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22 de junho de 2016
PARTE INTEGRANTE DE VEJA ANO 49 - NO 25
NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE

Arthur, de
2 meses, um
dos bebês
atendidos:
melhor
qualidade
de vida

ALÍVIO EM MEIO À DOR


Com equipamentos de ponta e muita dedicação, os médicos do Instituto Estadual do
Cérebro estudam e tratam bebês com microcefalia provocada pelo vírus zika no Rio
Saúde

CIÊNCIA E
SENSIBILIDADE
Em um serviço pioneiro no país, médicos e terapeutas do
Instituto Estadual do Cérebro dedicam-se a tratar e estudar
os bebês com microcefalia provocada pelo vírus zika
Pedro Moraes

O
contraste entre o tamanho diminu- grama que envolve aconselhamento materno,
to da paciente e a imensa máquina acompanhamento médico, medicação e trata-
de ressonância magnética, o apa- mentos e terapias complementares, se for o
relho de diagnóstico por imagem caso. A iniciativa faz parte do Ambulatório de
mais preciso que existe, impres- Microcefalia da instituição, inaugurado há qua-
siona à primeira vista. Com 5 meses de vida, a tro meses. Ambicioso, o programa propõe-se a
pequena Ana Clara é colocada em uma maca estudar todos os casos da má-formação provo-
deslizante e tem o casaquinho rosa e o macacão cada pelo vírus no estado e já recebeu, desde
da mesma cor desabotoados. O médico então sua abertura, 106 crianças. Com uma equipe
ausculta seus batimentos cardíacos enquanto ela médica composta de neuropediatras, radiolo-
boceja e mexe as perninhas. Em seguida, uma gistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e oftal-
enfermeira pega um equipamento de inalação mologistas, esse trabalho se tornou referência
que vaporiza um anestésico leve nas vias respi- nacional, reconhecido pelo Ministério da Saúde
ratórias da criança. Rapidamente, o bebê entra como modelo a ser seguido no país. “Todos nós
em um sono profundo e o exame propriamente ficamos chocados com esses casos de microce-
dito começa. A maca desloca-se para dentro de falia e, em consequência disso, pensamos no
um tubo onde a criança passa vários minutos que poderíamos fazer”, explica Paulo Nie-
tendo seu cérebro esquadrinhado. Pouco a meyer Filho, diretor médico do IEC. “Apesar
pouco, as imagens começam a chegar aos moni- de a especialização do instituto ser a neuroci-
tores da sala vizinha e, ali, os técnicos dão início rurgia, temos os equipamentos necessários para
a um detalhado processo de investigação de seu fazer esses exames e condições de dividir a
sistema nervoso central. A menina, cuja cabeça, agenda dos consultórios para atender essas
no nascimento, tinha um perímetro de apenas 22 famílias. Daí a montar o projeto foi um passo.”
centímetros, quase 10 a menos do que o padrão, Os primeiros indícios de que existe algo
apresenta um caso severo de microcefalia. Com errado no desenvolvimento da criança com
os exames, os médicos pretendem confirmar microcefalia costuma surgir durante a gesta- Equipe se
os vínculos da má-formação com a infecção ção, nos exames do pré-natal. O perímetro prepara para
anestesiar
pelo vírus zika e analisar outros possíveis encefálico reduzido é a principal característi- Ana Clara para
danos na estrutura cerebral. ca do problema, confirmado no nascimento. exame de

FELIPE FITTIPALDI
A avaliação a que Ana Clara foi submetida Para meninos, a medida a ser considerada ressonância
no último dia 10, no Instituto Estadual do Cére- deve ser inferior ou igual a 31,9 centímetros magnética: alta
bro (IEC), é a segunda etapa de um amplo pro- enquanto para as meninas, o tamanho deve tecnologia

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ser inferior ou igual a 31,5 centímetros. Yara Barros e Davi
Uma vez constatada tal condição, o
caso deve ser notificado ao Ministério No sexto mês de gravidez, a estudante de apenas 15 anos soube que seu filho tinha
da Saúde. No Rio, desde fevereiro, os um problema na cabeça. Hidrocefalia, apontou um ultrassom. Dois meses depois,
pacientes são encaminhados ao IEC, o nome mudou: microcefalia. Yara se lembra de quando teve os sintomas associados
localizado no Centro. Ali, o processo à zika, de forma leve. Concluído o diagnóstico, Davi tornou-se uma das primeiras
de diagnóstico é feito ao longo de três crianças atendidas pelo projeto do IEC. Hoje, o bebê de 6 meses faz tratamento
visitas. A primeira etapa consiste em fisioterápico em uma clínica perto de casa e se mantém sob os cuidados do serviço
cinco consultas, com pediatra, neurope- de epilepsia do instituto. A mãe está no 8o ano da Escola Municipal Café Filho, em
diatra, fisioterapeuta, fonoaudiólogo e Vila Kennedy, e cria o menino com a ajuda do avô. “Quando soube que meu filho
assistente social. A segunda envolve os enxergava e ouvia bem, fiquei muito aliviada. Ele não me dá trabalho”, elogia a mãe.
exames de maior complexidade, como
a tomografia computadorizada e a res-
sonância magnética, além de testes
oftalmológicos e do exame conhecido
como Bera — que avalia a resposta
cerebral a estímulos auditivos. Na últi-
ma etapa, as famílias recebem o diag-
nóstico detalhado, com a orientação
sobre quais cuidados serão necessários
nos primeiros anos de vida da criança.
“O importante é que essas pessoas
tenham o maior número possível de
respostas que as preparem para o que
terão pela frente”, explica a médica
Fernanda Fialho, coordenadora da
FOTOS FELIPE FITTIPALDI

pediatria e responsável pelo projeto.


Além de dar atendimento, o ambulató-
rio propõe-se a gerar dados científicos
sobre a microcefalia provocada por
zika. Os testes de imagem, por exem-
plo, são usados para avaliar, entre Daniele da Silva,
outras coisas, a presença de microcal- Flávio Oliveira, Sofia e os
cificações no tecido cerebral da crian- irmãos Marco e Daiane
ça, um dos efeitos da infecção pelo
vírus. O objetivo da equipe é submeter Ao fazer uma ultrassonografia para investigar
os resultados das pesquisas a publica- um mal-estar, a costureira, moradora de
ções científicas internacionais e, dessa Mesquita, descobriu que estava grávida
forma, engrossar as fileiras dos grupos de seu terceiro filho e recebeu uma
de estudiosos que vêm combatendo a notícia terrível. Em decorrência de uma
epidemia e suas consequências. má-formação, o bebê — uma menina —
Receber os pequenos pacientes com tinha uma abertura no crânio e parte do
microcefalia exigiu mudanças na rotina cérebro para fora da cabeça. Daniele e Flávio
do instituto. No entanto, não demandou foram aconselhados pelo médico a fazer
nenhum orçamento extra, que seria um aborto, previsto em lei para esses casos.
impossível de viabilizar na atual crise O casal decidiu prosseguir com a gestação.
econômica do estado. Na contramão da O parto foi difícil, a ponto de ela ter tido
penúria e das más notícias no setor da o útero removido. Com 22 dias de vida,
saúde, a unidade remanejou receitas, a pequena Sofia passou por uma cirurgia
reparadora. Diagnosticada com microcefalia, Jéssica dos Santos e Ana Clara
conseguiu estruturar o programa e ainda
manter as ampliações e a aquisição de a menina apresenta sérios problemas de Atenta às notícias sobre a epidemia de zika, a dona de casa de 24 anos usou
novos equipamentos previstas nos planos visão e sofre de convulsões, o que é repelente durante toda a gravidez. Não foi suficiente. Os sintomas apareceram
traçados em 2014, antes do apocalipse atenuado por medicamentos. A mãe não no início da gestação. Os exames do período pré-natal estavam normais, apesar
das finanças estaduais. Mas, mesmo com se lembra de ter contraído zika na gravidez. de indicarem o pouco peso do bebê, sua terceira filha. Aos nove meses, depois de
o cenário mais otimista, a realidade dos “Não tive sintomas”, diz. Para ela, a filha é reclamar de contrações no hospital e ser mandada de volta para casa, Jéssica deu à luz
recursos da unidade demanda atenção. O um exemplo de superação. “Carrego todos Ana Clara em sua cama. A ambulância do Samu chegou apenas para levá-las ao hospital.
hospital, que antes recebia em média os dias um milagre no meu colo”, diz. Atualmente, Jéssica vive com as filhas na Pavuna com recursos do Bolsa Família.

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13 milhões de reais por mês, agora opera Erika Bernardo e Hellena Josiane da Rocha, mosquito ao atendimento de pacientes
com a verba de 8,5 milhões. “Fizemos Luiz Felipe Pereira infectados pelo microrganismo, por
ajustes nas contas, optamos por mate- Os sintomas da zika surgiram aos três meio do Instituto Fernandes Figueira.
riais mais simples e mantivemos as meses de gravidez da cabeleireira de e o filho, Arthur Nesse contexto, o IEC ganha destaque
portas abertas. Brinco com a equipe 29 anos, quando pouco se falava sobre O primeiro filho do casal, Arthur era entre as demais instituições em função
dizendo que vamos trocar o elevador o assunto. Aos cinco meses de gestação muito esperado. A gravidez de da capacidade de oferecer em um
pela escada mas chegaremos ao foram detectados problemas graves no Josiane transcorreu com tranquilidade mesmo lugar exames de alta complexi-
mesmo lugar”, diz Niemeyer. bebê. As imagens mostravam que os mesmo depois que a técnica de dade usados no diagnóstico e atendi-
O nascimento de um bebê com micro- pezinhos tinham uma má-formação. enfermagem se sentiu mal, aos três mento multidisciplinar prestado a mães
cefalia tem um efeito brutal sobre a famí- Outra lesão, naquele momento não meses de gestação. Na ocasião, os e filhos. “Desde que a Ana Clara nas-
lia. A má-formação faz com que a crian- identificada, afetava o crânio. Nos sintomas da zika foram confundidos ceu, ela só chorava, a ponto de eu ficar
ça exija cuidado constante, tenha graves meses seguintes, nenhum diagnóstico com uma intoxicação alimentar. Todo desesperada, sem saber o que fazer.
problemas de desenvolvimento e uma específico foi fechado. O nascimento o acompanhamento foi feito em Além disso, ela não ganhava peso”,
de Hellena, cercado de tensão, gerou clínicas particulares, sem que explica Jéssica dos Santos, de 24 anos,
vida cercada de limitações (confira o
ainda mais comoção quando a bebê foi nenhum problema fosse
depoimento das mães de bebês com mãe da bebê avaliada na ressonância
desenganada, nas primeiras horas de diagnosticado. Assim que o bebê
microcefalia ao longo da reportagem). magnética descrita no início da reporta-
vida. Contrariando os médicos, a nasceu, foi constatado que o
Não são raros os casos de casamentos gem. “Quando cheguei aqui me expli-
menina desenvolveu-se e foi levada ao perímetro da cabeça era de mais de
desfeitos e de mulheres obrigadas a aban- caram que ela não conseguia sugar
IEC, onde se constatou um severo caso 1 centímetro inferior ao esperado.
donar o emprego para cuidar do filho. Do direito. Aprendi, por exemplo, a fazer
de microcefalia. Na primeira avaliação Sem graves alterações físicas,
ponto de vista físico, esses bebês com- uma massagem na bochecha dela que
da equipe multidisciplinar, foram o menino faz fisioterapia.
partilham algumas características, além ajuda na mamada. Hoje ela chora
observadas crises convulsivas, e os Atendido no IEC, Arthur
do tamanho reduzido da cabeça. Eles menos e está mais gordinha”, diz.
médicos iniciaram a medicação no continua com seu tratamento
costumam sofrer de hipertrofia muscular, Um agravante nesse quadro dramático
mesmo dia. O tratamento continua na rede privada. “Foi muito
que causa o enrijecimento dos membros, é o perfil econômico das famílias com
ainda hoje. “Minha família me apoia importante passar por lá, porque
de dificuldade para a sucção, o que preju- bastante, mas penso muito sobre como casos de microcefalia, a maioria de
dica a amamentação, e de crises convul- tiramos muitas dúvidas. Hoje estamos baixa renda. Há mães que vão ao IEC e
será o nosso futuro.” mais tranquilos”, relata a mãe.
sivas, normalmente controladas com pedem auxílio financeiro para voltar
medicação. A falta de informação sobre a para casa. Alguns órgãos estão dando
microcefalia e sobre como lidar com seus Daiana da Silva e apoio a essas pessoas. A ONG RioSoli-
impactos é extremamente comum entre dario, ligada ao governo do estado, ofe-
as mães que chegam ao serviço do IEC.
Raylan Agostinho rece a elas transporte e acompanhamen-
“É muito importante a estimulação dos Para Daiana, 23 anos, os to de assistente social, assim como
músculos, pois a microcefalia leva à sintomas da zika surgiram alguns municípios vêm se responsabili-
limitação de movimentos”, explica a no terceiro mês de gravidez. zando pelo deslocamento até a sede do
pediatra Fernanda Fialho. “Se nada for Cinco meses depois, os instituto, no Centro. As mães costumam
feito, é possível que essas crianças nem médicos constataram que reagir ao problema das formas mais
cheguem a se sentar. E, com certeza, no Raylan tinha o perímetro da variadas, em um grande leque de emo-
futuro, será mais fácil para as mães cabeça abaixo do padrão. Mãe ções que vão da resignação à comovente
lidar com uma criança que tenha o de uma menina de 4 anos, dedicação absoluta aos filhos. No entan-
máximo possível de mobilidade.” Daiana divide uma pequena to, um traço comum a todas é a incerte-
Em meio ao complexo cenário criado casa de um quarto com a irmã za em torno do que acontecerá com seus
com a epidemia provocada pela combi- e os filhos em Nova Iguaçu. bebês. “Penso todo o tempo sobre como
nação do mosquito Aedes aegypti com No IEC, as notícias sobre a será o nosso futuro, se essas crianças
o zika, cientistas aquartelaram-se em saúde do menino têm sido terão algum dia uma chance de ser
seus laboratórios em busca de respostas animadoras para a família. O incluídas na sociedade”, diz Erika Ber-
que envolvem desde as formas de con- comprometimento neurológico nardo, mãe de Hellena, de 6 meses.
tágio até a maneira como o vírus se não é tão severo. O bebê sorri Cabeleireira, ela parou de trabalhar para
propaga no organismo. Pesquisadores e acompanha os estímulos cuidar da filha em tempo integral. Sol-
da Universidade Federal do Rio de com o olhar. A jovem, que teira, não sabe quando poderá voltar ao
Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de atuava como operadora serviço e tem dúvida se isso um dia vai
Pesquisa e Ensino, por exemplo, come- de caixa de uma loja de acontecer. “Hoje, sou só a mãe da Helle-
çaram a estudar se adultos infectados departamentos em Belford na, e isso é a coisa mais importante para
pelo zika podem desenvolver proble- Roxo, ainda está de licença- mim.” Mesmo que não tenham todas as
FOTOS FELIPE FITTIPALDI

mas neurológicos, por exemplo. Já a maternidade, mas não sabe respostas que as mães e os familiares
Fundação Oswaldo Cruz, através de como voltará a trabalhar. buscam, centros como o Instituto Esta-
seus vários organismos, dedica-se a um “Meu filho tem me dado muita dual do Cérebro fazem com que tama-
amplo espectro de estudos que vão do força e mantenho a fé”, diz ela. nha angústia seja mais suportável. ■

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