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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF)

Instituto de Letras

GGL00027 - Ensino de Literatura na Educação Básica / Turma: 2022.2


Docentes: Johannes Kretschmer, Gaetano D. Itria e Susana Kampff Lages
Aluno(a): Samantha Bezerra da Silva

Ficha de Leitura: A Cicatriz de Ulisses, in Mimesis. Erich Auerbach. Editora Perspectiva,


São Paulo. 2017.

O texto de Homero não há segundo plano, ao contrário, o autor narra sempre o texto
presente. Os homens de Homero dão a conhecer o seu interior no seu discurso; o que êles não
dizem aos outros, êles falam para si, de modo a que o leitor o saiba1. Tudo é expresso, ou
seja, todo o detalhe é iluminado, e o interior dos homens se faz conhecer pelo discurso. Nada
fica na escuridão. Acontecem muitas coisas espantosas nas poesias homéricas, mas nunca
acontecem mudamente2. Se há algo do passado, o presente do passado domina a cena, pois o
presente atual é a digressão do passado que está em evidência na cena. [...] tudo é narrado,
novamente, com uma perfeita conformação de tôdas as coisas, não deixando nada no escuro e
sem omitir nenhuma das articulações que as ligam entre si3. No estilo homérico, há saltos que
“avançam e retrocedem" no tempo e a narração é sempre feita no presente.

Enquanto que, na Bíblia há relatos históricos, único mundo e domínio exclusivo, um


Deus oculto permite interpretações inseridos na vida real do leitor na estrutura dos textos
sagrados, mas o mundo real está cada vez mais distante do mundo mágico. O modo como
Auerbach apresenta as distinções consideráveis entre os livros de Homero e o Velho
Testamento. “Depois disto, Deus provou Abraão. E disse-lhe: Abraão! — Eis-me aqui,
respondeu êle.” Já êste princípio nos deixa perplexos, quando viemos de Homero4. Além de
descrever a univocidade dos personagens.

O Velho testamento, por sua vez de modo sucinto no texto, não esgota as diversas
possibilidades, pois possui uma exegese mais aberta e uma complexidade mais profunda em

1
AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses, 2017. p. 3.
2
AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses, 2017. p. 4.
3
AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses, 2017. p. 2.
4
AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses, 2017. p. 5.
seus personagens que em sua maioria são humilhados, exaltados e, por vezes, até
corrompidos por desobediência a Deus. De fato, o Velho Testamento pretende-se universal,
como uma verdade histórica. Recordando-me de Paul Ricoeur, que estabelece comparações
entre a narrativa literária e a histórica, remetendo-se ao uso da intriga – conceito advindo de
Aristóteles – pelos historiadores.

O capítulo “A Cicatriz de Ulisses” me remeteu a como a perspectiva do leitor faz


diferença, não apenas na produção, mas também na interpretação da história. Nesse sentido,
de interpretação, me remetendo, enquanto historiadora, aos conceitos de anacronia, no que
diz respeito a não querer, de fato, viver o presente, e causar a questão da perspectiva. Além
disso, podemos relacionar a Aristóteles, que preocupava-se mais em como algo seria contado,
criando assim, a sua forma, do que no conto em si. Sendo este último ponto, podendo ser
levado na questão da verdade de como ela será repassada.

Enfim, Auerbach pegou um ponto específico da história, o do reconhecimento da


cicatriz, e a partir disto, ele explicou toda a representação dos fenômenos nas obras
homéricas, que, com suas palavras, são representados de maneira palpável e visível em todas
as partes, nada deixa de ser aludido. Outrossim, a explicação acerca da narração na obra
homérica também chama a atenção, pois mostra como, de maneira sintática, a retomada ao
passado puxa-o como se fosse o tempo presente e, deste modo, evita a impressão de
perspectiva. A comparação entre histórias homéricas e os relatos bíblicos também é um ponto
interessante como destacado anteriormente, pois através desses relatos, especialmente quando
descobrimos a questão do comprometimento com a “verdade”. Logo, a compreensão do leitor
será individual, de modo que, para mim, a verdade a ser contada baseia-se não precisamente
em fatos reais, mas na verossimilhança do que está sendo contado, baseando-se, portanto,
diretamente na perspectiva de quem conta a história, no que o leitor acredita.

Por fim, Auerbach apresenta as enormes divergências em Homero e os textos bíblicos


e, ao mesmo tempo, o valor de cada um dentro da perspectiva literária. Colocando as
diferenças entre verdade e realidade, comparando-as. Observando, portanto, que os textos
bíblicos reinterpreta essa verdade com o objetivo de dar um tom moralizante, enquanto que,
Homero, tudo está acabado; a narração da lenda se dá pelo simples fato de relatar algo, com o
foco de envolver o leitor/espectador, mas que esse saiba que o que está sendo contado não é
verdadeiro. É brilhante o modo como o Auerbach traz esse contraste estilístico apontado na
leitura comparativa que ele faz da cena do reconhecimento da cicatriz de Ulisses com o
sacrifício de Isaque na Bíblia. Inclusive, é muito importante, observar como o senhor fez no
início, pois na concepção teológica do Deus judaico-cristão não tem um caráter de
cancelamento da escolha estilística da narrativa bíblica.

O leitor em sua maioria nas narrativas bíblicas, parte do pressuposto de que o Deus da
Bíblia é onipresente/onipotente, logo não deve demasiadas explicações a respeito de suas
tomadas de ações e vontades, é possível encontrar na Bíblia diversos momentos em que a
narração é bastante detalhada, tanto no procedimento dos acontecimentos quanto das
perspectivas interiores dos personagens, ou seja, o seu caráter emocional. Enquanto que,
Homero não.

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