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A retórica por uma educação de qualidade e

a avaliação de larga escala*


The rhetoric for quality education and the large scale assessment
Resumo Busca-se apresentar neste artigo a argumentação de que
se tem atrelado ao senso comum, especialmente por intermédio dos
meios de comunicação, a concepção de uma escola de qualidade
com resultados de bom desempenho dos estudantes. Tal perspec-
tiva desconsidera que qualidade em educação é termo polissêmico,
e que a educação escolar, por ser uma prática social e ter a forma-
ção cidadã como uma de suas funções, não pode ser avaliada em
sua função social apenas por exames de proficiência e desempenho
em disciplinas escolares. Discute-se essa questão a partir da ideia de
“qualidade negociada” como uma alternativa mais coerente com
as discussões científicas contemporâneas no campo da educação e,
principalmente, na avaliação educacional. Ou seja, uma qualidade
de natureza negociável, processual, contextual e transformadora.
Utilizou-se neste trabalho o meio impresso de comunicação, mais
especificamente um jornal de grande circulação da cidade do Rio
de Janeiro, como material de base para as primeiras análises. Este
estudo é um subprojeto de pesquisa inserido em uma investigação Claudia de Oliveira Fernandes
maior, a qual pretende analisar os impactos das avaliações de larga Universidade Federal do Estado
escala nas práticas cotidianas da escola de ensino fundamental. do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Palavras-chave avaliação de larga escala; qualidade nego- claudiafernandes@unirio.br
ciada; função social da educação escolar.
Henrique Dias Gomes de
Abstract This paper discusses that the common sense, especial- Nazareth
ly through the media, ties a good quality school to the students’ Universidade Federal do Estado
good performance. This perspective ignores that quality education do Rio de Janeiro (UNIRIO)
is a polysemic term and that the school education, being a social h_diasunirio@yahoo.com.br
practice and having citizenship training as one of its duties, cannot
be evaluated in its social function only by proficiency tests and per-
formance in school subjects. This issue is discussed from the idea
of “negotiated quality” as an alternative more consistent with the
contemporary scientific discussions in the field of education and,
mainly, in the educational evaluation - that is, a quality of nego-
tiable, procedural, contextual and transforming nature. This study
made use of printed media, specifically a widely read newspaper in
the city of Rio de Janeiro as the base material for its first analyses.
This study is a research subproject inserted in a larger investigation
which intends to analyze the impacts of large-scale assessment in
the daily practices of the elementary school.
Keywords large-scale assessment; negotiated quality; the
school education’s social function.

* Esta pesquisa contou com financiamento do Conselho Nacional de


Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Introdução ideológica ao contribuir para o fortalecimento

O
título deste artigo faz referência à re- somente de um determinado conceito. Pode-
tórica da qualidade da educação repro- mos dizer que este tem relações intrínsecas
duzida massivamente nas mídias e nos com o que Ball (2006) denomina de “revolu-
discursos de profissionais das diferentes áreas ção da qualidade”. O autor argumenta que a
que compõem o campo educacional e o objeti- educação está sujeita à retórica de aperfeiço-
vo deste estudo é problematizar e desvendar amento dessa chamada “revolução da quali-
as entrelinhas em diferentes contextos. dade”, que:
Ao observarmos como alguns jornais re-
tratam os temas relativos à educação, pode- Tem sido uma característica-chave
mos perceber que a maior parte dos sujeitos das reformas governamentais no
compartilha a ideia da existência de um gra- Reino Unido (e em vários outros lu-
ve problema no sistema de ensino brasileiro, gares) desde o início dos anos 1980.
especialmente relacionado ao baixo desem- [...] Muito da parafernália de qualida-
penho dos estudantes nos testes de larga es- de é tomada de empréstimo do setor
cala, resultando, portanto, em uma educação privado – o setor público, foi defendi-
de má qualidade. do [segundo essa retórica], e se be-
Essa ideia é compartilhada tão ampla- neficiaria da exposição às forças do
mente que quase atinge a consensualidade e, mercado, aos modelos comerciais de
em muitos níveis, acarreta a falta de reflexão gerenciamento e de aperfeiçoamen-
sobre o ideal educacional que almejamos. Ou to da qualidade (p.14).
seja, o excesso de importância que se atribui
ao problema da má qualidade via resultados Ou seja, está evidente o papel da retórica
de exames, não permite brechas para discus- da qualidade na imposição de orientações para
sões sobre o que se entende por escola de a educação pública, que se referenciam na
qualidade ou boa escola. A partir desse trata- lógica do mercado e buscam a criação de um
mento superficial, concepções veladas e não “novo ambiente moral” (BALL, 2006) no setor
declaradas invadem as páginas dos jornais por público, ambiente em que valores como com-
meio de declarações e comentários que com- petitividade, empreendedorismo e flexibilida-
põem a repercussão dos resultados, rankings de se impõem no lugar de estabilidade, coope-
e notícias sobre as grandes avaliações dos sis- ração e justiça social. Ball (2006) ainda afirma
temas de ensino. que “a ideia de deliberar e planejar almejando
A preocupação sobre a qualidade do en- o ‘bem comum’ torna-se sem sentido” (p.14).
sino está presente nas discussões do campo É possível exemplificar a questão citan-
teórico da educação, como no trabalho de do políticas meritocráticas, como por exem-
Paro (2007): plo, a bonificação salarial para professores,
vinculadas ao desempenho de seus alunos em
Ora, quando se atenta para a impor- exames de larga escala.
tância social da educação e para os Neste artigo, buscaremos discutir algu-
enormes contingentes populacio- mas das concepções de qualidade encontradas
nais que as políticas públicas da área na história recente da educação. Considerando
envolvem, mostra-se bastante pre- que elas se relacionam com o contexto político
ocupante essa ausência de um con- e local de cada época, e que uma corrente não
ceito inequívoco de qualidade (p.15). é suprimida com o fortalecimento de outra,
elas coexistem na cultura escolar e influenciam
Acreditamos que muitas vezes o trata- de diferentes formas as práticas educativas e a
mento dado à qualidade cumpre uma função formulação de políticas educacionais.

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Em nossos percursos de pesquisa, per- imprescindível para a instituição do Estado de
cebemos que a educação de qualidade, iden- Bem-Estar Social, uma vez que se acredita que
tificada com valores como competitividade, o maior investimento financeiro e material nos
empreendedorismo, performance e eficiência, serviços públicos, como a educação e saúde,
é hegemônica nas mídias de massa, especial- é determinante para a ampliação da qualida-
mente nos jornais de grande circulação da de desses serviços, considerando que, a partir
cidade do Rio de Janeiro. Discutiremos essa dessa ótica, é responsabilidade do Estado pro-
questão apontando para a ideia de qualidade mover o bem-estar social e garantir serviços
negociada como uma alternativa mais coeren- públicos e direitos sociais à população.
te com as discussões científicas contemporâ- “Mais tarde, o foco da atenção do con-
neas no campo da educação, principalmente ceito se deslocou dos recursos para a eficácia
na avaliação educacional, ou seja, uma quali- do processo: conseguir o máximo resultado
dade de natureza negociável, processual, con- com o mínimo custo” (ENGUITA, 1994, p.98).
textual e transformadora (FREITAS, 2005). Na mudança do discurso da qualidade da
educação se expressa a transmutação do mo-
Concepções de qualidade mento em que se pautava o Estado de Bem-
na educação -Estar Social para a lógica empresarial privada,
Quando abordam o tema da qualidade pois nessa perspectiva a relação dos recursos
no contexto educacional, os jornais1 impri- com resultados esperados e atingidos é que
mem uma visão ahistórica e unívoca ao mes- determina o grau de qualidade do sistema.
mo. Desconsideram que o conceito de quali- Posteriormente, ainda segundo o autor,
dade é historicamente produzido e deve ser é possível localizar a predominância da con-
visto como fenômeno complexo. cepção da qualidade, que é medida por meio
Por essa razão, o termo qualidade da de grandes avaliações de desempenho dos
educação carrega em si diversas significações alunos, entre outros resultados quantitativos,
que tomaram corpo de acordo com diferen- como “taxas de retenção, taxas de promo-
tes contextos políticos.2 No artigo O discurso ção, egressos dos cursos superiores, compa-
da qualidade e a qualidade do discurso, Enguita rações internacionais do rendimento escolar,
(1994, p. 98) expõe que o conceito de quali- etc.” (ENGUITA, 1994, p.98).
dade na educação “inicialmente foi identifica- Mais adiante, apresentaremos indícios
do tão-somente com a dotação em recursos dessa forte tendência de identificação da
humanos e materiais dos sistemas escolares qualidade, com o desempenho de alunos em
ou suas partes componentes”. Segundo ele grandes exames como PISA e Prova Brasil.
o foco das discussões sobre qualidade da Desta forma, discutiremos os contextos e as
educação estava na relação entre o Produto consequências desse discurso nos rumos da
Interno Bruto (PIB) e o financiamento dos sis- política educacional brasileira.
temas de ensino, o gasto por aluno, o salário
de professores e as condições de trabalho, A qualidade é polissêmica
isso tudo em consonância com o entendimen- Buscando uma ótica mais coerente com
to do investimento na educação pública como nossos estudos e vivências, concordamos
com a argumentação de Moreira e Kramer

1
Referimo-nos a esse meio de comunicação por ser (2007) segundo a qual a qualidade da edu-
o objeto de nossa pesquisa, porém os problemas cação é um fenômeno complexo que possui
explicitados não são exclusivos dos textos jornalísticos. determinações intraescolares (currículo, for-
2
Cabe explicar que, neste momento, estamos nos
referindo à hegemonia dessas visões em diferentes mação docente, gestão escolar, etc.) e extra-
épocas, pois uma não desaparece com a chegada escolares (condições de vida da população,
da outra, elas convivem nas práticas e discursos, capital econômico e cultural das famílias dos
conflitam entre si, se complementam e transformam. alunos, entre outros).

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Os autores demonstram ainda as limi- mandas distintas e mutáveis (MO-
tações que apresentam algumas concepções REIRA e KRAMER, 2007, p.1044).
acerca de educação de qualidade, as quais tra-
tam com simplismo o fenômeno: Reconhecendo a base arbitrária sob a
qual os conceitos de qualidade têm sido cons-
Nesse caso, encontram-se as que tituídos, podemos problematizar a questão
priorizam: desempenho satisfató- e propor uma ótica mais condizente com as
rio em exames nacionais; domínio recentes pesquisas em avaliação e currículo,
de conhecimentos, habilidades e por exemplo. Ou seja, levantar a bandeira da
competências que se estabeleçam qualidade identificada com o argumento das
previamente; emprego de tecnolo- escolas como:
gias avançadas; supervalorização
da competitividade e da produtivi- Formas sociais que ampliam as ca-
dade; novos métodos de gerencia- pacidades humanas, a fim de ha-
mento de sistemas e instituições bilitar as pessoas a intervirem na
educacionais; procedimentos inte- formação de suas próprias subjetivi-
grados e flexíveis no trabalho peda- dades e a serem capazes de exercer
gógico (MOREIRA e KRAMER, 2007, poder com vistas a transformar as
p.1043). condições ideológicas e materiais
de dominação em práticas que pro-
Não se descarta a importância de alguns movam o fortalecimento do poder
desses aspectos na ótica da qualidade da edu- social e demonstrem as possibili-
cação como fenômeno complexo, porém a dades da democracia (GIROUX e
crítica se fundamenta quando: SIMON, 2009, p. 95).

a noção de qualidade se funda ape- Afinal, o que é uma escola


nas em pressupostos técnicos e se de qualidade?
distancia dos juízos de valor, do Pensar em escola de qualidade é pensar
compromisso com a justiça social, em um ideal de escola. Significa refletir sobre
bem como das ações e dos interes- os atributos que uma escola deve ter para
ses dos sujeitos que concretamente cumprir sua função. Sendo assim, há uma
a define e adota (MOREIRA e KRA- questão que precede esta reflexão: qual deve
MER, 2007, p.1043). ser a função social da educação escolar?
Considerando sobre a referida questão,
Por fim, Moreira e Kramer (2007) con- Krug (2006) explica que existem atualmen-
cluem argumentando que te, no cenário mundial, duas propostas para
a educação: as neoliberais e as progressistas,
O conceito de qualidade é histori- e as diferenças entre elas têm por base justa-
camente produzido, não cabendo, mente as diferenças na concepção da função
portanto, pensá-lo em termos ab- da escola.
solutos. Pressupõe uma análise pro- As primeiras são “aquelas que repre-
cessual, uma dinâmica, assim como sentam o desdobramento do liberalismo
a recuperação do específico e o burguês, com ações conhecidas como neoli-
respeito às condições conjunturais. berais, as quais ainda defendem a neutralida-
Trata-se, em síntese, de concepção de da escola e dos seus conteúdos” (KRUG,
formulada com base em um arbitrá- 2006, p. 128). A qualidade, no âmbito dessas
rio sociocultural e norteada por de- propostas, é aferível por meio de avaliações

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de desempenho de estudantes que servem ta de direitos, de cidadãos plenos,
como base para avaliar a qualidade do profes- identificados com os valores éticos,
sor e responsabilizá-lo pelo desempenho dos voltados à construção de um projeto
seus alunos. social solidário que tenha na prática
Utilizando a análise dos jornais para res- da justiça, liberdade, no respeito hu-
ponder a pergunta dessa seção do artigo, po- mano, nas relações fraternas entre
demos afirmar que a missão da escola, na ótica homens e mulheres e na convivência
das propostas neoliberais, é fazer com que os harmônica com a natureza, o centro
alunos tenham bons desempenhos em exames de suas preocupações.
que abarcam conteúdos arbitrários, padroniza-
dos e mundializados. Isso significa dizer, entre Essa escola de qualidade a partir da
outras coisas, que o problema da má qualidade ótica progressista não está pronta, e nem
está na ineficiência da escola e baixo desempe- poderia estar. É necessário trabalhar para a
nho dos alunos se comparados a outros países sua construção com base em outros precei-
do mundo por meio do ranking do Programa tos. Freitas (2005, p. 921) explica que, para
Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) da definir essa qualidade, é preciso clarificar os
Organização para Cooperação e Desenvolvi- principais aspectos de sua natureza como
mento Econômico (OCDE). “seu caráter negociável, participativo, auto-
Se nos voltarmos para as propostas di- -reflexivo, contextual/plural, processual e
tas progressistas, percebemos outras preocu- transformador”.
pações que são fundamentalmente políticas, Em que pesem esses dois papéis confe-
voltadas para a democratização do acesso à ridos à escola, entendemos que a análise da
escola e do sucesso escolar, englobando prá- complexidade (Morin, 1999) cotidiana das
ticas de gestão democrática e de formação, práticas educativas e das práticas políticas
relacionamento com a comunidade local e voltadas para a educação, objeto de análise
a preocupação com a formação dos sujeitos no texto, nos incitam a afirmar que há mais
para o exercício pleno da vida. Assim, a fun- atos, ações e estratégias e intrincadas redes
ção dessa escola tem a ver com a sociais, culturais e políticas que apontam di-
versas possibilidades de papéis do que ape-
[...] atualização histórica do homem nas uma simples percepção dicotômica de
[como] condição imprescindível, sua função social. Toma-se tal divisão para
embora não suficiente, para que tecer argumentos de um ponto de vista mais
ele, pela apropriação da cultura didatizante para o leitor.
produzida historicamente, construa
sua própria humanidade histórico- Qualidade negociada
-social, parece justo admitir que a A noção de qualidade que pretende-
escola fundamental deva pautar-se mos focar é a qualidade negociada (FREITAS,
pela realização de objetivos numa 2005, 2009). Assim objetivamos contribuir
dupla dimensão: individual e social para o fomento ao debate acerca desse tema
(PARO, 2007, p.16). com uma concepção mais coerente em rela-
ção às propostas progressistas de educação,
Ainda nessa linha, Azevedo (apud KRUG, justamente por ser negociada, aberta e em
2006, p. 131) defende processo de construção permanente.
Nas propostas neoliberais que discuti-
Um projeto de educação de Qualida- mos anteriormente “a mudança é vista como
de Social transformador e libertador, parte de ações gerenciais administradas des-
onde a escola seja um laboratório de de um ‘centro pensante’” (FREITAS, 2009, p.
prática, de exercício e de conquis- 56). Dentre muitos aspectos, esse é o funda-

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mental, pois pensando nas políticas de avalia- atores: da escola para com seus estudantes;
ção essa questão fica evidente. da escola consigo mesma; da escola com os
De forma geral, as propostas políticas gestores do sistema escolar; e dos gestores
progressistas e neoliberais parecem ainda do sistema para com a escola” (FREITAS,
pouco satisfatórias, por não prezar o aspec- 2009, p. 922).
to negociável da qualidade. Em outras pala- Por fim, devemos deixar claro que qua-
vras, mesmo propostas identificadas como lidade negociada não significa que as escolas
progressistas, fundamentadas teoricamente devem isoladamente estabelecer seus crité-
e que obtiveram sucesso em outros contex- rios como se não fizessem parte de uma socie-
tos, por exemplo, as propostas de ciclos e de dade. Os indicadores devem ser negociáveis
não reprovação, quando implantadas a partir porque os problemas são contextualizados
de um centro pensante sofrem resistência de e plurais, porém “é importante frisar que a
professores, alunos e pai, comprometendo definição de indicadores, apesar das caracte-
seu desenvolvimento. rísticas locais que fortemente explicarão as
Sob a ótica da qualidade negociada a dificuldades ou facilidades de realização, é
“tendência das políticas participativas é gerar estabelecida no conjunto das necessidades e
envolvimento da ‘ponta’ do sistema” (FREI- dos compromissos do sistema público de en-
TAS, 2009, p. 56), por isso o destaque para sino” (FREITAS, 2005, p. 924).
o caráter negociável da qualidade. Sendo as-
sim, os indicadores dessa qualidade não são Avaliação e qualidade da educação
Não fugindo dessa lógica, as atuais ava-
Normas impostas do alto, às quais liações da educação básica, como o PISA no
devemos nos adequar. Não repre- âmbito internacional, a Prova Brasil em nível
sentam, nem mesmo, um ‘valor mé- nacional e o Prova Rio na esfera municipal, têm
dio’ de exequibilidade de aspectos recebido destaque nas páginas dos jornais e
da qualidade. São, ao contrário, sig- discussões que permeiam as políticas públicas.
nificados compartilhados [...]. São, Em nossa pesquisa, ficou evidente a par-
portanto, como indica o próprio ter- ticipação da avaliação para justificar a neces-
mo, sinalizações, linhas que indicam sidade de mais qualidade no ensino público.
um percurso possível de realização Por isso, optamos por partir da avaliação para
de objetivos compartilhados. [...] compreendermos os discursos sobre a quali-
aquilo que os diferentes atores so- dade da educação nos jornais.
ciais [...] se empenham em buscar, Para tal, selecionamos alguns textos jor-
contribuindo, para isso, cada um nalísticos que expressam as tendências obser-
de acordo com o próprio nível de vadas em todo o nosso corpus de análise.
responsabilidade (BONDIOLI apud No dia 18 de maio de 2009 foi publicado
FREITAS, 2005, p. 921). no jornal O Globo uma reportagem intitulada
Na série B da Educação, que retrata a mudan-
Nessa citação, o autor destaca dois aspec- ça na forma de avaliação do PISA, o qual, na
tos: “sua significação compartilhada” e a “con- edição de 2009, teve questões consideradas
tribuição de cada um de acordo com seu pró- mais fáceis, com o intuito de identificar dife-
prio nível de responsabilidade” (FREITAS, 2009, renças entre o desempenho de alunos com
p. 921). Por isso, os indicadores são mais impor- baixo rendimento.
tantes pela sua significação compartilhada do Na referida reportagem acredita-se ser
que pela sua capacidade de gerar estatísticas. possível medir a qualidade do ensino pelo
Para a efetivação desse projeto de esco- desempenho de estudantes em grandes ava-
la, é necessário um “pacto com os múltiplos liações padronizadas. Não são consideradas

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as especificidades do exame, por exemplo, cos, sem deixar de incentivar as ha-
somente a participação de alunos de 15 anos, bilidades dos mais fortes (O Globo,
sem levar em conta seu grau de escolarida- p. 3, 18/05/2009).
de, e a abordagem de Ciências, Matemática e
Português, tal como fica explícito no trecho Assim, Weber (2009) atribui o bom de-
exposto na sequência. sempenho e a alta qualidade à maneira de os
professores lidarem com as diferenças. Ou
A nota alcançada pelos alunos bra- seja, a qualidade é atribuída a esses países
sileiros sempre ficou abaixo da mé- porque conseguem homogeneizar o desem-
dia geral. O número de países que penho dos seus estudantes a ponto de eles
participam varia em cada edição do possuírem os mesmos conhecimentos sobre
exame, um dos mais importantes os temas abordados na prova.
para medir a qualidade do ensino. A outra reportagem que escolhemos
São avaliados estudantes de 15 para analisar mais criteriosamente foi publica-
anos de idade, independentemente da em 6 de setembro de 2009 no citado jor-
da série que cursam. (O Globo, p. 3, nal, cujo título da manchete é Metas para me-
18/05/2009). lhorar as notas do ensino, a qual faz referência
ao contrato de gestão assinado pelos direto-
O texto continua reforçando a ideia de res das escolas municipais do Rio de Janeiro
que o exame é capaz de medir o aprendizado, com a Secretaria Municipal de Educação, com
ou seja, parte da perspectiva de que o baixo o objetivo de melhorar a qualidade da educa-
desempenho no exame significa pouco apren- ção por meio de metas a serem atingidas.
dizado e, por isso, pouca qualidade do siste- No trecho abaixo, é possível observar
ma de ensino. novamente a visão de que a qualidade da es-
cola pode ser medida pelo desempenho dos
O coordenador-geral do Pisa na alunos nas avaliações externas.
OCDE, Andreas Schleicher, consi-
dera surpreendente uma parcela Cada escola tem uma meta indivi-
significativa dos estudantes de 15 dualizada, de acordo com seu de-
anos aprender tão pouco, apesar de sempenho: as que estão com notas
freqüentar a escola por quase uma piores precisam evoluir mais do que
década ou mais. Segundo ele, a me- as que já têm bons índices. Profes-
lhoria da qualidade do ensino é o sores e funcionários das unidades
maior desafio dos países, não só do que atingirem as metas receberão
Brasil. (O Globo, p. 3, 18/05/2009). o Prêmio Anual de Desempenho (O
Globo, p. 15, 06/09/2009).
Nesta última citação, além das conside-
rações já realizadas, observamos o uso super- Como consequência dessa ótica de ava-
ficial do discurso da qualidade sem levar em liação e qualidade da educação, entende-se
conta a historicidade do termo. também que o currículo deva ser padronizado
Ao tentar entender as possíveis causas para atender às demandas das provas. Dentre
do sucesso de alguns países no PISA, o jorna- as estratégias para diminuir as defasagens
lista Demétrio Weber considera que identificadas nos exames, as escolas devem
estabelecer formas de treinamento para as
Os professores nesses países con- provas e incentivos para alunos e funcioná-
seguem dar conta das diferenças rios que melhor se adequarem ao sistema,
dos estudantes de modo muito visando fortalecer uma cultura meritocrática
construtivo: dão apoio aos mais fra- e competitiva em detrimento de outros fato-

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res, como a valorização da carreira docente, é, principalmente, a crença de que as grandes
como pode se observar no trecho a seguir. avaliações são capazes de estabelecer o grau
de qualidade de uma escola ou rede de ensi-
A cada bimestre, as escolas têm no. Assim, as avaliações expressam a terceira
recebido orientações curriculares, forma de percepção da qualidade retratada
que tornam mais preciso o que por Oliveira e Araujo (2005, p. 6):
deve ser ensinado. Nas provas pa-
dronizadas que são aplicadas a No Brasil, a qualidade de ensino foi
cada dois meses, ficam evidentes percebida de três formas distintas.
os erros mais comuns. É enviado Na primeira, a qualidade determi-
um relatório para as escolas, apon- nada pela oferta insuficiente; na
tando como trabalhar com os con- segunda, a qualidade percebida
teúdos necessários (O Globo, p. 15, pelas disfunções no fluxo ao longo
06/09/2009). do ensino fundamental; e na ter-
ceira, por meio da generalização
Pode-se, ainda, problematizar o fato de de sistemas de avaliação baseados
que provas padronizadas e elaboradas num em testes padronizados.
nível central não garantem a qualidade da
educação no sentido que abordamos neste Vale ressaltar o papel central desempenha-
estudo, uma vez que não consideram as dife- do pela avaliação, quando sua função seletiva é
renças nem entre os sujeitos que aprendem, tão superestimada que dificulta o estabeleci-
nem entre os grupos de discentes ou docen- mento de perspectivas de avaliação continuada
tes, nem entre as unidades escolares. e formativa. Cury (apud FRANCO; FERNANDES;
Nesse sentido, o parágrafo apresenta- BONAMINO, 2000, p. 168) demonstra que, a
do na sequência também nos traz algumas partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
reflexões: (LDB) – Lei nº 9.394/96, a avaliação ganha um
papel central que “vai da negação de um sis-
Os dados dos testes de matemática tema nacional de educação à afirmação de um
do 9º ano foram considerados por sistema nacional de avaliação”.
Claudia Costin como ‘um verdadei- A avaliação, principalmente por meio
ro desastre’, resultado principal- de exames, foi colocada no papel de guia na
mente de uma sequência de anos caminhada pela qualidade da educação na úl-
no sistema de aprovação automáti- tima década. Aliados à cobertura dada pelos
ca. Em visita a escolas, ela colheu re- jornais no tocante à matéria, a criação de exa-
latos de que sequer provas vinham mes, os índices e as políticas de bonificação
sendo aplicadas, já que não havia a de professores e alunos, reforçam a função
possibilidade de reprovação (O Glo- classificatória e seletiva. Para colocar a educa-
bo, p. 15, 06/09/2009). ção no caminho de outra visão de qualidade,
mais democrática e emancipatória, se faz ne-
Apesar de a declaração expressa ser da cessário a construção de práticas articuladas
gestora de uma grande rede de ensino, ela re- de avaliação para a aprendizagem, da institui-
vela dois equívocos característicos do senso ção e das redes de ensino, respeitando os pro-
comum e da nossa cultura escolar por meio fessores, os gestores e a comunidade escolar.
das seguintes ideias: a reprovação garante a Buscamos apresentar neste artigo a ar-
aprendizagem e sem aprovação ou reprova- gumentação de que se tem atrelado ao sen-
ção não há avaliação. so comum, pelos meios de comunicação, em
O ponto de convergência entre os textos especial nos meios impressos/jornais, mas
jornalísticos supracitados e outros analisados não somente a eles, a concepção de que para

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ser uma escola de qualidade basta ter bons proficiência em disciplinas escolares. Fica-nos
resultados de desempenho dos estudantes. a mensagem nas entrelinhas que os responsá-
Não desconsiderando que um bom desempe- veis pelo sucesso ou insucesso da educação,
nho é indicador de qualidade, tal perspectiva em especial a pública, são os docentes e dis-
desconsidera que qualidade em educação é centes. Tal redução vem causando retroces-
termo polissêmico, e que a educação escolar, sos perigosos para a educação escolar, para
por ser uma prática social e ter como uma de os sistemas de ensino e, em última instância,
suas funções a formação cidadã, não pode ser para o projeto de uma sociedade mais demo-
avaliada em sua missão apenas por exames de crática e inclusiva.

Referências

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Dados dos autores:

Claudia de Oliveira Fernandes


Doutora em Educação e Coordenadora do Programa de Pós Graduação em Educação/
PPGEDU- UNIRIO.

Henrique Dias Gomes de Nazareth


Pedagogo, mestrando em Educação e bolsista REUNI/UNIRIO.

Recebido: 15-10-2011
Aprovado: 03-02-2012

Impulso, Piracicaba • 21(51), 63-71, jan.-jun. 2011 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
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