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CORRESPONDÊNCIAS

ENTRE
ELISABETH E DESCARTES
Elisabeth a Descartes
Haia, 6 de Maio de 1643

Senhor Descartes,

Soube, com muita alegria e pena, da intenção que tivestes de me


ver, há alguns dias, e senti-me igualmente tocada pela caridade de
quererdes comunicar com uma pessoa ignorante e indócil e pela
infelicidade que me furtou a uma conversação tão proveitosa. O senhor
Pallotti aumentou grandemente esta última paixão ao repetir-me as
soluções que lhe fornecestes das obscuridades contidas na física do
senhor Regius, acerca das quais teria sido mais bem instruída pela
vossa boca, tal como acerca de uma questão que coloquei ao dito
professor, quando ele esteve nesta cidade, a cujo respeito me remeteu
para vós a fim de receber a satisfação pretendida. A vergonha de vos
mostrar um estilo tão desordenado impediu-me até agora de vos pedir
esse favor por carta.
Hoje, porém, o senhor Pollot deu-me tanta segurança da vossa
bondade em relação às pessoas e, particularmente, em relação a mim,
que afastei qualquer outra consideração do espírito, salvo as que me
dão algum proveito, ao pedir-vos que me digais como é que a alma do
homem (sendo uma mera substância pensante) pode determinar os
espíritos do corpo! a fazer as ações voluntárias. Efetivamente, parece
que toda a determinação de movimento se faz pela impulsão da coisa
movida, segundo o modo pelo qual é impelida por aquela que a move,
ou conforme a qualificação e a figura da superfície desta última. O
contato é exigido às duas primeiras condições e a extensão à terceira.
Excluís esta inteiramente da noção que tendes da alma e aquele
parece-me incompatível com uma coisa imaterial. Por isso, peço-vos
uma definição da alma mais particular do que na vossa Metafísica, ou
seja, da sua substância, separada da sua ação, do pensamento. Pois,
ainda que os suponhamos inseparáveis (o que é, no entanto, difícil de
provar no ventre da mãe e nos grandes desfalecimentos), como os
atributos de Deus, podemos, considerando-os à parte, adquirir uma
ideia mais perfeita dos mesmos.
Conhecendo-vos como o melhor médico para a minha alma,
revelo tão livremente as fraquezas das suas especulações e espero
que, observando o juramento de Hipócrates, as remediareis, sem as
divulgar publicamente; o que vos peço que façais e, bem assim, que
suporteis estas importunidades da

Vossa amiga afeiçoada a servir-vos,

Elisabeth
Descartes a Elisabeth
Egmond de Hoef, 21 de Maio de 1643

Senhora,

O favor com que Vossa Alteza me honrou, ao transmitir-me por


escrito os seus pedidos, é maior do que alguma vez ousara esperar; e
consola melhor os meus defeitos do que aquele que eu desejara com
paixão, que era recebê-los de viva voz, se tivesse podido ser admitido
na honra de vos obsequiar e vos oferecer os meus muito humildes
préstimos, quando, recentemente, estive em Haia. Efetivamente, teria
tido demasiadas maravilhas para admirar ao mesmo tempo; e, vendo
sair discursos mais que humanos de um corpo tão semelhante aos que
os pintores dão aos anjos, teria ficado extasiado do mesmo modo que
me parecem dever ficar aqueles que, vindo da terra, acabam de entrar
no céu. O que me tornaria menos capaz de responder a Vossa Alteza,
que, sem dúvida, já notou em mim este defeito, quando tive
anteriormente a honra de lhe falar; e a vossa clemência quis aliviá-lo
deixando-me os traços dos vossos pensamentos num papel, onde,
relendo-os várias vezes e acostumando-me a considerá-los, fico
verdadeiramente menos ofuscado, mas a minha admiração por eles é
cada vez maior, notando que não só se revelam engenhosos à partida,
mas tanto mais judiciosos e sólidos quanto mais os examinamos.
E posso dizer com verdade que a questão que Vossa Alteza
propõe me parece ser aquela que mais fundadamente se me pode
colocar, no seguimento dos escritos que publiquei. Porquanto,
havendo duas coisas na alma humana das quais depende todo o
conhecimento que podemos ter da sua natureza -uma delas é que ela
pensa, a outra que, estando unida ao corpo, ela pode agir e padecer
com ele -, não disse quase nada desta última e apliquei-me apenas a
elucidar a primeira, dado que o meu desígnio principal era provar a
distinção que existe entre a alma e o corpo; para o que só esta pôde
servir e a outra teria sido prejudicial. Mas, como Vossa Alteza vê tão
claro que se lhe não pode esconder nada, vou tentar explicar aqui de
que maneira concebo a união da alma com o corpo e como é que ela
tem a força de o mover.
Em primeiro lugar, considero que há em nós certas noções
primitivas, que são como originais, sobre cujo padrão formamos todos
os nossos, outros conhecimentos. E tais noções são muito poucas;
com efeito, a seguir as mais gerais, do ser, do número, da duração,
etc., que convêm a tudo o que podemos conceber, só temos, para o
corpo em particular, a noção da extensão, da qual decorrem as da
figura e do movimento; e, para a alma sozinha, temos apenas a do
pensamento, na qual estão compreendidas as percepções do
entendimento e as inclinações da vontade; finalmente, para a alma e
o corpo juntos, só temos a da sua união, da qual depende a da força
que a alma tem de mover o corpo e o corpo de agir sobre a alma
causando os seus sentimentos e paixões.
Considero igualmente que toda a ciência dos homens consiste
apenas em distinguir bem estas noções e em atribuir cada uma delas
somente às coisas a que pertencem. Com efeito, quando queremos
explicar alguma dificuldade através de uma noção que não lhe
pertence, não podemos evitar enganar-nos; tal como quando
queremos explicar uma destas noções por uma outra; já que, sendo
primitivas, cada uma delas só pode ser entendida por si mesma. E
visto que o uso dos sentidos nos tornou as noções da extensão, das
figuras e dos movimentos, muito mais familiares do que as outras, a
causa principal dos nossos erros está em querermos servir-nos
ordinariamente destas noções para explicar as coisas às quais elas
não pertencem, a exemplo do que acontece quando queremos servir-
nos da imaginação para conceber a natureza da alma, ou quando
queremos conceber o modo como a alma move o corpo pelo modo
como um corpo é movido por um outro corpo.
Por esse motivo, dado que, nas Meditações que Vossa Alteza se
dignou ler, procurei levar a conceber as noções que pertencem só à
alma, distinguindo-as das que pertencem só ao corpo, a primeira coisa
que tenho de explicar em seguida é o modo de conceber as que
pertencem à união da alma com o corpo, sem as que pertencem só ao
corpo ou só à alma. Para tal, parece-me que pode ser útil o que escrevi
no fim da minha Resposta às sextas objecções; porquanto não
podemos procurar estas noções simples fora da nossa alma, que, pela
sua natureza, as possui todas em si, mas que nem sempre as distingue
suficientemente umas das outras ou não as atribui aos objetos aos
quais devemos atribuí-las.
Assim, creio que anteriormente confundimos a noção da força
com que a alma age sobre o corpo com aquela com que um corpo age
sobre um outro; e que atribuímos ambas, não à alma, pois ainda a não
conhecíamos, mas às diversas qualidades dos corpos, como ao peso,
ao calor e às outras que imaginamos serem reais, isto é, terem uma
existência distinta da do corpo e, por conseguinte, serem substâncias,
embora as tenhamos denominado qualidades.
E servimo-nos, para as conceber, umas vezes das noções que
existem em nós para conhecer o corpo, outras vezes das que existem
em nós para conhecer a alma, conforme lhes atribuímos algo de
material ou imaterial. Por exemplo, ao supor que o peso é uma
qualidade real, de que não temos qualquer outro conhecimento senão
que possui a força de mover o corpo, no qual está, em direção ao
centro da terra, não temos dificuldade em conceber como é que ele
move esse corpo, nem como é que está junto dele; e não pensamos
que isso se faça por um contato real de uma superfície com outra, pois
experimentamos, em nós mesmos, que temos uma noção particular
para conceber isso; e creio que usamos mal esta noção ao aplicá-la
ao peso, que não é nada de realmente distinto do corpo, como espero
mostrar na Física, mas que nos foi dada para conceber o modo pelo
qual a alma move o corpo.
Demonstraria não conhecer suficientemente o incomparável
espírito de Vossa Alteza, se utilizasse mais palavras para me explicar,
e seria demasiado presunçoso, se ousasse pensar que a minha
resposta vos devesse satisfazer inteiramente; mas tentarei evitar
ambas as coisas, não acrescentando mais nada aqui senão que, se
for capaz de escrever ou de dizer algo que vos possa agradar, cederei
sempre ao muito grande favor de pegar na pena ou de ir a Haia para
esse efeito, e que não há nada no mundo que me seja tão caro como
poder obedecer aos vossos pedidos. Mas, aqui, não sou capaz de
encontrar lugar para a observância do juramento de Hipócrates que
Vossa Alteza me prescreve, porque não me comunicou nada que não
mereça ser visto e admirado por todos os homens. Posso dizer
apenas, a este propósito, que, estimando infinitamente a carta que me
enviastes, utilizá-la-ei como os avarentos fazem com os seus tesouros,
que escondem tanto mais quanto mais os estimam e, causando inveja
ao resto do mundo, colocam o seu contentamento soberano em
contemplá-los. Assim, serei muito feliz por fruir sozinho do bem que é
vê-la; e a minha maior ambição é poder dizer-me e ser
verdadeiramente, etc.
Elisabeth a Descartes
Haia, 20 de Junho de 1643

Senhor Descartes,

A vossa bondade não se manifesta somente ao mostrar-me e ao


corrigir-me os defeitos do meu raciocínio, como eu entendera, mas
também em que, para me tornar o seu conhecimento menos penoso,
procurastes consolar-me, em detrimento do vosso juízo, com falsos
louvores que teriam sido necessários para me encorajar a encontrar
remédio, se a minha criação, num meio onde a maneira usual de
conversar me acostumou a ouvir pessoas incapazes de fazer louvores
verdadeiros, não me tivesse feito julgar que não podia enganar-me ao
crer no contrário do seu discurso e, com isso, me não tivesse tornado
tão familiar a consideração das minhas imperfeições, que já não me
dá tanta emoção como precisaria para o desejo de me desfazer delas.
Isso leva-me a confessar, sem vergonha, que encontrei em mim
todas as causas de erro, que notais na vossa carta, e que ainda as
não pude banir inteiramente, porque a vida que sou obrigada a levar
não me deixa tempo disponível suficiente para adquirir um hábito de
meditação segundo as vossas regras. Umas vezes, os interesses da
minha casa, que não devo negligenciar, outras vezes, as
conversações e os comprazimentos, que não posso evitar, abatem-me
tão pesadamente, com desgosto ou tédio, este espírito débil, que ele
fica, durante um tempo considerável, inútil para qualquer outra coisa:
o que servirá, espero, como desculpa para a minha estupidez de não
ser capaz de compreender a ideia pela qual temos de julgar o modo
como a alma (não extensa e imaterial) pode mover o corpo através
daquela ideia que, outrora, tivestes do peso; nem por que é que este
poder que, então, falsamente lhe atribuístes, sob o nome de uma
qualidade, de impelir o corpo para o centro da terra, nos deve persuadir
mais que um corpo pode ser impelido por algo de imaterial do que a
demonstração de uma verdade contrária (que prometeis na vossa
física) nos deve confirmar na opinião da sua impossibilidade:
principalmente porque esta ideia (não podendo aspirar à mesma
perfeição e realidade objetiva que a de Deus) pode ser forjada pela
ignorância daquilo que verdadeiramente move esses corpos para o
centro. E, porque nenhuma causa material se apresentava aos
sentidos, ter-se-ia atribuído ao seu contrário, o imaterial, o que todavia
nunca pude conceber senão como uma negação da matéria, que não
pode ter nenhuma comunicação com ela.
E confesso que me seria mais fácil conceder matéria e extensão
à alma do que a capacidade de mover um corpo e de ser movido por
ele a um ser imaterial. Efetivamente, se o primeiro se fizesse por
informação, seria preciso que os espíritos, que produzem o
movimento, fossem inteligentes, o que não concedeis a nada de
corpóreo. E, ainda que, nas vossas Meditações Metafísicas, mostreis
a possibilidade do segundo, é, porém, muito difícil compreender que
uma alma, tal como a descrevestes, depois de ter tido a faculdade e o
hábito de bem raciocinar, possa perder tudo isso por via de alguns
vapores e que, podendo subsistir sem o corpo e não tendo nada em
comum com ele, seja tão dirigida por ele.
Mas, desde que começastes a instruir-me, só cultivo estes
sentimentos como amigos que não creio manter, assegurando-me que
me explicareis tanto a natureza de uma substância imaterial e o modo
das suas ações e paixões no corpo como todas as outras coisas que
quisestes ensinar. Peço-vos também para crerdes que não podeis
fazer essa caridade a ninguém que seja mais sensível à obrigação que
vos tem do que

A vossa muito afeiçoada amiga,

Elisabeth
Descartes a Elisabeth
Egmond de Hoef, 28 de Junho de 1643

Senhora,

Tenho uma enorme obrigação para com Vossa Alteza porque,


depois de ter experimentado que me expliquei mal nas minhas cartas
precedentes, sobre a questão que vos aprouve colocar-me, ainda vos
dignais ter a paciência de me ouvir sobre o mesmo assunto e de me
dar oportunidade de constatar as coisas que omitira. As principais das
quais me parecem ser que, depois de ter distinguido três gêneros de
ideias ou de noções primitivas que se conhecem cada uma de uma
maneira particular e não pela comparação de umas com as outras, a
saber, a noção que temos da alma, a do corpo e a da união que existe
entre a alma e o corpo, devia explicar a diferença que existe entre
estes três tipos de noções e entre as operações da alma pelas quais
as possuímos, e dizer os meios de nos tornar familiar e fácil cada uma
delas; depois, tendo dito por que é que me servira da comparação do
peso, mostrar que, ainda que se queira conceber a alma como material
(o que é propriamente conceber a sua união com o corpo), não se
deixa de conhecer, posteriormente, que ela se pode separar dele. O
que é, segundo creio, toda a matéria que Vossa Alteza me prescreveu
aqui.
Em primeiro lugar, portanto, noto uma grande diferença entre
estes três tipos de noções, já que a alma só se concebe pelo
entendimento puro; o corpo, ou seja, a extensão, as figuras e os
movimentos, também se podem conhecer pelo mero entendimento,
mas muito melhor pelo entendimento auxiliado pela imaginação; e,
finalmente, as coisas que pertencem à união entre a alma e o corpo só
obscuramente se conhecem pelo mero entendimento, ou mesmo pelo
entendimento auxiliado pela imaginação, mas conhecem-se muito
claramente pelos sentidos. Daí que aqueles que nunca filosofam e só
se servem dos sentidos não duvidem que a alma mova o corpo e que
o corpo aja sobre a alma, antes considerem ambas as coisas como
uma só, isto é, concebam a sua união; pois conceber a união que
existe entre duas coisas é concebê-las Como uma só. E os
pensamentos metafísicos, que exercitam o entendimento puro, servem
para nos tornar familiar a noção da alma; e o estudo da matemática,
que exercita principalmente a imaginação na consideração das figuras
e dos movimentos, habitua-nos a formar noções do corpo bem
distintas; e, finalmente, é tão-só ao viver a vida e as conversações
ordinárias, e ao abster-se de meditar e de se aplicar às coisas que
exercitam a imaginação, que se aprende a conceber a união entre a
alma e o corpo.
Tenho quase receio de que Vossa Alteza pense que eu não esteja
aqui a falar com seriedade, mas isso seria contrário ao respeito que
lhe devo, e que nunca deixarei de lhe ter. E posso dizer com verdade
que a regra principal que sempre observei nos meus estudos e que
julgo ter sido a que mais me serviu para adquirir algum conhecimento
foi que sempre dispensei muito poucas horas por dia aos pensamentos
que ocupam a imaginação e muito poucas horas por ano aos que
ocupam o simples entendimento e que dediquei todo o resto do meu
tempo ao descanso dos sentidos e ao repouso do espírito; conto,
inclusive, entre os exercícios da imaginação, todas as conversas
sérias e tudo aquilo a que é preciso ter atenção. Foi o que me fez retirar
para o campo, porquanto, ainda que na cidade mais ocupada do
mundo pudesse ter tantas horas para mim como as que emprego
agora no estudo, não poderia, contudo, empregá-las aí tão utilmente,
quando o meu espírito estivesse cansado pela atenção que a agitação
da vida requer. O que tomo a liberdade de escrever aqui a Vossa
Alteza, para lhe testemunhar que admiro verdadeiramente que, entre
as ocupações e os cuidados que nunca faltam às pessoas que são
simultaneamente de grande espírito e de grande nascimento, ela
tenha podido aplicar-se às meditações que se exigem para conhecer
bem a distinção que existe entre a alma e o corpo.
Mas julguei que foram estas meditações, mais do que os
pensamentos que requerem menos atenção, que vos fizeram
encontrar obscuridade na noção que temos da sua união; não me
parecendo que o espírito humano fosse capaz de conceber muito
distintamente e ao mesmo tempo a distinção entre a alma e o corpo e
a sua união, dado que é preciso, para isso, concebê-Ias como uma só
coisa e, simultaneamente, concebê-los como dois, o que é
contraditório. E, para esse efeito (supondo que Vossa Alteza tinha
ainda as razões que provam a distinção entre a alma e o corpo muito
presentes ao espírito, e não querendo pedir que se desfaça delas para
se representar a noção da união que cada um experimenta sempre em
si mesmo sem filosofar; a saber, que é uma só pessoa que tem
conjuntamente um corpo e um pensamento, que são de tal natureza
que este pensamento pode mover o corpo e sentir os acidentes que
lhe acontecem), recorri anteriormente à comparação do peso e das
outras qualidades que comumente imaginamos estarem unidas a
alguns corpos, tal como o pensamento está unido ao nosso; e não me
inquietei que esta comparação fraquejasse por estas qualidades não
serem reais, tal como as imaginam, pois acreditei que Vossa Alteza já
estava inteiramente persuadida de que a alma é uma substância
distinta do corpo.
Mas como Vossa Alteza nota que é mais fácil atribuir matéria e
extensão à alma do que atribuir-lhe a capacidade de mover um corpo
e de ser movida por ele, sem ter matéria, peço-lhe que atribua
livremente essa matéria e essa extensão à alma; porquanto isso mais
não é do que concebê-la unida ao corpo.
E, depois de ter concebido bem isso e de o ter experimentado em
si mesma, ser-lhe-á fácil considerar que a matéria que terá atribuído a
esse pensamento não é o próprio pensamento e que a extensão dessa
matéria é de uma natureza diferente da extensão desse pensamento,
em virtude de a primeira estar determinada a um certo lugar, do qual
exclui qualquer outra extensão de corpo, o que a segunda não faz. E,
assim, Vossa Alteza não deixará de convir facilmente no conhecimento
da distinção entre a alma e o corpo, apesar de ter concebido a sua
união.
Finalmente, como creio que é muito necessário ter compreendido
bem, uma vez na vida, os princípios da metafísica, porque são eles
que nos dão o conhecimento de Deus e da nossa alma, creio também
que seria muito prejudicial ocupar muitas vezes o entendimento a
meditá-los, porque não poderia ocupar-se tão bem das funções da
imaginação e dos sentidos; mas o melhor é contentar-se em reter na
memória e na crença as conclusões a que se chegou uma vez e,
depois, empregar o resto do tempo que se tem para o estudo, nos
pensamentos em que o entendimento age com a imaginação e os
sentidos.
A extrema devoção, que tenho no serviço de Vossa Alteza, faz-
me esperar que a minha franqueza não lhe seja desagradável e ela
ter-me-ia levado a um discurso mais longo no qual, desta vez, teria
procurado esclarecer todas as dificuldades da questão proposta, mas
uma notícia aborrecida que acabo de receber de Utreque, onde o
magistrado me cita para verificar o que escrevi acerca de um dos seus
ministros, embora seja um homem que me caluniou muito
indignamente e o que escrevi sobre ele para minha justa defesa seja
mais do que óbvio para toda a gente, obriga-me a terminar aqui, a fim
de ir consultar os meios para sair destas contendas o mais
rapidamente que puder.

Sou, Senhora, o muito humilde e muito obediente servidor de


VA.,

Descartes
Elisabeth a Descartes
Haia, 1 de Julho de 1643

Senhor Descartes,

Receio que não recebais tanto incómodo pela minha estima das
vossas instruções e pelo meu desejo de tirar proveito delas como pela
ingratidão daqueles que a si mesmos se privam delas e queriam privar
delas o gênero humano; e não vos enviaria um novo efeito da minha
ignorância antes de vos saber liberto da obstinação deles, se o senhor
Van Bergen não me tivesse obrigado a isso mais cedo, pela sua
gentileza de querer ficar nesta cidade até eu lhe dar uma resposta à
vossa carta de 28 de Junho, que me faz ver claramente os três tipos
de noções que temos, os seus objetos e como devemos utilizá-las.
Acho também que os sentidos me mostram que a alma move o
corpo, mas que não me ensinam (como tampouco o entendimento e a
imaginação) o modo como ela o faz. E, para isso, penso que há
propriedades da alma, que nos são desconhecidas, que poderão
talvez inverter aquilo de que as vossas Meditações Metafísicas me
persuadiram, por muito boas razões, da inextensão da alma. E esta
dúvida parece fundar-se na regra que aí apresentais ao falardes do
verdadeiro e do falso e que todo o erro nos vem de formarmos juízos
acerca do que não percebemos suficientemente. Ainda que a extensão
não seja necessária ao pensamento, o que não repugna nada, ela
poderá convir a alguma outra função da alma que lhe não é menos
essencial. No mínimo, ela deita por terra a contradição dos
Escolásticos, que ela está toda em todo o corpo e toda em cada uma
das suas partes. Não peço desculpa por confundir a noção da alma
com a do corpo pela mesma razão que o vulgo, mas isso não me livra
da primeira dúvida e desesperarei de encontrar alguma certeza em
algo do mundo, se não me derdes, vós que fostes o único que me
impediu de ser céptica, para onde me levava o meu primeiro
raciocínio.
Ainda que vos devesse esta confissão, para vos agradecer,
considerá-la-ia demasiado imprudente, se não conhecesse a vossa
bondade e generosidade, igual aos vossos outros méritos tanto pela
experiência que já tive deles como pela reputação. Não a podeis
manifestar de um modo mais prestável do que pelos esclarecimentos
e conselhos que me confiais e que estimo acima dos maiores tesouros
que pudesse possuir.

A vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos,

Elisabeth
Descartes a Elisabeth

Egmond de Hoef, Novembro de 1643

Senhora,
Tendo sabido pelo senhor Pollot que Vossa Alteza se deu ao
trabalho de investigar a questão das três circunferências e que
encontrou o meio de a resolver, supondo apenas uma quantidade
desconhecida, pensei que o meu dever me obrigava a apresentar aqui
a razão pela qual propusera várias e a maneira como as distingo.
Ao investigar uma questão de Geometria, procedo sempre de tal
modo que as linhas, de que me sirvo para a resolver, sejam, tanto
quanto possível, paralelas ou se cruzem formando ângulos retos; e
não considero quaisquer outros teoremas senão que os lados dos
triângulos iguais têm, entre si, uma proporção igual e que, nos
triângulos retângulos, o quadrado da base é igual aos dois quadrados
dos lados. E não receio supor várias quantidades desconhecidas para
reduzir a questão a tais termos, porquanto ela depende tão-só desses
dois teoremas; pelo contrário, prefiro supor mais do que menos. Com
efeito, por este meio, vejo mais claramente tudo o que faço e, ao
distingui-las, encontro melhor os caminhos mais curtos e evito
multiplicações supérfluas; ao passo que, se se traçam mais linhas,
utilizam-se mais teoremas; embora possa acontecer, por acaso, que o
caminho encontrado seja mais curto que o meu, no entanto acontece
quase sempre o contrário. E não se vê tão claramente o que se faz, a
não ser que se tenha a demonstração do teorema a que se recorre
bem presente no espírito; e, neste caso, verifica-se quase sempre que
depende da consideração de alguns triângulos que são ou retângulos
ou iguais entre si e, assim, vem-se ter ao caminho que eu sigo.
Por exemplo, se se quiser investigar esta questão das três
circunferências, com a ajuda de um teorema que ensine a encontrar a
área de um triângulo pelos

seus três lados, basta unicamente supor uma quantidade


desconhecida. Pois, se A, B, C forem os centros das três
circunferências dadas e D o centro da circunferência a encontrar, os
três lados do triângulo ABC são dados e as três linhas AD, BD, CD são
formadas pelos três raios das circunferências dadas, juntos ao raio da
circunferência a encontrar, de tal modo que, supondo-se x para este
raio, se tenha todos os lados dos triângulos ABD, ACD, BCD; e, por
conseguinte, podem-se ter as suas áreas que, todas juntas, são iguais
à área do triângulo dado ABC; e pode-se! com esta equação, chegar
ao conhecimento do raio x, o único que é necessário para a solução
da questão. Mas este caminho parece-me levar a tantas multiplicações
supérfluas que não ousaria deslindá-la em três meses. É por isso que,
em vez das duas linhas oblíquas AB e BC, traço as três
perpendiculares BE, DG, DF, e, considerando três quantidades
desconhecidas,
uma para DF, outra para DG e outra para o raio da circunferência a
encontrar, tenho todos os lados dos três triângulos retângulos ADF,
BDG, CDF, que me dão três equações, visto que, em cada um deles,
o quadrado da base é igual aos dois quadrados dos lados.
Depois de, assim, ter feito tantas equações quantas as
quantidades desconhecidas que supus, verifico se, para cada
equação, posso encontrar uma em termos bastante simples; e, se não
puder, procuro chegar ao fim juntando duas ou mais equações por
adição ou subtração; e, finalmente, quando isso não é suficiente,
examino apenas se não será melhor mudar os termos de alguma
maneira. Pois, ao fazer este exame com atenção, encontra-se
facilmente os caminhos mais curtos e pode-se tentar uma infinidade
deles em muito pouco tempo.
Assim, neste exemplo, suponho que as três bases dos triângulos
retângulos são
AD = a+x
BD = b+ x
CD = c+ x

e, fazendo

AE = d, BE = e, CE = j, DF ou GE = y, DG ou FE = z

tenho para os lados dos mesmos triângulos

AF = d - z e FD = y
BG = e - y e DG = z
CF = j + z e FD = y
Depois, fazendo o quadrado de cada uma destas bases igual ao
quadrado dos dois lados, tenho as três equações seguintes:

aa + 2ax + xx = dd - 2dz + zz + yy
bb + 2bx + xx = ee - 2ey + yy + zz
cc + 2cx + xx = f f + 2 fz + zz + yy

e vejo que, só com uma delas, não posso achar nenhuma das
quantidades desconhecidas sem calcular a raiz quadrada, o que
complicaria demasiado a questão. É por isso que sigo a segunda
possibilidade, que consiste em juntar duas equações, e apercebo-me
imediatamente de que, sendo os termos xx, yy e zz iguais nas três
equações, se retirar uma de uma outra, à minha escolha, eles
desaparecerão e, assim, não terei mais termos desconhecidos para
além dos simples x, y e z. Vejo também que, se retirar a segunda da
primeira ou da terceira, terei os três termos x, y e z, mas, se retirar a
primeira da terceira, só terei x e z. Escolho portanto este último
caminho e obtenho

cc + 2cx - aa - 2ax = ff + 2 fx - dd + 2dz

ou

z = cc - aa + dd - ff + 2cx - 2ax
2d+2f

ou
1 d _ 1 f + cc - aa + 2cx - 2ax
2 2 2d+2f

Depois, retirando a segunda equação da primeira ou da terceira (já que


elas se equivalem) e colocando no lugar de z os termos que acabo de
achar, tenho pela primeira e a segunda:

aa + 2ax - bb - 2bx = dd - 2dz - ee + 2ey

ou

2ey = ee + aa + 2ax - bb - 2bx - dd + dd - df + ccd - aad + 2cdx - 2adx


d+f

ou

1 bb bx df ccd + aaf + 2cdx + 2afx


y = -- e - --- - --- - --- + --------------------------------
2 2e e 2e 2ed + 2ef

Por último, voltando a uma das três primeiras equações e colocando


no lugar de y ou de z as quantidades que lhes são iguais, e os
quadrados destas quantidades por yy e zz, obtém-se uma equação
onde só x e xx são desconhecidos; de tal modo que o problema fica
simples e não há necessidade de ir mais longe.
Efetivamente, o resto não serve para cultivar ou recrear o espírito,
mas unicamente para exercitar a paciência de um calculador laborioso.
Mesmo assim, receio ter-me tornado aqui aborrecido a Vossa Alteza,
porque me limitei a escrever coisas que seguramente sabia melhor do
que eu, e que são fáceis, mas que, contudo, são os pontos chave da
minha álgebra. Peço-vos muito humildemente para acreditardes que é
a devoção que tenho em honrar-vos que me levou a isso e que sou,
Senhora,
O muito humilde e muito obediente servidor de VA.,
Descartes
Elisabeth a Descartes
Haia, 21 de Novembro de 1643

Senhor Descartes,
Se eu tivesse tanta habilidade para seguir os vossos conselhos
como tenho vontade de o fazer, encontraríeis já os efeitos da vossa
caridade nos progressos que teria realizado no raciocínio e na álgebra,
de que, neste momento, só vos posso mostrar as falhas. Mas estou
tão habituada a vo-las mostrar, que me acontece, como aos velhos
pecadores, perder completamente toda a vergonha. Pelo que fizera
tenção de vos enviar a solução da questão que me tínheis
colocado, pelo método que me haviam ensinado outrora, tanto para
vos obrigar a dizer-me as suas falhas como porque não sou tão
versada no vosso. Pois notava de facto que as havia na minha solução,
não vendo suficientemente claro para daí deduzir um teorema; mas
nunca teria encontrado a sua razão sem a vossa última carta, que me
dá toda a satisfação que eu pedia e me ensina mais do que teria
conseguido em seis meses com o meu mestre. Devo-vos muito por
isso e nunca teria perdoado ao senhor Pollot se ele tivesse usado a
vossa carta segundo a vossa ordem. No entanto, só quis entregar com
a condição de que vos enviaria o que fizera. Por conseguinte, não
acheis mal que vos dê um incómodo supérfluo, porque há poucas
coisas que eu faria para obter estes efeitos da vossa boa vontade, que
é infinitamente estimada pela

Vossa amiga muito afeiçoada a servir-vos,

Elisabeth
Descartes a Elisabeth
Egmond de Hoef, Novembro de 1643

Senhora,

A solução, que aprouve a Vossa Alteza conceder a honra de


enviar-me, é tão exata que não se pode desejar mais nada a esse
respeito; e não fiquei somente admirado ao vê-Ia, mas não posso
abster-me de acrescentar que fiquei também cheio de alegria e tive a
vaidade de ver que o cálculo, de que Vossa Alteza se serve, é
inteiramente semelhante ao que eu propus na minha Geometria. A
experiência dera-me a conhecer que a maior parte dos espíritos que
têm facilidade em entender os raciocínios da metafísica não são
capazes de conceber os da álgebra, e, reciprocamente, que os que
compreendem facilmente estes são normalmente incapazes de
compreender os outros; e só conheço o espírito de Vossa Alteza para
o qual todas as coisas são igualmente fáceis. É verdade que já tinha
tantas provas disso que não podia ter qualquer dúvida; receava
apenas, porém, que lhe faltasse a paciência, que é necessária no início
para ultrapassar as dificuldades do cálculo. Trata-se, efetivamente, de
uma qualidade que é extremamente rara nos espíritos excelentes e
nas pessoas de condição elevada.
Agora que esta dificuldade foi vencida, terá muito mais prazer no
resto e, ao substituir várias letras por uma só, tal como fez aqui
imensas vezes, o cálculo não lhe será aborrecido. É uma coisa que se
pode fazer quase sempre, quando se quer ver somente qual a
natureza de uma questão, ou seja, se ela se pode resolver com a régua
e o compasso ou se é preciso utilizar algumas outras linhas curvas do
primeiro ou do segundo gênero etc., e qual o caminho para a
encontrar; que é, normalmente, tudo o que me interessa a respeito das
questões particulares. Já que me parece que o excesso, que consiste
em procurar a construção e a demonstração pelas proposições de
Euclides, escondendo o procedimento da álgebra, é apenas um
divertimento para os pequenos geômetras, que não requer muito
espírito nem muita ciência. Mas, quando há alguma questão que se
quer acabar para se fazer dela um teorema que sirva
de regra geral para resolver outras semelhantes, é preciso reter até ao
final todas as letras que se puseram no início; ou então, se se mudam
algumas delas para facilitar o cálculo, é preciso repô-Ias mais tarde,
para que estejam no final, já que, por via de regra, várias se apagam
umas às outras, o que não se pode ver, quando as mudámos.
Também é bom observar que as quantidades, que são
denominadas pelas letras, tenham, tanto quanto possível, uma relação
semelhante umas com as outras. Isso torna o teorema mais belo e
mais curto, porque o que se enuncia de uma destas quantidades se
enuncia, da mesma maneira, das outras e impede que se possa falhar
no cálculo, porque as letras, que significam quantidades que têm uma
mesma relação, devem-se encontrar distribuídas do mesmo modo e,
quando isso falta, reconhece-se o seu erro.
Assim, para encontrar um teorema que ensine qual é o raio da
circunferência que toca os três dados por posição, não se precisaria
de pôr, neste exemplo, as três letras a, b, c para as linhas AD, De, DB,
mas para as linhas AB, AC, e BC, porque estas últimas têm, cada uma
delas, a mesma relação com as três AH, BH e CH, o que não têm as
primeiras. E, continuando o cálculo com estas seis letras, sem as
mudar e sem acrescentar outras, pelo caminho que Vossa Alteza
seguiu (pois é melhor para isso do que aquele que eu propusera), tem
de se chegar a uma equação muito regular que dará um teorema
bastante curto. Pois as três letras a, b, c estão aí dispostas do mesmo
modo, e também as três d, e, f.
Mas, porque o seu cálculo é aborrecido, se Vossa Alteza desejar
experimentar fazê-lo, ser-lhe-á mais fácil se supuser que as três
circunferências dadas são tangentes e se utilizar, em todo o cálculo,
somente as quatro letras d, e, f, x, que, sendo os raios das quatro
circunferências, têm uma relação semelhante entre si. E, em primeiro
lugar, encontrará

AK = dd + df + dx - fx
d+f

AD = dd + df + de - fe
d+f

onde já pode notar que x está na linha AK como e está na linha AD,
porque se encontra pelo triângulo AHC como o outro pelo triângulo
ABC. Depois, finalmente, terá esta equação,

ddeeff = 2deffxx + 2deeffx + ddeexx + 2deefxx + 2ddeffx + ddffxx


+ 2ddefxx + 2ddeefx + eeffxx
da qual se tira, para teorema, que as quatro somas, que se produzem
multiplicando em conjunto os quadrados de três destes raios, dão o
dobro de seis, que se produzem multiplicando dois destes raios um
pelo outro e pelos quadrados dos outros dois; o que basta para servir
de regra para encontrar o raio da maior circunferência que pode ser
descrita entre as três dadas que são tangentes.

Pois, se os raios destas três dadas são, por exemplo, d/2, e/3 e f/4,
terei 576 para ddeeff e 36xx para ddeexx e assim em relação aos
outros.
Donde acharei

x = 156 + 31104
47 2209
se não me enganei no cálculo que acabo de fazer.
E Vossa Alteza pode ver aqui dois procedimentos muito
diferentes numa mesma questão, conforme os diferentes objectivos
que nos propomos.
Pois, se quiser saber de que natureza é a questão e de que modo
pode ser resolvida, tomo como dadas as linhas perpendiculares ou
paralelas e suponho diversas quantidades desconhecidas, para não
fazer nenhuma multiplicação supérflua e ver melhor os caminhos mais
curtos; ao passo que, se a quiser acabar, tomo como dados os lados
do triângulo e suponho apenas uma letra desconhecida. Mas há uma
quantidade de questões, onde o mesmo caminho conduz a um e a
outro, e não duvido de que, em breve, Vossa Alteza veja até onde pode
alcançar o espírito humano nesta ciência. Considerar-me-ia
extremamente feliz, se pudesse contribuir alguma coisa para isso, pois
um zelo muito particular me leva a ser,

Senhora,

O muito humilde e muito obediente servidor de V.A.,

Descartes

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