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ANGÚSTIA E MÁ-FÉ: O MANEJO DA EVITAÇÃO DE CONTATO NA GESTALT-


TERAPIA 1

Chapter · August 2018

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Georges Daniel Janja Bloc Boris


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ANGÚSTIA E MÁ-FÉ:
O MANEJO DA EVITAÇÃO DE CONTATO NA GESTALT-TERAPIA1

Georges Daniel Janja Bloc Boris2

RESUMO
Este texto pretende discutir os mecanismos de contato, conforme propostos pela gestalt-
terapia, como um importante recurso psicoterapêutico de compreensão fenomenológica das
experiências vividas por pacientes no que se refere às suas relações consigo mesmos, com
o outro e com o mundo. Neste sentido, compreendemos os mecanismos de contato como
manifestações do que Jean-Paul Sartre denominou de má-fé, ou seja, como tentativas de
evitação da angústia diante de nossas próprias escolhas, isto é, perante a assunção e o
exercício de nossa inescapável liberdade. Tal concepção se trata, portanto, de uma
psicopatologia fenomenológica, que não se aplica apenas a pacientes gravemente
perturbados, mas diz respeito aos modos de funcionamento e de interação de qualquer
pessoa, conforme podemos perceber na perspectiva e na psicoterapia gestálticas.
Palavras-chave: angústia; má-fé; Jean-Paul Sartre; mecanismos de contato; gestalt-terapia;
psicopatologia fenomenológica.

1 Palestra realizada em mesa redonda no III Congresso Brasileiro de Psicologia &


Fenomenologia / II Encontro Nacional do GT Psicologia e Fenomenologia – ANPEPP
/ I Congresso Internacional de Fenomenologia Existencial: O Desassossego Humano
na Contemporaneidade, ocorrido em Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, de 20 a 22
de setembro de 2017.
2 Psicólogo, com mestrado em educação, doutorado em sociologia e pós-doutorado

em filosofia prática. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia


da Universidade de Fortaleza, Ceará, Brasil. Coordenador do APHETO – Laboratório
de Psicopatologia e Clínica Humanista Fenomenológica. Psicoterapeuta
fenomenológico-existencial, supervisor de estágios em psicologia clínica e formador
de psicoterapeutas em gestalt-terapia, trabalhando com grupos, adultos e
adolescentes. Tradutor para o português de Ego, Fome e Agressão: Uma Revisão da
Teoria e do Método de Freud (2002), de Frederick Perls, publicado em 2002. Autor de
Falas de Homens: A Construção da Subjetividade Masculina (2002; 2011) e de
Grupos Vivenciais e Cooperação: Uma Perspectiva Gestáltica (2013). Foi presidente
do Instituto de Psicologia Humanista e Fenomenológica do Ceará, de 2011 a 2013. É
membro do grupo de trabalho Psicologia & Fenomenologia da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia – ANPEPP. Contato:
geoboris@uol.com.br.
INTRODUÇÃO
Sartre (1943/1997; 1946/2010; 1938/2011; 1939/2012) enfatizava a
possibilidade permanente de o homem, o “ser-no-mundo”, se encontrar em face do
nada e descobri-lo como angústia. Enquanto a angústia se diferencia do medo pelo
fato de que ele se refere aos seres do mundo, a angústia se deve às possibilidades
da ação do homem no mundo. Neste sentido, Sartre (1943/1997) afirmava que “somos
angústia” (p. 89), pois é a partir dela que o homem toma consciência da sua liberdade
como consciência do que ele é e do que faz de sua própria vida. Portanto, numa
perspectiva fenomenológico-existencial, a angústia, como uma condição humana,
certamente incômoda, requer ação, sendo considerada um importante catalisador do
projeto de ser que o homem constrói ao longo de sua existência. A angústia não
configura, necessariamente, uma experiência patológica, embora possa provocar
intenso sofrimento e adoecimento eventual. Assim, por se manifestar em vários
momentos da existência humana, é tema usual nos processos psicoterápicos, não
apenas nos casos graves. Neste sentido, a psicoterapia de base fenomenológico-
existencial constitui um significativo recurso clínico para acompanhar os projetos de
ser dos pacientes que a buscam, em grande parte por conta da experiência de contato
com a sua angústia, favorecendo sua ação no mundo.
Numa perspectiva sartreana, talvez não haja condição mais humana do que a
própria angústia, ou náusea: “tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio.
Quando ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhado (...): é
isso a Náusea” (Sartre, 1938/2011, p. 194). Sartre, em A Náusea, aponta a
negatividade da condição humana. O desamparo de nossa existência ou nossa
condenação à liberdade é, para Sartre, a total gratuidade da condição humana. Não
há qualquer sentido a priori para a existência humana, a não ser aquele que o próprio
homem lhe atribui, ao fazer suas escolhas. Para Sartre (1943/1997), é a liberdade na
qual o homem está lançado que o remete a uma condição de desamparo, de
desespero ou de angústia. Para ele, o homem é um projeto que se revela por meio de
sua ação no mundo. Primeiro, o homem apenas existe, e, somente depois, se define
a partir das suas escolhas: “o homem nada é além do que ele se faz” (Sartre,
1946/2010, p. 25). Está condenado à liberdade, vivida como aparente paradoxo: o
homem pode ser qualquer coisa, pois a liberdade é a sua condição; no entanto, pode
ser apenas de determinada forma, em cada situação, abdicando de outras
possibilidades de ser. Assim, sua liberdade é uma condição ontológica, pela qual é
responsável.
O existencialismo sartreano considera o homem na sua condição de
desamparo, ou seja, está lançado à “própria sorte”: “você é livre, escolha, ou seja,
invente” (Sartre, 1946/2010, p. 28). Na concepção sartreana, a angústia se caracteriza
como condição existencial de todos os seres humanos (Sartre, 1943/1997). A angústia
se manifesta por conta de o homem ter consciência de sua liberdade. Assim, de
acordo com Sartre, as escolhas da pessoa repercutem não apenas em sua vida, mas,
também, em toda a humanidade, pois ela se torna responsável por todos os homens.
A profundidade de sua responsabilidade por toda a humanidade, com frequência, leva
o homem a desenvolver estratégias que o auxiliem a suportar sua angústia. Ou seja:
a consciência de sua angústia desvela a vulnerabilidade do ser humano, abrindo a
possibilidade do uso de vias de acesso a uma vida mais suportável ou agradável, um
movimento realizado como tentativa de sobreviver e de uma existência menos
atormentada. Assim, para Sartre, a liberdade gera angústia e, ao tentar negar o peso
da responsabilidade que assume, o homem cria condutas de fuga, que o filósofo
denominou de má-fé.
A má-fé não deve ser considerada meramente num contexto moral, mas como
uma escolha para a camuflagem de uma condição existencial: a angústia. Não há
determinismo, uma natureza humana, tampouco há justificativas para nossos atos. A
angústia é a apreensão reflexiva da condição da liberdade: “é na angústia que o
homem toma consciência de sua liberdade, ou, se se prefere, a angústia é o modo de
ser da liberdade como consciência de ser (...)” (Sartre, 1943/1997, p. 72). Por isto, o
filósofo afirmava que estamos condenados à liberdade (Sartre, 1946/2010). A
liberdade, deste modo, é o fundamento do ser. Estamos condenados porque não
decidimos nossa existência, mas, uma vez no mundo, somos livres e responsáveis
por nossos atos. A consciência da liberdade é consciência da angústia. Portanto, para
Sartre, o homem não pode deixar de ser livre.
Quando tenta se eximir de sua liberdade, o homem age de má-fé. Podemos
pensar, então: a evitação do contato, sem “awareness”3, seria uma condição de má-

3
Conceito central da Gestalt-Terapia, que se caracteriza como consciência perceptiva de si
mesmo, uma tomada de consciência global, no momento presente (Ginger & Ginger,
1987/1995). “Awareness é uma forma de experiência que pode ser definida aproximadamente
como estar em contato com a própria existência, com aquilo que é” (Yontef, 1993/1998, p. 30).
fé? (Melo, 2014). É necessário, aqui, compreender a ideia sartreana de má-fé: “o ato
primeiro de má-fé é para fugir do que não se pode fugir, fugir do que se é (...)” (Sartre,
1943/1997, p. 118). É a fixação numa única forma de ser, numa essência, negando
as possibilidades outras de ser, fugindo da angústia ante à liberdade. A má-fé,
portanto, é entendida como uma espécie de mentira, em que o próprio homem é o
enganador e o enganado, pois, voltando-se para si mesmo, engana e é enganado;
entretanto, “mesmo mascarada, a angústia se manifesta”, concluía o filósofo (Sartre,
1946/2010, p. 29). Ao tentar fugir da responsabilidade pela sua decisão como protótipo
e possibilidade para toda a humanidade, o homem justifica sua miséria e seu total
abandono, vivendo um tipo singular e limitado de existência, mentindo a si mesmo e
atribuindo sua situação às circunstâncias que não teriam lhe possibilitado viver de
outra forma. A má-fé é uma mentira sem mentiroso, pois a consciência volta-se a si
mesma, justificando a inteira e completa gratuidade da existência. Eis o que assusta
tantos na visão sartreana. Toda existência é um projeto que se vive sozinho e, apesar
disto, tem um caráter universal. Quando age assim, a pessoa foge da
responsabilidade de construir fronteiras de contato com sua angústia. Estaria, pois,
agindo de má-fé, não consciente das possibilidades outras que lhe cercam, ou não
sendo “aware” da sua condição de liberdade. Negar a liberdade é agir de má-fé. É
recusar o reconhecimento de que somos nós quem atribuímos sentido às escolhas
que fazemos; é esquivar-se da responsabilidade que acompanha nossos atos.
Somos nós quem escolhemos o peso e o valor dos acontecimentos na nossa
existência. Não é possível escapar das contingências, mas temos sempre
possibilidade de nos relacionar com elas de vários modos. O seu sentido e o seu
alcance dependem do modo como nos relacionamos com elas em direção ao futuro,
ao nosso projeto de ser. É má-fé não assumir que escolhemos livremente nosso ser-
no-mundo, pois escolhemos, por exemplo, atribuir importância a certos aspectos e
desvalorizar outros. Somente a mim cabe decidir o sentido que atribuo aos dados
objetivos do mundo, pois, em direção aos meus fins, ao que me falta e ao que busco,
sou eu quem escolhe o que me causa espanto, desejo, horror ou medo. Assim, não
posso dividir com outros a responsabilidade por minhas escolhas nem pelo modo
como construo minha existência e organizo minha vida. Sendo livre, portanto, não
posso ser predeterminado: o homem, sendo falta de ser, tem que entrar em
movimento. Tal movimento se revela, justamente, por meio da sua ação no mundo,
ou seja, pelo que Sartre (1939/2012) denominou de projeto de ser. Ao agirmos,
iluminamos o projeto, pois, no ato, negamos o que existe para alcançar o que ainda
não existe. Em outras palavras, pode-se afirmar que a transcendência da situação
atual, rumo ao futuro, é condição de possibilidade da ação. Na relação com o mundo,
elegemos nosso projeto de ser (Nogueira, 2014).
É assim, portanto, que podemos pensar uma psicoterapia sob uma perspectiva
sartreana: ela deve tratar da entrega existencial do homem à sua própria angústia de
ser o que escolhe ser, de lidar com o mundo tal qual ele se mostra, num diálogo
travado com cada escolha sua (Melo, 2014). Segundo Schneider (2011), no processo
psicoterápico, nos deparamos, com frequência, com a descrição da experiência de
náusea. Assim, a fenomenologia existencial sartreana pode ser uma importante
fundamentação da clínica em psicologia, pois Sartre (1943/1997) nos auxilia na
compreensão da existência humana e da subjetividade. Portanto, uma psicoterapia
que se considere existencial busca compreender, necessariamente, tal abandono da
existência do homem à sua própria condição de ser pessoa, traduzida em fenômenos,
tais como a angústia, o sofrimento, a liberdade, o projeto de ser etc. (Melo, 2014).
Buscando compreender como podemos lidar com tais questões na psicoterapia
sob uma inspiração na fenomenologia existencial, entendemos que a atitude de má-
fé é um recurso frequentemente utilizado por pacientes frente à sua angústia,
condição resultante da sua liberdade de escolha. Portanto, um dos caminhos de
confirmação das psicoterapias de base fenomenológico-existencial, é a promoção do
contato e de uma relação psicoterapêutica que possibilitem a tomada de consciência,
pelo próprio paciente, de que ele é o responsável pela sua angústia em sua relação
com o meio que o circunda. A angústia advinda deste tipo de contato pode ser
alimento para o ajustamento criativo, ou seja, uma mudança no seu projeto de ser.
Para Perls (1942/2002), a angústia pode ser o resultado das resistências
advindas do mundo, quando da ação agressiva da pessoa. Em Ego, Fome e
Agressão, Perls descreveu as origens do que denominou de “agressão dental”:
precisamos morder, tirar pedaços e mastigar completamente a própria experiência
para absorvermos as partes de que precisamos e nos livrarmos do que não nos é
necessário. Tal ênfase considera a agressão numa perspectiva positiva, realçando
seu papel tanto de preservação da vida do próprio organismo, quanto seu desafio de
fazer contato com o ambiente.
A agressão nos habilita a arriscar o confronto com o mundo e nos liberta para
sermos criativos e produtivos. É esta ação de “destrinchar” as experiências,
transformando-as em novas formas, com empenho, entrega, energia e intensidade,
uma forma de entrarmos em contato com a nossa condição de pessoa, com a
liberdade que somos. Se não podemos fugir à liberdade, já que estamos condenados
a ela, a psicoterapia pode facilitar o contato com nossa responsabilidade de sermos
livres. É tal entrega ao encontro com a própria existência, em meio aos obstáculos,
que deve ser buscada na psicoterapia. O que denominamos de “awareness” é
resultado da apropriação de nossa condição irremediável de sermos livres. Uma
psicoterapia inspirada na noção ontológica de liberdade (Sartre, 1943/1997) deve
facilitar o contato com nossa condição de agentes responsáveis pela qualidade de
nossa existência (Melo, 2014). Se o sofrimento do paciente, muitas vezes, anuncia a
angústia diante das suas próprias decisões, o processo de psicoterapia pode facilitar
com que o paciente entre em contato com suas decisões e sua maneira de lidar com
a vida.
Como destacamos, a angústia é a constatação da liberdade. É impossível que
o homem, segundo Sartre (1943/1997), consiga responder aos questionamentos
inquietantes da sua existência frente à liberdade sem que use a má-fé como resposta
à consequente angústia a ela associada. Numa psicoterapia inspirada na
fenomenologia existencial sartreana, o manejo da má-fé do paciente passa, então, a
ser objeto de atenção e de intervenção do psicoterapeuta. É na descrição da angústia
vivida pelo paciente em seu mundo existencial que o psicoterapeuta deve se centrar,
buscando compreendê-la e favorecer que o paciente se aproprie da existência que ele
mesmo construiu a partir de suas próprias escolhas. Nesta perspectiva,
psicoterapeuta e paciente são protagonistas do processo de descoberta de novas
formas de existir no mundo. Este pode ser um recurso que confirma o potencial das
psicoterapias fenomenológico-existenciais (Melo & Boris, 2016).

A GESTALT-TERAPIA: UMA PSICOTERAPIA DO CONTATO

Herdeira da fenomenologia, “a gestalt-terapia é fenomenologia aplicada” (Perls,


Hefferline e Goodman, 1951/1997, p. 28), pois propõe que psicoterapeuta e paciente
entrem em contato com suas experiências de mundo, sem rejeitar nem afirmar uma
realidade em relação à outra, mas tentando apreender a experiência pelo único modo
possível: tal como ela se apresenta. Para Perls, Hefferline e Goodman, o trabalho de
psicoterapia ocorre a partir da experiência imediata, aquilo que, agora mesmo, se
manifesta, no aqui-agora da experiência vivida, e que pode possibilitar o contato com
as situações inacabadas geradoras de sofrimento:

em vez de expedientes do inconsciente, trabalhamos com o que está mais à


superfície. O problema é o que o paciente (e com demasiada frequência o
próprio terapeuta) passa por cima dessa superfície. A maneira como o paciente
fala, respira, movimenta-se, censura, despreza, busca motivos etc. – para ele
é óbvia, é a sua constituição, é a sua natureza. (...) É precisamente no óbvio
que encontramos a sua personalidade inacabada; e o paciente pode recobrar
a vivacidade da relação figura/fundo somente lidando com o óbvio, dissolvendo
o que está petrificado, distinguindo o blá-blá-blá do interesse verdadeiro, o
obsoleto do criativo (p. 36).

Este óbvio e não obsoleto fato da relação figura/fundo, portanto, é o contato.


Neste sentido, a gestalt-terapia desenvolveu uma psicopatologia
fenomenológica, discutindo os “modos de contato”, passíveis de serem vivenciados
por qualquer pessoa em suas relações consigo mesma, com o outro e com o mundo,
mas que podem ser bloqueados, perturbados, enrijecidos ou estereotipados. Para
tanto, precisamos compreender o que é contato. Para além do que costumamos dizer,
em nosso cotidiano - “fazer contato”, “manter contato” etc. -, em gestalt-terapia,
contato significa o reconhecimento e a forma de o eu lidar com o outro, o diferente, o
novo, o estranho, o não-eu. Constitui um ciclo de encontro e de retirada no campo
organismo/meio, que é dinâmico, ativo e vívido e depende sempre de um acordo entre
o organismo e o meio. Trata-se da assimilação das novidades assimiláveis, mas,
também, da possível rejeição daquilo que não é assimilável. Ou seja: todo contato é
um ajustamento criativo do organismo. Portanto, o contato é uma atividade que resulta
em assimilação e crescimento, formando uma figura contra um fundo (ou contexto),
caracterizando a forma como o indivíduo se relaciona com o meio e consigo mesmo.
Assim, a figura (gestalt), no processo de conscientização ou de dar-se conta, é uma
percepção, uma imagem clara e vívida. Neste sentido, o contato apenas pode ser bom
e criativo se houver suporte. O auto-suporte é o potencial e a capacidade que o
indivíduo tem de lidar consigo mesmo e com o meio. Desta forma, na psicoterapia, o
paciente busca um suporte externo (o psicoterapeuta e o processo psicoterapêutico)
para ajudá-lo a recuperar seu auto-suporte. O contato e a fuga (ou evitação do
contato) são opostos dialéticos e constituem meios de lidar, na fronteira de contato,
com objetos do campo organismo-meio. Contatar o meio é formar uma gestalt; contato
e fuga, num padrão rítmico, são meios de satisfazer nossa necessidade de continuar
os progressivos processos da vida. Portanto, contato é um fenômeno de limites entre
organismo e meio. Assim, pressupõe uma fronteira de contato. As experiências
sempre ocorrem na fronteira entre o organismo e o meio: ela limita o organismo, o
contém e o protege, e, ao mesmo tempo, interage com o meio. É na fronteira de
contato que o indivíduo interage com o meio, mantendo sua diferença. É também nela
que os perigos são rejeitados e superados e o assimilável é selecionado: o que é
selecionado e assimilável é o novo. A gestalt-terapia investiga o modo como o ser
humano funciona em seu meio, ou seja, trabalha com o que ocorre na fronteira de
contato entre o indivíduo e seu meio, pois é neste limite de contato que ocorrem os
eventos psicológicos. Um exemplo de tal fronteira de contato é a pele, que constitui,
ao mesmo tempo, um limite e uma fonte de interação entre o organismo e o meio.
Desta forma, podemos compreender que o contato ocorre num ciclo de contato,
descrito na Figura 1, abaixo, e a gestalt-terapia pode ser definida como uma
“psicoterapia de contato”, constituindo um processo e, ao mesmo tempo, um modelo
e um instrumento de trabalho. O ciclo de contato é um construto de seu
funcionamento, podendo ser apresentado de várias formas diferentes. Na
psicoterapia, buscamos localizar a fase do ciclo de contato na qual o paciente produz
uma interrupção, um bloqueio ou qualquer outra perturbação, o que, em determinadas
situações, pode constituir um “mecanismo” de contato.

Figura 1:
Ciclo Gestáltico de Experiência ou de Contato (a partir de Zinker, 1977/2007, p. 115)
MECANISMOS DE CONTATO E INTERVENÇÕES CLÍNICAS
Os mecanismos de contato são os modos como o indivíduo resiste à relação
consigo mesmo e com o meio. Podem se tornar interações deslocadas quando o
indivíduo desvia seu foco e reduz as possibilidades de uma interação plena com o
meio. A observação de tais mecanismos implica uma estratégia psicoterapêutica
específica; porém, não se trata de atacar ou de superar aquilo que se configura como
resistência, mas, principalmente, tornar o paciente mais consciente ou mais adaptado
à situação do momento. Assim, os mecanismos de contato podem se transformar em
perturbações do desenvolvimento ou do crescimento. Há diversas classificações dos
mecanismos de contato, mas os principais são:
. Introjeção, que significa, literalmente, “lançar para dentro”: é a nossa primeira forma
de interação e de aprendizagem, constituindo a base da educação e do crescimento,
a partir da qual todos os demais mecanismos de contato se desenvolvem. O bebê é,
essencialmente, um introjetivo. Crescemos, assimilando - literalmente, “tornando
símile, semelhante” - ou incorporando - “tornando corpo” - o mundo exterior. Aqui,
podemos perceber a identidade entre alimentação física e psicológica, pois
incorporamos alimento, água e ar e assimilamos ideias, valores, ideologias, hábitos
etc. Se engolimos sem mastigar, não há digestão. Assim, a introjeção consiste em
incorporar, em nós mesmos, normas, atitudes, modos de agir e de pensar que não
são, verdadeiramente, nossos. A fronteira entre o eu e o mundo fica tão dentro dos
introjetivos que pouco sobra deles mesmos. Entretanto, os pacientes introjetivos são
pessoas que se mantêm como “parasitas”, “bebês chorões”, crianças mimadas e
birrentas ou “vampiros”, aqueles que “engolem sapos”, “sugando” a energia dos outros
por não poderem se responsabilizar por suas próprias escolhas. Os introjetivos
investem sua energia numa incorporação passiva daquilo que o meio lhes fornece ou
impõe, sem uma real assimilação ou integração e sem utilizar sua agressividade,
impedindo a diferenciação. Ingerem “pedaços não digeridos”, tanto no âmbito físico
quanto no psíquico, dificultando a sua “digestão”. Fixam regras, atitudes, modos de
agir e de pensar que não são seus, sobrando pouco espaço para si mesmos, pois a
fronteira de contato entre eles e o mundo está colocada muito dentro deles. Podemos
citar, como exemplo “decorar” fórmulas prontas, que deram certo, anteriormente, mas
que, em outro contexto, já não fazem sentido. A tarefa psicoterápica é criar, nos
introjetivos, um sentimento que possibilite escolhas e fomentar suas habilidades de
distinguir entre eu e o outro, proporcionando uma real assimilação e contatos
significativos. Um alerta: como os introjetivos tendem a “engolir” tudo que provém do
meio, devemos ter cuidado com o risco de dependência deles em relação às
proposições do psicoterapeuta, como mais uma forma de evitar a angústia das suas
escolhas e de não se responsabilizarem por si mesmos, caracterizando o que Sartre
(1943/1997) denominou de má-fé.

Figura 2:
Introjeção

. Projeção, que significa, literalmente, “lançar adiante”: é o oposto da introjeção. “A


capacidade de projetar é uma reação natural humana” (Polster & Polster, 1973/2001,
p. 95), pois, somente por meio dela, se torna possível tirar de si mesmo conclusões
sobre os outros. Por meio da projeção, atribuímos aos outros aspectos geralmente
desagradáveis de nós mesmos. A fronteira de contato entre o eu e o meio está a favor
do eu. Aqui, temos uma amostra clara do que Sartre (1943/1997) denominava de má-
fé, ou seja, o projetivo não suporta a angústia de se responsabilizar pelo que sente ou
deseja. Assim, a projeção é a tendência a fazer o meio responsável pelo que se origina
na própria pessoa, responsabilizando o meio por aquilo que tem origem no seu próprio
self: o self transborda e invade o mundo exterior, havendo um deslocamento
exagerado da fronteira de contato a seu favor. O paciente projetivo, muitas vezes, não
aceita as partes difíceis, ofensivas ou sem atrativos da sua própria personalidade.
Exemplos: @ fofoqueir@ e @ homofóbic@. A projeção saudável é fundamental, pois
permite o contato e a compreensão do outro. Por exemplo, a empatia depende e é,
em certa medida, uma projeção. Como exemplo patológico, em sua mais extrema
dimensão, encontramos a projeção no quadro clínico da paranoia, na qual o paciente
projetivo rejeita aspectos de si mesmo, atribuindo-os ao meio e o responsabilizando
pelo que se origina em si mesmo, e tornando-se desconfiado, atento ou mesmo hostil
aos outros, que “tocam” seus atributos rejeitados: ele abdica de seu papel e se
experiencia como impotente para externar mudanças, desapropriando-se de partes
suas. A tarefa psicoterápica com pacientes projetivos é integrar as partes dispersas
da sua personalidade, confrontá-la com aspectos até então evitados, fomentando a
sua auto-responsabilidade e dizendo eu.

Figura 3:
Projeção

. Retroflexão, que significa, literalmente, “voltar-se para trás”: é “um poder central
humano” (Polster & Polster, 1973/2001, p. 96), que possibilita a divisão do próprio eu
em observador e observado (autoconsciência). Trata-se de uma conjunção de
introjeção e projeção: há uma fronteira de contato rígida entre o organismo e o meio
e uma cisão do retroflexivo em sujeito e objeto, ao mesmo tempo. “A retroflexão é
compreendida como um bloqueio que interrompe o contato no momento da interação,
significando que a pessoa dispensa o contato com o outro, voltando para si mesma
uma energia que seria naturalmente dirigida para a relação” (Alvim, Bomben &
Carvalho, 2010, p. 183). O retroflexivo inflige a si mesmo o que gostaria de fazer a
outra pessoa ou o que outra pessoa fizesse com ele. Ele abandona qualquer tentativa
de influenciar seu meio, tornando-se separado e, aparentemente, autossuficiente.
Consiste em voltar contra si mesmo a energia mobilizada, fazendo consigo aquilo que
gostaria de fazer aos outros ou, ainda, fazendo a si mesmo aquilo que gostaria que
os outros lhe fizessem.
Figura 4:
Retroflexão

Quando o indivíduo faz com o outro aquilo que gostaria que fizessem consigo mesmo,
denominamos o fenômeno da proflexão, que significa, literalmente, “voltar-se para
adiante”. O paciente retroflexivo se volta, rispidamente, contra si mesmo. A retroflexão
se apresenta sempre acompanhada do uso dos verbos reflexivos ou da expressão “eu
mesmo”, como se ele e ele mesmo fossem duas pessoas diferentes. São exemplos
de retroflexão: acusar-se (culpa), acariciar-se (masturbação) e observar-se (timidez).
Em sua forma saudável, significa maturidade e autocontrole. Entretanto, a retroflexão
está na origem de somatizações diversas: por exemplo, na úlcera, o estômago “come”
a si mesmo. A tarefa psicoterápica com pacientes retroflexivos é restaurar o contato
com o mundo exterior, torná-los conscientes de si mesmos e a cisão novamente
flexível, dirigindo a energia para fora, ou seja, incentivar a expressão das emoções a
um “outro apropriado”, amplificando-as, numa catarse libertadora.
. Confluência, que significa, literalmente, “fluir com, ou na mesma direção”: é um
estado de não-contato, de fusão por ausência de fronteira de contato, impossibilitando
o self de ser identificado. Na confluência, não há fronteira entre si mesmo e o meio
(ou o outro), em uma completa identificação. São exemplos de confluência: a criança
pequena, em confluência com a mãe; os amantes que vivenciam, em certos
momentos, o casal como um ser único; e o adulto que se identifica com os interesses
de sua comunidade. A confluência, geralmente, é acompanhada de retração de si
mesmo, evitando o conflito com o outro, o que é comum entre alguns casais. Quando
se torna crônica, pode ser patológica, impossibilitando um bom contato. Sua ruptura
abrupta provoca ansiedade. O paciente confluente costuma dizer “nós” ou “a gente”,
não se sabendo a quem ele se refere, se a si mesmo, ao mundo ou ao outro (Perls,
1973/1985). Apesar e para além da polêmica sobre a última frase de sua famosa
“oração da Gestalt”, Perls parecia denunciar a confluência, quando afirmava: “Eu faço
as minhas coisas, você faz as suas. Não estou neste mundo para viver de acordo com suas
expectativas. E você não está neste mundo para viver de acordo com as minhas. Você é você,
e eu sou eu. E se por acaso nos encontrarmos, é lindo. Se não, nada há a fazer” (Perls,
1969/1977, p. 17). Na confluência, não há reconhecimento da fronteira de contato e o
paciente confluente não percebe limite entre ele e o meio, sentindo como se fossem
um só. Assim, não gasta sua energia em escolhas pessoais, confundindo-se com o
meio, entregando-se às tendências do ambiente e deixando que o carreguem. Desta
forma, a confluência é uma clara expressão do que Sartre (1943/1997) denominava
de má-fé. Pode funcionar como um acordo entre duas pessoas de que não vão brigar
(Polster & Polster, 1973/2001): há uma aparente harmonia a todo custo, geralmente
às expensas de um dos participantes da relação, senão de todos; a confluência reduz
a diferença entre os parceiros da relação para moderar a experiência perturbadora da
novidade do contato. O paciente confluente não se dá conta do que quer fazer e de
como se impede. Portanto, a tarefa psicoterápica com ele é fortalecer o contato, a
diferenciação e a articulação, fomentando o sentido de limite e a capacidade de
diferenciar as suas próprias necessidades das dos outros. Finalmente, deve-se
proporcionar uma atitude de confiança, permitindo que o paciente confluente se
emancipe, sem o temor de se sentir abandonado.

Figura 5:
Confluência

. Finalmente, temos a deflexão, não proposta por Perls, mas elaborada teoricamente
por seus seguidores, como Polster e Polster (1973/2001), e que significa, literalmente,
flexão para o lado, ou seja, um desvio: é uma manobra para se desviar do contato
direto na fronteira do contato. É uma atitude de fuga, de evitação e de esquiva de
compromisso. Mais uma vez, encontramos, aqui, a manifestação do que Sartre
(1943/1997) denominava de má-fé. Assim, a deflexão permite “amortecer” impactos e
“esfriar” climas muito “aquecidos” ou intensos, mas, se sistematicamente utilizada,
torna-se imprópria, pois impede qualquer contato verdadeiro, podendo, em casos
limites, evocar a psicose. Há uma confusão da identificação, que é, de fato, a neurose,
gerando uma desintegração da personalidade e a falta de coordenação entre
pensamento e ação: o paciente deflexivo “amortece” seus sentimentos, “colocando
panos mornos”, fugindo do contato. Desta forma, não investe energia suficiente para
obter um retorno razoável ou a investe sem focalização, e, assim, a energia para o
contato se dispersa e evapora. No deflexivo, é comum a sensação de incompletude,
de que poderia obter mais ou de que não vivencia suas emoções positivas ou
negativas com intensidade. A tarefa psicoterápica com tais pacientes é dirigir a
energia defletida ou desviada novamente para seus objetivos, ou seja, para contatos
significativos e reais, aumentando o seu senso de contato e estabelecendo um
enfoque direto, claro e consciente de como o paciente deflexivo evita o contato.
Também é importante reestabelecer a capacidade do paciente deflexivo de
discriminar, de descobrir o que ele é e o que não é, sempre em busca de uma
integração, de um equilíbrio e de um limite entre ele e o mundo.

Figura 6:
Deflexão

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como destacamos, a angústia não gera, necessariamente, adoecimento,
apesar de provocar sofrimento. Como se manifesta em vários momentos da existência
humana, é tema usual nos processos psicoterápicos. Neste sentido, a gestalt-terapia,
como uma psicoterapia de base fenomenológico-existencial, constitui um significativo
recurso clínico para acompanhar os projetos de ser dos pacientes que a buscam, em
grande parte por conta da experiência de contato com a sua angústia, favorecendo
sua ação no mundo. Se compreendermos os mecanismos de contato, conforme
propostos pela gestalt-terapia, como manifestações do que Jean-Paul Sartre
denominou de má-fé, ou seja, como tentativas de evitação da angústia diante de
nossas próprias escolhas, isto é, perante a assunção e o exercício de nossa
inescapável liberdade, podemos, portanto, reconhecer tal concepção como um
elemento significativo para uma psicopatologia fenomenológica, que não se aplica
apenas a pacientes gravemente perturbados, mas diz respeito aos modos de
funcionamento e de interação de qualquer pessoa.

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