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FUNDAMENTOS E ORIENTAÇÕES GERAIS DO CONSERVADORISMO POLÍTICO

Fábio Cardoso Machado*

É comum dizer que o conservadorismo não constitui uma teoria ou doutrina, não tem uma
cartilha e não se esgota ou encerra em nenhum específico ideário ou movimento político-
partidário. Mas, ainda assim, é possível extrair da antiquíssima tradição do conservadorismo
alguns fundamentos e orientações gerais que, se não chegam a constituir uma teoria, articulam
uma específica compreensão do fenômeno político e estimulam certas disposições que dão
identidade ao conservador. Esta é uma modesta tentativa de apresentar uma rápida síntese
daqueles principais fundamentos e orientações gerais. A preocupação não é historiográfica, e
por isso se vale de ideias tiradas de diferentes vertentes do pensamento conservador. O objetivo
é apresentar o conservadorismo no seu melhor, naquilo que tem de mais valioso para a
compreensão da realidade e a orientação do agir político.

Os conservadores acreditam na existência de uma realidade transcendente que está para além
deste mundo, e que somos seres intermediários, pois ao mesmo tempo em que estamos aqui,
neste mundo das coisas transitórias e contingentes, estamos também lá, naquele mundo das
coisas eternas e permanentes. Estamos, então, no tempo mas também para além dele. Há
partes em nós que nos conectam mais diretamente a este mundo contingente, das coisas que
se podem ver e sentir, mas há também partes em nós que podem nos conectar ao que é eterno,
a tudo aquilo que transcende este mundo imanente. Se somos, por um lado, sacudidos, agitados
pelas nossas paixões, somos também interpelados por aquela realidade das coisas que não se
veem. A abertura para essa realidade, e a tentativa de nela participar através da nossa razão, é
uma das coisas que faz de nós humanos, e um indicativo importante de uma alma saudável.

Não somos, pensam os conservadores, nem bestas nem deuses. Não devemos, portanto, nos
reduzir à condição de uma besta, de um animal irracional que tem só sentimentos e se deixa
governar pelas paixões. Mas também não podemos nos alçar à condição de deuses, como se
pudéssemos tudo saber e governar o mundo como quem tudo sabe. A moderação é, assim, uma
exigência da nossa própria natureza. Podemos vislumbrar certas verdades e exigências que vêm
daquela nossa abertura para a transcendência, e esse vislumbre deve sim orientar o modo como
nos movemos neste mundo. Mas o que podemos saber, por melhores que possamos chegar a
ser, não nos dá certezas suficientes para nos autorizar a tomar o mundo inteiro em nossas mãos,
com o propósito de fazer dele a realização da ideia de um qualquer de nós acerca de como ele
deveria ser. Partimos do mundo como ele é, do homem como ele é, da sociedade como ela é, e,
com todo o cuidado e respeito por tudo que encontramos, vamos pouco a pouco, num contínuo
e vagaroso processo de tentativa e erro, ajustando e melhorando o que está ao nosso alcance.
É mais importante preservar o que atingimos até aqui do que forçar o curso das mudanças que
desejamos, pois no caminho podem se perder, irreversivelmente, conquistas importantes às
quais não podemos renunciar.

Por tudo isso, os conservadores preferem se apegar ao que já se sabe, resguardar o que já temos,
confiar no que está já estabelecido e proteger o que a experiência, até aqui, mostrou que
funciona. O mundo que temos e a sociedade em que vivemos se sustentam em um complexo e
delicado equilíbrio. Não são o resultado do conhecimento, da intenção ou da ação de alguém
em particular. Resultam, sem bem sabermos como, de conexões e ajustes que vão acontecendo
meio que à revelia dos nossos projetos e ideais. Formam ordens espontâneas que vão num
crescer de caso a caso, de situação em situação, e assim as coisas vão se acomodando por meio
de interações e conexões cada vez mais complexas que resultam em um arranjo que não foi,
nem poderia ter sido, pensado ou criado nem pelo mais sábio e prudente de todos os homens.
O conservador sabe disso. E é por isso que dá valor à ordem do mundo e às tantas ordens parciais
que vão acomodando as nossas necessidades e dando sentido à nossa existência.

Disso resulta que a ordem da sociedade não pode ser gravemente perturbada por meio da nossa
ação deliberada. Na medida em que é uma ordem espontânea, e não uma organização, não
pode ser substituída nem inteiramente transformada por meio de uma direta intervenção nossa.
Podemos e devemos sim nos abrir para aquela ordem transcendente que está para além da
ordem da sociedade, e é de se esperar que, depois disso, nos voltemos para as coisas deste
mundo com intenção crítica e cheios de sedutoras ideias acerca de como fazer deste um mundo
melhor. Mas por melhores e mais verdadeiras que sejam as nossas ideias, temos sempre que
lembrar que o mundo, a sociedade e as pessoas, com todos os seus problemas, são resistentes
e não mudam a nosso critério. Que não conseguimos, então, mudá-los à nossa maneira, sem
deixar um rastro de destruição. E que não há nenhuma garantia, nenhuma segurança, de que,
no final, com o que tiver sobrado, o resultado será melhor do que aquele complexo e delicado
arranjo que antes existia. Então não vamos renunciar à tarefa de cuidar deste nosso mundo,
para que constitua, para nós, uma habitação segura e a melhor possível. Mas assim como não
derrubamos a nossa casa cada vez que algo nela nos incomoda, não destruiremos a ordem da
sociedade só porque há nela tanto a melhorar. É muito mais seguro ir ajustando o que é possível
no contexto da ordem que aí temos, do que sair dela para construir uma outra inteiramente
nova.

O governo, pensam os conservadores, deve estar sujeito à ordem que governa e limitado pela
exigência da sua manutenção. A ordem da sociedade é em si mesma um bem, pois é nela que,
com maior ou menor precariedade, encontramos espaço para a nossa existência. E como aquela
ordem mais compreensiva é composta por tantas outras ordens parciais ou intermediárias, o
governo precisa também respeitar certos limites que vêm da exigência de proteção dos espaços
constituídos por essas ordens, e tanto mais deve preservá-las quanto mais contribuam para tudo
aquilo que dá sentido à nossa existência. O nosso bem tem inúmeras dimensões e se realiza de
variadas maneiras, em ambientes e contextos diversos. O florescimento das nossas virtudes
supõe vínculos e arranjos comunitários ou associativos de tipos muito diferentes. Não só porque
são várias as dimensões e modos de realização do nosso bem, mas também porque, sendo ao
mesmo tempo livres e tão diferentes uns dos outros, precisamos encontrar, cada um de nós, no
exercício da própria responsabilidade individual, os caminhos e espaços que melhor propiciam
o aperfeiçoamento do caráter, o progresso do saber, o cuidado dos outros e tantas outras coisas
que são necessárias para a realização de cada pessoa. Então o governo, além de respeitar as
associações voluntárias e as comunidades intermediárias que compõem a ordem social, deve
assegurar o respeito ao princípio da subsidiariedade, de forma que as ordens mais
compreensivas e as instâncias superiores se abstenham de tomar para si tudo aquilo que deva
ser reservado à esfera de liberdade e responsabilidade de cada uma das ordens parciais e das
instâncias inferiores.

O conservador será sempre, por essas decisivas razões, avesso a todas as formas de
totalitarismo. A ordem da sociedade não é o todo da ordem e não pode haver um soberano
absoluto ou qualquer tipo de poder ilimitado. Ninguém pode ter a supremacia, pois a
supremacia é das exigências da ordem, e uma delas é que a própria ordem da sociedade não
queira ser uma ordem total e, no seu interior, não haja nenhum soberano absoluto. Isso não
significa que o governo e as leis devam ser indiferentes ao que é bom e justo. Pelo contrário, o
bem comum e a justiça são os fins mesmos do governo e do exercício do poder. Mas,
precisamente por isso, não pode ninguém nem instância nenhuma concentrar poder demais. Se
alguém ou determinada facção toma para si todo o poder, a tendência é que o regime degenere,
pois quem governa, quer seja um, uma minoria ou mesmo a maioria, pode, a partir daí, governar
para si mesma, no seu próprio interesse, e é isso que mata a liberdade e dá lugar ao despotismo:
uma parte da comunidade política governa os demais no seu exclusivo interesse, e não para o
bem comum. Então as várias instâncias de representação da sociedade devem promover o bem
comum e distribuir justiça, e para que assim seja precisam estar sujeitas a limites e controles
capazes de moderar a tendência de cada um a governar no seu próprio interesse e, até mesmo,
conforme à sua própria visão parcial de quais sejam as exigências do bem comum e da justiça.

Mas os conservadores não acreditam que os arranjos institucionais possam garantir uma boa
ordem ou assegurar a preservação de um bom regime. É verdade que estimam as instituições
tradicionais e os controles e procedimentos institucionais que ordenam e limitam o exercício do
poder. Sabem, contudo, que um regime estável e adequadamente ordenado ao bem comum e
à justiça depende de um certo estoque de virtude e de um relativo protagonismo daqueles que
são os melhores dentre os cidadãos de uma dada sociedade. A virtude, a sabedoria e a prudência
são, inclusive, fontes de autoridade ou condição de legitimidade do seu exercício. Ainda assim,
insistem os conservadores que nem mesmo aos mais virtuosos deve ser concedido um poder
ilimitado. Afinal, não há ninguém dotado de uma virtude assim tão transcendente e, mesmo que
houvesse, dificilmente a massa dos cidadãos reconheceria a sua legitimidade para governar.
Além disso, mesmo o governo dos melhores, se não for sujeito a limites, tenderá a degenerar
em alguma forma de tirania ou oligarquia, ou seja, em um regime desviado em que um ou alguns
poucos governam no próprio interesse. Então o melhor é alguma espécie de governo consentido
que tenda a conduzir os melhores às magistraturas mas mantenha todas as autoridades, e
mesmo a maioria do povo, sob as exigências indisponíveis de uma ordem normativa tradicional
que vigora porque encerra o saber prático de gerações e funciona como uma espécie de acervo
de experiências que orienta a ação com mais segurança do que teorias e formulações gerais. Daí
a preferência dos conservadores por algum tipo de governo misto limitado por princípios
testados pelo tempo, corroborados pela experiência e resguardados por instituições
permanentes.

Por fim, o mais importante. O bem comum é um bem humano e implica, na sua essência, o
serviço da pessoa. E a pessoa tem uma dimensão espiritual que estabelece uma relação direta
com um absoluto transcendente ao mundo. A sua plena realização só é possível, portanto, nessa
relação. O indivíduo que, digamos assim, a pessoa porta, é um pobre indigente cheio de
necessidades que, ao entrar em sociedade, vem a integrar algo maior cujo bem é melhor que o
bem de cada indivíduo que compõe esse todo. Mas quem entra em sociedade não é apenas o
indivíduo. É a pessoa inteira. E embora o bem particular do indivíduo seja inferior ao bem
daquele “todo” porque esse “todo” é um “todo” de pessoas, o bem do “todo” só é superior ao
bem privado do indivíduo se serve às pessoas individuais e respeita a sua dignidade. Então o
bem desse “todo” político-comunitário é um bem materialmente qualificado e delimitado,
porque transcende o bem privado dos indivíduos mas adquire conteúdo por referência ao bem
das pessoas, e ao bem de cada uma delas se subordina porque a personalidade nos conecta com
um “Todo” transcendente que é superior ao “todo” social (Maritain). Essa delimitação do
domínio do político por referência a uma realidade que está para além das coisas deste mundo
é o mais firme fundamento da liberdade. E dela decorrem tanto direitos quanto
responsabilidades que não existem nem em razão do estado nem para o estado e que estão fora
da sua esfera de atribuições. Por isso, defendem os conservadores, a pessoa deve ter a sua
liberdade preservada e a família, a igreja, a universidade e tantas outras instituições necessárias
à nossa realização devem ser protegidas e postas a salvo da intervenção da estatal.

Porto Alegre, 21 de abril de 2020.

*
Doutor em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito pela UNISINOS.
Professor da Escola de Direito da PUCRS. Advogado em Porto Alegre.

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