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As raízes marxistas de Mikhail Bakhtin

Maria José Rizzi Henriques 1


1
Professora no Mestrado em Letras – Linguagem e Sociedade
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
zezé-henriques@hotmail.com

Abstract. By utilizing Mikhail Bakhtin´s theoretical-methodological


substantiation present in both Marxism and language philosophy, this paper
intends to approach the Marxist patterns of this semiotics theorist, having as a
reference the alterity and the dialogism, central concepts/categories of the
conception of language expressed by the author. We retake, with the same
objective, certain Marxist texts by establishing a communicative interaction in
the dialogism between Karl Marx and Mikhail Bakhtin, that install the social-
historical subject and its artistic, religious and scientific productions, among
others, in a constant process of come-to-be.

Keywords. dialectics, semiotics, dialogism, alterity, marxism.

Resumo. Utilizando-se a fundamentação teórico-metodológica de Mikhail


Bakhtin presente em Marxismo e Filosofia da Linguagem pretende-se neste
artigo abordar as matrizes marxistas deste teórico da semiótica tendo como
referência a alteridade e o dialogismo, conceitos/categorias centrais da
concepção de linguagem expressa pelo autor. Retomam-se, neste objetivo,
determinados textos marxianos estabelecendo-se uma interação comunicativa
no dialogismo entre Karl Marx e Mikhail Bakhtin, que instaura o sujeito
sócio-histórico e suas produções artísticas, religiosas, científicas entre outras,
em constante processo de vir-a-ser.

Palavras-chave. dialética, semiótica, dialogismo, alteridade, marxismo.

As matrizes marxistas de Mikhail Bakhtin são objeto de questionamento de


intelectuais brasileiros e estrangeiros e se inserem no conjunto maior de
questionamentos sobre a autoria dos escritos bakhtinianos, a intencionalidade subjacente
de suas obras, a utilização adequada de seus conceitos/categorias, entre outros aspectos.
A teoria da linguagem que o autor expressa diz respeito em Marxismo e
Filosofia da Linguagem (1929) a uma oposição a Ferdinand de Saussure e seus
discípulos (o objetivismo abstrato), ao formalismo russo (Círculo Lingüístico de
Moscou, OPOYAZ), ao subjetivismo idealista de Wilhelm von Humboldt e suas
vertentes, ao psicologismo funcionalista – e nessa crítica aos fundamentos de Kant –, e à
fenomenologia.
Insistindo nos limites teórico-metodológicos dessas concepções, Bakhtin elabora
uma visão de mundo, uma abordagem antropológica e lingüística que
epistemologicamente estabelece para as ciências humanas um campo interfático
semiótico fundamentado no dialogismo e na alteridade que se objetiva na produção de

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sentido de sentido dos discursos e nas formas de sua construção (BARROS; FIORIN;
TEZZA; BRAIT; In: FARACO; TEZZA; CASTRO, 2001).
O objeto das ciências humanas sendo o discurso, o texto, na interação entre
interlocutores e entre discursos e sendo cada área desse campo produtora de
discursos/textos focados para seu próprio objeto, o homem ao produzi-los também se
produz na mediação da comunicação interativa; nela se conhece e se explicita no
processo de significação (MACHADO. In: FARACO; TEZZA; CASTRO, 2001).
Integram-se desse modo o sujeito e o objeto do conhecimento nesse processo
que se conecta indissoluvelmente ao contexto sócio-histórico, na interação entre EU e o
OUTRO, nos vários discursos produzidos em que inúmeras vozes sociais fornecem os
múltiplos sentidos de compreensão da cultura que podem concordar, negar, interpretar,
persuadir, parafrasear, reproduzir etc. A proposta como assinala Diana Luz Pessoa de
Barros é de descentramento do sujeito na interlocução posicionando-se a pesquisa para
o espaço entre EU e o OUTRO (BARROS, In: BARROS; FIORIN, 2003, p. 3).
A crítica implícita e explícita às raízes marxistas de Bakhtin, não raro
acompanhada de diretrizes que posicionam Bakhtin em outros patamares filosóficos,
por vezes considera dois aspectos: as propostas científicas de marxistas da primeira
geração como Plekhánov, como assumidas por Bakhtin; e do mesmo modo a adoção do
princípio fundante do materialismo histórico pelo autor como um determinismo
econômico definidor das ações humanas que produz um campo específico, o da cultura,
não conectado à natureza.
Ghorghi Valentinovith Plekhánov, um dos criadores do grupo Emancipação do
Trabalho, em Genebra, viveu 35 anos no exílio e suas obras definiram as linhas mestras
do marxismo ortodoxo russo, e influenciaram o pensamento de Vladimir Ilithc Ulianov
(Lenin), sendo ambos opositores aos movimentos políticos que se abrigavam sob o
nome de populismo russo naquele período histórico. Plekhánov liderou a posição
política social-democrata russa e se opôs à tomada de poder pelos bolcheviques, graças
a Lenin seus escritos sobreviveram ao seu declínio político.
A evolução histórica do marxismo que merece abordagem mais profunda é um
campo fecundo de análise epistemológica no dialogismo existente entre enunciação /
enunciado nas vertentes dos movimentos operários, do marxismo legal, do marxismo da
Europa Oriental, do marxismo ocidental e do marxismo soviético em suas fases.
Convém recordar que na década de 20 do século passado, o legado Lenin – Plekhánov
tornara-se meramente instrumental, pela ação incisiva de Josif Vissarionovetchz (Stalin)
que eliminara os oposicionistas da esquerda e da direita (bolcheviques e mencheviques)
no debate sobre as orientações político-partidárias e econômicas marxistas.
Na década subseqüente (1931) Stalin expurga os grupos opostos de mecanicistas
(partidários das ciências naturais como fundamento da concepção do mundo marxista) e
de seguidores de Alexander Deborin, assentados na ortodoxia de Plekhánov.
Se Bakhtin houvesse endossado Lenin e Plekhánov ele e seu Círculo não teriam
sido perseguidos sob o Diamat (doutrina “filosófica”, dogmatismo não marxista)
exposto por Stalin em História do Partido Comunista da União Soviética: curso
abreviado (1938). O marxismo tornara-se doutrina, um conjunto divulgador dos
preceitos stalinistas sobre ciências, política, artes, economia entre outros.
Do mesmo modo, não refutaria a tese de Nicolau Marr, que considerava a língua

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como uma superestrutura, polêmica eliminada por Stalin em A propósito do marxismo
em lingüística (1950) negando o lugar da linguagem na relação infra-superestrutura e
declarando-a ferramenta de trabalho, a serviço de sistemas sociais distintos.
Bakhtin afirma:
O que chamamos de psicologia do corpo social e que constitui, segundo a teoria
de Plekhánov e da maioria dos marxistas, uma espécie de elo de ligação entre a
estrutura sócio-política e a ideologia no sentido estrito do termo (ciência, arte
etc.), realiza-se, materializa-se, sob a forma de interação verbal. Se considerada
fora deste processo real de comunicação e de interação verbal (ou, mais
genericamente, semiótica), a psicologia do corpo social se transforma num
conceito metafísico ou mítico (a ‘alma coletiva’, ‘o inconsciente coletivo’, ‘o
espírito do povo’ etc.) (BAKHTIN, 1999, p. 41-42).
Uma leitura do contexto sócio-histórico russo (1920-1930) coloca em relevo os
debates sobre religião, cultura, linguagem que orbitavam em torno de idéias políticas –
algumas do século anterior – sobre os rumos que a revolução de 1917 tomaria: neles
encontramos os movimentos do slavofilismo, do simbolismo, do futurismo, do
formalismo, do populismo e da religiosidade ortodoxa, isto é, do ocidentalismo eslavo
que se opunha ao ocidentalismo moscovita, o da industrialização, ou seja, da cultura
proletária versus cultura camponesa.
Sob o regime de terror de Stalin, elimina-se a controvérsia e instaura-se uma
burocracia estatal totalitária e uma ideologia (Diamat) erroneamente denominada
marxista que se impôs como orientação científica, produzindo resultados reducionistas e
pseudo-científicos (BENOIT. In: BOITO Jr. et al, 2000, p. 96) (LÖWY; BENSAÏD,
2000, p. 159).
A referência de Bakhtin não é o economicismo mecanicista do período stalinista
mas, sim, o Prefácio à Contribuição a Crítica da Economia Política de 1859 em que
Marx relata o conjunto das relações do modo de produção, suas formas e a estrutura que
edifica como condicionantes gerais materiais, históricos, de um processo social, político
e espiritual. Marx afirma que: “Não é a consciência que determina o seu ser, mas, pelo
contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência” (MARX. In: MARX;
ENGELS, 1980, p. 301)
Na seqüência do texto, discorre o autor sobre as transformações revolucionárias
que alteram essa estrutura indicando que podem ser detectadas de dois modos: na
análise das ciências da natureza e na análise das formas ideológicas (filosóficas,
religiosas, artísticas, políticas, jurídicas) que forjam as consciências dos homens sobre a
situação de conflito, dispondo-os a resolvê-los.
Há uma compreensão idêntica ao texto do Prefácio de 1859 que Bakhtin
descreve no capítulo 2 de Marxismo e filosofia da linguagem com o título de Relação
ente a infra-estrutura e a superestruturas.
As orientações do Prefácio estão contidas nas palavras de Bakhtin quando se
refere às enunciações em suas condições concretas, a “situação social mais imediata
organizando-se no exterior (social, histórico): “Não é a atividade mental que organiza a
expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a
modela e determina sua orientação” (BAKHTIN, 1999, p. 112).

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Ajustam-se da mesma maneira o texto de Manuscritos econômico-filosóficos
(Primeiro manuscritos: O trabalho alienado) sobre a relação homem-natureza, a
atividade humana objetivada no trabalho e a formação de sua consciência na relação
com os outros (MARX, 2004 p. 116-119).

Na continuidade da obra, o Terceiro manuscrito (Crítica da dialética e da


filosofia de Hegel: O poder absoluto. O capítulo final da Fenomenologia) Marx refuta
teoricamente Hegel, utilizando as unidades dialéticas conteúdo-forma, concreto-
abstrato, para analisar a consciência humana.

Esse aspecto é aprofundado por Bakhtin ao longo do texto de Marxismo e


filosofia da Linguagem especificamente no material semiótico da vida interior, na
ideologia do cotidiano, na psicologia do corpo social: nessa última indicação, a
obrigatoriedade de um estudo que considere o conteúdo (temas atualizados em um
período de tempo) e “tipos e formas de discuro”, ou seja, como os temas adquirem
forma e são produzidos, articulados, integrados, realizados etc. (BAKHTIN, 1999, p.
42).

Não resta dúvida sobre o dialogismo estabelecido por Bakhtin e seu Círculo com
a Ideologia alemã (MARX; ENGELS, 1984). Marx e Engels assentam-se na crítica à
religião de Ludiwig Feuerbach, no materialismo francês, na crítica à filosofia alemã
(idealismo hegeliano) e demonstram a distorção do pensamento humano produzido pelo
ocultamento das contradições sociais, as formas invertidas da consciência e da vida
material dos homens.

Teóricos marxistas mecanicistas, contemporâneos de Bakhtin, asseguravam


“uma ligação direta entre acontecimento nas estruturas socioeconômicas e sua
superação nas superestruturas ideológicas” (MIOTELLO. In: BRAIT, 2005, p. 167).

A crítica de Bakhtin dirige-se àqueles que situavam a ideologia na consciência


ou a naturalizavam; esclarece sua “forma concreta e dialética”, negando-a como
consciência falsa, invertida que oculta as contradições inerentes ao modo de produção
capitalista, “promovida pelas forças dominantes, e aplicada ao exercício legitimador do
poder político” na organização e reprodução do capital (MIOTELLO, In: BRAIT, 2005,
p. 168).

Há na categoria de Bakhtin a noção de movimento dinâmico entre a ideologia


oficial e a do cotidiano, a primeira com conteúdo e forma estáveis, a segunda, fortuita,
casual, com relativa instabilidade, mas ambas em constante interação.

No estudo da linguagem, a significação dos objetos ultrapassa as suas


materialidades, traduzem-se em signos com funções sociais e que se determinam na
organização da vida material em geral.

A contribuição de Bakhtin é de uma interação dialética de conteúdo-forma na


atividade objetiva/subjetiva dos homens, na detecção das diversas formas de expressão
em todos os domínios da organização social, possibilitando a análise das contradições
produzidas segundo interesses de classes distintas e além desses aspectos a exposição
das cadeias semióticas que nela existem com seus inúmeros índices axiológicos.

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Os níveis situados entre a ideologia oficial e a do cotidiano em constante
movimento de integração, transformação, eliminação em um tempo/espaço, fornecem as
condições para análises teóricas amplas, não reduzidas epistemologicamente,
valorizando e fecundando o materialismo histórico.

Considerações finais.
As raízes marxistas de Mikhail Bakhtin, em seu sentido dialógico, fornecem
diretrizes epistemológicas consideráveis e consistentes na análise dialética e concreta da
linguagem. Eliminam-se desse modo, concepções pretensamente marxistas,
encaminhando-se prospectivamente as pesquisas para a detecção de unidades dialéticas
mediadoras e a elucidação dos níveis de produção do sentido entre a ideologia oficial e
a ideologia do cotidiano.

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