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HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA

Licenciatura em Antropologia

Sinopse 13ª aula: Marcel Mauss e seus discículos: o caso Griaule-Leiris, da dádiva à pilhagem

1ª PARTE - As lições etnográficas do “último antropólogo de gabinete”

1. MARCEL MAUSS, “PAI” DA ANTROPOLOGIA FRANCESA


Marcel Mauss (1872-1950), ilustre representante da Escola Sociológica Francesa, foi um
sociólogo/antropólogo de gabinete, recorrendo aos materiais etnográficos publicados em livros e revistas.
A partir de 1925, foi professor de etnologia no recém-criado Institut d’ethnologie, sendo que as suas aulas
- um tanto paradoxalmente, uma vez que ele próprio nunca realizou trabalho de campo - eram destinadas
sobretudo a formar etnógrafos.1 Mauss pretendia contribuir para que a França recuperasse do seu atraso
relativamente a outros países e considerava vantajoso que a etnologia2 contasse com observadores
profissionais em detrimento de missionários, administradores e outros agentes coloniais que praticavam
etnografia como uma atividade secundária e de forma amadora. Entres os seus alunos, contavam-se alguns
agentes coloniais interessados em adquirir competências académicas para fazer etnografia, mas também
muitas outras figuras que vieram a praticar exclusivamente a antropologia - e a ocupar um papel de grande
relevo na história da antropologia (etnologia) francesa, como Marcel Griaule, Michel Leiris, Alfred
Métraux, entre outros. Uma das suas alunas, Denise Paulme, publicou em 1947 os apontamentos das aulas
de Mauss (Manuel d’ethnographie), mas mais recentemente (2017), o historiador da antropologia Thomas
Hirsch reuniu diversos materiais de arquivo adicionais e testemunhos de antigos alunos que permitem
enriquecer o retrato de Mauss enquanto professor de etnologia e em particular de etnografia.

2. DO CAOS AO CARISMA: AS AULAS DO INSTITUT D’ETHNOLOGIE


Um dos aspetos que os documentos revelam é que as aulas de Mauss eram assentes, em grande medida,
em improvisações sem um fio condutor que fosse claro para os estudantes, causando uma impressão de
“caos”, mas ao mesmo tempo de grande erudição, pois o professor dominava várias línguas e conhecia
uma vasta literatura, quer etnográfica quer histórica. Enquanto discípulo de Durkheim, representante de
uma corrente com um forte pendor para a teorização, Mauss tinha a preocupação de enfatizar o papel de
cada instituição social na coesão da vida coletiva e de relembrar que as várias dimensões se interligavam.
Por outro lado, o carismático professor dava a primazia aos “factos” e discorria sobre os mais variados
contextos, com exemplos tão abundantes que provocavam nos estudantes uma vertigem.

3. MATERIALIZAÇÃO DO ESPÍRITO E ESPIRITUALIDADE DOS OBJETOS


Esse “aspeto concreto do seu ensino” (assim se lhe refere Hirsch) traduzia-se também numa atenção
especial à cultura material, para que a coleta de objetos pelos etnógrafos (objetos que eram com frequência
destinados aos museus) não fosse desligada de tudo o resto, isto é, da compreensão da vida social no seu
todo. Mauss alertava contra os riscos de produzir coleções de objetos em função de critérios meramente

1
Mauss foi também professor na Universidade da Sorbonne (Écola Pratique de Hautes Études), lecionando um
curso sem essa dimensão prática, dedicado às religiões dos povos ditos “não civilizados”. Mauss, na verdade,
criticava esta expressão que havia sido introduzida pelo antropólogo evolucionista Léon Marillier aquando da
inauguração do curso no século XIX.
2
O termo antropologia em França tendia a ser reservado para a antropologia física e ainda hoje o termo etnologia
é muito utilizado. Mais tarde, sobretudo graças a Claude Lévi-Strauss, o termo antropologia impôs-se com o sentido
de antropologia cultural e social.
estéticos condicionados pelo gosto europeu. Havia, pelo contrário, que entender as coisas no seu contexto,
pelo que aconselhava que a aquisição de cada objeto, mesmo o aparentemente mais “insignificante”, fosse
acompanhada do preenchimento de uma ficha que repertoriasse exaustivamente toda a informação
associada ao mesmo. Segundo Thomas Hirsch, essa insistência na importância das fichas contribuía para
subtrair a etnografia ao amadorismo, pois numa era sem computadores a realização de fichas era uma
prática muito corrente nas ciências representadas na academia.

4. EM BUSCA DA COMPLEXIDADE E DA TOTALIDADE


Embora Mauss advogasse o comparativismo entre sociedades sem relação histórica entre si, também era
um adepto do conhecimento aprofundado de cada sociedade ou cultura, caso a caso. E um dos aspetos
mais salientes do seu ensino era precisamente a insistência na necessidade de pesquisas intensivas no
terreno - ainda que não descartasse a realização de pesquisas extensivas (e, inclusive, expedicionárias)
que poderiam “desbravar” terreno e dar lugar a subsequentes pesquisas intensivas. Essa insistência num
trabalho de campo intensivo é indissociável, no fundo, da sua visão teórica sobre a forma como tudo está
interligado, não devendo ser descurado nenhum aspeto, mesmo o mais ínfimo. Mauss criou um conceito
antropológico célebre desde então: facto social total. Um facto social total implica e põe em movimento:
a totalidade da sociedade e/ou inúmeras dimensões da vida social e cultural (política, económica,
magico-religiosa, jurídica, artística, tecnológica, etc.). Mauss combateu a noção de que as sociedades ditas
“primitivas” (a que preferia chamar “arcaicas”) eram simples, insistindo pelo contrário na sua
complexidade, abundando nas mesmas os factos sociais totais. Essa ânsia de abarcar tudo tornava difíceis
de concretizar as suas diretivas metodológicas, mas mesmo assim estimularam muitos estudantes a
produzir estudos aprofundados.

5. MAUSS E O COLONIALISMO
Mauss não era insensível à questão do colonialismo, mas os seus escritos não eram focados nesse assunto
e as poucas passagens relativas ao mesmo, nos materiais de arquivo, revelam alguma ambivalência
pragmática: se por um lado insistia que era preciso observar tudo, por outro lado não enfatizava a
importância de estudar as transformações em contexto colonial; se por um lado considerava que a
etnologia podia contribuir para atenuar aspetos negativos do colonialismo, por outro lado aconselhava os
seus estudantes a não criticarem explicitamente a administração colonial. Tudo somado, a relação entre
as lições de Mauss e o colonialismo tem mais a ver com o grande Leitmotiv da história da antropologia
que é o sentido de urgência das observações etnográficas sobre realidades sociais e culturais pré-coloniais,
a que o mestre dava visivelmente maior importância, descurando a preparação dos seus estudantes para
abordarem diretamente os problemas do impacto colonial para lá do registo de tradições sob risco de
desaparecimento.

6. O(S) MÉTODO(S) MAUSS


Denise Paulme criou a expressão “méthode Mauss” para se referir ao imperativo metodológico da
exaustividade. Na verdade, Mauss propunha aos seus estudantes uma diversidade de métodos
complementares entre si (ver Mauss 1947), sendo que alguns deles extravazam largamente a sensibilidade
teórica da Escola Sociológica Francesa e dialogavam implicitamente com outras correntes. É o caso, por
exemplo, do método a que chamava de “filológico”, que passava pela aprendizagem das línguas nativas
e pelo registo textual das palavras dos informantes/colaboradores indígenas, fazendo lembrar os
imperativos boasianos e malinowskianos nessa matéria.
7. O “ESSAI SUR LE DON”
Tal como Durkheim, seu tio e mentor, Mauss recusava as comparações superficiais dos evolucionistas
britânicos. Procedia a comparações entre sociedades afastadas no espaço ou no tempo, mas de tipo
sociológico, para encontrar mecanismos de coesão social. Mauss deu especial importância ao mecanismo
da "dádiva", como sendo um dos pilares da vida em sociedade. Mas por outro lado não considerava que a
dádiva estivesse desligada das restantes instituições sociais. Pelo contrário, tinha múltiplas dimensões.
Era um facto social total.
7.1. OBRIGAÇÃO DE DAR, DE RECEBER E DE RETRIBUIR
A originalidade da sua obra « Essai sur le Don » (1923-1924), originalmente um artigo publicado na
revista L'Année sociologique, mas posteriormente editado sob forma de livro, consistiu em identificar, por
detrás da aparente liberdade de oferecer uma dádiva a alguém, um mecanismo de obrigatoriedade, uma
norma social, que ligava todas as partes envolvidas. Por detrás duma doação de livre vontade, estava na
verdade uma obrigação social, porquanto as relações entre indivíduos e grupos se moldam em grande
medida através dessas circulações, não apenas de objetos, mas de festas, de comidas, de danças, etc. Quem
não dá, «perde a face», escreveu Mauss. Da mesma forma, não se pode recusar uma dádiva, e assim
sucessivamente.
7.2. UNIVERSALIDADE DO MECANISMO DA DÁDIVA
Mauss, tal como Durkheim, concentrou-se apenas em alguns casos etnográficos, que lhe deviam servir de
"laboratório" para encontrar uma lei universal. Em particular, recorreu à etnografia de Malinowski sobre
o Kula trobriandês, à de Franz Boas sobre o potlatch da costa noroeste norte-americana, e também à de
Elsdon Best sobre o hau dos Maori, entre outras. Esses casos eram, segundo ele, especialmente ilustrativos
de um mecanismo universal, porque devido às suas especificidades, punham bem em evidência, até de
forma exagerada, a forma como o estatuto e a ligação das pessoas e grupos estavam em causa através das
coisas doadas, recebidas, retribuídas. Essa doação aparentemente desprendida, geradora de grandes
circulações e redistribuições, era aquilo a que chamava de "dádiva arcaica". Encontrava-se especialmente
em sociedades que não tinham sofrido a "revolução monetária", que Mauss atribuía historicamente aos
Gregos e Romanos.
7.3. A REVOLUÇÃO MONETÁRIA
Segundo Mauss, as sociedades ocidentais eram herdeiras da "revolução monetária", ou seja, de invenção
da moeda de metal, que possibilitou a circulação de produtos sem ser através dos pesados, demorados e
diferidos rituais da dádiva e contra-dádiva. «Foram precisamente os Romanos e os Gregos (…) que
ultrapassaram toda essa moralidade envelhecida e essa economia da dádiva demasiado incerta, demasiado
dispendiosa e demasiado sumptuosa, cheia de considerações de pessoas, incompatível com um
desenvolvimento do mercado (…) e, no fundo, anti-económica.» Marcel Mauss, «Essai sur le don», 1923-
1924
7.4. MARCEL MAUSS E AS "SOBREVIVÊNCIAS"
Contudo, nem tudo na sociedade ocidental era uma fria e desprendida compra e venda. Ainda havia
ocasiões e circunstâncias de dádiva. Um caso a ter em conta era o de certos costumes dos camponeses.
Mauss cita exemplos que ele próprio conhecia, da sua infância. Contudo, não se tratava para ele de meras
sobrevivências, mas de aspetos que deviam ser valorizados pela sua importância - e potencialidades - no
presente.
7.5. «DEVEMOS VOLTAR AO ARCAICO»
O caso do hau dos Maori foi muito valorizado por Mauss, porque segundo ele punha bem em evidência
que havia uma ligação simbólica entre as pessoas e as coisas doadas. Ao fazer o elogio do hau maori como
prova de que as pessoas podiam dar-se a si próprias umas às outras através das coisas, Mauss considerava
esses seres humanos "exóticos" como semelhantes, como encarnações de uma sabedoria que veiculava
uma crítica da nossa própria sociedade, para não dizer uma chave da compreensão da própria humanidade.
Além disso, o epíteto arcaico não pode esconder o facto de que a abordagem de Mauss era plenamente
vanguardista: o longínquo no espaço e no tempo era transportado para aqui e agora. Adepto de ideias
socialistas, Mauss defendia o «regresso da dádiva» como contraponto ao capitalismo. A sobrevivência
do espírito antigo da dádiva ainda era detetável entre nós como sinal da nossa própria humanidade.

2ª PARTE: Griaule-Leiris: antropologia “maldita” versus antropologia “visionária”?

1. A MISSÃO DAKAR-DJIBUTI 1931-1933


Em Maio de 1930, o antropólogo Marcel Griaule, que tinha sido aluno de Marcel Mauss, propôs aos directores do
Institut d’ethnologie uma expedição etnográfica da costa ocidental à costa oriental de África, mais precisamente de
Dakar (no Senegal) a Djibuti, pequena colónia francesa a nordeste da Etiópia. O projeto foi aceite e deu lugar a uma
mais célebres (e polémicas) expedições do século XX, a Missão Dakar-Djibuti. Um dos seus objetivos consistia em
obter objetos que completassem as coleções do Musée d'ethnographie du Trocadéro (que antecedeu, em Paris, o famoso
Musée de l’homme inaugurado em 1938). Além de Marcel Griaule, os membros permanentes da missão eram Michel
Leiris, o fotógrafo e cineasta Éric Lutten, e ainda Marcel Larget para as questões logísticas. Dois linguistas e um
musicólogo participaram em algumas das etapas da expedição. A filosofia subjacente à Missão Dakar-Djibuti consistia
claramente em praticar uma etnografia extensiva, que recolhesse o máximo de dados etnográficos num vasta região.
Contudo, em alguns pontos do trajeto o trabalho foi mais intensivo, com destaque para a etnografia realizada junto dos
Dogon do Mali ainda em 1931 - sendo que Griaule voltaria a esse contexto mais para aprofundar a sua pesquisa. Em
qualquer dos casos, a Missão foi muito invasiva e mesmo predatória, o que explica que seja um tema polémico da
história da antropologia.

2. A CRÍTICA DE MARCEL GRIAULE E A DEFESA DE MICHEL LEIRIS


Marcel Griaule alcançou muita fama no rescaldo da expedição e ainda mais quando publicou, em 1948, a obra Dieu
d’eau, baseada nas conversas que veio a ter, ao regressar ao Mali, com um ancião dogon chamado Ogotemmêli. Essa
obra revelava ao mundo uma espiritualidade africana profunda, uma cosmogonia e uma cosmologia complexas que
contrariavam persistentes estereótipos ocidentais, herdados do século XIX, sobre África como continente primitivo ou
selvagem. Contudo, a partir dos anos 1970 a reputação de Griaule começou a ser posta em causa devido aos seus
métodos no terreno e por esconder os “pôdres” da Missão Dakar-Djibuti. Um exemplo recente das críticas pós-
coloniais contra Griaule é a obra O Sonho Dogon. Nas origens da Etnologia francesa (2012), do antropólogo Fernando
Giobellina Brumana. Se não fosse a imprevisibilidade do futuro da antropologia, poderíamos dizer que este livro dá o
golpe de misericórdia em Griaule. Em paralelo, Giobellina Brumana debruçou-se sobre a figura desse outro membro
da Missão Dakar-Djibuti, Michel Leiris, igualmente célebre, mas por razões opostas às de Griaule, na medida em que
Leiris publicou em 1934 uma obra, L’Afrique fantôme, que sob a forma de diário punha a nu todos os problemas éticos
do trabalho realizado. Giobellina Brumana não está preocupado em afirmar uma qualquer neutralidade enquanto
historiador da antropologia, preferindo tomar partido: admira a obra de Leiris tanto quanto despreza a de Griaule.
Vejamos o porquê desse extremar de posições sobre os protagonistas da Missão Dacar-Djibuti de 1931-1933,
alegadamente inauguradora do terreno da Etnologia francesa.

3. EM BUSCA DA AUTENTICIDADE AFRICANA


No debate em torno das figuras de Griaule e de Leiris estão em causa duas dimensões: por um lado a busca da
autenticidade africana; e, por outro lado, a sinceridade ou não do etnógrafo perante a experiência realmente vivida no
terreno. Tanto Leiris como Griaule partiram imbuídos de um espírito romântico de descoberta e resgaste ou salvaguarda
– uma etnografia de salvação no papel, na fotografia, no filme – de um Outro ainda puro, embora em vias de
adulteração, o qual contrastaria, justamente pela sua autenticidade, com a África de pasquim e cabaré da imaginação
parisiense. Mais ainda, Leiris partia esperançado de se libertar da inautenticidade ocidental, por conseguinte de se
transformar através do diálogo com comunidades nativas detentoras de verdades antigas. Não é certo que Griaule
almejasse uma metamorfose tão profundamente quanto Leiris, mas movia-o sem dúvida a crença na existência dessa
verdade recôndita, como um segredo a desvendar, o qual seria no fundo a essência forçosamente mística da realidade
social e cultural africana – em particular dos Dogon, de cujos atributos de secretismo, a começar pela língua secreta, o
antropólogo já tinha, aliás, ouvido falar antes mesmo do encontro.
3.1. A BLITZKRIEG ETNOGRÁFICA DE GRIAULE
Sucede, porém, que Griaule, à frente da Missão, pôs em prática e incentivou em toda a equipa uma atitude predatória
que legitimava a apropriação pela mesma do património material e imaterial nativo por quaisquer meios, da sedução à
punição, da compra pura e simples à substituição física do insubstituível, sempre sob pretexto de justo pagamento e da
urgência de salvar. Tratava-se, portanto, de um antropólogo/etnólogo para quem, como diz Giobellina Brumana, “o
que importa é a coisa” (2012:196), querendo com isto referir-se à captura objetificada de uma essência nativa - com
destaque para o caso dogon - que estaria como que impressa nesse património, transmitido é certo pelas pessoas, mas
em detrimento das pessoas, da vida realmente vivida, para ser antes conduzido ao lugar assético onde poderia ser
apreciado e imortalizado: o arquivo europeu em sentido lato, e desde logo o museu. Sob o pretexto de que o sistema
tradicional, apesar de preservado, estava condenado a entrar num processo de desintegração por causa do colonialismo,
Griaule justificava a agressividade dos métodos: se a humanidade (entenda-se a França) era a compradora, pouco
importava que a Missão transformasse os Dogon em vendilhões, acelerando assim o processo de desintegração. Em
suma, segundo Giobellina Brumana, havia em Griaule uma crença de que não só podia como devia manipular
astuciosamente os nativos. O antropólogo James Clifford tentou ver na prática de Griaule uma espécie de intrusão
assumida, deliberadamente geradora de um tumulto criativo entre as partes. Giobellina Brumana, contudo, considera
esse argumento pouco convincente pois a intrusão de Griaule era tudo menos assumida e, pelo contrário, os bastidores
da Missão eram isso mesmo: não deveriam de forma alguma passar para os resultados. Além disso, Giobellina Brumana
considera que a prática etnográfica de Griaule não gerava forçosamente um tumulto criativo, pois dava primazia ao
preenchimento de “enfadonhas” fichas manuscritas segundo o modelo ensinado por Mauss.
3.2. GIOBELLINA BRUMANA E A DESCONSTRUÇÃO DE DIEU D’EAU
Giobellina Brumana procura reunir “provas de acusação” de que a cosmogonia dogon na versão de Marcel Griaule é
uma “narração romanceada, um percurso iniciático desenhado para o grande público” (2012:243), sem que de resto
seja possível aceder ao discurso original e menos ainda vernacular, tanto de Ogotemmêli, convertido em arquétipo dos
velhos sábios dogon, como de outros interlocutores. O trabalho de cotejamento entre aquela obra e as notas de terreno
revela em qualquer caso uma duvidosa manipulação, até mesmo censura, sempre na mira da encenação final do mito-
espetáculo. E Giobellina Brumana vai ao ponto de desconfiar que Griaule, vistos os seus métodos de pressão sobre os
informantes, terá suscitado narrativas até então inexistentes - a julgar, aliás, pela banalidade (e não profundidade) de
algumas delas.
3.3. A ÁFRICA FANTASMA DE LEIRIS
Já Michel Leiris, ao testemunhar e mesmo ao participar nos atropelos coloniais e emocionais da equipe, nos despiques
monetários, nas frustrações e provocações várias, associadas ao diálogo com os informantes, não fez nada menos que
iniciar, em segredo, a escrita do seu livro L'Afrique fantôme (1934) onde revelaria tudo aquilo que Griaule tentava
camuflar: os aspetos negativos da Missão, inclusive em prejuízo próprio, revelando fraquezas íntimas, como as de
ordem sexual. Estavam agora em flagrante rota de colisão dois segredos: o que Griaule queria levar à cena depois de
“descoberto”, e o da comédia em que todos vinham participando para esse fim. Diz Giobellina Brumana que, nessa
primeira grande etapa da Missão – a qual haveria ainda de atravessar o continente em direção à Etiópia – a lição
aprendida por Leiris “não estava tão relacionada ao ‘outro’, e sim a ‘si mesmo’” (2012:124), ou seja, a lição de que o
etnógrafo se via obrigado a ser um ator. Embora viesse já suspeitando que os nativos também tiravam proveito do
pesquisador branco, entrando num jogo de hipocrisias e interesses próprios, o verdadeiro alcance dessa impressão
ainda estava para se manifestar.
3.4. MICHEL LEIRIS E A SACERDOTISA EMAWAYISH
Michel Leiris deixou-se afetar pela realidade do encontro humano, obrigando-se a renunciar ao romantismo de
encontrar o que visivelmente já não existia e possivelmente nunca tinha existido: a autenticidade africana. Intuído entre
os Dogon, esse duro embate ou metamorfose veio a consumar-se na segunda grande etapa da Missão, quando se
envolveu, em Gondar, na Etiópia, com uma sacerdotisa do culto de possessão zar, chamada Emawayish. A atração
exercida sobre Leiris por essa mulher outra, fatal, estava relacionada com o facto de ela ser a última encarnação da
miragem de verdade e autenticidade. O etnólogo francês esteve praticamente disposto a renunciar à etnografia - cuja
dimensão científica via agora como uma comédia levada à cena por antropólogos-atores - para apenas contemplar,
viver e amar a alteridade. Só que Emawayish também era comediante, como se depreende de algumas citações do
diário de Leiris: “Lembro da Emawayish esfregar a boca depois da xícara de sangue [sacrificial], sem a menor
preocupação de mascarar o jogo, como algumas felatrizes profissionais quando lavam os dentes” (in Giobellina
Brumana, 2012:141). Da boca de um “entusiasta de bordéis e prostitutas” como era Leiris, isso não representava
forçosamente deceção. Giobellina Brumana coteja essa tirada de 1932 com uma versão mais tardia, de 1939, em que
Leiris afirmava que aquele momento pressagiava uma relação “mais íntima que qualquer ligação carnal” (idem). O
encontro estava consumado: não com a alteridade sonhada, autêntica, mas com a teatralidade das ações e relações
humanas em qualquer espaço e tempo. Não havia por que fabricar um espetáculo de bastidores escondidos, como
pretendia Griaule, quando a própria realidade era fingimento verdadeiro, inautenticidade partilhada.
4. TRANSFORMAÇÕES PÓSTUMAS DE GRIAULE E LEIRIS

A Missão Dacar-Djibuti e em particular a obra de Griaule tiveram um impacto espantoso, tanto no panorama francês
como em diversos países africanos após os processos de independência: a sabedoria dogon foi aceite como prova da
contribuição do génio africano para a civilização universal. Essa é uma história que de certa forma relegou para
segundo plano Leiris e Emawayish na proporção em que glorificou Griaule e Ogotemmêli. Contudo, a crítica pós-
colonial da obra antropológica e da prática etnográfica de Griaule, que já leva mais de meio século, também deu lugar
a uma redescoberta e reapreciação da obra de Michel Leiris. Hoje, é a antropologia de Griaule que é considerada
“maldita”, enquanto a de Leiris é considerada “visionária”.

Objetivos da 13ª aula [1ª PARTE]


Ao articular os conteúdos expostos em aula e a leitura dos textos de apoio, o/a estudante deve ser capaz de:
a) Identificar Mauss como um antropólogo de gabinete que, enquanto professor desafiante e carismático, teve um papel
determinante na formação de antropólogos e etnógrafos profissionais em França;
b) Relacionar as ideias sociológicas de Mauss - em particular o conceito de facto social total - com a sua ênfase nos
estudos etnográficos intensivos, embora sem descartar a legitimidade de pesquisas extensivas;
c) Compreender que as diretivas metodológicas de Mauss eram ecléticas, dialogavam implicitamente com outras
correntes antropológicas e podiam inspirar diferentes tipos de etnografia;
d) Expor a posição ambivalente de Mauss em relação ao colonialismo, identificando nas suas lições antropológicas
uma dimensão de “etnografia de salvação” e de legitimação antropológica da aquisição de um vasto número de objetos
de cultura material.

Objetivos da 13ª aula [2ª PARTE]


Ao articular os conteúdos expostos em aula e a leitura dos textos de apoio, o/a estudante deve ser capaz de:
a) Situar a Missão Dakar-Djibuti na história da antropologia como um expedição associada principalmente a práticas
etnográficas extensivas, cuja dimensão invasiva e predatória - embora denunciada desde 1934 por Michel Leiris - só
se tornou polémica no período pós-colonial;
b) Relacionar a Missão com os ensinamentos de Marcel Mauss e com o contexto museológico da época;
c) Posicionar-se em relação aos argumentos críticos de Giobellina Brumana a respeito de Marcel Griaule e apreender
o sentido do conceito de “a coisa etnográfica”;
d) Contrastar a sensibilidade antropológica de Marcel Griaule e de Michel Leiris em torno dos temas da autenticidade
e do segredo;
e) Refletir sobre o paradoxo entre as práticas etnográficas extensivas da Missão Dakar-Djibuti e os objetivos
relacionados com a descoberta de uma essência espiritual nativa.

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