parece estranho, mas eu nunca tive medo de
perder a minha mãe. Se acham que eu não a amo, podem parar, amo sim,
e muito, mas ela me ensinou a ser independente de sua presença. Ela me
ajuda, claro, mas é como se fosse uma bússola, dando-me as coordena-
das. E eu tenho que segui-las. Se eu me perder, tento achar o caminho de
volta, pois se fui, eu saberei voltar.
Sempre fui mais apegada ao meu pai, somos quase irmãos gêmeos
da mesma placenta (risos), somos muito unidos e gostamos das mesmas
coisas. Mas, assim como no caso da minha mãe, não me prendo a ele,
pois, um dia, eles partirão. Mas há um lugar onde, sempre que eu quiser,
vou poder encontrá-los: nas recordações e pensamentos, nas lutas, nos
aprendizados, nos tropeços, tombos completos e nas falhas. Nas horas
de acerto e indecisão, quando ali estiveram presentes aqueles que jun-
tos me fizeram crescer.
Aqui me despeço de você. Espero que tenha gostado do tema e do
desenrolar da história. Espero que, numa próxima vinda a São Paulo, es-
teja presente para assim partilharmos nossas ideias.

Obrigada e um abraço,
Lais

163
Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal;
isso nada tem a ver com a coragem.
Jean Paul Sartre

Olá, Débora Ferreira Gomes,

Meu nome é Amanda, tenho 15 anos e estou na Casinha conversando


com outros jovens sobre vários temas e escolhi você para compartilhar
algumas ideias sobre um deles – o medo.
Conversamos bastante sobre o medo de perder a mãe, medo de al-
tura, de arriscar, de fracassar... Enfim, chegamos à conclusão de que to-
dos temos medo de algo, por menor que seja. Mas saber lidar com ele e
fazer de todo receio um aprendizado é uma virtude que nos torna mais
maduros.
O amadurecimento às vezes vem da superação de um erro.
— Mas, e o medo de errar?
Superamos com força de vontade e coragem de arriscar.
— Mas, e se eu fracassar?
Sempre há dúvidas, não é?
Na vida, as dúvidas sempre surgirão, questões que poderiam tirar o
seu foco das coisas que realmente valem a pena. Mas o jeito é não deixar
que o medo de tentar seja mais forte que você.
Fui selecionada para ser uma das multiplicadoras da minha escola e
vou começar a passar aos outros alunos, junto com minhas parceiras de
grupo, o que consegui absorver dos Círculos até agora.
Admito, estou com medo. Não sei como, mas nós vamos nos sair bem,
pois tenho a ajuda de pessoas maravilhosas que serão meu guia e meu
farol.
E conto com a sua ajuda e experiência para que também se torne uma
fonte de inspiração e apoio para mim. Espero que eu tenha te deixado
um pouco mais perto de nós aqui e espero que você tenha gostado das
minhas palavras. Aguardo resposta.

Um grande abraço,
Amanda Melo

164
165
166
4. A Arte do Encontro:
OS EFEITOS, AS TRANSFORMAÇÕES

A
o chegarmos ao final da jornada de memórias que empreende-
mos por meio deste livro comemorativo, apresentamos alguns
depoimentos que evidenciam “a arte do encontro” que se cons-
titui a essência dos Círculos de Leitura. São contribuições de professores,
diretores, coordenadores, jovens de longe e de perto, ex-colaboradores,
todos parte dessa história de 18 anos que temos muita alegria de contar.
Esses depoimentos mostram os efeitos das discussões, divagações,
experimentações suscitadas nos envolvidos com o programa ao longo
desses anos de existência dos Círculos, efeitos produzidos pelo diálogo
com a literatura, pelo mergulho na arte que alimenta corpo e alma.
Cada um, à sua maneira, pôde sentir os efeitos transformadores dessa
experiência – transformações que extrapolam o âmbito individual e entram
no coletivo, social. Veremos um pouco disso a seguir, começando com a
fala de Nilson Vieira Oliveira, um dos veteranos do programa.
Nilson, filho de pai mineiro e mãe cearense, nasceu em 1967 no interior
do Paraná, onde foi boia-fria, sorveteiro e seminarista. Estudou História
e, em Curitiba, iniciou sua graduação em Economia.
Convidado para integrar a equipe do Instituto Fernand Braudel em
novembro de 1991, passou a ser coordenador-geral do Instituto, onde
permaneceu por duas décadas, até o ano 2012. Nesse período, concluiu
sua graduação e depois seu mestrado em Políticas Públicas pela Fundação
Getulio Vargas (FGV-SP). Durante sua trajetória no Instituto, desempenha-
va outras funções, como pesquisador e analista em inclusão econômica,
segurança pública e educação. Foi com esses programas de pesquisa que
acompanhou os Círculos de Leitura, desde seu início, em escolas públicas
ameaçadas pela violência urbana em bairros periféricos de Diadema e
São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

A história da humanidade tem evidenciado que pessoas


fora da curva, em termos de nível de excelência, resiliência e
genialidade, surgem em todos os estratos sociais possíveis,
não importando o nível de renda, região ou país de nasci-
mento, etnia, gênero e quaisquer outras classificações. Porém,
para alcançar seu potencial, esses “fora de série” precisam ter
oportunidades que lhes permitam alcançar todo o potencial
que possuem.
O programa Círculos de Leitura, contemplando alunos de

167
escolas públicas das periferias de grandes cidades ou de ci-
dades esquecidas pelo desenvolvimento econômico, cidades
do interior do país, representa uma dessas luminosas jane-
las de oportunidade. Através da leitura e reflexão em grupo
de obras de autores clássicos, esses jovens, depois levados a
exercer protagonismo junto a outros como multiplicadores,
fazem transbordar conhecimento, solidariedade, civilidade
e espírito de liderança.
São beneficiados, assim, esses mesmos jovens e suas famí-
lias e comunidades. Mas muito mais beneficiada é a sociedade
humana, porque deixa de perder valores pessoais tão caros,
raros e necessários para um mundo mais digno e culto.

Nilson Vieira de Souza, ex-coordenador-geral do Instituto Fernand Braudel.

Saindo de São Paulo, vamos para Juazeiro do Norte, no Ceará, “ouvir”


a fala de Neyr Maria Freitas Rodrigues Palmeira, Superintendente Esco-
lar da 19ª Crede:

O programa Círculos de Leitura foi implementado em


cinco escolas da 19ª Crede, região do Cariri, com o obje-
tivo de promover o hábito da leitura, desenvolvendo as
habilidades de liderança, autonomia e trabalho em grupo.
Dessa forma, o trabalho com os Círculos de Leitura abre
possibilidades concretas de fortalecer uma das premissas
da Secretaria de Educação aqui do Ceará, que é o desenvol-
vimento do protagonismo juvenil, estimulando os alunos a

168
sentirem-se partícipes em todas as ações da escola e, sobre-
tudo, construtores do seu projeto de vida.
Como Superintendente Escolar cujo foco de trabalho é o
acompanhamento aos indicadores de aprendizagem e per-
manência dos alunos na escola, posso testemunhar o cresci-
mento perceptível dos estudantes nos debates, nas reflexões
e nos diálogos acerca das leituras realizadas, o que contribui
de forma determinante para que o educando desenvolva va-
lores fundamentais ao seu crescimento como ser humano.
A metodologia e as estratégias dos Círculos contribuem
para o rompimento de antigos paradigmas no qual o aluno
era concebido como mero receptor de informação, passando
a atuar de forma autônoma na construção do conhecimen-
to. Esperamos que as ações do programa Círculos de Leitura
sejam cada vez mais fortalecidas e sistematizadas pela nossa
rede educacional.

Diretora Sandra (na frente), à esquerda prof. parceiro Kleber com multiplicadores,
na EEEP Otília Correia Saraiva.

Lúcia Silva Santana, diretora da EEEP Wellington Belém de Figueiredo,


em Nova Olinda (também da Crede de Juazeiro do Norte), conta com
entusiasmo:

Tive a imensa satisfação de conhecer o programa Círcu-


los de Leitura em 2012 e desde o início da proposta achei
encantadores e pertinentes os objetivos propostos. A meto-
dologia utilizada para incentivar a leitura faz a diferença no

169
entusiasmo dos jovens envolvidos, que desenvolvem, além
de desenvoltura e senso crítico, resultados diferenciados no
processo de aprendizagem – fator visivelmente comprovado
nos resultados internos e externos, inclusive com um índice
espetacular de aprovações em vestibulares e bons desempe-
nhos no Enem.
Dessa forma, é desejo de quem já usufrui das atividades
e acompanhamento do programa que ele seja prioridade de
adesão por instituições que desejem colaborar com a quali-
dade da educação.

Lúcia Silva Santana (à direita), diretora da EEEP Wellington Belém de Figueiredo,


em Nova Olinda, com a professora parceira Luciana Muniz de França.

Vanessa Oliveira, professora parceira do programa, psicóloga e coor-


denadora pedagógica na EEEP José Augusto Torres, em Senador Pom-
peu (CE), conta um pouco de sua experiência:

Os Círculos de Leitura vêm, desde 2008, fazendo parte


da EEEP Professor José Augusto Torres. Foram muitos de-
safios, mas a certeza sempre latente de um programa sério
que possibilita o contato de nossos educandos com a arte
da literatura brasileira e universal. Por meio das narrativas e
personagens, cada aluno tem a oportunidade de refletir e
aprender pelo exemplo e, por consequência, pode transfor-
mar realidades.
Eu acredito nos Círculos de Leitura porque acredito que
a educação pelo exemplo pode mudar trajetórias. Uma edu-

170
cação viva que parte do encantamento, do respeito às múlti-
plas ideias, do saber-se humano, integrado, que vai além dos
conteúdos prefixados no currículo escolar, porque trabalha
aspectos socioemocionais importantes para nosso desen-
volvimento integral; por isso, os momentos de vivência são
únicos, possibilitam um encontro com nós mesmos, e esta
riqueza é imensurável.
Palavras escapam, são insuficientes para descrever os fru-
tos que o programa Círculos de Leitura permite. O segredo
talvez esteja no encontro do Pequeno Príncipe com a Rapo-
sa, na descoberta de uma “Arte de ser feliz” cotidiana e nas
outras tantas histórias de infinitas redescobertas íntimas. As-
sim, chega-se à conclusão de que pouco importa o solo, pois
as boas sementes semeadas com amor sempre frutificarão
no coração daqueles que compartilham boas histórias.

Vanessa fala ainda de como são as formações de que participa, fazen-


do um convite àqueles que não conhecem os Círculos:

Cada vez que participo de formações dos Círculos de


Leitura sei que me renovo, sei que me transformo, enxergo
com mais clareza a minha própria vida; a certeza de que é a
aprendizagem antecipatória agindo. Eu aprendo muito, não
há dúvidas, e é muito bom esse reencontro com as pessoas
amigas, esse encontro comigo mesma; chego à conclusão
de que o “tempo certo” é realmente divino. São graças re-
cebidas...
Aos que ainda não conhecem a magia desse encanta-
mento, um conselho (mesmo não sendo o rei Minos): se en-
contrar um Círculo de Leitura no meio do caminho, não se
sinta acanhado, puxe a cadeira, no bom cearense, puxe tam-
borete, sente-se e se permita conhecer a si mesmo...

Camila Barbosa de Oliveira, professora parceira da EEEP Doutor José


Alves da Silveira, em Quixeramobim (CE), iniciou sua atuação no progra-
ma Círculos de Leitura na EEEP Manoel Mano, uma das 21 escolas vete-
ranas:

Sou professora de Língua Portuguesa na EEEP Doutor José


Alves da Silveira. Sempre fui apaixonada pelo mundo das le-
tras, escrita e leitura, pois é através dessas três ferramentas
que viajamos pelo mundo, descobrimos uma infinidade de
possibilidades de crescer, entender e conhecer o que se pas-
sa à nossa volta. Os livros carregam consigo histórias que nos

171
fazem rir, chorar, conhecer lugares que jamais poderíamos
nos imaginar estar, conhecer pessoas, entender alguns pen-
samentos e nos transformar em pessoas melhores.
Em 2013, fui convidada pela gestão da EEE Manoel Mano,
em Crateús, onde eu trabalhava, para assumir a coordena-
ção dos Círculos de Leitura. Só pelo título do programa já me
interessei. Não sabia eu que era apenas o início das muitas
surpresas e descobertas que iriam ocorrer na minha prática
docente e na minha vida. Participei da formação que ocorreu
em dezembro do mesmo ano em Maracanaú (Fortaleza-CE).
Foi uma experiência única e indescritível: saí de lá com a cer-
teza de que estava no lugar certo e fazendo a coisa certa.
A partir daquele momento, teria a oportunidade de ajudar
aos meus alunos, jovens que muitas vezes precisam de opor-
tunidade e de programas como esse que transformam, edi-
ficam e mudam o modo de pensar e agir das pessoas que
vivenciam atividades realizadas como no programa Círculos
de Leitura.
Em 2015, mudei para Quixeramobim e passei a lecionar
na EEEP Doutor José Alves da Silveira. Chegando lá, fui con-
vidada a assumir como professora parceira dos Círculos de
Leitura.
Já são 6 anos de muito aprendizado vivido e compartilha-
do, de perceber mudanças nos alunos que participam, como
melhoria na oralidade, escrita, raciocínio, concentração, in-
terpretação de texto, timidez, liderança, confiança, autoco-
nhecimento e, acima de tudo, assim como Fernão Capelo
Gaivota (um dos personagens dos livros trabalhados), que
acreditam nos seus sonhos e correm atrás para conseguir
o que desejam. Agradeço sempre a Deus, aos responsáveis
pelo programa (Catalina Pagés, Cidinha Lamas e Norman
Gall), à gestão das duas escolas e, principalmente, aos meus
alunos, que realizam comigo a missão de crescermos juntos
e procurarmos sermos melhores todos os dias.
O programa Círculos de Leitura proporciona aos estudan-
tes, em um único “pacote”, a melhoria no aprendizado, além
de proporcionar ao leitor um conhecimento amplo e diversi-
ficado sobre diversos assuntos.
Quem lê muito conversa sobre qualquer coisa e conse-
gue formar opiniões bem fundamentadas. Esse programa é
um presente em minha vida. Como afirma Saint-Exupéry, “Só
se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.
Essas frases nos ensinam a ver além das aparências, a ten-
tar entender as pessoas, as suas atitudes, as situações, e não

172
julgar apenas pelo que é visível. O que é verdadeiro não se
pode ver, apenas sentir! Isso representa o programa Círculos
de Leitura em sua essência: não pode ser compreendido até
que seja sentido; deixe marcas em sua alma, assim como dei-
xou na minha. Como diz o poeta Manoel de Barros:

A importância de uma coisa não se mede com fita mé-


trica nem com balanças nem barômetros etc. Que a im-
portância de uma coisa há que ser medida pelo encan-
tamento que a coisa produza em nós.

A EEEP Monsenhor Odorico de Andrade, em Tauá (segundo maior


município cearense em área territorial), foi uma as escolas-piloto do pro-
grama Círculos de Leitura em 2012. Quem traz o relato dessa experiência
é Fabiana Martins de Sousa, coordenadora da escola:

O programa Círculos de Leitura na EEEP Monsenhor


Odorico de Andrade tornou-se parte integrante do currícu-
lo educacional por sua grandiosidade no que se refere à in-
serção dos jovens no mundo da leitura. A partir da implan-
tação desse programa, foi possível perceber o verdadeiro
significado da leitura, entender melhor o que essa prática
proporciona.
Jovens tímidos, com dificuldades de expressar o próprio
pensamento e sentimentos, chegam ano após ano ao seio
da EEEP Monsenhor Odorico, e que maravilhoso é participar

173
dos Círculos de Leitura e libertar-se do medo, da inseguran-
ça, mergulhar no mundo maravilhoso da leitura e poder en-
contrar-se no meio em que estão inseridos e se reconhecer
participantes de tudo que está à sua volta.
Os nossos jovens, ao participarem dos Círculos de Leitura,
não são mais os mesmos: algo acontece, pois mudam de pos-
tura, tornam-se mais participativos, expressivos, aumentando
assim a capacidade de refletir sobre o mundo e sua própria vida.
A EEEP Monsenhor teve a oportunidade ímpar de ser agra-
ciada com esse programa. Em 2012, foi escola-piloto e até os
dias atuais abraçamos e defendemos a sua proposta pelos
resultados obtidos, que não se referem apenas ao desenvolvi-
mento do hábito de ler, mas porque proporcionam algo mais
profundo; as palavras e as expressões seriam transformação,
mudança, encontro consigo e com o outro.
Sem dúvida, não poderíamos deixar de mencionar os re-
sultados de aprendizagem dos jovens. Com os Círculos de
Leitura, nossos jovens leem melhor e produzem textos mais
coerentes e coesos.
O programa Círculos de Leitura se tornou parte de todos
nós da EEEP Monsenhor Odorico de Andrade.

A região de Iguatu, ainda no Ceará, teve um desenvolvimento sur-


preendente no que diz respeito ao programa Círculos de Leitura. A
professora Monssuete Alves de Araújo Jacó, da EEM Francisco Holanda
Montenegro, agora EEM Maria Daurea Lopes, fala um pouco sobre essa
os efeitos do programa em sua escola:

A escola EEM Maria Daurea Lopes até 2017 estava localiza-


da na zona rural do município de Iguatu, estado do Ceará. Por
tratar-se de uma instituição afastada do município, enfrentava
muitos problemas na educação dos alunos, como a deficiência
no hábito da leitura. Eram poucos os alunos que liam livros con-
siderados clássicos da literatura. Durante alguns anos letivos,
foram desenvolvidos projetos de leitura que pudessem desper-
tar o interesse dos educandos.
O objetivo consistia em proporcionar situações e práticas
nas quais tais alunos se percebessem como leitores, amplias-
sem suas concepções de leitura, desenvolvessem a linguagem
oral e escrita, descobrindo o prazer com a leitura, bem como
fortalecendo a autoestima em relação às suas capacidades en-
quanto leitores e multiplicadores. Todos esses objetivos foram
alcançados a partir do momento em que a escola começou a
participar do programa Círculos de Leitura.

174
No início, muitos alunos resistiam ao fato de se expressa-
rem na frente dos colegas, por timidez ou por não gostarem
de ler e refletir em grupo. Durante algum tempo, a resistên-
cia da maioria dos educandos se manteve, enquanto outros
começavam a descobrir e se encantar com os Círculos e com
a oportunidade de conhecer novas experiências.
Hoje, os alunos relatam que gostam muito dos Círculos
de Leitura, pois conseguem expor seus problemas, opiniões,
conhecer o outro através das ideias apresentadas dentro dos
temas discutidos. Os momentos de leitura acontecem em
pequenos grupos e por meio de multiplicadores responsá-
veis por repassar algo ainda não conhecido pelo todo.

Multiplicadores da EEM Maria Daurea Lopes, em Iguatu, Ceará.

Na EEEP Lysia Pimentel Gomes, em Sobral (CE), na qual Ana Emilia é


diretora, o programa Círculos de Leitura chegou em 2015. Ana Emilia
conta um pouco sobre como ocorreu esse processo e como isso impactou
na escola:
A EEEP Lysia Pimentel Gomes Sampaio Sales foi contem-
plada com o programa Círculos de Leitura em 2015, depois
de uma visita de apresentação da coordenadora pedagógica
Cidinha Lamas. Na ocasião foram selecionados 12 alunos mul-
tiplicadores que participaram da formação juntamente com
uma professora de Língua Portuguesa e a coordenadora da
área de Linguagens e Códigos dessa escola.
A princípio, o projeto foi implementado apenas nas

175
turmas de 1º ano. Em 2016, foi expandido para as turmas de
2º ano e, em 2017, para as turmas de 3º ano. Por conta do
estágio supervisionado e da redução da carga horária no se-
gundo semestre do 3º ano, o projeto torna-se inviável.
Os Círculos de Leitura foram inseridos e agregados na
grade curricular das turmas utilizando o horário para pro-
jeto interdisciplinar, semanalmente, o que permite que to-
dos os alunos participem.
As obras que são trabalhadas no projeto abordam va-
lores fundamentais nas habilidades socioemocionais e,
consequentemente, contribuem na formação humana e
profissional dos nossos jovens. Todo material é fornecido
pela Instituto Braudel.
Desde o princípio, houve uma excelente aceitação por
parte dos alunos e professores; os multiplicadores vetera-
nos são responsáveis pela formação dos novatos. Alguns
de nossos multiplicadores tiveram a oportunidade de
colaborar com a formação de outros jovens em diversos
municípios da Região Norte. É uma experiência gratifican-
te e de muito crescimento para eles.
Podemos dizer que o programa trouxe muitos im-
pactos positivos. Ele vai muito além do que incentivar
o gosto pela leitura: a ideia é levar os alunos ao auto-
conhecimento e ao conhecimento do mundo em que
vivem, fortalecendo, assim, o protagonismo juvenil e
possibilitando ao aluno reinventar sua própria vida atra-
vés do mundo da leitura.

Multiplicadores da EEEP Lysia Pimentel G. S. Sales, acompanhados da diretora


Ana Emilia D. Pinheiro, da profª parceira Sheila Brito e equipe de coordenação.
176
Voltando novamente a São Paulo, trazemos agora o depoimento de
Danila Rocha:

Estou há 12 anos em contato com os Círculos de Leitura,


tendo passado pelo programa em três estágios diferentes da
minha vida: primeiro, como multiplicadora nas escolas; de-
pois, como estagiária do Instituto Fernand Braudel e, agora,
como veterana, convidada para fazer formações nas Etecs a
partir da parceria com o Centro Paula Souza. Entre essas idas
e vindas, percebo a evidente mudança no programa, que ao
longo do tempo também foi se desenvolvendo e assumindo
um plano de ação diferente e mais objetivo junto aos jovens
multiplicadores.
Quando comecei a participar dos Círculos, eu era estu-
dante da 8ª série na escola Nail Franco de Mello Boni, em São
Bernardo do Campo. Naquela época, os encontros aconte-
ciam uma vez por semana, fora do horário de aula e com o
objetivo de ler uma obra literária inteira durante o período
letivo; bem diferente do que acontece hoje nas escolas, com
a formação intensiva de três dias a partir da leitura dos mó-
dulos. De participante dos grupos eu fui convidada para ser
multiplicadora e durante três anos atuei em muitas escolas
do estado de São Paulo com esse mesmo plano de ação.
Depois disso, fiquei um ano longe dos Círculos para fa-
zer um curso pré-vestibular, pois fui integrante de um pro-
jeto da Unilever cujo objetivo era dar todo o suporte ne-
cessário para que jovens de baixa renda e com potencial
pudessem se preparar para o mercado de trabalho. Voltei
como estagiária do Instituto e durante três anos acompa-
nhei o sucesso do novo plano dos Círculos nas escolas do
Ceará. Terminado meu estágio, fui fazer um intercâmbio
estudantil na França e segui em outros caminhos, dando
mais um “até logo” aos Círculos.
Minha formação é de uma fase em que os Círculos tinham
uma dinâmica bem diferente quando os moldes do progra-
ma ainda estavam sendo aperfeiçoados, mas o fato é que já
noto pelo menos três grandes mudanças no plano atual: o
número de alunos atingidos nas escolas, o tempo de forma-
ção e o tempo de protagonismo dos multiplicadores. Atual-
mente, fazendo as formações intensivas nas Etecs, percebo o
quanto é importante delegar esse protagonismo tão emer-
gente nos jovens.
Depois de três dias de formação, com base em compe-
tências socioemocionais, como o autoconhecimento, a

177
consciência social, a capacidade de resolver conflitos etc., os
jovens já estão preparados para trabalhar esses temas com
os colegas de sala, coordenando os seus próprios grupos de
leitura. Assim, o compartilhamento de ideias e a liderança
dos jovens realmente se fazem presentes nesse trabalho. Por
fim, me sinto muito grata de estar participando de mais essa
etapa dos Círculos, e que alcancemos novos voos!

Danila Rocha (à esquerda) realizando formação de multiplicadores na


Etec Prof. Adhemar Batista Heméritas.

Outro depoimento paulista que merece destaque é o do jovem Char-


les Wilson Ramos. A seguir, ele se apresenta e fala um pouco de sua traje-
tória de vida antes e depois dos Círculos:

Eu moro na divisa entre Diadema e São Paulo. No ano


2001, eu estava sem estudar, havia abandonado os estudos
e não tinha perspectiva de retomá-los.
Minha mãe, que não tinha Ensino Fundamental, conse-
guiu uma vaga para ela no Colégio Conforja: uma empresa
cooperativa que, para alfabetizar funcionários, abriu uma
escola em um de seus prédios e posteriormente foi aberta
ao público.
Para me incentivar a retomar os estudos, minha mãe
conseguiu uma vaga para mim. Na primeira semana fui
convidado por colegas de classe para conhecer um pro-
jeto que acontecia no colégio aos sábados, os Círculos
de Leitura.

178
Já no primeiro encontro achei legal, pois se tratava de
ler e interpretar contos e clássicos da literatura universal,
refletir sobre um tema e defender uma opinião. Uma di-
nâmica gostosa, em que a conclusão do tema sempre nos
deixa um aprendizado a ser praticado em nosso dia a dia.
Me senti muito bem acolhido.
No ano seguinte, em 2002, com o início dos grupos dos
Círculos em novo colégio, o Cefam, no centro de Diadema,
passei a ser agente multiplicador no projeto, o que aumen-
tou a minha autoestima e me fez acreditar que um futuro
brilhante estaria por vir.
No ano de 2003, atuando como auxiliar de projetos,
lembro-me com orgulho de quando fui pessoalmente
apresentar o projeto ao Instituto Unibanco. A alegria de fa-
lar de um projeto que realmente eu acreditava ser benéfi-
co para todas as idades! No ano 2004, tornei-me educador
social, ensinando o que havia aprendido e descobri que o
mundo do saber é infinito e o quanto a literatura nos ajuda
a crescer.
O maior orgulho que carrego em minha bagagem foi
poder montar um grupo, já como educador, no colégio
Conforja, que foi onde tudo começou, desta vez com pes-
soas da terceira idade. E foi para mim uma honra poder
expor o projeto no dia da inauguração da biblioteca, ten-
do ainda mais emoções ao ser recebido pela minha antiga
professora Marli, que agora era diretora e que, cheia de or-
gulho, recebeu o projeto e a mim de portas abertas.
Hoje, 14 anos depois, posso dizer que o meu reencontro
com o projeto é uma realização pessoal. Poder voltar para
todas aquelas histórias, que também são minhas, e sentir
florescer novamente sentimentos e recordações de temas,
diálogos e dilemas e poder usar todo esse conteúdo como
auxílio em decisões e no próprio cotidiano para acreditar
que este é o caminho mais correto é prazeroso a se seguir.
Círculos de Leitura: meu passado, meu presente e o meu
futuro.

A seguir, trazemos depoimentos de seis alunos e ex-alunos de es-


colas cearenses, muitas delas já referidas neste capítulo ou em outros,
para servir de amostra do sucesso que alcançaram não apenas profis-
sionalmente, mas como seres humanos. Os relatos desses jovens mos-
tram a coragem que tiverem (e têm) para enfrentar as dificuldades,
além de alto grau de resiliência, essa capacidade que precisa ser desco-
berta em todos nós diariamente.

179
Uma das propostas ímpares para o desenvolvimento cog-
nitivo e precursor do estímulo da leitura foi a introdução do
programa Círculos de Leitura na escola. Durante minha vi-
vência como participante e, logo depois, como multiplicado-
ra dos Círculos de Leitura, obtive aprendizagens fundamen-
tais e que me acompanharão para sempre.
Os Círculos de Leitura possibilitam de forma prazerosa o
gosto pela leitura. Já como ser humano, agucei minha criti-
cidade, me tornei mais justa e consciente de princípios que
são fundamentais para a vivência em comunidade ou para o
trabalho em equipe. A participação no programa me ajudou
a superar a timidez, passei a interagir e expor minhas ideias.
Nos Círculos o aluno deixa de ser coadjuvante e assume pa-
pel de protagonista.
Desde criança fui fascinada pela leitura, preferia livros a
brinquedos ou roupas. e meus pais nunca precisaram me
forçar a ler. Mas desde pequena tive uma admiradora que
sempre me acompanhou em todas as histórias que lia: mi-
nha mãe. Qualquer livro que eu lia, ia correndo atrás dela,
que ficava muito emocionada me vendo recontar a história
com minhas próprias palavras.
Hoje, quando lembro dela tão feliz ao me ver contar o
resumo do livro, entendo perfeitamente o motivo: ela tinha
uma grande dificuldade em interpretar textos. Então come-
cei a ajudá-la com as técnicas que aprendia nos Círculos de
Leitura. E hoje ela lê sem minha ajuda. E quando lemos o
mesmo livro, há uma diversidade de temas e reflexões. As-
sim como diz Pedro Bom Jesus: “A leitura é a chave para se ter
um universo de ideias e uma tempestade de palavras”.

Eduarda Taynara Gonçalves Pereira, ex-aluna da


EEEP Manoel Mano, em Crateús.

Entrei no Ensino Médio com sérias dificuldades de comu-


nicação. Sempre fui muito tímida. Com os Círculos de Leitu-
ra, tive a oportunidade de falar e ouvir mais. Aprendi a ver
outros pontos de vista. Aprendi que ler não é só decodifi-
car, mas que podemos compreender e praticar o que lemos.
Amadureci meu modo de ver o mundo e as pessoas que nele
habitam. Desenvolvi escrita e compreensão – embora não
sejam perfeitas. Acredito que esse fato tenha contribuído
para meu bom desempenho nas avaliações internas da esco-
la e no Enem, já que muita coisa depende do entendimento
do enunciado.

180
Multiplicadores da EEEP Luiza de Teodoro Vieira. Na frente, o diretor Gilmar; à
direita, os veteranos Weberty e Alynne Ferreira.

Hoje estou no Ensino Superior, cursando Engenharia de


Computação no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tec-
nologia do Ceará (IFCE). Amo tecnologia, números e coisas
do gênero, mas me sentia incompleta. Estava sempre com
um livro, mas sem ter com quem compartilhar as descober-
tas. Não tinha com quem debater os trechos que não esta-
vam claros. A sensação de estar nos Círculos é tão boa que
decidi voltar, mesmo com os contratempos da vida. Acredito
que formar cidadãos críticos é um grande passo. E isso pode
ser feito com o abrir de um clássico.

Alynne Ferreira, ex-aluna da EEEP Luiza de Teodoro Vieira.


Atualmente graduanda no curso de Engenharia de Computação no
IFCE, em Fortaleza.

Eu tinha 16 anos quando me mudei para o Ceará e tudo


era muito novo e diferente do que eu conhecia e participava.
E quando entrei na escola profissionalizante, muitas outras
experiências me esperavam, uma delas era o programa Cír-
culos de Leitura.
O programa me acolheu, me escutou e conversou com
meus sonhos, fazendo-os crescer e amadurecer na medi-
da que o tempo passava. Isso era uma vivência semanal
que motivava o hábito da leitura e a paixão pelo debate
sobre assuntos atemporais. Mas, apesar do fascínio já no
primeiro ano, foi no segundo que eu conheci e entendi o

181
poder transformador desses encontros de leitura. Foi nes-
se ano que me tornei multiplicadora. Eu possuía naqueles
momentos uma responsabilidade infinita de escutar com
atenção cada pequena Gaivota. Eu vi, semana após sema-
na, jovens em situações difíceis não só escolares, mas que
carregam nas raízes sofrimentos e injustas, se transforma-
rem em estudantes curiosos, compreensivos, empáticos e
sobretudo leitores não só de obras clássicas, mas da vida.
Também acompanhei o desenvolver de pensamentos crí-
ticos que surpreendiam nos comentários e aumentava a
crescente linha imaginária que nos levava para um lugar de
sonhos possíveis e realizáveis.
No final do Ensino Médio, foi difícil nos despedirmos do
programa, mas é infinitamente mais fácil encarar a vida após
ter participado.
Hoje, faço parte dos jovens que resolveram inserir nos
seus objetivos trabalhar com a perspectiva de mobilizar e
motivar as pessoas a realizarem seus sonhos. Talvez eu traba-
lhe com educação, talvez pinte uma parede da minha futura
casa ou trabalhe com gaivotas a sobrevoar. Talvez eu viva um
amor igual ao de Nástenka e o Sonhador de Dostoiévski. Tal-
vez eu precise da coragem de Homero. Talvez as histórias do
viajante sejam um dia as minhas.

Raiane Costa, 18 anos.


Multiplicadora da Escola Profissional Doutor José Alves
da Silveira, em Quixeramobim.

Catalina Pagés visita Círculos de Leitura na EEEP Dr. José Alves da Silveira (2016).
182
Me chamo Lívia Marques, sou ex-aluna da EEEP Júlio Fran-
ça, onde fiz o Ensino Médio integrado com o curso técnico
em Contabilidade. Atualmente curso uma licenciatura em
Pedagogia, pelo interesse dos métodos de estudo e ensino,
pois acredito que a educação tem um papel fundamental de
formação na sociedade.
Iniciei no projeto no ano 2014, passei um ano como gaivo-
ta, conhecendo o projeto, obras e compartilhando vivências.
No ano seguinte, em 2015, um voo alcançado, fui convidada
para ser multiplicadora desse maravilhoso programa: iria re-
passar meus conhecimentos para novos alunos. Experiência
maravilhosa! No mesmo ano, participei de uma formação
com veteranos do programa, onde o amor aumentou mais,
vendo que cada pessoa tem algo a dizer sobre determinada
obra, conceitos e gostos diferentes. Desde então continuei
na caminhada.
Em agosto de 2016, fiz minha primeira formação exter-
na: tudo novo, pessoas novas, perguntas rodeavam na ca-
beça – “Quem são? De onde são? Que escola será?”. E mais
uma nova experiência e voo adquiridos: como são queridos,
como são amáveis, como é bom conhecer pessoas que gos-
tam de conhecer, de se apaixonar pelos personagens, de ver
o interior de cada um, de sentir e de amar.
Hoje, Ensino Médio e Técnico concluídos, ainda vivo o
programa. Sou veterana! Participei de várias formações
externas, nas quais o sentimento é indescritível, o amor, a
atenção, o carinho, as vivências, os rostos felizes, o sorriso,
a imaginação para saber o que se passa no final da obra, as
perguntas, os laços que criamos, as histórias contadas rela-
cionadas à obra, um tia pra cá e pra lá, é tudo tão simples, tão
lindo de se ver, os abraços, as risadas, os choros, as despedi-
das. Isso tudo se transforma no prazer de missão cumprida,
o mesmo prazer experimentado por Fernão Capelo Gaivota,
na primeira obra dos Círculos.

Lívia Marques Araújo, ex-aluna da EEEP Júlio França,


em Bela Cruz.

183
Lívia Marques Araújo.

Tive a oportunidade de conhecer o programa no meu En-


sino Médio em 2012, em uma escola profissionalizante. An-
tes, não tinha o hábito da leitura, minha oratória não era boa,
minha escrita era regular e eu era muito tímido.
Então, participei de uma formação durante uma semana.
Nunca mais esquecerei dessa formação. Lemos durante ma-
nhãs e tardes vários livros, que tinham uma base filosófica e
que sempre nos davam uma compreensão maior sobre te-
mas que cercam a nossa sociedade. Com essa experiência,
percebi que a minha mente se abriu e passei a ter uma visão
diferente com relação a várias questões de nossa vida co-
tidiana. Depois de um ano, já me via uma pessoa diferente.
Adoro ler, minha capacidade de comunicação melhorou mui-
to, minha escrita nem se fala; e a timidez já não mais existe.
Todo esse banquete, posso assim dizer, que o programa
Círculos de Leitura me ofereceu, foi essencial para que eu
me desenvolvesse melhor no Ensino Médio, me preparando
para o ingresso no Ensino Superior. No Enem, me ajudou na
compreensão das questões e no bom desenvolvimento de
uma redação. No vestibular, fui aprovado entre os dez pri-
meiros no curso de Pedagogia da Universidade Regional do
Cariri (URCA).
Atualmente, sou formador contratado pelo Instituto Fer-
nand Braudel para acompanhar as escolas do Ceará. Realizo
formações em escolas de diversas cidades. Nesse processo,
tenho a felicidade de conhecer vários jovens que, ao longo

184
das formações, se encantam com o programa, seja pelos li-
vros, seja pela filosofia que eles trazem, seja pela metodolo-
gia que inspira os novos multiplicadores a, assim como eu,
desejarem compartilhar o que descobrem e aprendem nos
grupos. Para mim, a satisfação de formar novos multiplica-
dores e fazer parte do processo de expansão do programa é
imensa. E percebo que trabalhar como formador educacio-
nal do programa tem ajudado também na minha formação
como futuro pedagogo e educador.
Posso dizer, com toda certeza, que esse programa mudou
a minha vida.

Carlos Aldênio Fernandes, ex-aluno da EEEP Virgílio Távo-


ra. Atualmente é acadêmico de Pedagogia da Universidade
Regional do Cariri e formador educacional contratado pelo
Instituto Braudel no Ceará.

O formador Carlos Aldênio em visita à EEEP Governador Virgílio Távora.


À esquerda, a professora parceira Simone.

O programa Círculos de Leitura me auxiliou bastante des-


de quando comecei a participar em 2014. Eu era tímido e
tinha dificuldades em falar em público, mas essa convivência
com outras pessoas de um modo mais descontraído e a troca
de experiências foi, aos poucos, me deixando mais confortá-
vel. Isso me trouxe vários novos amigos e um grande desen-
volvimento em apresentações e seminários, que até então
era algo bem complicado para mim devido à minha timidez.

185
Com o passar do tempo e o entendimento do método
e a compreensão das obras, cresceu em mim a vontade de
participar ainda mais. Foi quando surgiu a oportunidade de
ser multiplicador. No começo foi complicado para mim, mas
com a ajuda dos outros multiplicadores do programa rece-
bi o apoio necessário e fui aprendendo a como cativar cada
membro do grupo que estava comigo.
Para mim, a principal mudança que o programa Círculos
de Leitura trouxe foi essa amizade verdadeira que encontra-
mos nos grupos, porque o encontro dos Círculos é um es-
paço em que as pessoas se entregam ao momento e vivem
aquele sentimento realmente; as amizades construídas são
com base na compreensão.
Os valores aprendidos são coisas que às vezes esque-
cemos na correria do dia a dia, e todas as obras trabalham
esses valores com maestria, sempre nos mostrando que o
amor e o companheirismo são essenciais e nos fazendo ver
a importância do foco, da resiliência e da dedicação para al-
cançar os objetivos.
E, além de tudo isso, ainda nos desperta uma paixão pela
literatura clássica, pelas poesias e, principalmente, por com-
partilhar nossos conhecimentos e experiências para ajudar
o outro.

Weberty Silveira, ex-multiplicador da EEEP Luiza de Teodoro Vieira,


em Pacatuba. Formador educacional contratado do Instituto Fernand
Braudel no Ceará.

Participantes dos Círculos de Leitura da EEEP Luiza de Teodoro Vieira.


186
Voltando a São Paulo, temos o depoimento de Patrícia Mota Gue-
des, que ao longo de dez anos fez parte da equipe do Instituto Fer-
nand Braudel e acompanhou o início do trabalho junto às escolas de
São Paulo. Patrícia fala de seu encantamento e das muitas lembranças
que guarda dos vários jovens com quem teve contato. Atualmente,
atua na Fundação Itaú Social, mas, para nossa sorte, é uma das muitas
pessoas que fizeram parte dessa “arte do encontro” e que continuam
sempre por perto.

Estranhamento, acompanhado pela absoluta certeza de


estar no lugar certo. A Odisseia, de Ulisses, em um sábado
ensolarado de 2002, se fazia presente em um grupo dos
Círculos de Leitura, com jovens de uma escola pública de
Diadema, Grande São Paulo. Juntos, nos emocionávamos
com as tribulações de Ulisses para retornar a sua Ítaca, e a
jornada de seu filho, Telêmaco, que parte em busca de no-
tícias do pai. Catalina, a fundadora do programa, facilita-
va como poeta-mestre-filósofa as reflexões profundas que
surgiam no grupo. Vários daqueles jovens se tornariam de-
pois os primeiros multiplicadores, levando o projeto para
muitos outros estudantes e escolas públicas na Grande
São Paulo. Depois, viriam outros Estados – Pernambuco,
Bahia, Minas, Minas e o Ceará, onde se multiplicou de for-
ma exponencial.
Só que desses caminhos não sabíamos ainda. Naquele
momento, eu só sabia que havia voltado ao Brasil depois
de doze anos trabalhando na área social dos Estados Uni-
dos e nunca havia encontrado uma proposta similar. Sim, já
havia visto belos projetos que estimulavam o protagonis-
mo juvenil. No governo de Massachusetts, financiávamos
centenas de projetos que formavam multiplicadores – peer
leaders – para as mais diferentes estratégias de formação em
parceria com a escola, envolvendo teatro, música, esportes,
artes, saúde comunitária, mediação de conflitos. Nos anos
1990, o conceito de youth development – desenvolvimento
integral da juventude – havia ganhado força nas políticas
públicas e fundações privadas norte-americanas. Por que,
então, me estremecer de surpresa e encantamento com os
Círculos de Leitura? Só o tempo e a convivência foi me aju-
dando, lentamente, a compreender.
Primeiro, a escolha de um repertório de obras da litera-
tura e filosofia, capaz de tocar profundamente adolescen-
tes e jovens. Em um país com tanta desigualdade social,
o programa compartilha o tesouro que o filósofo Walter

187
Benjamin chamava de pérolas da humanidade, patrimônio
que nos é legado, sem fronteiras de tempo ou espaço, de
centro ou periferia. Podemos nos reconhecer nos medos
e esperanças dos personagens, dilemas e escolhas. Pode-
mos aprender com seus erros e acertos. Com a história de
Romeu e Julieta, os jovens refletem juntos sobre o que po-
deria ter sido feito para evitar a tragédia – menos ódio na
cidade e mais espaço para o amor, por exemplo. E a cada
leitura, por conta da natureza dessas obras, novas camadas
e reflexões surgem. Lembro-me de Matias, um participante
do sétimo ano, de Vila Esperança, uma comunidade na pe-
riferia de São Bernardo, que me disse uma vez sobre como
os livros que tinha ganhado nos Círculos – até aquele mo-
mento, cinco – eram uma biblioteca imensa, porque “den-
tro de cada um existem muitos, muitos”. Nunca alguém
realmente termina de ler um clássico, diria também em ou-
tras palavras o escritor Ítalo Calvino.
Quando alguém me pergunta se encontramos resistên-
cia dos jovens ao serem introduzidos a essas obras, sempre
me lembro de que as maiores resistências vieram de adul-
tos. Uma vez, um visitante de uma fundação do setor pri-
vado perguntou a um grupo se aquelas leituras não eram
muito difíceis para eles, diferente da linguagem do rap,
“tão mais próxima do seu mundo”. Os próprios jovens tra-
taram de responder, contando a ele a história. “Assim você
pode entender melhor”, disse um participante, no esforço
de defender o direito a um mundo que abarque também
Homero, Machado, Guimarães, Adélia, Dostoiévski e tantos
outros mestres e mestras. Em vez de subestimar a capaci-
dade dos jovens de se identificarem e se apropriarem da
grandeza dessas obras, os Círculos apostam justamente na
força desse encontro.
Outro elemento fundante dos Círculos é o método do
grupo, onde o encontro se dá. A leitura em voz alta, com-
partilhada, vai permitindo que as palavras ganhem corpo e
ritmo, abrindo espaço interno em cada um, para que uma
conversa de verdade aconteça. E cada um tem seu jeito de
se expressar, um gaguejo aqui, uma pausa ali; uns mais tí-
midos, outros menos.
Todo jovem multiplicador é formado para promover
um ambiente de respeito e abertura. Assim, os que sentem
vergonha de falar em voz alta podem sentir que ali é um
espaço seguro e, no seu tempo, vão encontrando voz e pa-
lavra. Igualmente aprendem aqueles que chegam agitados,

188
cheios de certezas e preconceitos, sem costume de prestar
atenção aos outros. No grupo, aprendemos a desenvolver
um novo olhar diante de nossas ideias pré-concebidas. A
leitura e a discussão no pequeno grupo se torna, graças
à formação do jovem multiplicador, uma travessia, como
Heidegger falaria, de “companheiros no oficio de pensar”.
Por isso, é um aprendizado de escuta, reflexão, empatia e
colaboração. Tudo isso mediado por um profundo amor à
beleza e ao mistério da arte.
Certa vez outro visitante, o ex-presidente da Espanha
Felipe González, se encontrou com um grupo de jovens
do programa e lhes perguntou se não tinham medo de
ficarem frágeis, “sensíveis demais para esse mundo”. Os
próprios jovens explicaram que a experiência do grupo, e
tudo o que aquelas obras nos ensinam, na verdade os for-
taleciam. González não duvidou, e quase confessou ter ele
mesmo, como líder, precisado se apoiar nessa sabedoria
maior que nos transcende e ao mesmo tempo é nossa.
Quando penso em cada jovem tocado pelos Círculos de
Leitura, ao longo desses 18 anos, e nos caminhos de cada
um, penso nessa sensibilidade que fortalece. É dela que
falava o jovem herói Aliosha Karamazov, de Dostoiévski,
quando antes de partir explica a um grupo de crianças que
uma boa lembrança fica para sempre guardada em nós,
mesmo quando dela, já adultos, nos esquecemos. Ela fica
à nossa espera, até que possa vir ao nosso auxílio mais tar-
de, quando a vida nos trouxer tribulações, medos e surpre-
sas. Protetora, assim como Palas Atenas protegeu Ulisses
e Telêmaco em suas travessias. Que nos próximos 18 anos
mais crianças e jovens brasileiros possam ter essa boa e
guardiã lembrança de um Círculo de Leitura, para sempre
os acompanhando no caminho.

189
Agradecimentos

Nesses dezoito anos de existência dos Círculos de Leitura, as parcerias


firmadas e os apoios recebidos de empresas e outras instituições
do terceiro setor foram fundamentais para que pudéssemos
realizar essa jornada do qual tanto nos orgulhamos.
Queremos encerrar este livro demonstrando nosso profundo
reconhecimento e gratidão aos que tornaram esse trabalho possível,
antigos e atuais patrocinadores do Programa Círculos de Leitura.

• Aegea*
• Avianca*
• Banco Bradesco*
• BASF (Academia de Ciência)
• BNP Paribas*
• Fundação Itaú Social*
• Fundação Lemann
• Fundação Odebrecht
• General Electric
• Grupo Edson Queiroz
• Instituto de Desenvolvimento do Baixo Sul – IDES
• Instituto Unibanco
• Instituto Votorantim
• Natura
• Poliedro - São José dos Campos
• TNT Brasil
• Unilever

* Atuais patrocinadores

190
Referências

BARTHES, Roland. Lição. Lisboa: Edições 70, 1997.


BLOOM, Harold. Como e por que ler. São Paulo: Objetiva, 2001.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.
Série Mais Educação: educação integral: texto referência para o debate nacional. Brasília, DF, 2009.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cadfinal_educ_integral.pdf>. Acesso em: 4
maio 2018.
CABREJO-PARRA, Evelio. A leitura antes dos textos escritos. Tradução de Leda Barone. Revista
Percurso, São Paulo, n. 44, ano XXIII, jun. 2010. Disponível em: <http://revistapercurso.uol.com.br/
index.php?apg=artigo_view&ida=98&ori=autor&letra=C>. Acesso em: 24 abr. 2018.
DESCARTES, René. O discurso do método. São Paulo: Martin Claret, 2008.
ECO, Umberto. O nome da Rosa. Rio de Janeiro: Record, 2011.
ENGELMANN, Ademir Antonio. Filosofia da arte. Curitiba: IBPEX, 2008. (Série Metodologia do ensino
de arte).
GORKI, Máximo. Como aprendi a escrever. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.
GUIMARÃES ROSA, João. Tutameia. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1968.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1981.
ORTEGA Y GASSET. Hermenêutica e vocação.
RIBEIRO, Roberto Mesquita. Da conversa com o clássico: uma abordagem inspirada na imaginação
analógica de David Tracy.
TOUGH, Paul. Uma questão de caráter. São Paulo: Intrínseca, 2014.
UNAMUMO, Miguel de. Vida de Don Quijote y Sancho. Alianza Editorial: Madrid, 2009.
VAN GOGH, Vicent. Cartas a Theo. São Paulo: L&M, 2002.

191
Este livro foi composto na tipologia Myriad Pro e impresso pela Margraf em
papel couché 150 g/m2 em agosto de 2018.

Você também pode gostar