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Caso Davi

No seminário A Relação de Objeto, Lacan examina as conseqüências


clínicas da sexualidade feminina para todo sujeito. Considerando que cada sujeito
é filho de uma mãe, quer dizer, de uma mulher.
A mãe, enquanto mulher, é um sujeito correlacionado a uma falta, que é
segundo Lacan (1957), não uma falta - a ser, mas uma falta de objeto. Freud nos
diz que a mulher tem no número de suas faltas essenciais o falo, e isso tem
referência estrita, com sua relação à criança. Nesse sentido, ela vai encontrar na
criança alguma coisa que acalme, mais ou menos, sua necessidade de falo.
A subjetividade da mãe, que é marcada pela relação do sujeito feminino à
falta de objeto essencial ( ), aponto para criança lugares distintos. Segundo
Miller em seu texto A Criança entre a Mulher e a Mãe, o objeto criança não
somente preenche, como também dividi. Se o objeto criança não divide, ou ele
sucumbe como objeto do par genitor, ou, então, entra com a mãe numa relação
dual que o alicia.
A questão fundamental parece ser, então, como a criança se inscreve
dentro desta relação da mulher à sua falta essencial?
Em sua carta a J. Aubry, Lacan afirma que toda criança que nasce é para
sua mãe uma aparição no real do objeto de sua existência. Para se tornar sujeito é
preciso que ela seja tomada dentro desta operação de simbolização primordial.
Para Freud há uma substituição imaginária da criança pelo falo, que ele
representa segundo a equação: fezes = criança = falo. Nesse sentido há uma
certa obturação da falta de objeto para essa mulher. Entretanto, Lacan aponta
para o que há de irredutível e irrepresentável nessa equação, levando a uma
discordância entre a criança e o falo. Apresenta, então, o estatuto da criança
como objeto a, avançando na referência que faz à mulher em relação ao gozo –
não somente em relação a uma falta de objeto, mas também apontando para uma
falta – a – ser. Nesse sentido já se prefigura uma relação entre a falta fálica e o
suplemento de gozo que Lacan situará mais tarde. “A este gozo que não é todo,
quer dizer, que a faz em qualquer parte ausente dela mesma, ausente enquanto
sujeito, ela encontrará a tampa disto, que será sua criança”. (Seminário XX)
Que efeito pode ter o encontro com o analista para essa criança que parece
alojada nesse lugar?
Davi é um menino de 2 anos encaminhado ao CRIA em função da
preocupação dos pais com o atraso no desenvolvimento da sua fala. Na primeira
entrevista com a analista os pais, por sua vez, não conseguem aguardar por um
instante o silêncio do filho. Falam - os pais - pela criança. Respondem as
perguntas dirigidas a este, ou dizem aquilo que eles gostariam de estar ouvindo.
Davi repete. Mas será que escuta o que diz? Encarnado nesse lugar em que a voz
parece ser do Outro, o que se produz entre essa criança e seus pais é um efeito
de discurso que não faz laço. Diante dessas palavras soltas, ditas ao vento, o que
temos é um completo apagamento do sujeito. Não há intervalo para que essa
criança costure suas palavras, ainda que com a linha que o Outro oferece.
Retomando as Duas Notas, lemos que a criança realiza a presença daquilo
que Lacan designa como objeto a na fantasia. Alojado nesse lugar de ideal do eu
não é permitido a Davi tomar a palavra. Sem mediação, Davi produz eco como
uma maneira particular de realizar-se em conformidade com o desejo do Outro. O
que diria essa criança se pudesse abrir a boca? O que enunciaria se pudesse
operar um certo arranjo com os significantes, numa cadeia que deslize a partir de
um discurso amoroso? E o que poderíamos nos perguntar sobre essa mãe –
Outro simbólico, veículo da linguagem – que não dá ao filho a “voz”?
As perguntas permanecem enquanto um outro encontro se precipta.
Após essa primeira entrevista Davi - e somente ele - é convidado a voltar.
Um brinquedo – o carrinho – passa a intermediar o contato com a analista. Um
carrinho que leva e traz, num movimento de aparecer e desaparecer que nos
lembra, ainda que de relance, a brincadeira do fort-da. Nesse lugar vazio que
opera o analista, lugar reservado como efeito de uma subtração de gozo, um
significante passa a enlaçar a voz num outro discurso, produzido a partir do
intervalo que se interpõe entre o dito do analista, sua escuta e o sujeito.
Davi joga o carrinho, joga para frente, traz de volta para perto. Olha para a
analista e espera dessa um anúncio, escuta a sua voz... a analista espera. Um
certo discurso enlaça as palavras que passam a ir e vir junto com o carrinho, num
movimento de aparecer e desaparecer do próprio sujeito. Para Lacan (1964) o que
é fundamental no nível de cada pulsão é o vai-e-vem em que ela se estrutura.
Nenhuma parte desse percurso pode ser separada de sua reversão fundamental,
do caráter circular do percurso pulsional. Esse caráter de vai-e-vem também está
presente no movimento que a criança faz entre alienar-se e separar-se de seus
pais. Se num primeiro momento a alienação tornou-se necessária para a
manutenção da própria vida, a separação, nesse tempo, também o é.
No texto A criança e o desejo do analista, o autor argumenta que há uma
lógica simples que opera o campo da psicanálise com crianças. Ou bem a criança
já é sujeito e o analista vem alojar-se no lugar já esvaziado do desejo, ou bem
está diante de uma criança para a qual o sujeito não apareceu no real, criança-
objeto, criança-gozo. Nesse caso o analista deverá alojar-se num lugar que só
pode ser do Outro primordial, com a questão colocada, para ele, de saber como
operar nesse caso.
A analista opera com o discurso a partir de um lugar vazio, esvaziado de
gozo, com a possibilidade da falta, do intervalo. Suscitando um lugar onde isso
pode falar, abrindo mais um ouvido para escutar (Lacan, Escritos). Assim, Davi
passa a receber sua fala invertida numa mensagem, e a essa não se mostra como
“surdo”. Nesse breve encontro com um analista Davi parece ter tomado posse,
ainda que inadvertidamente, da voz que antes parecia destinada somente ao
Outro. E aqui, podemos colocar apenas um ponto usando as palavras citadas por
Freud – Ao que não podemos chegar voando, temos de chegar manquejando (...)
O livro diz-nos que não é pecado claudicar.

Janaína Rocha de Paula

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