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ENSAIO SOBRE

A DÁDIVA

MARCEL MAUSS

Título original:
Essai .rnr !e don
COM INTRODUÇÃO À OBRA
©Prcsscs Univcrsitaircs de Frnncc, 1950
DE MARCEL MAUSS
Tradução: António Filipe Marques
POR CLAUDE LÉVI-STRAUSS
Revisão da tradução: Ruy Oliveira

Capa: Edições 70

Depósito Legal n.º 160406/01

ISBN 972-44-0226-6

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INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS*
por Claude Lévi-Strauss

PATRIMÔNIO Poucos ensinamentos permaneceram tão esotéricos e poucos, ao


FAED UDESC mesmo tempo. exerceram uma influência tão profunda como a de
Marcel Mauss. Somente aqueles que conheceram e escutaram o
N° :J 8 ~Y}t- homem podem apreciar plenamente a fecundidade deste pensamento,
t
ca,vtJA,'C7
o I ,2or· h
,') · tomado por vezes opaco pela sua própria densidade, mas todo ele
sulcado de cintilações, estas acções tortuosas que pareciam enganar no
/11 • !Lv,]&,,u,c;, momento em que o mais inesperado dos itinerários conduzia ao centro
dos problemas e fazer o balanço da sua dívida para com ele. Não nos
alongaremos aqui sobre o papel que desempenhou no pensamento
etnológico e sociológico francês. Já o fizemos noutro lado('). Que baste
recordar que a influência de Mauss não se limitou aos etnógrafos, e
nenhum deles poderia dizer ter-lhe escapado, mas também aos
UDESC,CCE linguistas, psicólogos, historiadores das religiões e orientalistas, se
Biblioteca Universitária bem que, no domínio das ciências sociais e humana, uma plêiade de
investigadores franceses lhe seja, a qualquer título, devedora quanto à
Data: _{G __t_QL_t_z,g:ç: sua orientação. Para os outros, a obra escrita permanecia demasiado
Acervo: Gi.( 538 dispersa e muitas vezes dificilmente acessível. O acaso de um encontro
Ex.:~ ½,Z, c1 93 + ou de uma leitura podia despertar ecos duradoiros: facilmente
C.P.D.: n,,( 00o05'1 'fJf reconheceríamos alguns em Radcliffe-Brown, Malinowski, Evans-
-Pritchard, Firth, Herskovits, Lloyd Warner, Rcdficld, Kluckhohn,
Elkin, Held e muitos outros. No conjunto, a obra e o pensamento de
Marcel Mauss actuaram mais por intermédio de colegas e de discípulos
em contacto regular ou ocasional com ele, do que directamente, sob a
forma de palavras ou de escritos. É a esta situação paradoxal que vem

* Esta introdução foi elaborada para o volume Sociologie et


Anthropologie, n.º 58 da colecção "Quadrige", da P.U.E, que inclui o essencial
da obra de Mauss. (N. do E.)
(l) C. LÉVI~STRAUSS, «La Sociologie française>}, in La Sociologie au
XXCme siCcle, vol. 2, Presses Universitaires de France, 1947.

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INTRODUÇÃO Ã OBRA DE MARCEL MAUSS INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

dar remédio esta recolha de memórias e de çomunicaçõcs que estão Bcncdict, Margarct Mead, e da maior parte dos etnólogos americanos da
longe de esgotar o pensamento de Mauss, e da qual há que esperar que jovem geração. É por intermédio da educação das necessidades e das
inaugure apenas uma série de volumes em que a obra inteira - já actividadcs corporais que a estrutura social imprime a sua marca nos
publicada ou inédita, da sua autoria ou cm colaboração - possa ser, indívíduos: «Exercitam-se as c1ianças {... ] a dominar reflexos [ ... ]
finalmente, apreendida na sua totalidade. inibem-se medos [... ] sclcccionam-sc paragens e movimentos.» Esta
Razões de ordem prática presidiram à escolha desses estudos. No procura da projecção do social sobre o individual deve remexer o mais
entanto, esta selecção de acaso permite já salientar determinados profundamente possível usos e condutas; neste domínio, nada há de
aspectos de um pensamento, de que consegue, ainda que de modo fútil, nada de gratuito, nada de supérfluo: «A educação da criança está
imperfeito, ilustrar a riqueza e a diversidade. cheia daquilo a que chamamos pormenores, mas que são essenciais.» E
ainda: «Uma multidão de pormenores inobservados, e que há que
observar, compõe a educação física de todas as idades e <los dois sexos.»
I Mauss não só estabelece assim o plano de trabalho que será, de
modo predominante, o da etnografia moderna durante estes últimos
Somos cm primeiro lugar impressionados por aquilo a que dez anos, mas compreende ao mesmo tempo a consequência mais
gostaríamos de chamar o modernismo do pensamento de Mauss. O significativa desta nova orientação, quer dizer, a aproximação entre
Essai sur l'/dée de Mort vai ao centro de preocupações que a medicina etnologia e psicanálise. Era necessária.muita coragem e clarividência
dita psicossomática trouxe à actualidade apenas no decurso dos a um homem, saído de uma formação intelectual e moral tão pudica
últimos anos. Evidentemente, os trabalhos sobre os quais W. B. como a do neokantismo que reinava nas nossas universidades cm fins
Cannon fundou uma interpretação fisiológica das perturbações por etc do século passado, para partir, como aqui o faz, à descoberta de
designadas homeostáticas remontam à Primeira Guerra Mundial. Mas «estados psíquicos desaparecidos das nossas infâncias», produtos de
foi numa época muito mais rccente(2) que o ilustre biólogo <~contactos de sexos e de peles». e para se dar conta de que se ia
compreendeu na sua teoria estes fenómenos singulares que parecem encontrar <<em plena psicanálise, provavelmente bastante
pôr imediatamente cm relação o fisíológico e o social, aspectos sobre fundamentada neste caso». Donde a importância, plenamente captada
os 'quais Mauss chamava a atenção desde 1926, não, sem dúvida, por ele, do momento e das modalidades do desmame e do modo como
porque os tivesse descobe1to, mas como sendo um dos primeiros a o bebé é tratado. Mauss entrevê mesmo urna classificação dos grupos
sublinhar a sua- autenticidade, a sua generalidade, e sobretudo a sua humanos em «pessoas de berço, [ ... -J pessoas sem berço». Basta citar
extraordinária importância para a justa interpretação das relações entre os nomes e as investigações de Margaret Mead, Ruth Benedict, Cora
o indivíduo e o grupo. du Bois, Clydc Kluckhohn, D. Lcighton, E. Erikson, K. Davis, J.
A mesITu1. preocupação, que domina a etnologia contemporânea, da Henry, etc., para medir a novidade destas teses, apresentadas cm 1934,
relação entre o grupo e o indivíduo, inspira também a comunicação isto é, no-próprio ano cm que eram publicados os Pattems of Culture,
sobre as técnicas do corpo. Ao afirmar o valor crucial, para as ciências ainda muito afastados desta posição do problema e no momento em
do homem, de uni estudo sobre o modo como cada sociedade impõe ao que Margaret Mead se preparava para elaborar no campú, na Nova
indivíduo um uso rigorosamente determinado do seu corpo, Mauss Guiné, os princípios de uma doutrina muito próxima, e de que se
anuncia as mais actuais preocupações da Escola antropológica conhece a enorme influência que ela estava destinada a exercer.
americana, tal como haveriam de expressar-se nos trabalhos de Ruth Face a dois pontos de vista diferentes, Mauss está aliás adiantado
cm relação a todos os desenvolvimentos posteriores. Abrindo às
investigações etnológicas um novo território, o das técnicas do corpo,
~•~- .
(2) W. B. CANNON, «Voodoo Dcath», American Anthropoloofr,t n. s. vol.
' ' não se limitava a reconhecer a incidência desse género de estudos

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sobre o problema da integração cultural: sublinhava também a sua a desviá-lo do exercício e da aplicação dos meios corporais, cxcepto
importância intrínseca. Ora. a este respeito, nada foi feito, ou quase no domínio do desporto, que é uma parte importante, mas uma pm1e
nada. Desde há dez ou quinze anos, os etnólogos consentiram apenas, das condutas encaradas por Mauss, e que é, a1iás, variável
debruçar-se sobre determinadas disciplinas corporais, mas unicamente segundo os grupos. Seria desejável que uma organização internacional
na medida em que esperavam elucidar desse modo os mecanismos como a UNESCO se encarregasse da realização do programa traçado
através dos quais o grupo modela os indivíduos à sua imagem. por Mauss, nesta comunicação. Uns Arquivos Internacionais das
Ninguém, na verdade, abordou ainda esta tarefa imensa cuja urgente Técnicas Corporais, fazendo o inventário de todas as possibilidades do
necessidade era sublinhada por Mauss e que consistia em fazer o corpo humano e dos métodos de aprendizagem e de exercícios
inventário e a -descrição de todos os usos que os homens, no decurso empregues na montagem de cada técnica, representariam uma obra
da história, e sobretudo através do mundo, fizeram e continuam a fazer verdadeiramente internacional: pois não existe no mundo um único
dos seus corpos. Nós coleccionamos os produtos da indústria humana; grupo humano que não possa trazer ao empreendimento um contributo
recolhemos textos escritos ou orais. Mas continuamos a ignorar as original. E, além disso, trata-se de um património comum e
possibilidades tão numerosas e variadas de que dispõe este instru- imediatamente acessível à humanidade inteira, cuja origem mergulha
mento que todavia é universal e se encontra à disposição de cada um - no fundo dos tempos, cujo valor prático permanece e permanecerá
o corpo do homem - à excepção daquelas que, sempre parciais e sempre actual, e cuja disposição geral permitiria, melhor do que outros
limitadas, entram nas exigências da nossa cultura particular. meios, porque sob a forma de experiências vividas, tornar cada homem
No entanto, qualquer etnólogo que tenha feito trabalho de campo sensível à solidariedade, ao mesmo tempo intelectual e física, que o
sabe que essas possibilidades são surpreendentemente variáveis une a toda a humanidade. E tal tarefa seria também extraordinaria-
conforme os grupos. Os limiares de excitabilidade, os limites de mente útil para fazer frente aos preconceitos raciais, uma vez que, em
resistência são diferentes em cada cultura. O esforço «irrealizável>}, a face das concepções racistas que querem ver no homem um produto do
dor «intolerável», o prazer «inolvidável» são menos função de seu corpo, mostrar-se-ia, pelo contrário, que foi o homem que, sempre
particularidades individuais do que de critérios sancionados pela e em toda a parte, soube fazer do seu corpo um produto das suas
aprovação ou desaprovação colectivas. Cada técnica, cada conduta, técnicas e das suas representações.
tradicionalmente apreendida e transmitida, baseia~se em determinadas Mas não são só razões morais e práticas que continuam a militar
sinergias nervosas e musculares que constituem verdadeiros sistemas, cm seu favor. Ela traria informações de uma riqueza insuspeitada sobre
solidários com todo um contexto sociológico. Isto é verdade para as migrações, contactos culturais ou influencias que se situam num
técnicas mais humildes, como a produção do fogo por fricção ou o passado recuado, e que gestos aparentemente insignificantes, trans-
talhe de instrumentos de pedra por fractura; e é-o ainda mais para essas mitidos de geração cm geração, e protegidos pela sua própria insigni-
grandes construções ao mesmo tempo sociais e físicas que são as ficância, atestam muitas vezes melhor que jazigos arqueológicos ou
diferentes ginásticas (inclusive a ginástica chinesa, tão diferente da monumentos figurados. A posição da mão do homem na nücc;ão, a
nossa, e a ginástica visceral dos antigos Maori, de que não conhecemos preferência por se lavar na água corrente ou na água estagnada, sempre
quase nada), ou para as técnicas do sopro, chinês e hindu, ou ainda viva no uso de fechar ou deixar aberta a válvula de um lavatório
para os exercícios do circo, que constituem um património muito enquanto a água corre, etc., tantos exemplos de uma arqueologia dos
antigo da nossa cultura e cuja preservação deixamos ao acaso das hábitos corporais que, na Europa moderna (e com mais razão noutros
vocações individuais e das tradições familiares. lugares), forneceria ao historiador das culturas conhecimentos tão
Este conhecimento das modalidades de utilização do corpo preciosos como a pré-história ou a filologia.
humano seria, porém, particularmente necessário a uma época em que
o desenvolvimento dos meios mecânicos à disposição do homem tende

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* Empenhando-se na definição de um sistema de correlações entre a


* * cultura cio grupo e o psiquismo individual, a Escola psicossociológica
Ninguém mais do que Mauss, que se divertia a ler os limites da americana corria o risco, com efeito, de se fechar sobre si mesma.
expansão celta na forma dos pães nas montras das padarias, podia ser Tinha-se dirigido à psicanálise para lhe pedir que assinalasse as
sensível a essa solidariedade do passado e do presente, inscrevendo-se intervenções fundamentais que, expressão da cultura do grupo,
nos mais humildes e nos mais concretos dos nossos usos. Mas, ao determinam atitudes individuais duradouras. Desde então, etnólogos e
sublinhar a importância da morte mágica ou das técnicas do corpo, ele psicanalistas iam ser arrastados para uma discussão interminável sobre
pensava também estabelecer um outro tipo de solidariedade, que o primado respectivo de cada um <los factorcs. Uma sociedade mantém
forneceu o seu terna principal a uma terceira comunicação: Rapports os seus caracteres institucionais das modalidades particulares da
réels et pratiques de la Psyclwlogie et de la Sociologie. Em todos estes personalidade dos seus membros, ou esta personalidade explica-se por
casos, estamos na presença de um género de factos «que seria certos aspectos da educação da pequena infância, que são, eles
necessário estudar o mais depressa possível: daqueles cm que a próprios, fenómenos de ordem cultural? O debate devia continuar sem
natureza social encontra muito dircctamentc a natureza biológica do saída, a menos que não nos apercebamos que as duas ordens não estão,
homem»('). Trata-se, na verdade, de factos privilegiados que permítem uma cm relação à outra, numa relação de causa e efeito (seja qual for,
ata_car o problema das relações entre sociologia e psicologia. aliás, a posição respectiva que se atribua a cada uma delas) mas que a
Foi Ruth Benedict quem ensinou· aos etnólogos e aos psicólogos formulação psicológica não é mais cio que uma tradução, no plano do
contemporâneos que os fenómenos a cuja descrição se entregam uns e psiquismo individual, de uma estrutura propriamente sociológica. E,
outros são susceptíveís de ser descritos numa linguagem comum, tirada aliás, o que sublinha Margaret Mea<l, com muita oportunidade, numa
da psicopatologia, o que constitui por si mesmo um mistério. Dez anos publicação rccente(4), ao mostrar que os testes de Rorschach, aplicados
antes, Mauss tinha-se apercebido desse facto com alguma lucidez tão a indígenas, não ensinam ao etnólogo nada que ele já não conheça
profética que se pode imputar apenas ao abandono em que foram através de métodos de investigação propriamente etnológicos, se bem
deixadas as ciências do homem no nosso país o facto de o imenso que possam, todavia, fornecer uma útil tradução psicológica de
domínio, cuja entrada se encontra assim referenciada e aberta, não ter resultados estabelecidos de forma independente.
sido imediatamente explorado. Desde 1924, com efeito, dirigindo-se É esta subordinação do psicológico ao sociológico que Mauss traz
aos psicólogos, e definindo a vida social como «um mundo de relações utilmcnte à Juz. Sem dúvida, Ruth Bencdict nunca pretendeu reduzir
simbólicas>>, Mauss dizia-lhes: «Enquanto vocês apenas agmTam esses tipos de culturas a perturbações psicopatológicas, e ainda menos
casos de simbolismo bastante raramente e muitas vezes cm séries de explicar os primeiros pelas segundas. Mas era do mesmo modo impru-
factos anormais, nós agarramos de modo constante grande número dente utilizar uma terminologia psiquiátrica para caracterizar fenóme-
deles, e cm séries imensas de factos anormais.» Toda a tese dos nos sociais, enquanto a verdadeira relação se estabc1ccia antes noutro
Patten1s of Culture se encontra antecipadamente nesta fónnula, de que sentido. É da natureza da sociedade expressar-se simbolicamente nos
o seu autor certamente nunca teve conhecimento; e é pena: pois se elas seus costumes e nas suas instituições; pelo contrário, as condutas
tivessem sido conhccídas com os desenvolvimentos que a acom- individuais normais nunca são simbólicas por si mesmas: elas são os
panharam, Ruth Bencdict e a sua escola ter-se-iam defendido mais à elementos a partir dos quais se constrói um sistema simbólico, que não
vontade contra certas censuras que, por vezes, mereceram. pode ser senão colcctivo. São apenas as condutas anormais que,
porque des-socializadas e de algum modo abandonadas a si mesmas,
(3) Sobre este aspecto do pensamento de Mauss, o leitor terá interesse cm realizam, no plano individual, a ilusão de um simbolismo autónomo.
se reportar a dois outros artigos de sua autoria: <<Salutations par lc Rire et lcs
Larmes», Journal de Psychologie, 1922; «L'Exprcssion ohligaloirc des (1) M. MEAD, «Thc Mountain Arapcsh», v. Americcm Musrnm of Natural
Sentiments», ibid., mesma data. /-listory, Anthropological Papers, vol. 41, Parte 3, Nova Iorque, 1949, p. 388.

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Dito de outra maneira, as condutas individuais anormais, num grupo paralelo é legítimo no sentido cm que, nos dois tipos de estado,
social dado, alcançam o simbolismo, mas num nível interior e, se assim intervêm vcrosimilmentc elementos comuns. Não obstante, há
se pode dizer, numa ordem de grandeza diferente e realmente inco- restrições que se impõem: cm primeiro lugar, os nossos psiquíatras,
mensurável àquele em que se exprime o grupo. É portanto ao mesmo postos diante de documentos cinematográficos relativos a danças de
tempo natural e fatal que, simbólicos por um lado e traduzindo por outro possessão, declaram-se incapazes de reduzir tais condutas a qualquer
(por definição) um sistema diferente do do grupo, as; condutas psico- uma das formas de neuroses que costumam observar. Por outro lado, e
pato16gicas individuais ofereçam a cada sociedade uma espécie de equi- sobretudo, os etnógrafos cm contacto com bruxos, ou com possessos
valente, duplamente diminuído (porque individual e porque patológico), habituais ou ocasionais, contestam que esses indivíduos, para todos os
de simbolismos diferentes do seu próprio, ao serem vagamente efeitos normais fora das circunstâncias socialmente definidas cm que
evocadores de fonnas normais e realizadas à escala colcctiva. se entregam às suas manifestações, possam ser considerados doentes.
»- Talvez pudéssemos ir ainda mais longe. O domínio do patológico Nas sociedades com sessões de possessão, a possessão é uma conduta
nunca se confunde com o domínio do individual, uma vez que os aberta a todos; as modalidades encontram-se fixadas pela tradição, o
diferentes tipos de perturbações se arrumam cm categorias, admitindo seu valor é sancionado pela participação colccLiva. Em nome de quê é
uma classificação, e que as formas predominantes não são as mesmas que nós afirmaríamos que indivíduos correspondendo à média do seu
confom1e as sociedades, e conforme este ou aquele momento da grupo, dispondo nos actos da vida corrente de todos os seus meios
história de uma mesma sociedade. A redução do social ao psicológico, intelectuais e físicos, e manifestando ocasionalmente uma conduta
tentada por alguns através da psicopatologia, seria ainda mais ilusória significativa e aprovada, deveriam ser tratados como anormais?
do que até agora admitimos, se tivéssemos de reconhecer que cada A contradição que acabamos de enunciar pode ser resolvida de
sociedade possui as suas formas preferidas de perturbações mentais, e duas maneiras diferentes. Ou as condutas descritas sob o nome de
que estas não são, menos que as normais, função de uma ordem «transe» e de «possessão)) não têm nada a ver com aquelas a que, na
colcctiva que a própria cxcepção não deixa indiferente. nossa própria sociedade, chamamos psicopatológicas; ou podemos
Na sua dissertação sobre a magia, a que voltaremos mais adiante, e considerá-las como sendo do mesmo tipo, e é então a conexão com
cuja data há que considerar para o julgarmos com equidade, Mauss estados patológicos que deve ser considerada como contingente e
nota que, se «a simulação do mágico é da mesma ordem que aquela como resultante de uma condição particular da sociedade cm que
que se observa nos estados de neurose», não é menos verdade que as vivemos. Neste último caso, estaríamos em presença de uma segunda
categorias onde se recrutam os bruxos: «aleijados, extáticos, nervosos alternativa: ou as pretensas doenças mentais, realmente estranhas à
e estrangeiros, formam na realidade espécies de classes sociais». E medicina, devem ser consideradas como incidências socíológicas
acrescenta: <<Ü que lhes dá virtudes mágicas não é tanto o seu carácter sobre a conduta de indivíduos cuja história e constituição pessoais
físico individual como a atitude tomada pela sociedade a respeito de parcialmente dissociaram do grupo; ou se reconhece nos doentes a
todo o seu género.» Coloca assim um problema que não tem solução, presença de um estado verdadeiramente patológico, mas de origem
mas que podemos tentar explorar e seguir. fisiológica, e que criaria apenas um terreno favorável, ou. se se quiser,
<<sensibilizador», a determinadas condutas simb61icas que conti-
* nuariam a depender unicamente da interpretação sociol<Sgica.
* *
Não temos necessidade de abrir semelhante debate; se a alternativa
É cómodo comparar a um neurótico o xamã em transe ou o foi rapidamente evocada, foi somente para mostrar que uma teoria
protagonista de uma cena de possessão. Nós próprios o fizcmos(5), e o puramente sociológica das perturbações mentais (ou daquilo que
consideramos como tal) poderia ser elaborada sem receio de ver um
e) «Le Sorcíer ct sa magic», Les Témps Modernes, Março de 1949. dia os fisiologistas descobrirem um substrato bioquímico das neuroses.

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INTRODUÇÃO À OllRA DE MARCEL MAUSS INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

Mesmo nesta hipótese, a teoria continuaria válida. E torna-se Uma sociedade qualquer é, pois, comparável a um universo onde
relativamente fácil imaginar como é económica. Qualquer cultura apenas as massas discretas estariam altamente estruturadas. Portanto,
pode ser considerada corno um conjunto de sistemas simbólicos na em qualquer sociedade, seria inevitável que uma percentagem (aliás
primeira fila dos quais se colocam a linguagem, as regras variável) de indivíduos se encontrasse colocada, se assim se pode
matrimoniais. as relações económicas, a arte, a ciência e a religião. dizer, fora do sistema ou entre dois ou vários sistemas irredutíveis. A
Todos estes sistemas pretendem expressar determinados aspectos da esses, o grupo pede, e impõe até, que assumam determinadas formas
realidade física e da realidade social, e mais ainda, as relações que de compromissos irrealizáveis no plano colectivo, de fingir transições
estes dois tipos de realidade mantêm entre si e que os próprios sistemas imaginárias, de encarnar sínteses incompatíveis. Em todas estas
simbólicos mantêm uns com os outros. Que nunca cheguem a poder condutas aparentemente aberrantes, os «doentes» mais não fazem do
fazê-lo de modo integralmente satisfatório, e sobretudo equivalente, que transcrever um estado do grupo e tomar manifesta esta ou aquela
resulta primeiro das condições de funcionamento próprias de cada das suas constantes. A sua posição periférica cm relação a um sistema
sistema: permanecem sempre incomensuráveis; e em seguida, do facto local não impede que, pela mesma razão que ele, não sejam parte
de a história introduzir nesses sistemas elementos alógenos, que integrante do sistema total. Mais exactamente, se não fossem essas
determinam passagens de uma sociedade a outra, e das desigualdades testemunhas dóceis, o sistema total correria o risco <le se desintegrar
no ritmo relativo de evolução de cada sistema particular. Pelo facto, nos seus sistemas locais. Podemos, portanto, afirmar que, para cada
pois, de uma sociedade ser sempre dada no tempo e no espaço, sociedade, a relação entre condutas normais e condutas especiais é
po1tanto sujeita à incidência de outras sociedades e de estados complementar. Isso é evidente no caso do xamanismo e da possessão;
anteriores do seu próprio desenvolvimento, pelo facto, também, de - mas não seria menos verdade no que respeita a condutas que a nossa
mesmo numa sociedade teórica que imaginaríamos sem relação com própria sociedade recusa agrupar e legitimar em vocaçlies, aban-
nenhuma outra, e sem dependência no que respeita ao seu passado - os donando o cuidado de realizar num equivalente estatístico a indivíduos
diferentes sistemas de símbolos, cujo conjunto constitui a cultura ou sensíveis (por razões históricas, psicológicas, sociológicas ou
civilização pennanecerem irredutíveis entre si (sendo a tradução de um fisiológicas, pouco importa) às contradições e às lacunas da estrutura
sistema noutro condicionada pela introdução de constantes que são social.
valores irracionais), resultando que nenhuma sociedade nunca é Vemos claramente como e porquê um feiticeiro é um elemento do
integral e completamente simbólica; ou, mais exactamcnte, que ela equilíbrio social; a mesma conclusão se impõe quanto às danças ou
nunca consegue oferecer a todos os seus membros, e no mesmo grau, cerimónias de possessão(7). Mas se a nossa hipótese é exacta, seguir-
o meio de se utilizar plenamente na edificação de uma estrutura -se-ía que as formas de perturbações mentais características de cada
simbólica que, para o pensamento normal, só é realizável no plano da sociedade, e a percentagem dos indivíduos que por elas são afecta<los,
vida social. Porque é, a bem dizer, aquele a que chamamos são de são um elemento constitutivo do tipo particular de equilíbrio que lhe é
espírito que se aliena, já que consente cm existir num mundo definível próprio. Num notável e recente estudo, depois de verificar que nenhum
somente pela relação de cu e de outrém(6). A saúde do espírito xamã <<é, na vida quotidiana, um indivíduo "anormal", neurótico ou
individual implica a participação na vida social, assim como a recusa paranóico; sem o que seria considerado um louco, e não um xamã»,
de a ela se prestar (mas ainda segundo modalidades que ela impõe) Nadei diz que existe uma relação entre as perturbações patológicas e
corresponde ao aparecimento de perturbações mentais. as condutas xamanísticas; mas que ela consiste menos numa
assimilação das segundas pelas primeiras do que na necessidade de

e) Tal é cxactamente, parece-nos, a conclusão que se tira do profundo


estudo do Dr. Jacques LACAN, «L' Agrcssivité cn Psychanalysc», Revue (7) Michel LEIRIS, ~{Martinique, Guadcloupc, Ha"iti», Les Temps
française de Psychanalyse, n.<:> 3. Julho-Setembro de 1948. modemes, n.º 52, Fevereiro de 1950, pp. 1352-1354.

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INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

definir as primeiras em função das segundas. Precisamente porque as


condutas xamanísticas são normais, resulta que, nas sociedades de simbolismo, enquanto é evidentemente necessário procurar uma origem
xamãs. podem permanecer normais condutas determinadas que, aliás, simbólica da sociedade. Quanto mais recusarmos à psicologia uma
seriam consideradas (e sê-lo-iam efcctivamcntc) patológicas. Um competência que se exerce a todos os níveis da vida mental, mais nos
estudo comparativo de grupos xamanístícos e não xamanísticos, numa deveremos inclinar diante dela como sendo a única capaz Quntarnente
área geográfica restrita, mostra que o xamanismo podcría desem- com a biologia) de dar conta da origem das funções de base. Não é
penhar um duplo papel cm relação às disposições psicopatas: menos verdade que todas as ilusões que se prendem hoje com a noção
explorando-as por um lado mas, por outro, canalizando-as e de «personalidade modal» ou de «carácter nacional», com os círculos
estabilizando-as. Parece, com efeito, que, sob a Influência do contacto viciosos que daí resultam, dependem da crença de que o carácter
com a civilização, a frequência das psicoses e das neuroses tende a individual é simbólico por si mesmo, enquanto, como Mauss nos
elevar-se nos grupos sem xamanismo, enquanto nos outros é o próprio prevenia (e exceptuados os fenómenos psicopatológicos), não fornece
xamanismo que se desenvolve, mas sem aumento das perturbações senão a matéria-prima, ou os elementos, de um simbolismo que - vimo-
mentais(8). Vemos, portanto, que os etnólogos que pretendem dissociar -lo anteriormente - mesmo no plano do grupo nunca consegue terminar.
completamente determinados rituais de qualquer contexto psico- Não mais no plano normal do que no da patologia, a extensão ao
patológico estão inspirados por uma boa vontade um pouco timorata. psiquismo individual dos métodos e <los processos ela psicanálíse não
A analogia é manifesta, e as relações são talvez menos susceptíveis de pode, pois, chegar a fixar a imagem <la estrutura social, graças a um
serem medidas. Isso não significa que as sociedades ditas primitivas se miraculoso resumo que permitiria à etnologia evitar-se a si própria.
coloquem sob a autoridade de loucos, mas antes que nós próprios O psiquismo individual não reflecte o grupo; ainda menos o
tratamos às cegas fenómenos sociológicos como se eles dependessem preforma. Ter-se-ão legitimado suficientemente o valor e a impor-
da patologia, enquanto nada têm a ver com ela, ou, pelo menos, que os tância dos estudos que se continuam hoje a fazer neste sentido,
dois aspectos devem ser rigorosamente di!-isociados. Com efeito, é a reconhecendo que ele o completa. Esta complementaridade entre
própria noção de doença mental que está em causa. Porque se, como psiquismo individual e estrutura social funda a fértil colaboração
afirma Mauss, o mental e o social se confundem, haveria absurdo nos reclamada por Mauss, que se realizou entre etnologia e psicologia; mas
casos em que social e fisiológico estão directamente em contacto, no esta colaboração só será válida se a primeira disciplina continuar a
aplicar a uma das duas ordens uma noção (como a de doença) que só reivindicar, para a descrição e a análise objectiva dos costumes e das
tem sentido na outra. instituições, um lugar que o aprofundamento das suas incidências
Entregando-nos. a uma excursão, que alguns julgam sem dúvida subjectivas pode consolidar, sem nunca a conseguir fazer passar ao
imprudente, até aos mais longínquos confins do pensamento de Mauss segundo plano.
e talvez mesmo para além dele, não quisemos senão mostrar a riqueza
e a fecundidade dos temas que oferecia à meditação <los seus leitores ou
ouvintes. A este respeito, a sua reivindicação do simbolismo como II
dependendo integralmente das disciplina_,;;; sociológicas pôde .ser, como
para Durkheim, imprudentemente formulada: porque, na comunicação Tais são, parece-nos, os pontos essenciais sobre os quais os três
acerca dos Rapports da la Psychologie et de la Sociologie, Mauss crê ensaios: Psychologie et Sociologie, L'lclée de Morte Les Techniques
ainda ser possível a elaboração de uma teoria sociológica do du Corps podem sempre dirigir utilmente a reflexão. Os outros:
Théorie générale de la Magie, * Essai su.r le don e Notion de
(8) S. F. NADEL, «Shamanism in the Nuba Mountains», Journal ofthe Royal * O título completo é Esquisse d'une 1tléorie Générale de la Ma,;ie, e está
Anthropological lnstitute, vo1. LXXVI, Part. I, l 946 (publicado cm 1949). publicado nesta colecção com o título fü;boço de uma 7<:oria Geral da Magia.
(N. de E.).
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INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS
INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

ainda: de definir o social como a realidade. Ora, o social só é real


Personnee) colocam-nos na presença de um outro e ainda mais
integrado cm sistema, e este é um primeiro aspecto da noção de facto
decisivo aspecto <lo pensamento de Mauss, que lhe saiu melhor se
total: «Depois de ter violentamente divisado e abstraído demais é
fosse possível balizar os vinte anos que separam a Magie do Don
neccssádo que os sociólogos sC esforcem por recompor o todo.» Mas
através de alguns pontos de referência: L'Art et le MytheCº); A,ma-
o facto total não é aquilo que é por simples reintegração dos aspectos
-Virâj(ll); Origine de la Notion de MonnaieC 2); Dieux Ewhe de la
descontínuos: familiar, técnico, económico, jurídico, religioso, sob
Monnaie et du Change(' 3); Une Forme archai'que de Contrat chez les
qualquer um dos quais que pudéssemos ser tentados a apreendê-lo
Thraces(' 4 ); Commentaires sur un Texte de Posidonius(' 5 ); e se o
exclusivamente. É também preciso que ele se encarne numa
capital Essai sur-le don tivesse sido acompanhado pelos textos que são
experiência individual, e isso segundo dois pontos de vista diferentes:
testemunhas da mesma orientação: De quelques Formes primitives de
cm primeiro lugar, numa história individual que permita «observar 0
Classification (cm colaboração com Durkhcim)C 6); Essai sur les
comportamento de seres totais, e não divididos em faculdades»; em
Variations sai,wmniCres des Sociétés eskimo( 11 ); Gijt, G(ft(' 8); Parentés
seguida naquilo a que gostaríamos de chamar (retomando o sentido
à Plaisanteries(' 9 ); Wette, Weding( 20 ); Biens masculins et féminins en
arcaico de um teimo cuja aplicação no caso presente é evidente), uma
Droit celtique(2 1 ); Les Civilisations( 22 ); Fragment d'un Plan de
antropologia, quer dizer, um sistema de interpretação que desse
Sociologie génerale descriptive( 23 ).
simultaneamente conta dos aspectos físico, fisiológico, psíquico e
Com efeito, e embora o Essaê sur le don [Ensaio sobre a Dádiva}
sociológico de todas as condutas: «O único estudo deste fragmento da
seja, sem contestação possível, a obra-prima de Mauss, o seu livro
nossa vida que é a nossa vida em sociedade não é suficiente.~>
mais justamente célebre e aquele cuja influência foi mais profunda,
O facto social total apresenta-se, portanto, com um carácter
cometer-se-ia um grave erro isolando-o do resto. Foi o Essai sur le don
tridimensional. Tem de fazer coincidir a dimensão propriamente
que introduziu e impôs a noção de facto social total; mas
sociológica com os seus múltiplos aspectos sincrónicos; a dimensão
compreendemos facilmente como esta noção se liga às preocupações,
histórica, ou diacrónica; e, por fim, a dimensão fisiopsicológica. Ora,
diferentes só na aparência, que evocámos ao longo dos parágrafos
é apenas nos indivíduos que esta tripla aproximação pode ter lugar. Se
precedentes. Poderia mesmo dizer-se que ela as comanda, uma vez
atendermos a este «estudo do concreto que é do completo» devemos
que, tal como elas mas de um modo mais inclusivo e sistemático,
necessariamente aperceber-nos de que «o que é verdadeiro, não é a
procede da mesma preocupação de definir a realidade social; melhor
oração ou o direito, mas o Melanésio desta ou daquela ilha, Roma,
C) Este a completar por: <{L' Ame ct lc Prénom,>, Communicatiun à la Atenas».
Société de Philosophie, 1929. Consequentemente, a noção de facto social está cm relação directa
(1°) Revue Philosophique, 1909. com a dupla preocupação, que nos apareceu isolada até este momento,
(1') Mélanges Sylvain Lévy, 19 l l.
(1 2) L'Anthropologic, 1913~ 1914.
de ligar o social e o individual por um lado, o físico (ou fisiológico) e
(1 1) Jbid. o psíquico por outro. Mas compreenderemos melhor a razão de ser
{1 4) Revue dcs Etudes Grecques, vol. XXXIV, l 921. desta questão, que é ela mesma dupla: por um lado, é só no termo de
(1 5) Revue Celtique, 1925.
uma série de reduções que estaremos de posse do facto social, o qual
(1 6) Année Sociologique, VI, 1901-1902.
C') Année Sociologique, IX, l 904-1905. compreende: 1º - diferentes modalidades do social Uurídico,
(1ª) Mélanges Adler, 1925. económico, estético, religioso. etc.); 2º - diferentes momentos de uma
(1 9 ) Rapport de l'ltcole des Hautes Etudes, Annuaire, 1928. história individual (nascimento, infância, educação, adolescência,
(2°) ProCCs-verba11x de la Société d'Histoire du Droit, 1928.
(2 1) ProCCs-verbauxdes Journées d'!Jistoirc du Droit, 1929. casamento, etc.); 3º - diferentes formas de expressão, desde
( 22) ln: Civilisation, !e mot et l'idée, Centre intcrnational de SynthCsc, fenómenos fisiológicos como reflexos, secreções, abrandamentos e
Primeira semana, 2º fascículo, Paris, 1930. acelerações, até categorias inconscientes e representações conscientes,
( ) Annales Sociologiques, série A, fase. l, 1934.
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individuais ou colectivas. Tudo isso é, num certo sentido, observação etnológica traz inevitavelmente ao funcionamento da
perfeitamente social, já que é apenas sob a forma de facto social que sociedade cm que se exerce, porque esta dificuldade não é própria das
esses elementos de natureza tão diversa podem adquirir uma ciências sociais; ela intervém cm qualquer parte onde pretendemos
significação global e vir a ser uma totalidade. Mas o inverso é fazer medições delicadas, isto é, onde o observador (ele mesmo, ou os
igualmente verdadeiro: porque a única garantia que possamos ter ele seus meios de observação) são da mesma ordem de grandeza que o
que um facto total corresponde à realidade, em vez de ser a objecto observado. Aliás, foram os físicos que o puseram cm
acumulação arbitrária de pormenores mais ou menos verídicos, é a de evidência, e não os sociólogos aos quais ela se impõe apenas da mesma
que ele seja apreendível numa experiência concreta: cm primeiro maneira. A situação particular das ciências sociais é de uma outra
lugar, de uma sociedade localizada no espaço e no tempo, <<Roma, natureza, que se prende com o carácter íntrínseco do seu objecto de ser
Atenas»; mas também de um indivíduo qualquer de uma qualquer ao mesmo tempo objccto e sujeito, ou, para falar a linguagem de
dessas sociedades, «o Melanésio desta ou daquela ilha». Portanto, é Durkheirn e de Mauss, «coisa» e «representação». Sem dúvida,
perfeitamente verdade que, num certo :,;cntido, qualquer fenómeno poderíamos dizer que as ciências físicas e naturais se encontram nas
psicológico é um fenómeno sociológico, que o mental se identifica mesmas condições, uma vez que qualquer elemento do real é um
com o social. Mas, noutro sentido, tudo se altera: a prova do objccto, mas que suscita representações, e que uma explicação integral
social, essa, não pode ser senão mental; por outras palavras, nunca do objccto deveria dar conta simultaneamente da sua estrutura própria
podemos ter a certeza de haver alcançado o sentido e a função de uma e das representações por intermédio das quais apreendemos as suas
instituição, se não estivermos preparados para reviver a sua incidência propriedades. Em teoria, isso é verdade: uma química total deveria
sobre uma consciência individual. Como esta incidência é uma parte explicar-nos, não apenas a forma e a distribuição das moléculas do
integrante da instituição, qualquer interpretação deve fazer coincidir a morango, mas como é que um sabor único resulta deste all'artjo. No
objcctividadc da análise histórica ou comparativa com a subjcctividadc entanto, a história prova que uma ciência satisfatória não tem
da experiência vivida. Prosseguindo o que nos tinha aparecido como necessidade de ir tão longe e que pode, durante séculos, e
uma das orientações do pensamento de Mauss, tínhamos chegado há eventualmente milénios (uma vez que ignoramos quando ela lá
pouco à hipótese de uma complementaridade entre o psíquico e o chegará) progredir no conhecimento do seu objccto ao abrigo de uma
social. Esta complementaridade não é estática, como o seria a de duas distinção eminentemente instável, entre qualidades próprias do
metades de um puzzle, ela é dinflmica e provém do facto de o psíquico objecto, as quais procuramos explicar, e outras que são função do
ser, ao mesmo tempo, simples elemento de significaçiio para um sujeito e cuja consideração pode ser deixada de lado.
simbolismo que o ultrapassa e único meio de verificação de uma Quando Mauss fala de factos sociais totais, implica ao contrário (se
realidade cujos múltiplos aspectos não podem ser apreendidos sob o interpretarmos corrcctamente) que essa dicotomia fácil e eficaz é
forma de síntese fora dele. interdita ao sociólogo ou, no mínimo, que ela não podia corresponder
Há, pois, muito mais, na noção de facto social total, do que uma senão a um estado provisório e fugitivo do desenvolvimento da sua
recomendação dirigida aos investigadores para que não deixem de pôr ciência. Para compreender convenientemente um facto social, é
em relação as técnicas agrícolas e o ritual, ou a construção da canoa, a preciso apreendê-lo totalmente, isto é, de fora como uma coisa, mas
forma da aglomeração familiar e as regras de distribuição dos produtos como uma coisa de que todavia faz parte integrante a apreensão
da pesca. Que o facto social seja total não significa unicamente que subjcctiva (consciente e inconsciente) que dela tomarmos se,
tudo o que é observado faça parte da observaçào; mas também, e inclutavclmcnte homens, vivêssemos o facto como um indígena cm
sobretudo; que numa ciência cm que o observador é da mesma vez <lc o observarmos como um etnógrafo. O problema consiste apenas
natureza que o seu objcclo, o observador é ele próprio urna parte da cm saber como é possível realizar esta ambição, que não consiste
sua observaçüo. Não fazemos assim alusão às modificações que a apenas cm apreender um objecto, simultaneamente, de fora e dentro,

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INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

mas que exige bem mais: porque é necessário que a apreensão interna constitui uma ínfima fracção do dado, está ela própria sempre exposta
(a do indígena ou, no mínimo. a do observador que revive a a subdividir-se em duas sociedades diferentes, cm que uma iria juntar-
experiência indígena) seja transposta nos termos da apreensão externa, -se à massa enorme daquilo que, para a outra, é e será sempre objecto,
proporcionando determinados elementos de um conjunto que, para ser e assim por diante indefinidamente. Qualquer sociedade diferente da
válido, deve apresentar-se de modo sistemático e coordenado. nossa é objecto, qualquer grupo da nossa própria sociedade, à
A tarefa seria irrealizável se a distinção repudiada pelas ciências exccpção daquele de que dependemos, é objecto, qualquer uso desse
sociais entre o objcctivo e o subjcctivo fosse tão rigorosa como o deve mesmo grupo, ao qual não aderimos, é objecto. Mas a cicatrização
ser a mesma distinção quando é provisoriamente admitida pelas histórica ou geográfica nunca lhe poderia fazer esquecer (sob pena de
ciências físicas. Mas precisamente, estas últimas inclinam-se aniquilar o resultado dos seus esforços) que esta série ilimitada de
temporariamente diante de uma distinção que pretendem rigorosa, objcctos, que constitui o Objecto da etnografia, e que o sujeito devia
enquanto as ciências sociais repelem definitivamente uma dístinção arrancar dolorosamente de si se a diversidade dos costumes não o
que, para elas, não poderia ser senão enganadora. Que quer isto dizer? pusesse em presença de uma fragmentação operada previamente,
É que, na própria medida em que a distinção teórica é impossível, pode procede dele, e que a respectiva análise, o mais objcctivamcnte
ser levada muito mais longe na prática, até tornar uni dos seus termos conduzida, não poderia deixar de reintegrar na subjectividadc.
negligenciável, ao menos em relação à ordem de grandeza da
observação. Uma vez feita a distinção entre objecto e sujeito, o próprio
sujeito pode novamente desdobrar-se da mesma maneira, e assim por *
diante, ilimitadamente, sem nunca ser reduzido a nada. A observação * *
sociológica, condenada, parece, pela inultrapassável antinomia, que
tratámos no parágrafo anterior, sai-se bem graças à capacidade do O risco trágico que espreita continuamente o etnógrafo, lançado
sujeito de se objcctivar indefinidamente, quer dizer (sem nunca neste empreendimento de identificação, é o de ser a vítima de um mal-
conseguir abolir-se enquanto sujeito), de projcctar para fora fracções -entendido; quer dizer que a apreensão subjcctiva a que ele chegou não
sempre decrescentes de si. Teoricamente pelo menos, esta fragmen- apresenta, conjuntamente com a do indígena, nenhum ponto comum,
tação não tem limite, senão o de implicar sempre a existência dos dois fora da sua próprio subjectividacle. Esta dificuldade seria insolüvcl,
termos como condição da sua possibilidade. sendo as subjectividacles, por, hipótese, incomparáveis e incomu-
O lugar eminente da etnografia nas ciências do homem (que nicáveis, se a oposição entre eu e outrém não pudesse ser ultrapassada
explica o papel que ela desempenha já cm certos países, sob o nome de num campo que é também aquele em que o objectivo e o subjectivo se
antropologia social e cultural, como inspiradora de um novo encontram, isto é, o inconsciente. Por um lado, com efeito, as leis ela
humanismo) provém do facto de apresentar sob uma forma actividade inconsciente estão sempre fora da apreensão subjectiva
experimental e concreta esse processo ilimitado de objectivação do (podemos tomar disso consciência, mas como objccto); e por outro, no
sujeito, que, para o indivíduo, é tão dificilmente realizável. Os entanto, são elas que determinam as modalidades dessa apreensão.
milhares de sociedades que existem ou existiram à superfície da Terra Não admira pois que Mauss, compenetrado da necessidade de uma
são humanas, e a esse título nós participamos nelas de maneira estreita colaboração entre sociologia e psicologia, tenha constante-
subjectiva: poderíamos ter nascido nelas e podemos, pois, tentar mente apelado ao inconsciente como fonte do carácter comum e
comprcendê~Jas como se nelas tivéssemos nascido. Mas, ao mesmo específico dos factos sociais: <(Na magia, como na religião, como na
tempo. o seu conjunto. em relação a uma qualquer delas, atesta a linguística, são as ideias inconscientes que agem.» E neste mesmo
capacidade do sujeito de se objectivar em proporções praticamente memorando sobre a magia, donde é tirada a citação anterior, assiste-se
ilimitadas. Uma vez que essa sociedade de referência, que apenas a um esforço, sem dúvida ainda indeciso, para formular os problemas

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INTRODUÇÃO À OllRA DE MARCEL MAUSS
INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS
O problema etnológico é, pois, cm última análise, um problema de
etnológicos sem ser com a ajuda das «categorias rígicfas e abstractas da comunicação, e esta constatação deve bastar para separar radicalmente
nossa linguagem e da nossa razão», cm termos de uma «psicologia não a via seguida por Mauss, ao identificar inconsciente e colectivo, da de
intelectualista>> estranha aos nossos «entendimentos de adultos Jung, que poderíamos ser tentados a definir de modo semelhante.
europeus>>, onde cslaria completamente errado discernir um acordo Porque não é a mesma coisa definir o inconsciente como uma
antecipado com o pré-logismo de Lévy-Bruhl, que Mauss nunca categoria do pensamento colcctivo ou distingui-lo em sectores,
aceitaria. É antes necessário procurar-lhe o sentido na tentativa que ele conforme o carácter individual ou colcctivo do conteúdo que se lhe
próprio fez, a propósito da noção de mana, para atingir uma espécie de atribui. Nos dois casos, concebe-se o inconsciente como um sistema
«quarta dimensão» do espírito, u111 plano sobre o qual se confundiriam simbólico; mas, para Jung, o inconsciente não se reduz ao sistema: ele
as noções de «categoria inconsciente» e de «categoria do pensamento está todo cheio de sfmbolos, e até de coisas simbolizadas que lhe
colcctivo>>. formam um espécie de substrato. Ou este substrato é inato: mas sem
Mauss tinha, pois, razão quando concluía desde l 902 que «cm hipótese teológica, é inconcebível que o conteúdo da experiência a
suma, a partir do momento cm que chegamos ü representação das preceda; ou é adquirido: ora, o problema da hereditariedade de um
propriedades mágicas, estamos na presença de fenómenos semelhantes inconsciente adquirido não seria menos temível do que o dos
aos da linguagem». Porque foi a linguística, e mais particularmente a caracteres biológicos adquiridos. Com efeito, não se trata de traduzir
linguística estrutural, que nos familiarizou desde logo com a ideia de em símbolos um dado cxtrfoseco, mas de reduzir à sua natureza de
que os fenómenos fundamentais da vida do espírito, aqueles que a sistema simbólico coisas que aí não escapam sen~to para se
condicionam e determinam as suas formas mais gerais, se situam no incomunicabilizar. Tal como a linguagem, o social é uma realidade
estádio do pensamento inconsciente. O inconsciente seria, assim, o autónoma (a mesma, aliás); os símbolos são mais reais do que aquilo
termo mediador entre cu e o outro. Ao aprofundarmos os seus dados, que simbolizam, o significante precede e determina o significado.
não nos prolongamos, se assim se pode dizer, no sentido de nós- Reencontraremos este problema a propósito do mana.
-mesmos: encontramo-nos num plano que não nos parece estranho O carácter revolucionário do Essai sur le don reside no facto de nos
porque encerra o nosso cu mais secreto; mas (muito mais comprometer nesta via. Os factos que traz à luz não constituem
normalmente) porque, sem nos fazer sair de nós-mesmos, nos coloca descobertas. Dois anos antes, M. Davy tinha analisado e discutido o
cm coincidência com formas de actividade que são, ao mesmo tempo, potlatch com base nos inquéritos de Boas e de Swanton, cuja
nossas e outras, condições de todas as vidas mentais de todos os importância o próprio Mauss se tinha interessado em sublinhar no seu
homens e de todos os tempos. Assim, a apreensão (que não pode ser ensino desde antes de 1914; e todo o Essai sur /e don emana, da
senão objcctiva) das formas inconscientes da actividadc do espírito maneira mais dirccta, dos Argonauts of Western Pacific que
conduz, mesmo assim, à subjectivação; uma vez que, dcfinifjvamcnle, Malinowskí tinha publicado também dois anos antes, e que haveriam,
é uma operação do mesmo tipo que, na psicanálise, permite independentemente, de o conduzir a conclusões muito vizinhas das de
reconquistar a nós mesmos o cu mais estranho, e, no inquérito Mauss(24 )~ paralelismo esse que incitaria a olhar os próprios indígenas
etnológico, nos faz aceder ao mais estranho dos outrém como a um mclanésios como os verdadeiros autores da teoria moderna da
outro nós. Em ambos os casos, é o mesmo problema que se põe, o de reciprocidade. Donde vem então o poder extraordinário dessas páginas
uma comunicação procurada, ora entre um eu subjcctivo e um eu desordenadas, que têm ainda qualquer coisa de rascunho, onde se
objectivante, ora entre um eu objectivo e um outro subjectivado. E, justapõem de modo tão curioso as notações impressionistas e,
também nos dois casos, a ínvestig,.1ção mais rigorosamente positiva
dos itinerários inconscientes deste encontro, traçados de uma vez por
{1 4 ) Ver sobre este assunto a nota de MALINOWSKI (p. 41, n. 57). no seu
todas na estrutura inata do espírito humano e na história particular e
livro Crime a,ul Custom in Savage Society, Nova Iorque-Londres, 1926.
irreversível dos indivíduos ou dos grupos, é a condição do sucesso.
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INTRODUÇÃO Ã OBRA DE MARCEL MAUSS INTRODUÇÃO Ã OBRA DE MARCEL MAUSS

comprimida a maior parte das vezes num aparelho crítico que esmaga são, eles mesmos, constantes cm todos os tipos. Para tomar um
texto, uma erudição inspirada, que parece respigar ao acaso das exemplo de um sábio que, talvez melhor do que qualquer outro, soube
0
referências americanas, indianas, célticas, gregas ou oceânicas, mas compreender e explorar as possibilidades abertas por este método(25):
sempre igualmente convincentes? Poucas pessoas puderam ler o Essai as intermináveis séries de festas e de presentes que acompanham o
sur [e don sem sentir toda a gama de emoções tão bem descritas por casamento na Polinésia, envolvendo dezenas, se não centenas de
Malebranche ao evocar a sua primeira leitura de Descartes: o coração pessoas, e que parecem desafiar a descrição empírica, podem ser
a bater, a cabeça ardendo e o espírito invadido por uma certeza ainda analisadas em trinta ou trinta e cinco prestações efectuando-se entre
indefinível, mas imperiosa, de assistir a um acontecimento decisivo da cinco gerações que estão entre si numa relação constante, e
decomponíveis em quatro ciclos de reciprocidade entre as gerações A
evolução científica.
Mas eis que, pela primeira vez na história do pensamento e B, A e C, A e D, e A e E; exprimindo o todo um certo tipo de estrutura
etnológico, um esforço era feito para transcender a observação social tal como, por exemplo, ciclos entre B e C, ou entre E e B ou D
empírica e atingir realidades mais profundas. Pela primeira vez, o ou, finalmente, entre E e C estejam excluídos, enquanto uma outr~
social deixa de depender do domínio da qualidade pura: episódio, forma de sociedade as colocaria no primeiro plano. O método é de uma
curiosídadc, matéria para descrição moralizante ou para comparação aplicação tão rigorosa que se aparecesse um erro na solução das
erudita, e transforma-se num sistema, entre cujas partes podemos pois equações assim obtidas, seria mais facilmente imputável a uma lacuna
descobrir conexões, equivalências e solidariedades. São, cm primeiro no conhecimento das instituições indígenas do que a um engano de
lugar, os produtos da actividade social: técnica, económica, ritual, cálculo. Assim, no exemplo qu? acaba de ser citado, observa-se que 0
estética ou religiosa - ferramentas, produtos manufacturados, produtos ciclo entre A e B se abre por uma prestação sem contrapaiiida; o que
alimentares, fórmulas mágicas, ornamentos, cantos, danças e mitos - convidaria imediatamente à procura, se não a conhecêssemos, da
que se tomam comparáveis entre si pelo carácter comum que todos presença de uma acção unilateral, anterior às cerimónias matrimoniais
possuem de serem transferíveis, segundo modalidades que podem ser se bem que cm relação dirccta com elas. 1~11 é, exactamente, o papeÍ
analisadas e classificadas e que, mesmo quando parecem inseparáveis desempenhado na sociedade em questão pela abdução da noiva, cuja
de certos tipos de valores, são redutíveis a formas mais fundamentais, primeira prestação representa, segundo a própria terminologia
essas de carácter geral. Eles não são, aliás, somente comparáveis, mas indígena, a «compensação». Poderíamos, portanto, tê-la deduzido, se
frequentemente substituíveis, na medida cm que valores diferentes não tivesse sido observada.
podem substituir-se na mesma operação. E, sobretudo, são as próprias Sublinhar-se-á que esta técnica operatória é muito vizinha daquela
operações, por mais diversas que possam parecer através dos que Troubetzkoy e Jakobson utilizavam, na mesma época em que
acontecimentos da vida social: nascimento, iniciação, casamento, Mauss escrevia o Essai, e que lhes haveria de permitir fundar a
contrato, morte ou sucessão; e por mais arbitrárias pelo número e pela linguística estrutural; também aí se tratava de distinguir um dado
distribuição dos indivíduos que elas põem em causa, como puramente fenomenológico, sobre o qual a análise científica não tem
recipiendários, intermediários ou doadores, que autorizam sempre uma influência, de uma infra-estrutura mais simples que ele, e à qual deve
redução a um mais pequeno número de operações, de grupos ou de toda a sua realidade(26). Graças às noções de «variantes facultativas»,
pessoas, onde apenas se encontram, no fim de contas, os termos de «variantes combinatórias», de «termos de grupo» e de
fundamentais de um equilíbrio, diversamente concebido e diferente-
15
mente realizado segundo o tipo de sociedade considerada. Os tipos ( ) Raymond FIRTH, We, The Tikopia, Nova Iorque, 1936, cap. XV;
Primitive Polynesian Economics, Londres, 1939, p. 323.
tomam-se, pois, desníveis por estes caracteres intrínsecos; e com-
(1(') N. S. TROUBETZKOY, Principes de Phonologie (Gnmdziige der
paráveis entre si uma vez que esses caracteres já não se situam numa Phonologie, 1939) e os diversos artigos <lc R. JAKOBSON, publicados em
ordem qualitativa, mas no número e na disposição de elementos que anexo à edição francesa, Paris, 1949.

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INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS
INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

«neutralização», a análise fonológica ia precisamente permitir definir


Que a posição do problema tal como Mauss a tinha definido fosse
uma linguagem por um pequeno número de relações constantes, cuja
a única fundamentada é, pelo contrário, atestado pelos mais recentes
diversidade e complexidade aparente do sistema mais não fazem do
progressos das ciências sociais, que permitem formar a esperança da
que ilustrar a gama possível das comhinaçõcs autorizadas.
sua matematização progressiva. Em certos domínios essenciais, como
o do parentesco, a analogia com a linguagem, tão firmemente afirmada
Tal corno a fonologia para a linguística, também o Essai sur /e don
por Mauss, pôde permitir descobrir as regras precisas segundo as quais
inaugura, pois, uma era nova para as ciências sociais. A importância
se formam, seja cm que tipo for de sociedade, ciclos de reciprocidade
deste duplo acontecimento (que Mauss, infelizmente, deixou apenas no
cujas leis mccfmicas são doravante conhecidas, permitindo o emprego
cswdo de esboço) não pode ser mais bem comparada do que à
do raciocínio dedutivo num domínio que parecia submetido à mais
descoberta da análise combinatória para o pensamento matemático
completa arbitrariedade. Por outro lado, associando-se cada vez mais
moderno. Que Mauss nunca tenha empreendido a exploração da sua
estreitamente à linguística, para constituir um dia com ela uma vasta
descoberta e que tenha assim, inconscíentcmentc, incitado Malinowski
ciência da comunicação, a antropologia social esperar beneficiar das
(cm quem podemos reconhecer, sem ofendermos a sua memória, que foi
imensas perspectivas abertas à própria linguística, através da aplicação
melhor observador que teórico) a lançar-se sozinho, na base dos mesmos
do raciocínio matemático ao estudo dos fenómenos de comuni-
factos e das conclusões a que tinham chegado independentemente um do
t:ação(21). Desde já sabemos que um grande número de problemas
outro, na elaboração do sistema coITespondente, é uma das grandes
etnológicos e sociológicos, quer no plano da morfologia quer mesmo
infelicidades da etnologia contemporfmea.
no da arte ou da religião, apenas espera a boa vontade dos matemáticos
E difícil saber cm que sentido Mauss teria desenvolvido a sua
que, com a colaboração de etnólogos, poderiam fazer-lhes atingir
doutrina, se tivesse consentido em fazê-lo. O interesse principal de
progressos decisivos, se não ainda no sentido de uma solução, pelo
uma das suas obras mais tardias, a Notion de Personne, reside menos
menos no sentido de uma unificação prévia, que é a condição para a
na argumentação, que podemos achar ligeira e por vezes negligente, do
sua solução.
que na tendência que aí se revela no sentido de estender à ordem
diacrónica uma técnica de permutações que o Essai sur le don
concebia antes cm função dos fenómenos sincrónicos. De qualquer III
modo, Mauss teria provavelmente encontrado determinadas
dificuklades em levar mais por diante a elaboração do sistema. Em Não é pois num espírito crítico, mas antes inspirados pelo dever de
breve veremos porquê. Mas não lhe teria decerto dado a forma não deixar perder ou corromper a parte mais fecunda do seu
regressiva que haveria de receber de Malinowski, para quem a noção ensinamento, que somos levados a procurar a razão pela qual Mauss se
de Junção, concebida por Mauss a exemplo da álgebra, isto é, im- deteve à beíra destas imensas possibilidades, como Moisés conduzindo
plicando que os valores sociais são reconhecíveis cm função uns dos o seu povo até uma tcffa prometida cujo esplendor nunca viria a
outros, se transforma no sentido de um empirismo ingénuo, para já não contemplar. Deve existir cm algum lado urna passagem decisiva que
designar senão o serviço prático prestado à sociedade pelos seus Mauss não atravessou, e que pode sem dúvida explicar por que é que
costumes e pelas suas instituições. Quando Mauss encarava uma o novum organum das ciências sociais do século XX, que dele se
relação constante entre fenómenos, onde se encontra a sua explicação, poderia esperar, e de que possuía todos os fios condutores, nunca se
Malinowski pergunta apenas para que é que eles servem, para lhes revelou senão sob a forma de fragmentos.
encontrar urna justificação. Esta posição do problema anula todos os
progressos anteriores, uma vez que reintroduz um aparelho de C' 1 ) N. WIENER, Cybernetics, Nova Iorque e Paris, 1948. C. E.
postulados sem valor científico. SHANNON e Warrcn WEAVER, '/11c Mathematical Theory of
Communicalion, Univcrsity of Illinois Press, 1949.
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INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

Um aspecto curioso da argumentação seguida no Essai sur /e don certamente pelo indígena cm geral, que não existe, mas por um grupo
colocar-nos-á no caminho da dificuldade. Mauss aparece-nos aí, e com indígena determinado, onde especialistas já antes se debruçaram sobre
razão, dominado por uma certeza de ordem lógica, segundo a qual a problemas, se colocaram perguntas e tentaram responder-nos. Na
troca é o denominador comum de um grande número de activi<ladcs ocorrência, e em vez de seguir até ao fim a aplicação dos seus
sociais aparentemente heterogéneas entre si. Mas não consegue ver princípios, Mauss renuncia a essa tarefa cm favor de uma teoria
esta troca nos factos. neozelandesa, que tem um imenso valor como documento etnográfico,
A observação empírica não lhe fornece a troca, mas apenas ~ como mas que não passa de uma teoria. Ora, não constitui uma razão o facto
ele próprio ?iz - três obrigações: dar, receber, retribuir. Toda a teoria de sábios maori terem sido os primeiros a colocarem-se determinados
reclama assim a existência de uma estrutura, de que a experiência não problemas, e os terem resolvido de um modo infinitamente interes-
oferece senão os fragmentos, os membros dispersos, ou antes, os sante, mas muito pouco satisfatório, para nos inclinarmos diante da sua
elementos. Se a troca é necessária e se não é dada, é pois necessário interpretação. O hem não é a razão última da troca: é a forma cons-
construí-la. Como? Aplicando aos corpos isolados, únicos presentes, ciente sob a qual homens de uma sociedade determinada, onde o
uma fonte de energia que opere a sua síntese. «Podemos{ ... ] provar que problema tinha uma importância particular, apreenderam um neces-
nas coisas trocadas f_ ••• ] há uma virtude que obriga as dádivas a circular, sidade inconsciente cuja razão está noutro lado.
a serem dadas, a serem redistribuídas.» Mas é aqui que começa a No instante mais decisivo, Mauss está, pois, tomado de uma
dificuldade. Essa virtude existe objectivamente, como se fosse uma hesitação e de um escrúpulo. Já não sabe exactamentc se há-de fazer o
propriedade física dos bens trocados? Evidentemente que não; isso quadro <la teoria, ou a teoria da realidade, indígenas. No que tem razão
seria, aliás, impossível, uma vez que os bens cm questão não são apenas em larga medida: a teoria indígena está numa relação muito mais
1 objcctos físicos, mas também dignidades, cargos, privilégios, cuja dirccta com a realidade indígena Jo que o estaria uma teoria elaborada
1,
ji importância sociológica é todavia a mesma dos bens materiais. É, pois, a partir das nossas categorias e dos nossos problemas. Foi, pois, um
necessário que a virtude seja concebida subjectivamente; mas então enorme progresso, no momento cm que ele escrevia, o atacar um
i encontramo-nos colocados diante de uma alternativa: ou esta virtude problema etnográfico a partir da sua teoria neozelandesa ou mclanésia,
não é mais do que o próprio acto de troca, tal como ele se apresenta para muito mais do que com a ajuda de noções ocidentais como o
o pensamento indígena, e encontramo-nos fechados num círculo; ou é animismo, o mito ou a participação. Mas, indígena ou ocidental, uma
de uma natureza diferente e, por relação com ela, o acto de troca teoria nunca é mais que uma teoria. Ela oferece, no máximo, uma via
transforma-se então num fenómeno secundário. de acesso, porque aquilo cm que os interessados acreditam, sejam eles
O único meio de escapar ao dilema teria sido apercebermo-nos de fijianos ou australianos, está sempre bastante afastado daquilo que
que é a troca que constitui o fenómeno primitivo, e não as operações pensam ou fazem cfcctivamcnte. Depois de se ter libertado da
discretas nas quais a vida social a decompõe. Neste como noutros concepção indígena, havia agora que reduzi-la através de uma crítica
casos, mas sobretudo neste, devia aplicar-se um preceito que o próprio objectiva que permitisse atingir a realidade subjacente. Ora, esta tem
Mauss havia já formulado no Esquisse ... de la Magie: «A unidade do muito menos possibilidades de se encontrar cm elaborações cons-
todo é ainda mais real que cada uma das suas partes.» Pelo contrário, cientes do que cm estruturas mentais inconscientes que podemos
no Essai sur le don, Mauss reconstrói com afinco um todo com partes, alcançar através das instituições, e melhor ainda na linguagem. O hau
e como isso é manifestamente impossível, é-lhe necessário juntar à é um produto da reflexão indígena; mas a realidade é mais aparente cm
mistura uma quantídade suplementar que lhe dá a ilusão de encontrar determinados traços línguísticos que Mauss não deixou de sublinhar,
o total. Essa quantidade é o hau. sem lhes dar toda a importância que convinha: «Os Papuas e os
Não estaremos nós diante de um desses casos (que não são assim Melanésios», diz ele, «só têm uma palavra para designar a compra e a
tão raros) em que o etnólogo se deixa mistificar pelo indígena? Não venda, o emprestar e o pedir emprestado. As operações antitéticas são

34 35
INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS
INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

local e os documentos o seu sabor». Seria apenas mais tarde que iria
expressas pela mesma palavra.» Toda a prova reside no facto de as
deci<lir~se a fixar a atenção sobre sociedades «que representam
operações em questão, longe de serem «antitéticas», não serem senão
verdadeiramente máximas, excessos, que permitem ver melhor os
dois modos de uma mesma realidade. Não temos necessidade do hem
factos do que no lugar onde, não menos essenciais, eles continuam
para fazer a síntese, porque a antítese não existe. Ela é uma ilusão
ainda pequenos e involuídos». Mas para compreender a história do seu
subjectiva dos etnógrafos, e por vezes também dos indígenas que,
pensamento, para separar algumas das suas constantes, o Esquisse
quando raciocinam sobre si mesmos - o que lhes acontece com
oferece um valor excepcional. E isto é verdade, não só para a
bastante frequência-, se comportam como etnógrafos ou, mais cxacta-
inteligência do pensamento de Mauss, mas para apreciar a história da
mcnte, corno sociólogos, isto é, como colegas com os quais é Escola sociológica francesa e a relação exacta entre o pensamento ele
permitido discutir.
Mauss e o <le Durkheim. Analisando as noções de mana, de wakan e
Àqueles que nos censurariam por levarmos o pensamento de
de orenda, edificando sobre a sua base uma interpretação de conjunto
Mauss num sentido demasiado racionalista, quando nos csfon;amos
da magía e chegando assim ao que considera como categorias
por reconstruí-lo sem apelar a noções mágicas ou afcctivas cuja
fundamentais do espírito humano, Mauss antecipa em dez anos a
intervenção nos parece residual, responderíamos que Mauss consignou
economia e certas conclusões elas Formes élémentaires de la \!ie
explicitamente desde o início da sua carreira este esforço por
religieuse. O 1.:;squissc mostra, pois, a importância da contribuição de
compreender a vida social corno um sistema de relações, que anima o
Mauss para o pensamento de Durkheim; permite reconstituir alguma
Essai sur /e don, no Esquisse d'une théarie génerale de la Magie. Foi
coisa dessa íntima colaboração entre o tio e o sobrinho que não se
ele, e não nós, que afirmou a necessidade de compreender o acto
limitou ao campo etnográfico, uma vez que se conhece, além disso, o
mágico como um julgamento. Foi ele que introduziu na crítica
papel essencial desempenhado por Mauss na preparação elo Suicide,
etnográfica uma distinção fundamental entre julgamento analítico e
Mas aquilo que sobretudo nos interessa aqui é a estrutura lógica da
julgamento sintético, cuja origem filosófica se encontra na teoría das
obra. Ela está totalmente fundada sobre a noção de mana e sabe-se
noções matemáticas. Não estamos nós, desde logo, autorizados a dizer
que, sob esta ponte, muita água passou depoís. Para recuperar a
que se Mauss tivesse podido conceber o problema do julgamento de
coITente, seria necessário, cm primeiro lugar, integrar no Esquisse os
outro modo, e não nos termos da lógica clássica, e formulá-lo cm
resultados mais recentes obtidos localmente e os que são tirados da
termos de lógica das relações, então, com o prôprio papel ela cópula,
análise linguística(2~)- Seria também necessário completar os diversos
ter-se-iam desmoronado as noções que sustentam a sua argumentação
tipos de mana introduzindo nesta já vasta família, e não muito
(ele di-lo expressamente: «o mana[ ... ] desempenha o papel da cópula
harmoniosa, a noção, tão frequente entre os indígenas da América do
na proposição»), quer dizer, o mana, na teoria da magia, e o /um na
Sul, de uma espécie de mana substancial e, na maior parte das vezes,
teoria da dádiva?

es) A. M. HOCART, «Mana», Man, n.º 46. 1914; ,,Mana again», Man, n."
79, 1922; <,Natural anJ supernatural», Man, n.º 78, 1932. H. IAN HOGBIN,
* * «Mana», Occania, vol. 6, 1935-1936. A. CAPELL, «The worcl mmw: a
linguistic study», Ocecmia, vol. 9, 1938. R. FIRTH, «The Analysis of Mana:
A vinte anos de distância, com efeito, a argumentação do Evsai sur an empirical approach», Joumal of the Polynesian Society, vol. 49, 1940; «An
[e don reproduz (pelo menos no seu início) a da Théorie de la Magie Analysis of Mana ►>, Polynesian Anthropological Studies, pp. 189-218,
Wcllington, 1941. G. BLAKE PALMER, «Mana, some Christian anJ Moslem
( 1902). Era a época cm que a etnologia comparada não tinha ainda Parallels,,, Joumal ofthe Polynesian Society, vol. 55, 1946. G. J. SCHNEEP,
renunciado, cm grande parte, à instigação do pr<Íprio Mauss, e tal «EI Conccpto de Mana)>, Acta Anthropologica, vol. II, n. 0 3, México, 1947. B.
como ele haveria de dizer no Essai sur lc don, «a esta comparação MALINOWSKI, Magic, Science mui Religion, Boston, 1948 [Magia, Ciência
e Religiâo, Edições 70, Lisboa, 1988].
constante onde tudo se mistura e onde as instituições perdem a cor
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36
INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAlJSS

negativo: fluído que o xamã manipula, que se depõe sobre os objcctos pessoal, que não é familiar: de uma salaman<lra uma mulher dizia que
sob uma forma observável, que provoca deslocações e levitações e tinha medo, era um manitu; riem-se dela dizendo-lhe o nome. As
cuja acção é geralmente considerada como nociva. Ú assim o tsaruma pérolas dos traficantes são as cascas de um manitu, e o lençol, essa
dos Jivaro, o nandé de que nús próprios estudámos a representação coisa maravilhosa, é a pele de um manitu». Do mesmo modo, o
entre os Nambiquarn(2~), e todas a:,; formas análogas assinaladas entre primeiro grupo <le índios Tupi-Cavaíbas meio civilizados, com a ajuda
os Amniapâ, Apapocuva, Apinayé, Galibi, Chiquito, Lamisto, dos quais haveríamos de penetrar, em 1938, numa aldeia desconhecida
Chamicuro, Xcbero, Yamco, !quito, ctc.(-111 ). Que subsistiria da noção da tribo, admirando os cortes de flanela vermelha que lhes dávamos
de mana depois de urna tal abordagem? É difícil dizê-lo; cm todo o como presentes, exclamavam: O que é este bicho vermelho?; o que não
caso, sairia profanada. Não que Mauss e Durkhcim estivessem era nem um testemunho de animismo primitivo, nem a tradução de
errados, como por vezes se pretende, por terem aproximado noções uma noção indígena, mas somente um idiotismo do falar caboclo, quer
emprestadas a regiões do mundo afastadas umas das outras, e por as dizer, português rústico do interior do BrasiL Mas, inversamente, os
terem constituído cm categoria. Mesmo que a história confirme as Nambiquara, que nunca tinham visto bois, antes de 1915, designam-
conclusões da análise linguística e que o termo polinésia mana seja um -nos como sempre fizeram para as estrelas, pelo nome de atásu, cuja
descendente longínquo de um termo indonésio que definia a eficácia conotação é muito próxima do algonquino manitu(-' 1).
de deuses pessoais, de modo nenhum sucederia que a noçüo conotada Tais assimilações não são assim tão extraordinárias; sem dúvida
por este termo na Melanésia e na Polinésia fosse um resíduo, ou um com mais reserva, também nós já praticamos assimilações do mesmo
vestígio, de um pensamento religioso mais elaborado. Apesar de todas tipo quando qualificamos um objecto desconhecido ou cujo uso está
as diferenças locais, parece bastante certo que mana, wakan, orenda mal explicado, ou cuja eficácia nos surpreende, como machin
representam explicações do mesmo tipo; é, pois, legítimo constituir o (maquinação) ou truc (artimanha). Por detrás de maquinação, há
tipo, procurar classificá-lo e analisá-lo. máquina, e, mais longinquamente, a ideia de força ou de poder. Quanto
A dificuldade da posição tradicional em matéria de mana parece- a artimanha, os etimologistas fazem-no derivar de urn termo medieval
-nos ser de uma outra natureza. Ao contr..'irio do que se pensava em que significa o golpe feliz nos jogos de habilidade ou de acaso, quer
l 902, as concepções do tipo mana são tão frequentes e tão divulgadas dizer, um dos sentidos precisos que se dá ao termo indonésio cm que
que é conveniente perguntarmo-nos se não estaremos em presença de alguns vêem a origem da palavra mana(-'2 ). Não dizemos evidente-
uma forma de pensamento universal e permanente que, longe de mente de um objecto que ele tem ((artimanha» ou «maquinaçüo», mas
caracterizar determinadas civilizações ou pretensos «estados» arcaicos de urna pessoa dizemos que tem «qualquer coisa» e quando o s!ang
ou scmiarcaicos da evolução do espírito humano, seria função de uma (calão) americano alribui «oomph» a uma mulher, não é certo, se se
determinada situação do espírito cm presença das coisas; devendo evoca a atmosfera sagrada e toda imbuída de tabus que, na América
portanto aparecer sempre que essa situação ocorre. Mauss cita no mais ainda do que noutro lado, impregna a vida sexual, que estejamos
Esquisse uma observação bastante profunda do Padre Thavenct a
propósito da noção de manitu entre os Algonquinos: « ( ... J Designa (-1 1) C. LÉVI-STRAUSS, La Vie familiale, etc., loc. cit., pp. 98-99, «The
mais particularmente qualquer ser que ainda não tem um nome Tupi-Kawahib», ín Hwulbook of South American lndians, Washington, 1948,
vol. 3, pp. 299-305.
Compararemos com os Dacotas que dizem cio primeiro cavalo, trazido,
9
(2 ) La Vie familialc et sociale des lndiens Nambikwara, Société dcs segundo o mito, pelo relâmpago: «Ele não sentia corno um ser humano e
Américanistcs, Paris, 1948, pp. 95+98. pensou-se que pudesse ser um cão, mas era maior do que um cão de carga, por
Cº) Alfred METRAUX, «La causa e e! tratamicnlo 1rnígico de las isso se lhe chamou sunka wakan, cão misterioso,> (M. W. TIECKWITH,
cnfermcdades entre los indios de la Region Tropical Sul-Americana,,, America «Mythology of thc Qglala Dakota», Jmmwl ofAmerican Fofklore, vol. XLIII,
buligena, vol. 4, México, 1944; «Lc Shamanisrne chez lcs Indicns de 1930, p. 379).
1' Amérique du Sud tropical>:,, Acta Americana, voL II, n."' 3 e 4, 1944. (3 1) Sobre esta derivação da palavra mana, cf. A. CAPELL, loc. cit.

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INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

muito afastados do sentido de mana. A diferença depende menos das propusemos explicar, participam deles. Vê-se, portanto, que, pelo
próprias noções, tais como o espírito as elabora sempre incons- menos num caso, a noção de mana apresenta as características de
cientemente, <lo que do facto de, na nossa sociedade, essas noções potência secreta, de força misteriosa, que Durkheim e Mauss lhe
terem um carácter fluído e espontâneo, enquanto fora dela servem para atribuíram: tal é o papel que ela desempenha no seu próprio sistema.
fundar sistemas reflectidos e oficiais de interpretação, isto é, têm um Aí, verdadeiramente, o mana é mana. Mas ao mesmo tempo,
papel que nós próprios reservamos à ciência. Mas, sempre e cm perguntamo-nos se a sua teoria do mana é algo mais do que uma
qualquer lugar, esses tipos de noções intervêm, um pouco como imputação ao pensamento indígena de propriedades implicadas pelo
símbolos algébricos, pnra representar um valor indeterminado de lugar muito particular que a ideia de mana é chamada a manter no seu.
significação, cm si mesmo vazio de sentido e, por isso, susccptível de Por isso, não poderíamos proteger muito os admiradores sinceros
receber um sentido qualquer, cuja única função é preencher um de Mauss que fossem tentados a deter-se nesta primeira fase do seu
afastamento entre o significante e o significado, ou, mais cxactamente, pensamento, e que dirigiriam o seu reconhecimento menos às suas
assinalar o facto de que em tal circunstância, em tal ocasião, ou cm análises lúcidas do que ao seu talento excepcional para restituir, na sua
determinada das suas manifestações, se estabelece uma relação de estranheza e na sua autenticidade, determinadas teorias indígenas:
inadequação entre significante e significado, com prejuízo da relação porque ele nunca teria procurado nessa contemplação o refúgio
complementar anterior. preguiçoso de um pensamento vacilante. A atermo-nos ao que, na
Colocamo-nos, pois, numa via estreitamente paralela à de Mauss, história <lo pensamento de Mauss, é apenas uma fase preliminar,
invocando a noção de mana como fundamento de determinados correríamos o risco de comprometer a sociologia por um caminho
julgamentos sintéticos a priori. Mas recusamo-nos a segui-lo quando perigoso, e que constituiria mesmo a sua perda se, dando um passo a
vai procurar a origem da noção de mana numa outra ordem de mais, reduzíssemos a realidade social à concepção que o homem,
realidades que não a das relações que ela ajuda a construir: ordem de mesmo selvagenl, tem dela. Tal concepção tornar-se-ia, aliás, vazia de
sentimentos, volições e crenças que são, do ponto de vista da sentido se o seu carácter fosse esquecido. A etnografia dissolver-se-ia
explicação sociológica, quer epifcnómenos, quer mistérios, cm todo o então numa fenomenologia palavrosa, mistura falsamente ingénua cm
caso objectos extrínsecos ao campo de investigação. Aqui reside, que as obscuridades aparentes do pensamento indígena não seriam
quanto a nós, a razão pela qual um inquérito tão rico, tão penetrante, adiantadas senão para cobrir as confusões, de outro modo demasiado
tão cheio de iluminações, muda repentinamente e tende para uma manifestas, do etnógrafo.
conclusão decepcionante. No fim de contas, o mana seria apenas «a Não é proibido tentar prolongar o pensamento de Mauss na outra
expressão de sentimentos sociais que se formaram quer fatal e direcção: aquela que havia de definir o Essai sur le don, depois de ter
universalmente, quer fortuitamente, a respeito <le determinadas coisas, uJtrnpassado o equívoco que já referimos a propósito do !um. Porque
escolhidas na sua maior parle de uma maneira arbitrária ... »C'). Mas as se o mana aparece no fim do Esquisse, o hem, felizmente, só aparece
noções de sentimento, de fatalidade, de fortuitidade e de arbitrariedade no princípio do Don e todo o Essai o trata como um ponto de partida,
não são noções científicas. Não esclarecem os fenómenos que nos não como um ponto de chegada. A que chegaríamos nós, projectando
retrospectivamcnte sobre a noção de mana a concepçf10 que Mauss nos
(31) Por mais decisiva que tenha sido a contribuição de Mauss, assimilando convida a formar da troca? Seria necessário admitir que, tal como o
os fenómenos sociais à linguagem, ela deveria, num dos seus aspectos, colocar
a reflexão sociológica em dificuldades. Ideias como as que estão expressas hau, o mana é apenas a reflexão subjectiva da exigência de urna
nesta citação podiam, com efeito, invocar em seu proveito aquilo que haveria totalidade não manifestada. A troca não é um edifício complexo,
de, durante muito tempo, ser considerado corno a muralha inexpugnável da construído a partir das obrigações de dar, de receber e de retribuir, com
linguística saussuriana: isto é, a teoria da natureza arbitníria do signo
linguístico. Mas não h.i hoje uma posição que seja assim tão urgente
a ajuda de um cimento afcctivo e místico. É uma síntese imediata-
ultrapassar. mente dada a, e por, pensamento simbólico que, na troca como em

40 41
INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

qualquer outra forma de comunicação, supera a contradição que lhe é intelectual que permite identificar uns em relação aos outros
inerente de apreender as coisas como os elementos do díálogo, determinados aspectos do significante e detennínados aspectos do
simultaneamcnlc sob a relação de si e de outrem, e destinadas, por significado~ poderia mesmo dizer-se para se escolher, no conjunto do
natureza, a passar de um ao outro. Que elas sejam de um ou de outro significante e no cúnjunto do significado, as partes que apresentam
representa urna situação derivada em relação ao carácter relacional entre si as relações mais satisfatórias de conveniência mútua - só
inicial. Mas não acontece o mesmo com a magia? O julgamento muito lentamente avançou. Tudo se passou como se a humanidade
mágico, implicado no acto de produzir o fumo para suscitar as nuvens tivesse adquirido de urna só vez um imenso domínio e o seu plano
e a chuva, não se funda numa distinção primitiva entre fumo e nuvem, pormenorizado, com a noção da sua relação recíproca, mas tivesse
conú1pclo ao mana para os soldar a ambos, mas no facto de um plano passado milénios a aprender que símholos determinados do plano
mais profundo do pensamento identificar fumo e nuvem, e um é a representavam os diferentes aspectos do domínio. O Universo
mesma coisa que o outro, pelo menos sob uma certa relação, e esta significou muito antes de se começar a saher o que ele significava; isso
identificação justifica a associação suhscqucnte, não o contrário. Todas é óhvio, sem dúvida, mas, da análise anterior, resulta tamhém que ele
as operações mágicas assentam na restauração de uma unidade, não significou, desde o princípio, a totalidade do que a humanidade pode
perdida (porque nada se perde nunca), mas inconsciente, ou menos esperar vir a conhecer. Aquilo a que chamamos progresso do espírito
completamente consciente que essas mesmas operações cm si mesmas. humano e, cm todo o caso, o progresso do conhecimento científico,
A noção de mana não é da ordem do real, mas da ordem do não pôde e nunca poderá consistir senão em rectificar cortes, proceder
pensamento que, mesmo quando se pensa a si próprio, nunca pensa a reagrupamentos, definir pertences e dcscohrir novos recursos, no
senão um ohjccto. seio de uma totalidade fechada e complementar consigo mesma.
Ú neste carácter relacional do pensamento simbólico que podemos Estamos aparentemente muito longe do mana; com efeito, estamos ru
(')
procurar a resposta para o nosso problema. Quaisquer que tenham sido muito perto. Porque, embora a humanidade tenha possuído sempre
'L!
o momento e as circunstâncias do seu aparecimento na escala da vida uma massa enorme de conhecimentos positivos e as diferentes "L
li!r'il,
animal, a linguagem não pôde nascer senão de repente. As coisas não sociedades humanas tenham consagrado mais ou menos esforço para
se puderam pôr a significar progressivamente. Na sequência de uma os manter e para os desenvolver, foi todavia numa época muito recente
transformação cujo estudo não depende das ciências sociais, mas da que o pensamento científico se instalou como mestre e que apareceram
biologia e da psicologia, efectuou-se uma passagem de um estado cm formas de sociedade, em que o ideal intelectual e moral, ao mesmo
que nada tinha um sentido a um outro cm que tudo o possuía. Ora, esta tempo que os fins práticos perseguidos pelo corpo social, se
observação, aparentemente banal, é importante porque essa mudança organizaram cm torno do conhecimento científico, escolhido como
radical não tem contrapartida no domínio elo conhecimento que se centro de referência de modo oficial e reflcctido. A diferença é de grau,
elabora lenta e progressivamente. Por outras palavras, no momento cm não de natureza, mas existe. Podemos por isso esperar que a relação
que o Universo inteiro, de uma só vez, se tornou sigmjicativo, não foi, entre simbolismo e conhecimento conserve características comuns nas
por isso, mais bem conhecido, mesmo se for verdade que o apareci- sociedades não industriais e nas nossas, sendo desigualmente
mento da linguagem haveria de precipitar o ritmo do desenvolvimento marcadas. Não se trata de cavar um fosso entre umas e outras
do conhecimento. Existe, pois, uma oposição fundamental, na história reconhecer que o trabalho de percquação do significante cm relação ao
do espírito humano, entre o simholismo, que oferece um carácter de significado tem sido perseguido de modo mais metódico e mais
descontinuidade, e o conhecimento, marcado de continuidade. Que rigoroso a partir do nascimento, e nos limites de expansão, da ciência
resulta deste facto? É que as duas categorias do significante e do moderna. Mas, cm qualquer outro lugar, e constantemente ainda entre
significado constituíram-se, simultânea e solidariamente, como dois nós mesmos (e sem dúvida por muito tempo), se mantém uma situação
blocos complementares; mas que o conhecimento, isto é, o processo fundamental e que depende da condição humana, que consiste em

42 43
INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS
INTRODUÇÃO À OBRA DE MARCEL MAUSS

saber que o homem dispõe, desde a sua origem, de uma integralidade


de significante cuja alocução a um significado, dado como tal sem ser simbólico zero, isto é, um signo marcando a necessidade de um
por isso conhecido, lhe custa fazer. Há sempre uma inadequação entre conteúdo simbólico suplementar àquele que carrega já O significado,
os dois reabsorvível apenas pelo entendimento divino, e que resulta na mas podendo ser um valor qualquer na condição de fazer ainda parte
existência de um excesso de significante, cm relação aos significados da reserva disponível, e não ser já, como dizem os fonôlogos, um
termo de grupo(3~).
sobre os quais ele se pode pôr. No seu esforço por compreender o
mundo, o homem dispõe assim sempre de um excesso de significação Esta concepção parece-nos ser rigorosamente fiel ao pensamento
(que reparte entre as coisas segundo leis do pensamento simbólico, de M~mss. De facto, não é mais do que a concepção de Mauss
cujo estudo pertence aos etnólogos e aos linguistas). Essa distribuição traduzida, da sua expressão original cm termos de lógica das classes,
de uma ração suplementar ~ se assim nos podemos exprimir ~ é numa lógica simbólica que resume as leis mais gerais Ja linouagcm.
absolutamente necessária para que, no total, o significante disponível Esta tradução não é um feito nosso, nem o resultado de uma J~bcrdadc
e o significado referenciado permaneçam entre si na relação de tomada a propósito da concepção inicial. Ela reílectc somente uma
complementaridade que é a própria condição do exercício do evolução objcctiva que se produziu nas ciências psicológicas e sociais
pensamento simbólico. durante os últimos trinta anos, e cm que o valor do ensinamento de
Cremos que as noções de tipo mana, por mais diversas que possam Mauss é o de ter sido uma primeira manifestação, e de para ela ter
ser, encarando-as na sua função mais geral (que, vimo-lo, não largam~ntc c.ontrib~ído. Mauss foi, com efeito, um dos primeiros a
desaparece na nossa mentalidade e na nossa forma de sociedade), denunciar a msufic1ência da psicologia e da lógica tradicionais, e a
representam precisamente esse significante flutuante, que é a servidão fazer estalar os seus quadros rígidos, revelando outras formas de
de qualquer pensamento acabado (mas também a garantia de qualquer pensamento, aparentemente «estranhas aos nossos entendimentos de p;í
arte, de qualquer poesia, de qualquer invenção mítica e estética), se adultos eur~Jpcus». No momento cm que ele escrevia (recordemo-nos c:l
!.!,l
bem que o conhecimento científico seja capaz, se não de o estancar, c!ue o ensaio sobre a magia data de uma época cm que as ideias de .,,r:
pelo menos de o disciplinar paralelamente. O pensamento mágico f<rcud eram completamente desconhecidas cm França), essa Lh~íl,
oferece, aliás, outros métodos de canalização, com outros resultados, e descoberta mal podia exprimir-se de outro modo que não fosse sob a
esses métodos podem muito bem coexistir. Por outras palavras, e ~orma nc~ativa, por intermédio do apelo a uma «psicologia não
inspirando-nos no preceito de Mauss segundo o qual todos os mtelc~tuahsta». Mas ninguém teve razões para, mais do que Mauss, se
fenómenos sociais podem ser assimilados à linguagem, vemos no regoztpr pelo facto de essa psicologia poder um dia ser formulada
mana, no wakan, na orem/a e em outras noções do mesmo tipo, a como ~una psicologia de outro modo intelectualista, expressão
expressão consciente de umafunçiio semântica, cujo papel consiste cm generalizada <las leis do pensamento humano, cujas manifestações
permitir ao pensamento simbólico exercer-se apesar da contradição particulares, cm contextos sociológicos difcrcnlcs, não passam de
que lhe é própria. Assim se explicam as antinomias, aparentemente
insolúveis, ligadas a esta noção, que tanto tocaram os etnógrafos e que « (1
4
) Os li,n~uistas fo~am já levados a formular hipóteses <leste tipo. Assim:

Mauss trouxe à luz: força e acção; qualidade e estado; substantivo, ~m foncm.t, zero ... opoe-se a tod(~S ~s ou!~os fonemas da língua pelo facto de
adjectivo e verbo ao mesmo tempo; abstracto e concreto; omnipresente !MO cornportdr nenhuma caractenst1ca diferencial e nenhum valor fonéti
~on?ai~tc. Inversamente, o fonema zero tem por função própria opor-see~
e localizada. E, com efeito, o mana é tudo isso ao mesmo tempo; mas, <1usenc1~ de fonema.)) R. JAKOBSON e J. LOTZ, <<Notes 011 thc French
precisamente, não é por ele não ser nada disso: simples forma, ou mais Phonern1c Pattern», Word, vol. 5, n.º 2, Agosto de 1949, Nova Iorque, 1949,
p.155.
cxactamente símbolo no estado puro, portanto susceptível <le se
.. _Pod_eri~ diz~r-se, de fr~rm~ semelhante, esquematizando a concepção que
carregar de qualquer conteúdo simbólico? Neste sistema de símbolos
foi ~ª(Jl~I p1op~>sta, que a tunçao das noç()cs de tipo mmw é a de se opor à
que constituem qualquer cosmologia, seria simplesmente um valor aus~ncia de significação sem comportar por si mesma qualquer sig.nific-iç1~
particular. ' '-
44
45
INTRODUÇÃO

DA DÁDIVA, E EM PARTICULAR
DA OBRIGAÇÃO DE RETRIBUIR OS PRESENTES

Epígrafe

Eis algumas estrofes do Havamâl, um dos velhos poemas da Eda


escandinava ('). Elas podem servir de epígrafe a este trabalho, de tal
modo colocam o leitor directamentc na atmosfera de ideias e de factos
onde se vai movimentar a nossa dcmonstração(2).

39 Nunca encontrei homem mais generoso


nem filo pródigo a alimentar seus hóspedes
que «receber mio tenha sido recebido»,
nenz homem tüo ... [falta o adjectivoj
do seu bem
que receber ern retomo lhe fosse desagradâve/(3).

(') Foi CASSEL que nos colocou na pista deste texto, Theory of Social
Economy, vol. II, p. 345. Os eruditos escandinavos estão familiarizados com
este traço da sua antiguidade nacional. [Eda poético que a par do füla em prosa
reúnem as tradições mitológicas e lendárias dos antigos povos escandinavos.
(N. do Ed.)l
(1) Traduzido da versão francesa feita por Mauricc Cahen.
C) A estrofe é obscura, sobretudo porque falta o adjectivo no verso 4, mas
o sentido é claro quando se substitui, como vulgarmente se foz, uma palavra
que quer dizer liberal, gastador. O verso 3 é igualmente difícil. Cassei traduz:
«que não receba o que lhe oferecem». A tradução de Cahen, pelo contrário, é
literal. «A expressão é ambígua», diz-nos ele, «uns compreendem: "que
receber não lhe fosse agradável", outros interpretam: "que receber um presente
não implicasse a obrigação de o retribuir", Inclino-me naturalmente para a
segunda explicação.» Apesar da nossa incompetência cm nórdico antigo,
permitimo-nos uma outra interpretação. A expressão corresponde evidente-
mente a um velho centão que devia ser qualquer coisa como «recevoir est
reçu»(receber é recebido). Admitido isto, o verso Faria alusão a esse estado de
espírito cm que estão o visitante e o visitado. Cada um deles é suposto oferecer

49
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA DA DÁDIVA E DA OBRIGAÇÃO DE RETRIIJUIR OS PRESENTES

41 Com armas e com roupas 46 Do mesmo modo, àquele


devem os amigos agraciar-se; em quem ,u1o tens confiança
cada um o sabe por si próprio fpelas suas próprias experiências]. e de cujos sentimentos suspeitas,
Os que trocam preset1tes mutuamente é necessário sorrir-lhe
silo amigos todo o tempo, mas falar constrangido:
se as coisas forem bem encaminhadas. os presentes dados devem ser semelhantes aos recebidos.

42 Deve-se ser amigo 48 Os homens generosos e valorosos


do amigo têm a melhor das vidas;
e dar presente por presente; nâo têm qualquer receio.
deve-se ter Mas um poltrclO tem medo de tudo;
riso por riso o avarento tem sempre medo dos presentes.
e dolo por mentira.
E pode também assinalar~sc a estrofe 145:
43 Sabe-lo, se tens um amigo
em quem confias 145 Vale mais não rezar (pedir)
e se queres obter um bom resultado, do que muito sacrificar (aos deuses):
é necessário juntar a tua alma à sua Urn presente dado e.\J)era sempre um em retorno.
e trocar os presentes É melhor nâo fazer ofertas
e visitá-lo com frequência. do que gastar muito com elas.

44 Mas se tens outro


do qual desconfias
e se queres chegar a um bom resultado,
é necessário dizer-lhe palavras bonitas
Programa
mas ter pensamentos falsos
e trocar dolo por mentira.
Estamos a ver o tema. Na civilização escandinava e em bom
a sua hospitalidade ou os seus presentes como se eles nunca devessem ser.lhe número de outras, as trocas e os contratos fazem-se sob a forma de
retribuídos. Entretanto, cada um deles aceita, de qualquer modo, os presentes presentes, em teoria voluntários, na realidade obrigaloriamcntc dados
do visitante ou as contraprestações do hóspede, porque se trata de bens e e retribuídos.
também de um modo de fortificar o contrato, de que são parte integrante.
Parece-nos até possível distinguir nestas estrofes uma parte mais antiga. A Este trabalho é um fragmento de estudos mais vastos. Desde há anos
estrutura de todas é a mesma, curiosa e clara. Em cada uma delas há um centão que a nossa atenção se debruça ao mesmo tempo sobre o regime do
jurídico que forma centro: «que receber não seja recebido» (39), «aqueles que direito contratual e sobre o sistema das prestações económicas entre as
trocam presentes são amigos» (41), «trocar presente por presente» (42),
diversas secções ou subgrupos de que se compõem as sociedades ditas
«deves juntar a tua alma à sua e trocar os presentes» (44 ), «o avaro tem sempre
medo dos presentes>:- (48), <ipresente <lado espera sempre um presente de primitivas e também aquelas que poderíamos dizer arcaicas. Há aqui
volta>> (145), etc. É uma verdadeira colecção de adágios. Este provérbio ou todo um enom1e conjunto de factos. E eles próprios são muito
regra é envolvido por um comentário que o desenvolve. Debatemo-nos, pois, complexos. Tudo neles se mistura, tudo o que constitui a vida
aqui, não apenas com uma muito antiga forma de direito, mas até com uma
muito antiga forma de literatura. propriamente social das sociedades que precederam as nossas - até às

50 51
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA DA DÁDIVA E DA OBRIGAÇÁO DE RETRIBUIR OS PRESENTES

da proto-história. Nestes fenómenos sociais «totais», como propomos mercado é um fenómeno humano, que, cm nossa opinião, não é
chamar-lhes, exprimem-se ao mesmo tempo, e de uma só vez, todas as estranho a nenhuma sociedade conhecida - mas cujo regime de troca é
espécies de instituições: religiosas, jurídicas e morais - e estas políticas diferente do nosso. Veremos aí o mercado antes da instituição dos
e familiares ao mesmo tempo; económicas - e estas supõem formas mercadores e antes da sua principal invenção, a moeda propriamente
particulares da produção e do consumo, ou antes, da prestação e da dita; como ele funcionava antes de terem sido encontradas as formas,
distribuição; sem contar os fenómenos estéticos a que estes factos vão pode dizer-se modernas (semita, helénica, helenística e romana) do
dar e os fenómenos morfológicos que manifestam estas instituições. contrato e da venda, por um lado, e a moeda legal, por outro. Veremos
De todos estes temas muito complexos e desta multiplicidade de a moral e a economia que agem nestas transacções.
coisas sociai's em movimento, não queremos aqui considerar senão um E como verificaremos que esta moral e esta economia funcionam
dos aspectos, profundo mas isolado: o carácter voluntário, por assim ainda nas nossas sociedades de maneira constante e por assim dizer
dizer, aparentemente livre e gratuito. e todavia forçado e interessado subjacente, e como cremos ter encontrado aqui um dos pilares sobre os
por essas prestações. Elas revestiram quase sempre a forma do quais estão construídas as nossas sociedades, poderemos a partir daí
presente. da prenda oferecida generosamente mesmo quando, nesse deduzir algumas conclusões morais sobre determinados problemas
gesto que acompanha a transacção, não há senão ficção, formalismo e colocados pela crise do nosso direito e da nossa economia, e ficaremos
mentira social, e quando há, no fundo, obrigação e interesse por ai. Esta página de história social, de sociologia teórica, de
económico. Além disso, ainda que indiquemos com precisão todos os conclusões de moral, de prática política e económica, não nos leva, no
diversos princípios que deram este aspecto a uma forma necessária da fundo, senão a colocar urna vez mais, sob novas formas, velhas mas
troca - isto é, da própria divisão do trabalho social -, de todos esses sempre novas questõcs(4).
princípios, não estudamos a fundo senão um deles. Qual é a regra de
direito e de interesse que, nas sociedades de tipo atrasado ou arcaico,
faz com que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Método seguido
Que força existe na coisa que se dú que faz com que o donatário a
retribua? Eis o problema a que mais especialmente nos consagramos, Seguimos um método de comparação rigorosa. Em primeiro lugar,
sem deixar de indicar os outros. Esperamos dar, através de um número como sempre, apenas estudamos o nosso tema em áreas determinadas
bastante grande de factos, uma resposta a esta questão precisa e e escolhidas: Polinésia, Melanésia, Noroeste americano, e alguns
mostrar em que direcção se pode desenvolver todo um estudo das grandes direitos. Depois, naturalmente, escolhemos apenas o direito no
questões conexas. Ver-se-á também a que novos problemas somos qual, graças aos documentos e ao trabalho filológico, tínhamos acesso
conduzidos dizendo uns respeito a uma forma permanente <la moral à consciência das próprias sociedades, pois trata-se aqui de vocábulos
contratual, a saber: o modo como o direito real pcnnanece ainda hoje e de noções; isto restringia ainda o campo das nossas comparações.
ligado ao direito pessoal; outros dizendo respeito às formas e às ideias Enfim, cada estudo incidiu sobre sistemas que nos obrigamos a
que sempre presidiram, pelo menos cm parte, à troca e que, ainda descrever, uns após outros, na sua integridade; renunciamos, pois, a
agora, substituem parcialmente a noção de interesse individual.
Alcançaremos, assim, um duplo objectivo. Por um lado, (4) Não pude consultar BURCKHARD, Zum Begriff der Schenkung, pp. 53
chegaremos a conclusões de certo modo arqueológicas acerca da e segs. Mas, no que diz respeito ao direito anglo-saxónico, o facto sobre o qual
nos vamos debruçar foi muito sentido por POLLOCK e MAITLAND, flistory
natureza das transacções humanas nas sociedades que nos rodeiam ou
of English Law, t. II, p. 82: «The wide word gift, which will cover sale,
que imediatamente nos precederam. Procederemos à descrição dos exchange, gage and lease.» Cf ibid., p. 12; ibid., pp. 212-214: «Não há dádiva
fenómenos de troca e de contrato nessas sociedades que não estão gratuita que tenha força de lei».
privadas de mercados económicos como se pretendeu - porque o Ver também toda a dissertação <lc Neubecker, a propósito do dote
germânico, Die Mitgift, 1909, pp. 65 e scgs.

52 53
DA DÁDIVA E DA OBRIGAÇÃO DE RETRIBUIR OS PRESENTES
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA

Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, não se


essa comparação constante cm que tudo se mistura e em que as
observam nunca, por assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas e
instituições perdem toda a cor local, e os documentos o seu sabor(5).
de produtos no decurso de um mercado passado entre os indivíduos. Em
primeiro lugar, não se trata de indivíduos, trata-se de colectividadcs que
Prestação. Dádiva e potlatch se obrigam mutuamente, trocam e contratam (9); as pessoas presentes ao
contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias, que se atacam e se
O presente trabalho faz parte <la série de investigações que opõem, quer cm grupos desafiando-se directamente, quer por intermédio
cfectuamos desde há muito, Davy e eu, acerca das formas arcaicas do dos seus chefes, quer de ambas estas duas maneiras simultaneamcntc(1º).
contr;to(1'). É necessário um resumo das mesmas. Além disso, o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas,
móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de mais,
* amabilidades, festins, ritos, serviços militares, mulheres, crianças,
* * danças, festas, feiras cujo mercado não é senão um dos seus momentos
e em que a circulação das tiquezas mais não é do que um dos termos <lc
Não parece ter alguma vez existido, nem até a uma época bastante um contrato muito mais geral e muito mais permanente. Enfim, estas
próxima de nós, nem nas sociedades que costumamos confundir, muito
C) Depois dos nossos últimos trabalhos publicados, observ..ímos, na
mal, sob o nome de primitivas ou inferiores, nada que se assemelhasse
Austrália, um princípio de prestação regulada entre tribos, e nüo já somente
àquilo a que se chama a Economia natura1(7). Por uma estranha mas entre clãs e irmandades, sobretudo por ocasião de morte. Entre os Kakadu, do
clássica aberração, escolhia-se mesmo para dar o tipo dessa economia território norte, há uma terceira cerimónia funerária depois do segundo
os textos de Cook respeitantes à paga e à troca entre os Polinésios(H). enterro. Durante essa cerimónia, os homens procedem a uma espécie de
inquérito judiciário para determinar, pelo menos ficticiamente, quem foi o
Ora, são esses mesmos Polinésios que vamos estudar aqui e cm relação autor da morte por feitiço. Mas, contrariamente ao que acontece na maior parte
aos quais veremos quanto estão afastados, cm matéria de direito e de das tribos australianas, nenhuma vingança é exercida. Os homens conlentam-
economia, do estado natural. se em juntar as suas lanças e em definir o que hão-de pedir em troca. No dia
seguinte, essas lanças são levadas para uma outra tribo, os Umoriu, por
exemplo, no campo <los quais se compreende perfeitamente o objectivo de tal
C) As notas e tudo o que aparece cm tipo menor só são indispensáveis aos
envio. Aí as lanças são dispostas em molhos conforme os seus proprietários. E
especialistas. conforme uma tarifa previamente conhecida, os objectos desejados são
( 6 ) DAVY, «Foi jurée>> (Travaux de l'Année Sociologique, 1922); ver
colocados diante desses molhos. Em seguida todos eles são restituídos aos
indicações bibliográficas cm Mauss, «Une forme archarquc de contrat chez les
Kakadu (BALDWIN SPENCER, Tribes of the Northern Territoty, 1914, p.
Thraces», Revue des Etudes Grecques, 1921; R. LENOIR, «L'lnstilUtion du
247), Sir Baldwin menciona que esses objectos poderão ser novamente
Potlatch», Revue Philosophique, 1924. . trocados contra lanças, facto que não entendemos muito bem. Inversamente,
(') M. E SOMLO, Der Güterwerkehr in der Urgesellsclwft (lnstltut
acha difícil compreender a conexão entre esses funerais e essas trocas, e
Solvay, 1909), deu destes factos uma boa discussüo e um apanhado cm que, p.
acrescenta que «os nativos não têm ideia disso». O uso é, no entanto,
156, começa a entrar na via que nós próprios vamos seguir. ~ .
perfeitamente compreensível: é de algum modo uma composição jurídica
e) GRIERSON, Silent 'frad<\ 1903, forneceu já os argumentos neccssanos
regular, substituindo a vingança, e servindo <lc origem a um mercado
para acabar com esse preconceito. Também VON MOSZKOWSKY, ¼mi
intertribal. Esta troca de coisas é ao mesmo tempo troca de testemunhos de paz
Wirtschaftsleben der primitiven Viilker, 1911; mas ele considera o roubo como
e de solidariedade no luto, tal como tem vulgarmente lugar na Austrülia, entre
primitivo e confunde, cm suma, o direito de tomar com o roubo.
clãs de famílias associadas e aliadas por casamento. A única diferença é que
Encontraremos uma boa exposição dos factos Maorl cm W. VON BRUN,
desta vez o uso se tornou intertribal.
Wirtschafts orga11isation der Maori (Beil1: DE LAMPRECHT, 18), Leipzig,
Cº) Toda a passagem se ressente ainda do estado de direito que vamos
1912 onde há um capítulo consagrado à troca. O mais recente trabalho de
descrever. Os temas da oferta, da riqueza, do casamento, da honra, do favor,
conjt;nto sohrc a economia dos povos ditos primitivos é: KOPPERS,
da aliança, da refeição em comum e da bebida dedicada, mesmo o do ciúme
"Ethnologische Wirtschaftsordnung", Anthropos, 1915-1916,_ pp. 611 a 651,
que excita o casamento, todos aí estão representados por palavras expressivas
pp. 97 l a 1079; bom sobretudo pela exposição das doutrinas; um pouco
e dignas de comentários.
dialéctico quanto ao resto.
55
54
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA DA DÁDIVA E DA OBRIGAÇÃO DE RETRIBUIR OS PRESENTES

prestações e contraprcstaçõcs embrenham-se sob urna forma preferen- o seu Inverno numa festa perpétua: banquetes, feiras e mercados, que
cialmente voluntária, através de presentes, de prendas, se bem que são simultaneamente a assembleia solene da tribo. Esta aparece-nos
sejam, no fundo, rigorosamente obrigatórias sob pena de guerra privada arrumada segundo as suas confrarias hierárquicas, as suas sociedades
ou pública. Propusemos chamar a tudo isto o sistema das prestaçôes secretas, frequentemente confundidas com as primeiras e com os clãs;
totais. O tipo mais puro destas instituições parece-nos ser representado e tudo, clãs, casamentos, iniciações, sessões de xamanismo e do culto
pela aliança das duas irmandades nas tribos australianas ou norte- dos grandes deuses, dos tótens ou dos antepassados colectivos ou
-americanas em geral, em que os ritos, os casamentos, a sucessão de individuais do clã, tudo se mistura num inextricável entrelaçado de
bens, os laços de direito e de interesse, fileiras militares e sacerdotais, ritos, de prestações jurídicas e económicas, de fixações de alas
tudo é complementar e supõe a colaboração das duas metades da tribo. políticas na sociedade dos homens. na tribo e nas confederações de
1
Por exemplo, os jogos são muito particularmente regidos por clas(1 ). Os tribos e mesmo internacionalmcntc(1 4). Mas o que é notável nestas
Tlingit e os Hai"da, duas tribos do Noroeste americano, exprimem tribos é o princípio da rivalidade e do antagonismo que domina todas
fortemente a natureza destas práticas dizendo que «as duas irmandades essas práticas. Vai-se até à batalha, até ao assassínio dos chefes e
se respeitam uma à outra»C 2). nobres que assim se enfrentam. Vai-se, por outro lado, até à destruição
Mas, nestas duas últimas tribos do Noroeste americano e em toda puramente sumptuária('") das riquezas acumuladas, para eclipsar o
esta região, aparece uma forma, típica sem dúvida, mas evoluída e chefe rival e, ao mesmo tempo, associado (geralmente avô, sogro ou
relativamente rara, dessas prestações totais. Propusemos chamar-lhe genro). Há prestação total no sentido cm que é realmente todo o clã
potlatch, como fazem aliás os autores americanos ao servirem-se do que contrata por todos, para tudo o que ele possui e para tudo o que ele
nome chinook que se tomou parte da linguagem corrente dos brancos faz, por intermédio do seu chefc(1 6). Mas esta prestação reveste, da
e dos índios de Vancôver, no Alasca. «Potlatch» quer dizer parte do chefe, um comportamento agonístico muito marcado. Ela é
essencialmente «alimentar>->, <sconsumir»(1.1). Estas tribos, muito ricas, essencialmente usurária e sumptuária, e assiste-se, antes de mais, a
que vivem nas ilhas ou na costa ou entre as Rochosas e a costa, passam uma luta dos nobres para assegurarem entre si uma hierarquia de que
posteriormente aproveitará o seu clã.
( 11 ) V. cm particular as notáveis regras do jogo de péla entre os Omaha.
Propomos reservar o nome de potlatch para este género de institui-
Alice FLETCHER e LA FLESCHE, «Omaha Tribe>), Anmwl Report of the
Bureau of American Anthropology, 1905-1906, XXVII, pp. 197 e 366. ção, que se poderia, com menos perigo e mais precisão, mas também
(1 1 ) KRAUSE, Tlinkit Indianer, pp. 234 e scgs., viu bem esse carácter das mais longamente, chamar: prestações totais de tipo agonístico.
festas e ritos e contratos que descreve, sem lhes <lar o nome de potlatc!1.
BOURSIN, in POR.TER, «Report on thc Population, etc., of Alaska», m
4
Eleventh Census (1900), pp. 54-66, e PORTER, ibid., p. 33, viram bem ess~ (1 ) O lado jurídico do potlatch é aquele que es!udaram ADAM, nos seus

carácter de glorificação recíproca do potlatch, desta vez nomeado. tv,ta~ Íl~l artigos da 7_.,eitsclu: f vergleích. Rechtswissenschajt, 1911 e segs., e Fcstschrift
SWANTON que melhor o marcou: <<Social Conditions, etc., of lhe fl111g1t em Scler, 1920, e DAVY na sua Foijurée. Os lados religioso e económico não
Jn<lians», Ann. Rep. of the Burecm ofAmer. Etlm., I 905, XXVI, p. 345, ele. Cf. são menos essenciais e não devem ser trata<los com menor profundidade. A
as nossas observações, Ann. Soe., L XI, p. 207, e DAVY, Foi jurée, p. 172. natureza religiosa das pessoas implicadas e das coisas trocadas e destruídas
(1 1) Sobre o sentido da palavra potlatch, v. BARBEAU, Hulletin de la não são, com efeito, mais indiferentes à própria natureza dos contratos do que
Société de Géogmphie de Québec, 1911; DAYY, p. 162. Entretanto, não nos os valores que lhes estão destinados.
parece que o sentido da palavra seja original. Com efeito, BO0-S indica qu_e a ('') Os Ha"ida dizem «matan) a riqueza.
6
palavra potlatch, cm Kwakiutl, é verdadeira e não o é, cm Chmook, o sentido (1 ) V. os documentos de Hunt em BOAS, «Ethnology of the Kwakiutl»,
de Feeder, alimentador, e literalmente «place of being saciated», lugar onde XXXVth Annual Rep. of the Bureau of American Ethn., t. II, p. 1340, onde se
nos saciamos. Kwakiutl Texts, segunda série, Jesup Expedit., voL X, p. 43, n.º 2; encontrará uma interessante descrição do modo como o clã dá as suas
cf ibid., vol. IH, p. 255, p. 517, s. v. POL Mas os dois sentidos de potl~tlch - contribuições ao chefe para o potlatch, e lengalengas muito interessantes. O
dádiva e alimento -- não são exclusivos, sendo aqui a forma essencial da chefe diz principalmente: «Porque não será em meu nome. Será cm vosso
prestação alimentar, pelo menos cm teoria. Sobre estes sentidos, v. mais nome e vós tornar~vos-eis famosos entre as tribos quando se disser que v6s
adiante, capítulo l. dais a vossa propriedade para um potlatclu> (p. 1342, 1. 3 l e scgs.)

56 57
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA CAPÍTULO I

Até aqui, poucos exemplos encontramos desta instituição, a não ser AS DÁDIVAS TROCADAS
nas tribos do Noroeste americano e nas de uma parte do Norte E A OBRIGAÇÃO DE AS RETRIBUIR
americano(l 1 ), na Melanésía e na Papuásia('~). Um pouco por toda a (POLINf:SIA)
parte, na África, na Polinésia e na Malásia, na América do Sul, no resto
da América do Norte, o fundamento das trocas entre os clãs e as
famílias parecia-nos ser do tipo mais elementar da prestação total.
Entretanto, investigações mais aprofundadas fazem aparecer agora um
número bastante considerável de formas intermediárias entre essas
trocas de rivalidade exasperada, de destruição de riquezas como as do l
Noroeste americano e da Melanésia, e outras, de imolação mais
moderada, cm que os contratantes rivalizam com presentes: assim PRESTAÇÃO TOTAL, BENS UTERINOS
como nós rivalizamos nas nossas consoadas, nos nossos festins, nas CONTRA BENS MASCULINOS (SAMOA)
nossas núpcias, nos nossos simples convites e nos sentimos ainda
obrigados aos nossos revanchieren(l 9 ), como dizem os Alemães.
Observámos formas intermediárias deste tipo no mundo indo-europeu
antigo, sobretudo entre os Trácios(211). Nestas investigações acerca da extensão do sistema elas dádivas
Diversos temas ~ regras e ideias ~ estão contidos nesse tipo de contratuais, pareceu durante nmito tempo que não havia porlatch
direito e de economia. O mais importante, entre estes mecanismos propriamente dito na Polinésia. As sociedades polinésias cujas
espirituais, é evidentemente aquele que obriga a retribuir o presente instituições dele mais se aproximavam não pareciam ultrapassa;· o
recebido. Ora, cm parte alguma a razão moral e religiosa deste sistema das «prestações totais», dos contratos perpétuos entre clãs,
constrangimento é mais aparente do que na Polinésia. Estudemo-la reunindo as suas mulheres, os seus homens, as suas crianças, os seus
particularmente, e veremos claramente que força faz com que se ritos, etc. Os factos que então estudámos, sobretudo cm Samoa o
retribua uma coisa recebida, e cm geral se executem os contratos reais. notável uso das trocas de esteiras brasonadas entre chefes por altura 'do
casamento, não nos pareciam acima deste nívcl(1). Os elementos
rivalidade, destruição, combate pareciam faltar, enquanto na
Mclanésia não faltam. Afinal, havia uma grande escassez de factos.
Seríamos menos críticos agora.
Em primeiro lugar, esse sistema de prendas contratuais cm Samoa
estende-se muito para lá do casamento; eles acompanham os seguintes
C') O domínio do potlatch ullrapassa, com efeito, os limites das tribos do
Noroeste. Sobretudo, lul que considerar o «asking Festival» dos Esquimós do acontecimentos: nascimento de urna criança(2), circuncísão(3),
Alasca como algo diferente de um empréstimo às tribos índias vizinhas: v. doença(4), puberdade da rapariga(5), ritos funeráriose'), comércio(1).
mais adiante, capítulo I, rL 45.
8
(' ) V. as nosf;aS observações cm Ann. Soe., l. XI, p. lül, e L XII, pp . .172-
C) DAVY, Foijurée, p. 140, estudou essns trocas a propósito do ca.s,1 mcnto
-374, e Anthropologie, 1920 (Actas das sessões do Tnstitut Français e das ~uas relações com o contrato. Veremos que elas possuem uma outra
d' Anthropologie). LENOIR assinalou dois factos bastante nítidos de potlatch cxtcnsao.
na América do Sul (~iExpéúitions maritimcs en MélanésiC)), in A11thropo/ogie, (1) TURNER, Nineteen years in Polynesia, p. 178; Samoa, pp. 82 e segs.;
Scpt. 1924). STAIR, Ofd Samoa, p. 175.
C9 ) TIIURNWALD, Forsc!wngen ai{{ den Salomo lnseln, 1912, tomo III, (-1) KRÃMER, Samoa lnseln, t. II, pp. 52-63.
p. 8, emprega a palavra. (') STAIR, Old Samoa, p. 180; TURNER, Nincteen vears, p. 225; Samoa,
Cº) Rev. des Et. Grecques, t. XXXIV, l 92 L p. 142. .

58 59
AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE AS RETRIBUIR
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA

Em seguida, dois elementos essenciais do potlatch propriamente própria chamada um tonga, um bem uterino(1 1). Ora, ela é «o canal
dito são nitidamente atestados: o da honra, o do prestígio, o do «mana» pelo qual os bens de natureza indígena(1 2), os tonga, continuam a
que confere a riqucza(8), e o da obrigação absoluta de retribuir essas passar da família da criança para esta família. Por outro lado, a criança
dádivas sob pena de perder esse «mana», essa autoridade, esse talismã, é, para ~s seus pais, o meio de obter bens de natureza estrangeira (oloa)
essa fonte de riqueza que é a própria autoridade("). dos pais que a adoptaram, e isso durante toda a vida da criança».
Por um lado, Turner no-lo diz: «depois das festas do nascimento, « ... Esta privação {dos bens naturais] cria uma facilidade sistemática

depois de ter recebido e retribuído os oloa e os longa - dito de outra de tráfcg? entre bens indígenas e estrangeiros.» Em suma, a criança,
maneira, os bens masculinos e os bens femininos - não ficavam, o bem utcrmo, é o meio pelo qual os bens da família uterina se trocam
marido e a mulher, mais ricos do que antes. Mas tinham a satisfação de pelos da família masculina. E basta observar que, vivendo cm casa do
terem visto o que consideravam uma grande honra: massas de seu tio uterino, ela tem evidentemente um direito de aí viver, e
propriedades juntas pela altura do nascimento do seu filho.»(1°) Por consequent~mente um direito geral sobre as suas propriedades, para
outro lado, essas dádivas podem ser obrigatórias, permanentes, sem q~e. esse sistema de <<fosteragc» apareça como muito próximo do
outra contraprestação que não seja o estado de direito que as abrange. dlfett? geral reconhecido ao sobrinho uterino sobre as propriedades do
Assim, a criança que a irmã, e consequentemente o cunhado, tio seu tio em país melanésio(u). Só falta o tema da rivalidade, do
uterino, recebem para ser educada, do seu irmão e cunhado é ela combate, da destruição, para que haja potlatch.
Mas observemos os dois termos: oloa, tonga; ou antes, retenhamos
C) Turner, Nineteen years, p. 184; Samoa, p. 91.
o segundo. Eles designam um dos parafcrnais permanentes, sobretudo
(") KRÀMER, Samoa Inscln, t. II, p. 105; TURNER, Samoa, p. 146.
C) KRÀMER, Samoa Inseln, L TI, p. 96 e p. 363. A expedição comercial, as esteiras de casarncnto(1·1), que herdam as filhas saídas do dito
o «nwlagm> (cf. «walaga)), Nova Guiné), est.í com efeito muito perto do casamento, as decorações, os talismãs, que entram através da mulher
potlatch que, esse, é característico das expedições no arquipélago mclanésio na família fundada de novo, como carga de rctorno(1 5); são, cm suma,
vizinho. Krfüncr emprega a palavra «Gegcngeschenk» para a troca dos «oloa»
contra os «longa» de que vamos falar. De resto, se não há que cair nos es~écíes de imóveis por destino. Os oloa(l 6 ) designam, em suma,
exageros dos etnógrafos ingleses da escola de Rivcrs e de Elliot Smith, nem obJectos, instrumentos na sua maior parte, que são especificamente
nas dos etnógrafos americanos que, no seguimento de Boas, vêem em todo o
sistema do potlatch americano uma série de empréstimos, há todavia que 1
atribuir à viagem das instituições uma larga parte; especialmente neste caso, C ) TURNER, Nineteen years, p. 178; Samoa, p. 83, chama ao homem
onde um comércio considerável, de ilha em ilha, de porto cm porto, a «adoptado». Eng~~a~se. O uso é exactamcnte o do <ifosterage», da educação
distâncias enormes, desde tempos muito recuados, deve ter veiculado não dad:1 :ora da fam1ha _natal ~c?m est.a precisão de que este <1osterage}) é uma
apenas as coisas, mas também o modo de as trocar. Malinowski, nos trabalhos esp~c.te de .regresso a familia utenna, uma vez que a criança é educada na
que citamos mais adiante, teve o justo sentimento deste facto. V. um estudo fam,ha ~da m~ã de seu pai, na realidade em casa do seu tio uterino, esposo
sobre algumas dessas instituições (Mclanésia Noroeste) cm R. LENOIR, desta. E preclS(~ não~ c~quecc: que na Polinésia estamos cm país de duplo
«Expéditions maritimcs en Mélanésic)>, Anthropologie, Setembro de l 924. parentesco class1ficatono: utenno e masculino, v. o nosso relatório do trabalho
C) A imolação entre clãs maori é cm todo o caso mencionada com bastante de Elsdo~1 BEST, «Maori Nomenclature», Ann. Soe., t. VII, p. 420, e as
frequência, sobretudo a propósito das festas, ex. S. P. SMlTH, Joumal of thc obscrvaçoes de DURKHEIM, Ann. Soe., t. V, p. 37.
Polynesian Society (doravante citado como JPS), XV, p. 87, e também p. 59, (1 1) TURNER, Nineteen years, p. 178; Samoa, p. 83.
n. 4. , (º) V. as nossas observações sobre o vasu das Fiji, in «ProcCs-verb. de
(9) A razão pela qual não dizemos que há, neste caso, potlatch l l.F.A.», em Anthmpologie, 1921.
propriamente dito é a falta de carácter usurário da contraprestação. Entretanto, <;? K~ÀMER, Samoa lnseln, s. v. toga, t. I, p. 482; t. II, p. 90.
como haveremos de ver, em direito maori, o facto de não retribuir implica a () lb1~/., t. II, p. 296; cf. p. 90 (toga =Mitgift); p. 94, troca dos oloa pelos toga.
perda do «mana», da «face,>, como dizem os Chineses; e, em Samoa, é ( ) lhul., t. I, P· 477. VIOLEITE, Dictionnaire Samoan-Français, s. v.
necessário, sob a mesma pena. dar e retribuir. <:toga» dc0ne: «nquezas <la região constituídas por esteiras finas e oloa,
(1°) TURNER, Nineteen years, p. 178; Samoa, p. 52. Este tema <la ruína e nquezas tais como cas~s, embarcações, tecidos, espingardas» (p. 194, col. 2);
da honra é fundamental no potlatch noroeste americano, v. ex. in PORTER, e remet.e para oa, nquezas, bens, que compreende todos os artigos
estrangeiros.
11 th Census, p. 34.

60 61
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE AS RETRlllUIR

aqueles que pertencem ao marido; são essencialmente móveis. Por iss? II


7
se aplica agora este termo às coisas provenientes dos brancos(' ). E
O ESPÍRITO DA COISA DADA (MAORI)
evidentemente uma extensão recente de sentido. E podemos
negligenciar esta tradução de Turner: <<Oloa-foreign»; «tonga-1wtive». Ora, esta observação conduz-nos a uma constatação muito
Ela é inexacta e insuficiente, se não sem interesse, pois prova que importante. Os taonga estão, pelo menos na teoria do direito e da
determinadas propriedades chamadas tanga estão mais ligadas ao religião maori, fortemente ligados à pessoa, ao clã, ao solo; eles são o
solo(' 8), ao clã, à família e à pessoa do que determinadas outras veículo do seu «mana», da sua força mágica, religiosa e espiritual.
chamadas uloa. Num provérbio, felizmente recolhido por Sir G. Grey(") e C. O.
Mas se alargarmos o nosso campo de observação, a noção de tonga Davis( 22 ), é-lhes pedido que destruam o indivíduo que os aceitou. Quer
adquire imediatamente uma outra amplitude. Ela conota em maori, cm dizer que contenham em si essa força para os casos em que o direito,
taitiano, em tongano e mangarcvano tudo quanto seja propriedade sobretudo a obrigação de retribuir, não fosse observado,
propriamente dito, tudo o que faz ser rico, poderoso, influente, tudo o O nosso malogrado amigo Hertz tinha entrevisto a ímpottância destes
que pode ser trocado, objecto de compensação(1 9 ). São exclusivamente factos; com o seu tocante desinteresse, ele tinha anotado «para Davy e
os tesouros, os talismãs, os brasões, as esteiras e ídolos sagrados, Mauss» na ficha que continha o seguinte facto( 23 ): «Eles tinham uma espécie
algumas vezes mesmo as tradições, cultos e rituais mágicos. Aqui de sentido de troca, ou antes, de dar presentes que têm de ser posterimmcnte
reencontramos essa noção de propriedade-talismã que estamos certos trocados ou retribuídos». Por exemplo, troca-se peixe seco por carne de aves (,}
é geral cm todo o mundo malaio-polinésio e mesmo em todo o conservada em gordura e por estciras{24). Tudo isto é trocado entre tribos ou ,,,....1
;;
Pacífico(2º). «famílias amiga<-: sem qualquer espécie de obrigação».
Mas He11z tinha ainda anotado - e encontro-o nas suas fichas - um texto
cuja importância nos tinha escapado a ambos, pois eu conheci~o também.
A propósito do hau, do espírito das coisas e sobretudo do da floresta,
(") TURNER, Nineteen years, p. 179, cf. p. 186. TREGEAR (à palavra e da caça que ela contém, Tamati Ranaipiri, um dos melhores
toga, s. v. taonga), Maori Comparative /Jíctioncuy, p. 46~8, ~onfundc as
propriedades que têm este nome e as que tê1_n o not~c <le olo_a. E evidentemente
informadores maori de R. Elsdon Best, dá-nos completamente por acaso,
uma negligência. O Rev. ELLA, «Polynes1an natlvc clo~hmg», Jl~S, _t. IX, p. e sem qualquer prevenção, a chave do problema(25). <<Vou falar-vos do
165 descreve assim os ie tonga (esteiras): «Eram a nqueza pnnc1pal dos hau ... O hau não é o vento que sopra. De modo nenhum. Suponham que
indígenas; serviam-se delas antigamente como de um meio m~netário n_as possuem um dete1minado artigo (taonga) e que me dão esse artigo; vocês
trocas de propriedade, nos casamentos e em ocasiões de especial cort~s1~.
Guardam-se frequentemente nas famílias como "heirloms" (bens subs_litut- dão-mo sem um preço fixo(2 6). Não fazemos mercado a este propósito.
dos), e muitos <los antigos "ie" são conhecidos e mais a_ltamente ~apre,ciados Ora, cu dou esse artigo a uma terceira pessoa que, depois de passado um
como tendo pertencido a alguma família célebre», ~te. Ct. TURNER, :~imoa,
p. 120. - Todas estas expressões têm o s~u eqmvalcnte na Melanesia, na (1 1) Proverbs, p. 103.
América do Norte, no nosso folclore, como iremos ver. (1 2) Maori Mementoes, p. 21.
C~) KRÀMER, Samoa lnseln, t. II, PP- 90 93. (1.1) ln Transactions of New-Zealand /nstitute, L 1, p. 354.
C9) V. TREGEAR, Maori Comparative Dictionary, adverb. t~onga: e~) As tribos da Nova Zelândia estão teoricamente divididas, pela própria
(Taitiano), tataoa, dar propríedade, Jaataoa, compensar, dar p_ropncda<le; tradição maori, em pescadores, agricultores e caçadores, e são obrigadas a
(Marquesas) LESSON, Polynésians, t. II, p. 232, taetae; cf. tum tae-tae, trocar constantemente os seus produtos, cf. Elsdon BEST, «Forest-Lore)>,
presentes dados, «presentes, bens da sua região dados p~ra obter ben~ Transact. N.-Z. lnst., voL XLII, p. 435.
estrangeiros»; RADIGUET, /Jemiers Sauvages, p. 157. A raiz da palavra e (") lbid., p. 431.
6
tahu, etc. (1 ) A palavra hau designa, como o latim spiritus, ao mesmo tempo, o vento
(2º) V. MAUSS, «Origines de la notion de Monnaic», Ar~thropologie, l 914 e a alma, mais precisamente, pelo menos em certos casos, a alma e o poder das
(Procês-verbaux de l'I.F.A.), onde quase todos os factos cllados, excepto os coisas inanimadas e vegetais, sendo a palavra mana reservada aos homens e
factos nigritinos e americanos, pertencem a esse domínio. aos espíritos e aplicando-se às coisas menos vezes do que em melanésio.

62 63
F
l

ENSAIO SOBRE A DÁDIVA AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE AS RETRIBUIR

11
certo tempo, decide dar qualquer coisa como pagamento (utu)( ), animado pelo hau da sua floresta, do seu território, do seu solo, e1c é
presenteia-me com qualquer coisa (taonga) ..Ora, ~ssc taonga qu~ ele me verdadeiramente «nativo»(-'º): o hau persegue qualquer detentor.
dá é O espírito (hau) do taonga que cu recebi de vos e que 1hc d~1. Tenho Persegue não só o primeiro donat,frio, mesmo eventualmente um
de vos devolver os taonga que eu recebi por esses taonga \vmdos de terceiro, mas qualquer indivíduo ao qual o taonga seja simplesmente
vocês). Não seria justo (tika) da minha parte guardar esses taonga para transmitido(31). No fundo, é o hau que quer regressar ao lugar do seu
mim, sejam eles desejáveis (rawe), ou desagradáveis (kino). _Devo dar- nascimento, ao santuário da floresta e do clã e ao proprietário. É o
-vo-los porque eles são um hau(2s) do taonga que vós me haveis dado. Se taonga ou o seu hau - que, aliás, é ele próprio uma espécie de
eu conservasse esse segundo taonga para mim, poderia suceder-me mal, indivíduoC 2) - que se apega a esta série de utilizadores até que estes
seriamente, até a morte. Tal é o hau, o hau da propriedade pessoal, o hem
dos taonga, o hau da floresta. Kati ena (chega deste assunto).)) C EncontraM;c-ão no trabalho de R. Hertz os documentos sobre os mauri a que
1
)

fazemos alusão aqui. Estes mauri são simultaneamente talismãs, paládios e santuários
Este texto capital merece alguns comentários. Puramente . maori, onde reside a alma do clã, hapu, o seu mona e o hau <lo seu solo. Os documentos de
impregnado desse espírito teológico e jurídico ainda impreciso, as Eldson Best, neste ponto, necessitam de comentário e discussão, sobretudo aqueles
doutrinas da «casa dos segredos)>, mas espantosamente c_laro em que dizem respeito às notáveis expressões de hau whitia e de kai hau. As passagens
principais são «Spiritual Concepts», Joumal of thc Polynesicm Society, t. X, p. 1O
determinados momentos, não oferece senão uma obscunda~e: a (texto maori), e t. IX, p. 198. Não as podemos tratar como seria conveniente; mas eis u
intervenção de uma terceira pessoa. Mas para bem cor:iprcender o JUr~st~~ a nossa interpretação: «hau whitia, Juw desviado», diz Eldson Best, e a sua tradução
maori basta dizer: «Os taonga e todas as propriedades ngorosamente dita-. parece exacta. Porque o pecado do roubo ou o de não pagamento ou o de não
contraprestação é realmente um desvio de alma, de ha11 como nos casos (que se
pcsso:tis têm um hem, um poder espiritual. Vocês dão-me um, cu dou•o a
confundem com o roubo) de recusa de fazer um contrato ou de dar um prc~cnte:
um terceiro; este dá-me um outro, porque é forçado pelo ha~l do meu inversamente, kai lwu está ma! traduzido quando é considerado como o equivalente
presente; e cu sou obrigado a dar-vos essa coisa, porque é preciso que cu simples de hau whitia. Ele designa efcctivamcntc o acto de comer a alma e é, na
vos devolva O que é, na realidade, o produto do hau do vosso taonga.>) verdade, o sinónimo de wlwnga hcw, ef. TREGEAR, Maori Comp. Dict., s. v. kai e
whrm,;ai; mas esta equivalência não é simples. Porque o tipo presente, é o de
Interpretada deste modo, não só a ideia se tor~a clara c_omo aparece alimento, kai, e a palavra faz alusão a este sistema da comunhão alímenlar, da falta
também como uma das ideias-mestras do direito maon. ?
qu_e, no que consiste cm perrnanecer em jejum. Há mais: a palavra lwu, ela própria, entra nesta
presente recebido, trocado, obriga, é o facto de a coisa receb1d~ nao ser esfera de ideias: WILLIAMS, Maori Dict., p. 23, s.v. diz: «hem, presente oferecido
corno forma de reconhecimento por um presente recebido».
inerte. Mesmo abandonada pelo doador, é aínda qualquer co1s_a dele. 1
(1 ) Chamamos também a atenção para a notável expressão kai~lwu-kai,
Através dela, ele tem domínio sobre o beneficiário, como atraves dela; TREGEAR. M. C. D., p. l 16: «dar um presente de comida oferecido por uma tribo
proprietário, ele tem domínio sobre o ladrão(29 ). Porque o taonga esta a uma outra; festa (ilha do Sul)». Ela significa que esse presente e essa festa
retribuídos são, na realidade, a alma da primeira prestação que volta ao seu ponto
de partida: «alimento que é o luw do alimento)). Nestas instituições e nestas ideias
- (") A pahvn utu refcrc~sc à satisfação dos vingadores do sangue., das confundem-se todas as espécies de princípios que os nossos vocabulários
compensações, ' dos
' pagamentos, da responsa, b'J'd- d etc: Designa
l 1 .t e, ·- ' tambem. o europeus, pelo contrário, têm o maior cuida<lo em distinguir.
Preço.E : uma noção complexa de moral, de direito, de rehgiao_ e de economia. (1') Com efeito, os taonga parecem ser dotados <lc individuali<ladc, mesmo fora
(2ª) ,fie /um. Toda a traduçao
~ •,
destas duas frases esttt"b
a reviadporElsdon
a <lo hau que lhes confere a sua relação com o seu proprietário. Eles têm nomes.
Best; sigo-a todavia. • t , b Segundo a melhor enumeração (aquela que TRECiEAR, loc. cit., p. 360, s. v.
(29) Um grande número de factos demonstrativos f~rarn comp1lac os, so re pwwmu, extraída <los ms. de Colcnso), eles não compreendem, limitatívamcnte,
este último ponto, por R. Hertz através de um dos par_agrafos do s~u t:~balho senão as categorias seguintes: os punamu, os famosos jades, propriedade sagrada
sobre O Pecado e a E'xpiaçüo. Eles provam que a sançao do roubo e~ simples dos chefes e dos clãs, geralmente os tiki tão raros, tão individuais e tão bem
efeito mágico e religioso do mana, do poder que o proprietá~o °:ª_ntem so~~-~ esculpidos; depois, diferentes espécies de esteiras, uma das quais, brasonada sem
a coisa roubada; e que, além disso, eslá rodeada de tabus e tdentihcada pe •1; dúvida como cm Samoa, tem o nome de korowai (é a única palavra maori que nos
marcas de propriedade, está inteiramente carregada por estes de h_au, de pode faz lembrar a palavra samoana o!oa, cujo equivalente maoii procuramos cm vão).
espiritual. É esse Juzu que vinga o roubado, que se apodera d~ 1adrao, º. enc~nta Um documento maori dá o nome de taonga às Kamkia, formulas mágicas
e O conduz à morte ou O força à restituição. Encontrar-se-ao estes factos no individualmente intituladas e consideradas como talismãs pessoais transmissíveis.
livro de Hertz, nos parágrafos dedicados ao hau. Jow: Pol. Soe., t. IX, p. 126.

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ENSAIO SOBRE A DÁDIVA AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE AS RETRIBUIR

dêem dos seus próprios, dos seus taonga, das suas propriedades ou !li
então do seu trabalho ou do seu comércio pelos seus festins, festas e
OUTROS TEMAS: A OBRIGAÇÃO DE DAR,
presentes, um equivalente ou um valor superior que, por sua vez, darão
A OBRIGAÇÃO DE RECEBER
aos doadores autoridade e poder sobre o primeiro_ doador tornado
último donatário. E aqui está a ideia-mestra que parece presidir, cm Fica por compreender completamente a instituição da prestação
Samoa e na Nova Zelândia, à circulação obrigatória das riquezas, total e do pot/atch, por procurar a explicação dos dois outros
tributos e dádivas. momentos que são complementares daquele; porque a prestação total
Um facto semelhante ilumina dois sistemas importantes de não implica só a obrigação de retribuir os presentes recebidos; ela
fenômenos sociais na Polinésia e mesmo fora da Polinésia. Em supõe dois outros igualmente importantes: obrigação <le os dar, por um
primeiro lugar, percebe-se a natureza do vínculo jurídico que cria a lado, obrigação de os receber, por outro. A teoria completa dessas três
transmissão de uma coisa. Voltaremos daqui a pouco a este ponto. obrigações, desses três temas do mesmo complexo, daria a explicação
Mostraremos como estes factos podem contribuir para uma teoria geral fundamental satisfatória dessa forma do contrato entre clãs polinésios.
da obrigação. Mas, para já, é líquido que, cm direito maori, o vínculo Para já, apenas podemos indicar o modo de tratar o assunto. í,,)
de direito, ligação pelas coisas, é uma ligação de almas, porque a Encontrar-se-á facilmente um grande número de factos respeitantes u
própria coisa tem uma alma, é alma. Donde se segue que apresentar à obrigação de receber. Porque um clã, uma família, urna companhia,
qualquer coisa a alguém é apresentar qualquer coisa de si. Em seguida, um hóspede, não têm liberdade para não pedirem hospitalidadc(1 4),
damo-nos melhor conta da própria natureza ela troca por dádivas, de para não receberem presentes, para não exercerem o comércio(-1'), para ,.
tudo aquilo a que chamamos prestações totais, e, entre estas, não contraírem aliança, pelas mulheres e pelo sangue. Os Dayaks
«potlatdm. Compreende-se clara e logicamente, neste sistema de desenvolveram mesmo lodo um sistema de direito e de moral acerca
ideias, que seja necessário retribuir a outrem aquilo que é, na realidade, do dever que se tem de não deixar de partilhar a refeição a que se
parcela da sua natureza e substüm:ia; porque accilar qualquer coisa de assiste ou que se viu preparar(16 ).
alguém é aceitar qualquer coisa da sua essência espiritual, da sua alma;
C') Aqui se situaria o estudo do sistema de factos que os Maori classificam com
a conservação dessa coisa seria perigosa e mortal, e isso não apenas a palavra expressiva «desprezo de Ta/111». O documento piincipal encontra-se cm
porque seria ilícita, mas também porque essa coisa que vem da pessoa, Elsdon BEST, «Maori Mythology>>, in Jma: Pol. Soe., t. JX, p. 113. fohu é o nome
não apenas moralmente, mas física e espiritualmente, em essência, «emblemático,> da comida em geral, é a sua personificação. A expressão «Kuua e
tokahi ia Tah1N (não desprezes Tahu) emprega-se cm relação a uma pessoa que
essa comida(''), esses bens, móveis ou imóveis, essas mulheres ou
recusou comida que lhe foi apresentada. Mas o estudo dessas crenças respeitantes à
esses descendentes, esses ritos ou essas comunhões, têm poder mágico comida cm território maori levar-nos-ia muito longe. Bastará dizer que esse deus,
e religioso sobre vós. Enfim, essa coisa dada não é uma coisa inerte. essa hipótese da comida, é idêntico a Rongo, deus das plantas e da paz, e
Animada, frequentemente individualizada, ela tende a entrar naquilo a compreenderemos melhor essas associações ele ideias: hospitalidade, comida,
comunhão, paz, troca, direito.
que Hertz chamava o seu «lar de origem» ou a produzir, para o clã e o 1
(-1- ) V. Elsdon _BEST, «Spir. Cone.)), J. Pol. Soe., t. IX, p. 198.
solo donde saiu, um equivalente que a substitua. (-1") V. HARDELAND, Dayak Wôrterbuch s. v. indjok, írek, palumi, t. 1, p. 190,
p. 397 a. O estudo comparativo dessas instituições pode ser estendido a toda a região
da civilização malaia, indonésia e polinésia. A única dificuldade consiste em
r~conhecer .ª instituição. Um exemplo: é soh o nome de «comércio forçado)) que
Spencer Samt-John descreve a maneira como, no sultanato de Brunei (ao norte de
Bornéu), os nobres cobravam tributo aos Bisayas, começando por lhes dar de
presente tecidos pagos cm seguida a um falso usurário e durante muitos anos (L1fe in
the forests of the Jar East, t. II, p. 42). O erro provém dos próprios Malaios civilizados
que exploravam um costume dos seus im1ãos menos civilizados do que eles e já não
e-
1
) Elsdon BEST, Forest Lore, ibid., p. 449. os compreendiam. Não enumeraremos todos os factos indonésios deste género.

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ENSAIO SOBRE A DÁDIVA AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE AS RETRIBUIR

A obrigação <lc dar não é menos importante; o seu estudo poderia que deve todos os produtos da sua caça ao seu sogro e à sua sogra,
fazer compreender como é que os homens se tornaram trocadorcs. nada pode consumir diante deles, com o medo de que a respiração
Podemos apenas indicar alguns factos. Recusar-se a <lar(3 1 ), deles envenene o que ele comc(4 1), Vimos atrás os direitos deste género
negligenciar o convite, como recusar reccber(-1 6), equivale a declarar a que tem o sobrinho uterino (taonga) cm Samoa, e que são totalmente
guerra; é recusar a aliança e a comunhão(39). Depois, dá-se porque se é comparáveis aos que tem o sobrinho uterino (vasu) em Fiji( 42 )_
forçado a isso, porque o donatário tem uma espécie ele direito sobre Em tudo isto, há urna série de direitos e deveres de consumir e de
tudo o que pe1tcncc ao doador("'1). Essa propriedade exprime-se e retribuir, correspondendo a direitos e deveres de presentear e de
concebe-se como uma ligação espiritual. Assim, na Austrália, o genro, receber. Mas esta mistura estreita de direitos e de deveres simétricos e
contrários deixa de parecer contraditória se se conceber que existe,
(11 ) Negligenciar o convite para uma dança de guerra é utn pecado, uma
antes de mais, mistura de laços espirituais entre as coisas que
falta que, na ilha do Sul, tem o nome de rwha. H. T DE CROISILLES, <{Short pertencem, nalgum grau, à alma e os indivíduo!i e os grupos que se
Traclitions of thc South lsland», JPS, L X, p. 76 (de notar: tal111a, g1ft offood). tratam, nalgum grau, corno coisas.
O ritual de hospitalidade maorí compreende: um convite obrigatório, que
E todas estas instituições exprimem unicamente um facto, um
aquele que chega não deve recusar, mas que também não deve solicitar; deve
dirigir-se para a casa de recepção (que difere segundo as castas), sem olhar à regime social, uma mentalidade definida: é que tudo, comida,
sua volta; o seu hospedeiro deve mandar preparar-lhe uma refeição, de mulheres •. crianças, bens, talismãs, solo, trabalho, serviços, ofícios
propósito, e assistir a ela humildemente; ao partír, o estrangeiro recebe um sacerdotais e classes, é matéria de transmissão e de entrega. Tudo se
presente de mantimentos para a viagem (TREGEAR, Maori Race, p. 29), v.
rnais adiante os ritos idênticos da hospitalidade hindu. passa como se houvesse troca constante de uma matéria espiritual
(1~) Na realidade, as duas regras misturam-se indissoluvcltnente, como as compreendendo coisas e homens, entre os clãs e os indivíduos,
prestações antitéticas e simétricas que prescrevem. Um provérbio exprime essa repartidos entre as classes, os sexos e as gerações.
mistura. TAYI ,OR (Te ika a nwui, p. 132, provérbio n," 60) tradu-lo de maneira
aproximativa: «When rmv it ís seen, when cookcd, it is taken.)) «Vale mais
comer uma comida meio cozida, do que esperar que os estrangeiros cheguem,
(do que deixá-la cozer e ter de a partilhar com eles).» IV
(-")) O chefe Hekemaru (falta de Maru), segundo a lenda, recusava-se a
«aceitar a comida», except◊- quando tinha sido visto e recebido pela aldeia
estrangeira. Se o seu cortejo tivesse passado despercebido e se lhe enviassem OBSERVAÇÃO
mensageiros para lhe pedir, a ele e ao seu séquito, para retroceder e partilhar a
comida, respondia que «a comida não seguiria as suas costas». Queria ele dizer O PRESENTE FEITO AOS HOMENS
com isto que a comida oferecida «nas costas sagradas da sua cabeça» (quer
E O PRESENTE FEITO AOS DEUSES
dizer, quando ele já tinha ultrapassado as proximidades da aldeia) seria
perigosa para aqueles que lha dessem. De aí o provérbio: «A comida nüo
seguirá as costas de Hekemaru» (TREGEAR, Maori Race, p. 79). Um quarto tema desempenha um papel nesta economia e nesta
("º) Na tribo de Turhoc, comentaram a Elsdon BEST ( <,Maori Mythology», moral dos presentes, que é a prenda dada aos homens à vista dos
J PS, t. VHI, p. I 13) esses princípios de mitologia e ele direito. «Quando um
chefe de renome tem de visitar uma aldeia, "o seu mana precede-o". As pessoas deuses e da natureza. Não fizemos o estudo geral que seria necessário
da região põem-se a caçar e a pescar para terem boa comida. Não apanham 1
nada; "é que o nosso mana, que p<lrliu à frente", forneceu todos os animais, . <4 ) Ex: Arunta, Unmatjera, Kaitísh - SPENCER e GHILLEN, Northem
todos os peixes invisíveis; "o nosso mana baniu-os" ... , etc.» (Scgue--se uma Tnbes of Central Australia, p. 610.
2
explicação da geada e da neve, do Whai riri ,_ pecado contra a água - que retém <4 ) So~'.e o vasu, ver sobretudo o velho documento de WllLUAMS Fi ·i
a comida longe dos homens.) Na realidade, esse cornentúrio um pouco obscuro and the Fipans, 1858, t. I, p. 34, Cf. STEJNMETZ, Emwickelunv der S;rale
descreve o estado no qual estaria o tcnitório de um hapu de caçadores cujos • , r: .
t li p 241 e ~e.gs. E sse
, d'1reuo
· ~o sobrmho
, , corresponde
utcnno
0
apenas "ao
' •

membros não teriam feito o 11eccssário para rccchercm um chefe de um outro comunismo fam,har. ~as ele p~nmtc representar-se através de outros direitos,
clã. Eles teriam cometido um «kaipapa, urn pecado contra a comida:,,, e por exemplo, os <le pais por aliança e o que se designa cm geral por «roubo
legal».
destruído assim as suas colheitas e ca\·a e pesca, os seus próprios alimentos.

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ENSAIO SOBRE A DÁDIVA AS DÁDIVAS TROCADAS E A OIJRIGAÇÃO DE AS RETRIIlUIR

para realçar a sua importância. Além disso, os factos de que dispomos têm, mas ainda sobre a natureza. As trocas de prendas entre os homens,
não pertencem todos às áreas a que nos limitámos. Finalmente, o «name-sakes», homónimos dos espíritos, incitam os espíritos dos mortos,
elemento mitológico, que ainda não compreendemos bem, encontra-se os deuses, as coisas, os animais, a natureza, a serem «generosos para com
6
aí com muita força para que dele nos possamos abstrair. Limitamo-nos, eles»(4 ). A troca de prendas produz a abundância de riquezas, explica-se.
1
por isso, a algumas indicações. Nclson('1 ) e Po11er(48 ) deram-nos uma boa descrição dessas festas e da sua
Em todas as sociedades do Nordeste sibcriano(43 ) e entre os acção sobre os mortos, sobre os animais, cetáceos e peixes que os
Esquimós, tanto os do ocidente do Alasca(.\4) como entre os da margem Esquimós caçam e pescam. Chamam-lhes, na espécie de língua dos
asiática do estreito de Bchring, o potlatchC5) produz um efeito não só trappeurs(4 9) ingleses pelo nome expressivo «Asking Festival»('º) e
sobre os homens que rivalizam cm generosidade, não só sobre as coisas «Inviting infcstival». Elas ultrapassam geralmente os limites das aldeias
que transmitem uns aos outros e que consomem entre si, sobre as almas de Inverno. Esta acção sobre a natureza está completamente marcada
dos mortos que a ela assistem e nela tomam pmtc e cujo nome os homens num dos seus últimos trabalhos sobre os Esquirnós(5 1).

06
(4') Ver BOGORAS, «The Chukchcc» (Jesup North Pac1fic Erpedition; ( ) HALL, Life with the Esquimaux, t. II, p. 320. É extremamente notável

Mem. of the American Museum of Natural liistory, Nova Iorque, vol. VII). As que esta _expressão nos seja dada, não a propósito de observações sobre o
obrigações de dar, de receber e de retribuir prendas e hospitalidade são mais potlatch do Alasca, mas a propósito dos Esquimós do centro, que apenas
marcadas entre os Chukchee marítimos do que entre os Chukchee do Reno. V. conhecem as festas de Inverno de comunismo e de trocas de presentes. Isto prova
«Social organization», ibid., pp. 634, 637. Cf. Regra <lo sacrifício e matança que a ideia ultrapassa os limites da instituição do potlatch propriamente dito.
7
da rena. «Rcligiom,, ibid., t. II, p. 375: dever de convidar, direito de o (" ) «Eskimos about l3ehring Straits)), XVI!lth Ann. Rcp. of thc Rw: (_j'Am.
convidado pedir o que quer, obrigação sua de oferecer uma prenda. Etlm., pp. 303 e segs.
(1') O tema da obrigação de dar é profundamente esquimó. V. o nosso ('~) POR.TER, Aluskan, Xlth Census, pp. 138 e 141, e sobretudo
trabalho sobre as Variations saisonniéres dcs Sociétés eskimo, p. 121. Uma das WRANGELL, Statistisd1e Etgebnisse, etc., p. 132.
9
últimas recolhas esquimós publicadas contém ainda contos desse tipo (4 ) Caçadores que usam armadilhas. (N. do T.)
ensinando a generosidade. HAWKES, «The Labrador Eskimos>> (Cem. ('º) NELSON. Cf. «asking stick» em IIAWKES, «The Jnviting-in Feast of
Geological Survey, Anthropological Series), p. 159. the Alaskan Eskimos)), Geological Swvcy, Memória 45, Anthropological Series,
e') Considerámos ( «Variations saisonnii:res dans [es Sociétés eskimo», II, p. 7.
Année Sociologique, t. IX, p. 121) as festas dos Esquimós cio Alasca como uma C1) HAWKES, loc. cit., p. 7; p. 3; p. 9, descrição de uma dessas festas:
combinação de elementos esquimós e de empréstimos feitos ao potlatch índio Unalaklit contra Malemiut. Um dos traços mais característicos deste conjunto é
propriamente dito. Mas, desde a época em que escrevemos, o potlatch foi a série cómica ele prestações no primeíro dia e os presentes que elas implicam.
identificado, assim como o uso das prendas, entre os Chukchee e os Koryak da A tribo que con~eguir fazer rir a outra pode pedir-lhe tudo o que quiser. As
Sibéria, como iremos ver. O empréstimo pode, consequentemente, ter sido feito melhores dançannas recebem presentes de valor, pp. 12, 13, 14. E um exemplo
tanto a estes como aos índios da América. Além dísso, há que ter em conta as muito nítido e muito raro ele representações rituais (só conheço outros exemplos
belas e plausíveis hipóteses de SAUVAGEOT (Journal des Américanistcs, na Austrália e na América) de um tema que é, pelo contrário, bastante frequente
1924) sobre a origem asiática das línguas esquimós, hipóteses essas que vêm na mitologia: o cio espírito ciumento que, quando ri, larga a coisa que guarda. O
confirmar as ídeias mais constantes dos arqueólogos e dos antropólogos sobre rito do «Inviting in Festival» termina, aliás, por uma visita do angckok (xarnã)
as origens dos Esquimós e da sua civilização. Enfim, tudo demonstra que os ;:~os espíritos homens (<Ílllla)> cuja máscara transporta e que o informam de que
Esquimós do Ocidente, em vez de estarem degenerados cm relação aos do tiveram prazer nas danças e que enviarão a caça. Cf. presente dado às focas.
Oriente e do Centro, estão mais próximos, linguística e etnologicamente, da JENNES, «Lifc of the Copper Eskimos», Rep. of the Cem. Artic Erped., 1922,
origem. É o que parece estar agora provado por Thalbitzcr. Nestas condições, vol. XII, p. 178, n. 2.
há que ser mais firme e dizer que há potlatch entre os Esquimós do Oriente e Os outros temas cio direito dos presentes encontram-se igualmente muito
que esse potlatch está desde há muito estabelecido entre eles. Restam, bem desenvolvidos; por exemplo, o chefe <(ntiskuh não tem o direito de recusar
entretanto, os totem e as máscaras que são bastante especiais nessas festas do qualquer presente, ou refeição, por mais raro que seja, sob pena de ser para
Ocidente e das quais um certo número é, evidentemente, de origem índia; sempre deserdado, HAWKES, ibid., p. 9.
enfim, explica-se bastante mal o desaparecimento no oriente e no centro da Hawkes tem toda a razão cm considerar (p. 19) a festa dos Déné (Anvik)
América árctica do potlatch esquimó, desde que não seja pela diminuição das descrita por CHAPMAN (ConRr?s des Américanistes de Québec, 1907, t. II)
sociedades esquimós ~o Oriente. como um empréstimo feito pelos lndios aos Esquimós.

70 71
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE AS RETR!llU!R

Além disso, os Esquimós da Ásia inventaram uma espécie de e possuídas pelo espírito de que usam o nome: estes apenas agem, na
mecânica, uma roda guarnecida de todas as espécies de provisões, e verdade, enquanto representantes dos espíritos( 59 ), Porque, nesse caso,
transportada cm cima de uma espécie de mastro de cocanha, encimado essas trocas e esses contratos arrastam no seu turbilhão, não só os
por uma cabeça de morsa. Esta parte do mastro ultrapassa a tenda de homens e as coisas, mas também os seres sagrados que lhes estão mais
cerimónia de que é o eixo. É manobrado do interior da tenda com o ou menos associados(l'º). Este é muito claramente o caso do potlatch
auxílio de uma outra roda e é feito girar no sentido do movimento do tlingit, de uma das duas espécies de potlatch haida e do potlatch
Sol. Não se poderia exprimir melhor a conjunção de todos estes esquimó.
lemas("). A evolução era natural. Um dos primeiros grupos de seres com os
Ela é também evidente entre os Chukchcc(5') e os Koryaks do quais os homens tiveram de contratar, e que por definição estavam lá
extremo nordeste siberiano. Uns e outros têm o potlatch. Mas são os para contratar com eles, eram antes de mais os espíritos dos mortos e
Chukchce marítimos que, como os seus vizinhos Yuit esquimós dos deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das
asiáticos de que acabamos de falar, mais praticam essas trocas coisas e dos hens do mundo(l' 1). Era com eles que era mais necessário
obrigatórias e voluntárias de dádivas, de presentes, no decurso das trocar e mais perigoso não trocar. Mas, inversamente, era com eles que
longas «Thanksgiving Cerimonies»(" 1 ), cerimoniais de acções de era mais fácil e mais seguro trocar. A destruição sacrificial tem
graças que se sucedem, numerosos no Inverno, cm cada uma das casas, precisamente por objcctivo ser uma doação necessariamente
uma após outra. Os restos do sacrifício festivo são lançados ao mar ou retribuída. Todas as formas do potlatch do Noroeste americano e do
espalhados ao vento; regressam então à região de origem e levam Nordeste asiático conhecem esse tema da dcstruição( 6'). Não é apenas
consigo as peças de caça desse ano que voltarão no ano seguinte. ·'
Jochclson menciona fostas do mesmo género entre os Koryaks, mas
(5 9) Sobre o potlatch tlingit v. mais adiante, capítulo II, § III. Este carácter
não assistiu a elas, se exccptuarmos a festa da baleia. Entre estes, o é fundamental de todo o potlatch <lo Noroeste americano. No entanto, ele é aí
sistema do sacrifício aparece desenvolvido com muita nitidczC'), pouco aparente porque o ritual é demasiado totemístico para que a sua acção
sobre a natureza seja muito marcada além da sua acção sobre os espíritos. Ú
BogorasC) aproxima, com razão, tais usos da «Koliada» russa:
muito mais claro, particularmente, no potlatch que se faz entre Chukchee e '.
·I
crianças mascaradas vão de casa em casa pedir ovos, farinha, e não se
Esquimós na ilha de Saint-Lawrence, situada no estreito de Behring.
ousa recusar-lhes isso. Sabe-se que este uso é europeu(58 ). (m) V. um mito <le potlatch cm BOGORAS, Chukchee Mythology, p. 14,
As relações destes contratos e trocas entre homens e destes 1.2. Empreende-se um diálogo entre dois xamanes: «What will you answer»,
contratos e trocas entre homens e deuses iluminam um lado inteiro da quer dizer «give as return prcsent,,. Este diálogo acaba com uma luta; cm
seguida, os dois xamanes contratam entre si; troca.m entre eles a sua faca
teoria do Sacrifício. Em primeiro lugar, compreendemo-los mágica e o seu colar mágico, cm seguida o seu espírito (assistentes mágicos),
perfeitamente, sobretudo nessas sociedades cm que esses rituais finalmente o seu corpo (p. 15, l. 2). Mas não conseguem fazer perfeitamente
contratuais e económicos se praticam entre homens, mas cm que esses os seus voos e as suas aterrngcns, é que esqueceram-se de trocar as suas
pulseiras e as suas ,<tassels», «my guide in motion»: p. 16, 1. 10. Finalmente
homens são as encarnações mascaradas, frequentemente xamanísticas
conseguem dar as suas voltas. Vetnos que todas essas coisas têm o mesmo
valor espiritual do próprio espírito, .são espíritos.
61
(51) V. fig. cm Chukchee, t. Vll (II), p. 403. ( ) V. JOCHELSON, «Koryak Rcligiofü,, Jesup E>.pcd., t. VI, p. 30. Um

(") BOGORAS, ihid., pp. 399 a 401. canto kwakiutl da dança dos espíritos (xamanismo <las cerimónias de Inverno)
('') JOCHELSON, «The Koryak», Jesup North Pacijic Expediiion, t. VI, p. comenta o tema.
64.
Enviais-nos tudo do outro mundo, espíritos.' que tirais o juízo aos homens
C') !bid., p. 90.
Ouvistes dízer que tínhamos fome, espíritos!..
Ch) /bid., p. 98, «This for Thee,1.
Receberemos muito de vás!, etc.
e5·1) Chukchee, p. 400.
('~) Sobre usos deste género, v. FRAZER, Golden Boagh (3.ª ed.), t. lll, pp. BOAS, Secret Societies and Social Organization of the Kwakiutl /ndians, p. 483.
78 a 85, pp. 91 e segs.; t. X, pp. 169 e segs. (M) V. DAVY, Foijuréc, pp. 224 e segs., e mais adiante, capítulo II,§ III.

72 73
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE AS RETRlllUII{

para mostrar poder e riqueza e desinteresse que se matam escravos, preciosas para o país dos mortos(68 ), onde rivalizam cm riquezas como
que se queimam óleos preciosos, que se lançam moedas ao mar, que se rivalizam os homens vivos que regressam de um kula solene( 69 ).
lança o fogo até a casas sumptuosas. É também para sacrificar aos Van Osscnbruggen, que é não só um teórico mas também um
espíritos e aos deuses, confundidos na verdade com as suas observador distinto e que vive no próprio lugar, recolheu uma outra
encarnações vivas, os portadores dos seus títulos, os seus aliados característica dessas instituições('º). As dádivas aos homens e aos
iniciados. deuses têm também por finalidade comprar a paz com uns e outros.
Mas eis que aparece um outro tema que já não precisa desse Afastam-se assim os maus espíritos, mais geralmente as más
suporte humano e que pode ser tão antigo como o próprio potlatch: influências, mesmo as não personalizadas: porque uma maldição de
pensa~sc que é aos deuses que se deve comprar, e que os deuses sabem homem permite aos espíritos ciumentos penetrar cm vôs, matar-vos,
fazer o preço das coisas. Em nenhum outro lado, talvez, esta ideia se permite a acção das más influências, e as faltas contra os homens
expresse de uma maneira mais típica que entre os Toradja de Cclcbcs. tornam o culpado fraco em relação aos espíritos e às coisas sinistras.
Kruyt(~ 3) diz-nos «que o proprietário Jcvc aí «comprar» Jos espíritos Van Ossenhruggen interpreta assim em particular o lançar de moedas
o direito de realizar determinados actos sobre «a sua», na realidade pelo cortejo do casamento na China e mesmo o preço de compra da
sobre a «propriedade deles». Antes de cortar «a sua» madeira, antes de noiva. Sugestão interessante a partir ela qual toda uma cadeia de factos
trabalhar mesmo «a sua» terra, de plantar o poste da «sua» casa, é permanece por esclareccr(' 1).
nccessúrio pagar aos deuses. Além disso, enquanto a noção de comprar
parece muito pouco desenvolvida no costume civil e comercial dos Vemos como é possível alimentar aqui uma teoria e un1a história do
Toradja(''1), a dessa compra aos espíritos e aos deuses é, pelo contrário, sacrifício contrato. Este implica instituições do género daquelas que
perfeitamente constante. descrevemos, e, inversamente, realiza-as no mais elevado grau, porque
Malinowski, a propósito das formas de troca que vamos descrever esses deuses que dão e retribuem estão lá para dar uma coisa grande
em seguida, assinala factos do mesmo género entre os Trobriand. cm vez de uma coisa pequena. Não é talvez pelo simples efeito de um
Conjura-se um espírito mau, um «tauvaw> cujo cadáver se encontrou puro acaso que as duas formas solenes do contrato: cm latim do ut eles,
(serpente ou caranguejo da terra), apresentando a este um desses
vaw:u'a, um desses objectos preciosos, ornamento, talismã e riqueza (1'8) Um mito maori, o de Te Kwwva, GREY, Polyn. Myth., Ed. Routledgc,
ao mesmo tempo, que servem para as trocas do kula. Essa dádiva tem p. 213, conta como é que os espíritos, as fadas, tomaram a somhra dos punamu
uma acção dirccta sobre o espírito desse espírito('''). Por outro lado, por Uadcs, etc.) (aliús taonga) expostos cm sua honra. Um mito cxactam~ntc
idêntico na Mangaia, Wyatt GILL, Myths and Songs from the South Pacific,
ocasião da festa dos mila-mila(l,r'), potlatch em honra elos mortos, as
p,257, <;onta a mesma coisa sobre os colares de discos de nácar vermelho, e o
duas espécies de vaygu'a, os do kula e aqueles a que Malinowski modo corno ganharam os favores da bela Manapa.
chama pela primeira vez(6') os «vaygu'a permanentes», são expostos e c}1 ) Op. cit., p. 513. MALINOWSKI exagera um pouco, Arg .. pp. 5_10 _e
oferecidos aos espíritos sobre uma plataforma idêntica à do chefe. Isto scgs., a novidade desses factos, perfeitamente idênticos aos do potlatch thng1t
e do potlatch haYda. .. ,,
torna bons os seus espíritos. Eles levam a sombra dessas coisas Cm) Het Primtieve Denken, voorn. in Pokkengelmúkken ... Bud,: tot de laal-
, IÁ1rul-, en Volkenk. v. Nederl. !ndiii, vol. 71, pp. 245 e 246.
e3
) Koopen ili midden Cclebes. Meded. d. Konink Akad. v. Wct., Afd. (7 1 ) CRAWLEY, Mystic Rose, p. 386, emitiu já uma hipótese <lesse g~ncru,
lettcrk. 56; série B, n. 0 5, pp. 163 a 168, pp. 158 e 159. e WESTERMARCK entrevê a questão e começa a prova. V. cm particular
(1,-1) lbid., pp. 3 e 5 <lo extracto. History of Hwnan Marriage, 2.ª ed., t. I, pp. 394 e segs. Mas ele não se
(bj) Argonauts of the Westcrn Pacific, p. 511. apercebeu de tudo, por não ter identificado o sistema das prestaçõc~ e o
(M) /bid., pp. 72, 184. sistema mais desenvolvido do potlatch de que todas as trocas, e cm particular
61
( ) Op. cit., p. 152 (aqueles que não são objectos de troca obrigatória). Cf. a troca das mulheres e o casamento, são apenas uma das partes. Sobre a
Baloma «Spirits of the Oead>>, Jour. of the Royal Anthropolagical lnstitute, fertilidade do casamento assegurada pelas d:ídivas feitas aos cônjuges, v. mais
1917. adiante.

74 75
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA
AS DÁDIVAS TROCADAS E A OBRIGAÇÃO DE AS RETRIBUIR

em sânscrito dadami se, dehi me(72 ), foram conservadas também pelos


textos religiosos. morais dos Semitas. A sadaka(7~) árabe é, na sua origem, como a
zedaqa hebraica, exclusivamente a justi~;1; e ela tornou-se na esmola.
Podemos mesmo datar da época da vitória dos «Pobres» em Jerusalém
Outra observação, a esmola. - Entretanto, mais tarde, na o momento cm que nasceu a doutrina da caridade e da esmola que deu
evolução dos direitos e das religiões, reaparecem os homens, tornados a volta ao mundo com o cristianismo e o islamismo. Foi nessa época
uma_ vez mais representantes dos deuses e dos mortos, se alguma vez que a palavra zcdaqa mudou de sentido, porque não queria dizer
o deixaram de ser. Por exemplo, entre os Haúças do Sudão, quando 0 esmola na Bíblia.
«trigo da Guiné» está maduro, acontece que se espalham febres· a Mas voltemos ao nosso terna principal: a dúcliva e a obrigaçüo de
ú~ica maneira de evitar essa febre consiste cm dar presentes dc;sc retribuir.
tngo_~os pobrcs('-1). Entre os mesmos Haúças (agora de Trípoli), por Esses documentos e esses comentários não têm unicamente um
ocas_iao da Grande Oração (Baban Salla), as crianças (usos interesse etnográfico local. Uma comparação pode estender e
meditcrrünicos e europeus) visitam as casas: «Devo entrar? ... » «Oh aprofundar esse dados.
lebre de grandes orelhas!», responde-se, «Por um osso recebem-se Os elementos fundamentais do potlatch(7'') encontram-se assim na
serviços.» (Um pobre é feliz por trabalhar para os ricos.) Essas dádivas
Cº) Acerca de um valor mágico aínda actual da sadqâo, v. mais adíantc.
às crianças e aos pobres agradam aos mortos(71 ). Talvez entre os C~) NJo pudemos refazer o trabalho de reler novamente toda uma
Haúças tais usos sejam de origem rnuçulrnana(7-'i), negra e europeia ao literatura. IJ:i questões que só se levantam depois de a investigação estar
mesmo tempo, e também berbere. tcnnin,ida. Mas nito duvidamos de que recompondo os sistemas de foctos
separados pc!os c(nógrafos encontraríamos ainda outras marcas importantes de
Em todo o caso, vemos como se alimenla aqui uma teoria da potlatch na Polinésia. Por exemplo, as festas de exposição de alimentos,
esmola. A esmola é o fruto de uma noção moral da dádiva e da hakari. na Polinésia, v. TREGEAR, Maori Race, p. 113, comportam
6
f:fftunaC ), por um lado, e de uma noção do sacrifício, por outro. A exactainente as mesmas exposições, os mesmos montões, disposição ern
liberdade é obrigatória, porque Nêmesis vinga os pobres e os deuses pilhas, distribuição de comida, que os hekurai, que são as rncsnias festas de
nomes ídênticos dos Melanésios de Koita. V. SEUGMANN, The Melonesians,
do excesso de felicidade e de riqueza de certos homens que delas se pp. 141-145 e pi. Sobre o hakari, v. t;;mbém TAYLOR, Te ika a Mauí, p. 13;
dev.cm _desfazer: é a velha moral da dádiva transformada cm princípio YEATS, An account of New Zealmul, 1835, p. 139. Cf. TREGEAR, Maori
de Justiça; e os deuses e os espíritos consentem que as partes que se Comparative [)íc., s. v. «liakari)). Cf. um mito em GREY, Poly. Mith., p. 213
(edição de 1855), p. 189 (edição popular de Routlcdge), descreve o hakari ele
lhes davam e que eram destruídas cm sacrifícios inúteis sirvam para os Maru, deus da guerra; ora, a designação solene dos donatários é absolutamente
pobres e para as crianças(77). Contamos aqui a história das ideias idêntica ü das festas neocalcdónias, fijianas e neoguinccnses. Eis ainda um
discurso instrutivo Umu 10011xa (Forno de taonga) para um hikairo
1
C ) Vàjasaneyisamhitn, v. HUBERT e MAUSS, Essai sur le Sacrijice p (dístribu!~-Jo de comida). conservado num canto (Sir E. GREY, «Konga
105 (Année Soe., t.11). ' · Moteatca», Mythology and Tmditions, in Nnv-Lealand, [853, p. 132) tanto
(:? TREMEARN~, Haussa Su1!erstition.'>· and Cu.~tom5, 1913, p. 55. quanto pude !raduzir (estrofe 2):
fJâ-me deste lado os mcw taonga
( ) TREMEARNb, The !Jan oj the Bori, 1915, p. 239.
5
(1 ) I~obertson SMITH, Religion rif the Semites, p. 283. «Os pobres são os dá-me os meus l<WIIJ-:a, quí! e1t coloco-os em pilha
hospedeiros de Deus.» que cu coloco-os em pilha na dircq:üo da terra
. Ç6) _os Betsimisaraka de Madagáscar contam que de dois chefes, um que eu coloco~os em píllw na dirccçâo do mar
d1.stnbu1a tudo o que estava cm seu poder, o outro não distribuía nada e etc. ... na direcçüo do Esre
gL~ardava tudo. De~s deu a for!una àquele que era liberal e arruinou O avarento
(C,R~NDIDJER, Ethnograpl11c de Madagascar, t. II, p. 67, n. a.). Dií.-mc os meus toonga.
, ( ) Sobre as noções _de esmola, de generosidade e de liberalidade, ver a A primeira es!rofc fa;, sem dúvída alusão aos taonga de pedra. Vemos a
recolha de factos de Wf~STERMARCK, Origin mui Development of Moral que grau a própria noçãn de taonga é inerente a cso.;e ritual da festa dos
Idem:, 1, cap. XXIII. . alimentos. Cf. Percy SMITH, «Wars of lhe Nortilern against lhe Southern
Tribcs)), J /' S, t. VIII, p. 156 (lfokarí de Te Toko).
76
77
CAPÍTULO H

EXTENSÃO DESTE SISTEMA


Polinésia, mesmo se a instituição completa(&)) não se encontra ~ií; cm
LIBERALIDADE, HONRA, MOEDA
todo o caso, a troca~dúdiva é aí a regra. Mas seria pura erudição
sublinhar este tema de direito se ele não fosse senão maori ou, em
rigor, po/inésio. Desloquemos o assunto. Podemos, ao menos para a
obrigação de retribuir, mostrar que ela tem claramente urna outra
extensão. Indicaremos igualmente a extensão das outras obrigações e
vamos provar que essa interpretação é válida para vários outros grupos
de sociedades.

REGRAS DA GENEROS!DADE. ANDAMANS (N. B.)

Em primeiro lugar, cncontrnmos também estes costumes entre os


Pigmeus, os mais primitivos dos homens, segundo o Padre SchmicltC).
Brown observou, a partir de 1906, factos deste género entre os
Andamans (ilha do Norte) e descreveu-os crn cxcc!c11tes termos a ·'
propósito da hospitalidade entre grupos locais e das visitas festas,
feiras que servem para as troc;_is volunt5rias-obrig;lfôrias -~ (comércio
do ocre e produtos do mar por produtos da floresta, etc.); «Apesar da
impo11ância dessas trocas, como o grupo local e a família, noutros
casos, sabem bastar-se no que respeita a utensflios, etc., esses presentes
não servem para o mesmo fim que o comércio e a troca nas sociedades
mais desenvolvidas. O objcctivo é, antes de tudo, moral, o objccto visa
_('1') Supondo que ela não se encontra nas sociedades polinésias actuaís,
podia ser que tívcssc existido nas civilizações e nas sociedades que a
irni?r:1ç_Jo dos Polin~sios absorveu ou substituiu, e pode ser também que os N. B. - Todos esses factos, como os que se vão seguir, foram colhidos cm
Pohnesios a t_cnham lido antes da sua migra\:_iío. Com efeito, há urna razão para províncias etnográficas bastante variadas, cujas conexões não é nosso
ter desaparecido de uma parte desta região. E que os clãs estão definitivamente objectivo estudar aqui. De um ponto de vista etnológico, a existência de uma
hierarquizados cm quase todas as ilhas e mesmo concentrados em túrno de civilização do Pacífico não é sequer a sombra de uma dúvida e explica, em
~ma r_n?narquia; falta, pois, urna das principais condições do potlatch, a parte, muitos traços comuns, por exemplo do potlatc/1 mc!anésio e do potlatch
rnstab1l_1da~le de_ uma hierarquia que a rivalidade dos chefes tem precisamente ameJ"icano, e também a identidade do potlatch norte-::1siâtico e norte-ameri-
por obJectJvo fixar por instantes. Do mesmo modo, se encontramos mais cano. Mas, por outro lado, esses começos entre os Pigmeus são vcrdadeíra-
características (talvez de segunda formação) entre os Maori, do que em rncntc extraordinários. As características do potlatch indo-europeu, de que
qualquer outra ílha, é precisamente porque a «chejferie» se reconstituiu aí e iremos falilr, não o são menos. Abster-no.<;-ernos, portanto, de todas as consídc-
Pl)r{JUC os clãs isolados aí se tornaram rivaís. Sobre as destruições de riquezas rações da moda sobre as migrações de instituições. No nosso caso, é dema-
de tipo melanésío ou americano cm Samoa, v. KRÃMER, Samoa Insc!n, t. I, siado fácil e demasiado perigoso falar de empréstimo, e não menos perigoso
p. 375. V. índex s. v. ifóga. O muru maori, destruição de bens por causa de falar de invenções independentes. De resto, todas essas listas que construímos
falta, pode ser estudado também deste ponto de vista. Em Madagáscar, as são apenas as dos nossos pobres conhecimentos ou ignorâncias actuais. Para
relações dos Lohatcny - que devem comerciar entre si, podem insultar-se, já, limitemo-nos a mostrar a natureza e a rcpartiçUo muito v,ista de um terna de
estragar tudo em casa uns dos outros - são igLJalmente características de direito; a outros, que lhes baste fazer a sua história, se puderem.
potlatch antigos. V. GRANDIDIER, Etlmographie de Madagascar, t. II, p. C) Die Stellung der Pigmâem,i)!ker, 19IO. Não estamos de acordo corno
131. e n. pp. !32-133. Padre Schmidt neste ponto. V, Annéc Soe., t. XII, pp. 65 e segs.

78 79
ENSAIO SOBRE/\ DÁDIV/\
CAPÍTULO IV

CONCLUSÃO
persegue o vendedor mesmo muito tempo depois de a coisa ter entrado
definitivamente noutros patrimónios, e depois de todos os termos do
contrato «irrevogúvcl.,> terem sido executados. Pela coisa transmitida,
mesmo que seja fungívd, a aliança que foi contraída não é
moment.J.nca, e os contratantes são considerados cm perpétua
dependência.
Na moral anamita, aceitar um presente é perigoso.
Wcstcrmarck(1·''). que assinala este último facto, pressentiu uma
parte da sua impmüncia.

CONCLUSÕES DE MORAL

É~ possível estender estas observações üs nossas próprias


sociedades. Uma parte considcrúvel da nossa moral e da nossa própria
vida permanece sempre nesta mesma atmosfera da dádiva, da
obrigação e ao mesmo tempo da liherdadc. Felizmente, nem tudo está
ainda classificado exclusivamente cm termos de compra e venda. As
coisas têm ainda um valor de sentimento para além do seu valor venal,
supondo a existência de valores que sejam apenas deste género. Não
ternos senão uma moral de mercadores. Restam-nos pessoas e classes
que mantêm ainda os costumes de antigamente e quase todos nós nos
sujeitamos a eles. pe!o menos cm certas épocas do ano ou cm certas
ocasiões.
A dádiva não retribuída torna mais inferior aquele que a aceitou,
sobretudo quando é recebida sem espírito de retorno. Recordar o
curioso ensaio de Emcrson, On G!Jls wul PrcscntsC) não é sair do
domínio germânico. A caridade é mais injuriosa para aquele que a
aceita('), e todo o esforço da nossa moral tende a suprimir a protcq:ão
inconsciente e injuriosa do rico «caritativo,,.
O convite deve ser retribuído da mesma maneira que a «cortesia».
("') V. HOANG, ihíd., pp. 10, 109, 133. Devo a indicaçüo destes factos à Vemos aqui de forma ílagrantc o rasto do velho fundo tradicional, o dos
gentileza de Mestre e Granct, que os observaram, eles mesmos. na China.
velhos potlatch nobres, como igualmente vemos aflorar estes motivos
('·'") Origin .. of rhe Mural ldeas, V, L p. 394. Wcstcrmarck sentiu que
existia um problema do género <laqueie que estudamos, mas não se trJtou fundamentais da actividade humana: a emulação entre os indivíduos do
senão do ponto de vista do direito da hospitalidade. Todavia, há que ler as suas mesmo scxo(-1), este «imperialismo intrínseco» dos homens; fundo
observações muito importantes sobre o costume marroquino do ar (sacrifício
constrangedor do suplicante, ihid., p. 386) e sobre o princípio ,,Deus e o
C) Essais, 2ª série, V.
alimento o pagarão}) (expressões notavelmente idênticas às do direito hindu).
C) Cf. Koran, Sourate II, 265; cf. KOHLER in Jewish bu,yclopaedia, I, p. 465.
V. WESTERMAR.CK, Marriuge Ccremonies i11 Morocco, p. 365; cf. Anthr.
(') William JAMES, Principies of Psyclwlogy, II, p. 409.
r:ss. /:". H. Tylor, pp. 373 e segs.
175
/74
CONCLUSÃO
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA

PoJe mesrno dizer-se que urna grande parte do direito, direito dos
social por um !ado, fundo animal e psicokígico por outro, eis o que
industriais e dos comerciantes, está, neste tempo, cm conflito com a
surge. Nesta vida à parte que é a nossa vida social, nós próprios ni"10
moral. Os preconceitos económicos do povo, elos produtores, provêm
podemos «ficar cm dívida», como se diz ainda entre nós. f: preciso
da sua vontade firme de scguír a coisa que produzem e da sensação
rctrihuir mais do que aquilo que se recebeu. A «rodada)> é sempre mais
aguda de que o seu trabalho é revendido sem que eles próprios
cara e maior. Assim tal família aldeã da nossa infância, na Lorraine, que
participem do lucro.
se linútava ú mais modesta das vidas crn tempo normal, arruinava-se
Nos nossos <lias, os velhos princípios reagem contra os rigores, as
pelos seus hóspedes, por ocasião de festas dos padroeiros, de
ahstcnçücs e as desumanidades dos nossos códigos. Deste ponto de
casamento, de comunhão ou de enterro. É preciso ser «grande senhor»
vista, podemos dizê-lo, uma grande parle do nosso direito cm gestação
nestas ocasiôcs. Podemos mesmo dizer que urna parte do nosso povo se
e certos costumes, os mais reet.~ntes, consistem ern voltar atrás. E esta
comporta assim constantemente e gasta sem limites quando se trata dos
reacção contra a insensibilidade romana e saxónica do nosso regime é
seus hóspedes, das suas festas, das suas «consoadas,,.
perfeitamente sã e forte. Alguns novos princípios de direito e de uso
O convite deve ser feito e deve ser aceite. Ternos ainda este h.:íbito,
podem ser interpretados assim.
rncsmo nas nossas corporações liberais. Hú escassos cinquenta anos,
Foi necessário muito tempo até que se reconhecesse a propriedade
talvez mais recentemente, em certas partes de França, toda a aldeia
artística, literária e científica, para além do acto brutal da vencia do
tomava parte no festim de casamento; a ausência de alguém era
manuscrito, da primeira máquina ou da obra de arte original. As
efcctivamentc mau sinal, presságio e prova de inveja, de <<sortilégio>>.
sociedades não têm, com efeito, grande interesse cm reconhecer aos
Em numerosos lugares, ainda hoje, toda a gente toma parte na
herdeiros de um autor ou de um inventor, este benfeitor humano, mais
cerimónia. Na Provença, por altura do nascimento de uma criança, cada
do que certos direitos sobre as coisas criadas pelo possuidor de um
um traz ainda um ovo e outros presentes simbólicos.
direito; proclama-se de boa vontade que e!as são o produto do espírito
As coisas vendidas possuem também uma alma, são akm disso
colcctivo assim como do espírito individual; toda a gente deseja que
seguidas pclu seu velho proprietário e seguem-no. Num vale clns
elas caiam tão cedo quanto possível no domínío público cn1 na
Vosgcs, cm Cornimont, era corrente ainda não hú muito tempo, e
circulação geral das riquezas. No entanto, o escândalo ela mais-valia
mantém-se talvez entre certas famílias, o seguinte húbito: para que os
das pinturas, esculturas e objectos de arte, cm vida dos artistas e dos
animais comprados esquecessem o seu antigo dono e não se sentissem
seus herdeiros imediatos, inspirou urna lei francesa de Setembro de
tentados a voltar para «c::isa», fazia-se uma cruz sobre o lintel da porta
1923, que dá ao artista e aos seus herdeiros um direito sucessivo sobre
do estábulo, guardava-se a arreata do vendedor e dava-se-lhes sal à
estas rnais-valias sucessivas nas vendas sucessivas das suas obras(-'}
mão. Em Raou-aux-Bois, dava-se-lhes uma fatia de pão com manteiga
que se lhes tinha feito voltear tn3s vezes cm torno ela cremalheira e se
C) Esta lei não é im,pirada do princípio de ilegitimidade dos benefícios
apresentava com a mão direita. Trata-se, é verdade, de gado grosso, feitos pelos detentores sucessivos. Raramente se aplica.
que faz parte da família, fazendo o estáhulo parte da casa. Mas /\ legislação soviética sobre a propriedade literúria e as suas variações
numerosos outros costumes franceses assinalam a necessidade de constituem um estudo curíoso deste mesmo ponto de vista: em primeiro lugar,
nacíonalizarnm tudo; depois, aperceberam-se de que, desta forma, o único
separar a coisa vendida do vendedor, por exemplo: bater na coisa lesado era o artista vivo e que não se criavam, assim, recursos suficientes para
vendida, chicotear o carneiro que se vende, ctc.(1) o monopólio nacional de ecliçüo. Restabeleceram-se, pois, os direitos de autor,
mcsrno para os clássicos mais antigos, os do domínio público, os que eram
anteriores às leis medíocres que, na Rússia, protegiam os esciitores. Agora,
(') KRUYT, Koopcn, etc., cita factos deste género nas Celcbes, p. 12 da
diL-se, os Sovietes adoptaram uma lei de carácter moderno. Na rcalídadc, à
passagem. Cf. De fomdju'.~ ... iiíd. v. Kon. !fotav. Gen., LXlll, 2; p. 299, rito da
semelhança da nossa moral, nestes assuntos os Sovietes hesitam e não sabem
inlrnduçüo do hllfalo no estábulo; p. 29(1, ritual da compra do ci.'io que se adquire
muito bem por que direito optar, se pelo direito da pessoa, se pelo direito sobre
membro a membro, uma parte do corpo aprís outra. e na comida do qual se
as coisas.
cospe; p. 281, o gato nüo se vende sob pretexto algum, mas empresta-se, etc.
177
176
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA CONCLUSÃO

Toda a nossa legislação de segurança social, este socialismo de vêem-se despontar e tornar-se um facto a moral profissíonal e o direito
Estado já realizado, se inspira no princípío seguinte: o trabalhador deu corporativo. Estas caixas de compensação, estas sociedades mútuas,
a sua vida e o seu trabalho à colcctividadc por um lado, aos seus que os grupos industríais formam cm favor desta ou daquela obra
patrões por outro, e, se deve colaborar na obra de segurança, os que corporativa, não estão maculadas por nenhum vício, aos olhos de uma
beneficiaram dos seus serviços não estão quites para com ele através moral pura, salvo no seguinte ponto: a sua gestão é puramente patronal.
do pagamento do salário e o próprio Estado, representando a Além disso, são grupos que agem: o Estado, as comunidades, os
comunidade, deve-lhe, juntamente com os seus patrões e com a sua estabelecimentos públicos de assistência, as caixas de reforma, de
própria contribuição, uma certa segurança na vida, contra o poupança, sociedades mútuas, o patronato, os assalariados; estão
desemprego, contra a doença, contra a velhice e a morte. associados cm conjunto, por exemplo na legislação social da
Mesmo usos rccentC!'i e engenhosos como, por exemplo, as caixas Alemanha, da Alsácia-Lorena; e cstú-lo-ão também brevemente na
de assistência familiar que os industriais franceses livre e vigorosa- segurança social francesa. Voltamos, assim, a uma moral de grupos.
mente desenvolveram a favor dos trabalhadores chefes de família, Por outro lado, é dos indivíduos que o Estado e os seus subgrupos
respondem espontaneamente a esta necessidade de agradar aos próprios querem cuidar. A sociedade quer reencontrar a célula social. Ela
indivíduos, de tomar cm consideração os seus encargos e os seus graus procura, envolve o indivíduo, num curioso estado de espírito, onde se
de interesse material e moral que tais encargos reprcscntam(6 ). rnisturam o sentimento dos direitos que ele tem e outros sentimentos
Associações análogas funcionam na Alemanha e na Bélgica, com o mais puros: de caridade, de «serviço social», de solidariedade. Os
mesmo sucesso. - Na Grã-Bretanha, neste tempo de terrível e longo ternas da dádiva, da liberdade e da obrigação na dádiva, o tema da
desemprego atingindo milhões de trabalhadores - desenha-se todo um liberdade e o do juro que se tem de <lar, reaparecem entre nós, como
movimento em favor de seguros contra o desemprego, que seriam reaparece um motivo dominante esquecido por demasiado tempo.
obrigatórios e organizados por corporações. As cidades e o Estado estão Mas não basta comprovar o facto, é preciso dele deduzir uma
cansados de suportar estas enormes despesas, estes pagamentos aos prática, um preceito moral. Não basta dizer que o direito está cm vias
desempregados, situação proveniente apenas das indústrias e das de se desembaraçar de algumas abstracções: distinção do direito real e
condi~ões gerais do mercado. Também economistas distintos, capitães do direito pessoal; que está cm vias de juntar outros direitos ao direito
de indústria (Pybus, Sir Lynden Macasscy), agem no sentido de que as brutal da venda e do pagamento de serviços. É preciso dizer que esta
próprias empresas organizem estas caixas de desemprego corporativas, revolução é boa.
de que façam elas próprias esles sacrifícios. Eles gostariam, cm suma, Em primeiro lugar voltamos, e é preciso voltar, a costumes de
que o custo da segurança operária, da defesa contra a falta de trabalho, «consumo nobre». É necessário que, como cm terras anglo-saxónicas,
fizesse parte das despesas gerais de cada indústria cm particular. como cm tantas outras sociedades contemporâneas, selvagens e
Toda esta moral e esta legislação correspondem, na nossa opinião, altamente civilizadas, os ricos voltem - livre c também obrigatoria-
não a uma perturbação, mas a um regresso ao dircit0(7). Por um lado, mente - a considerar-se como uma espécie de tesoureiros dos seus
( ) Pirou fez já observações <leste género.
6 concidadãos. As civilizações antigas -· das quais saem as nossas -
(7) Escusado é dizer que preconizamos aqui alguma destruição. Os tinham umas o jubileu, outras as liturgias, as coregias e tricrarquias, as
príncípios de direito que presidem ao mercado, à compra e à venda, condições syssities (refeições cm comum), as despesas obrigatórias do edil e das
indispensáveis para a formação do capital, podem e devem subsistir a par dos
princípios novos e dos princípios mais antigos. personagens consulares. Devemos voltar a leis deste género. Em
No entanto, o moralista e o legislador não se devem deixar intimidar por seguida é necessário mais cuidado com o indivíduo, a sua vida, a sua
supostos princípios <le direito natural. Por exemplo, não se deve considerar a saúde, a sua educação - coisa aliás rendível-, a sua família e o futuro
distinção entre o direito real e o direito pessoal, senão do ponto de vista da
desta. É necessária a maior boa-fé, sensibilidade, generosidade nos
abstracção, do extracto teórico de alguns dos nossos direitos. É preciso deixá-
-la subsistir, mas colocá-la no seu lugar. contratos de aluguer de serviços, de aluguer de imóveis, de venda de

178 179
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA
CONCLUSÃO

géneros necessários. E será essencial que se encontre o meio de limitar


tendo-se cm conta a si própno, aos subgrupos e à sociedade. Esta
os proveitos <la especulação e da usura.
moral é eterna; é a moral comum às sociedades mais evoluídas, às
Contudo, é necessário que o indivíduo trabalhe. É necessário que
sociedades do futuro próximo e às sociedades menos instruídas que
seja forçado a contar mais consigo do que com os outros. Por outro
possamos imaginar. Nem sequer falamos já em termos de direito,
lado, é preciso que ele defenda os seus interesses, pessoalmente e cm
falamos de homens e de grupos de homens, porque são eles, é a
grupo. O excesso de generosidade e o comunismo ser-lhe-iam tão
sociedade, são sentimentos de homens em espírito, cm carne e em osso
prejudiciais, a ele e à sociedade, como o egoísmo dos nossos que agem desde sempre e agiram por toda a parte.
contcmporfmeos e o individualismo das nossas leis. No Mahabharata,
Demonstremos o que acabamos de dizer. O sistema a que pro-
um génio malfeitor dos bosques explica a um brâmane que dava pomos que se chame sistema das prestações totais, de clã para clã ~
demasiado e dcspropositadamentc: «Aí está a razão por que tu és
sistema segundo o qual indivíduos e grupos fazem todas as suas trocas
magro e pálido.» Tanto a vida do monge, como a de Shylock, devem
- constitui o mais antigo sistema de economia e de direito possível de
ser evitadas. Esta moral nova consistirá seguramente numa boa e
comprovar e conceber. Forma o fundo sobre o qual se destacou a moral
média mistura de realidade e ideal.
da dádiva-troca. Ora, ele é, guardadas as devidas proporções,
Assim, podemos e devemos voltar ao arcaico, aos elementos; exactamente do mesmo tipo daquele para o qual gostaríamos de ver as
reencontraremos motivos de vida e de acção conhecidos ainda por nossas sociedades dirigir-se. Para melhor compreensão destas
inúmeras sociedades e classes: a alegria de dar cm público; o prazer da longínquas fases do direito, eis dois exemplos extraídos de socieclacles
exibição artística generosa, o prazer da hospitalidade e da festa privada
extremamente diversas.
e pública. A segurança social, a solicitude da mutualidade, da Num corroboree (dança dramática pública) de Pine Mountain(8)
cooperação e, ainda, do grupo profissional, de todas estas pessoas
(Centro Oriental do Qucecnsland), entra no lugar consagrado um
morais que o direito inglês honra com o nome de «Friendly Societies»,
indivíduo ele cada vez, segurando na mão a sua lança, e mantendo a
valem mais do que a simples segurança pessoal que o nobre garantia
outra atrás elas costas; lança a sua arma para um círculo situado no
ao seu rendeiro, mais do que a vida mesquinha que proporciona o
outro extremo do terreno de <lança, nomeando ao mesmo tempo, cm
salário quotidiano fixado pelo patronato e mesmo mais do que a
voz alta, o lugar de onde vem, por exemplo: «Kunyan é a minha
poupança capitalista - que assenta apenas sobre um crédito mutável.
tcrra»(9); detém-se por um momento e, enquanto isso, os seus amigos
É mesmo possível conceber o que seria uma sociedade onde «põem um presente», uma lança, um bumerangue, uma outra arma, na
reinassem princípios semelhantes. Nas profissões liberais das nossas
outra mão. «Um bom guerreiro pode assim receber mais do que aquilo
grandes nações funcionam já, a um certo nível, urna moral e uma
que a sua mão pode segurar, sobretudo se tem filhas para casau>Cº)
economia deste género. Aí, honra, desinteresse, solidariedade
Na tribo dos Winnebago (tribo Sioux), os chefes de clã dirigem aos
corporativa, não são palavras vãs, nem são contrárias às necessidades
seus confradcs(' 1), chefes de outros clãs, discursos bastante carac-
do trabalho. Humanizemos igualmente os outros grupos profissionais terísticos, modelos da etiqucta(' 2) divulgada entre todas as civilizações
e aperfeiçoemos ainda aqueles. Estará feito um grande progresso, que
Durkheim várias vezes preconizou. (s) ROTH, «Games», Bul. Ethn. Queensland, p. 23, nº 28. .
Deste modo retomar-se-á, quanto a nós, o fundamento constante do C) Este anúncio do nome do clã superveniente é um uso mmto freq_uente
direito, o próprio princípio da vida social normal. Não é desejável que cm todo o Leste australiano e prende-se com o sistema de honra e de virtude
o cidadão seja nem demasiado bom e subjectivo, nem demasiado do nome. .
Cº) Facto notável, que deixa pensar que se contraem então compromissos
insensível e realista. Ú necessário que ele tenha o sentido agudo de si matrimoniais pela via das trocas de presentes.
próprio mas também dos outros, da realidade social (será que existe, (1 1) RADIN, «Winnebago Tribc», XXXV!lth Amwaf Report of the Bureau
nestas coisas de moral, urna outra realidade?). É necessário que ele aja of American Ethnofogy, pp. 320 e scgs. . . .
(! 1 ) V. art. ,,Etiquettc», Handbook of Amencan Jndwns, de HODC1E.

180
/81
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA CONCLUSÃO

dos índios da América do Norte. Cada clã coze alimentos, prepara II


tabaco para os representantes dos outros clãs, por ocnsião da festa de
CONCLUSÕES DE SOCIOLOGIA ECONÓMICA
clã. Eis, por exemplo, fragmentos dos discursos do chefe do clã das
E DE ECONOMIA POLÍTICA
Scrpcntes(u): <<Saúdo-vos; está bem; de que outro modo poderia falar?
Eu sou um pobre homem sem valor e vocês lembraram-se de mim. E"itcs factos não esclarecem apenas a nossa moral e não ajudam
Está bem ... Vocês pensaram nos espíritos e vieram sentar-se comigo ... unicamente a dirigir o nosso ideal; através deles podem analisar-se
Os vossos pratos vão estar cm breve repletos, assim, saúdo-vos melhor os factos económicos mais gerais e mesmo esta análise ajuda a
também, a vós humanos que tomais o lugar dos espíritos, etc.» E logo prever melhores processos de gestão aplicávei.~ às nossas sociedades.
que cada um dos chefes acabou de comer e que, ao fogo, se fazem as Vimos repetidamente quanto esta economia de troca-dádiva estava
oferendas de tabaco, a fórmula final expõe o efeito moral da festa e de longe de entrar nos quadros da economia supostamente natural do
todas as suas prestações: «Agradeço-vos por terem vindo ocupar este utilitarismo. Todos estes fenômenos tão consideráveis da vida
assento, estou-vos reconhecido. Vós encorajastes-me ... As bênçãos dos económica de todos estes povos - digamos, para tranquilizar os
vossos avós (que tiveram revelações e que vós encarnais) são iguais às espíritos, que eles são bons representantes da grande civilização
dos espíritos. É bom que tenhais participado na minha fosta. Assim neolítica - e as sobrevivências consideráveis destas tradições, em
deve ser, pois os nossos antepassados disseram: "A vossa vida é fraca sociedades próximas das nossas ou nos nossos costumes, fogem aos
e vós não podeis ser fortificados a não ser pelo conselho dos bravos". esquemas que vulgarmente apresentam os raros economistas que
Vós aconselhastes-me ... Isso para mim é vida.» quiseram comparar as diversas economias conhecidas(' 5). Acres-
Assim, de uma ponta a outra da evolução humana, não existem centamos, assim, as nossas repetidas observações às de Malinowski
duas sabedorias. Que se adopte então como princípio <la nossa vida que consagrou todo um trabalho a «fazer saltar» as doutrinas correntes
aquilo que sempre foi um princípio e sempre o será: sair de si, dar, livre sobre a economia «primitiva>>{' 6).
e obrigatoriamente; não há risco de engano. Assim o diz uni. provérbio Aqui temos uma cadeia de factos bastante sólida: a noção de valor
maori: funciona nestas sociedades; excedentes muito elevados, de uma
maneira geral, são acumulados; frequentemente são gastos inutil-
mente, com um luxo cnorme(' 1 ) e que nada tem de mercantil; há
Ko Maru Kai atu símbolos de riqueza, espécies de moedas('s), que são trocados. Mas
Ko Marua Kai mai toda esta economia, riquíssima, está ainda impregnada de elementos
Ka ngohe ngohe religiosos: a moeda ainda tem o seu poder mágico e ainda está ligada
ao clã ou ao indívíduo(l 9 ); as diversas actividades económicas, por
exemplo o mercado, estão impregnadas de ritos e de mitos; mantêm
«Dá tanto quanto recebes e tudo estará bem.»(1·1)
(1l) BUCHER, Entstelmng der Volkswirtschajt (3ª e<l.), p. 73, verificou
estes fenómeno.S económicos, mas subestimou-lhes a importância, rcdu1,indo-
(u) Ibid., p. 326, excepcionalmente, dois dos chefes convidados são -os à hospitalidade.
membros do clã da Serpente. (1 6) Argonauts, pp. 167 e segs.; «Primitive Economics,,, Economic Jmmwl,
É possível comparar os discursos idênticos de uma festa funerária (tabac). Março 1921. V. o prefácio de J. G. Frazer a Malinowski, Arg. . , . _
Tlingit, SWANTON, <{Tlingít Myths and Texts» (Buli. of Ani. Etlm., nº 39), p. (1 7 ) Um dos casos m,íximos que podemos citnr é o do sacnf1c10 dos caes
372. entre os Chukchce. Acontece que os proprietários dos mais belos canis
('·') Rev. TAYLOR, «Te lka a Maui», Old New Zealand, p. 130, prov. 42, massacram todas as suas eqoipagens de trenó e são obrigados a comprar
traduzido muito brevemente «give as well as take and all will be right», mas outras.
a tradução literal é provavelmente a seguinte: «Tanto quanto Maru der, tanto e~) V. mais atrás.
Maru receberá, e isto está bem, bem>>. (Maru é o Deus da guerra e da justiça.) (1 9 ) Cf. mais atrás.

182 183
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA CONCLUSÃO

um carácter cerimonial, obrigatório, eficaz(2'1); estão repletas de ritos e Malinowski fez um esforço sério(2') para ordenar do ponto de vista
de direitos. Deste ponto de vista já respondemos à questão que dos motivos, do interesse e do desinteresse, todas as transacções que
Durkheim colocava a propósito da origem religiosa da noção de valor observa entre os Trobriandcscs; escalonou-os entre a dádiva pura e a
económico(2 1). Estes factos respondem também a uma quantidade de pura troca, depois da arrematação(26). Esta classificação é, no fundo,
questões respeitantes às formas e razões daquilo a que tão inaplicável. Assim, segundo Malinowski, o tipo de dádiva pura seria a
incorrectamcntc chamamos o câmbio, a «troca», a pe11nutatio( 22 ) das dádiva entre esposos(2 1 ). Ora, precisamente, no nosso parecer, um dos
coisas úteis, que após os prudentes latinos, seguindo eles próprios factos mais importantes assinalados por Malinowski, e que lança
Aristóteles(2 3), uma economia histórica põe na origem da divisão do estrepitosa luz sobre todas as relações sexuais em toda a humanidade,
trabalho. É bem diferente do útil, o que circula nestas sociedades de consiste em relacionar o mapula(2i), o pagamento •«constante» do
todos os géneros, a maior parte já bastante esclarecidas. Os clãs, as homem à sua mulher, de uma espécie de salário por cada serviço
idades e, geralmente, os sexos - por causa das múltiplas relações a que sexual prestado(29). Da mesma forma, as oferendas feitas ao chefe são
os contactos dão lugar - estão num estado de perpétua efervescência tributos; as distribuições de comida (sagali) são indemnizações por
económica e esta excitação é ela própria pouco terra-a-terra; é bastante trabalhos, por ritos cumpridos, por exemplo em caso de vigília
menos prosaica do que as nossas compras e vendas, do que os nossos funerária(3º). No fundo, do mesmo modo que estas dádivas não são
alugueres de serviços ou os nossos jogos de Bolsa. livres. não são também realmente desinteressadas. São já contra-
Todavia, podemos ir ainda mais longe. Podemos dissolver, prestações para a maior parte e mesmo feitas tendo cm vista não
misturar, colorir e definir de maneira diferente as principais noções de apenas pagar serviços e coisas, mas também manter uma aliança
que nos servimos. Os termos que empregamos: presente, prenda, proveitosa(3 1) e que não pode sequer ser recusada, como por exemplo
dádiva, não são, já de si, inteiramente exactos. A verdade é que não a aliança entre tribos de pescadores(3') e tribos de agricultores ou de
encontramos outros. Estes conceitos de direito e de economia que nos oleiros. Ora, este facto é geral; encontrámo~lo por exemplo em terras
comprazemos em opor: liberdade e obrigação; liberalidade, Maori, Tsimshian(3 3), etc. Vemos, assim, onde reside esta força ao
generosidade, luxo e economia, interesse, utilidade, seria óptimo que mesmo tempo mística e prática que une os clãs e ao mesmo tempo os
os voltássemos a pôr no crisol. Sobre este assunto apenas podemos dar (i5) Argonauts, p. 177.
indicações: escolhamos por exemplo(2 4) os Trobrian<leses. É ainda uma e 6
) É muito importante notar que, neste caso, não há venda, pois não se

verifica troca de vaygu'a, de moedas. O máximo de economia que os


noção complexa a que inspira todos os actos económicos que
Tobriandeses alcançaram não chega, assim, ao uso da moeda na própria troca.
descrevemos; e esta noção não é nem a da prestação puramente livre e e 1
) Pure gift.

gratuita, nem a da produção e da troca puramente interessadas, do útil. ('") lbid.


É uma espécie de híbrido que floriu ali. (29) O termo aplica~sc ao pagamento de uma espécie de prostituição lícita
das raparigas solteiras; cf. Arg., p. 183.
) Cf. mais atrüs. O termo sagali (cf. hakori) quer dizer distribuição.
30
(
(1°) MALJNOWSKI, Arg., p. 95. Cf. Frazer, em prefácio ao livro de
Malinowski. (3 1) Cf. mais atrás; em particular a dádiva do urigubu ao cunhado; produtos
(2 1) Formes élémentaires de la vie religieuse, p. 598, n. 2. de recolha cm troca de trabalho.
('i) Digeste, XVIII, I; De Co11t,: fünt., 1. Paulo cxplica~nos o grande debate ei) V. mais atrás (wasi).
(-1 3 ) Maori, v. mais atrás. A divisão do trabalho (e o modo como ela funciona
entre prudentes romanos para saber se a «permutatio» era uma venda. Toda a
passagem é interessante, incluindo o erro que o sábio jurista comete na sua à vista da festa entre clãs Tsimshian), é admiravelmente descrita num mito de
interpretação de Homero. II, VII, 472 a 475; owwro quer realmente dizer potlatch, BOAS, «Tsimshian Mythology», XX.Xlst Ann. Rep. !Jw: Am. Etlm .• pp.
comprar, mas que as moedas gregas eram o bronze, o ferro, as peles, as 274, 275; cf. p. 378. Exemplos deste género poderiam ser indefinidamente
próprias vacas e os escravos, possuindo todos um valor determinado. multiplicados. Estas instituições económicas existem com efeito mesmo nas
(
23
) Pol., livro 1, 1257 a, lO e segs.
socíedadcs infinitamente menos evoluídas. V por exemplo na Austrália a notável
e~) Poderíamos igualmente escolher a sadaqa árabe; esmola, preço da posição de um gmpo local possuidor de um jazigo de ocre vennelho (AISTON e
noiva, justiça, imposto. Cf. mais atrás. HORNE, Savage Life in Central Australia, Londres, 1924, pp. 81, 130).

184 185
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA CONCLUSÃO

divide, que divide o seu trabalho e ao mesmo tempo os constrange à confere_ a estas instituições um ar de puro gasto dispendioso, de
troca. Mesmo nestas sociedades, o indivíduo e o grupo, ou melhor, o prodigalidade infantil. Com efeito e de facto, não somente se fazem
subgrupo, sempre se pêrmitiram o dtrcito soberano de recusar o desaparecer coisas úteis, ricos alimentos consumidos em excesso, corno
contrato: é isso que confere um aspecto de generosidade a esta até se destrói pelo prazer <le destruir, por exemplo, esses metais, essas
circulação dos bens; mas, por outro lado, normalmente, eles não moedas que os chefes tsimshian, tlingit e h;úda lançam à água e que os
tinham, nessa recusa, nem direito nem interesse; e é isso que torna chefes kwakiutl e os chefes das tribos suas aliadas quebram. MtL<; o motivo
estas sociedades distantes ainda assim parentes das nossas. destas dádivas e destes gastos arrebatados, destas perdas e destas
O emprego da moeda poderia sugerir outras reflexões. Os vaygu 'a destruições loucas de riquezas, não é, a nenhum nível, sobretudo nas
dos Trobrian<lcscs, pulseiras e colares, do mesmo modo que os metais sociedades de potlatch, desinteressado. Entre chefes e vassalos, entre
do Noroeste amcrícano ou os wampun iroqucscs, são a um tempo vassalos e paladinos, estabelece-se a hierarquia através destas dádivas. Dar
riquezas, sinaisC4) de riqueza, meios de troca e de pagamento e, é manifestar supcrio1idade, ser mais, estar mais alto, ser magister; aceitar
também, coisas que se devem dar, destruir até. Só que se trata ainda de sem retribuir (JU sem retribuir mais, é subordinar-se, tornar-se cliente e
garantias ligadas às pessoas que as empregam e estas garantias ligam- servidor, tomar-se pequeno, cair mais baixo (minister).
-nas. Mas como, por outro lado, servem já de sinais monetários, tem- O ritual mágico do krtla chamado mwasila(3 6 ) está cheio de
-se interesse em os dar para poder possuir outros novos, trans- fórmulas e de símbolos que demonstram que o futuro contratante
formando-os em mercadorias ou em serviços que por sua vez se procura, antes de mais, este benefício: a superioridade social poderia
transformarão em moedas. Dir-se-ia na vd·dade que o chefe até dizer-se brutal. Assim, depois de ter encantado o caroço de bételc
trobriandês ou tsimshian procede, cm grau longínquo, à maneira do de que eles e os seus pares se vão servir, depois de haver encantado o
capitalista que sabe desfazer-se da sua moeda em tempo útil, para chefe, os seus camaradas, os porcos destes, os colares, depois a cabeça
reconstituir cm seguida o seu capital móvel. Interesse e desinteresse e as suas «aberturas», mais tudo o que se traz, os pari, dádivas de
explicam igualmente esta forma de circulação das riquezas e a forma abertura, etc., depois de ter encantado tudo isso, o mágico canta, não
de circulação arcaica dos sinais de riqueza que as seguem. sem exagero(3 1 ):
Mesmo a destmição pura das riquezas não corresponde ao desapego
completo que nela se poderia julgar contido. Mesmo estes actos de Eu derrubo a montanha, a montanha move-se. a montanha desmorona~se,
etc. O mell encanto vai ao cume da montanha de Dobu ... A minha canoa vai
grandeza não estão isentos de cgotismo. A forma puramente sumptuátia, correr. .. , etc. A minha reputação é como o trovüo; o meu passo é como o ruído
quase sempre exagerada, com frequência puramente destruidora, do ga'ito, qllefazem os feiticeiros voadores. fodududu.
segundo a qual bens consideráveis e longamente acumulados são dados de
uma só vez ou mesmo destruídos, sobretudo cm caso de potlatchC5), Ser o primeiro, o mais belo, o mais afortunado, o mais forte e o
mais rico, eis o que se procura e como se obtém. Mais tarde, o chefe
C4 ) V. mais atrás. A equivalência nas línguas gcrmánicas dos termos token
e zeichen para designar a moeda em geral, conserva a marca destas confirma o seu mana redistribuindo pelos seus vassalos, parentes, o
instituições: o signo que é a moeda, o sinal que ela suporta e a garantia que é que acaba de receber; mantém a sua posição entre os chefes
são uma e a mesma coisa - como a assinatura de Ull\ homem é ainda o que entregando pulseiras em troca de colares, hospitalídade, troca de
determina a sua responsabilidade.
visitas, e assim por diante ... Neste C[L<;o a riqueza é, para todos os
e~) V. DAVY, Foijurée, pp. 344 e segs.; DAVY (Des clans aux Empires;
Eléments de Sociologie, I) apenas exagerou a importância destes factos. O
potlatch é útil para estabelecer a hierarquia e estabelece-a frequentemente, o (¾) Arg., pp. 199 a 201, cf. p. 203.
que, no entanto, não é absolutamente necessário. Assim as sociedades C1 ) Ibid., p. 199. O termo montanha designa, nesta poesia, as ilhas <le
africanas, nigrícias ou bantu, ou não têm o potlatch, ou não o têm muito Entrechateaux. A canoa correrá sob o peso das mercadorias tra:1-idas do kula.
desenvolvido, ou talvez o tenham perdido - e elas têm todas as formas de Cf. outra fórmula, p. 200, texto comentado, p. 441; cf. p. 442, notável jogo de
organização política possíveis. palavras sobre «purificar». C[ fórmula, p. 205.

186 187
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA
CONCLUSÃO

efeitos, tanto um meio de prestígio como uma coisa de utilidade. Mas palavras cm latim, grego ou árabe. Mesmo os homens que escreveram
será certo que as coisas se passem diferentemente entre nós e que, o sânscrito clássico, que empregaram o termo artha, bastante próximo
mesmo para nós, a riqueza não seja antes de mais o meio de comandar da nossa ideia de lucro, fizeram dele, assim como das outras categorias
os homens? da acção, uma ideia diferente ela nossa. Os livros sagrados da "Índia
clássica dividem já as seguintes actividades humanas: a lei (dharma),
Submetamos agora a prova de fogo a noção que acabamos de opor o lucro (artha), o desejo (kama). Mas trata-se acima de tudo elo lucro
à noção de dádiva e de desinteresse: a noção de interesse, de procura político: do rei e dos brâmanes, dos ministros, do reino e de cada raça.
individual do útil. Também essa não se apresenta como funciona no A lilcratura considerável dos Nitiçastra não é económica.
nosso próprio espírito. Se algum motivo idêntico anima chefes Foram as nossas sociedades ocidentais que, muito recentemente,
trobriandcses ou amerícanos, clãs andamans, etc., ou animava fizeram do homem um «animal económico». Mas, por enquanto, nem
antigamente generosos hindus, nobres germanos e celtas, nas suas todos somos seres desse género. Entre as nossas massas e as nossas
dádivas e gastos, esse motivo não é a fria razão do mercador, do elites, o gasto puro e irracional é <lc prática corrente, scn<lo ainda
banqueiro e do capitalista. Nestas civilizações, é-se interessado, mas característico de alguns fósseís da nossa nobreza. O homo
de uma maneira diferente da do nosso tempo. Aforra-se, mas para ueconomicus não está para trás, está sim na nossa frente; como o
gastar, para «obrigar», para ter «homens enfeudados». Por outro lado, homem da moral e do dever, como o homem da ciência e da razão. O
troca-se, mas sobretudo coisas de luxo, ornamentos, vestuário, ou homem foi, durante muito tempo, outra coisa; e não há muito tempo
então coisas imediatamente consumidas, festins. Restitui-se com que ele é uma máquina, uma complicada máquina de calcular.
usura, mas para humilhar o primeiro doador ou cambista e não apenas Alíás, n6s estamos ainda afastados, felizmente, deste constante e
para o compensar pela perda que lhe causa um «consumo diferido». Há glacial cálculo utilitário. Que se analísc de forma aprofundada,
lucro, mas este é apenas semelhante àquele que, diga-se, nos guia. estatística, como o fez 1-Ialbwachs para as classes trabalhadoras, o que
Entre a economia relativamente amorfa e desinteressada, no é o nosso consumo, a nossa própria despesa, ocidentais das classes
interior dos subgrupos, que rege a vida dos clãs australianos ou médias. Quantas necessidades satisfazemos nós? E quantas tendências
americanos do Norte (Leste e Pradaria), por um lado, e a economia deixamos de satisfazer que não têm por fim último o útil? O homem
individual e de puro lucro que as nossas sociedades conheceram, pelo rico, quanto gasta, quanto pode ele gastar do seu rendimento para sua
menos parcialmente, desde que foi descoberta pelas populações utilidade pessoal? As suas despesas de luxo, de arte, ele loucura, de
semíticas e gregas, por outro; entre estes dois tipos, dizia, sobrepôs-se criados, não fazem com que ele se assemelhe aos nobres de
toda uma mesma série de instituições e de acontecimentos antigamente ou aos chefes bárbaros cujos costumes descrevemos?
econômicos, a qual não é governada pelo racionalismo económico cuja
teoria se constrói tão facilmente. Está bem que assim seja? Essa é uma outra questão. Talvez seja
O próprio termo lucro é recente, com origem na técnica da contabi- bom que existam outros meios de gastar e de trocar, para além da pura
lidade: interest, do latim, que se escrevia nos livros de contas cm face despesa. No entanto, na nossa opinião, não é no cálculo das neces-
das rendas a cobrar. De acordo com as morais antigas mais epicuristas, sidades individuais que se encontrará o método da melhor economia,
é o bem e o prazer que se procura e não a utilidade material. Foi Devemos, creio eu, mesmo enquanto quisermos desenvolver a nossa
necessária a vitória do racionalismo e do mercantilismo para que própria riqueza, ser mais do que puros financiadores, tornando-nos
fossem postas em vigor e elevadas à categoria de princípios, as noções sempre melhores contabilistas e melhores gestores. A perseguição
de lucro e de indivíduo. Quase se pode datar - depois de Mandcville brutal dos objcctivos do indivíduo é prejudicial para os objectivos e
(Fábula das abelhas) - o triunfo da noção <lc lucro individual. S6 para a paz do conjunto, para o ritmo do seu trabalho e das suas alegrias
dificilmente e apenas por perífrase podemos traduzir estas últimas e - pelo efeito de retorno - para o próprio indivíduo.

188 189
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA CONCLUSÃO

Já, como acabámos de ver, secções importantes, associações das Estudando estes lados obscuros da vida social, talvez se chegue a
nossas empresas elas próprias capitalistas, procuram conjuntamente iluminar um pouco o rumo que devem tomar as nossas nações, a sua
unir os seus empregados em grupo. Por outro lado, todos os moral ao mesmo tempo que a sua economia.
agrupamentos sinclicalistas, tanto os dos patrões como os dos
assalariados, afirmam defender e representar o interesse geral com o
mesmo fervor que o interesse particular dos seus adeptos ou até das Ili
suas corporações. Estes belos discursos são, na verdade, esmaltados
por bastantes metáforas. Deve verificar-se, no entanto, que não apenas CONCLUSÃO DE SOCIOLOGIA GERAL
a moral e a filosofia, mas até mesmo a opinião e a própria arte E DE MORAL
cconómíca começam a elevar-se a este nível social. Sente-se que agora Que nos seja ainda permitida uma nota de método a propósito
apenas se pode fazer trabalhar convenientemente os homens seguros daquele que seguimos. Não é que queiramos propor este trabalho como
de serem lealmente pagos toda a sua vida, pelo trabalho que lealmente um modelo. Ele é todo indicações. Está insuficientemente completo e
executarem, para outrem ao mesmo tempo que para si próprios. O a análise poderia ainda ser levada mais longc{-1 8). No fundo, estas são
produtor cambista sente de novo~ sempre sentiu ~, mas desta vez de questões que pomos aos historiadores, aos etnógrafos, são objectos de
forma aguda, que troca mais do que um produto ou um tempo de investigação que propomos, mais depressa do que resolvemos um
trabalho, que dá qualquer coisa de sí; o seu tempo, a sua vida. Ele quer, problema ou damos uma resposta definitiva. Chega-nos de momento
assim, ser recompensado, mesmo que moderadamente, por esta estarmos persuadidos de que, nesta direcção, se encontrarão
dádiva. E recusm·~Jhc esta recompensa é incitá-lo à preguiça e ao numerosos factos.
rendimento mínimo. Mas, sendo assim, há, nesta forma de tratar um problema, um
Talvez pudéssemos indicar uma conclusão ao mesmo tempo princípio heurístico que gostaríamos de destacar. Os factos que
sociológica e prática. A famosa Surata LXIV, «decepção mútua» estudamos são todos, permita-se-nos a expressão, factos sociais totais
(último juízo), dada, em Meca, a Maomé, diz de Deus: ou, se se quiser - mas gostamos menos da palavra - gerais: quer dizer
que eles põem cm movimento, em certos casos, a totalidade da
J 5. As vossas riquezas e as vossas crianças são a vossa tentação enquanto
que Deus mantém em reserva uma recompensa magnífica. . .
sociedade e das suas instituições (potlatch, clãs, fronteiras, tribos que
16. Temei a Deus com todas a.<; vossas forças; escutai, obedecei, dat esmola se visitam, etc.) e noutros casos, apenas um enorme (muito grande)
(sadaqa) no vosso próprio interesse. Aquele qt1e se mantém em guarda contra número de instituições, em particular quando estas trocas e contratos
a sua avareza será feliz. dizem respeito antes de mais a indivíduos.
17. Se fizerdes a Deus um empréstimo generoso, ele pagar-vos-á o dobro,
ele perdoar-vos-á, pois é reconhecido e pleno de magnanimidade. , . Todos estes fenómenos são, a um tempo, jurídicos, económicos,
18. Ele conhece as coisas visíveis e invisíveis, ele é o poderoso e o sab10. religiosos, e mesmo estéticos, morfológicos, etc. São jurídicos, de

e~) A área sobre a qual as nossas pesquisas deveriam ter maior incidência,
Substituí o nome de Alá pelo da sociedade e do grupo profissional
juntamente com as que estudamos, é a Micronésia. Ali existe um sistema de
ou adicionai os três nomes, se sois religiosos; substituí o conceito de moeda e <lc contratos extremamente importante, sobretudo cm Yap e nos
esmola pelo de cooperação, de um trabalho, de uma prestação feita em Palaos. Na Indochina, principalmente entre os Mon-Khmcr, em Assam e entre
intenção de outrem: tereis uma óptíma ideia da arte económica que os Tibcto-Birmanescs, há também instituições deste género. Finalmente os
Berberes desenvolveram os notáveis usos da thaoussa (v. WESTERMARCK,
está em vias de criação laboriosa. Vêma-la funcionar já dentro de Marriage Cerimonies in Momcco. V. ind. s. v. Presem). Doutté e Maunicr,
certos agrupamentos económicos e nos corações das massas que têm, mais competentes do que nós, reservaram para si o estudo deste
muito frequentemente, melhor do que os seus dirígentes, o sentido dos acontecimento. O velho direito semítico, como o costume beduíno, darão
também preciosos documentos.
seus interesses, do interesse comum.
191
190
ENSAIO SOBRE A IJÁDIYA CONCLUSÁO

direito privaJo e público, de moralidade organizada e difusa, deslocar ern paz. Sàt1 rn.::cessúriw; as aliarn,;as tribais e intcrtrihais ou
11
estritamente obrigatórios ou simplesmente louvados e censurados, internaci(lnais, o con111wrcíwll e o cu111111hi111n( ).
políticos e domésticos ao mesmo tempo, interessando tanto as classes Trata-se as:-,im de qualquer coisa mais; do que temas, mais do que
sociais como os cfas e as famílias. Sflo religiosos: de relígião estrita e elr.::;ncntos de insti1ui1Jícs, inslítui<,;ôcs curnplcxc1s, mais até do que
de magia e de animismo e de mentalidade religiosa difusa. São sistemas de instituições di\·ididos por exemplo cm rcligii:ío. direito,
económicos: pois as ideias do valor, da utilidade, do interesse, do luxo, economia: etc. Trata-s;c ele <,todos,,, de sistcrn;1s; S(lciais inteiros cujo
da riqueza, da aquisição, ela acurnulação e, por outro lado, a ideia do t\mcion:1mento tcntúmos descrever. Vimos sociedades cm estado
gasto, mesmo a da pura despesa, puramente surnptuáría, estão dinúmico ()li fisiológicll. N<lo as cstud{1111os cumo se estivessem
prcscnks por toda a parte, ainda que sejam entendidas de forma congeladas, num estado cstútico ou antes c<.H.la\·éricu, e muito menos as
diferente daquela que hoje as entendemos. Por outro lado, estas dccou 1 puscnH)" e dissccímos e111 regras de dirL·ito, crn mitos, ern
instituições têm um lado estético importante do qual nos abstraímos valores e cm preço. Foi cons]lkramlo u co11ju11to que pudemos
deliberadamente neste estudo: mas as darn;as que se executam perceber o essencial. o movimento do todu, n aspecto vivo, o instan\c
alternativamente, os cantos c as exíbiçôes de todas as espécies, as fugitivo cm que a sociedade, clll que <lS hurnens tomam consciência
representações dramáticas que se fazem de campo a campo e de sentimental de si próprios e da sua 'iitualJio frente a frente com o
associado a associado; os objectos de todas as espécies que se próximo. Esta obscrva(Jto concreta da vida social dispôe da
fabricam, ornam, pulem, recolhem e transmitem com amor, tudo o que possibilidade de encontrar novos factos que apenas começamos a
se recebe com alegria e se expõe com sucesso, os próprios festins nos entrever. Na nossa opinião nada é mais urgenlc nem mais frutuoso du
quais todos participam; tudo, comida, ohjectos e serviços, mesmo o que este cstud() dos factos sociais.
«respeito», corno dizem os Tlingit, tudo é motivo de emoção estética e Ele tt:lrl uma dupla vantagem. Frn primeiro lugar, uma vantagem de
não apenas de emoçôes da ordem do moral ou do interesseC'1). Esta é i;encralidadc, pois este;, factos de fu1icionamc11to geral têm
uma verdade não apenas da Mclanésia, mas mais particularmente do ~wohahilidadcs de ser mais univcrs:1is do que as diversas instituiçôcs
sistema que é o potlatch do Noroeste americano e ainda mais genuína ou do que os diversos temas destas institui(,Jics, 'iempr<: !llais ot1 menos
da festa-mercado do mundo indo-europeuC11). Enfim, são claramente acidentalmente coloridns por urna cor luca\. tvlas tem sobretudo uma
fenómenos morfolôgicos. Ali tudo se passa no decorrer de vant<.wem de realidade. Chega-se assim ,1 ver as próprias coisas sociais,
ç '
assembleias, de feiras e de mercados, ou pelo menos de festas que em concreto, corno elas são. Dentro das sociedades, distingue-se mais
fazem as suas vezes. Todas estas pressupõem congregações cuja do que ideias ou regras, distinguem-se hrnncns, grupos e seus
permanência de concentração social pode exceder uma estação, como comportamentos. Verno-l()S moverem-se como cm rnecfmica se: vêem
os potlatch de Inverno dos Kwakiutl, ou semanas coml) as expedições massas e siskmas, ou cnmo no mar vemos polvos e anémonas.
marítimas dos Melanésios. Por outro lado, é preciso que existam Distin!!_uimos numerosos homens, fon;as móveis que flutuam nos seus
estradas, pelo menos caminhos, mares ou lagos por onde nos possamos ambientes e nos seus sentimentos.
Os historiadores scntcm c objeetam com todo o direito que os
('' ) V. o «ritual de Beleza» no «Ku/m) dos Trobriandescs, MAUNOWSKI,
1 soci(Jl()\!,OS constn'ícm demasiadas abstn.tc\ÜCS e separam demasiado
pp. 334 e seguintes, 336, <,o nosso parceiro vê-nos, vê que a nossa figura é uns dns~Outros os diversos elementos das sociedades. (~ preciso fazer
bela, deita-nos as suas vuygu'rrn, Cf. THURNWALO sobre a aplicaçüo do
como eles: observar o que é dado. Ora, o dado é Roma, é Atenas, é o
dinheiro corno ornamento, Fnrsclwngcn, III, p. 39; cf. a expressão
Prachthaum, t. llf, p. 144, v. 6, v. 13; 156, v. 12; para designar um homem ou francês médio, é o melanésio desta ou daquela ilha, e não a oração ou
uma mulher decorados com moedas, Noutros lugares, o chefe é designado 0
privilégio cm si. Depois de terem forçosamente clivi<liclo e abstraído
como a ,<árvore», \, p. 298, v. 3. Noutros lugares, ainda, o homem decorado
exala um perfume, I, p. 192, v. 7; v. 13, 14.
("'") Mercados das noivas; noção de fçsta,ji:>ria, feira. ( ' 1) Cf. TUURN\VALD, ihid., III, p ..1G.

192 /93
ENSAIO SOBRE A DÁDIVA CONCLUSÃO

um pouco de mais, é preciso que os sociólogos se esforcem por refazer desenvolver-se a lei <<de hospitalidade» a lei das amizades e dos
o todo. Encontrarão assim dados fecundos. - Encontrarão também o contratos com os deuses veio assegurar a «paz)) dos «mercados» e das
meio de satisfazer os psicólogos. Estes sentem vivamente o seu cidades; durante um período de tempo considerável e dentro de um
privilégio e sobretudo os psicopatologistas têm a certeza de estudar o número considerável de sociedades, os homens abordaram-se num
concreto. Todos estudam ou deveriam observar o comportamento de curioso estado <le espírito, ele temor e de hospitalidade exagerados e de
seres totais e não divididos cm faculdades. t preciso imitá-los. O generosidade igualmente exagerada, mas que são loucos apenas aos
estudo do concreto, que é o estudo do completo, é possível e mais nossos olhos. Em todas as sociedades imediatamente anteriores às
cativante, mais explicativo ainda cm sociologia. Observamos rcacc;ôcs nossas e que ainda nos rodeiam, e mesmo cm numerosos usos da nossa
completas e complexas de quantidades numericamente definidas de moralidade popular, não existe o meio termo: confiar~se inteiramente
homens, de seres completos e complexos. Também descrevemos o que ou desconfiar inteiramente; depor as armas e renunciar à sua magia ou
eles são dentro cios seus organismos e elas suas psychai, ao mesmo dar tudo: desde a hospitalidade fugaz até às raparigas e aos bens. Foi cm
tempo que descrevemos o comportamento desla massa e as psicoses estados deste género que os homens renunciaram à sua atitude
que lhe correspondem: sentimentos, ideias, volições da multidão ou reservada e souberam comprometer-se a dar e a retribuir.
das sociedades organizadas e dos seus subgrupos. l~unbém vemos É que eles não tinham escolha. Dois grupos de homens que se
corpos e reacções destes corpos, cujas ideias e sentimentos são encontram apenas podem: ou afastar-se - e, se sentem desconfiança ou
vulgarmente as interpretações e, mais raramente, os motivos. O se se desafiam, lutar - ou tratar-se bem. Ainda cm direitos muito
princípio e o fim da sociologia é perceber o grupo inteiro e todo o seu próximos de nós e cm economias não muito afastadas da nossa, é com
comportamento. estrangeiros que «tratamos>) sempre, mesmo quando se é aliado. As
2
Não tivemos tempo - isso significaria desenvolver indevidamente pessoas de Kiriwina nas Trobriand disseram a Malinowski(4 ): «Os
um assunto restrito - de tentar descobrir, a partir deste momento, o homens de Dohu não são bons como nós somos: são cruéis, são
âmago morfológico de todos os factos que indicámos. Contudo, talvez canibais; quando chegamos a Dobu, tememo-los. Eles poderiam
seja útil indicar, pelo menos a título de exemplo do método que teríamos matar-nos. Mas eis que cu cuspo raiz de gcngibrc e o seu espírito
querido seguir, cm que sentido prosseguiríamos esta investigação. muda. Eles depõem as suas lanças e recebem-nos bem.» Nada traduz
Todas as sociedades que descrevemos atrás, salvo as nossas melhor esta instabilidade entre a festa e a guerra.
sociedades europeias, são sociedades segmentadas. Mesmo as indo-eu- Um dos melhores etnógrafos, Thurnwald, descreve-nos, a
ropeias, a romana de antes das Doze Tábuas, as sociedades germânicas propósito de uma outra tribo da Mclanésia, uma estatística
mais afastadas, até ü redacção do Hda, a sociedade irlandesa até à genealógica({)), um acontecimento preciso que mostra igualmente
rcdacção da sua literatura principal eram ainda à base de clãs e pelo como esta gente passa, cm grupo e de repente, da festa à batalha.
menos de grandes famílias mais ou menos indivisas interiormente e Bulcau, um chefe, tinha convidado Boba!, um outro chefe, e a sua
mais ou menos isoladas umas das outras no exterior. Todas estas gente para um festim, provavelmente o primeiro de uma longa série.
sociedades estão, ou estavam, longe da nossa unificação e da unidade Começaram a repetir as danças, durante uma noite inteira. Pela manhã
que urna história insuficiente lhes atribui. Por outro lado, no interior todos estavam excitados pela noite de vigília, de danças e de cantos. A
destes grupos os indivíduos, mesmo fortemente marcados, eram menos uma simples reparo ele Buleau, um dos homens de Boba! matou-o. E a
tristes, menos sérios, menos avaros e menos pessoais cio que nós; pelo turba massacrou, pilhou e levou as mulheres da aldeia. «Buleau e
menos exteriormente eles eram, ou são, mais generosos, mais liberais. Bobal eram antes amigos e apenas rivais», disseram a Thurnwald.
Quando por ocasião das festas tribais, das cerimónias cios clãs Todos nós observámos factos destes, até mesmo à nossa volta.
fronteiros e das famílias que se aliam ou se iniciam reciprocamente, os
e?) Arf.:01/(ll/(S, p. 246.
grupos visitam-se; mesmo quando, nas sociedades mais avançadas - ao e.1) Salomo /nseln, t. Ili, táhua 85, nota 2.

194 ]95
L\/SAIO SOBRE A DAD!VA
CONCLUSÃO

Foi opondo raôo e sentimento, pondo a vontade de pa;: contra


sulítcí.rio alternativamente, na riquu.a acumulada e depois redistribuída
brusca;-; loucuras deste género que os pnvos lograram suhqituir a
no respeito rnütuo e na generosidade recíproca que a cducac;ão ensina.
alianç:L a dúdi,·a e o crnuércio 21 guerra. au isolarnL'nto e à cstagnac;ilo.
Jcl vemos como é possível estudar, cm certos casos, o comporta-
lstu é o que se encontraria no final desta:-. invcstig:açôes. As
mento humano total. toJa a vida social; e vemos também como este
sociedades progrcdir:un na medida cm que elas pn"lprias, us seus
estudo concreto pode condu1ir não apenas a uma ciência dos costumes,
subgrupos e, enfi111, us seus indivíduo:-;, souberam estahili1.ar as suas
a uma ciência social parcial. ma:-. até a conc!usôes de moral, ou melhor
rela~·fies, dar, receber e. finalmente, retribuir. Para CllllleJTÍar, era
-- para retornar o velho termo - , ele «civilidade», de «civismox,, como
primeiro neccss:ll·iu sahcr dcpl1r as lanc;as. Fni cnt;\o lJUe teve êxito a
agora se di;:. Estudos deste género pcrrnilcrn, com efeito. entrever,
troca dos bens e das pessoas. 11'.io apenas de cL-ts par:1 clüs. mas de
medir, ponderar ()S diversos motivos estéticos, morais, religiosos,
trihos para tribos e de na'i:úc;-, par:t naç(ks, sllbrctudo de indivíduos
ccunómicos, os diversos factores materiais e demográficos cujo
para indidduos. Foi só depois que as 1wssoas souberam criar para si.
co11junto runda :1 sociedade e constitui a vida cm curnum, e cuja
satisfo1cr interesses mútuos e, enfim. defendê-los sem terem que
dirt.'.c<ção consciente é a arte suprema, a Política, no sentido socrático
recorrer :ts armas. Assim. o clii, a tribo, os povos souhcr,un -- e é assim do termo.
que amanhü. no nosso mundo dit() civili1.-ido. as classes, as na\\Jes e
também os índivíduos dc,·cm saber - opor-se :-;cm ;-,e massacrarem e
dar-se sem se sacrificarem uns aos outros. Aí cstú um dos segredos
permanentes da sua sabedoria e slilidaricdade.
Nüo hú outra rnnral, nelll outra economia. nem outras prútic:ts
sociais p;ira além daquelas. Os Brl't(lcs, as Cliro11ir1ucs cl'i\rtlwr,
contam(':) corno o rl'i J\rlur. com a ajuda de um carpinteiro da
Cornualha, inventou e:-,ta maravilha da sua corte: a ,<TÚ\'ola redonda,)
miraculosa cm torno da qual os cavaleiros deixaram de lutar.
Antcrionnentc, «por sôn!ida inveja>,. cm escaramuças e.s,tüpidas,
duelos e assassínios ensanguentavam os mais belos festins. O
carpinteíro disse a J\rtur: «F;ir-tc-ci uma mesa muito bela. onde
podcr5o sentar~sc seiscentos e mais, e andar cin volta. c de onde
ninguém será excluído .. Nenhum cavaleiro poderá travar combale.
pois ali o de maior de:--.taquc e:-.l;ir:'t ao mesmo nível que o de menor
destaque.>> Nilo rnais houve «lugar de honn.n e, por C()nscguinte, núo
mais houve querelas. Por toda a parte onde Artur levou a sua Túvola,
a sua companhia manteve-se alegre e invencível. (~ assim que ainda
hoje se fa1ern as naç()es, fortes e ricas. felizes e buas. Os povos, as
classes, as famílias, os indivíduos, poderão enriquecer. mas não serão
felizes senão quando souberem sentar-se, tal como cavaleiros. à volta
da riqueza comum.(~ inútil ir procurar longe o bem e a felicidade. pois
ele cstú ali, na paz imposta, no trabalho hem ritmado. comum e

C') l,.oywnon '.1· Hmt, verso 2273(1 e :--.cgs. Hmt, Vl'l'SO 9994 e scgs.

196
197
ÍNDICE

Introdução à obra de Marcel Mauss, por Claude Lévi-Strauss ........... 9

ENSAIO SOBRE A DÁDIVA


FORMA E RAZÃO DA TROCA
NAS SOCIEDADES ARCAICAS

INTRODUÇÃO
Da dúdiva, e cm particular da obrigação de retribuir os presentes .. .49

CAPÍTULO I
As dádivas trocadas e a obrigação de as retribuir (Polinésia) ........... 59
I ~ Prestação total, bens uterinos
contra bens masculinos (Samoa) . ......... ,59
II - O espírito da coisa dada (Maori). ...63
ITI - Outro terna: a obrigação de dar, a obrigação de recebei ......... 67
IV - O presente feito aos homens e o presente feito aos deuses .... 69

CAPÍTULO li
Extensão deste sistema (!ibcralicladc, honra, moeda) ....... 79
I - Regras da generosidade. Andamans ...... . ...79
II - Princípios, razões e intensidade das trocas
de dádivas (Mclanésia). .. .. 81
III - Noroeste americano . .. ........ 103

CAPÍTULO III
Sobrcvivêncías destes princípios nos direitos antigos
e nas economias antigas ..... . ...................... 143
I - Direito pessoal e real .. ...144
ll - Direito hindu clássico ............. 156
III - Direito germânico ..... . ............ 167

CAPÍTULO IV
Conclusão ............ . ............. 175
I - Conclusões de moral . ............... 175
ll - Conclusões de sociologia económica e de economia política .... 183
III - Conclusão de sociologia geral e de moral ............................ 191

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