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OPINIÃO

A proposta de novas regras orçamentais da


Comissão Europeia
A estabilização e o desenvolvimento da Área do Euro requerem muito mais do que novas
regras orçamentais.

Ricardo Cabral
21 de Novembro de 2022, 7:20

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A nova proposta de governação económica da Comissão Europeia parece não agradar


nem a gregos nem a troianos. Raras vezes se assistiu a uma cacofonia tão dissonante
entre membros da intelligentsia europeia que, em geral, formam aquela câmara de eco
dos consensos dominantes que, apresentando alguma salutar, mas insuficiente
divergência, tipicamente definem e fazem implementar, de forma surpreendentemente
expedita, as novas políticas económicas da Área do Euro.

Primeiro, alguma história


Em 2010-2012, na sequência da crise do euro, um tratado intergovernamental conhecido
por pacto orçamental (ou espartilho orçamental) terá sido a pretensa condição exigida
pela Alemanha para aceitar o resgate da Grécia e de outros países ditos periféricos da
Área do Euro incluindo Portugal, abandonando a cláusula de não resgate constante dos
tratados europeus – na realidade, França e Alemanha foram obrigadas a resgatar os
respetivos sistemas bancários, o que foi conseguido e realizado através dos resgates aos
estados-membros periféricos da Área do Euro –.
Esse pacto orçamental foi posteriormente complementado por regras orçamentais
adicionais, nomeadamente as que resultaram no que, na linguagemOferecer assinatura
hermética do
europês, são conhecidos por “two-pack” e “six-pack”.

Essas regras orçamentais ainda vigentes, mas suspensas desde 2019 e até 2023, eram
muito complexas, sendo baseadas em sete critérios (e restrições) não lineares e
altamente discricionários: défice de 3% do PIB; dívida de 60% do PIB; redução da dívida
acima de 60% do PIB em 1/20 avos em cada ano; saldo estrutural de -0,5% ou -1% do PIB
potencial; melhoria do saldo estrutural de, pelo menos, 0,5% do PIB potencial em cada
ano até ser atingido o objetivo de médio prazo (OMP); OMP definido para cada estado
membro pela Comissão Europeia (no caso de Portugal o OMP foi de +0,25% do PIB
potencial até 2018); crescimento da despesa líquida primária inferior à taxa de
crescimento do PIB potencial (média móvel de 10 anos).

Esses critérios e restrições, para além de implicarem o controlo de variáveis não


observáveis, constituíam um verdadeiro espartilho orçamental, suscitando oposição
crescente nos estados-membros. Por outro lado, existiam dúvidas sobre se as regras
orçamentais europeias poderiam ser novamente aplicadas após o fim da sua suspensão.

A história da proposta de novas regras orçamentais


europeias
Em 2021, os académicos Blanchard, Leandro e Zettelmeyer
(https://academic.oup.com/economicpolicy/article/36/106/195/6122701) propuseram
novas regras orçamentais mais simples, baseadas em critérios mais transparentes (e
mensuráveis) de limites à taxa de aumento da despesa pública e uma trajetória
sustentável da dívida pública, que, de acordo esses autores, deveria ser baseada numa
análise da sustentabilidade da dívida pública específica a cada país.

No início de abril de 2022, a Holanda e a Espanha, países tradicionalmente de lados


opostos da barricada orçamental, apresentaram um documento conjunto de duas
páginas e sete pontos (https://www.government.nl/latest/news/2022/04/04/spain-and-
the-netherlands-call-for-a-renewed-eu-fiscal-framework-fit-for-current-and-future-
challenges) com uma estratégia de reforma das regras orçamentais europeias,
defendendo a substituição do objetivo de médio prazo por uma regra simples sobre a
taxa de crescimento da despesa pública acompanhada por cláusulas de suspensão bem
definidas. No mesmo documento, defenderam a necessidade de maior investimento
público para suportar a transição energética e digital e para alavancar investimento
privado em sectores estratégicos onde existam externalidades significativas para a
economia europeia.
Em julho de 2021, o Parlamento Europeu aprovou um relatório sobre Governação
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Económica (https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/A-9-2021-0212_EN.html)
que, entre outros aspetos, defende alterações às regras orçamentais europeias
favorecendo a sua simplificação com base num critério de despesa como o proposto por
Blanchard, Leandro e Zettelmeyer.

No início de agosto de 2022, o Ministério para Assuntos Económicos e Ação Climática da


Alemanha divulga um documento (“position paper
(https://www.bmwk.de/Redaktion/EN/Downloads/P/proposed-principles-to-guide-the-
german-government-in-deliberations-on-the-reform-of-eu-fiscal-rules.html)”) de três
páginas em que especifica os princípios que irão nortear a ação do governo alemão nas
negociações para a reforma das regras orçamentais europeias.

As ideias chave desse documento são: a obrigatoriedade de redução do nível de dívida


pública (um dos sete critérios atuais), mas a uma taxa inferior a 1/20 avos em cada ano; a
simplificação das regras orçamentais europeias defendendo a continuação do uso do
conceito de saldo estrutural e do objetivo de médio prazo (outros dois dos sete critérios
atuais); limitar a discricionariedade para uso futuro da cláusula de escape que permitiu a
suspensão das regras orçamentais desde 2020; maior automatismo na aplicação de
sanções aos países membros incumpridores; uma melhoria da cláusula de investimento
que permitisse maiores níveis de investimento público; e a criação de um conselho de
finanças públicas europeu independente, que supervisionaria os conselhos de finanças
públicos nacionais, assegurando o cumprimento das regras orçamentais europeias.

A 9 de novembro de 2022, isto é há 12 dias, a Comissão Europeia apresentou a sua


proposta de reforma das regras orçamentais europeias
(https://www.publico.pt/2022/11/10/economia/perguntaserespostas/sao-novas-regras-
orcamentais-propostas-bruxelas-2027129) baseada em quatro dos sete critérios das regras
orçamentais atuais, atribuindo porém maior preponderância a dois desses critérios:
despesa “líquida” e trajetória de redução da dívida pública. Na sua proposta de reforma,
a Comissão Europeia ganha mais poderes e maior discricionariedade na definição da
política orçamental e no ritmo de consolidação orçamental dos estados-membros, bem
como maior poder para aplicar sanções aos estados-membros, propondo inclusive
embaraçosas audições no Parlamento Europeu aos ministros dos estados-membros que
não cumpram as novas regras orçamentais.
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Charles Wyplosz, numa análise publicada a 17 de novembro na plataforma VoxEU CEPR


(https://cepr.org/voxeu/columns/reform-stability-and-growth-pact-commissions-
proposal-could-be-missed-opportunity), argumenta que a proposta da Comissão
Europeia pode representar uma oportunidade perdida. Wyplosz argumenta que a
proposta tem duas virtudes, porque se baseia numa análise dinâmica e não estática, isto
é, o que importa não é se o défice orçamental é 2,8% ou 3,3% do PIB num dado ano, mas
sim se a dívida pública está a convergir gradualmente para um nível moderado de cerca
de 60% do PIB. Por outro lado, a aplicação diferenciada das novas regras faz-se de
acordo com os níveis de dívida pública dos estados-membros, permitindo défices
orçamentais maiores para países com níveis de dívida pública mais baixos.

Contudo, Wyplosz critica a utilização de análises de sustentabilidade da dívida pública


com prazos de quatro anos, que considera demasiado curtos e demasiado sensíveis às
premissas a definir pela Comissão Europeia nessas análises (e simulações) de
sustentabilidade da dívida pública, que enviesaria a relevância dessas análises. Por outro
lado, defende que o indicador de crescimento da despesa líquida proposto pela
Comissão Europeia mais não é do que uma medida complexa e não observável do saldo
estrutural, que pouco tem a ver com uma métrica observável e transparente da despesa
pública, sabotando um dos princípios subjacentes à reforma das regras orçamentais
europeias.

Pior do que as atuais regras orçamentais


Para Jeromin Zettelmeyer, um dos co-autores do artigo académico supracitado que
serviu de inspiração a estas propostas de simplificação das regras orçamentais europeias,
que defende posições mais ortodoxas e a necessidade de regras orçamentais exigentes,
argumenta que a referida proposta de regras orçamentais da Comissão Europeia
(https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_22_6562) é demasiado
permissiva (https://www.publico.pt/2022/11/16/economia/entrevista/comissao-europeia-
quase-provocadora-forma-mantem-2027631). Zettelmeyer, ao contrário de Wyplosz,
argumenta que é dado um prazo demasiado longo para a redução do nível de dívida
pública e que a proposta da Comissão Europeia “parece apoiar o défice de 3% [do PIB]
como a nova normalidade
(https://www.publico.pt/2022/11/16/economia/entrevista/comissao-europeia-quase-
provocadora-forma-mantem-2027631)”. Zettelmeyer defende que embora o ajustamento
orçamental necessário de ano para ano seja demasiado pequeno para reduzir a dívida
pública, porventura a intenção da Comissão Europeia é exigir muito mais, afirmando
(https://www.publico.pt/2022/11/16/economia/entrevista/comissao-europeia-quase-
provocadora-forma-mantem-2027631), “mas isso não está escrito. E se esta é a intenção,
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o que o sistema proposto faz é dar à Comissão Europeia uma enorme […]
discricionariedade, dando-lhe o poder para decidir quanto é que pode pedir a um país.
[…] Ou a regra orçamental é muito [permissiva] ou a aquilo que faz é dar demasiado
poder discricionário à Comissão Europeia.”

Charles Wyplosz e Jeromin Zettelmeyer têm, em parte,


razão
É provável que a regra de aumento da despesa “líquida” (na realidade, um indicador
mais próximo do saldo estrutural, não observável, do que de despesa pública
mensurável) venha a permitir uma política orçamental algo menos restritiva,
simplesmente pela via da redução do número restrições não lineares à política
orçamental, mas não é certo que isso venha a ocorrer, porque a Comissão Europeia terá
muita discricionariedade nas suas decisões podendo definir os objetivos que bem
entender, como argumenta Zettelmeyer. Ou seja, parecem possíveis objetivos
orçamentais ainda mais ambiciosos que os definidos pelas regras orçamentais ainda
vigentes. Como defendido por Wyplosz, afigura-se que os estados-membros com nível de
dívida pública muito elevada deveriam ter mais tempo para a reduzir, evitando políticas
orçamentais demasiado restritivas que impedem o crescimento económico.

Na perspetiva do autor, as regras orçamentais europeias, que têm as suas raízes no início
dos anos 90, têm tido efeitos contraproducentes para o desenvolvimento sustentado dos
estados-membros da Área do Euro e não têm evitado sucessivas crises da Área do Euro
que se têm agravado.

A estabilização e o desenvolvimento da Área do Euro requerem muito mais do que novas


regras orçamentais. Exigiriam pelo menos transferências orçamentais significativas entre
os estados-membros da Área do Euro. Porém, estas não são politicamente possíveis
porque a ‘União Europeia não é uma união de transferências
(https://www.publico.pt/2019/10/23/economia/analise/20-anos-euro-problema-lentes-
preto-zero-1890782)’.

P.S. – Este texto inspira-se em parte na intervenção do autor num debate organizado pela
Ordem dos Economistas sobre a Governança Económica da Área do Euro
(https://www.ordemeconomistas.pt/xportalv3/noticias/noticia.xvw?
p=71071432&confer%C3%AAncia:o-futuro-da-governa%C3%A7%C3%A3o-
econ%C3%B3mica-da-ue&p=71071432) na última sexta-feira.

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