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serviço social do comércio – sesc sp PUBLICação

administração regional no estado de são paulo Tokyogaqui um Japão imaginado

XXXXXXXXXXXXXXXXX
presidente do conselho regional XXXXXXXXXXXXXXXXX
abram szajman XXXXXXXXXXXXXXXXX
XXXXXXXXXXXXXXXXX
diretor regional XXXXXXXXXXXXXXXXX
danilo santos de miranda XXXXXXXXXXXXXXXXX
XXXXXXXXXXXXXXXXX
superintendentes XXXXXXXXXXXXXXXXX
técnico-social joel naimayer padula XXXXXXXXXXXXXXXXX
comunicação social ivan giannini XXXXXXXXXXXXXXXXX

gerentes
ação cultural rosana paulo da cunha adjunto paulo
casale assistente Marcelo Bressanin artes gráficas
hélcio magalhães assistente Marilu Donadelli Vecchio
AUDIOVISUAL Silvana Morales Nunes ADJUNTO Ana
Paula Malteze DESENVOLVIMENTO DE PRODUTOS Marcos
Lepiscopo ADJUNTO Walter Macedo Filho DIFUSão Marcos
Ribeiro de Carvalho ADJUNTO Fernando Fialho RELAções
COM O PúBLICO Paulo Ricardo Martin ADJUNTO Carlos
Rodolpho T. Cabral ESTUDOS E DESENVOLVIMENTO Marta
Raquel Colabone ADJUNTO Andrea de Araujo Nogueira.

SESC Avenida Paulista ...

1a. edição: junho de 2008


Serviço Social do Comércio – SESC/SP
Av. Álvaro Ramos, 991- São Paulo – SP
CEP 03331-000
Tel. 6607-8000
www.sescsp.org.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


avesso

gicas:
orpos

Japão

Brasil

osição
Apresentação
Danilo Santos de Miranda 07

Tokyogaqui: o avesso do avesso


Ga = imagem. Tokyogaqui imagem de Tokyo aqui. Ricardo Fernandes 12
Liberdade - Série fotográfica. Hideki Matsuka
Poéticas da brevidade: entre poemas concretos, parangolés e cosplayers. Christine Greiner

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês


às metamorfoses das cidades e dos corpos
Falando na Língua do Antípoda: Fantasia Nipo-brasileira na Origem da Língua. Shuhei Hosokawa 44
“O Ovo Gigante de Mothra: Consumo do Pacífico Sul nos anos 60 no Japão”. Yoshikuni Igarashi
Torres de Tóquio: Animação e o Desejo de Varredura. Tom Looser
O nomadismo urbano de Tóquio: Toyo Ito e Kazuyo Sejima. Guilherme Wisnik

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


Butô de Tatsumi Hijikata e a Dança da Rosa Colorida. Takashi Morishita 122
Rompimentos, Fracassos: dois momentos “nacionalistas” e a cultura da dança do Japão. Tadashi Uchino
Os corpos do J-Pop. Christine Greiner

As artes japonesas no Brasil


O impacto da dança e do teatro japonês em artistas brasileiros. Christine Greiner 164
O espaço ma e Helio Oiticica. Michiko Okano 178
A história dos Japonismos no Cinema. Marcela Canizo 190
Walter Hugo Khouri e o Japão. Almir Almas
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Arquitetando pensamentos – um making of da exposição 224


Fragmentos de imagens, frases, pensamentos, manifestos, performances, cartas,
bilhetes, desenhos, receitas, poemas, plantas, maquetes, acervos pessoais que
construíram o espaço-tempo Tokyogaqui.

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Tokyogaqui: o avesso do avesso


Ga = imagem
Tokyogaqui imagem de Tokyo aqui.
Ricardo Muniz Fernandes
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Tokyogaqui: o avesso do avesso
  Tokyogaqui, exposição e livro foi um esforço para revelar pensamentos
não como idéias e fatos, mas como movimento contínuo. Um acontecimento.
Um mover-se contínuo. Uma forma de pensar um indeterminado Japão.
Nada óbvio e declarado, mas um lugar-pensamento criado por ocidentais e
brasileiros, desenhando um Japão de cabeça para baixo. Um espelho de nós
mesmos e do mundo virado pelo avesso.
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 Um mesmo lugar e duas partes. Dois recipientes de um pensamento em

Tokyogaqui: o avesso do avesso


constante transformação, largado em labirinto. Um local da partilha daquilo
que permanece na memória de cada um como não japonês, brasileiro e es-
pecificamente paulistano.
 O Japão revelado nestas duas obras (exposição e livro) é também
contraditório, porque está separado da memória, é algo inventado e repetitivo,
desconhecido e ao mesmo tempo banal. É um mundo-Japão como objeto
de desejo e desvelamento de outros sentidos. Um caminho quebrado e um
mergulho no outro lado, no avesso do Ocidente, em um além.
 Composição e exposição de um Japão, do mesmo jeito que os “milenaristas”
e a renascença olhavam os antípodas, pensado da mesma forma como as
crianças brincam: imaginando alcançar aquela ilha, do outro lado do mundo,
cavando um buraco profundo através da terra.
 O lugar e movimento aqui esboçado é um jogo com um Império dos
Signos, aquele Japão barthesiano: onde nos deixamos ficar, rodopiando,
em movimento contínuo entre os tantos significados e as intermináveis in-
significâncias.
 Um andar memória e outro dispersão. Um andar emoção e outro
maquinaria.
 Um Japão templo e outro shopping. Lugares resistentes abaixo da linha
do Equador, sem preconceitos ou ressalvas, onde nos permitimos deixar de
lado a realidade e sua prosaica dimensão, esquecendo a comemoração sobre
um centenário, e criando um lugar de vivência e conhecimento subjetivo, de
memória e esquecimento, da fantasia de uma prática atravessada. Tokyogaqui
como desvio, intermitência e poética.
 A exposição-origem e este livro-resultado são mais do que documentos,
são estratégias e desmanches de um Japão real. Histórias de “Japões” vividos
e interpretados, alguns nas regras da academia, da história e da ciência,
outros na liberdade da arte e todos como movimento de idéias e coisas
sabidas. Corpos, arquitetura, monstros, línguas, imagens. Uma imensidão,
uma maravilha e um jogo entre conhecimentos e desconhecimentos.
 Rabiscos e planos de uma terra maior, encruzilhadas entre a precisão e o
excesso. A exposição e livro permanecem, um na memória e outro no papel,
como o desvendar contínuo de um segredo, como o dobrar e desdobrar
origamis ao infinito. Uma mistura entre a vitrine de um shopping center e o
jardim japonês eterno de Kioto.
 Espaços privados e outros escancarados. Lugares secretos e outros
expostos. Códices indecifráveis e onomatopéias. Repetições e incompreen-
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sibilidades. Um exercício de pensar e compor um Japão torto, enviezado e
Tokyogaqui: o avesso do avesso

por isso mesmo completamente real. Um Japão de incertezas e zonzeiras,


criadas no deslize e na lentidão conhecida dos fantasmas do Noh e também
no excesso da velocidade e do consumo. Tokyogaqui exposição e livro é o
Japão recriado e mantido no reino do descartável e também na insistência e
sobrevivência da tradição.
 Este Japão aqui proposto, imaginado e blocado em andares na Avenida
Paulista, não foi uma utopia, um lugar hipotético, mas uma fantasia e
desejo concretizado. Não quis ser efeméride ou comenda, mas futuro e lugar
completo. Reino. Registro. “Balanço” de pensamento, desejo e lugar. Algo
contendo tanto o imprescindível quanto o supérfluo. Um sonhar acordado,
corpo e potência maior da imaginação. Sem método ou regras, desprezando
as fronteiras estabelecidas, os limites, nossos conceitos e preconceitos. Um
devir: Samurai Kazuo, Tennin, Takao Kusuno, Denilto, Godzila Shinju-ku,
National Kito. Helio Oiticica, Haroldo de Campos. Sugai Zeta Uesugi Lerner
Waguri Murobushi Yoshito Ohno Caixa de Imagens. Yubiwa Hotel Heidi S.
Durning Tigarah CosPlayers Hip Hop nipobrasileiros Ohtakes, Otakus, Sekitos,
Kawaii, Nagais, Sumos, Yawalapitis, Tanikos, e muitos Outros outros outros
outros vindo e outros outros outros outros voltando.
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Tokyogaqui: o avesso do avesso


Liberdade
Série fotográfica de Hideki Matsuka
Verão 2008

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Para “olhar” a cidade, Walter Benjamin enumera três grandes alegoristas – o flâneur, o viajante
e a criança, caminhantes desprevenidos e receptivos prontos a enxergar a alma dos lugares.
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Poéticas da brevidade: entre poemas
concretos, parangolés e cosplayers
Christine Greiner
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Tokyogaqui: o avesso do avesso
 Nunca se sabe ao certo quando e como começa uma viagem. Algumas
vezes, as mudanças são visíveis: malas e álbuns de fotografia empilhados.
Mas existem também as viagens íntimas, que acontecem sem que ninguém
saia do lugar.
 A chegada da cultura japonesa ao Brasil passou por essas duas fases.
Pode ser descrita a partir do dia, em 1908, em que o navio Kasato Maru
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atracou no porto de Santos, bem como a partir do trânsito de tatames,

Tokyogaqui: o avesso do avesso


quimonos, sushis e banheiras ofurô que se integraram, pouco a pouco, ao
nosso cotidiano. Mas também pode ser reconhecida através de operadores
poéticos que, até hoje, têm papel fundamental na obra de muitos artistas
e pesquisadores brasileiros e se foram transformando, da admiração pelo
Japão tradicional até a febre de consumo estimulada pelos produtos da
indústria cultural J-pop, ou do Japão pop.
 Nos últimos cem anos, aconteceu de tudo nos encontros entre Brasil e
Japão: casamentos, experimentos culinários, troca de superstições e assim
por diante. Mas algumas experiências foram particularmente importantes
para reafirmar o nosso caráter antropofágico, uma vez que não pretenderam,
em nenhum momento, imitar ou preservar as manifestações nipônicas, e sim
incorporá-las. Como essas ações não são de mão única, a cultura brasileira
também foi devorada e nunca mais voltou a ser a mesma.
  Iniciativas mais radicais aconteceram entre as décadas de 1950 e 1970,
resultando em manifestos artístico-revolucionários para abandonar de vez o
lastro das certidões de nascimento. Os encontros que se sucederam passaram
a ter um perfil bem definido: mestiço, provisório e “fermentador do acaso”
como gostava de definir o poeta Haroldo de Campos (1929-2003). Algumas
dessas iniciativas renderam muita polêmica nas facções mais ortodoxas que
teimavam em preservar o Japão no Brasil sem se deliciar com as imperti-
nências das muitas versões do Japão do Brasil. Hoje, o panorama está bem
diferente e as contaminações com a cultura japonesa fazem parte do nosso
cotidiano a ponto de nem sempre as identificarmos com clareza.

Os primeiros japonismos
 As culturas asiáticas já vinham, desde as Grandes Navegações, trilhando
conexões simbólicas e intercâmbios de procedimentos de criação no
Ocidente. No entanto, no final do século 19, quando o Japão abriu as suas
portas ao Ocidente com a Restauração Meiji (1868-1912), o mercado interna-
cional aqueceu-se.
 Havia começado na Europa o gosto pela arte asiática, principalmente
em relação às tradições de artesanato no século 16. Os objetos de jade e
de laca, as pedras semipreciosas, as porcelanas e cerâmicas, assim como
a literatura e o teatro, muito chamavam a atenção dos consumidores. No
mundo das artes, o termo orientalismo foi usado para identificar um estilo
e uma certa qualidade associada ao que se julgava ser “um jeito ou uma
visão oriental”. Evidentemente, algumas “reinvenções do oriente” tinham
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conotações políticas questionáveis, embaladas pela arrogância ocidental,
Tokyogaqui: o avesso do avesso

como foi bastante discutido por autores como Edward Said (1978), Abdel-
Malek (1963) e Homi Bhabha (1998), entre outros. No decorrer da história,
os debates sobre orientalismo deixaram de restringir-se apenas ao dualismo
Oriente e Ocidente, mas passaram a interessar a todos os países que um dia
foram colonizados e ainda hoje sofrem com abusos pós-coloniais.
 Mas até o começo do século 20, tratava-se, sobretudo, de uma relação
comercial. A Europa parecia mais encantada com as culturas indiana e
chinesa. A chinoiserie (“chinesice” ou “arte exótica chinesa”) envolvia
cerâmicas, porcelanas e indústria têxtil. Em 1862 em Londres, e em 1876 em
Paris, a moda japonesa começou a aparecer nas exibições, muitas vezes
misturada com objetos chineses e, na verdade, ninguém se incomodava em
distinguir uma da outra. Tudo fazia parte do mercado asiático emergente.
Em 1888, foi fundado o jornal Le Japon artistique (O Japão Artístico), com
versões em francês, inglês e alemão. Ele chamou a atenção do público e dos
artistas para a necessidade de se entender a arte japonesa não apenas como
algo exótico, mas ainda como uma tentativa de aproximação dos processos
de criação e dos materiais usados pelos artistas. O fundador desse jornal,
Samuel Bing – que, tendo nascido em Hamburgo logo se mudou para Paris,
onde abriu na rua Provence uma loja freqüentada por artistas como Van
Gogh –, construiu através de suas curadorias e publicações um verdadeiro
berçário de pintores impressionistas.
 A partir de então, a fascinação pela arte asiática disparou. Entre 1919 e
1928, pôsteres da famosa revista Harper’s Bazaar vão inspirar-se nas gravuras
eróticas imaginadas pelo mestre Tsukioka Yoshitoshi (1839-1892). E da noite
para o dia o Japão transforma-se em objeto de fetiche.

A experiência concreta
 Não se sabe exatamente como tudo começou no Brasil. As experiências
mais antigas relativas à cultura asiática, a exemplo do que aconteceu em
países europeus, estavam relacionadas à pintura, porcelanas, esculturas e
tecelagem. Em 1903, o diplomata e historiador Oliveira Lima escreveu No
Japão, impressões da Terra e da Gente, um livro reeditado em 1997 pela
editora Topbooks. Lima tratava da sua experiência de dois anos no país,
descrevendo os japoneses como “pequenos de estatura, curtos de pernas,
mas todos músculos e tendões”.
 Em 1936, Gilberto Freire incluiu um capítulo em seu livro Sobrados e
Mucambos chamado “O Oriente e o Ocidente”, onde também chamou a
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atenção para o tema dos contrastes culturais. E, particularmente sobre a

Tokyogaqui: o avesso do avesso


China, a tese de doutorado do professor José Roberto Teixeira Leite (1999) fez
um apanhado histórico recheado de curiosidades e imagens como as de São
Francisco e São Bento com olhos amendoados, exibidas em diferentes igrejas
brasileiras, e ainda caricaturas que marcavam a chegada das primeiras
pastelarias ao Rio de Janeiro no começo do século 20.
 Evidentemente, em todas essas experiências, os deslocamentos de
costumes e modelos estéticos sempre envolveram transformações adaptativas
aos novos ambientes. Isso valia para o tempero de pastéis, para o uso de
estampas asiáticas em diferentes tecidos brasileiros ou para encenações
teatrais. A tradução sempre foi necessariamente criativa, mesmo quando se
julgava criar uma “versão original”.
 Um dos primeiros a chamar a atenção para a preciosidade dessas trans-
formações e para a riqueza do processo de “imaginar o Japão do Brasil”, foi
o poeta e tradutor Haroldo de Campos, que reconheceu o que chamava de
“uma perspectiva existencial da provisoriedade do estético”. Haroldo sempre
teve orgulho das prateleiras de sua estante, onde guardava com especial
cuidado poemas, ensaios e romances de autores asiáticos. No entanto, pelo
próprio ofício de tradutor, o seu objetivo nunca foi analisar o oriente enclau-
surado no próprio oriente e sim conferir à cultura, e sobretudo aos poemas,
vitalidade e movimento. Ao contrário da estética clássica, que considerava
eterno o objeto artístico, Haroldo reconhecia que a arte incorporava, cada vez
mais, o relativo e o transitório. A permanência de um traço da obra artística,
mais do que nunca, parecia situada, fragmentada e aleatória. Seguindo os
passos do poeta Stéphane Mallarmé (1842-1898), afirmava que a permutação
e o movimento se haviam tornado os agentes estruturais da obra de arte.
Assim, o autor de um livro seria apenas um autor-operador, uma espécie de
leitor situado em uma posição privilegiada diante da objetividade do livro,
finalmente “anonimizada”. O livro, concluía Haroldo, havia-se transformado
em um livro-limite da própria idéia ocidental de livro.
 Essas e outras propostas-intuições foram apresentadas ao público dia 4
de dezembro de 1956 na abertura da Exposição Nacional de Arte Concreta,
que marcou o nascimento oficial do concretismo brasileiro. Era a segunda
vez que São Paulo sediava um movimento estético importante para a cultura
brasileira, uma vez que a primeira havia sido na Semana de Arte Moderna
de 1922. O impacto não foi o mesmo, embora estivessem reunidos vinte e
um artistas plásticos e seis poetas. Especialmente o grupo de poetas – Décio
Pignatari, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Wlademir Dias Pinto,
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Ronaldo Azeredo e Ferreira Gullar – acabou gerando muita polêmica. Em 1957,
Tokyogaqui: o avesso do avesso

a famosa revista O Cruzeiro batizou o movimento de “rock’n roll da poesia”.


Dois anos depois, o Manifesto Neoconcreto, publicado no Jornal do Brasil,
comentou “a perigosa exacerbação racionalista dos concretos”, encontrando
apoio em artistas como Helio Oiticica, Lygia Clark e o próprio Ferreira Gullar.
Era um debate de natureza filosófica.
 Com o passar dos anos, os fundadores do movimento tomaram rumos
diferentes e, na verdade, nunca se deixaram confinar no rótulo de “poetas
concretos” apesar de preservarem, em comum, algumas noções importantes:
fosse a capacidade de criar novas estratégias e “topologias poéticas” –
segundo observou Octavio Paz –, fosse a negação do “discurso pelo discurso”.
Estas duas características estavam diretamente relacionadas à descoberta
do Oriente, especialmente China e Japão. Isso porque a transformação
radical de Haroldo nos seus modos de pensar e sentir a arte havia nascido
da leitura, além de Mallarmé, do ensaio “Os caracteres da escrita chinesa
como instrumento para a poesia”, do filósofo e orientalista Ernst Francisco
Fenollosa (1853-1908). O ponto de partida eram os processos de mestiçagem
cultural e de tradução criativa que Haroldo batizou de “transcriação”.
 Mas a história rumou especificamente em direção ao Japão quando em
1969 o poeta Paulo Leminski lhe apresentou o texto da peça nô Hagoromo,
cujo projeto de tradução o fascinou por completo, acompanhando-o
durante muitos anos. Um dos primeiros resultados foi um capítulo do seu
livro A Operação do Texto (1976), dedicado a Helio Oiticica, inventor dos
parangolés. Com a descoberta do nô, tudo passou a fazer sentido: o quimono,
o parangolé, os poemas hai-kai, o teatro e os ideogramas. Um ano depois,
em seu livro Ideograma, lógica, poesia, linguagem, Haroldo explicou que
para entender o nô era preciso ler Fenollosa, porque ele abria caminhos para
conexões inusitadas. Daí, por exemplo, a empatia entre os quimonos e os
parangolés. Afinal, as duas vestimentas não eram de fato vestimentas, mas
operadores de movimentos-pensamentos-sentimentos. Não eram iguais em
sua aparência, mas partilhavam a mesma qualidade capaz de reinventar o
corpo. O parangolé era uma “estrutura ambiental” que possuía um núcleo
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Tokyogaqui: o avesso do avesso


Vapor japonês “Kasato Maru” atracado no porto de Santos
principal, o participador-obra. Este se desmembrava em “participador”,
quando assistia à obra, e “obra” quando “era assistido” de fora nesse
espaço-tempo ambiental. De todo modo, o parangolé estimulava estruturas
perceptivo-criativas no mundo ambiental. Era disso também que tratava
o nô: da criação de estruturas perceptivas e cognitivas que deslocavam o
espectador do seu universo particular.
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 Fenollosa foi um dos pesquisadores que traduziram para o ocidente
Tokyogaqui: o avesso do avesso

aspectos da lógica chinesa incorporada pelos japoneses e, curiosamente,


fê-lo já com olhos contaminados. Isso porque, ao mesmo tempo em que
vivia no Japão, relia a lógica hegeliana.
 Então, de que Japão falava Fenollosa, afinal? Que Japão vivia sendo
reinventado pelos irmãos Campos e por Décio Pignatari, Paulo Leminski,
Roland Barthes, os músicos Koellreutter, Vinholes e tantos outros “trans-
criadores”?
 Para entender o percurso da imaginação desses artistas-filósofos geniais é
preciso acompanhar o enredamento de suas traduções em uma cronologia
que corre para frente e para trás. O herdeiro dos escritos de Fenollosa, por
opção de sua esposa Mary, foi o poeta Ezra Pound. Apesar de não ter sido
ainda iniciado nos estudos das línguas orientais na ocasião em que recebeu
os manuscritos, intuiu que não tinha em mãos um tratado filológico, mas
os fundamentos de uma nova estética. O ideograma era, para Pound, um
método poético de composição, testado nos seus famosos Cantos (1917), e que
acabou repercutindo na obra de outros artistas como T.S.Eliot, James Joyce,
William Carlos Williams e nos manifestos poéticos do Brasil, publicados em
1965. Como havia reconhecido o filósofo Jacques Derrida, Fenollosa arrombou
a episteme logocêntrica na literatura, assim como Nietzsche o havia feito na
filosofia. No Brasil, essa função ficou a cargo dos artistas e semioticistas que
embarcaram nessas viagens invisíveis e buscaram reconhecer o Oriente entre
nós. Da revista-livro Noigandres criada em 1952 por Décio Pignatari, Haroldo
e Augusto de Campos à canção Oriente, composta por Gilberto Gil em 1972,
surgiram as experiências mais diversas; no entanto, a atitude permanecia a
mesma: mais sintética do que sintática e absolutamente apegada aos subs-
tantivos que, no universo ideogramático, desbancavam a cascata de adjetivos
típica do pensamento ocidental.
 Amálio Pinheiro (ver 2006), que foi um dos alunos brilhantes de Haroldo,
faz questão de lembrar que há um tipo de antropofagia reincidente não só
entre nós no Brasil, mas em toda a América Latina. Ele menciona o poeta
argentino Oliverio Girondo, que explicou como na nossa qualidade de latino-
americanos possuímos o melhor estômago do mundo, capaz de digerir e
digerir bem, arenques setentrionais, cuscuzes orientais ou churrascos de
Angola. A poesia, entre latino-americanos, sempre mostrou grande afinidade
com a culinária, desde a época da colônia, como foi o caso de Gregório
de Matos e suas citações multilíngües. Matos, Pound, Oswald de Andrade,
Caetano Veloso, Glauber Rocha, entre tantos outros, foram artistas unidos
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pelos estômagos, aparentados em seu apetite eclético, ensinando que não há

Tokyogaqui: o avesso do avesso


origem perdurável superior ao que se mescla e traduz, mas sim uma rede em
contínuo processo de organização e reorganização. Neste sentido, estavam
todos sintonizados com a lógica ideogramática da amarração que, por sua
vez, lembrava a trama e a trança das esteiras e cestarias indígenas. Mas o que
teria a ver uma coisa com a outra? O que conectaria índios e japoneses?
 Como explicou Pignatari em Semiótica e Literatura (1979), o índio não tem
verbo ser e por isso Oswald de Andrade rapidamente concluiu que na aldeia,
todo problema ontológico se resolvia em termos ontológicos. No Japão não
era diferente. “Ser” era existir concreta e provisoriamente. As ações eram
descritas preferencialmente de maneira específica e não geral. Não havia
sentido em se discutir a “natureza do ser”. A percepção e as qualidades de
sensação valiam mais do que os discursos. E valiam por si mesmas. A cor,
a textura, a materialidade das imagens eram soberanas em relação aos sig-
nificados abstratos.
 Assim, o método de composição por ideogramas nada mais era do que o
uso de imagens materiais para sugerir relações imateriais ou, como explicou
o cineasta Sierguéi Eisenstein (1994:150), a passagem do pensamento por
imagens para o pensamento conceitual: “Riscada com um estilete sobre uma
tira de bambu, a imagem de um objeto mantinha a semelhança com o seu
original, em todos os aspectos”.
 O que é interessante observar é que no ideograma a representação se
dá sempre na forma de imagens, representando algum vestígio concreto,
reconhecível. Nada faz sentido como pensamento meramente abstrato. No
entanto, é preciso tomar cuidado para não simplificar demais, uma vez que
este apego ao concreto não quer dizer que as idéias-coisas existem fechadas
em si mesmas. De acordo com Fenollosa, as coisas eram fundamentais,
todavia, mais do que as “coisas”, importavam as “relações”, o “entre”. Era
preciso aprofundar a analogia estrutural para discernir as linhas de força da
natureza e captá-las em uma nova síntese.
 A natureza tem suas próprias chaves e se o universo não estivesse cheio
de simpatias e identidades, o pensamento teria vivido a mingua, concluía
Haroldo. Nesse sentido, Fenollosa acusava frontalmente a tirania da lógica
tradicional. Apesar de ter sido criticado por cometer muitas simplificações
polêmicas, representou, ao lado dos pintores impressionistas, uma porta de
entrada vigorosa para a arte japonesa no ocidente.
 No Brasil, a pesquisa de Haroldo lançou Fenollosa em outra teia de
referências para experimentar uma lógica analógica que possibilitaria um
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método indicativo e não de oposição. O Oriente também foi deslocado e
Tokyogaqui: o avesso do avesso

nunca mais voltou à sua posição antípoda. Irradiando-se para uma língua
não ocidental (o japonês) que na sua escrita preservava os caracteres ideo-
gráficos chineses, a poesia concreta produziu um movimento que se tornou
uma espécie de reverso complementar, ou seja, nada além da exploração
dos elementos combinatórios do ideógrafo na condição de possibilidades
formais. Daí em diante, forma e conteúdo não poderiam mais ser separados.
Na prática poética, excluía-se de uma vez a questão da origem e os limites
entre motivação externa e interna.
 Através dessas novas referências, o pensamento japonês passou ser
reconhecido entre nós, antes mesmo da chegada do Kasato Maru. Recen-
temente, o professor Shuhei Hosokawa (ver o artigo traduzido neste livro)
relembrou o exemplo pitoresco da pesquisa de Rokurô Kôyama. Além de
criar o primeiro jornal nipo-brasileiro usando um mimeógrafo a bordo do
próprio Kasato Maru, ainda em alto mar, intuiu e começou a desenvolver
um estudo em torno da hipótese de que o tupi-guarani e o japonês teriam a
mesma origem na antiga Polinésia. Mais do que uma investigação lingüística
relevante, a noção de uma língua originária tupi-japonesa buscava sustentar
uma espécie de narrativa mítico-poética para ancorar a posição marginal
dupla, tanto na comunidade brasileira como na japonesa, uma vez que os
japoneses imigrantes pareciam ter-se tornado irremediavelmente estrangei-
ros, tanto aqui como lá.
 Anos depois, atravessando a ponte tupi-japonesa, a passos oswaldianos,
Décio Pignatari concluiu que a arte é sempre o oriente dos signos. Pouco
importa de onde veio ou para onde vai. O signo artístico é o signo da criação e
da liberdade. Ele rompe o automatismo verbal que durante séculos conduziu
o pensamento ocidental para a ilusão de que as coisas só têm significado
quando são traduzidas para o mundo das palavras. O oriente dos signos
mostra que os antípodas não estavam do outro lado do mundo, mas eram,
ao mesmo tempo, o nosso avesso do avesso, do avesso...
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Amai Michi (Caminho Doce) - procedimentos escultóricos


Martha Lacerda
Tokyogaqui, 2008
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Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês


às metamorfoses das cidades e dos corpos
Falando na Língua da Antípoda:
Fantasia Nipo-brasileira na
Origem da Língua
44 Shuhei Hosokawa
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

artigo publicado no livro Searching for Home Abroad,


Japanese Brazilians and Transnationalism,
ed. Jeffrey Lesser. Duke University Press, 2003.
A lingua tupi nunca foi objecto de estudos rigorosos no Brazil.
A língua tupi nunca foi objeto de estudos rigorosos no Brasil.
Arthur Neiva, Estudos da Língua Nacional

Tupão, tupi
Não sei que mais
45
Já me esqueci de onde sou

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


(Tupão, tupi
I don’t know any more
I’ve already forgotten where I am)
De “Brasileiro em Tóquio”, lírica por Pedro Luís e A Parede

E imaginar uma língua significa imaginar uma forma de vida.


Ludwig Wittgenstein, Philosophical Investigations

  A origem da língua é uma questão assustadora para os lingüistas


modernos, o que no entanto não significa que a questão tenha desaparecido
da discussão contemporânea; continua sendo um assunto comum de estudo
científico-popular. Isto é verdade particularmente no Japão, onde “o discurso
da origem da língua nacional é tão popular que quase não se pode abrir um
jornal diário ou revista semanal sem encontrar algum artigo ‘anunciando’
a ‘descoberta’ de que a língua japonesa está geneticamente relacionada
a esta ou àquela língua. E geralmente a alguma língua cujos falantes se
encontram em tão remota posição geográfica em relação ao Japão quanto
remota é a probabilidade de terem alguma coisa a ver com japonês.” (Miller
1980, 18). A obsessão com a origem traçada pelo lingüista Roy Andrew Miller
pode vir da influência decisiva do nihongo (língua japonesa) na identidade
nacional japonesa – a nação é essencialmente monolíngüe e seu idioma
é usado em um só país. A popularidade do discurso na origem da língua
japonesa obviamente é originária da equação entre raça, território e língua
na população japonesa.
  Ao procurar as origens “perdidas” da língua, não se pode evitar a entrada
no âmbito da imaginação mítica e utópica nascida da ideologia circunstan-
cial de raça, nação, geografia, história, religião, literatura e, é claro, idioma. O
crítico literário japonês Osamu Murai enfatiza as implicações expansionistas
no discurso da origem da língua e raça japonesas que “apresentam traços
evidentes da invasão da Ásia pelo Japão moderno. O discurso sobre a sagrada
e longínqua ‘origem dos japoneses’ desempenha o papel de dissimular a
invasão e domínio colonial do verdadeiro Japão” (1993, 156). Na visão de
Murai, o interminável debate entre a hipótese do “Sul” (de que os japoneses
vieram da Melanésia ou do subcontinente indiano) e a do “Norte” (de que os
japoneses vieram da Sibéria ou Mongólia) é nada além do que a transposição
epistemológica do eixo Leste-Oeste, uma relação que é historicamente mais
duradoura e ideologicamente mais hierárquica. O eixo Sul-Norte “apaga o
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outro” do Oeste, com o objetivo de assegurar a identidade japonesa (ibid.,
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158; ver também Murai 1992). Em outras palavras, assumindo o Sul ou o


Norte como local de origem, o nacionalismo japonês não somente romantiza
o antigo e exótico, como também justifica a integração política de Okinawa e
Hokkaido, as ilhas do Sul e do Norte territorializadas pelo governo por volta
de 1870. Naturalmente, o discurso na origem da língua japonesa endossa
de forma cíclica o eixo Sul-Norte, ao passo que a “identificação da raça e
idioma” é admitida como correta: japonês ancestral veio com aquela língua
ancestral japonesa (Miller 1977, capítulo 6).
  Rokurô Kôyama, no entanto, sugeriu que a língua japonesa e uma língua
ameríndia que com ela aparentemente não apresenta nenhuma relação,
o tupi, na verdade se originaram de uma fonte comum na Polinésia. Con-
siderando-se que Kôyama era um imigrante japonês no Brasil, a explicação
para isto não é simples, visto que as condições políticas, históricas e sociais
que envolvem a produção textual da teoria não foram as mesmas de outros
estudos similares da língua. Seu objetivo era um só. Ele ateve-se menos à
origem da língua e raça japonesas do que à mitificação fundamental de uma
minoria étnica autenticando a língua dentro da ideologia nacional brasileira.
Eis o que torna seu trabalho diferente em meio à abundante literatura sobre as
origens da língua japonesa e sobre a Tupinologia. De acordo com o lingüista
tupi Wolf Dietrich, “a experiência no campo das línguas indo-européias
mostrou que a reconstrução de uma simples proto-língua é somente uma
construção hipotética do que pode nunca ter sido uma realidade histórica”
(1990, 7-8 n.2). Isto sendo correto, a “realidade mitológica” de Kôyama na
visão da língua proto-tupi-japonesa justifica análise.
  Kôyama sentiu-se obcecado com a língua indígena tupi, em parte devido
ao monolingüismo de tradição nativa japonesa. Falar uma única língua foi, e
é, pouco notável no contexto do território japonês, mas com a emigração os
viajantes tomaram consciência de seu isolamento lingüístico. Ser monolíngüe
é admitir um contato – ou contrato – unilateral: imigrantes japoneses podiam
falar, mas a sociedade fora do Japão não podia ouvi-los. A língua, assim
como a fisionomia, era um determinante para a identidade étnica do Issei
no Brasil. Não fosse pela barreira da língua, um tipo de exílio lingüístico,
Kôyama não teria precisado do tupi. Assim, o monolingüismo igualmente
conteve e impulsionou sua vida e imaginação, e seus textos sugerem uma
tensão existencial que o encorajou a redefinir sua identidade hifenizada. Sua
noção de uma língua japonesa-tupi forneceu um discurso fundamental que
ancorou a posição duplamente marginalizada de sua comunidade tanto no
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Japão como no Brasil.

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  O modelo dominante da nação brasileira é o da miscigenação de três raças:
africanos, europeus e indígenas. O Tupi, um grande grupo no Centro-Oeste
do Brasil, foi quase que completamente aniquilado pelos europeus durante o
período colonial; Ironicamente, contudo, tornou-se um símbolo evocativo do
nativismo brasileiro a partir do século XVI, quando a semelhança auditiva
acidental de algumas palavras em português e em tupi foi interpretada pelos
missionários como um sinal justificador para o catecismo (Geipel 1993, 13).
Mais recentemente tais noções vêm reaparecendo em músicas pop contem-
porâneas, tais como “Festa da Música” (Gabriel O Pensador) e “Tubitupy”
(Lenine). O modelo africano-europeu-tupi foi cuidadosamente produzido
pelas elites brasileiras e prevaleceu por muito tempo antes de os japoneses
estabelecerem-se no Brasil no início do século XX.
  A preocupação de Kôyama era a maneira pela qual os “recém-chegados”,
tais como imigrantes japoneses, se tornariam uma parte legítima da nação
brasileira. Convencido da importância da etimologia, ele articulou uma
dupla identidade por meio da intricada interação entre a identidade étnica
do japonês nativo e a do japonês brasileiro, constituindo para eles a dupla
categoria de serem tanto japoneses como brasileiros, ao estabelecer os povos
indígenas como brasileiros e japoneses, como ancestrais nacionais e étnicos.

O TUPI E EU
  Rokurô Kôyama (1886, Kumamoto – 1976, São Paulo) imigrou para o
Brasil em 1908 como um dos quarto intérpretes (ele estudou espanhol) a
bordo do Kasato Maru, o primeiro navio que trouxe imigrantes japoneses
para o Brasil. Era conhecido como o “pai do jornalismo Nikkei” porque foi
responsável por um jornal mimeografado nesse navio. Em 1921 ele fundou
em Bauru, pequena cidade no Estado de São Paulo, um jornal chamado
Seishû Shinpô (Semanário de São Paulo ou São Paulo Weekly). O jornal
perdurou até 1941, quando o governo proibiu a publicação de meios de
comunicação em línguas estrangeiras. Em 1935 Kôyama mudou-se para a
cidade de São Paulo, capital do Estado, levando consigo um círculo amador
de escritores de haiku, que após a Segunda Guerra Mundial publicou três
antologias privadas.
  De acordo com suas memórias póstumas, Kôyama passou, em seu
segundo dia no Brasil, a interessar-se pelo “povo primitivo que se parecia
com o japonês” quando um outro intérprete, que estava no Brasil havia anos,
tentou acalmar a ansiedade de seus compatriotas, ainda no trem à saída do
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porto, contando-lhes piadas sobre uma estranha tribo de nativos brasileiros
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chamada Tupi. Kôyama, enquanto imaginava se esses “primitivos” falavam


japonês, teve a visão de um homem nu acocorando-se na enorme rocha ao
lado da ferrovia. Esse momento dramático o levou a querer não apenas viver
no Brasil como também estudar a cultura tupi (Kôyama 1976, 435-40). Se
fictício ou não, esse encontro íntimo com a tribo imaginada influenciou seus
três livros sobre o tupi: O Léxico Tupi (1951) e Investigação do Significado
da Cada Sílaba na Composição da Linguagem Verbal Humana através
do Significado Original da Língua Tupi Nhem (1970, vol.1; 1973, vol. 2). O
ponto de partida de Kôyama na transformação do japonês em tupi foi a
semelhança física entre os dois povos. “A aparência dos nativos tupi-guarani
era exatamente a mesma de nós, japoneses. Desde a primeira vista eu não
pude esquecê-los. Quanto mais os observo, mais semelhança eu encontro.
Quando nos encontramos e temos contato, sorrimos mais pacificamente
do que quando vemos europeus. Será que nós, japoneses e tupi-guarani,
descendemos da mesma origem polinésia? E nos encontramos novamente
depois de quatro mil anos? Seria a mesma a língua dos nativos tupi-guarani
e a dos mais antigos ancestrais japoneses?” (1951, 1).² Nesta passagem, a
fantasia de Kôyama cruza espaços geográficos e históricos. O Tupi, raça
irmã do Japão, tinha esperado muito pela vinda da família de tão longe, e
o japonês tinha agora chegado à terra de seus irmãos. Tal empatia é crucial
para esta história imaginária. A distância espacial entre os remotos asiáticos
e a arcaica população indígena é justaposta para o temporal. O fato de a
definição de tupi ser “ancestral” convenceu Kôyama da relação mitológica
entre as duas raças. Kôyama também traduziu tupi como “pai supremo” em
O Léxico Tupi, dessa forma tornando mais suave o caminho associativo entre
o japonês e o tupi. Assumindo uma consideração tupi para ancestrais, como
evidenciado pela auto-identificação deles, ele habilmente a associa com o
sistema de crença popular que venera os ancestrais e que formou a base do
Xintoísmo, religião nacional japonesa.
IMAGINAÇÃO LÉXICA: TOPONÍMIA E ROMANTISMO TARDIO
  O primeiro trabalho tupi de Kôyama, O Léxico Tupi, contém aproximada-
mente 2.500 palavras3. Embora ele não explicite seus critérios de seleção,
muitos dos registros se referem à natureza: cem minerais, noventa plantas,
cinqüenta peixes, cinqüenta animais, quarenta insetos, quarenta relacio-
nados à floresta e setenta relacionados à água. Kôyama, como os autores
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citados na bibliografia do Lexicon, tende a enfatizar a natureza na vida

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tupi. Sua equação entre os primitivos e a natureza pressupõe uma equação
paralela entre os civilizados e a cultura. Ele inclui também um número rela-
tivamente grande de topônimos (pelo menos cinqüenta). Bauru, nome da
cidade onde ele viveu por dez anos, significa “rio lamacento”. Relacionando
o lugar específico (Bauru) com um significado mais geral (rio lamacento), ele
usou o entendimento tupi da geografia brasileira para desvelar e anunciar
um Brasil virtual cujo passado antecedeu a descoberta de Cabral por milhares
de anos. Tais topônimos foram assinalados para encorajar os leitores de O
Léxico Tupi, que falavam japonês, a ver a terra que eles habitavam como
sendo familiar. De acordo com uma das primeiras referências de Kôyama,
O Tupí na Geographia Nacional, de Theodoro Sampaio, “em tupi, os nomes
dos lugares são usualmente acompanhados de frases que transmitem a idéia,
um episódio, um traço característico do lugar para o qual é empregado; eles
são, é suficiente dizer, definições verdadeiras do meio ambiente local” (1928,
ii). Para Sampaio, a inteligibilidade comum de topônimos desde os tempos
em que o tupi era falado no Estado de São Paulo (por volta dos séculos
XVII e XVIII) foi tão perdida, que tais topônimos tornaram-se verdadeiros
“enigmas”. A reconstrução semântica dos nomes de lugares “fossilizados ou
cruelmente adulterados” – por meio de técnicas que incluem ortografia e
ortoépia – constituiu dessa forma o “salvamento de um monumento histórico”
(ibid., xxxiv).
  Tal visão histórica de como recuperar o passado por meio do conheci-
mento do significado de topônimos conferiu certa legitimidade à história do
território agora chamado Brasil. Sampaio e outros tupinólogos do início do
século viam a língua ameríndia como evidência histórica da transação entre
nativos (que ofereciam o significado por som) e colonizadores (que imortal-
izavam essa língua pelo sistema gráfico). O povo Tupi estava quase extinto
no Brasil de Sampaio (e de Kôyama), mas sua cultura ainda estava presente,
sobrevivendo na forma de nomenclatura. Isto porque os tupinólogos privile-
giaram a lexicografia e filologia mais que a morfologia e fonologia. 4 É claro
que Kôyama foi parte dessa tradição intelectual quando comentou: “Apesar
de atualmente no Brasil muito poucos falarem tupi ou guarani, exceto os
primitivos puros, a língua tupi vive nos nomes das cidades, vilas, por toda
parte nos Estados brasileiros. Tupi (língua) vive por toda parte em um terço
dos nomes das estações ferroviárias no Brasil. Tupi vive nos nomes dos
lugares, no cotidiano da vida dos brasileiros, nos nomes de coisas, de animais
e plantas, de montanhas, rios e campos. Tupi, em especial, vive linda, doce
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e brilhantemente nos nomes das mulheres brasileiras” (1951,14). A imagem e
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conhecimento do tupi de Kôyama foi a de um romancista tardio – ele adotou o


conceito “nobre selvagem” comum entre os tupinólogos, mas rejeitado pelos
seus contemporâneos etnólogos. Os autores românticos brasileiros no século
dezenove não foram missionários e viajantes que tiveram contato direto com
o povo indígena, mas especialmente historiadores que citaram as escritas
daqueles precursores e, de forma mais importante, objetivaram “alimentar o
espírito nacionalista” (discurso de Francisco Adolpho Varnhagen, 1840, citado
em Haberly 1983, 17) por meio da autenticação de uma cultura quase extinta.
Nas palavras de Plinio Ayrosa, “cada palavra ou frase tupi tem uma tradução
rigorosamente espontânea, clara, fácil e lógica (em uma linguagem civilizada
como português). Se esta não é imediatamente entendida, é porque a palavra
está adulterada pelo uso após séculos e está mal escrita” (1933, 99).
  O romantismo é constitutivo de nacionalismo, posição tomada por
Theodoro Sampaio, outro autor significante para Kôyama. “Eu quero ver o
amor dos brasileiros pelo passado de sua terra e o seu desejo de conhecer
esse passado, de demonstrar estima por ele, pelo que herdaram dos
habitantes primitivos, os mestres do país. Isso é sentimento nacionalista. É
provável que a raça americana, apesar de derrotada, não perca tudo. Se no
sangue dos descendentes a dose diminuir até ser extinta, a memória dos
habitantes primitivos não estará perdida, na medida em que os nomes dos
lugares sobrevivem onde a civilização mostra seu triunfo” (Sampaio 1928,
i-ii). Este tipo de visão nostálgica, que negligencia os sacrifícios sangrentos
feitos pelos “habitantes primitivos”, relega a cultura indígena a um índice
para a “geografia nacional”. Acusando certos autores jesuítas de sugerir que
os Tupi e seus inimigos são geneticamente equivalentes, Sampaio distingue o
selvagem nobre do ignóbil: “Historicamente e de maneira etnográfica, o Tupi
é um grupo étnico único, que fala uma única língua na América do Sul, e é
um grupo que não deve ser confundido com povos muito diferentes e línguas
diferentes, comumente chamados Tapuya. O nome Tupi pode ser, a partir
deste ponto de vista, um nome nacional. Isto nunca será o caso do Tapuya.
O Tupi foi uma grande nação com sua própria língua. Este não é o caso do
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Acampamento Tupi - século XVI
Tapuya, que não é nem nação, nem idioma” (ibid., ix; grifo do Autor).
  Nessas citações, a idéia do selvagem nobre é realmente uma concepção
romântica da nação (uma linguagem, uma cultura). Tupi, reconhecido como
um grupo nacional, tornou-se o nome campeão para nativos brasileiros.
A nacionalização do selvagem é um conceito romântico do nacionalismo
brasileiro (ver também, Freitas 1936, 32-37, 52-57; Burns 1968, capítulos 3-6).
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PASTORAL SOB PRESSÃO ÉTNICA


  É útil colocar o trabalho de Kôyama na tradição romântica? Certamente
existem diferenças importantes entre os autores brasileiros e o jornalista
japonês. Para aqueles, a questão tupi se centra em como os povos indígenas
podem contribuir para a construção de uma identidade nacional dentro da
mistura heterogênea do povo brasileiro, convertendo o passado histórico em
um mito autenticado. Os Tupi são “unidos” em termos de ideologia porque
eles se tornaram um cimento invisível, um denominador comum para aquilo
que os brasileiros pensam sobre seu passado nacional.
  Kôyama, em contraste, convoca o tupi para a legitimação racial e cultural do
japonês como parte da nação brasileira. “Tornar-se brasileiro” não é fácil para
pessoas com fisionomia asiática, mesmo em um país que exalta a democracia
racial. 5 Kôyama celebra a igualdade racial do Brasil como se tal afirmação
fosse um passaporte para imigrantes tornarem-se cidadãos brasileiros. Se
os Tupi fossem reconhecidos como componente da nação brasileira, seu
irmão de raça por definição se tornaria verdadeiramente brasileiro. O que
está em risco é a ligação imaginária com o japonês, como evidenciado pela
aparência física e confirmado pela compatibilidade lingüística. Entre as
muitas virtudes da cultura tupi, ele especialmente admirou sua “verdadeira
sociedade comunitária e coletiva” (Kôyama 1951, 8). Aprender a linguagem
da tribo pacífica envolvia aprender sobre a sua mente nobre. Ele imaginou
a vida sossegada deles: “Os nativos acordavam cedo todas as manhãs. A
primeira coisa que faziam era banhar-se em um rio dos arredores. Depois,
após o café da manhã, eles saíam para trabalhar: cultivar, pescar, caçar e
prover alimento para sua sociedade tribal. As mulheres trabalhavam em
casa. À noite as pessoas se juntavam ao redor da fogueira. Era costume para
os mais velhos da oca (casa ou lar, em tupi) contar (histórias) para os homens
mais jovens, que cuidavam do fogo” (ibid., 8). Esta passagem é baseada
nas idéias de Angyone Costa em Introdução à Arqueologia Brasileira (1934,
255), mas Kôyama acrescentou duas invenções: o compromisso exclusivo
das mulheres no trabalho doméstico e a reunião familiar ao redor do fogo
para contar histórias. Essas duas alterações da ilustração de Costa evocam a
vida idealizada dos imigrantes japoneses nas fronteiras selvagens. Quando O
Léxico Tupi foi publicado, em 1951, a maioria dos japoneses vivia em cidades
e subúrbios longe das fronteiras. A vida na fronteira que Kôyama descrevia
revelava agora nostalgia.
  A idealização de Kôyama da vida Tupi o levou a omitir de O Léxico Tupi
53
uma prática que todos os outros autores que estudaram a vida indígena

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brasileira incluíram desde o século XVI: a antropofagia. Apesar de ser
claramente mencionado pelos autores que Kôyama consultou (Ayrosa 1933,
22; Costa 1934, 264), ele foi relutante em reproduzir algo a esse respeito para
os leitores. É claro, “léxico”, como uma forma textual, não necessita de
precisão etnográfica, mas a omissão dessa prática notória pode indicar a
ênfase involuntária de Kôyama na imagem bucólica do Tupi. Em resumo, com
o objetivo de consolidar a afinidade entre o tupi e os imigrantes japoneses
nas fronteiras, ele retirou da tupinologia somente o que fosse relacionado a
uma visão nostálgica da natureza selvagem tupi.
  É provável que a imagem pública de O Léxico Tupi estivesse profunda-
mente relacionada às questões que envolveram a população de imigrantes
japoneses no final de 1940, mais do que com a simples adoção do clichê de
nobre selvagem. No Brasil, os anos imediatamente subseqüentes à Segunda
Guerra Mundial foram de conflito comunitário entre aqueles que acreditavam
na vitória do Japão na guerra do Pacífico (kachigumi, ou “vitoristas”) e
aqueles que reconheciam sua derrota (makegumi, ou “derrotistas”). Seu
antagonismo atingiu o pico em 1946 e 1947, quando mais de vinte makegumis
foram assassinados por facções militantes dos kachigumis.
  Esse conflito aterrorizante e seu resultante trauma “étnico” foram críticos
para a transformação da identidade. “Colonos japoneses no exterior”
tornaram-se “nipo-brasileiros” porque a confusão envolvia praticamente todos
os imigrantes e suas famílias no Brasil. Imigrantes japoneses começaram a
pensar menos em retornar ao Japão e mais em firmar residência permanente
no Brasil. Começaram a autodefinir-se como antepassados dos cidadãos
brasileiros, em vez de colonos.
  Os esforços do pós-guerra para assimilação começaram com a mudança na
autodenominação para nipo-brasileiro. Esta autodenominação, hifenizada,
foi também chamada de koronia, emprestada da palavra em português
colônia, que entra na linguagem dos imigrantes já quase no final de 1940.
O uso dos termos em português indica o início de uma nova identidade as-
similativa para a geração que fala japonês.
Esta situação pós-guerra na comunidade japonesa no Brasil coincidiu com a
conceituação e finalização de O Léxico Tupi. Kôyama, simpatizante makegumi
e um dos primeiros imigrantes a reivindicar o direito de residência permanente
no Brasil, preocupou-se com o impacto das circunstâncias sociopolíticas da
comunidade japonesa no Brasil, e essa preocupação sustenta suas generosas
intenções no prefácio de seu léxico: “Se as pessoas entenderem, falarem e
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ouvirem essa língua nativa, elas terão sentimento poético e senso de humor,
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

e conseqüentemente seus corações serão suavizados. Então eu publiquei este


livro especialmente para japoneses brasileiros” (5, grifo do Autor). O Léxico
Tupi, portanto, não reflete simplesmente diletantismo; é convocado para
aclamar a tensão étnica para unir japoneses no Brasil através de “sentimento
poético e senso de humor”.

DA GRAMÁTICA PARA A INTUIÇÃO


  As páginas finais de O Léxico Tupi tratam de uma gramática concisa. Apesar
de essa parte incluir irrelevâncias do ponto de vista lingüístico (por exemplo,
Kôyama, apoiando-se bem no trabalho de Ayrosa, menciona artigos e partes
de falas em português que estão ausentes tanto no japonês quanto no tupi),
ela é importante em termos de fantasias lingüísticas.
  A única marca original de Kôyama a respeito de gramática está na
associação dele de palavras compostas com a composição de ideogramas
japoneses (chineses). Com seu neologismo kongengo, ele identifica “palavras-
raiz”: diversas palavras dissílabas básicas que designam elementos tais como
água, pedra, pessoa e animal (nos substantivos compostos, ver Ayrosa 1933,
45-46; Sampaio 1928, 19-20, 137-38). Por exemplo, ita (pedra) + oca (casa) =
itaoca (caverna); pira (peixe) + juba (ouro) = pirajuba (peixe dourado).
  Muitos ideogramas japoneses têm construções semânticas similares
baseadas na combinação das partes da esquerda (hen) e da direita (tsukuri).
Por exemplo, um hen que designa a “pessoa” (*) + um tsukuri que designa o
“mestre” (*) = morar (*). A estrutura da letra para “habitar” implica, portanto,
que morar ou habitar significa ser o mestre no espaço ocupado. Poder-se-ia
comparar esta exegese gramatical de ideogramas nipo-chineses às palavras
compostas das línguas européias. Como os hens se referem a elementos
tais como seres humanos, árvores, peixes, terra e água, Kôyama chegou à
conclusão de que “o tupi expressou aquilo que o hen do ideograma japonês
designava pelo som (da raiz das palavras).” (Kôyama 1951, 121.). O hen por
si só não é para ser pronunciado. Portanto, a raiz das palavras, ou sons sem
a grafia, podem ser vistos como complementares ao hen, ou ilustração sem
som. Kôyama então demonstrou certa afinidade lingüística entre duas línguas
aparentemente incomparáveis entre si.
  Este salto gigantesco da língua não escrita para o grafismo do antípoda
indicou para Kôyama que o japonês e o tupi podem ter percebido o mundo
de maneira similar. Sua convicção foi reforçada por diversas palavras do
tupi cujo som ele acreditou que correspondesse às semânticas e/ou fonéticas
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japonesas: tori (“uma espécie de pássaro” em tupi e “pássaro” em japonês);

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e ura (“verme” em tupi, e “atrás” ou “águas rasas” em japonês). Certos
nomes de lugares em japonês até parecem ter algum significado em tupi:
Tiba (Chiba) significa “lugar” em tupi, enquanto Kamakura (uma capital
medieval) pode se referir a kamarua em tupi (peito empurrado para fora).
Neste caso, não existiu relação real entre os significados das palavras do
tupi e japonês. Particularmente, Kôyama foi surpreendido pelo fato de que
alguns arranjos fonéticos em tupi se parecem com os japoneses. Esse ensaio
demonstrou, como mais adiante será aprofundado no seu estudo de tupi, que
Kôyama se convenceu da causalidade, não da coincidência, entre fonética
tupi e semântica japonesa. “Traduzindo a linguagem indígena do tupi através
do português para japonês, encontrei muitas palavras do tupi cujo som e
significado são exatamente os mesmos do japonês (...). Imagino que se
se fizer um estudo comparativo das palavras antigas do tupi e do japonês
que ainda sobrevivem em locais de dialeto, se descobrirão muitas palavras
polinésias” (Kôyama 1951,135).
  Apesar de tais conexões, Kôyama nunca estava completamente satisfeito
com O Léxico Tupi porque este dependia de livros em português e, como
resultado, falhou em demonstrar a relação imediata do tupi com o japonês:
“As duas línguas assemelham-se muito entre si. Ainda é difícil concluir que
os indígenas e os japoneses sejam semelhantes tanto lingüística quanto
fisicamente” (ibid., grifo do Autor). A tarefa de toda a vida de Kôyama foi
desvelar uma semelhança lingüística entre as duas línguas que pudesse
tornar-se prova da mais óbvia fisionomia. A demonstração de uma ligação
biológica e lingüística com o povo indígena seria então legítima tanto para a
presença japonesa no território brasileiro como para sua inclusão na nação
brasileira. Tal posição não foi amplamente aceita, já que a aparência “oriental”
dos imigrantes japoneses e seus descendentes tinha traído seus esforços
de assimilação com a sociedade popular brasileira, porque “a fisionomia
freqüentemente permite instantânea categorização” (Lesses 1999, 169; ver
também 15, 108). A marca social japonês foi dada pela sociedade brasileira,
e não escolhida pelos imigrantes ou seus descentes. Então um “preço fixo”
de fisionomia tornou-se negociável no sentido de criar uma âncora visível
para tornar-se brasileiro. Guiado pela convicção de que pessoas semelhantes
falam línguas semelhantes, Kôyama tentou encontrar uma correspondência
léxica de um para um entre as duas línguas.

MOMENTO DE EPIFANIA
56
  Vinte anos após a publicação de O Léxico Tupi, Kôyama tomou uma
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atitude muito mais abertamente desafiante para com a lingüística moderna,


que tratava, acreditava ele, somente da explicação mecânica. “Tanto em
lingüística quanto em gramática japonesa, eu sou completamente ignorante
e deseducado. “Eu sou também um completo estrangeiro quanto às leis da
lingüística e fonética ocidentais e não tenho sensibilidade para elas” (Kôyama
1970, 4). O uso que ele fez do nhem (“língua” em tupi) em seu novo trabalho
- que teve o misterioso título Investigação do Significado de cada Sílaba na
Composição da Linguagem Verbal Humana através do Significado Original
da Língua Tupi Nhem (1970, vol.1; 1973, vol. 2) - como oposto ao uso do tupi
go (“língua tupi” em japonês) em O Léxico Tupi, mostra seu ponto de vista
aparentemente “êmico”. Qual é o seu método alternativo?
  Meu método é como segue. Eu não classifico (as palavras) como nomes,
pronomes, verbos, verbo auxiliar, advérbio, e assim por diante. A lingüística
e a fonologia ocidentais não existiam há dez mil anos (quando o tupi já era
usado), e eu ouvi dizer que lingüística japonesa foi criada há somente por
volta de cem anos, por imitação da lingüística ocidental.
Faz algum sentido comparar o nhem não escrito e o japonês de acordo com
tal lei (lingüística)? Analisarei o nhem sem a aplicação das leis da lingüística
ocidental. Eu absolutamente não confio na gramática ou pesquisa do
português. Iniciei minha pesquisa tomando palavras que compartilham o
mesmo som ou significado em nhem e japonês. (Kôyama 1970, 4.)
  “Fechem os livros”, adverte ele, “para ouvir o som do nhem e sentir a
correspondência entre som e significado”. Nhem é a língua pura que seus
ancestrais falavam em suas vidas de caça e reunião, há milhares de anos.
Isso existe na combinação de sons e significados que fundamentam o
japonês contemporâneo. Para simplificar, a arqueologia de Kôyama presume
que: (1) povos ancestrais dos japoneses e dos tupi viveram na Polinésia; (2)
há milhares de anos mudaram-se para o Japão e Brasil; e (3) aqueles que se
mudaram para o Japão tornaram-se letrados e civilizados e esqueceram sua
língua original, enquanto aqueles que migraram para o Brasil mantiveram sua
cultura original. Várias teorias de tal migração em grande escala foram parte
dos esforços inicias da antropologia natural para revelar o eterno enigma da
origem do homo sapiens. Um dos livros na biblioteca de Kôyama confirmou
a Teoria Tupi-Polinésia: “O Pacífico nunca foi um obstáculo (para o fluxo
humano), e foi, ao contrário, uma ligação entre o mundo da Ásia e Oceania e
o Novo Mundo. (...) O Novo Mundo foi desde a época pré-histórica um centro
de convergência de raças e povos” (Rivet 1957,173). Assim, pela Tupinologia
57
de Kôyama, a Polinésia é o pressuposto berço do tupi e do japonês (ver

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


Yaguello 1991, 22).
  Mesmo assim, como Kôyama se convenceu desta conexão polinésia? O
momento de revelação chegou quando ele começou a perguntar-se por que
iko (vamos) em tupi significava a mesma coisa em japonês. O dicionário
Tupi-Português diz que i em tupi significa “água” ou “pequeno”, enquanto
ko indica “aqui”, “bater”, “pisar”, “amassar”, “parir”, “crescer”, “manter”,
“nutrição para estar sedento”. Combinando-se os dois significados de i e nove
de ko tiram-se dezoito possíveis significados de iko: água aqui, bater na água,
pisar na água, cultivar água, guardar água. A inspiração passou rapidamente
pelo corpo de Kôyama.
  Eu estava perdido (sobre como pensar sobre o significado de iko). Faz
sentido (onk-an, neologismo de Kôyama) tal sentimento de necessidade
(na vida diária)? De repente, eu captei o significado de iko (vamos) pela
primeira vez porque a palavra me fez lembrar da minha própria vida como
um pioneiro em uma floresta viva: eu estava com sede enquanto cortava as
árvores e fui para uma fonte bem longe na base de uma ravina.
  Sede forte antes de beber água e satisfação depois disto. “Ah, isto é língua,
isto é o som do idioma (ongo, neologismo de Kôyama) que o ser humano
fala”. Iko, iko, iko, iko, iko, iko! Eu chorei sozinho, iko, iko!
  No som do idioma que o ser humano fala, cada som armazena um
significado (grifo do Autor). Eu tive que pesquisar e perceber isto. Meu sangue
se aqueceu por inteiro como se meus olhos tivessem visto a luz (1970, 9-10).
  Este episódio recorda a experiência á-g-u-a de Helen Keller, um momento
revelador em que a ligação imediata entre som, significado e referente é
reconhecida por meio de um choque sensorial inesperado. Mark Freeman
interpreta o bem conhecido episódio de Keller como a descoberta do
“significado do próprio significado”. “De sensações mudas emergiu um
pensamento genuíno” (Freeman 1993, 56). A partir desse ponto, a pequena
Helen deduziu que tudo – não somente água – tem um nome e, mais
importante, cada nome tem escrita e som. “A aquisição da linguagem,
percebeu ela, conferia significativamente mais do que meros nomes para
um mundo já pleno de significados. Mais do que isso… a linguagem verda-
deiramente criava um mundo” (ibid., 56). Freeman vê no episódio á-g-u-a
de Helen o nascimento dramático do ego por meio da descoberta de um
mundo significante construído pela língua. Se Helen compreende a partir
de á-g-u-a a correspondência entre grafismo, som e referência, Kôyama
extrapola a partir de iko a escala completa da correspondência léxica entre
58
as duas línguas.
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

 Aparência à parte, no entanto, existe uma diferença básica entre os dois


episódios da revelação: a descoberta de Kôyama não foi baseada em uma
compreensão imediata de dados sensoriais, mas em uma recordação tardia
dela. Seu momento esquecido há muito tempo em uma densa floresta foi
realçado retroativamente como um flash crucial de “tornar-se tupi” e lhe
assegurou uma ligação entre a sua existência pessoal e um milênio de história
atrás dela. A forma pela qual ele se sentiu, se comoveu e percebeu foi vital
para a construção de seu mundo tupi.
 A sensibilidade de seu próprio passado foi importante para Kôyama decifrar
o tupi. Reflexão e recordação são concomitantes para ele. Escrevendo sobre
tupi, ele não teve a intenção de investigar os outros; foi preferencialmente
um ato de escrever suas próprias histórias de um ponto de vista ancestral.
O seu uso freqüente de cunhagens estranhas – “pesquisar e sentir” (kenkyû-
kansei) e “perceber o sentido”, “sentir o significado” (imi-kansei) - permitiu-
lhe enfatizar a prioridade da percepção sobre a razão, da intuição sobre a
lógica. Seu procedimento pode então ser chamado de “ciência afetiva”.
Kôyama esclareceu que sua cognição nhem tem por base “cinqüenta anos de
vida de pioneiro em floresta primitiva e vida colonial” (1970, 3). É verdade
que ele passou cinqüenta anos no Brasil, mas viveu a maior parte desse
tempo em cidades. Exagerando, se não inteiramente perjurando, em seu
passado autobiográfico como um pioneiro ele inventa uma imagem de si
projetada para criar uma irrefutável afinidade com os povos primitivos. É
possível que ele nunca tenha encontrado uma pessoa indígena, já que sua
autobiografia nem sequer menciona encontros reais.

DA COINCIDÊNCIA PARA A CORRESPONDÊNCIA


 Como é possível conciliar essas duas línguas aparentemente inconciliáveis?
Como mostra o exemplo de iko, Kôyama foi capaz de associar, por meio do
processo de dupla tradução (do tupi para o português e do português para
o japonês), uma sílaba japonesa com diversos significados. Ele se utilizou
dessa polissemia com o objetivo de identificar a rede semântica, dedicando
a um dicionário de correspondência tupi-japonês a maior parte de sua
obra Investigação, Volume 1. Mostrava o que cada fonema japonês significa
em tupi, pressupondo uma correspondência fonética de um para um entre
as duas línguas, sem considerar qualquer possível desvio na transliteração
de um idioma sem escrita para português e então para japonês. Kôyama,
consciente da provável corrupção na transliteração alfabética pelo português,
59
que tende a julgar a partir de sua inclinação e confundir /f/ e /h/, /j/ e /y/ e

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


assim por diante, achou que os lingüistas japoneses, devido a sua afinidade
racial com os Tupi, poderiam ter sido mais precisos que os portugueses em
detectar e analisar o tupi falado (Kôyama 1951,15). Visto que os livros em
português eram a única fonte para dados lingüísticos disponíveis, ele foi
incapaz de descartar tal informação. Kôyama nunca confiou na lingüística
ocidental, mas não pôde abandoná-la, ao contrário, abusou dela. As diretrizes
portuguesas funcionaram como um tipo de rede pela qual se decifrou o
código tupi-japonês. Em casos em que a literatura em português não indicava
explicitamente o significado tupi de certa sílaba japonesa, ele o deduziu de
outros exemplos que usavam aquela mesma sílaba.
 A seguir, um exemplo do procedimento oculto de Kôyama para criar os
significados de uma sílaba. Para estabelecer o significado de ho, que falta
nos livros em português (provavelmente porque o português não tem h
pronunciado), ele primeiro juntou diversas palavras em tupi contendo ho-
(ho-e, ho-i-to, ho-o-u), em seguida as sobrepôs, depois subtraiu o restante (-e,
-i-to, e o-u), e finalmente deduziu o denominador comum de ho. Esse método
para decifrar foi facilitado pela sua crença de que “cada som armazena
significado”, o que lhe permitiu “cortar e colar” palavras aglutinadas com o
objetivo de adaptá-las à semântica japonesa.6
 Transcrição em ideogramas expande a polivalência de cada fonema porque
em geral apresenta mais do que um significado. Além disso, um ideograma
pode referir-se a diversos sons, enquanto um som pode ser escrito por diversos
ideogramas. Homônimos e sinônimos nas duas línguas também contribuíram
para o número expandido de possíveis combinações de sons e significados.
Uma vez que a tabela de correspondência monossilábica foi estabelecida,
ficou relativamente simples ampliá-la para tabelas dissilábicas e trissilábi-
cas. O problema de Kôyama não foi encontrar um significado, mas especial-
mente escolher o mais apropriado. Visto que a noção de corrupção fonética já
tinha provocado debate entre os tupinologistas brasileiros sobre as supostas
influências portuguesas na pronúncia e transliteração tupi, Kôyama, consciente-
mente ou não, estabeleceu uma regra ad hoc de permutabilidade fonética.
TUPI COMO LÍNGUA ANCESTRAL
 Aplicando o método analisado na seção anterior, Kôyama interpretou
centenas de palavras no seu segundo livro tupi, Investigation, Volume 1.
Poderia tê-lo aplicado para cada palavra existente, mas não o fez. Sua
escolha léxica iluminou sua ética e ideologia lingüística. Não importando
quanto a sua lógica poderia parecer instável, suas escolhas foram sempre
60
consistentes e coerentes. Ele sistematicamente excluiu palavras relaciona-
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

das com, por exemplo, civilização moderna e sexualidade, privilegiando


nomes de lugares, nomes próprios e termos da história japonesa antiga
(Kôyama 1970, 125-39). Para Kôyama, a língua tupi era sobre a natureza
e o passado. Kôyama interpretou Kashiwara, o nome de uma cidade que
guarda o tesouro do fundador mitológico do império japonês, como segue:
Kashiwara = Koshiara (“passado” em tupi) = Ko (parir, crescer) + shi (luz)
+ ara (Sol). Esta leitura assim combinou Amaterasu, a divindade japonesa
do Sol. Pelo nome dado, Kôyama reconstruiu o Japão arqueológico de
acordo com o palimpsesto tupi: Jômon (a civilização mais antiga conhecida
no Japão) = Ji (junto) + yo (descendente) + mo (fazer) + mu (cooperação);
Yamato (a primeira majestade histórica conhecida) = Ya (fruta) + ma (lugar)
+ to (buraco, dobra). A lista continua. 7
 A reinterpretação de Kôyama do Japão antigo está em harmonia com
uma natureza exuberante e um povo de bom coração. Sua exegese não
é para confrontar as duas línguas ombro a ombro, mas para dominar
a língua do antípoda de acordo com a sua língua nativa. “É extrema-
mente fácil”, aponta Marina Yaguello, “para um orador que inventa uma
língua criar seu vocabulário pela aplicação de princípios neológicos, mas
extremamente difícil escapar da camisa-de-força sintática da sua língua
nativa” (1991,98). O japonês foi assim o ponto de origem natural, e o
destino final de sua lingüística.
 Para Kôyama, a relação entre tupi e japonês não era recíproca: palavras
em japonês poderiam ser decifradas por meio da trama do tupi, mas esse
não era o caso do inverso. Em outras palavras, o tupi forneceu uma dimensão
“paleo-semântica” que por um milênio ficou velada no processo de evolução
lingüística (ou corrupção) do japonês. Se o tupi é a língua ancestral do
japonês, será que não poderia ser a mãe de todas as outras línguas? Para
examinar tal possibilidade, Kôyama estendeu o método palimpsesto para os
nomes dos lugares não tupi do Brasil: Brazil = Burajiru = bura (completo) +
jiru (juntar, ter, afundar, engolir); Paulista = Paurisuta = pa (pena) + u (solo)
+ ri (manter, vazão) + su (mover, trocar) + ta (fogo, vara).
 O atlas tupi abrangia o mundo todo e seus heróis, incluindo o México,
os Andes, o Mississipi, o Saara, a Babilônia, Kennedy, Cleópatra, Platão,
Cristóvão Colombo, Roma, Madagascar, a Indonésia, o Vietnã e a Polinésia.
Após esses topônimos serem estabelecidos, Kôyama desafiou a exegese de
nomes comuns em chinês, coreano, ainu, malaio, sírio, português e inglês (In-
vestigação, Volume 1) e francês, espanhol, italiano, alemão, russo e hebraico
61
(Investigação, Volume 2). É claro, os nomes e palavras com que ele lida são

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


filtrados através da transliteração japonesa. Um só exemplo - água - pode ser
suficiente para entender tal método. Mizu (japonês) = mi (pouco, pequeno,
corpo, topo) + zu (cair); Aguwa (“água,” em português) = a (lugar, coisa,
pessoa) + gu (óbvio) + wa (engolir, redondo); Wa-a-ta-a (“água,” em inglês) =
wa (algo para beber) + a (florescer, cortar, jogar) + ta (fogo) + a (cortar, jogar).
E assim por diante.
  Kôyama articulava as combinações fonéticas de cada língua sem levar
em consideração a entonação, acentuação e outras características (desse-
mantização), depois as reescrevia na escrita japonesa. Essa “japonização”
foi seguida pela “tupificação”, a alocação de significados tupi, obtidos por
meio de semânticas monossilábicas para cada sílaba. Fazendo-o, Kôyama
inventou um sistema de tradução impecável. Linguagem X - transliteração
japonesa - interpretação tupi-português - tradução para japonês. Nenhuma
palavra era intraduzível contanto que pudesse ser transliterada em japonês,
pois ele não interpreta a composição semântica de palavras não japonesas.
Ele demonstra, por exemplo, como Wa-a-ta-a (água) pode ser reconstruí-
da de forma semântica, mas não fala a seus leitores das implicações que
fundamentam “algo para beber + cortar/jogar + fogo + cortar/jogar”.
 Mas de que forma poderiam ter sido as operações fonéticas afetadas,
como Kôyama desejava compreender o tupi (e outras línguas), sem mediação
escrita? Por quarenta anos ele “pesquisou e sentiu” o tupi durante uma hora
por dia com sua secretária, e a língua existia somente em combinações
valiosas de sons e significados. Em outras palavras, Kôyama usou “matéria
prima” para estimular a fantasia lingüística, abrindo um baú do tesouro
secreto para personalizar o simbolismo do som. Sua cunhagem ongo
(linguagem do som) revelou seu foco no som e sua separação da relação
convencional entre som e o significado. Enquanto Kôyama contava a seus
leitores um pouco sobre os significados de sua “etimologia universal” é certo
que ele não estava ciente de que suas preocupações eram transferidas da
origem do japonês para aquela do idioma de modo geral.
SIMBOLISMO DO SOM E HIPÓTESE MONOGENÉTICA
 Sob o aspecto lingüístico, tal troca significou muito mais do que Kôyama
imaginava. Seu ponto de partida, O Léxico Tupi, consiste em um processo
ortodoxo de tradução léxica: transferência semântica da palavra, de um
sistema lingüístico para outro. Esse processo pressupõe dois ou três sistemas
lingüísticos distintos que podem estar relacionados por meio da transparên-
62
cia de correspondência (ou pelo menos de aproximação) semântica. Supõe-
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

se que a relação entre o significado e o significante dentro de cada sistema


e entre sistemas seja arbitrária, de acordo com a lingüística moderna.
  Investigação, Volume 1 presume uma hipótese totalmente diferente:
embora a relação entre o significado e o significante dentro de cada sistema
seja arbitrária, aquela entre sistemas é inegavelmente motivada (não
arbitrária). Língua, na visão de Kôyama, é mimética e coerente, assim como
sinestésica. Sua epifania iko é exemplar porque ele acha essas duas sílabas
coerentes com o sentido de sede de sua lembrança. Ele admite o princípio
de analogia e imitação fonética no proto-japonês-tupi. Se o processo de
tradução ortodoxa está ancorado na suposta identidade semântica de
diferentes lexemas (unidades léxicas), o palimpsesto que Kôyama assume
identifica fonemas similares (unidades fonéticas) que designam diferentes
significados em diferentes línguas. É somente a decisão de o que enfatizar
- significado ou som - que é diferente. O que importa em Investigação,
Volume 1 é a coerência não entre o significante e o significado em japonês
ou em tupi, mas sobretudo a coerência entre os significantes nas duas
línguas. Ao identificar uma unidade semântica com uma fonética, Kôyama
admite uma expressão motivada de conteúdo fonético, e nega a dupla
articulação produzida pelas estruturas lingüísticas. A idéia dele aproxima-
se do simbolismo do som: o significado é intrinsecamente percebido no
som (Dogana 1983, 58; ver também Todorov 1972).
 Diferente do simbolismo do som em um sistema monolingüístico que
freqüentemente busca a afinidade entre som lingüístico e a natureza
das coisas que denota (por exemplo, onomatopéia, percepção de cor ou
expressão emotiva de vogais e consoantes), Kôyama o aplica a um sistema
interlingüístico em que a relação entre o significante e o significado na
sua língua materna é dado como inquestionavelmente natural, ao passo
que a mesma relação nas línguas estrangeiras é suscetível de construção
imaginária. Kôyama aloca em japonês e tupi o “resíduo da forma expressiva
arcaica” (Dogana 1983, 288).
  Quando extrapola o princípio de coerência e analogia para outras
línguas, ele insinua a hipótese monogenésica ou a idéia de “derivação de
todas as línguas de uma única língua-mãe” (Eco 1994, 71). Por toda a história
intelectual européia, de acordo com Eco, certas línguas santificadas foram
repetidamente apresentadas como origens de línguas. Hebraico e sânscrito
não foram mais prováveis candidatos do que celta e basco (ver Bergheaud
1985; Yaguello 1991, 21; Sarmiento 1985). A indagação para a origem sempre
63
foi dependente da imaginação mítica e política. Por exemplo, Francisco

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


Adolfo de Varnhagen (1876), historiador oficial da pós-independência do
Brasil, explorou a teoria inovadora de que tupi e todas as línguas antigas
derivaram do Turan, uma tribo das margens do Nilo. A implicação política
de tão surpreendente teoria foi que os índios do Brasil não eram criaturas
primitivas, mas descendentes da civilização clássica. 8
 Para Kôyama, o tupi representou tanto o japonês ancestral como o
brasileiro ancestral. O tupi permitiu aos japoneses no Brasil celebrar o mito
da mistura racial pacífica, fortalecendo assim a autêntica brasilidade do
japonês, um grupo excluído do mito da fundação. Enquanto O Léxico Tupi
teve intenção implícita de estabelecer paz em meio a uma comunidade
dividida – textualmente endereçado a um grupo intra-étnico –, o Investiga-
ção é claramente destinado a afirmar o mito racial brasileiro. Referência
para tupi foi, para o poeta cego, uma “ficção relativa à fundação” (Sommer,
1991) que reconheceu um grupo minoritário. Essa ficção não teve a intenção
de construir uma nova contranarrativa que potencialmente contestava a
narrativa da sociedade dominante, mas especialmente tomou parte na
ordem hegemônica. Não objetivava uma separação étnica, mas uma
integração social. A relevante admiração de Kôyama pela democracia
racial no Brasil é evidente no final do parágrafo de Investigação, Volume
2: “No meio do século XIX uma língua universal, esperanto, inventada por
Zamenhof, na Europa, tornou-se popular. Mas para mim parece que é o
Brasil (mais do que a Europa) que está percebendo o ideal universal de
igualdade de seres humanos, porque este país não discrimina imigrante de
nenhum lugar do mundo. Eu suponho que em alguns séculos de linguagem
étnica de todo o mundo, será reconhecido um significado próprio para cada
som da língua de sons tupi, como examinado nos livros portugueses” (35).
Para Kôyama, somente quando as pessoas ao redor do mundo “sentirem”
o simbolismo do som tupi escondido em todas as línguas, é que elas serão
capazes de comunicar entre si. Como o tupi do passado, o mundo se tornará
verdadeiramente pacífico.
CONCLUSÃO: LINGÜÍSTICA FANTÁSTICA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
 A origem da linguagem, muito tempo depois de seu exílio do jardim da
lingüística, ainda encanta numerosos cientistas populares. Tais teorias, no
entanto, encontram um lugar legítimo na “lingüística fantástica” ou “todos
os discursos e todas as práticas que a constituição gradual de uma disciplina
oficial marginalizava e por vezes até excluía do campo científico” (Auroux et
64
al. 1985, 11). Afora as duas questões mais proibidas - a origem da língua e a
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

língua universal - glossolalia, lapso, linguagem incomunicativa e linguagem


ficcional estão entre os objetos privilegiados dessa disciplina. O risco está
não no valor verdadeiro e objetivo, mas na singularidade do Autor (ibid.,
18). Isto é condicionado pela história, ou mais precisamente, pela margem
da história. O que descobrimos na lingüística fantástica não é desprezo ou
abandono da ciência moderna, mas sim abuso e distorção. 9
 Os lingüistas fantásticos desprezam a ortodoxia da lingüística. “Eles
recusam a linearidade do significante, confundem os eixos paradigmáticos e
sintagmáticos, articulam a linguagem de uma maneira exclusiva, adicionam
ao significante exegese infinita, etc.” e tendem a conectar a língua imaginária
aos “elementos extrínsecos, tais como localização, sexo ou gênio do povo”
(Aroux et al. 1985, 23). A tarefa dos lingüistas fantásticos é localizar os
glossófilos no amplo contexto do conhecimento perguntando por que e como
eles falharam ao construir os objetos autênticos da lingüística moderna. Por
conta de seu deslocamento eles iluminaram os limites do discurso científico
obscurecendo e passando por cima dos limites entre ciência e fantasia.
Mesmo que a imaginação lingüística freqüentemente se refira ao passado
(mito da origem da língua) ou ao futuro (utopia da língua universal), as
questões levantadas indicam as condições críticas das línguas atuais. Todas
essas características operam claramente na análise de Kôyama.
  Kôyama desprezou a lingüística moderna, mas ao mesmo tempo as
idéias dele estavam profundamente baseadas nas condições históricas nas
quais ele viveu. Construiu um labirinto repleto de confusão entre lógica e
intuição, suposição e fato, memória pessoal e descrição objetiva. Seus textos
não são ciência tão degenerada quanto uma narrativa enraizada numa
experiência pessoal e em sentimento coletivo. A similaridade física entre o
tupi e o japonês era a única pista visível, como ele tentou demonstrar, de
que a afinidade lingüística provava sua contrapartida genética. Regras ad hoc
foram adicionadas quando o resultado contradisse o fantasma da prioridade
absoluta. Tais invenções narrativas pretendiam salvar a fantasia freqüente-
mente oculta atrás do funcionamento das lendas populares. Assim sendo, a
busca de Kôyama do significado dos nomes parece etimologia mais folclórica
do que lingüística. Atribuindo o significado tupi para diversas palavras em
diversas línguas, ele nomeou o mundo, enxergou-o a partir dos olhos tupi,
ouviu a língua a partir dos ouvidos tupi, e percebeu como o tupi “sentia” o
mundo. Fazendo isto ele intencionava quebrar os limites da linguagem e os
limites do mundo vivo.
65
 A incompatibilidade da língua é naturalmente recíproca, mas influencia

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


de forma desigual a vida de anfitriões e de visitantes. A profissão inicial de
Kôyama como intérprete o alertou sutilmente sobre a posição estrangeira de
sua língua materna em sua segunda pátria. Reconhecer a nossa língua nativa
como estrangeira é sentir-lhe a duplicidade. Uma maneira de escapar da
prisão da língua é “dominar” a língua alheia, mas outro modo mais radical
fazê-lo (pelo menos em termos ideológicos) é insistir que até os brasileiros
falantes de português, monolíngües como os imigrantes, estão aprisionados,
a menos que eles percebam que qualquer língua está igualmente distante
da língua ancestral tupi.
 A incompatibilidade das duas línguas sofreu curto-circuito pela invenção
e intervenção de um “terceiro espaço”, um espaço arcaico que permitiu todo
investimento semântico, toda referência imaginária, toda fantasia surreal.
Tal espaço, considerado tupi por Kôyama, está suficientemente vazio para
ser preenchido com significados e interpretações arbitrárias, desde que seja
completo de simbolismo nacional e clichês exóticos.
  Kôyama estava buscando um discurso para redimir a patente margin-
alidade de sua comunidade com relação à demografia, cultura e língua.
Ele tinha consciência da posição subalterna de sua linguagem nativa no
Brasil e da influência limitada de seu trabalho. Publicar um trabalho japonês
no Brasil poderia não ajudar, mas conter a “dupla articulação” de atrito
nacional/étnico. Na divulgação da língua nativa, a geração Issei desejou a
origem perdida que tinha sido involuntariamente resistente ao monolingüis-
mo do Brasil. Kôyama nem alterou a incompatibilidade das duas línguas
nem a visão brasileira em japonês. E mais, seus escritos não eram sem
sentido. Particularmente, ele tentou tornar-se brasileiro por meio do uso
de estratégias de imaginação mítica e semelhança física. Longe de ser o
truque de monge cego ou um absurdo lingüístico, o seu mundo tupi-japonês-
brasileiro articula as condições sociopolíticas, afetivas e ideológicas da
comunidade de Nikkei. É “verdadeira fantasia” embutida na consciência
mítico-histórica de um grupo minoritário.
NOTAS

Agradeço ao Sr. Katsunori Wakisaka, genro de Kôyama, por fornecer informações


pessoais valiosas sobre o autor e suas publicações privadas.
1 A noção de “étnico” é difícil para os japoneses entenderem, visto que eles designam
essa palavra, minzoku, como significando “nação” e “unidade étnica” de modo
passível de mudança, até mesmo em textos acadêmicos (Tanaka 1991, 175-76). Esta
66 tradução polissêmica da palavra minzoku pelos intelectuais de Meiji no recente século
XIX poderia refletir as circunstâncias nacionalistas nas quais etnologia, antropologia
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

e estudos folclóricos foram estabelecidos. A dualidade das categorais nacional e étnica


é também discutida em Hosokawa, 1999.
2 Todas as traduções são do Autor.
3 Kôyama consultou as seguintes referências (Kôyama 1951, 3-4): Padre Antonio Ruiz
de Montoya, Vocabulario y Arte y Tesoro: Guarany (o Tupi) - Español (1639); Plínio
Ayrosa, Primeiras Noções de Tupy (1933); Baptista de Castro, Vocabulario Tupy-
Guarany (1936); Theodoro Sampaio, O Tupi na Geographia Nacional; Diccionario
Guarany-Castellano (1901); P. H. Cuasch (P. Antonio Guasch), Diccionario Castellano-
Guarani y Guaraní-Castellano (sem dados adicionais); Affonso Antônio de Freitas, “Os
Guayanas de Piratininga,” Etnographia Paulista (1910); Alfredo d’Escragnole (Afonso
de Escragnolle) Taunay, Os Indios Caingangs: Monographia (sem dados adicionais);
Angione (Angyone) Costa (1934), Introdução á Arqueologia Brasileira: Etnografia e
Historia, Biblioteca Pedagógica Brasileira, Editora Brasiliana, séries 5, vol. 34; Paul
Rivet, As Origens (sic) do Homem Americano, Instituto Progresso Editorial. Destas
dez referências, pude consultar somente cinco (Ayrosa, Sampaio, Guasch, Costa, o
original em francês de Rivet). Embora admita que minha reconstrução da Tupinologia
de Kôyama esteja particularmente incompleta, a contribuição dos livros que não
posso consultar não deve ser significante. A maioria dos registros em O Léxico Tupi
derivam tanto de Primeiras Noções de Tupi de P. Ayrosa como de 0 Tupí na Geographia
Nacional de Theodoro Sampaio.
A informação de dois dicionários Guarani-Castelhano não consultados deveria ser
minimamente incorporada no trabalho de Kôyama como dicionário de Guasch.
“Os Guayanas de Piratininga” de Affonso Antônio de Freitas pode não ser muito
incorporado no texto de Kôyama’s até o ponto que eu julguei a partir da discussão
dele sobre o mesmo assunto encontrado em seu Vocabulario Nheengatú (1936, 43-44).
Na filologia Tupi, ver também Ayrosa 1967 e Chermont de Miranda 1946. Kôyama usou
os termos de tupi e tupi-guarani alternadamente. Tupi não é uma língua, mas uma
variante do guarani, uma língua nacional do Paraguai.
4 Uma exceção interessante é de Mário de Andrade, para quem a nasalização do
português no Brasil foi de influência tupi (1991).
5 Sociólogos mais freqüentemente duvidam da igualdade racial brasileira do que
a afirmam (ver Andrews 1991; Bastide e Fernandes 1959; Fernandes 1972; Fontaine
1985; Hellwig 1992; Skidmore 1973; Winant 1994). Problemas “raciais” no Brasil estão
predominantemente relacionados com o espectro branco-preto. Grupos indígenas e
asiáticos estão inseridos em uma categoria diferente: Atrito étnico (Lesser 1999, 10-11).
6 Uma das regras da etimologia Tupi para Theodoro Sampaio foi “decompor o
vocabulário etimologicamente restaurado por seus elementos aglutinados, sempre
fácil de desprender e colocar, desta maneira, em condições de serem traduzidos”
(1928, 129). Esta foi exatamente a metodologia de Kôyama, apesar da etimologia de
“cortar e colar” ser comum na lingüística fantástica. Até os filólogos comparativos
do tempo dele, Sampaio pensou que os idiomas aglutinativos como Tupi estivessem
menos evoluídos do que os flexíveis como o Português.
7 A tendência de associar o tupi com o grande passado pode ser encontrada nos
artigos de outros japoneses que podem ter sido inspirados em O Léxico Tupi. Por
exemplo, Tadao Oka fornece muitos exemplos (“Tupi-go para Man’yô Kotoba” (língua
tupi e língua Man’yô), Paulista Shinbun, 10 de junho de 1959). Para ele, Shikishima
(belo nome antigo para o Japão) consiste de “shi (luz) + ki (descendente) + shima
(brilho).” Em outras palavras, o Japão é celebrado desde seu início como “país dos
descendentes brilhantes”. Para ter certeza, Oka e Kôyama se conheciam um ao outro,
e provavelmente foi o último quem sugeriu a releitura Man’yô Shû (língua Man’yô) em
67
tupi. (Publicado no século oito, Man’yô Shû foi a primeira coleção poética conhecida
no Japão). Kôyama também interpretou um poema de Man’yô Shû em Investigação,

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


Volume 1(137).
Yoshio Ikeda, por sua vez, decifra o Antigo Egito e línguas Okinawan de acordo com
O Léxico Tupi (“Nazo no Tupi-go” (Língua Tupi Misteriosa), agosto-novembro 1976,
Paulista Shinbun), enquanto um artigo anônimo aplica uma rede tupi para dialetos
japoneses (Nippaku Mainiti Shinbun, 26 de fevereiro de 1963). É provável que a
morte de Kôyama tenha desintegrado entre estes glossólogos amadores o interesse
pelo tupi.
8 É fascinante comparar Kôyama e Varnhagen em termos de teoria monogenética tupi.
A última descoberta das palvras tupi rha, ioh e siu designava igualdade no Antigo
Egito como o sol, a lua e as estrelas, respectivamente (Varnhagen 1876, 27-28, 137-38). A
principal divindade do Tupi (Tupã), Deus do Trovão, mantém em si uma ressonância
com o egípcio To-Pan (Pan do país). Este “Pan” pode também ser chamado “Khen”,
que corresponde a Júpiter, Deus do Trovão (ibid, 62-63). De acordo com Varnhagen,
o tupi emigrou do Egito durante os séculos V e VI antes de Cristo. Formando a mais
antiga das emigrações, eles viajaram para o lugar mais distante, ou sul do Brasil. Como
resultado, o tupi inclui as línguas mais antigas como grego, assírio, fenício e assim
por diante. Além disso, Varnhagen encontrou correspondência léxica com mongol,
tartariano, basco, árabe, húngaro, malaio e algumas outras línguas. A similaridade
com a abordagem de Kôyama é óbvia.
Curiosamente o bastante, Varnhagen nunca discutiu a conexão do tupi com línguas do
Oeste europeu. Sua filologia comparativa enfatiza as culturas exóticas e/ou antigas.
Ele também analisou o significado de tupi como “ancestral” em detalhes (ibid., 4),
com o tupi sendo o Adão exótico, que se origina a partir do Egito. Varnhagen teorizou
que a influência lingüística foi concomitante à conquista; à medida que o império
Egípcio (Turaniano) aumentava, sua língua afetava as línguas semíticas. O conheci-
mento de Varnhagen sobre o Antigo Egito foi claramente apropriado a partir do orien-
talismo pós-napoleônico (Sobre o impacto da teoria turaniana na identidade cultural
árabe-brasileira, ver Lesser 1999, 43).
A língua tupi foi também um assunto de filologia comparativa por Lucien Adam,
intelectual do fim do século [1968(1896)], que sugere um interesse intermitente na
França nos povos indígenas brasileiros desde Jean de Léry.
9 Sobre buscas “não fantásticas” (científicas) para a origem da língua, ver Lamb e
Mitchell 1991, Miller 1971; Ruhlen 1994.
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70
71

Huka-Huka Yawalapiti X Sumô


Embate
Tokyogaqui, 2008
O Ovo Gigante da Mothra:
Consumo do Pacífico Sul no Japão
dos Anos 60
72 Yoshikuni Igarashi
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos
Por que os Monstros Sempre Vêm do Sul?
  Em um ensaio publicado originalmente em 1992, o crítico cultural Nagayama
Yasuo levantou uma intrigante questão: por que os monstros sempre vêm
do Sul – especificamente do Pacífico Sul – nos filmes de monstro de Tôhô1?
O habitat natural de Godzilla é no Pacífico Sul; Mothra, um bicho-da-seda
gigante, habita a imaginária Ilha da Infância, que fica nas proximidades das
73
Ilhas Polinésias; a igualmente imaginária Ilha Faro no Pacífico Sul é suposta-

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


mente o lar de King Kong em King Kong vs. Godzilla (1962); e a Ilha Monstro,
local da Congregação dos Monstros, situa-se em algum lugar do Pacífico Sul
em A vingança de Godzilla (1969). Ainda que Nagayama ofereça diversas
respostas sugestivas – tais como aquela de que o monstro retorna para
reativar as fantasias do Japão do período que antecede as guerras coloniais –,
ultimamente seus argumentos têm sido menos históricos do que alegóricos.
Seu argumento maior falha ao não considerar o envolvimento cultural das
atuações do monstro: sua evolução de inimigo para amigo. A fúria cega de
Godzilla nos anos 50 representa uma ameaça à prosperidade do Japão do
pós-guerra, visto que o Ovo da Mothra nos anos 60 se torna um emblema ao
consumismo do Japão. Os monstros de Tôhô são transformados de assusta-
dores, entidades destrutivas, em adoráveis criaturas em meio ao crescimento
da sociedade consumista no Japão.
  A pergunta de Nagayama poderia ser recolocada, porém do ponto de vista
histórico: por que os monstros vêm do Sul nos anos 1960? Se a imagem do
monstro é historicamente instável, também o é o bando do Sul. Apesar de
o Sul atuar como um passado inocente, impermeável às mudanças sociais,
a forma particular que esse passado assume nos anos 60 no discurso
histórico do Japão é reveladora. O Sul assume seu papel característico nos
anos 60 – o “outro” dentro dele mesmo, o passado inocente de que o Japão
pode apropriar-se. No entanto seu papel é específico para o seu momento
cultural. Nos anos 60, como o Japão vivenciava mudanças econômicas e
sociais extremas como a expansão pós-guerra, o Sul torna-se um espelho
dos desejos do Japão de escapar dos efeitos de seu sucesso econômico – o
consumismo. Cobiça é apenas um outro nome para consumo conspícuo
no discurso popular, ao passo que o Sul preserva a inocência infantil que
serve como antídoto para consumismo. Ironicamente, a imagem anticom-
ercial do Sul estava disponível em forma de objetos consumíveis. Envoltas
num exótico, porém nostálgico ambiente, mercadorias do Sul começam a
aparecer no mercado japonês. Cercados por esses objetos, os consumidores
conseguiram imaginar-se livres e apartados das condições históricas típicas
da nação. O monstro, a representatividade do Sul, torna-se o maior e mais
visível (no caso da Mothra) desses objetos de consumo.
 Neste ensaio eu examinarei dois filmes, Mothra (1961) e Godzilla vs. Mothra
(1964), para investigar como o Sul retorna para a sociedade japonesa nos
anos de 1960. No primeiro filme, Mothra incorpora o esforço da sociedade
japonesa para administrar seu momento histórico num escapismo para um
74
passado nostálgico, de forma convenientemente empacotada e consumível.
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

No segundo filme, Godzilla vs. Mothra, o mesmo monstro torna-se a imagem


do Japão, completamente incorporado em sua sociedade de consumo. A trans-
formação do monstro, dentro dos poucos anos que separam os dois filmes,
demonstra quão rapidamente essa drástica mudança social se acomodou às
expressões culturais do Japão do pós-guerra.

Yanagita Kunio e o Sul


  A investigação do pós-guerra na construção do imaginário da cultura
popular do Japão deve iniciar-se no ponto em que o etnologista nativo
Yanagita Kunio finalizou o seu discurso acadêmico. Em 1961, pouco antes de
sua morte, Yanagita publicou seu último livro, Kaijô no michi (Passagem para
o Mar). Apesar de terem sido originalmente publicados na primeira metade
do ano de 1950, os ensaios incluídos no volume atingiram um público muito
maior na forma de livro. Neles, Yanagita tenta problematizar os limites do
Japão, discutindo a história compartilhada das Ilhas do Sul e a ilha principal
do Japão. Focalizando os objetos que chegavam do Sul, Yanagita propôs
a hipótese de um movimento mais generalizado das culturas e povos do
Sul. Esse movimento, afirma ele, excedia os limites do território nacional.
Talvez a passagem mais memorável em seu livro seja uma sobre cocos que
chegaram ao litoral do Japão, trazidos pelas correntes marítimas2. Bastante
de acordo com suas práticas passadas de etnologia nativa, os objetos iniciam
uma cadeia de associações que aparentemente se entrelaçam disparando
símbolos culturais em sua discussão. Através dessas associações, Yanagita
especula as origens sulistas do japonês, postulando as ilhas como um reser-
vatório das formas da cultura original do Japão. O Sul, no modelo de Yanagita,
não se encontra fora do Japão, mas no seu âmago. O local da descoberta de
Yanagita teve uma significância particular também. Ele descobriu os cocos
na ponta da Península Atsumi ao longo de uma passagem estreita da ilha,
um local onde as tradições Shintô do Japão estiveram ancoradas por séculos.
A sua menção casual à Ilha Shrine é, apesar de tudo, não tão casual3. No
âmago da identidade nacional do Japão, Yanagita encontrou cocos – coisas
que vêm das ilhas do sul. O interesse de Yanagita na região, um interesse que
se originou nos anos 20, conseqüentemente resultou na desestabilização dos
limites nacionais do Japão.
  No entanto, como têm discutido os críticos de Yanagita, o seu retorno para
o Sul como assunto em seus trabalhos sobre Okinawa nos anos de 1920 deve
ser examinado em contraposição ao fracasso da história colonial do Japão.
75
Murai Osamu, por exemplo, insiste em que o interesse de Yanagita nessas

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


regiões estava longe de ser inócuo. Foi motivado pelo desejo de conciliar
seu próprio envolvimento como burocrata no empreendimento colonial do
Japão na Coréia. Leituras da história da cultura compartilhada de Okinawa
e a ilha principal do Japão foram ferramentas com as quais se desvia a
atenção da realidade da violência4 colonial do Japão. Ao mesmo tempo em
que não compartilha com o forte tom acusatório de Murai, Akasata Norio
também nota a “reorientação” de Yanagita do Norte para o Sul em seus
trabalhos iniciais sobre Okinawa. Seu desejo inicial de traçar a inexistência
de Ainu nas montanhas do Norte perde-se no contexto à medida que ele
cada vez mais procura descobrir as origens compartilhadas da ilha principal
e Okinawa5 nos anos de 1920.
  No entanto, sua articulação pós-guerra em Kaijô no michi (Passagem para
o Mar) sugere que havia mais trabalho do que um mero desvio de atenção
das atividades do Japão colonial nas discussões de Yanagita sobre Okinawa.
Ele estava construindo uma forma imaginária de Okinawa para transcender
a tensão dentro de sua erudição entre sua consciência perspicaz sobre as
drásticas mudanças na moderna sociedade japonesa e seu desejo nostálgico
de recuperar um passado distante. O Sul foi para ele uma forma de reconciliar
o conflito entre a realidade das mudanças históricas e o passado imutável,
colocando um passado idealizado fora do desenvolvimento histórico que a
ilha principal do Japão tinha vivenciado. Yanagita apropria-se da diferença
cultural do Sul e a oferece ao público japonês. O efeito desse filme teórico
é colonial, já que posiciona Okinawa como um local que sempre foi parte
do Japão. O interesse sustentado por Yanagita em Okinawa ressoa com a
imaginação colonial japonesa de pré-guerra que procura estabelecer uma
conexão imaginária entre o Japão e o Sul.
  A forma pela qual Yanagita se apropria do Sul para sobrepor a tensão em
relação à sua erudição também serve como um ensaio para a redescobe-
rta do Sul pelo Japão do pós-guerra. Nos anos 60, imagens do Sul ganham
ampla circulação na crescente e nova sociedade de consumo do Japão à
medida que se reduz amplamente o ensejo de ansiedade cultural oriunda
das mudanças sociais e econômicas. No meio dessas transformações, para
preservar a continuidade histórica do Japão, circulou a imagem do Sul como
alegoria de um lugar de fora do país. Apesar de escrito nos anos 50, o ensaio
de Kaijô no michi (Passagem para o Mar) antecipou as mudanças que viriam
a ocorrer no status do discurso cultural japonês do Sul nos anos de 1960. Não
deveria ser surpresa que, após a publicação de uma extensa coleção de seu
76
trabalho, a etnologia nativa de Yanagita se tivesse tornado uma mercadoria
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

intelectual de grande procura no Japão dos anos 60, onde a mudança era
uma norma social.
 Os laços ideológicos que por meio dos cocos Yanagita postulou entre o Japão
e o Sul tornam-se um motivo-chave no filme de 1964 Godzilla vs. Mothra, em
que outro objeto gigantesco em forma de coco medeia as duas regiões numa
forma problemática semelhante. O ovo da Mothra é varrido da terra para
as Ilhas do Pacífico Sul por um tufão e levado pelas correntes marítimas,
chegando casualmente ao litoral do Japão. Segue a passagem imaginária
que parece conectar o Pacífico Sul e o Japão e que traz numerosos outros
monstros ao Japão. Tomando um empréstimo de Yanagita, eu chamo de Kaijô
no michi (passagem dos monstros) essa passagem para o mar. Enquanto o
Kaijô no michi de Yanagita conceitualmente posiciona a história compartil-
hada da Ilha principal do Japão e Okinawa, o Kaijô no michi nos filmes de
monstro dos anos de 1960 de Tohö estabelecem a conexão imaginária entre o
Japão e o Pacífico Sul. As narrativas dos filmes trabalham para a restauração
da indivisibilidade específica de cada uma das duas regiões. Os filmes de
monstros de Tohô dos anos de 1960 descobrem as imagens exóticas das ilhas
do Pacífico Sul, apropriando-se delas, como uma fonte de contra-identidade
para uma sociedade contemporânea completamente corrompida pelo mer-
cantilismo. O ovo da Mothra ainda desempenha função similar à daquela
imagem dos cocos de Yanagita ao trazer de volta imagens nostálgicas para
neutralizar o efeito histórico do rápido desenvolvimento econômico.
  É claro, o ovo da Mothra e outros monstros de Tohô não estão isolados ao
seguir a passagem imaginária. Durante os anos 60, uma quantidade constante
de produtos do Sul chega aos mercados japoneses. Com sua derrota na Guerra
do Pacífico na Ásia, as ambições e fantasias do Japão colonial desvanecem.
O Pacífico Sul (Nanyô) que um dia estimulou a imaginação colonial do Japão
imperial, drasticamente desapareceu do inconsciente popular. No entanto,
assim que o Japão começou a restabelecer seus laços econômicos com
a região, o Sul retornou à imaginação japonesa no final dos anos 50 e no
início dos 60. Embora o movimento das pessoas estivesse ainda limitado (as
restrições para viagens internacionais ainda eram altas até abril de 1964),
objetos traziam de volta para o país imagens do passado do Japão colonial.
Ironicamente estranho, imagens da postura anticomercial do Sul retornavam
como mercadorias.
  O consumo de bananas, por exemplo, quadruplicou nos últimos dois anos
que antecederam 1963, suspensas as restrições de sua importação6. Exceto
77
pelas bananas desidratadas (banana-passa), que havia disponíveis durante

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


a guerra e nos anos do imediato período de pós-guerra, bananas, que se
estragavam facilmente, mantiveram-se como frutas exóticas até o início dos
anos 60. Abacaxis também se tornaram mais acessíveis no Japão nos anos
607. No entanto, até metade da década de 60, os abacaxis permaneciam,
para a maioria dos consumidores japoneses, como uma iguaria. A manga
(cuja forma também lembra o ovo da Mothra) apareceu pela primeira vez
no mercado japonês em 1961.
  À medida que as frutas tropicais se foram tornando mais acessíveis,
imagens exóticas do Havaí – como um ícone do Pacífico Sul – foram
também largamente consumidas no Japão. Em 1961, Suntory lançou uma
campanha de venda para seus produtos Torys Whisky, oferecendo como
prêmio uma viagem para o Havaí. A frase reproduzida, creditada ao autor
Yamagushi Hitomi – “Beba Torys e vá para o Havaí” (Torisu o nonde Havaíi
e ikô) – ficou na imaginação popular e ajudou enormemente a incrementar
as vendas de Torys. O filme de Elvis Presley, Havaí Azul, foi um sucesso
de bilheteria em 1962. Fábricas de tecido japonesas tiraram vantagens da
popularidade do filme lançando linhas de modelo com o nome o “Modelo
Havaí Azul”. O departamento de turismo do Havaí também lançou uma
campanha promocional no mesmo ano evitando perder a grande oportuni-
dade8. Em 1963, o estúdio Tôhô produziu o quarto filme de Kayama Yûzô da
série popular Wadaishô, cenas-chave que foram filmadas no Havaí. Apesar
de estar fora do alcance da maioria de japoneses, o Havaí foi rapidamente
tornando-se um almejado destino turístico pelo exotismo do Pacífico Sul: o
Sul comercializado por excelência.
  No entanto, objetos originados no Japão foram os que melhor ilustraram a
transformação das imagens do Sul na sociedade de consumo do pós-guerra.
Takara Co. começou comercializando a boneca de vinil chamada Dakko-
Chan em abril de 1960 (figura 6.1). Apesar de suas vendas iniciais terem sido
baixas, até os meses de verão o brinquedo ganhou a atenção do mercado, e
a Takara Co. já não conseguia produzir bonecas o suficiente para atender a
demanda9 do mercado. A figura de Dakko-Chan com sua pele escura e lábios
grossos reproduziam imagens coloniais do Pacífico que o desenho Bõken
Dankichi havia ajudado a circular nos anos de 193010. Em Bõken Dankichi,
a imagem dos nativos foi descontextualizada de suas associações históricas
e geográficas e considerada como uma folha de papel em branco em que o
protagonista japonês, Dankichi, poderia inscrever as aspirações11 do Japão
colonial. No desenho animado, Dankichi é levado por uma correnteza até o
78
litoral de uma ilha ao Sul, cujos nativos canibais de pele escura ele civiliza
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

e treina, da mesma forma como domestica diversos animais12 selvagens. No


papel de “o garoto branco” na ilha, Dankichi governa a ilha como se fosse
um colonizador, introduzindo elementos da moderna (e japonesa) civilização
para uma população mergulhada na ignorância. Sob sua tutela, os habitantes
da ilha constroem modernas instituições como escola, banco, templo Shintô,
palácio, correio, hospital, estrada de ferro e até mesmo um exército. Os
nativos desempenham o papel daquele que sofre o inato aculturamento
japonês – eles até falam japonês – ao passo que suas diferenças são constan-
temente marcadas. O fato de que o autor, Shimada Keizô, inventou toda a
história completamente a partir de sua imaginação, sem nenhum conheci-
mento específico sobre o Sul, meramente confirma a natureza fantástica da
imagem do Sul que ganhou circulação no período13 de pré-guerra. Nos anos
60, a figura diminuta de Dakko-Chan infantilizou os nativos, reduzindo as
imagens formidáveis do Sul a um tamanho14 consumível. Os nativos canibais
que habitaram a imaginação do Japão colonial foram transformados em uma
inofensiva e adorável boneca nos anos 6015. O assustador período colonial
deixou de ser uma entidade ameaçadora à medida que o Japão começou a
consumir/canibalizar o Sul.
  Nos dois filmes da Mothra, os nativos da ilha, que eram representados por
atores japoneses com os corpos pintados, promovem e embalam as fantasias
do Japão colonial para consumo fácil e imediato. Os nativos aprisionados
no estágio infantil do desenvolvimento humano propõem uma perspectiva
crítica sobre a política internacional contemporânea. Não é acidental que
a ilha de onde a Mothra emerge é chamada Ilha da Infância. Ainda que
vivendo em condições primitivas, os nativos são altamente críticos das
modernas usinas, cuja corrida armamentista fomentou testes nucleares que
resultaram na destruição de suas ilhas. O estágio primitivo de civilização
humana encontrado na ilha serve como referência da identidade da
sociedade contemporânea. Os habitantes da ilha são nobres selvagens que
ainda mantêm a humanidade que a modernidade há tempos já perdeu. O Sul
oferece uma possibilidade de criticar a moderna sociedade de consumo do
Japão pós-guerra. No entanto, essa acentuada diferença entre o Sul e o Japão
não escapa ao olhar erotizado do consumidor moderno. O Sul retornou ao
Japão dos anos 60 de uma forma altamente acessível às massas. A nobreza
dos nativos é minada pela sua selvageria, que é oferecida como um prazer
exótico. Os nativos seminus executam seus rituais de uma forma ostensiva
para lutar contra a ganância da modernidade, ainda que suas atuações
79
representem uma iguaria sexual a ser degustada, ao olhar do espectador.

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


Somente no caso da Okinawa de Yanagita, a imagem de “inocência” do
Pacífico Sul é reiterada e circulada dentro do discurso cultural e comercial
do Japão dos anos 60.

Mothra e o Fluxo de Fantasias


  Ainda que estes filmes erotizem o Sul em termos de bens de consumo e
corpos em forma de mercadoria, eles criticam conscientemente as ambições
do capitalismo como o poder mais recente que solapa as relações da sociedade
moderna. No entanto, as imagens mercantilizadas que esses filmes projetam
na tela acabam necessariamente minando o objetivo, proposto pelo filme, de
restaurar a situação crítica do Sul. Já concebido como exótico e consumível
pelo olhar cinemático, os nativos e seu habitat não apenas representam
uma anti-perspectiva para a sociedade moderna, mas também antecipam
o consumismo moderno. Mothra aparece em seu primeiro filme confortavel-
mente embalado por uma nostálgica imagem do Sul; já no segundo filme,
aparece identificado com a sociedade japonesa.
  Originalmente concebido durante o auge do movimento contra o Tratado
de Segurança EUA-Japão dos anos 60, Mothra assume uma marca diferente
da política internacional da guerra fria. Três renomadas figuras da literatura
participaram do projeto coletivo literário de Hakkô yôsei to Mosura (Contos
brilhantes e Mothra), a história original de Mothra. A história completa foi
publicada em janeiro de 1961, e uma versão para o cinema foi lançada em
julho do mesmo ano. Os três escritores – Nakamura Shin’ichirô, Fukunaga
Takehiko e Hotta Yoshie – são reticentes sobre o que exatamente os inspirou
a produzir a história na específica conjuntura histórica do pós-guerra. Ainda
que o texto traga marcas claras da frustração que os intelectuais japoneses
sentiram com relação à posição de subordinação assumida pelo Japão
provocada pela renovação do Tratado de Segurança EUA-Japão, a história
demonstra amplamente que os três autores tinham a intenção de proporcio-
nar ao Japão do pós-guerra uma distância crítica da hegemonia americana
por meio da reivindicação do Pacífico Sul.
  Apesar de inspirados por essa narrativa antiamericana na história
original, a versão em filme da história dirigida por Honda Ishirô já opera
no paradigma do pós-movimento contra o Tratado de Segurança dos anos
60, em que o foco no crescimento econômico proporciona uma divergência
da situação real do Japão como um cliente do Estado americano. A nacio-
80 nalidade do Japão seria reabilitada por meio do sucesso econômico, muito
mais do que por manobras políticas forçadas. As fantasias coloniais do Sul
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

que retornam no período do Japão do pós-guerra são sombras da realidade


política do Japão imperial de pré-guerra. No entanto, o fato histórico de que
o Japão certa vez já teve o controle do Pacífico Sul nunca foi registrado no
filme. Sob o controle hipereconômico dos anos de 1960, as imagens do Sul,
no filme, são dissociadas do atual histórico, enquanto ele é rapidamente
domesticado e embalado para consumo visual.
  A narrativa começa com uma reportagem sobre a Ilha da Infância no
Pacífico Sul, que é a nação de Roshirika recentemente usada como um local
de teste nuclear. (Na versão do filme, o nome foi alterado para Rorishika).
Roshirika é uma composição das duas primeiras sílabas de Roshia (Rússia)
e das duas últimas de Amerika (América). A tensão política entre EUA e
Rússia da guerra fria é uma variante para a estrutura binária do Japão e sua
ameaça, Roshirika. Apesar de três quartos da ilha terem sido explodidos,
marinheiros japoneses náufragos são levados para a costa, onde encontram
os nativos. É despachada uma equipe de sobreviventes acadêmicos,
composta de japoneses e de Roshirikans para investigar o mistério dos
moradores da ilha que, habitando áreas radioativas, apresentam uma
mistura de poderes radioativos e capacidade de luta, que eles deram aos
marinheiros. A narrativa mostra claramente a ilha como um local mítico que
transcende tanto a tensão política como a destruição resultante dos testes
nucleares. Como Nagayama Yasuo sugere, a Ilha da Infância serve como
uma sinédoque para a nação ideal que o autor desejaria que o Japão fosse
– uma nação capaz de proporcionar uma perspectiva crítica na política con-
temporânea internacional a partir da experiência única como sobrevivente
de uma devastação nuclear.
  O filme também revela o papel hegemônico que os EUA desempenham
em relação ao Japão e à Ilha da Infância. A equipe de expedição faz
descobertas fantásticas sobre a ilha, a mais admirável das quais são duas
mulheres em tamanho-miniatura (na história original são quatro mulheres).
Apesar de a equipe de sobreviventes deixar inalterada a ilha, um dos seus
membros – o sórdido personagem Roshirikan Peter Nelson – retorna a ela
para capturar as duas mulheres. A despeito de seus poderes sobrenaturais
e de se comunicarem telepaticamente, as mulheres-miniatura (Shôbijin)
são tratadas, tanto pelo personagem Peter Nelson como por seus protetores
japoneses, não como seres humanos, mas como objetos de desejo. Embora
elas tenham sido trazidas para o Japão, seu canto ressoa como uma prece
nativa que acaba por chocar o ovo da Mothra na Ilha da Infância. Elas,
81
mesmo sendo tratadas como objetos, mantidas em um estojo de viagem,

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


dão vida à criatura. Na história original, para silenciar o apelo de um dos
membros da equipe de sobreviventes japoneses para libertar as mulheres,
Peter Nelson insiste: “Elas não são humanas. São coisas (mono), amostras
que recolhi na Ilha da Infância. São objetos de propriedade particular16”. A
cobiça de Nelson – um magro disfarce caricatural do capitalismo americano
– transforma o sobrenatural em uma propriedade particular.
  Suas premiadas posses – as mulheres em miniatura, que são cópias uma
da outra – compõem uma estranha referência aos objetos que começaram
a ser produzidos em massa no Japão em 1959, que eram importados de
volta para o Japão, vindos dos EUA nos anos 60: bonecas Barbie. Apesar de
as Shôbijin terem a altura de 66 centímetros na história original, no filme
elas foram encolhidas ao tamanho da Barbie (30 cm). Em meados de 1960,
a economia japonesa tinha atingido um nível em que era possível comer-
cializar para meninas pré-adolescentes bonecas de três dólares, ainda que
em um número limitado. Nelson reivindica sua posse sobre as mulheres-
miniaturas da mesma forma que as meninas gostavam de suas bonecas
como um objeto de propriedade particular. Em 1964, a Barbie começou a
enveredar para o exotismo. Ela começou a viajar para fora dos EUA, e vários
de seus destinos incluíam o Havaí e o Japão17. A boneca em vestimentas
exóticas era um objeto premiado para as jovens consumidoras femininas do
Japão dos anos 6018. A Barbie, assim como as duas sacerdotisas de Mothra,
incorporava o desejo pelo exótico, diferente daqueles oferecidos de forma
acessível pelo sucesso19 econômico do Japão.
  Além disso, como a boneca, com seu corpo sexualmente sugestivo, as
duas mulheres em tamanho-miniatura revelam o segmento econômico das
fantasias sexuais dentro dos EUA, Japão e o exótico Sul. Apesar de o corpo
não estar tão exposto quanto o das nativas, a justaposição entre o canto
delas e a dança/prece nativa demonstra o apelo sexual subentendido das
duas figuras. A história original antecipa claramente a problemática da
sexualidade através do comentário de Nelson:
  “Você está afirmando que essas criaturas são seres humanos?
 Se elas são mulheres humanas, você deve casar-se com uma delas.”
  Um riso perverso apareceu no rosto de Nelson.
  “Um japonês e uma mulher-miniatura!”20

82   Além da perversidade aparente nos comentários de Nelson, eles


astutamente apontam para o desejo sexual que direciona a economia das
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

fantasias. O tamanho das mulheres-miniatura, assim como o tamanho da


Barbie, é meramente um dispositivo para disfarçar a óbvia tensão entre a
fascinação sexual em relação ao outro e a sua negação, sob o aspecto da
inocência infantil.
  Ao contrário da história original, a versão em filme deseja ansiosamente
demonstrar essa tensão sexual, ao passo que as cenas de primeiro plano se
tornam um mecanismo voraz que modifica cruelmente o exótico. Ainda que
crítico dos testes nucleares dos EUA no Pacífico Sul, o filme exerce uma crítica
mais didática em alvos mais generalizados a respeito a ganância humana.
O personagem Roshirikan Peter Nelson, que reivindica as sacerdotisas de
Mothra como sua propriedade privada, seguramente põe a culpa fora do
Japão, sugerindo ser uma presença inominada – o capitalismo americano
– a causa de todos os males. Nelson força as mulheres a atuarem no palco
diante do teatro lotado, motivado pela pura ganância, a qual, contudo, irá
eventualmente trazer sua própria desgraça. Através do seu canto, as mulheres
comunicam-se telepaticamente com a coisa, que por acaso aparece em Tóquio.
Embora Nelson escape do Japão para Roshirika com o Shöbijin, Mothra, que
se transformou em um bicho-da-seda gigante, segue as suas vozes telepáticas
para a cidade de Roshirikan. A história termina quando a polícia de Roshirika
mata Peter Nelson (o assassino não é identificado na história original), e as
duas mulheres se reúnem em segurança com Mothra. A excessiva cobiça de
Nelson torna-se uma ameaça, mesmo para a sua terra natal.
 Em sua fuga forçada ao monstro perseguidor, ele atira contra a polícia, que
revida e o mata. O Monstro que viajou do Sul para o Japão, e por acaso para
Roshirika, retorna para o Sul, uma vez que os Roshirikans se ocupam de seus
próprios problemas. Com a morte de Nelson, a ânsia capitalista é contida de
maneira segura, até ser completamente eliminada do Japão. Agora, livre do
poder externo e corruptor da ganância excessiva, o Japão se permite sonhar
mais uma vez com seus laços primordiais e incorruptos com o Pacífico Sul.
Mothra oferece uma contra-narrativa do modus operandi do Japão dos anos
60 – o crescimento econômico.
83

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

XXXXXXXXXXXX
  Apesar de o filme ser ávido em mostrar uma mensagem didática e antico-
mercial, as imagens que se projetam na tela firmam-se em sua conduta de
alta moralidade. Por exemplo, a seqüência das duas mulheres apresentando-
se no palco mostra o contraste entre o mundo moderno e corrupto – EUA e
também o Japão – e o mundo sagrado da ilha. O trabalho de câmera, contudo,
84 ironicamente revela a complicada relação entre esses dois mundos: o desejo
do mercantilismo moderno começa a penetrar na identidade dos nativos. A
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

seqüência inicialmente revela os poderes misteriosos das duas mulheres,


e finalmente revela a intenção malévola de Peter Nelson de explorá-las
comercialmente. Após uma breve introdução de Nelson, as mulheres são
trazidas para o centro do palco em uma carruagem dourada em miniatura,
que desce por um cabo preso do lado oposto do auditório. Nelson, por sua
vez, posiciona-se junto à orquestra e surge como se estivesse em um barco.
As mulheres, que estão vestidas como fadas, usando coroas, chegam ao
palco, que simboliza uma ilha tropical. Uma vez que Nelson abre a porta
da carruagem dourada, as mulheres emergem cantando. Embora atuem
no reino comercial dele, elas põem seu projeto em prática secretamente
através das suas canções²¹. Dois personagens japoneses, o jornalista e o
lingüista, que anteriormente participaram da expedição científica, percebem
os poderes sobrenaturais das mulheres durante a apresentação. Logo após
obterem a informação de que Nelson financiara em segredo toda a expedição
e se aperceberem de que desde o início fora uma empresa capitalista, eles
reconhecem que as mulheres estavam, realmente, comunicando-se com
Mothra na Ilha da Infância através de suas canções. Closes das expressões
aterrorizantes em seus rostos anunciam a gravidade de sua descoberta: o
poder das mulheres de alterar o perfil do mundo moderno. A descoberta do
esquema secreto no mundo moderno, envolvendo o acordo financeiro de
Nelson, conduz à revelação das ligações misteriosas que as mulheres detêm
com a ilha. O mundo moderno, pontuado pelo negro segredo capitalista da
ganância desmedida, contrasta com o mítico submundo da Ilha da Infância,
para a qual as mulheres mandam uma mensagem secreta. Indo além do
verniz capitalista, o lingüista e o jornalista escavam até o sentido puro,
natural, da canção.
  Apesar de o filme insistir na diferença qualitativa entre os dois mundos,
a seqüência também oferece lances visuais que marcam a dominação do
ambiente comercial moderno. Dos closes no jornalista e no lingüista, a
câmera passa para uma panorâmica da Ilha da Infância. Um encontro gráfico
entre o palco e a visão da ilha – que a linha da água posiciona no enquadra-
mento como se ela também fosse um palco – assegura a suave transição entre
o palco e as cenas da ilha. A câmera então corta para as cenas da caverna
onde o ovo da Mothra está encravado. Os nativos seminus, com seus cabelos
descuidados, bebem um líquido de aparência estranha e produzem um som
que acompanha duas dançarinas, envolvidas em uma dança sexualmente
sugestiva. Os nativos estão lá para articular o que mulheres do tamanho
85
da Barbie meramente insinuam – atração sexual. Nota-se também que as

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posições da câmera são idênticas nas duas longuíssimas tomadas do palco e
nas da caverna. No teatro, a câmera parece estar colocada no topo da seção
do balcão voltada para baixo em direção ao palco, enquanto assume um
ângulo idêntico visto de cima para baixo em relação à atuação dos nativos
em sua encenação na caverna. A despeito das mudanças de parâmetros, as
passagens filmadas assumem uma posição idêntica em relação aos atores
em cada espaço: os espectadores são visualmente transportados para a cena
da Ilha da Infância para consumir a dança e a música exótica dos nativos.
A contemplação dos modernos observadores é parte integral do espaço das
suas performances rituais. Enquanto questiona o esquema comercial de
Nelson pelo despertar de Mothra, a performance das minúsculas mulheres
e dos nativos, oferecendo prazeres visuais contemporâneos, dão suporte
para o fluxo de fantasias capitalistas. Como acontece em diversos locais
de atrações turísticas, os nativos exibem suas personalidades exóticas para
admiradores modernos.
  Em contraste com o exercício literário de Hakkô yôsei to Mosura, a
versão filmada de Mothra, como produto de uma iniciativa comercial muito
maior, ressoa mais profundamente com a transformação comercial que está
ocorrendo neste momento específico. Enquanto mantém o anticomercial-
ismo da história original, o filme visualmente representa o outro na forma
de imagens muito mais consumíveis. Fantasias coloniais da pré-guerra sobre
o Sul retornam no pós-guerra japonês, em uma nova forma de anticapital-
ismo. Mas no fim, tais fantasias – que se tornam uma forma de produto no
filme – fluem suavemente dentro dos movimentos globais de produtos de
consumo nos anos 60.

Godzilla vs. Mothra, ou a História de um Tipo Diferente de Passado


 Mothra retorna ao Japão no filme de 1964 Godzilla vs Mothra. Por volta
daquele ano, as políticas de crescimento econômico do próprio Japão estavam
devidamente estruturadas, contribuindo para a construção de um formidável
sistema capitalista. O sucesso das Olimpíadas de Tóquio de 1964 foi apenas
um exemplo do miraculoso crescimento econômico dos anos 60 no Japão,
sob os auspícios da política econômica do Partido Democrata Liberal.
 Enquanto o Sul permanece como uma contra-entidade para a moderna
sociedade capitalista no Godzilla vs. Mothra, não existe nem ao menos um
personagem de Roshirikan que absolva o Japão da culpa pelo capitalismo.
Ao contrário, aqui os personagens japoneses anseiam gananciosamente pelo
86
público, declarando que está profundamente ligado à sociedade japonesa.
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

A tensão internacional guiada pela devastação nuclear da Ilha da Infância


recebe um tratamento secundário. Além disso, nos três anos a contar do
filme original, Mothra parece ter crescido menos hostil ao mundo capitalista.
Apesar de manter uma visão crítica sobre a sociedade japonesa, o monstro
nunca incorpora um comportamento destruidor, e, com efeito, termina
defendendo o Japão da ameaça representada por Godzilla.
 As cenas de abertura de Godzilla vs Mothra primeiramente estabelecem a
afinidade de Mothra com a sociedade de consumo japonesa. Após ter sido
varrido por um tufão, o ovo gigante de Mothra é levado pelas correntes em
direção ao Japão. Uma vez que alcança Shizugaura, um local fictício perto de
Nagoya, um empresário japonês o compra da associação dos pescadores locais,
no intuito de promovê-lo como a atração principal de um futuro parque temático.
(Fique enfatizado que Yaganita achou seus cocos na borda da península de
Atsumi, perto da fictícia Shizuragaura). Foi atribuído ao ovo gigante um valor
monetário de 1.224.560 yens, baseado neste cálculo do empresário: que o
ovo gigante equivale a 153.820 ovos de galinha, e um ovo de galinha valia 8
yens (na verdade o total deveria ser 1.230.560 yens). No mundo maravilhoso
do capitalismo, até um ovo de um monstro tem seu preço.
 Embora as sacerdotisas cheguem ao Japão para solicitar que o ovo
retorne à Ilha da Infância, suas implorações caem nos ouvidos surdos
do empresário e seu financista. Uma vez que encontram ouvintes mais
disponíveis às suas argumentações, as mulheres avisam que Mothra sairá
do ovo e não representará perigo, mas irá procurar por alimento e então
poderá machucar gente inocente. De repente, Godzilla acorda em uma terra
próxima destinada a um projeto de desenvolvimento industrial. O monstro
destrói parte da área de Yokkaichi conhecida como o coração da indústria
química japonesa, que é um setor-chave para o crescimento econômico
japonês nos anos 60, e então se volta para a busca do ovo. Em contraste
com a bem preparada história em torno da Mothra, o filme não apresenta
as razões pelas quais Godzilla aparece nesse momento específico. O ovo
da Mothra segue o kaijü no michi para alcançar a costa japonesa, ao passo
que Godzilla, já no Japão, literalmente espera nos subterrâneos da área
industrial uma oportunidade para emergir.
 Numa busca desesperada de conter Godzilla, três japoneses visitam
a Ilha da Infância para solicitar ajuda a Mothra. Quando chegam à ilha
desolada, são capturados e levados para o interior da caverna por um grupo
de nativos. Apesar de os personagens japoneses estarem vestindo roupas
87
protetoras quando desembarcam, as cenas no interior da caverna mostram

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o que vestiam por baixo: roupas luxuosas. Os dois homens trajavam terno e
gravata, e a mulher, fotógrafa, aparece de chapéu e num vestido moderno²².
Eles vieram à ilha vestidos com alta moda, como se estivessem visitando
um resort de alta categoria. Suas vestimentas talvez antecipem o que será
do futuro da ilha, bem como o de outras ilhas, tais como Guam, Saipan e as
ilhas do Havaí: o destino favorito dos turistas japoneses,
 Os nativos recusam o pedido dos visitantes, afirmando que o egoísmo do
mundo moderno levou a ilha à destruição. No entanto, ouvindo as implorações
da mulher para que salve vidas inocentes, Mothra concorda em combater
as forças destruidoras de Godzilla, tornando-se então o defensor Japão.
A rivalidade entre Mothra e Godzilla é motivada pelas diferentes atitudes
de ambos no passado dos anos 60 no Japão. Mothra – a sedosa entidade
moderna – retorna ao Japão como uma incorporação do passado idealizado,
alimentando o nostálgico desejo de recuperar o que já foi perdido.²³ A Ilha
da Infância serve como referência metafórica para o Sul, onde o passado
inocente está preservado do consumismo japonês. Similar às ilhas do sul de
Yagagita, a Ilha da Infância e seu monstro fornecem uma âncora simbólica à
nação que experimentou mudanças históricas radicais. Mothra decide então
combater o monstro que ameaça a prosperidade econômica japonesa, com a
condição que o Japão considere o valor simbólico do Sul.
 Por parte dele, Godzilla incorpora um tipo diferente de passado, não
aquele domado, do tipo comercializado, mas o passado de suas condições
de trabalho pré-industrial e que persistiu, apesar do novo regime e de uma
economia de grande crescimento. A superfície escura do corpo do monstro
ressoa como as memórias de uma vida muito dura, comum no Japão rural até
a metade dos anos 60. A foto das mãos de uma fazendeira de 21 anos, tirada
em 1963 por Minami Yoshikazu, mostra vivamente a dureza da época dos
anos 60 na agricultura (figura.6.5). Embora a mulher fosse casada e fizesse
parte de uma família de fazendeiros em Chichibu, provida de bens materiais,
ela mesma tornara-se um objeto de adorno da casa onde vivia. Uma das
seções do ensaio fotográfico de Minami sobre a vida feminina em fazendas
aparentemente carrega o subtítulo “Ferramentas vivas”.²4 A dona das mãos
trabalha na produção de seda em Chichibu, onde tem a mais baixa posição
na casa de seu marido e na comunidade local. A superfície rachada em suas
mãos demonstra a monstruosa realidade de 1963 no Japão.
 Mesmo sob o novo regime comercial dos anos 60 no Japão, essa realidade
persiste. Por baixo da casca brilhante dos bens de consumo estava a mão-
88
de-obra de baixo valor. As duas fotos de Hanabusa Shinzô lançam um olhar
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

sobre as condições de trabalho nas indústrias de bens elétricos do Japão


em 1963 (fig. 6.6 e 6.7). Com os argumentos convincentes de Simon Partner,
as ágeis mãos das trabalhadoras femininas, quase sempre empregadas
em condições de trabalho abaixo do razoável, eram essenciais para as
condições de crescimento da economia do Japão nos anos 50 e 6025. A
afinidade visual das duas imagens das mãos, de Minami e de Hanabusa,
atesta a imensa dimensão da produção industrial dos anos 60 no Japão. As
mesmas mãos que alimentavam bichos-da-seda, agora montam transistores
em barracões. O monstro que despertou em 1964 pode ser mais bem inter-
pretado como uma das últimas expressões que a industrialização do Japão
deseja conciliar, corpos e coisas em suas práticas laborais. Se bichos-da-
seda podem ser monstruosos, então corpos em dor – as mãos que os criam
– devem ser certamente monstros. Levantando de seu sono nos subterrâneos
da industrialização, Godzilla está determinado a eliminar o ovo de Mothra
de suas glórias comerciais e reduzi-lo novamente a algo insignificante – um
ovo de bicho-da-seda.
 Outra referência histórica feita pelo filme sugere uma pequena diferença
para o sentido do ovo. Tendo aprendido no meio empresarial a explorar co-
mercialmente o ovo gigante, o fotógrafo Yuri faz um comentário: “Ele está
tentando torná-lo (o ovo gigante) em um ‘kin no tamago’ (um ovo de ouro).”
No inicio dos anos 60, a frase kin no tamago era amplamente utilizada para
descrever os jovens do interior em busca de trabalho nas cidades após a
sua graduação no ginásio. O rápido crescimento da economia e as grandes
mudanças nas estruturas industriais criaram uma demanda, para as cidades,
de jovens trabalhadores não treinados. Ainda que tal condição fornecesse
um escape das duras condições do trabalho no campo (as mulheres con-
quistaram outras opções além dos casamentos dentro dos patriarcados
agrários), os jovens recrutas tinham que enfrentar trabalhos inferiores e
condições de vida subumanas – semelhantes àquelas de pré-guerra no Japão
– em lojas de familiares e fábricas de pequena escala. Os empregadores, por
sua vez, adoravam esses jovens trabalhadores como produtores de dinheiro
em forma de ovos de ouro, pouco havendo de dourado em suas vidas na
cidade. Godzilla surge talvez para acelerar a imagem apresentada dos jovens
trabalhadores”. 26
 As imagens fantásticas e quase divinas fazem com que Mothra contraste
agudamente com o mercantilismo e a ganância do pós-guerra que o Japão
abraçou. Ainda que o ovo da Mothra esteja fechado e encapsulado na
89
incubadora da construtora do parque temático, o passado nostálgico que o

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objeto incorpora está profundamente enraizado na economia capitalista de
pós- guerra no Japão. Como um emissário das trevas, do passado decadente,
os desafios de Godzilla são mais astutos, comercializando as imagens do
passado. (Esta foi a última vez que Godzilla atuou como uma força maligna,
até o seu retorno na versão de 1984 em Godzilla). O rei dos monstros prepara-
se para matar o empresário oportunista e seu criador, e ainda destruir os
equipamentos do parque, e então destruir o valor monetário do ovo. Ele
planeja também matar a Mothra em fase madura – uma imagem na forma
da Mothra – que voou da Ilha da Infância para defender o povo japonês. Mas
Godzilla é incapaz de quebrar a casca do ovo gigante. E o monstro recebe
mais do que ele pediu: duas larvas surgem da gema do ovo e aprisionam
em um casulo de seda o assustado Godzilla. E no final, as larvas da Mothra
o transformam em algo semelhante a elas – um casulo. As modernas
divindades do Sul exótico acabam sumariamente com o rei dos monstros.
Ele vai embora, a despeito de a sacerdotisa de Mothra avisar que as larvas
dela não destruirão nada no Japão, enquanto silencia o grito desesperado
contra o desenvolvimento industrial e comercial.
 Graças a Mothra o Japão do pós-guerra reunifica-se com a sua própria
problemática do passado ainda que já em uma forma comercializada. Mesmo
sendo originário de uma ilha do Pacífico Sul, o monstro desempenha seu
papel dentro do drama puramente doméstico japonês dos anos 60. Godzilla
vem do submundo japonês para representar o passado desprezível que
assombra a economia industrializada japonesa. A história que o monstro
tenta contar-nos é por definição sem sentido: somente ruge, diante de uma
batalha que ele não tem como vencer. Em 1954, Godzilla atuou em outro
aspecto do passado desprezível – a memória da guerra – e cuidou de atingir
milhões de memórias. Em 1964, ele foi relegado a ser um acompanhante de
uma mariposa gigante, que alegremente se embebe em nostalgia. O rei dos
monstros aparece no filme somente para ser colocado e usado de uma forma
humilhante. No mundo fora do cinema, Godzilla sai de seu casulo, por assim
dizer, na forma de brinquedos de vinil e metal que circulavam nos anos 60
no Japão. No final, aquele monstro dos anos 60 do Japão transformou-se
em mais um fluxo de capital e bens que transcende as fronteiras nacionais
do Japão, um fluxo que facilmente interpreta monstros em brinquedos de
criança e eventualmente em itens colecionáveis ou portadores de nostalgia.

ALEGORIA DE UM MONSTRO COMEDOR DE DINHEIRO


90
 A derrota de Godzilla não encerra a leva de monstros criados nos anos
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60. Um monstro adorado, que emerge de seu casulo em 1966 para um


seriado aclamado da TV, Urutura Q (Ultra Q), é literalmente escravizado pelo
consumismo. Kaneda Kaneo, um menino obcecado por dinheiro (considere
que kane significa dinheiro em japonês, e seu nome incorpora sua paixão)27,
um dia encontra um casulo do tamanho de um punho, que faz barulho de
moedas quando chocalhado. Na casa de Kaneo, o casulo cresce até ocupar
todo o quarto. Após ter sido sugado para dentro do casulo, Kaneo emerge no
próximo dia pela manhã como um monstro comedor de dinheiro, Kanegon.
Apesar de sua aparência grotesca, o monstro do tamanho de um homem não
faz mal a outros humanos. Mas para sustentar-se deve continuar a comer
dinheiro. A registradora em seu peito continua a registrar à medida que ele
come, mas começa retornar à medida que começa a ter fome. Ela não pode
chegar a zero: ele tem que comer dinheiro o tempo todo, senão morre.
 A personalidade de Kaneo, que permanece intacta dentro do Kanegon,
tenta desesperadamente reconquistar a sua forma humana. Nos episódios,
os adultos estão com medo do monstruoso efeito sobre o consumismo nos
humanos (seus pais lhe avisaram sobre este perigo antes que Kaneo se trans-
formasse em um monstro) e ficam chocados ao ver Kanegon; no entanto,
seus jovens amigos o tratam de uma forma não gentil do mesmo modo que
o tratavam antigamente. Eles percebem quão pouco dinheiro possuem para
alimentar o amigo, e tentam torná-lo uma atração, e assim levantar fundos
para alimentá-lo. Diferentemente dos adultos, as crianças adaptam-se sem so-
bressaltos à estranha realidade econômico-monetária. Elas são como nativos
dentro de um Japão de sociedade consumista com seu próprio monstro anti-
heróico. Seu lugar de encontro – habitat – é em um grande espaço aberto que
parece ter sido criado para uma construção de larga escala. É um santuário
temporário no meio da névoa da explosão da economia japonesa. Os
nativos desse espaço temporário também são marcados como transgressores
– uma vez que não temem Kanegon. Contudo, seu habitat é constantemente
ameaçado pelo mundo externo dos adultos. Aí eles encontram arqui-inimigo,
os operários das duas construções, que constantemente os ameaçam com
seus buldozers monstruosos. Da mesma forma que os nativos da Ilha da
Infância o foram, as crianças são tratadas pelas figuras adultas com ameaças,
paradigmas do desenvolvimento econômico.
  O Sul foi consumido pelo apetite voraz do capitalismo japonês. E
desaparece caladamente da tela o exótico exterior. Esse exterior é eventu-
almente sugado para o espaço externo, de onde chegam muitos monstros
91
dentro da série Urutura Q e mais tarde, filmes de monstros de Tôhô. Neste

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episódio específico, as crianças caminham por entre os interstícios da in-
dustrialização do Japão e são substitutas dos inocentes nativos do Sul. Elas
são nativos profundamente envolvidos dentro do capitalismo japonês do
pós-guerra os quais, apesar de tudo, se mantêm atados à tradição: como
solução, eles consultam um adivinho que responde que Kaneo irá retornar
a sua forma humana quando o seu líder (bigeoyaji) for libertado das mãos
de seus arqui-inimigos. Uma comédia de pancadaria de dois trabalhadores
de construção acontece, e as crianças têm uma pequena vitória ao atirar
um homem de cabeça para baixo. Elas são agraciadas com o poder de
reverter o efeito do mercantilismo, e Kaneo volta à sua antiga imagem. Em
casa, contudo, ele descobre que seus pais se transformaram em Kanegon, a
despeito de seus próprios avisos. A sua metamorfose assinala a hipocrisia
dos adultos desaprovando o mundo comercial.
  Kanegon já não é uma caricatura do pós-guerra japonês em busca da
prosperidade. O monstro aparece na forma humana sem nenhum poder
espetacular para rejeitar o que se passa nos anos 60 no Japão. O episódio
Urutora Q arrebanha crianças e suas culturas como uma última esperança
contra o mundo adulto, que por sua vez abraça totalmente o consumismo. No
final, os pais de Kaneo incorporam o consumismo desmedido, e as crianças,
com sucesso, trazem Kaneo de volta à sua velha forma. Ainda, embora eles
possam ser desonestos dentro da sociedade de consumo, o mundo em que
vivem está rapidamente sendo colonizado pela economia de consumo. A
amizade das crianças está sendo mediada pelo dinheiro: o preço da ajuda
para trazer Kaneo de volta está sendo barganhado entre Kaneo e seu amigo.
Seus amigos não se incomodam de exibi-lo na tentativa de arranjar dinheiro
para ele. Além de tudo, eles crescem assumindo uma forma monstruosa –
afinal, não pertencem eles à geração que adota freneticamente a ostentação
do consumo dentro da bolha de crescimento do Japão que ocorre entre os
anos 80 e 90? No fim, a mensagem otimista, de que as crianças são capazes
de lidar com a ordem econômica dos adultos, não é mais sustentada do que
a imagem do Sul como uma anti-identidade para os anos 60 no Japão.
 Essa mensagem otimista pende mais para um esquema comercial para
atrair mais público. Imagens monstruosas que são passadas na televisão
não são um comentário social sério, como é o caso dos episódios de Godzilla
nos anos 50, são mais propriamente um ímã para o público jovem. Em
sua disputa desesperada dentro da área da televisão, o estúdio Tôhô entra
nesta estratégia e começa a oferecer mais personagens-monstros a partir
92
dos meados dos anos 60. Quando desaparecem das telas as imagens que
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

lembravam a época colonial, os nativos de uma nova sociedade de consumo


emergente constroem seus habitats dentro dos mundos da fantasia da
televisão e do cinema. Enquanto os monstros poderiam oferecer um recurso
para escapar do dia–a-dia da vida dos anos 60, eles vêem marcas altas de
preço. Kanegon – o anti-herói dos nativos – é mais honesto a respeito de sua
necessidade por dinheiro.

AGRADECIMENTOS

Eu gostaria de agradecer Teresa Goddu e Paul Yung pela sua boa


vontade em não somente assistir às cenas-chave de Mothra e discuti-las
comigo, mas também por ler e criticar os rascunhos para este ensaio.
Minha gratidão também vai para Beth Harrington pela sua ajuda em
transformar minha narração em algo mais passível de leitura.

NOTAS

1. YSDUO,Nagayama. Kaijü wa naze Nihori o osou no ka. Tóquio: Chikuma Shobô,


2002. p. 7-8.
2. KUNIO,Yaganita. Yanagita Kunio zenshû 21. Tóquio: Chikuma Shobô, 1997. p. 393.
3. Idem, p. 392-393.
4. OSAMU,Murai. Nantô ideorogi no hassei: Yanagita Kunio to shokuminchi shugi.
Tóquio: Ôtashuppan, 1995. p. 25.
5. NORIO, Akasaka. Umino Seishinshi: Yanagita Kunio no hassei. Tóquio: Shõgakkan,
2000. p. 241-260.
6. YOSHIYUKI, Tsurumi. Banana to Nihonjin. Tóquio: Iwanami Shoten, 1982. p. 5-7
7. Um colega de escola, nascido na prefeitura de Chiba em 1961, uma vez me contou
sobre sua excitação porque seu pai trouxe para casa um abacaxi, quando ele ainda
era criança. Sua família logo se reuniu para tirar fotos em torno dele.
8. KÖSHI, Shimokawa. Shõwa / heisei kateishi nenpyõ. Tóquio: Kawade Shobõ Shinsha,
1997. p. 315.
9. Apesar do preço original de 180 yens, as bonecas podiam chegar até 800 yens no
auge da sua demanda. Takara vendeu 800 mil bonecas de julho a setembro de 1960,
e eventualmente mais de 5 milhões nos dois anos seguinte, inclusive no Sudoeste
Asiático, Europa, e Estados Unidos. SHIMOKAWA. Shõwa/Hansei kateishi nenpyo.
HIROYOSHI, Ishikawa et al. Taishu bunka jiten.Tóquio: Kõbundõ, 1994.
10. Bõken Dankichi foi colocada em edições seriadas in Shõnen Kurabu de jun 1933
até jul 1939.
11. Yano Tõru identifica Bõken Dankichi como o apogeu das perspectivas que
construíam as imagens dos nativos do Pacífico Sul de uma forma negativa (primitivos,
inferiores, preguiçosos, indolentes, não higiênicos, etc.). Yano chama esta perspectiva
de “síndrome de Boken Dankichi”. TÕRU, Yanu. Nihon no nanyõ shikan. Tóquio:
Chõ*o Kôron, 1979. p. 154.
12. Dankichi e seus insulares encontraram dinossauros na ilha. KEIZÕ, Shimada.
93
Bõken Dankichi manga zensh~u. Tóquio: Kõdamsha, 1967. p. 261-265.
13. Idem, p. Ii-iii.

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


14. Em 1959, NHK (Nihon Hõsõkyõkai) levou ao ar uma versão do show de bonecas
de Bõken Dankichi. Contudo, não fica claro o quão próximo da versão original era o
show, evidência do redescobrimento do Sul no pós-guerra do Japão. Ibid., p. 651.
15. O escritor Takeyama Michio de uma maneira similar criou figuras de caçadores
de cabeça quando escreveu sobre a sociedade de Burma de sua imaginação no pós-
guerra. Usando a estrutural correspondência entre Burmanesa, caçadores de cabeça,
para Biruma no Tategoto (Burmese Harp, 1947) e usando Pocahontas como linha de
partida, Masaki Tsunco explora a tropa de caçadores de cabeça na Europa também,
dentro do imaginário japonês tornando-a numa ferramenta literária importante para
entender a relação entre os poderes coloniais. Masaki Tsuneo, Shokuminci gensõ.
Tóquio: Misuzu Shobõ, 1995. p. 1-15.
16. TAIJUN, Takeda, SHIN’ICHIRÕ, Nakamura, e TAKEHIKO, Fukunaga. Hakkõ yõsei to
Mosura, Gensõ Bungaku 39. Outuno, 1993. p. 51.
17. YUKIKO, Chino. Bãb~i kara hajijamatta. Tóquio: Shinchõsha, 2004. p.63.
18. Com design da Mattel e comercializado em uma edição limitada da Barbie em
quimono para o mercado japonês em 1960. Ibid., p. 63.
19. Chino que nasceu em 1955, conta sua experiência e a de seus contemporâneos no
encontro com a Barbie nos anos 60. Ibid., p. 51-60.
20. TAKEDA, NAKAMURA e FUGUNAGA. Hakkõ yõsei to Mosura. p. 45.
21. De acordo com Gojira daijiten, a mulher canta em malaio antigo, pedindo a Mothra
para vir em socorro e restaurar a paz. KÕHEI, Nomura (ed). Gojira daijiten. Tóquio:
Kasakura Shuppansha, 2004. p. 274.
22. A versão de 1992 de Godzilla vs Mothra replica a incongruência entre os caracteres
japoneses para ‘ganancioso e os nativos’ e “primitivo” que aparecem na Ilha da
Infância.
23. É importante destacar que Yanagita escreveu extensivamente sobre Oshirasama, a
divindade da sericultura na região japonesa de Tõhoku.
24. YOSHIKAZU,Minami. Aru sanson no seikatsu – Chichibu. Taiyõ: jul 1967. p. 174-184.
25. PARTENER, Simon. Assembled in Japan. Berkeley: University of California. 1999.
p.193-224.
26. Para narrativas detalhadas dos operários e das condições de vida dos trabalhadores
jovens nas cidades, veja KAZUTOSHI, Kase. Shudan shushoku no jidai: Kõdoscichõ
no . Tóquio: Aoki Shotem, 1997. YOSHIKO Nomose e YAMAMOTO. Kin no tamago 40:
1960. Kendai “kin no tamago”. Tóquio, 2004.
Considerando esta interpretação, o respeitado mestre do mangá Tezuka Osamu oferece
uma leitura fascinante em seus comentários. Ele compara Dankichi aos jovens do
campo que procuram trabalho. Os jovens da cidade, como os nativos na ilhas, eventu-
almente reconhecem a honestidade da juventude e ajudam uns aos outros. Constata-
se que Dankichi foi, apesar de tudo, um ovo de ouro. OSAMU, Tezuka. Sutori manga
e Shimada, pág 671.
27. Urutora Q. TBS: NAKAGAWA (Dir.). YAMADA (Rot.). TOHO,Matoba (Ef. Especiais).
1966. episódio n. 15
94
95
Torres de Tóquio: a Animação
e o Desejo de Varredura
Tom Looser
Professor associado, NYU
96
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos
  “Tokyo Scanner”, originalmente exibido na abertura do complexo de prédios
“Roppongi Hills”, não merece por si mesmo a limitada atenção que recebeu.
  Mas sua ligação com o complexo de prédios Roppongi Hills é bastante
memorável, e talvez mais significativa do que possa ter parecido. A união
do filme com o complexo dos prédios incorpora o que se poderia chamar
de relação da varredura. Esta relação é de uma importância crescente e 97
expressiva para o nosso presente imediato, especialmente no intenso

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


contexto de guerra. É em parte uma relação de tecnologia, e parece quase
inerente a anime – de que a obra de Oshii Mamuro é representativa. Também
tem a ver, no entanto, com subcultura e a classe otaku1, especialmente como
uma questão de economia. E, a esse respeito, é uma relação circunscrita ao
espaço da cidade, como o posicionamento de Roppongi Hills no espaço de
Tóquio. Finalmente, como sustentação estão questões políticas. Eu gostaria
de rapidamente direcionar todos estes níveis da relação de “varredura”,
com algum foco no trabalho de Oshii. Mas começo com Roppongi Hills e o
espaço da cidade.
  Mesmo os relativamente conservadores sociólogos de outrora, tais quais
Max Weber e Georg Simmel, viram a cidade como a forma social que mais
encorajou a inovação e liberdade nas relações sociais. Para Weber, em um
tempo qualquer, a cidade não apenas produzia “uma multitude de estilos
de vida concretamente diferentes”, como também era um instrumento de
mudanças históricas.
  Quero resgatar essa sociologia, e considerar os caminhos em que Tóquio
agora pode (ou não), além de fornecer meios para a produção de diferentes
estilos de vida, ainda abrir-se para o movimento de mudanças históricas.
Esse é um dos motivos para examinar certos aspectos do relativamente
novo complexo das torres de Roppongi Hills. Considerando que aquele foi o
mais dispendioso projeto de recuperação e desenvolvimento da história do
Japão, pode parecer um pouco irracional focar Roppongi Hills para um artigo
sobre anime (animação) e a subcultura otaku. Mas de alguma forma é nesta
contra-intuitividade que estou interessado, e é com ela que desejo trabalhar
– com as possíveis ligações, em outras palavras, entre o mundo avançado
de Roppongi Hills e as reivindicações por diferença, resistência e a reorga-
nização subjetiva que por vezes são associadas a áreas de subcultura como
Akihabara e a categoria social relativamente nova do otaku, por exemplo.
  Se há alguma forma de relação entre a cultura otaku e Roppongi Hills,
podemos levar isto mais longe, e perguntar se existe uma crítica social
inerente ao Roppongi Hills. De algum modo Roppongi Hills poderia ser
imaginado como simplesmente o resultado máximo da cultura de consumo
de produtos avançados, cultura esta que está no Japão desde os anos 80.
Mas o consumismo não é apenas comprar bens, é também uma questão
de comprar dentro de um mundo. Existe, então, algo novo a respeito do
mundo de Roppongi Hills, ao menos dentro do mundo que ele está ajudando
a construir, algo que nos leve a repensar, a nos reposicionar? Ou seja, existe
98
a esse respeito alguma coisa que poderia realmente nos tocar? Eu trato disto
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

em especial como um problema que nos afeta. Explicarei em seguida. E


para definir os meus termos, tomo o movimento em questão a fim de incluir
ambas as questões fundamentais da história: se isso nos conduz a um novo
modo histórico de ser, e a um problema de política: se isto poderia conduzir-
nos ao engajamento com o pensamento e ação política.
  Francamente, eu não estou muito otimista sobre esse tipo de movimento
ser realmente possível em Roppongi Hills. Mas para antecipar meu próprio
argumento, até o ponto em que existe algum tipo de nova ordem artificial,
eu creio que ela será visível em Roppongi Hills tanto quanto em locais mais
óbvios, do tipo de otaku.
  Como comparação, quero começar com uma época anterior e uma torre
anterior. Lá pelos anos 20 a torre Asakusa jûnikai tinha-se tornado o que
podemos chamar de um centro cultural de Tóquio. A jûnikai consistia de
doze andares, cada um dos quais abrigando artigos para vender vindos de
nações do mundo todo; as paredes que levavam ao topo exibiam, entre
outras coisas, retratos da guerra, e no alto havia a vista, que mais tarde
receberia a instalação de novos telescópios. Portanto, o contexto não era
totalmente diferente do nosso próprio: incluía a guerra, consumo global e
novas tecnologias de visão.
  Essas eram condições novas no início dos anos 1900, e pelo menos como
descrito em uma breve história de Edogawa Rampo (“The Traveler with the
Pasted Rag Picture” / Oshie to tabisuru otoko), a torre reuniu todas as coisas
de um modo tal, que apontou para uma nova e moderna estrutura de en-
volvimento e desejo.
  A história de Rampo fala de um homem que, apesar de achar que nunca
tinha sentimentos reais por nada, se apaixona por uma mulher. O problema
é que ele só a consegue observar se for de binóculos, do topo da torre jûnikai
– é somente essa distância que lhe permite realmente ver a mulher, e sentir
despertar qualquer desejo por ela. Isso mostra que a mulher é somente uma
imagem num quadro de pano colado num palquinho embaixo do mercado
de Asakusa. Como se não bastasse, ela é também de uma época diferente,
e ainda de um meio diferente: é uma beldade famosa do teatro, em uma
peça kabuki, e vestida com roupas do início do período moderno Tokugawa.
Nada disso, contudo, representa um problema: lançando mão de um truque,
no qual seu irmão o observa através de binóculos virados ao contrário
enquanto ele fica próximo ao quadro de pano colado, ele essencialmente se
projeta no espaço do quadro. Uma vez lá, tudo se torna claro, e a vida em si
99
parece fluir em total floração. A mulher é descrita em termos tridimension-

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


ais realistas quase eróticos; a relação entre o passado e o presente torna-se
clara, ordenada, e o homem parece entrar em uma conexão direta com o seu
objeto de desejo. O que se iniciou como um mundo enevoado e incerto, agora
se torna claro, ordenado e ativo. O mundo faz sentido e movimenta-se. Mas
só em parte. O homem continua a envelhecer, e sua amada não. Tempo, e
uma satisfação significante real, permanecem fora da vida dele. A história
termina com o irmão segurando-o somente como um quadro de pano colado,
olhando o mundo passar pela janela de um trem.
  Rampo descreve este novo tema de urbanidade como no cinema. A história
começa enevoada, mas à medida que Rampo a vai descrevendo, ela vai
tomando forma como um filme (o céu é descrito como uma tela cinematográ-
fica, e assim por diante). Em resumo, o que Rampo descreveu é uma ordem
de subjetividade baseada numa estrutura particular de desejo. É um mundo
que somente pode tomar forma como um filme, com ordens hierárquicas de
meios claros e organizados (teatro dentro de um quadro, dentro de um trem,
dentro de um filme). É também uma ordem da história: o passado encontra
a sua relação com o presente, distanciado, mas conectado. E tudo isso
instalado num tipo de unidade panorâmica tridimensional – este é um tema
unificado, trazendo história, perspectiva, meios, e vida para uma totalidade
unificada. Acima de tudo, está instalada em uma espécie de distância: o
desejo do homem, e o mundo em si como essa hierarquia clara e unificada,
são elucidados somente quando há distância (o amor somente desabrocha
no homem quando ele olha do alto da torre). É essa distância que mantém o
mundo em movimento, e que confere significado e dá sentido a que a ação
ocorra. Mas como qualquer ordem panorâmica de clareza, unidade e clareza
é que dependem de alienação; tem-se que estar alienado àquilo que se vê
por inteiro. A distância que mantém a continuidade do desejo sempre deixa
também a satisfação desse desejo a uma distância alienada. Assim sendo,
tempo, história e vida, todos emergem dentro de um mundo que privilegia
a unidade, mas que resulta em alienação. Isso é no início do século vinte, o
desejo cinemático: ele leva a uma forma de empate, não de ação.2
  Há mais um ponto que eu gostaria de levantar sobre este começo do
momento de subjetividade urbana, que tem a ver com valor. Na formulação
clássica de Georg Simmel, o tema de moderna urbanidade é baseado na
oposição campo versus cidade. O lado campo é a localização tanto daquilo
que ele chamou de “coração” – de afeto, em outras palavras – quanto de uma
100 economia baseada no escambo (no escambo, o valor dos bens é baseado
nas suas características naturais e essenciais, e não no valor proveniente da
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

troca). A cidade, por outro lado, é o lado da cabeça, ou do intelecto – uma


forma de cálculo racional, que vai bem com o valor de troca do capitalismo.
O principal ponto para mim aqui, é que ao menos segundo Simmel, no
início do século vinte, o tema urbano era constituído por uma clara oposição
entre afeição e intelecto, e pelo valor natural versus o valor de troca. Como
para Rampo, há um certo sonho de unidade, de modo que a forma de valor
coração/escambo funcione como uma interiorização do aspecto urbano, e
os valores da cabeça/troca ajam como uma exteriorização pública, mas a
oposição entre estes dois níveis sempre permanece. Não há como atravessar
de um valor para outro.
  Antes de tudo, Roppongi Hill é indubitavelmente um local novo, quer se
goste dele, quer não. Como se sabe, é o maior projeto jamais desenvolvido
no Japão. Ao construí-lo, Mori Minoru anunciou que ele estava construindo o
novo centro cultural, não somente de Tóquio, mas do Japão. Com Roppongi
Hills, acrescentou ele, Tóquio deverá ter uma nova posição dentro das
“cidades globais” do mundo.
  Sob alguns aspectos o complexo parece ser similar à torre jûnikai do Japão
de 1920. Assim como o jûnikay, é um espaço de alto consumismo globalizado,
e, a julgar pelo curto filme Tóquio Scanner, que foi veiculado com a abertura
do complexo, está também assentado no mundo militarizado da guerra.
  Tóquio Scanner, que foi supervisionado por Oshii Mamoru, em alguns
aspectos parece ser simplesmente uma forma de mapear uma relação entre
o observador, a cidade de Tóquio e o Roppongi Hills como a trajetória central
desse mapa. Ele começa com verificar a “condição presente”, depois a da
rota, e então a do “ último ponto de referência” em Roppongi Hills. Mas
realiza esse posicionamento de maneira interessante. Em parte é simples-
mente uma vista panorâmica em tempo real de Tóquio, que nada difere
do mesmo tipo de vista panorâmica que alguém poderia ter tido da torre
jûnikay. Mas ao mesmo tempo, acima desse panorama cinematográfico, o
filme também adiciona uma tecnologia de varredura militar para identificar
locais. Além disso, o ponto de partida real do filme é uma citação do Gênesis,
no Velho Testamento. Então, à medida que a visão prossegue, a primeira
posição que é tanto identificável como realçada no filme (com um som de
beep) é o templo de Asakusa Kaminarimon e Sensôji.
  Uma grande variedade de outros locais é varrida pela visão, desde um
casal em um barco no parque Inokashira, até o distrito de compras de
Shibuya, trabalhadores em escritórios em altos prédios e assim por diante.
101
  Em parte, isto é similar à descrição de Rampo do Asakusa jûnikai.

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


Roppongi Hills alardeia ter no seu topo, junto com a vista panorâmica, uma
nova ordem de visão tecnológica que reestrutura a forma como as pessoas
se localizam no mundo. Como o jûnikai, carrega na sua ordem das coisas
um modo de visão da história (incluindo Gênesis e o Sensôji), em uma vista
panorâmica totalizadora. Sobremaneira, como o jûnikai, Roppongi Hills
encarna um mundo novo de consumo global, guerra e forma visual.
  Ainda, esse é um local fundamentalmente diferente. Não é o tipo de
edifício moderno que expressa – supõe-se – o arquiteto modernista
grandioso, como ego unitário.
  Assim como o jûnikai, ele deve ter, associada, uma totalidade panorâmica,
mas a vista panorâmica no topo da edificação principal é complicada,
primeiro pela sua réplica no filme “Tokyo Scanner”, e depois, já no filme, pela
superposição de uma ordem eletrônica de mapeamento da vista panorâmica
cinematográfica “real”. Logo, há outras coisas se passando.
  Para tanto foi declarado o primeiro edifício “arteligente” – uma conjunção
da idéia de um edifício inteligente, como uma maravilha científica, e arte –
incluindo a idéia de crítica estética. (Murakami Takashi, sendo um artista que
trabalha contra os limites da arte, foi considerado um tipo de personalidade-
ícone para os edifícios). Existe, em outras palavras, ao menos a possibilidade
sendo levantada de que a preeminência da ciência tecnológica esteja sendo
mediada por tecnologia artística, seja o que for que isso signifique. Seguindo
as mesmas linhas, os folhetos de propaganda enfatizam que os inquilinos ali
não somente terão acesso aos maiores avanços tecnológicos, mas também
serão membros tanto de uma biblioteca privativa própria quanto de museus
públicos de arte. Ou seja, isso não é a simples oposição entre sentimento
e intelecto racional sobre que Simmel escreveu. Há aí uma mistura mais
complicada (Mori chama-a de “projeto de uso misto”).
  Porém muito mais importante, ao menos para mim, é a idéia da varredura
expressa no filme Tokyo Scanner. Se o filme definiu a ordem das coisas no
mundo da torre jûnikai de Rampo, então acho que podemos considerar
a varredura como a tecnologia definitiva do mundo de Roppongi Hills de
Tóquio. Por que Mori e Oshii Mamoru escolheriam “personalizar” seu edifício
realçando a varredura?
  Menos que uma questão do material e meio específicos – embora a tecnologia
seja ainda importante – esta varredura é um conjunto complicado de relações.
  Uma varredura é, primeiramente, uma maneira particular de organizar as
informações, e mapear ou organizar alguém, sua própria posição dentro de
102
um mundo mapeado. Isto é evidente no filme de Oshii. Mas não é necessaria-
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

mente apenas uma questão de mapear a posição numa ordem singular de


espaço, mesmo que assim possa parecer. É também uma questão de modulação
da ordem de um conjunto de coisas para outro conjunto. Alguém poderia
pensar, por exemplo, no sistema de varredura do scanner do seu próprio
computador, que poderia tomar uma fotografia analógica, ou um negativo de
filme, para armazenamento em espaço digital de seu equipamento. Ou pode
querer varrer os efeitos sonoros desejando transformá-los em um jogo de
cores. Com certa semelhança, a varredura militar pode varrer as paredes de
um edifício, ou espaço de uma cidade (ou do globo terrestre), para identificar
a posição de pessoas específicas e então localizá-las dentro de um banco de
dados eletrônico. O valor da varredura, por estes termos, é a habilidade de
executar funções desconexas – “de saltar sobre as disparidades”, e mover-se
através de mundos. Transformação é então parte da relação de varredura,
como de uma forma analógica para uma forma digital. Pode-se também
imaginá-la como uma relação econômica, como, por exemplo, no ímpeto
econômico de fazer sucesso através de uma história de mangá (história em
quadrinhos dentro de uma visão japonesa) e transportá-la para um formato
de animação, e depois então talvez fazer disso tudo um romance – isso pode
ser imaginado como varredura de um em direção ao outro.
  Assim, talvez o ponto mais importante dessa relação de varredura seja que,
em primeiro lugar, implica em movimento através de diferentes ordens (ou
diferentes mundos), e em segundo, que os valores e desejos de uma varredura
estão precisamente na modulação ou movimentos de um mundo a outro.
  Além do que, aquele movimento através de ordens e mundos está onde
emerge o desejo no mundo da varredura. A varredura quer transformação.
Poder-se-ia dizer o mesmo sobre ela do ponto de vista econômico: o valor
real não repousa em, por exemplo, um bom mangá por si mesmo, mas
em sua habilidade de transformar-se em uma animação, e então em um
livro, e então em um filme, e assim por diante. O valor está na modulação.
Isso ajuda a explicar a popularidade repentina de um filme chamado A
Scanner Darkly (baseado em um romance de P.K. Dick), que tinha uma
exibição planejada para o Lincoln Center de Nova York, antes mesmo de
ter sido lançado. O filme é feito com um sistema avançado, rotoscopia, que
em si é uma tecnologia de varredura, sobrepondo animação a um filme de
ação ao vivo original. Como no caso do filme A Scanner Darkly, ele levanta
a questão de por que importar-se com acrescentar mais uma camada de
imagens? Por que não utilizar somente o filme de ação ao vivo original? É
103
porque o nosso mundo, e os valores do nosso mundo – para o melhor ou

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


para o pior – repousam nessa modulação.
  Assim como em grande parte da cultura associada com a animação, aqui
também sentimento transforma-se em terreno crítico da relação. Por exemplo,
no tipo de tecnologia que varre um som e produz cor, ou até mesmo na
relação de uma versão animada de uma história que muda radicalmente
a versão original de um mangá, não há entre as duas uma clara relação
intelectual. Se há algo que as conecta, como sendo parte da mesma coisa,
é mais um sentimento afetivo, até mesmo atmosférico que propicia alguma
continuidade entre esses níveis da existência.
  De forma ainda mais importante, o sentimento é que permite que
a avaliação ocorra através dos mundos, e, no entanto, que o sentido
desabroche. Ou seja, sem sentimento, não se poderia dar uma olhada em
uma tela colorida de um som e dizer: “Gostei disso — é bom”. E uma vez
que se tenha a habilidade de ver o sentido através de diferentes mundos,
e fazer avaliações sobre eles, tem-se um tipo de conexão ética – e tem-se a
habilidade de tomar uma atitude política.
  De muitas maneiras, a cultura otaku agora parece negar tudo isso, e
proclama que de um jeito ou de outro ela abandonou esses tipos de desejos.
A mudança do Shinjuku para Akihabara, e do ato físico do amor do setyoku
para as fantasias particulares do moe, tudo isto é parte da afirmação de que
de alguma forma os otaku estão recuperando a habilidade de produzir-se e
recriar-se, precisamente pela retirada dos desejos capitalistas de continuar
comprando e de continuar mudando com os caprichos da alta moda. Um
tipo de compartimento próprio em Akiba. Se for esse o caso, então não
deve existir nenhuma relação entre otaku em Akihabara e os criadores de
moda em Roppongi Hills.
  Varredura pode também ser analisada como um tipo de relação social,
ou uma ordem de subjetividade, de formas tais que são utópicas. A idéia de
uma pessoa ou uma identidade ser resultado de transformações contínuas
e camadas de diferença, vai contra a ênfase primordial no fechamento e
totalidade e fixidez rígida que se pode observar mesmo no mundo cinemático
sobre o qual Edogawa Rampo escreveu. Ao invés disto, o mundo da varredura
é aberto, e aberto a potencialidades, sempre em processo de mudança. Não
tem hierarquias. Ciência e arte podem trabalhar entrecruzadamente, sem
contudo uma ser mais “real” do que a outra. O tema do mundo da varredura
não pode, no entanto, ser um assunto cartesiano planejado nos bastidores,
buscando encontrar a verdade e a falsidade em uma posição absoluta e fora
104
de contexto. É um mundo livre de hierarquias rígidas de poder, e livre das
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

fortes restrições de identidade.


  Esta visão do mundo, com as identidades posicionadas entre os sempre
mutantes e diferentes aspectos da vida, é comum em algumas das animações
mais influentes. Em Serial Experiments: Lain, por exemplo, não somente a
existência de Lain se expande do dia-a-dia orgânico para dentro do mundo
dos cabos eletrônicos, mas a sua exata identidade é construída de camadas
da existência, abertas em constantes mutações (religião, psique, amor, etc.).
Além disso, é essa abertura para novos mundos e novos níveis de vida que
guarda a única promessa real de liberdade e ação para Lain. Se há qualquer
possibilidade utópica, ela está na possibilidade de que Lain seja capaz de
fazer a varredura através dessas camadas.
  Oshii Mamoru foi ainda mais claro sobre a crescente importância dessas
condições dentro da nossa vida cotidiana. Isso inclui o uso literal do processo
militar de varredura como ponto de partida de tudo, desde a Trilogia do
Cinema associada aos Red Spectacles (jigoku no banken: akai megane, 1987),
até Avalon, até Tokyo Scanner. Mas para Oshii, esse é também apenas um
meio de tematizar uma relação entre mundos diferentes. Existe, por exemplo,
a idéia mais comum de uma relação entre mundos orgânicos reais e eletrônicos
virtuais, como em Avalon, mas também mais simplesmente uma relação
entre camadas de ser e de posicionar-se no mundo. Sob alguns aspectos, a
Trilogia do Cinema prenuncia a superposição dos modos orgânico e eletrônico
de encarar o mundo vistos em Tokyo Scanner. Como Tokyo Scanner, tanto
Red Spectacles quanto Stray Dog (Jigoku no banken: keruberos), procedem
com um tipo de mapeamento de espaço. Ambos descrevem mundos que
envolvem vigilância, esconderijo, investigação como parte do modo cotidiano
de existência. Mas ao passo que Stray Dog apresenta um mundo luminoso,
orgânico, até mesmo rural, com ação panorâmica lenta, Red Spectacles é quase
o inverso: um mundo escuro, secreto, interiorizado. São como varreduras um
do outro, no sentido de dois mundos que são semelhantes e ainda transfor-
mados. Como apresentado em Red Spectacles, os seres com maior poder são,
portanto, aqueles que podem ver e operar melhor entre mundos.
  Oshii joga com a relação cruzada entre meios diferentes de forma mais
geral, também. Isto não apenas é verdade na escala menor, tal como em seu
uso freqüente de encenações contendo igualmente linguagem visual e planos
de linguagem escrita que varrem as imagens visuais, mas também na escala
maior — afinal, os próprios filmes de Oshii são criados nos dois modos – digital
e analógico –, e usando tanto ações ao vivo quanto animação, de maneira a
105
tentar usar ambas as formas para criar algo novo. Em Red Spectacles as cenas

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


ao vivo de cinema parecem ser um modo de representação que, como para
Edogawa Rampo, somente termina com um marasmo infeliz (as personagens
correm o risco de serem aprisionadas em uma armadilha irreal dentro do
estúdio); para Oshii, também, liberdade parece somente existir dentro da
possibilidade de conectar-se com alguns outros modos de representação – ou
de fazer uma varredura entre eles. Ghost in the Shell, também, não é simples
no que concerne à relação entre humanos orgânicos e cyborgs ou robôs;
trata também de ser possível mover-se ou mergulhar através dos mundos dos
seres de uma maneira produtiva. Possibilidade real ou não, este, contudo,
permanece um tema constante para Oshii, e é muito pouco claro que seja
possível. Oshii não é necessariamente muito utópico.
  Mesmo que alguém ignore as possibilidades utópicas que poderiam estar
associadas a um mundo construído a partir de diversos outros mundos
de seres – como em Serial Experiments: Lain, por exemplo – há mais do
que simplesmente um fascínio por tudo isto. Existe uma fascinação em ser
envolvido no mundo escuro da varredura, com a possibilidade de ver e agir
através de diferentes espaços, e também com o que são, de alguma outra
forma, realmente novos mundos sendo abertos pelas tecnologias militares
de varredura. Pode-se pensar, por exemplo, na possibilidade bastante real
de mapas serem “impressos” em lentes de olhos humanos, permitindo que
soldados possam ter uma visão mais ampla da sua própria localização no
momento. Há um poder real nessas tecnologias, e há fascinação simples-
mente na novidade do mundo que elas abrem. Esse fascínio também faz
parte dos filmes de Oshii. Existe uma verdadeira virtuosidade tecnológica,
tanto em Ghost in the Shell quanto em Avalon, por exemplo, filmes que
misturam tecnologias e brincam com elas. O risco, evidentemente, é de que
o fascínio da varredura não necessariamente transporte o espectador para
uma maneira feliz de ser.
  A infelicidade e os efeitos da varredura também são óbvios. Como mostra
tão prontamente todo o trabalho de Oshii, na nossa era atual a varredura
é talvez acima de tudo uma tecnologia militar. Os efeitos paranóicos das
tecnologias de varredura militar já foram sentidos em filmes mais recentes,
tais como Enemy of State, e agora em A Scanner Darkly. Na forma militar
de varredura, o processo inclui um mapeamento de indivíduos e lugares em
uma rede pré-estabelecida – essa rede eletrônica então serve como uma base
de dados de controle absoluto. Identidades, por isso, são confinadas e presas
dentro de um poder e sujeição de ordem hierarquizada (apenas uma pessoa
106
combina com determinadas impressões digitais, de forma que os militares
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

podem controlar os movimentos dessa pessoa); aqui não há uma relação


aberta entre as múltiplas camadas do ser. De uma maneira abstrata, o efeito
de tudo isso é o reforço de um tema unificado de estilo cartesiano (os militares,
o estado, ou mesmo a corporação), que existe prioritariamente e acima de
todas essas varreduras. Diferença e transformação desaparecem. O mundo
se torna um espaço de cancelas controladas, desde comida até planos de
saúde para viagens (por exemplo, eu não posso obter um desconto na minha
loja local de vinhos, sem usar o meu cartão de identidade emitido por eles,
e cada vez que eu compro um vinho eles por isso sabem onde eu estou, de
que tipo de vinho eu gosto etc.). Varredura desse tipo não é mais confinada
aos limites das fronteiras do Estado; agora todos os setores de ação social
estão nivelados em uma rede de varreduras. Este é um mundo assustador já
descrito em Red Spectacles, bem como em trabalhos posteriores de Oshii.
  Uma organização similar de varredura é parte da estrutura do capitalismo
contemporâneo; capital e os militares são neste caso, logicamente, quase in-
distinguíveis. O capitalismo necessita de divergência, bifurcação e expansão
— isso se vê no desejo de que proliferem animações dentro de mangás, e
então filmes, e então um romance. Portanto para o capitalismo também,
existir significa diferir. Mas mesmo quando o capitalismo precisa daquela
modulação, ele também precisa controlar ou governar o processo. Ele produz
estruturas gerais de controle, como se viu até no sistema de varredura na
minha loja local de vinhos. Estamos sendo varridos para dentro daquela
rede de consumo, estando o banco de dados sob o controle de grandes
corporações. Esta correlação entre militares e mundo do consumidor ajuda a
explicar o persistente vai-e-vem de Oshii entre os contextos de militares e os
de consumo como parte de um mesmo conjunto de problemas. Mesmo em
Red Spectacles, a possibilidade de um pequena estimativa torna-se parte do
mundo contestado de vigilância militar; essa relação é realizada com muito
mais sutileza no seu recente Tachiguishi Retsuden.
  Não apenas estamos sendo varridos progressivamente em um sistema
maior de controle hierárquico, mas agora parecemos desejar isso. Exista
ou não um encantamento para com as técnicas de varredura, nós volun-
tariamente nos permitimos ser varridos para essas redes. Elas nos permitem
comprar vinho mais barato, e supostamente, nos mantêm a salvo quando
embarcamos em aviões.
  Portanto, na sociedade de varredura há um movimento da disciplina
para o controle. Se existe alguma emoção trabalhando, é emoção que flui
107
diretamente para o controle dos bancos de dados militares e corporativos. A

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


emoção agora funciona com autodomínio.
  Um dos perigos mais óbvios desse tipo de mundo de varredura é que serve
como uma nova e mais poderosa forma de controle. Ele nivela e elimina
qualquer conexão para as diferenças reais. Esta é uma das maneiras para
se ver Tokyo Scanner. Tudo no mapa da vida de Tóquio que ele mostra — de
religião e história a namorados num parque e trabalhadores em um edifício de
escritórios – é mapeado em um único banco de dados da varredura militar.
  Ao mesmo tempo — até o ponto em que aquela varredura, com efeito,
implica em diferentes níveis de setores da existência —, sempre há o risco
de que não haja um meio real de trazer tais setores variados para dentro de
alguma forma de avaliação – não há como fazer nada, senão deixá-los como
mundos diferentes, nenhum dos quais sendo mais real do que o outro. Em
certo sentido, como se o mundo se tornasse cosplay, (jogador cósmico no
sentido da abrangência de suas ações, n.t.), no qual não importa a versão
de identidade que tomamos para nos auto-afirmar, ela é boa em um tempo
qualquer, mas não melhor do que a próxima. Neste caso, as diferentes
camadas ou modulações com as quais vivemos são como um jogo de
linguagem cínica e vazia. Esta poderia ser uma crítica ao trabalho de Oshii.
Em Tóquio Scanne, por exemplo, a qual papel se presta a citação do Gênesis,
ou o destaque dado ao Sensôji? Esses elementos reais apresentam diferenças
históricas? Ou são apenas citações relativamente vazias? A mesma questão
poderia ser formulada a respeito das sempre citadas referências de Oshii a
filosofia, ciência e religião em Ghost in the Shell.
  Se este é o caso – se várias camadas de diferenças se assemelham mais
a um jogo vazio de linguagem – então o resultado é um falta de ética, ou
da conexão ética real, entre setores reais de diferenças. Este é o risco do
otaku; sua rejeição ao desejo, sua rejeição ao consumo cotidiano, inclusive a
locais como Roppongi Hills, resulta em parte daquela falta de ética como re-
sponsabilidade. Mas eles ainda fazem parte da mesma ordem de varredura.
Eles ainda fazem parte do mesmo mundo de Roppongi Hills, muito embora
possam dizer que rejeitam o próprio Roppongi Hills.
  Para resumir, existem dois problemas ou duas formas de xeque-mate
que resultam da nossa prática atual de varredura. Em parte, a estrutura de
varredura com que vivemos criou um sistema de sujeição voluntária, no
qual nos entregamos a uma ordem de regra hegemônica e cartesiana. Ao
mesmo tempo, até o limite em que parecem efetivamente existir espaços ou
108 camadas de diferenças com as quais podemos nos identificar, nós o fazemos
de uma maneira tal que produz um ser infeliz e isolado, sem ligações ou
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

comprometimentos. Ambas as condições são parte do mesmo mundo da


varredura, apenas as de otaku em Akihabara, bem como os compradores em
Roppongi Hills, são posições definitivas dentro de um mesmo mundo. São
partes de um mesmo todo.
  Oshii foi somente o supervisor, não o diretor de Tokyo Scanner, e então
talvez não seja justo tomar os elementos mais categoricamente militares deste
filme como representativos da direção que Oshii parece ter encabeçado. Mas
até onde o filme e o trabalho de Oshii tornam claro, a varredura instalou-se
definitivamente agora entre nós. E como mostram Tokyo Scanner e um filme
como Red Spectacles, a varredura nos conduz a um novo tipo de imobilidade
ou aprisionamento de identidade – talvez diferente da imobilidade cinemática
de Rampo, mas ainda assim imobilidade.
  E mais, existe alguma coisa no encontro contra-intuitivo de Tokyo
Scanner com Roppongi Hills de Oshii (e talvez a companhia de Mori), que
pode servir para mover-nos na direção de algum vislumbre de uma crítica.
Como procurei salientar acima, existem dois tipos de crítica que emergem
de uma vez como inerentes à varredura nas relações sociais. Na medida em
que há uma tecnologia abrangente de dominação que aprisiona e confina
identidades, ela clama por uma política de oposição. Por outro lado, é
preciso reconhecer que realmente existem mundos reais de diferenças
lá fora, que talvez se tornem cada vez mais isolados, como os otaku em
Akihabara, que declaram poder controlar e mudar inteiramente suas vidas
por si próprios. É necessário reconhecer que essa autotransformação requer
alguma ligação com a realidade alheia, com a diferença. E isso pode ser só
uma relação ética.
 Como mostram Oshii e Roppongi Hills, se há uma política que pode brotar
desta ordem de consumo e guerra e sentimento, provavelmente ela terá
que trabalhar com a varredura. Isto deveria ser de uma vez uma política de
oposição, e uma política de comprometimento ético e reconexão com aqueles
que diferem de nós.
NOTAS

1 Ver Richard Sennett, ed., Classic Essays on the City. Nova York: Appleton-Century-
Crofts, 1969.
2 Para uma discussão adicional deste, ver Looser, “From Edogawa to Miyazaki:
Cinematic and Anime-in Architectures of Early and Late Modern Japan” em edição
especial de Japan Forum (14:2), London: Routledge, Spring, 2002.
109

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


110

Skyline (11 x 2,5m)


Guilherme Resende
Tokyogaqui, 2008
111
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

112
Guilherme Wisnik
Toyo Ito e Kazuyo Sejima
O nomadismo urbano de Tóquio:
 Por que Tóquio é uma cidade capaz de expressar tão bem o espírito da
contemporaneidade? Inicialmente, deve-se dizer que a cidade é policêntrica
e difusa, e não se organiza da maneira mais tradicional que conhecemos:
a de uma relação hierárquica entre partes (centro e periferia). Característi-
ca que impede a fixação de pontos nodais como marcos estruturadores da
cidade (monumentos, “fatos urbanos primários”), tornando problemático o
113
uso das clássicas metáforas antropomórficas para descrever e analisar o seu

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


espaço, tais como “tecido urbano”, “artérias”, “coração”, “esqueleto” etc. Ao
contrário, parece mais correto entendê-la como um organismo heterogêneo e
pouco hierarquizado, associado de forma mais apropriada aos conceitos de
“rizoma” e “espaço liso”, formulados por Deleuze e Guattari.1 Além disso,
trata-se da maior aglomeração urbana do mundo. Uma megalópole que, ao
ultrapassar a cifra de 20 milhões de habitantes, há mais de uma década,
passou a reunir sozinha uma população maior do que a do planeta Terra
na época da Revolução Francesa2, podendo ser considerada uma espécie de
microcosmo do mundo.
 De fato, a experiência radical de multidão que a capital japonesa oferece
parece conter uma sabedoria profunda no trato com escalas desmedidas:
a vastidão imensa e a miniaturização. Vem daí o forte impacto provocado
pelo filme Tokyo Scanner, do mestre da animação japonesa Oshii Mamoru,
exibido na 5ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, em 2003.
Estruturado pela alternância abrupta entre vistas aéreas da cidade e
mergulhos em zoom sobre detalhes pinçados em meio a um mar de prédios
e de gente – ainda algum tempo antes da popularização do google earth –,
o filme oscila entre o hiper-realismo e a realidade virtual, dando-nos uma
experiência vertiginosa de uma cidade a um tempo real e superlativa, em
que tudo pode ser escaneado.3
 Considerada por muitos a “capital do fin de siècle”, pelo modo perfeito
como pôde encarnar a “maneira pós-moderna”4, Tóquio emergiu a partir
dos anos 80 – com a ascensão econômica do Japão –, como um emblema do
capitalismo generalizado e sem antípodas, prefigurando o mundo do neoli-
beralismo e da globalização perpetuado na década seguinte. Apresentando
uma hegemonia corporativa aparentemente imune aos constrangimentos
sociais, o Japão é dominado, segundo o arquiteto holandês Rem Koolhaas,
por uma “forma absoluta de capitalismo”. O que, em suas palavras, “é algo
que resulta muito excitante: edifícios incríveis sem conteúdo algum, sem
programa, sem ambição social”5, erguidos a serviço apenas do espetáculo
urbano em si.
 Passando à minha experiência pessoal, devo dizer que para quem foi
criança no Brasil entre o final dos anos 70 e o início dos 80, era quase
natural intuir algo desse estado de coisas. Pois Tóquio – ou melhor, uma
idéia fantástica do que fosse Tóquio – era bastante familiar para nós (muito
mais do que Paris, Londres e Nova York, por exemplo, ou do que qualquer
outra cidade fora do Brasil). Por isso, arrisco dizer que ela se tornou um
114
arquétipo mirífico de cidade para a minha geração, que acompanhou de
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

perto os seriados do Ultraman, do Ultraseven e, sobretudo, do Spectreman,


convivendo diariamente com a imagem de uma cidade que era permanen-
temente arrasada por monstros mas que, no dia seguinte, já se mostrava
perfeitamente íntegra, à espera de uma nova demolição (numa reelaboração
ficcional da própria história da cidade, destruída e reconstruída inúmeras
vezes após violentos terremotos e bombardeios).
 Com isso, a cidade ostentava – fantasticamente, e avant la lettre – qualidades
consideradas hoje essenciais para a vida urbana metropolitana: mobilidade,
disponibilidade para mudança, capacidade de auto-regeneração, ausência
total de rigidez etc. Além disso, apresentava o fenômeno do crescimento
urbano caótico e descontrolado sob uma face literalmente monstruosa e, ao
mesmo tempo, excitante. Sim, pois os monstros que aterrorizavam a cidade
nasciam diretamente do lixo, tornando-se quase que extensões biomórficas
daquela Tóquio ficcional que víamos na tela: dominantemente cinza, feita de
edifícios homogêneos e envolta em poluição. Sintomaticamente, assim dizia
uma grave voz em off na abertura de Spectreman: “Planeta: Terra. Cidade:
Tóquio. Como em todas as metrópoles deste planeta, Tóquio se acha hoje
em desvantagem em sua luta contra o maior inimigo do homem: a poluição.
E, apesar dos esforços das autoridades de todo o mundo, pode chegar um
dia em que a terra, o ar e as águas venham a se tornar letais para toda e
qualquer forma de vida. Quem poderá intervir?”
Filmados entre 1966 e 72, aqueles seriados figuravam, na verdade, uma cidade
ainda às voltas com os problemas típicos de um centro urbano industrial:
engarrafamento, contaminação, superpopulação etc. Mas já continham em
germe o princípio lúdico que faz de Tóquio uma metrópole autenticamente
pós-industrial. Vale dizer, uma desorganização eficiente e heterogênea, auto-
regeneradora e não-linear, como o próprio fluxo da informação eletrônica.
Na caracterização feita por Hajime Yatsuka, Tóquio é uma “cidade sem
caráter”, uma “imensa acumulação de edifícios medíocres”. No entanto, é,
paradoxalmente, essa natureza de “patchwork” que faz dela um exemplo
tão vital e estimulante nos dias de hoje. Trata-se, na verdade, de uma
combinação singular entre características pré-modernas da formação da
cidade – uma estrutura urbana apertada e labiríntica, herdada do período
feudal –, e a voracidade do mercado capitalista mais “avançado”, determi-
nando sucessivas reconstruções feitas sem qualquer preocupação histórica
e tipológica, guiadas apenas pela progressiva fragmentação imposta pela
busca de lucro e otimização fundiária. Em resumo, uma megalópole sem
115
centro e sem caráter, que, por isso mesmo, se tornou ícone do capitalismo

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


generalizado e consumista do final do século XX.
 Assim, não me parece gratuito o fato de que a mais radical reflexão sobre
as novas formas de moradia – partindo, evidentemente, de uma reconceitu-
ação das mudanças na forma de vida no mundo contemporâneo – venha,
hoje, dos arquitetos japoneses. Repertório no qual estão incluídos exemplos
despojados e radicais como a “Casa U Branca” (1976, Nakano), de Toyo Ito,
as “Platforms I e II” (1987-1988, Katsuura e Yamanashi) e a “Residência
de Mulheres Saishunkan Seiyaku” (1990, Kumamoto), de Kazuyo Sejima,
a “Naked House” (2000, Saitama), de Shigeru Ban, e a “Casa Moriyama”
(2002, Tóquio), de Ryue Nishizawa. Projetos que foram construídos, mas
que nem por isso deixaram de ser essencialmente experimentais, no
modo como tensionam a relação tradicional entre ordem espacial e vida
doméstica. O que quer dizer que há, evidentemente, uma determinada
concepção de cidade e de sociedade ressoando por trás desses projetos de
residências. Algo que se revela na essência flexível e pouco hierarquizada
desses espaços, bem como na voluntária indistinção entre as superfícies de
vedação e os suportes estruturais da construção, embaralhados visualmente
por planos de diferentes graus de transparência e opacidade que, como
véus, desmaterializam o sólido construído, convertendo-o em um diagrama
abstrato de relações. Tecendo comentários a respeito da progressiva perda
de importância do núcleo familiar na vida contemporânea – cada vez mais
atomizada e movente –, bem como acerca da proeminência da opacidade
na sociedade da informação, Sejima declara o seguinte: “De certa maneira,
aquilo a que aspiro é prescindir de estereótipos passados que definem o que
é uma moradia, para poder começar de novo”.6
 A chave dessa relação entre a radical revisão do espaço doméstico na
arquitetura japonesa contemporânea e uma visão da cidade como um
campo rizomático está dada nos protótipos experimentais concebidos por
Toyo Ito para a “mulher nômade de Tóquio” (Pao I e II, 1985-1989). No centro
da sua reflexão estão os conceitos de “parasita” e de “nômade”, tomados
de Derrida e de Deleuze respectivamente, como os sujeitos por excelência
de um mundo fragmentário e descentrado, em que o aumento geral da
mobilidade – em oposição às instâncias estáticas e tradicionais da família e
do lugar de origem –, correspondem a uma instalação no mundo cada vez
mais fugaz e individualizada, paralela à própria mobilidade do capital no
território em tempos de especulação financeira.
 A pertinência desse ensaio teórico-espacial proposto por Ito, bem como
116
sua relação com o pós-estruturalismo e o desconstrucionsimo, são muito
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

bem analisados pelo arquiteto espanhol Iñaki Ábalos, no livro que discute
os diversos paradigmas domésticos elaborados no século XX.7 Ali, Ábalos
aponta como, nos dias de hoje, o consumo improdutivo é funcional ao
sistema em sociedades afluentes, produzindo cada vez mais esse sujeito
social novo – que Ito metaforizou na imagem da “mulher nômade”, e que
poderíamos enxergar também como, por exemplo, o investidor da bolsa
de valores –, que não cria raízes sólidas no espaço da cidade. Antes,
parece ser um hóspede temporário em sua trama, um parasita hospedeiro
da metrópole. E, no entanto, vem a ser o seu “cidadão” mais legítimo.
Por isso, a casa dessa “mulher nômade” (jovem, independente, ociosa
e consumista), figurada por Ito, é uma frágil cabana móvel, leve e sem
privacidade, contendo apenas um pequeno conjunto de artefatos: um
toucador, uma mesa de telecomunicação e uma cadeira de repouso. Não se
configura, portanto, como um refúgio da cidade, na forma de uma recons-
trução da intimidade doméstica perdida. Mas, ao contrário, como um posto
temporário de observação do espaço urbano.
 Como observa Ábalos, esse novo nômade “não se insere na cidade do
trabalho, do transporte, da família e do ócio, nessa cidade-máquina-de-
produzir em que habita: se as suas barracas se dispõem na cidade, elas o
fazem flutuando, pousando sobre lugares privilegiados, sobre as atalaias
conformadas pelos arranha-céus do centro comercial. Como insetos, ou vaga-
lumes, colocam-se ali de onde a cidade oferece um magnífico espetáculo
de luz e agitação, transformada em uma segunda natureza que convida a
passear e a consumir”.8
 Essa cidade (global, genérica) é, desse modo, protagonizada pelos “novos
nômades”: aqueles que estão nela sem estar, ou que não estão, estando.
Sejam hordas de turistas invadindo os seus espaços, ações correndo no
pregão da bolsa de valores, corporações rentistas que alugam edifícios
e “fogem” ao menor sinal de crise econômica, ou navegantes da internet.
“Tarzãs numa floresta midiática”, na imagem criada por Toyo Ito.9 Eis o
atual paradoxo da especulação financeira, isto é, da geração espontânea
de riqueza no capitalismo tardio, em que, no fundo, a estabilidade global
depende da desarticulação e flexibilização das estruturas locais. Significati-
vamente, a imagem da “mulher nômade de Tóquio” distingue-se radicalmen-
te da figura histórica do burguês, cuja agorafobia (aversão ao espaço público)
alimentou uma fetichização da intimidade como refúgio da cidade. Urbana e
desapegada de bens sólidos, ela aponta para uma outra “elite”, que não mais
117
aquela encastelada em palacetes, e que despreza solenemente o trinômio

Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


Trabalho, Família e Propriedade.

Notas

1. “O rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem general,


sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma
circulação de estados.” DELEUZE,Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo
e esquizofrenia. v. 1. São Paulo: Editora 34, 1995. p. 33. Anti-genealógico, o rizoma é
como um mapa, em oposição à organização axial ou fasciculada da árvore. “A árvore
articula e hierarquiza os decalques (...). O mapa é aberto, é conectável em todas as
suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações cons-
tantemente.” Idem, p. 21-22. “Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra
sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o
rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizoma tem
como tecido a conjunção ‘e... e... e...’”. Ibidem, p. 37.
2. Cf. DAVIS, Mike. Planeta de favelas. In Emir Sader (Org.). Contragolpes: seleção de
artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 192.
3. Ver, a esse respeito, o ensaio de Tom Looser neste mesmo livro: Tokyo towers:
animation and the desire of the scan.
4. Cf. YATSUKA, Hajime. Un mar de signos: Tokio, el desorden de los ochenta. In Ar-
quitectura Viva n. 19. Madrid, 1991. p. 16.
5. KOOLHAAS, Rem. Encontrando libertades: conversaciones con Rem Koolhaas. In El
Croquis n. 53+79: OMA, 1987-1998. Madrid: 1998. p. 25.
6. Sejima, KAZUYO. Conversación con Koji Taki. In El Croquis n. 77[I] + 99: Kazuyo
Sejima + Ryue Nishizawa: 1983-2000. Madrid, 2001. p. 23.
7. Ábalos, IÑAKI. A boa-vida: visita guiada às casas da modernidade. Barcelona:
Gustavo Gili, 2003.
8. Ábalos, IÑAKI. op. cit. p. 154. A reflexão poética e irônica de Toyo Ito não chega
a fazer uma sociologia desse sujeito social figurado na “mulher nômade”. Contudo,
penso que podemos compreendê-la, de certo modo, como o espelho inverso das
tão comentadas “Office-Ladies (OLs)” japonesas: mulheres jovens que moram com
os pais, e realizam trabalhos burocráticos como forma de ocupação temporária
enquanto esperam para se casar. Como não precisam poupar dinheiro, dão origem
a redes específicas de comércio voltadas para um consumo caro e supérfluo. Ver a
respeito OGASAWARA,Yuko. Office ladies and salaried men: power, gender, and work
in Japanese companies. Berkeley: University of Califórnia, 1998.
9. In Ábalos, IÑAKI. op. cit.. p. 157.
Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos

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Estratégias antropofágicas: do tupi-japonês às metamorfoses das cidades e dos corpos


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Três momentos das Artes do Corpo no Japão


Butô e Rose-colored Dance
Tatsumi Hijikata

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Três momentos das Artes do Corpo no Japão
 Não é fácil interpretar corretamente a Rose-colored Dance (Dança da
Rosa Colorida) de 1965, mesmo sabendo-se que ela tem uma posição
importante dentro da história do butô de Tatsumi Hijikata. Naqueles dias,
o butô não era ainda butô. O estilo de dança de Hijikata era indefinido,
sem uma expressão reconhecida. Não havia ainda o conveniente termo
“performance”. Assim, embora sendo uma performance de dança, ela era
123
apresentada como não-dança. Se pudéssemos imitar o uso do termo “anti-

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


arte” do mundo das artes, poderíamos dizer que era uma “anti-dança”.
Sua performance era constituída de tal forma, que butô e arte se violavam.
Contudo, olhando pelo o lado do ainda incompleto butô, podemos dizer
que ele próprio permitia que a arte o violasse.
 Após trinta e cinco anos da coreografia Rose-colored Dance, o butô
estabeleceu-se como modalidade de arte, desenvolveu-se muito em termos
de expressão, espalhando-se amplamente, e expandindo-se para todo o
mundo. Entretanto, também é certo que perdeu parte de sua força.
 Atualmente existem em andamento, principalmente fora do Japão,
movimentos de recuperação da história do butô para explorar sua forma
e energia originais. É um trabalho para investigar a obra de Hijikata dos
anos 60 e reconhecê-lo como parte do movimento avant-garde do pós-guerra
japonês. Por exemplo, a exibição, por um curador americano, chamada
“Arte Japonesa após 1945: Um grito contra o Céu” (Japanese Art after 1945:
Scream Against the Sky), co-organizada pelo Museu de Arte de Yokohama,
Museu Guggenhein, Museu de Arte Moderna de São Francisco (1994-95), cujo
conteúdo, embora fosse um tanto imaturo, tentava colocar o trabalho de
Hijikata na história da arte japonesa do pós-guerra.
 No Japão, existe certo nível de negligência em relação ao butô quando
se revisa a arte e cultura do pós-guerra. Contudo, pesquisadores estrangei-
ros têm seguido estudos multidisciplinares e mostram-nos a necessidade
de reconsiderar Hijikata como um ponto de conexão. Esses estudos dão
suporte ao trabalho dos Arquivos do Memorial Tatsumi Hijikata, os quais
estão focados em uma exibição de Tatsumi Hijikata mais do que em uma
pesquisa geral sobre o butô.
 Neste sentido, Rose-colored Dance é o tema mais apropriado para um
estudo sobre o butô. Trata-se de um dançarino, um crítico de arte e um
músico colocados juntos para mesclar o redemoinho teatral. Tal trabalho
deve ser considerado como pertencente à mesma linhagem de Masseur: The
Story of a Theater that Supports Passion (O Massagista: a história de um
teatro para dar suporte à paixão), encenado dois anos antes, em 1963. Pode
ser entendido pelo anúncio que acompanhava a sua produção “Recital em
Cooperação com a escola Ankoku-Buyo”, cuja performance, era claro, estava
orientada para a “Dance of Darkness”. A palavra “ankoku” (escuridão) era
usada para distinguir a dança da dança moderna, e simbolizava o sobrepu-
jamento da dança moderna. Seguindo a citação de André Breton, “Dada é
nada mais do que uma forma de existência espiritual”. Podemos dizer, então,
124
que “Ankoku” (escuridão) é nada mais do que uma existência espiritual.
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

Ainda assim “Ankoku” não é uma palavra de fácil definição.


  “Ankoku” (escuridão) invoca uma imagem escura e negativa, e “Rosa”, ao
contrário, invoca uma imagem brilhante e positiva. Contudo, Hijikata afirma:
“Ambos, Rose-colored Dance e Ankoku devem espalhar sangue no ar em
nome da experiência maligna” (Naka-no-Sozai, 1960). Portanto, ele não os
considera opostos entre si, tanto que ele tem, de fato, a intenção de seguir
ambos os lados. Para começar, foram o método de Hijikata e sua estratégia que
misturaram imagens que se opõem. Por exemplo, ele combinou contradição
ou oposição de temas como “santidade” e “vulgaridade”, “seriedade” e
“humor”, “avant-garde” e “nativo”.
  Rose-colored Dance era vulgar, mas também uma performance sublime.
Era como um pôster desenhado por Tadanori Yokoo, artista shamã. Um
dançarino de butô e um artista, cada qual violando um ao outro e miraculo-
samente realizando uma colaboração sincronizada.
 No palco representado por pessoas ou cachorros com a cara debaixo de
cortinas no fundo do palco, Hijikata deu as costas à “democracia do pós-guerra”
e ao “desenvolvimento econômico” e apresentou a performance Ankoku e
Rose-colored em nome do “mal” ou “crise” em meados dos anos 60.
 O butô de Hijikata já foi discutido e agora volta a sê-lo, mas pratica-
mente não há estudos sobre trabalhos individuais. Rose-colored Dance
não é exceção. No atual estágio não se pode dizer que não há problemas
em apresentar uma exibição de Rose-colored Dance. Todavia, tomando-se
por base os resultados da exibição de Tatsumi Hijikata – organizada pelo
Arquivo e Memorial Hijikata Tatsumi em cooperação com outros museus
após a morte desse dançarino de butô –, a exibição a que este texto se refere
é focada nos trabalhos individuais e deve estimular pesquisas e interesses
diferentes para cada trabalho.
 Hijikata era um artista que nadava contra a corrente no mar da “memória”
e retornava com tempo e objetos que ele “eliminava” na expressão. O palco
desaparecia após cada simples apresentação. Contudo, tal como uma dupla
personalidade, não era só extinção, mas havia “coisas” sagradas deixadas pelo
caminho que continuamente varriam nossas memórias com novas cores.
 Como parte do resultado deste trabalho de arquivamento da Universida-
de Keiô, a exibição que organizamos apresentou cartazes, convites, objetos,
artes cênicas e outras manifestações relacionadas à Rose-colored Dance,
junto com a interpretação “genética” de cada uma delas, tendo por objetivo
que essas coisas possam, dentro e fora do palco, regenerar de forma colorida
125
as nossas memórias.

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


Takashi Morishita
Centro de Pesquisa das Artes e Administração Artística da Universidade Keiô.

Nakanishi, Natsuyuki (1935 - )


Notebook
C. 1965 (26,1 x 19,1)
Collection of the artist
126
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

Koichi Tamano as Vagina objet


Hijikata asked Nakanishi to paint a beautiful and colorful vagina on Koichi Tamano’s back.
127

Três momentos das Artes do Corpo no Japão

Yokoo, Tadanori (1936 - )


Poster for Rose-colored Dance
1965
Silk-screen (102,6 x 72,8)
Hijikata Tatsumi Memorial Archives
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

128
129

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


Duet of Tatsumi Hijikata and Kazuo Ohno: Dance of Angels (foto Eikoh Hosoe)

Duet of Tatsumi Hijikata and Kazuo Ohno (foto Eikoh Hosoe)


Rupturas, Falhas:
dois momentos “nacionalistas”
e a cultura da dança no Japão.
130 Tadashi Uchino
(Universidade de Tókio)
Três momentos das Artes do Corpo no Japão
 Numa fantasmagórica entidade geopolítica chamada Japão, onde a noção
de belas artes vive desmoronando, a cultura da dança torna-se um espaço
da “experiência vivida”, para articulação/des-articulação. Deverão algumas
das rupturas implicadas nesta história levar-nos a ver como os artistas
refletem, refratam e/ou conciliam a “textualidade contextual” das práticas
performáticas? Eu vou analisar duas décadas distintas, 1960 e 1990, nas
131
quais se diz que dois gêneros de dança japonesa emergiram: o butô e a

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


dança contemporânea japonesa. Os anos 60 podem ser vistos como um
momento pós-colonial, durante o qual um senso de identidade nacional
renovado foi explorado dentro de vários corpos de dança, e o mito da auten-
ticidade associado à noção de “tradição” foi estrategicamente usado, ou mal
usado. Durante os anos 90, a principal característica da cultura de dança
japonesa eram os super-achatados “corpos magros”. Esta época marcou
uma ruptura entre o Japão moderno e o pós-moderno, quando as relações
de força bio-politicas globais tornaram-se uma realidade física inconsciente
das práticas de dança japonesas. Estava pronto um caráter utópico transna-
cional e, ao mesmo tempo, estava sempre sendo apagado.

1- A Primeira Ruptura: 1997 - A Ascensão e Queda dos Ditames


Políticos e sua Estética
 Olhando as imagens incluídas no recentemente publicado Hijikata
Tatsumi´s Butoh (2003), nós não podemos deixar de nos perguntar o que
aconteceu com Hijikata, durante o tempo que separa os dois tipos distintos
de corpo-em-performance: Hijikata Tatsumi to Nihon-jin -- Nikutai no
Hanran (Hijikata Tatsumi e os Japoneses — A Revolta da Carne, 1968) e Hoso
Tan (A História da Varíola, 1972).
 Esta mudança drástica foi analisada e comentada por muitos críticos,
enquanto Hijikata parou de se apresentar por um tempo, antes de retornar
à cena com este último. Por exemplo, no mesmo livro, a crítica de dança
Kunioshi Kazuko,de uma forma aparentemente positiva, menciona o
assunto, referindo-se ao que considera a mais importante noção de Hijikata,
que seria de sujaku-tai (corpo em decomposição). No mesmo artigo ela
apresenta também a leitura comentada de William Marotti sobre este
fenômeno, texto de 1997, que pede por uma reflexão adicional, já que coloca
uma questão mais importante, que será discutida neste artigo. Primeira-
mente, vou introduzir o artigo de Marotti, uma vez que só foi publicado no
Japão e não parece ter sido amplamente lido.
No artigo, Marotti define o Butô de Hijikata como anti-formalismo, uma
busca por novas formas de se aproximar do corpo performático, entendível
somente se considerados outros gêneros artísticos do período – do final de
1950 ao final de 1960—no qual as políticas de representação eram a maior
preocupação dos artistas. Ele diz:

 A distinção do Butô consiste em trabalhar o experimentalismo através


132
da performance do corpo propriamente dito... O corpo performático,
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

como uma espécie de objeto sinistro, foi o território através do quais


os praticantes tentaram dar origem a algo novo, uma imagem vinda de
um corpo que deve evadir-se de sua representação hegemonicamente
controlada para registrar algo que ainda não foi dito (Marotti: 4).

Esta busca culminou, como muitos críticos concordam, em um dos trabalhos


representativos de Hijikata, Hijikata Tatsumi e os Japoneses — A Revolta da
Carne, como:

“ ...O corpo no butô da antiguidade podia registrar um excesso


produtivo, tanto na forma quanto no conteúdo. Aqui o erotismo do
Butoh podia aparecer como uma espécie de excesso prazeroso que se
derrama na ação. Este excesso transgrediu dramaticamente normas
de sexualidade e gênero, incluindo este último em uma espécie de
avidez, desejo violento” (Ibid.).

Entretanto, de acordo com Marotti, assim que a problemática do Butô foi


performaticamente manifesta:

... Os meios para seu fechamento e a avidez dentro da esfera rep-


resentacional hegemônica estavam sendo forjados, na forma do que
H.D. Harootunian havia descrito como “poéticas nacionais” — uma
ideologia da identidade da cultura-razão e um “eternamente presente”
deplorado ultimamente em favor de um estado pós-guerra para
deslocar a criticabilidade da produtividade artística e cultural da qual
o Butô havia feito parte, em favor de uma afirmação do status quo.
Em seu poder, o corpo como uma problemática tornou-se sujeito a
uma inversão, pela qual ele se tornou produzido como um bastião
de identidade auto-aparente da japonesidade. A priori, foi substituído
pela questão em si, a problemática ruiu em uma mera consideração
da identidade burguesa, com a resposta já presumida (Ibid: 4-5).
 Marotti conclui, “particularmente em trabalhos a partir do início dos
anos 1970 em diante, o Butô fez-se abrir à cooptação e ao fechamento pelos
essencialistas” (Ibid. 5). A drástica mudança no butô de Hijikata pode ser
entendida em tais termos históricos e ideológicos. Ironicamente, de algum
modo, entretanto, pelo menos no espaço discursivo, o Butô veio a se
estabilizar como um gênero internacional por causa dos trabalhos posteriores
133
de Hijikata como coreógrafo, quando propôs: não-movimento, um sujaku-tai

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


de “face-branca” e um corpo em deterioração. i
 Em 1970, ao que parece, repousa o grande divisor de águas; dois anos
mais tarde, quando a crítica cultural de Suga Hidemi chama o butô de “a
única revolução global do século XX” (ii). Em janeiro de 1969, o Yasuda
Auditorium na Universidade de Tókio, um símbolo da rebelião estudantil,
foi tomado pela policia, o que significava, na verdade, que a acalorada e,
de certa forma, festiva rebelião estudantil deveria ser forçosamente contida.
Em 1970, Mishima Yukio, um parceiro próximo e mentor de Hijikata cometeu
um suicídio ritualístico. No mesmo ano aconteceu em Osaka uma exposição
mundial, em grande escala, para alardear a recuperação econômica do Japão,
enquanto as Ferrovias Nacionais Japonesas começavam sua campanha
chamada “Descubra o Japão: agora que o Japão atingiu um miraculoso
nível de crescimento econômico, é a hora para nós, japoneses, descobrir-
mos novamente o Japão”. “Japão”, qualquer que seja seu significado, era
postulado como um território imaginário para turistas burgueses revisitarem,
descobrirem e, esperava-se, gastarem dinheiro.
 Foi durante a década de 1960 que o Japão iniciou seu retorno ao cenário
mundial, para se reerguer e se reformular como um gigante econômico
ate o final daquela década—na figura do GNP, o Japão tornou-se o segundo
do mundo, segundo os EUA em 1968. Em 1960, depois de uma violenta e
controversa renovação do Tratado de Segurança entre Japão e EUA, o primeiro
ministro Ikeda Hayato alardeou o seu “Programa de Duplicação de Salário”,
e isto aconteceria muito antes do que ele esperava, Os anos sessenta podem
ser caracterizados, apropriadamente, como a década de descolonização, um
momento pós-colonial, apesar do fato de o Japão nunca ter sido oficialmente
colonizado. No entanto, devemos lembrar que o Japão não foi politicamente
independente até o Tratado de Paz de São Francisco em 1951 e a assinatura
do Tratado de Segurança entre Japão e EUA em 1952. Nos anos seguintes,
sob fórceps políticos, influencias intervencionistas econômicas e culturais
dos EUA, o Japão continuava virtualmente “colonizado”, embora houvesse
readquirido sua independência oficial. A década de sessenta foi uma década
de fluxo e migração ; uma vasta porção da população estava incessante-
mente fluindo para as grandes cidades, Tóquio, Nagóia e Osaka entre outras,
buscando por empregos mais bem remunerados e por um acelerado processo
de industrialização, e, portanto, modificando não só a paisagem urbana mas
também a paisagem psicológica das cidades e de seus habitantes. A cidade
tornou-se o lugar onde pessoas diferentes, falando dialetos diferentes com
134
diferentes sistemas de valores se encontravam, colidiam umas com as outras
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

e se misturavam, enquanto a televisão aparecia como objeto de unificação


visual e lingüística para dar origem a uma comunidade nacional homogenei-
zada e reinventada chamada Japão. Em 1962, mais de 10.000.000 de famílias
já estavam assistindo televisão em suas casas.
 Era uma década política, onde a Nova Esquerda com expressões culturais
underground, incluindo as práticas teatrais do Butô e o assim chamado
movimento angura (underground), eram as experiências mais subversivas
no âmbito político-cultural.Suas filosofias políticas e seus produtos culturais,
conforme aposta Suga Hidemi, podem apenas ser nacionalistas; depois
da critica de Stalin, eles tinham que procurar por uma novo modelo de
governo, que pudesse transcender o modelo marxista soviético. Um modelo
alternativo por uma melhor imagem de sua nação. (Suga 2003:132). Mishima
Yukio, que nunca foi interpretado como um esquerdista, era, de acordo
com Suga, um dos mais fortes simpatizantes da Nova Esquerda e de seus
produtores culturais (Ibid.:134). Então, segundo Suga, expressões culturais
underground durante aquela década naturalmente mostravam certa familia-
ridade com o “apocalíptico-estético-revolucionário” Mishima, que mantinha
uma busca pela revolução dentro do reino da estética desenvolvendo-se em
imagens apocalípticas (Ibid.:133).
 A exploração de um corpo performático por Hijikata, desde seu muito
afamado e simbólico começo em Kinjiki (Cores Proibidas) no final de 1959,
parece ser uma resposta apta porém complexa a este fluxo e caos sócio-
politico-cultural. Baseando sua dança nas estéticas e técnicas da dança
moderna ocidental, seu objetivo era ir além, muito mais longe, olhando para
dentro de seu próprio corpo; para citar Marotti, “Hijikata tentou dar origem
a algo novo, uma imagem que vindo através do corpo fugia de sua represen-
tação hegemonicamente controlada para registrar algo que ainda não havia
sido dito”. Era uma resistência contra o sistema de representação, entendido
como um gênero da dança moderna, que a maioria dos praticantes de dança
estava ansiosa para importar e imitar como “coisas do ocidente”, enquanto
o termo propriamente dito, segundo Kusaka Shiro, um historiador da dança,
passou a ser usado como era—sem tradução para o Japonês—somente durante
os anos do pós guerra (Kusaka:13). Em outras palavras, nós podemos pensar
que Hijikata estava, consciente ou inconscientemente, envolvido no processo
de descolonização do ocidente, ou mais precisamente das “coisas do ocidente”
que significavam na verdade”coisas da América”. Em seu caso, tratava-se de
uma descolonização do corpo, portanto cultural em sua natureza.
135
 É interessante notar, portanto, que Hijikata não recorreu necessariamente

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


ao que Marotti, referindo-se ao que Harootunian chama de “poética nacional”
durante o processo de descolonização. A dança dele, exemplificada em Hijikata
Tatsumi e os Japoneses, como seu título sugere, identifica uma distância critica
e ambígua entre Hijikata e os japoneses. Ela é não apenas erótica, mas também
excessivamente violenta, perigosa, incontrolável; uma palavra japonesa apta
para ela seria detarame -- em um dicionário Japonês /Inglês esta palavra é
identificada como: “sem método, ao acaso, selvagem, a esmo, feito às pressas,
relaxado, irresponsável, ridículo”, e eu gostaria de acrescentar a esta lista de
verbetes, “imprevisível mas ainda assim disciplinado”.
 Eu chamaria, então, ao que Hijikata fez referência, em e com seu corpo-em
performance, durante esses anos , de objeto de detarame. Seria o campo de
constantes mudanças do sujeito, de um sujeito sempre fazendo-desfazendo.
O sujeito do corpo detarame é perigoso e radical, por isso, como diz Marotti,
“a forma de seu encerramento e subordinação dentro da esfera representacio-
nal hegemônica estava sendo forjado”. Mesmo para um gênio da arte como
Hijikata, era, então, difícil lidar com uma “poética nacional” toda fechada,
especialmente após os anos setenta? Ou o que houve foi que simplesmente
era muito duro, tanto física como mentalmente, manter-se representando um
corpo-em-performance detarame?
 É muito fácil equacionar o retorno de Hijikata em Hoso Tan, para sua
própria versão de “japonesidade” no início dos anos setenta, com um gesto
positivo em relação a uma “política nacional”. Nós não podemos, entretanto,
deixar de perceber uma certa tendência no sentido de estabelecer o Butoh
como um gênero, com um implícito desejo para a essencialização do corpo-
em-performance com a imagem fixa de japonesidade. Considerando o clima
sócio-político dos anos setenta, foi, talvez, natural para Hijikata explorar a
possibilidade de estabelecer o Butô como gênero alternativo de dança, como
algo distinto da dança moderna de influência ocidental e da complacência
burguesa . Quaisquer que tenham sido suas intenções, no que diz respeito
ao Butô propriamente, diz Marotti “o corpo com problemática torna-se
sujeito a uma inversão, pela qual passa a ser produzido como bastião auto-
aparente de “japonesidade”; “japonesidade esta que está por ser descoberta,
como aconteceu na campanha das ferrovias do Japão que reteve uma certa
quantidade de valor de mercado, por uma certa quantidade de tempo.

2- A Segunda Ruptura: 1995 — O Surgimento do Corpo de criança


na Cultura da Dança
136
 Em 1995, alguns anos depois que a chamada bolha econômica chegou
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

ao fim, nós testemunhamos dois eventos catastróficos, com repercussões


bastante diferentes nos registros político e cultural. Um foi o grande terremoto
Hanshin-Awaji no oeste do Japão, que devastou a cidade de Kobe. O outro foi
o ataque com gás sarin, por Aum Shinri Kyo nas linhas de metrô de Tókio.
Recentemente, muitos críticos culturais chegaram a considerar 1995 como o
grande divisor de águas, depois do qual o Japão passa a testemunhar uma
drástica mudança em sua configuração sócio-cultural, é claro, relacionada ao
processo de globalização em andamento após a Queda do Muro de Berlim
em 1989. Mas demorou mais de cinco anos depois do Japão ver dois eventos
catastróficos, para que, o que a globalização poderia significar no contexto
local japonês, e seus efeitos, fosse gradualmente traduzido através de “uma
experiência vivida” em expressões culturais, ou seja, a idade da ansiedade
pós moderna e pós cultural.
 A década entre 1995 e 2005, portanto, é considerada como a década do
revisionismo histórico, o qual deu origem a uma discussão exaltada sobre
como “nós japoneses” entendíamos a nossa história nacional. Era como se os
japoneses tivessem perdido a confiança em si mesmos, a ideologia dominante
de zeitgeist da década havia sido identificada como “petit nationalistic
sentiment”. Este senso de nacionalismo renovado é incontestável e paroquiano,
mas não necessariamente militante. É patriótica sim, mas não necessariamen-
te muito sério também. É mais uma espécie vulnerável de nacionalismo, sem
grandes vozes de afirmação,sem acompanhamento da fabricação de bodes
expiatórios para adquirir o senso de identidade nacional e comunidade. Em
resumo, esta é, obviamente, uma espécie pós moderna de nacionalismo, mas
eu sou tentado a chamá-lo de uma espécie doente de nacionalismo, não no
sentido dele ser fisicamente nocivo, mas no sentido de ser psicanalítico.
 Conforme eu já escrevi em algum lugar (iii) algumas das palavras chave
para se entender o Japão depois de 1995 são kire-ru (esbofetear), hikikomo-
ru (armazenar ou recolher-se dentro de sua casa/quarto e nunca mais sair)
e iya-su (curar-se). As pessoas estão se esbofeteando em todos os lugares,
as vezes levadas a formas absurdas de violência, e os jovens estão se
retirando para suas casas e se recolhendo a seus próprios quartos, às vezes
tentando cortar seus pulsos, num ato de terrorismo contra os seus próprios
corpos.Recentemente, temos visto o florescer de produtos culturais que têm
a pretensão de “curar”, em diferentes medias, desde as belas artes até os
gêneros culturais de massa. As pessoas vão a pontos turísticos “subdesenvol-
vidos”, como Bali, para serem curadas. Vão ao teatro para serem curadas ou se
137
recolhem em seus quartos para serem curadas, etc. Neste meio tempo, vemos

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


o aumento dramático no número de crimes violentos, bizarros por natureza,
como em muitos casos, o motivo não pode ser tão facilmente identificado;
não em termos financeiros, ou, pelo motivo, em termos racionais e razoáveis.
Tipicamente, nesses casos, um cidadão comum, um dia, sem nenhuma razão
aparente, espanca e mata pessoas, ou se mata. “A sociedade está doente”, como
os meios de comunicação de massa diriam, tentando localizar o problema no
domínio do pensamento racional moderno, dizendo que ela está doente por
causa da duradoura recessão, ou pela perda dos valores antigos, tradicionais,
ou pela perda do “orgulho nacional”, que nós, supostamente, já tivemos...,o
que soa mais como uma ficção curativa, uma teoria da qual se possa tomar
parte para entender, articular e criticar o que está acontecendo.
 É como acompanhar o surgimento de uma espécie de nacionalismo
doente. Na cultura da dança no Japão, nós testemunhamos o surgimento das
práticas de “dança contemporânea”. Nesta época, como na dança moderna
do pós-guerra , o termo não era traduzido, mas usado e pronunciado como
é em Inglês, com um sotaque japonês. As origens do que era considerado
como sendo “dança contemporânea” eram bem claras: Pina Baush, Rosas e
William Forsythe. Houve uma onda de visitação de novos tipos de dança da
Europa pelo final dos anos 80, graças à economia da bolha, e aqueles que
começaram a criar dança nos anos 90 estavam bastante influenciados por
eles. O que apareceu como resultado disto foram várias práticas e praticantes
de dança, que realmente desafiam qualquer definição, além do selo de
“dança contemporânea”, que apenas significa o que esta dança não é, uma
dança histórica e metodologicamente identificável, dança moderna ou Butô.
 A aparente diversidade pode cegar, mas alguns dos críticos mais articulados
vêem sim características comuns entre eles, por exemplo, Kumakura Takaaki,
um crítico de arte e estudioso, que identifica neles o que chama de “corpos
magros”. Ao assistir uma das performances de dança de Mesurashii Kinoko
Buyo-dan (Companhia de Dança Cogumelos Estranhos), em 2001, ele disse:
“eu senti que o século XX, ou mais apropriadamente, o moderno, tinha
terminado”e escreveu:
“Sujeitos magros” – corpos — devem ser mantidos atraentes, sedutores.
Eu devo manter excessivamente coberta sua superfície super achatada
com uma série incessante de simulações. Do bihaku (“linda pele
branca”) ao telefone celular e ao e-mail. Do serviço de “despachante”
a conversa sem importância num moderno café... É, contudo, “magro”.
138
Se eu não estou tecnologicamente bem equipado, eu posso não
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

conseguir dar o salto ou passar por uma saia justa . Então, o buraco
negro—aquele buraco negro do qual eu tenho desesperadamente
fugido estará esperando com sua enorme boca aberta.”O animal”,
“a violência”, e “o inconsciente”, supostamente exorcizados pela
simulação super-visível, estão em um turbilhão lá embaixo, esperando
para engolir o “eu”, o sujeito. Uma vez engolido meu “magro” sujeito—
o corpo—é tão facilmente destruído. Cuidado! Eu devo me agarrar ao
mais próximo simulacro, devo de alguma forma emergir à superfície,
e me manter deslizando na super-visível e super-achatada superfície
(Kumakura:124, tradução do autor).

 Mais recentemente, Sakurai Keisuke, teoriza a noção desta subjetivida-


de “magra” como kodomo shintai – corpo de criança—um corpo imaturo e
assexuado. Sakurai discute a razão pela qual alguns de nós encontramos
prazer sinestésico em assistir a estes corpos, ou mais precisamente, assistir
a estes corpos-em-performance . Reescrevendo a noção de mimetismo de
Homi K. Bhabba, Sakurai discute os corpos-dançantes japoneses, que ele
associa a corpos de crianças em oposição aos corpos adultos dos dançarinos
ocidentais, dominando perfeitamente as técnicas de dança ocidentais em
seus ensaios. Como kodomo shintai/corpos de crianças, eles estão , in-
tencionalmente, fazendo “mau uso” destas técnicas, desconstruindo-as
e portanto, subvertendo a impressão desejada. Sakurai está se referindo
àquelas companhias de dança como Cogumelos Estranhos e Nibroll, grupos
que muitos consideram, no mundo da dança contemporânea japonesa, como
“ousados”, “ de vanguarda”, “mais avançados” e “mais contemporâneos”.
 Sakurai localiza o movimento espetacular “único” de Cogumelos Estranhos
e Nibroll dentro de um pseudo discurso pós colonial, em que uma performance
cultural idealizada do Japão, geopoliticamente isolada, desenvolveu sua
própria estética, conceitos de dança e padrões críticos. Ao fazer isso, Sakurai
tenta isolar a cultura de dança japonesa e o seu vocabulário, dentro de um
padrão globalizado de dança e discurso. Seu objetivo é proteger a cultura de
dança japonesa de uma pressão contínua vinda do balé romântico, da dança
moderna e das diversas práticas de dança contemporâneas.
 Embora as observações específicas de Sakura sejam relativamente
acuradas, em termos de descrever verbalmente as performances de dança
particulares das quais ele trata, seu discurso em si é formulado dentro de uma
comunidade de dança contemporânea paroquiana, constituída de danças
139
e movimentos “freak” (algo como fãns fanáticos), um bando de artistas e

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


críticos com um renovado senso de estética,que ressonam com a ideologia
do “japonês cool”, que inevitavelmente trai sua “naivetè” ideológica e é uma
ligação obvia ao “petit nationalistic sentiments” do final dos anos 90.
 Apesar de tais falhas,entretanto, a teoria de Sakura ou, mais precisamente, a
sua classificação, ajuda a reformular uma maneira local de articular os corpos-
em-performance da dança contemporânea japonesa e explica por que Sakurai
e seus pares,estão tão encantados pela dança japonesa. Para eles, a noção de
kodomo pode ser parafraseada como um detarame na forma de adjetivo.
 Ao dizer isso, eu não estou necessariamente tentando equacionar de
maneira simples o detarame subjetivo de Hijikata com a subjetividade dos
corpos de crianças da dança contemporânea, embora uma sensação de
detarame possa ser fortemente experimentada em muitos destes últimos.
Hijikata propõe, obviamente, um sujeito para o qual a noção de auto-re-
flexividade é a chave para se entender seu status ontológico, enquanto o
sujeito da dança contemporânea é pós-moderno. A noção de “self” é
sempre ficcional e ilusória. Por isso, é somente através da dança, através do
movimento no espaço, que o “self” como corpo pode ser temporariamente
registrado no espaço. Em termos metafóricos, Hijikata dança para dizer bem
alto “eu estou aqui!”, perguntando ao mesmo tempo quem é aquele “eu”,
enquanto os praticantes da dança contemporânea dançam para perguntar
“eu estou aqui?”, sem fazer qualquer questionamento quanto a isso e sem
esperar qualquer resposta positiva. Em termos psicanalíticos, Hijikata dança
contra a significação transcendental, Nome do Pai com P maiúsculo, o que
pode ser vagamente definido como os EUA ou “coisas do ocidente”, enquanto
os praticantes da dança contemporânea apenas dançam, sem saber para
quem ou contra quem eles estão dançando, por terem perdido de vista a
significação transcendental, Nome do Pai. Dentro das caóticas configurações
sócio-político-culturais em que o self e o corpo estão localizados, no caso
de Hijikata, sua “experiência vivida” é traduzida e transferida a uma visão
artística muito distante, enquanto no caso dos praticantes da dança contem-
porânea, suas “experiências vividas” são tão inocentemente visíveis.
 De qualquer modo, por que detarame? Até agora observei duas rupturas
na história recente da dança no Japão e em ambos os casos a noção de
detarame era a chave para entender a cultura de dança japonesa ralacionada
a estas rupturas. No caso de Hijikata, o que começou como uma dança
detarame, depois da ruptura política de 1970, foi conscientemente sistemati-
zada, mantendo uma disputa acirrada com a “poética nacional” de Marotti,
140
consequentemente dando origem ao gênero do butô. No caso da dança con-
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

temporânea, que emergiu após a ruptura sócio-político-cultural de 1995,


nós testemunhamos a dança detarame com corpos de crianças. Ambos os
períodos, a década de 60 e a década entre1995 e 2005, podem ser caracteri-
zados como momentos nacionalistas; em outras palavras, um novo tipo de
dança com a exploração do corpo em movimento, aparece no momento de
fluxo demográfico nacional e caos e/ou transição da sociedade, que é ligada
ao Japão histórico visto que gêneros de belas artes como a dança nunca
podem ser institucionalizados dentro de um domínio público mas apenas
circular entre alguns círculos privados vagamente definidos. Em “momentos
nacionalistas” como a década de 1960 ou a década entre 1995 e 2005, a
distinção entre o público e o privado entra em colapso, eles colidem-se e in-
terpenetram-se.Nestes momentos, as experiências com as formas, tais como
brincar com a dança detarame,são bem vindas e encorajadas uma vez que
experimentar conota liberdade, possibilidade e o futuro.
 Ao mesmo tempo, devemos nos lembrar da diferença crítica entre estes
dois “momentos nacionalistas” na cultura da dança japonesa. Ohta Shogo,
um diretor de teatro importante no Japão, em seu artigo recente, postula uma
forte dúvida contra o “nacional”, como se segue:
 Em qualquer tipo de pensamento há sempre um ponto de “suspensão
de julgamento”, e ninguém pode escapar disso. Mesmo que seja apenas, se
“o nacional” é entendido e indubitavelmente bom como a “essência” das
pessoas, isso significa que nós não temos que admitir que “o nacional” está
onde nosso julgamento está suspenso. Nacionalismo no qual “o nacional”
se transforma em suposição incontestável. Nós não temos que questionar se
nosso julgamento está suspenso. (Ohta:131, tradução do autor)
 Hijikata questionou o nacional até 1970, através de sua dança detarame.
E quando o nacional tornou-se uma suposição incontestável, ele se virou
para a “poética nacional”, como se respondesse, a posteriori, ao que Suga
Hidemi chama de “apocalíptico-estético-revolucionário de Mishima Yukio.
Por outro lado, para a dança contemporânea, “o nacional” parece estar com-
pletamente ausente; isso entretanto não significa que a dança deles não seja
nacionalista. Como crianças crescidas com o “petit nacionalistic sentiments”,
conforme não questionam seu grau de participação na ideologia do “japonês
cool”, eles virtualmente celebram sua “japonesidade”, criando dança fora
da sua paroquiana e fechada “experiência de vida”, suspendendo portanto,
qualquer julgamento, perdendo a distancia crítica do que eles dançam.
141
Notas

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


i De acordo com Norikoshi Takao, o butô como um gênero chamou atenção da
audiencia européia quando Ohno Kazuo e Sankai juku se apresentou na França no
final dos anos 1980s (Norikoshi: 64)
ii Esta é uma frase provocativa de Suga Hidemi usada para capa do livro de 1968.
iii Ver Uchino (2003) e Uchino (2006). Eu escrevo uma coluna de crítica de arte na
Performing Art desde 2001, na qual eu analiso a performance cultural japonesas por
este ponto de vista.
Sakurai está desenvolvendo sua teoria de kodomo shintai em vários artigos, espe-
cialmente em uma série de críticas para a Performing Arts no.5 em diante (“Corres-
pondence from ‘Dance in Kid’s Land’”: ver referências.)

Referências Bibliográficas

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“Globality’s Children -- Thinking through the ‘Child’s’ Body As a Strategy Flatness in
Performance ( a ser terminado em TDR), 2006.
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

142
143

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


Três momentos das Artes do Corpo no Japão

144
Christine Greiner
Os corpos do J-Pop
 Lolitas asiáticas, góticos de quimono e ninjas mutantes. Entre todos os
exercícios antropofágicos e transcriadores que foram experimentados no
Japão, algumas imagens que surgiram nos últimos trinta anos parecem par-
ticularmente exemplares, uma vez que cruzam diferentes culturas e eixos
temporais, redefinindo questões mais antigas.
 No Japão, todo o período conhecido como angura (arte underground
145
japonesa), que marcou as décadas de 1960 e 1970, deu início a um processo

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


de contaminações culturais que havia começado nos primeiros anos da
Restauração Meiji (1868-1912), mas se radicalizou no pós-guerra. O caso do
poeta Shûzô Takiguchi (Sas 1999, Linhartová, 1987) e o do coreógrafo Tatsumi
Hijikata (Uno, 2007) foram particularmente importantes. Takiguchi ficou
conhecido internacionalmente como o grande poeta surrealista japonês, mas
não seguia nenhuma cartilha ou manifesto. Em 1958, chegou a encontrar-se uma
vez com André Breton, mas tinha as suas próprias estratégias. Ficou famoso
por romper com as sintaxes e convenções da língua japonesa, apostando
na reconfiguração de novas possibilidades. Avesso à distinção radical entre
oriente e ocidente, chegou a montar passaportes que distribuía entre amigos
com fragmentos de textos em japonês, francês, inglês e alemão, escritos por
ele mesmo e outros poetas, com carimbo de validade permanente e data a
perder de vista. Hijikata, por sua vez, ficou conhecido como o criador da
dança butô. Para conceber o que chamou de “cadáver que dança”, promoveu
muitos cruzamentos importantes entre diferentes referências japonesas e os
escritos de autores europeus (Antonin Artaud, Jean Genet, Rimbaud), além
de colecionar uma rica iconografia de imagens (Klimt, Goya, Picasso, Wolz),
que coletava em revistas de artes plásticas publicadas em Tóquio.
 Mas a lista dos precursores avant la lettre do pop japonês é extensa e não se
restringe a desdobramentos ou subversões de movimentos específicos como
butô, surrealismo ou dadaísmo. Shuji Terayama (1935-1983), por exemplo,
pode ser apontado como uma das fontes primárias do caldeirão cultural que
alimentou um braço evolutivo do pop japonês. Ficou famoso por explorar
diversas linguagens com a mesma irreverência. Foi poeta, escritor, diretor de
teatro, diretor de cinema, fotógrafo, novelista, critico cultural, pesquisador
teórico de teatro, anarquista, “porta-voz de adolescentes” e defensor dos
direitos da juventude (Sorgenfrei, 2005). Durante a sua vida curta, produziu
muito. Na primeira fase relacionou carnaval, circo, folclore rural, sonhos e
magia, além de combinar cantos budistas, jazz e rock eletrônico. Anos depois,
propôs “impulsos metateatrais” que já não vão explorar apenas a relação ou
conflito entre pares, mas conferir complexidade a temas como os do corpo e
máquina, corpo e sociedade, corpo e Deus, explicitados em sua última obra:
o livro O Labirinto e o Mar Morto: Meu Teatro.
 Outro artista e pensador importante para se compreenderem os primórdios
da discussão pop foi Tarô Okamoto (1911-1996). Filho único do autor de
mangá Ippei Okamoto e da poeta e novelista Kanoko Okamoto, foi ele quem
formulou a máxima “arte é explosão”. Interessava-se por um certo “caos
146
transparente”. Movido pela catástrofe da explosão das bombas atômicas
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

no Japão, dizia que a partir de então a arte só teria sentido se de alguma


maneira ainda fosse capaz de refletir a radicalidade dessas experiências
em todas as outras experiências (Okamoto, 1976). Não se tratava, eviden-
temente, de explorar o tema das bombas ou os seus efeitos de maneira
explícita, mas de botar para fora o caos que atravessava os artistas e que
eles passavam a carregar em suas obras.
 A partir desses poucos exemplos, já é possível perceber que embora muita
gente que hoje consome a cultura pop japonesa a identifique imediatamente
com seus produtos – mangás, animes, jogos eletrônicos, música, moda, TV
e performances realizadas a partir de 1980 –, a rede de informações é mais
complexa e, no que concerne à mudança de pensamento, remonta a períodos
muito anteriores àqueles registrados pelo mercado internacional. Assim, há
autores que identificam o fenômeno pop em ampla escala, com o surgimento
de inovações tecnológicas específicas, como os jogos de videogame e o
walkman, ou ainda com o sucesso do filme de Blade Runner, de Ridley
Scott, rodado em 1982. Este virou cult não somente porque apresentava pela
primeira vez a visão futurista das grandes metrópoles, onde se tornava in-
discernível o Oriente do Ocidente, como também porque trazia o eterno
dilema existencial entre criador e criatura, desta vez reformulado a partir
da caçada aos andróides. Mas no que se refere tanto a este filme quanto
ao surgimento de novas tecnologias, nada disso teria sido suficiente para
garantir as mudanças radicais se não fossem os pensamentos dos artistas
que considero os pioneiros avant la lettre das revoluções que acabaram por
desmistificar as representações mais tradicionais do corpo.
 O pop é, por natureza, um exemplo de mestiçagem em todos os seus
produtos, idéias e fenômenos midiáticos. Mas as suas formulações
aconteceram no decorrer de muitas décadas, mesmo no que diz respeito a
exemplos específicos como o do mangá, que seria um dos produtos mais repre-
sentativos do mercado. Paul Gravett (2006) explica que o sucesso dos mangás,
que são à primeira vista absolutamente japoneses, só aconteceu porque a
longa herança cultural japonesa foi sacudida pelos desenhos, caricaturas,
tiras de jornal e quadrinhos ocidentais. O mangá, como o conhecemos hoje,
sintetiza o slogan da Restauração Meiji wakon yosai: “espírito japonês,
aprendizado ocidental”. É uma longa história. No século XII, por exemplo, os
desenhos feitos em rolos de papel de até seis metros de comprimento para
contar lendas, batalhas e eventos da vida cotidiana já eram considerados
uma espécie de pré-mangá, sem falar nas gravuras ukiyo-ê e em suas repre-
147
sentações de todo tipo de assuntos mundanos que antecipavam temas tipicos

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


dos futuros mangás. Mas o que caracterizou o mangá como o conhecemos
hoje partiu mesmo da aliança entre técnicas ocidentais desde a época em que
se usavam chapas de cobre para imprimir as imagens nos mais finos papéis
japoneses. Outra fonte importante foi o cinema ocidental, especialmente os
filmes de Hollywood, que depois da segunda guerra passaram a fazer um
grande sucesso no Japão, com preços muito acessíveis. O pai dos quadrinhos
japoneses, Osamu Tezuka, reconheceu que durante a sua juventude chegou a
assistir a um filme por dia. Foi com o cinema hollywoodiano que aprendeu a
editar as imagens de modo diferente, trabalhando com planos distintos e não
apenas com uma câmera fixa a longa distância.
 No Brasil, bem antes do sucesso internacional, os mangás começaram a
ser lidos pela comunidade dos descendentes de japoneses. Eles importavam
os quadrinhos das distribuidoras localizadas no bairro da Liberdade, em São
Paulo, que recebiam encomendas de todo o interior e de outros estados como o
Paraná, onde havia concentração de colônias japonesas. O mesmo aconteceu
com os animes e filmes japoneses que eram veiculados em cinemas como
o famoso Cine Niterói, inaugurado em 1953 na rua Galvão Bueno, também
na Liberdade. Na televisão, o pioneiro foi Nacional Kid, mas a partir de 1970
surgiram muitos outros heróis japoneses como o Ultraman, primeiro na TV
Tupi e depois na SBT, além da Princesa Safire, do Jaspion na Manchete e da
Candy Candy na Record, já nos anos 1980.
 A leitura do mangá pela comunidade japonesa no Brasil tinha como
objetivo principal manter a língua e atualizá-la com novas gírias e termos
importados do inglês. Mas aos poucos, a partir do surgimento de desenhistas
descendentes de japoneses, houve outros desdobramentos que passaram a
incorporar traços de mangá. Foi o caso de Julio Shimamoto, com os seus
famosos clássicos de terror, e de tantos outros, reunidos na biografia de
desenhistas nipo-brasileiros organizada por Fernando Ikoma. Ganharam
destaque algumas personagens como O Samurai, de Cláudio Seto, e O Judoka,
de Pedro Anísio. Roger Cruz (Roger Cruz Kuroda) foi um dos fundadores da
Fábrica de Quadrinhos, um mercado que despontava desde a década de
1960, quando a Editora Edrel, de São Paulo, decidiu investir nas histórias em
quadrinhos, sobretudo com o tema dos samurais e ninjas.
 De certa forma, pode-se dizer que os brasileiros foram precursores
do mercado de mangás fora do Japão, inclusive no campo da pesquisa
acadêmica, com as publicações pioneiras de Sonia Luyten, uma das
fundadoras da Abrademi (Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e
148
Ilustrações) em 1984.
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

A moda made in Japan


 Outro fenômeno pop que testemunhou processos intensos de mestiçagem
entre o Japão e o Ocidente foi a moda. Antes de invadir o mercado ocidental,
a moda juvenil nipônica conquistou a juventude asiática. Causeway Bay
(Gomarasca, 2002), que é o bairro predileto dos jovens em Hong Kong, há
alguns anos tem um visual bastante parecido com o dos famosos bairros
Shibuya e Harajuku em Tóquio. As meninas com sapatos e botas de grandes
plataformas, nada diferentes dos bairros japoneses, tornaram-se um sucesso
absoluto da indústria cultural, acompanhadas por sucessos de dança e
música pop, com espaço garantido em Taiwan, Hongkong, Singapura, Malásia
e Tailândia. Revistas japonesas como a Kawaii e a Egg logo se articularam
para exportar moda mesmo para locais onde os jovens não falavam japonês.
O que contava era a imagem, particularmente a imagem dos aidoru (ídolos)
A juventude asiática não estava interessada em Gucci e Prada, mas na moda
“made in Japan” que aos poucos foi vencendo todas as barreiras políticas.
 Não foi fácil. Em Taiwan, as leis que proibiam importação de produtos
culturais japoneses caíram em 1994. Na Coréia do Sul, o mercado abriu apenas
em 2002, com a Copa do Mundo. Isso tudo, obviamente, em termos oficiais,
porque o mercado negro já funcionava havia muito tempo. Aos poucos, o
movimento chegou também à China continental. Nos Estados Unidos, o
Yellow Power, que representa os americanos de origem asiática, criou uma
revista própria, a Giant Robot, especialmente consagrada à celebração da
cultura pop asiática. A publicação nasceu na internet em 1994, gerou outras
experiências e transformou o público, uma vez que a nova legião de leitores já
não se compunha, em sua maioria, do grupo de descendentes de asiáticos.
 Nas últimas duas décadas, um outro veículo importante de divulgação
da cultura pop foram as grandes feiras como Animecon, Otakon, Anime
America, entre outras. Estas megaconvenções, dedicadas sobretudo
aos quadrinhos e animes, fazem cada vez mais sucesso no mundo todo,
inclusive no Brasil.
 É importante notar os diferentes caminhos trilhados. A cultura pop
americana foi muitas vezes apoiada por instituições e mesmo por iniciativas
do governo, mas o pop japonês, não. A aceitação oficial é recente e deve-se
à pressão do mercado internacional. Não há dúvida de que os produtos da
cultura pop e a culinária japonesa se transformaram em hits internacionais.
Mas historicamente, as instituições governamentais japonesas sempre privi-
149
legiaram as artes tradicionais. O j-pop sobreviveu na trilha de um imaginário

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


jovem que criou trilhas culturais difíceis de serem detectadas. Em 1993, o
primeiro número da revista Wired trouxe uma matéria sobre a cultura Otaku
ou a cultura dos “nerds” japoneses. Era o primeiro sintoma claro do que
estava acontecendo nos anos 1990, marcados por animações como a série
Evangelion, Dragon Ball, Sailor Moon, Akira e Ghost in the Shell, todos com
ampla divulgação e distribuição.
 O fenômeno trouxe uma mudança de ocupação das cidades, e não apenas
do circuito televisivo e de games. No Japão, a cultura digital abriu espaços.
As meninas, por exemplo, passaram a ocupar lugares antes exclusivamente
masculinos, comunicando-se o tempo todo com aparelhos portáteis como
celulares, bipes, tamagochis e outros brinquedos de bolso. Sempre reunidas
em bandos pelas ruas, elas passaram a conectar-se o tempo todo com seus
pares, inventando diferentes grupos como as kogyaru, que trazem à tona todo
fetichismo das escolares sedutoras e dialogam com os rorikon manga, que
são os quadrinhos dirigidos ao público masculino que cultiva o complexo de
Lolita. As ganguro-gyaru, por sua vez, propõem um visual que é o negativo
de si mesmas, contrastando cabelos descoloridos e pele escura com bronzea-
mento artificial ou maquilagem.
 A pesquisadora Sharon Kinsella (2002) observa que é preciso fazer uma
leitura mais profunda deste fenômeno. Não são apenas meninas engraçadi-
nhas exibicionistas, embora este estereótipo possa ser aplicado em muitos
casos. Mas é interessante observar também que a princípio as suas ações
manifestam um desejo de transformação profunda da sociedade japonesa.
Apontam para um movimento que confronta o imobilismo, ao mesmo tempo
em que elas convivem com uma espécie de cegueira histórica relacionada
ao desprezo pela glória do país e a falta de nitidez em relação a valores e
crenças. Há um sinal da mudança de entendimento do que seja a comunidade
japonesa pós anos 90, não mais identificada como um todo homogêneo
movido pelos mesmos propósitos tradicionais (a honra, o nacionalismo, a
disciplina), mas sim por um conjunto de diversidades que começa a criar
visibilidade, justamente através dos visuais propostos pela juventude.
 O Cosplay, que significa “brincar com roupas” também tornou-se um
hobby cada vez mais popular entre jovens e fãs de animação e assim como
todo evento pop, guarda certa ambivalência. O objetivo, apesar de simples,
é bastante sofisticado: construir figurinos baseados em personagens de
diferentes mídias (desenhos animados, filmes e seriados), sendo que a escolha
dos personagens parte de diferentes motivações. A origem do Cosplay foi nos
150
anos 1980, no Comiket, o primeiro evento do Japão direcionado a animes
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

e mangá, inspirado pelas convenções americanas onde os fãs se vestiam


como personagens de Star Wars e Star Trek. Nobuyuki Takahashi, um dos
fundadores do evento, decidiu escrever matérias incentivando os fãs. O
primeiro grupo de cosplayers surgiu em 1983, representando personagens do
anime Urusei Yatsura. Aos poucos, apareceram as lojas especializadas, como
a Cospa, que atende pedidos pela internet.
 Mas fazer cosplay não é simplesmente costurar e vestir a roupa; é também,
como foi mencionado anteriormente, ter a chance de representar a personagem
escolhida e mudar de identidade. Para tanto, durante as convenções ocorrem
os concursos de cosplay. É um momento esperado por todos os fãs e que
geralmente constitui o ápice desses eventos. Para se ter a dimensão da popu-
laridade do hobby entre os fãs brasileiros, a primeira vez que eles se reuniram
foi na Mangácon II, organizada pela já citada associação Abrademi, em 1997.
Participaram do evento trinta cosplayers. Nos anos seguintes, o número foi
aumentando de tal maneira, que a maioria dos jovens que vai às convenções
de anime já são cosplayers, e eventos como o AnimeCon e Anime Friends
contam com mais de 20 000 visitantes por edição.

A complexidade do mundo otaku


 O fenômeno otaku (Barral, 1999) começou em 1983, quando o ensaísta
Akio Nakamori, com 23 anos na época, usou essa nomeação para falar
de um setor específico da juventude, em um artigo publicado na revista
Buricco. Mas a palavra otaku ficou à sombra durante muitos anos, vindo a
aparecer nos jornais com mais força apenas em outubro de 1989 e em uma
situação bastante trágica, que dará um teor absolutamente pejorativo ao
termo e ao fenômeno. Um jovem de 27 anos chamado Tsutomo Miyazaki
matou quatro jovens meninas e passou a ser considerado um típico otaku.
A partir daí, todo teor romântico que podia ser sugerido pela figura dos
jovens tímidos e românticos que se preservavam de qualquer acesso mais
direto com a sociedade foi esquecido e otaku tornou-se o assassino perverso
por natureza.
 Como fenômeno pop, o universo otaku devorou e transformou muitas ex-
periências anteriores. O próprio pensamento angura reapareceu de maneira
intensa nas páginas da revista Garo, a qual foi um verdadeiro laboratório para
novos cartunistas. Nas páginas da Garo e em diversos jogos e animações, a
trangressão e a crueldade (típicas do ankoku butô) tornaram-se mais signi-
ficativas e polêmicas do que propriamente na dança e no teatro que se faz
151
hoje no Japão.

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


 Assim, o que aparentemente era entendido apenas como entretenimen-
to ou depravação acabou por revelar um espaço importante para reflexão
e manifestação de idéias. Quando o artista Takashi Murakami lançou seu
manifesto Superflat em 2001, o mundo passou a compreender as experiên-
cias otaku ou “o mundo dos nerds” sob um viés politizado. A exposição de
suas obras em Nova York (Little Boy the arts of Japan exploding subculture,
2005), retomou a II Grande Guerra e as bombas atômicas, identificando
os japoneses, desde então, como portadores de “membros fantasmas”
que não seriam propriamente braços e pernas amputados, mas princípios
dilacerados. Little Boy era o codinome da bomba atômica que explodiu a
580 m do porto da cidade de Hiroshima às 8h15min da manhã do dia 6 de
agosto de 1945. Desde então, e até hoje, a questão mais complicada passou a
ser como olhar para frente sem tentar erradicar a história ou como conviver
com a noção de sujeito individual, importada do ocidente, sem perder o
sentido da coletividade.
  Quando os produtos e costumes pop saíram do Japão, tornaram-se in-
dependentes do contexto onde foram concebidos e, na maioria das vezes,
passaram a ser embalados na estética da mera diversão. Murakami fará
uma crítica à sociedade japonesa consumista, e ao mesmo tempo mostrará
como a nova geração de artistas poderia valer-se do próprio mercado e dos
meandros da política cultural para construir um novo pensamento, aliando
arte e consumo.
 Murakami nasceu em 1962. Desde as suas primeiras obras, passou a refletir
sobre a obsessão pela cultura das compras. Ele nunca teve vergonha de ser um
otaku, ao contrário, fez questão de produzir todo tipo de pinturas, esculturas
e caricaturas inspiradas pelo mangá, usando merchandising e cultivando o
que chama de poku, que seria a mistura entre pop e otaku. Um dos ícones
que criou foi o My Lonesome Cowboy, um boneco caracterizado como super-
herói de manga, nu, e ejaculando um líquido branco com exuberância. A
escolha do que ele faz decorre do fato de desconfiar que a masturbação é
uma das atividades mais reincidentes entre os otakus. Lonesome boy foi

Yubiwa Hotel
inspirado num filme de Andy Warhol. A sua versão feminina é uma boneca
com cara de menina, também de plástico, que não tem nenhum órgão sexual,
embora esteja semi-nua. Em compensação, tem seios enormes dos quais sai
um líquido branco que faz referência ao leite materno. O seu nome é Hiropon,
nome de uma anfetamina popular durante o período do pós-guerra.
 O que acontece com este novo pop, como ficou conhecido por alguns
152
autores a partir da geração de Murakami, é que ele direcionou novos modos
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

de recepção da estética japonesa fora do Japão; daí surgiria também o termo


J-pop, que se referia a Japan (Japão em inglês em vez de Nihon, que seria
Japão em japonês). A imagem anti-mimética das obras, a qual marcara
os modos de representação da arte japonesa, abria agora uma orientação
visual que, sob o viés das experiências otaku, faziam todo sentido, ou seja,
eram imagens contemporâneas na sua artificialidade e não mais imagens
da estética clichê de um antigo Japão. Parecia que o Japão já não era tão
distante, mas, ao contrário, servia como uma referência para o futuro. O
pop instanciava uma subjetividade poética que de forma mais ou menos
explícita refletia sobre esta condição social. Muitos de seus representantes
não eram apenas artistas, mas produtores, como o próprio Murakami, que foi
fundador da Hiropon Factory, agora chamada Kaikai Kiki. Além de chamar
os artistas para apresentar seus trabalhos, ele decidiu propiciar também
condições de trabalho para alguns deles, alimentando a produção artística
que se estende bem além dos limites do museu e da galeria. Era o caso
de produtos como camisetas, livros e tudo o que pudesse relacionar-se ao
universo otaku. Quando começou, em 1989, Murakami, não tendo dinheiro
para nada, chamou meia dúzia de estudantes e amigos, que trabalharam
recebendo apenas um lanche. Em cinco anos eles já constituíam um grupo
de 40 pessoas. Um exemplo interessante foi o de Aya Takano, que aos
20 anos começou a trabalhar na Hiropon Factory e aos 21 anos, em 1997,
quando fez sua primeira exposição em Tóquio, teve 90% dos seus trabalhos
vendidos imediatamente. O que interessava ao grupo era, portanto, abrir
caminhos para a cena artística internacional, aparecer em algumas das
exposições e eventos que Murakami organizava e, naturalmente, fazer os
contatos. Quando muda o nome da Hiropon Factory para Kaikai kiki, que
tem a ver com sobrenatural e bizarro, Murakami muda o foco da pesquisa e
da produção. Em lugar de apenas continuar pensando coletivamente a arte
pop, passa também a criar produtos que ganham vida própria, ou seja, são
produtos que apresentam um pensamento. De alguma forma esses jovens
artistas buscam, a exemplo de outros espalhados pelo mundo, o que Raoul
Vaneigem chamava de “o fim da velha linguagem das palavras”. Em seu
manifesto Superflat, Murakami explicou que “super flatness” é um conceito
original do japonês que tem sido completamente ocidentalizado. No entanto,
a inspiração é flagrante no pop americano do final dos anos 1950 e começo
dos 1960. Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Andy Warhol e Roy Lichenstein
já se valiam de muitos artifícios reutilizados pelos japoneses. O uso de
153
objetos cotidianos, a transformação de símbolos da nação em bens de mau

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


gosto, consumíveis.
 Mas a arte no Japão sempre teve suas especificidades. Sempre foi antro-
pofágica, demonstrando grande apetite pela informação. Não bastava matar
a fome com qualquer coisa que viesse. O próprio Murakami diz que há es-
pecificidades que marcam uma diferença radical em relação ao Ocidente e
são mantidas. Para dar um exemplo, observa que no Japão a arte deve ser
a expressão de uma coletividade e não de um princípio de individualidade.
Isso ainda vale em muitos sentidos e instâncias diferentes.
 Mas Murakami começa a chamar a atenção para o fato de que as conta-
minações entre oriente e ocidente são sempre de mão dupla. Se nas décadas
de 1980 e 1990 havia mais de cem mil otakus no Japão, isso foi diminuindo
de tal maneira que agora o que mais se vê são os falsos otakus, que já não
têm a mesma mentalidade. A cultura otaku se diferenciava da contracultura
porque não tratava de uma revolta contra o já estabelecido. Os otakus de
primeira geração tinham disposição para viver sem qualquer esperança e
isso, curiosamente, era a sua qualidade, não se tratando de um aspecto
negativo. Viver sem esperança em relação a tudo e a todos também pode
abrir algumas portas. No caso dos otakus essas portas eram virtuais. Kaichirô
Morikawa apresentou uma exposição na Bienal de Veneza, em 2004, sobre
otaku e moe, buscando a relação da arquitetura com o universo otaku, e
esclareceu que moe tem a ver com florescer, irromper. O que irrompe hoje
seria a inaceitabilidade. O otaku escolhe o caminho de se tornar cada vez
mais inaceitável e patético. Eles não são portanto uns maníacos quaisquer.
O seu bairro preferido de Toquio é Akihabara, onde encontram facilmente
seus pares entre milhares de aparatos digitais. Otaku no seu significado
original não se refere a laços de sangue nem à família, mas ao endereço
da casa onde se mora. Dentro da situacão solitária dos otakus, eles podem
ser definidos como os exploradores das possibilidades de transferência de
“incomunicações”. Isso não acontece apenas entre os jovens. As mães que
sempre trabalharam em casa vivem uma situação otaku quando os filhos
crescem e os maridos vão ficando cada vez mais distantes.
 Infelizmente, o uso da situação especial de quem se sente só foi explorado
de forma ameaçadora pela seita Aum Shinrikyo da verdade suprema, que
nasceu em 1980 e previa o fim da humanidade em 1999. No começo a seita
foi baseada na disciplina física, nos princípios da yoga e do budismo.
Quando as armas da ex-União Soviética entraram no mercado internacional,
inclusive com manuais de produção de armas químicas, estabeleceu-se uma
154
base da seita em torno do Monte Fuji com um laboratório clandestino do
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

gás sarin norteando os atentados terroristas de 1995, os quais se alastraram


pelos metrôs de Tóquio. Os prédios onde ficavam armazenados os laborató-
rios chamavam-se satyam (de satya ou “verdade” em sânscrito).
 De alguma maneira, nesse universo dos animes, mangás e jogos, criou-se
uma aproximação com algumas questões que estão em jogo em diversas
situações e se referem à perda da humanidade, da identidade, dos gêneros
ou da própria vida. É o mundo pós-Akira que começa quando quase tudo
já acabou, como propôs Katsuhiro Ôtomo no mangá de 1984, que originou o
filme homônimo. Mas não se pode generalizar.
 O otaku tem repugnância ao aprofundamento de qualquer relação
pessoal e fica fechado em si mesmo, no seu quarto. É um modo de vida. No
entanto, paradoxalmente, ele se opõe à noção de “si-mesmo”. Isso porque
coloca “um outro” em seu lugar e é com esse “outro” que vai relacionar-se
no mundo, sempre através de uma mediação que pode ser o computador,
um jogo virtual, os antigos walkman tranformados em Ipod ou ainda
personagens de Cosplay. O otaku é um produto da sociedade pós-industrial
e marcadamente anti-social. Como há uma taxa muito baixa de viciados em
droga no Japão, há quem considere o fenômeno otaku como um substituto
para esse desequilíbrio social, uma vez que as crianças do virtual são
viciadas na sua imaginação. Eles não se sentem à vontade a não ser dentro
dos universos virtuais que criam. Não buscam relacionar-se ao vivo com
ninguém. Isolam-se do espaço público e são proibidos de sofrer. Trata-se
de uma geração que não quer arriscar nada, isolada no próprio quarto. Eles
transgridem todos os limites do sexo, da morte, da violência, mas sempre
com a mediação da TV, do vídeo-game, do computador. Desafiam todos os
tabus, mas sem sair do lugar.
 No caso da dança, grupos contemporâneos como Nibroll, Strange Kinoko
e Yubiwa Hotel têm explorado os corpos do pop. Logo nos primeiros
espetáculos do Yubiwa, chamaram a atenção para o fato de que nowhere
(lugar nenhum) poderia ser lido como now here (aqui agora), tentando, a
partir dessa constatação, buscar um espaço entre essas duas noções. Daí em
diante, trataram de explorar corpos mutantes observando como as mulheres
se têm modificado para criar imagens específicas. Em seus figurinos, não
raramente exploram a estética kawaii (bonitinha), mas sempre mantendo
uma certa critica e estranheza: imagens de excesso em contraposição ao que
seria quase insubstancial.
 Um pouco como Peter Pan, não somente os otaku mas boa parte dos
155
japoneses buscam retardar ao máximo a passagem para a idade adulta.

Três momentos das Artes do Corpo no Japão


Assim, os computadores não são máquinas apenas, mas jogos para preservar
a infância. Observando-se numa perspectiva mais abrangente, evidencia-se
uma falta de ideais na geração que nasceu após 1960. O sistema econômico
e social conquistou uma série de privilégios e um crescimento abrupto sem
o seu esforço, portanto a essa geração restou apenas seguir aquilo que já
havia sido planejado para ela. Tal é a constatação de Akai Takami, um
dos primeiros otaku e co-fundador da primeira empresa de entretenimento
gerida por um otaku na década de 1980. Ele diz que até a Segunda Guerra
o Japão era uma sociedade de ordem confucionista na qual as crianças
tinham grande importância para os adultos. Os mais jovens respeitavam os
mais velhos e assim seguiam a vida. A ideologia militarista já não existia,
no entanto muitos de seus valores continuavam praticados. A geração logo
após a guerra ainda se valeu de alguns desses princípios, mas a posterior
ensinou aos filhos e netos que o passado estava enterrado e que não havia
mais como ressuscitá-lo. Na devoração do Ocidente, ocorreram, segundo
Akai, algumas modificações. Em vez do lema “Liberdade, Igualdade, Fra-
ternidade”, a ordem passou a ser “estudar, trabalhar e consumir”. Nesse
contexto, o corpo foi transformado rapidamente em objeto de consumo
descartável. Foi a partir das suas transformações que se construíram as
novas imagens do Japão.

Bibliografia
Barral, Etienne. Otaku, les enfants du virtuel. Paris: Denoel Impacts, 1999.
Brehm, Margrit (Ed). The Japanese Experience inevitable. Hatje Cantz Verlag, 2002.
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Yubiwa Hotel
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Tokyogaqui, 2008

157
Três momentos das Artes do Corpo no Japão

158
159

Três momentos das Artes do Corpo no Japão

Yubiwa Hotel
Please Send Junk Food
Tokyogaqui, 2008
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161

As artes japonesas no Brasil


O impacto da dança e do teatro
japonês em artistas brasileiros
Christine Greiner
162
As artes japonesas no Brasil
 Durante as primeiras décadas do processo de imigração japonesa para o
Brasil (1908-1938), muitas atividades de dança e teatro ficaram restritas aos
integrantes das comunidades, fiéis aos costumes de províncias específicas
do Japão. Mesmo durante o segundo período (1953-1979), após os quinze
anos do governo nacionalista de Getúlio Vargas, ainda era mais comum
encontrar grupos de jovens ou senhoras com roupas típicas festejando
163
datas do calendário nipônico em praças ou salões organizados para aulas

As artes japonesas no Brasil


de japonês e atividades lúdicas, do que propriamente identificar um
intercâmbio que pudesse gerar alguma manifestação artística profissional,
culturalmente híbrida.
  Foi apenas em torno da década de 1980 que artistas descendentes de famílias
japonesas e mesmo alguns brasileiros sem qualquer laço de sangue começaram
a interessar-se por técnicas e/ou modelos estéticos das manifestações nipônicas.
Dessa época em diante, é possível identificar situações distintas.
  Havia, por exemplo, os artistas que freqüentavam aulas de dança japonesa
oferecidas pela Aliança Cultural Brasil-Japão ou por imigrantes interessados
na preservação da cultura, sem qualquer vinculo institucional. Os motivos
variavam entre a mera curiosidade e a realização de projetos pontuais (por
exemplo, uma peça de teatro com tema japonês). Outra situação, bastante
distinta, era a dos profissionais que buscavam uma pesquisa específica,
em vez de workshops pontuais. Alguns decidiram viajar para o Japão para
vivenciar os treinamentos e a cultura em seus contextos de origem; e outros
ficaram no Brasil, mas contaram com a orientação de artistas imigrantes e/
ou daqueles que estudaram fora e retornaram para transmitir seus ensina-
mentos. Por fim, é importante mencionar ainda uma situação atípica, mas
mesmo assim cada vez mais presente no cenário artístico brasileiro e inter-
nacional. Trata-se dos artistas que não desenvolveram nenhum treinamento
importado do Japão, nem partilharam um interesse específico em relação
à cultura japonesa, mas mesmo assim apresentam em suas obras questões
muito próximas às dos artistas japoneses. Nesse caso, pode-se pensar em uma
espécie de empatia de cunho político, filosófico ou até mesmo existencial,
que passou a estimular ações intimamente relacionadas aos seus próprios
ambientes e, ao mesmo tempo, um perfil irreverente em relação a categorias
ou identidades culturais dadas a priori.

As experiências pioneiras
  Pode-se afirmar, sem correr o risco de gerar muita polêmica, que foi
após a primeira visita de Ohno ao Brasil, em 1986, que cresceu o número
de artistas interessados pelo universo butô e pela cultura japonesa em
geral. Entre as primeiras artistas que foram estudar no estúdio de Ohno
em Yokohama, estão a atriz Ligia Verdi e, em seguida, a coreógrafa Maura
Baiocchi e a dançarina Julia Pascali. Mas apesar da fascinação pelo butô, o
teatro clássico não deixou de exercer seus encantos e, no começo da década
de 1990, a atriz Alice K inspirou o pequeno grupo de artistas e pesquisado-
164
ras brasileiras descendentes de japoneses, que decidiram viajar para o Japão
As artes japonesas no Brasil

para realizar estudos específicos. Alice estudou durante um ano em Tóquio.


O nô era, na ocasião, o tema de sua dissertação de mestrado na Escola
de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Na volta ao Brasil,
explorou a questão da tradução corporal do nô, à luz dos ensinamentos de
Haroldo de Campos e, alguns anos mais tarde passou a investigar o teatro
cômico kyogen e o butô, tendo em vista o seu encontro com a coreógrafa
Anzu Furukawa, com quem desenvolveu vários projetos, tanto individual-
mente como em grupo, como foi o caso de “Afastem-se Vacas que a Vida é
Curta”, coreografia baseada na obra “Cem Anos de Solidão” de Gabriel Garcia
Marques, com o grupo Lume de Campinas. Aliás, é importante lembrar que
o nascimento do Lume, concebido pelo ator Luis Otavio Burnier, também
foi, desde o início, contaminado pelas culturas orientais, por conta de seus
estudos com Eugenio Barba (cujo treinamento partia de uma pesquisa que
apostava no cruzamento entre Oriente e Ocidente) e as pontes que, mais
tarde, o próprio Burnier criou com a semiótica da cultura e o butô.
  Na segunda metade da década de 1990, a coreógrafa Ângela Nagai também
viajou ao Japão em busca de aulas práticas de nô, no seu caso, no Instituto
Internacional de Nô, em Quioto. Desde essa época, Ângela intuiu uma
relação inusitada entre o candomblé e o teatro clássico japonês, uma vez que
ambos apresentavam danças resultantes da incorporação de uma entidade,
embora os procedimentos fossem absolutamente distintos. Esta e outras in-
quietações foram organizadas na forma de uma dissertação de mestrado no
Departamento de Artes Corporais da Universidade de Campinas.
  E, aos poucos, a rede foi ampliando-se. Durante a década de 1990, a
coreógrafa Susana Yamauchi, que já era bastante conhecida no meio da dança,
decidiu investigar os seus laços com o Japão criando os solos À Flor da Pele
(acerca do Japão imaginado) e A Face Oculta (após a sua primeira viagem à
terra de seus antepassados). Este ano, após nove anos de pesquisa, completa
a trilogia sobre o Japão com o solo Sonhos, baseado nos sonhos de seus an-
tepassados que imigraram entre 1921 e 1927 para o Brasil. A idéia de explorar
os sonhos surgiu da leitura dos contos de Ôoka Shôhei e Natsume Sôseki, que
falavam sobre resíduos de imagens que permanecem no subconsciente.
  Em meados de 1990, a rede ampliou-se ainda mais. A dançarina Denise
Cutourké viajou para a fazenda de Min Tanaka, artista de butô, onde durante
quase dois anos participou do projeto Body Weather Farm. No mesmo
período, a coreógrafa Marta Soares estudou durante um ano no estúdio de
Kazuo Ohno. Denise e Marta não tinham qualquer laço de sangue com a
165
cultura japonesa, mas buscavam questões semelhantes às do butô. No caso

As artes japonesas no Brasil


de Marta Soares, o contato com Ohno funcionou, antes de tudo, como um
operador de desestabilização das informações relativas à dança contem-
porânea que havia construído em seu corpo depois de anos de estudo em
Nova York, como demonstrou em seus solos premiados “Les Poupées” (1997),
“O Homem de Jasmim” (2000) e “O Banho” (2004).
  Entre as décadas de 1980 e 1990, foram também publicadas as primeiras
obras com títulos em português sobre a arte japonesa, realizadas por pes-
quisadoras brasileiras como Darci Y. Kusano, Sakae M. Giroux e Tae Suzuki
(ver bibliografia), seguidos por outras pesquisas que abriam a discussão
para novos temas, como o cinema (Nagib 1990 e 1995), o butô (Baiocchi
1995, Greiner 1998), o shodô (Saito, 2005), a animação (Souza, 2006) e
assim por diante.

As buscas por um outro Japão


  A partir de 2000, despontaram novas gerações de artistas para rediscutir
modos de aproximação e tradução entre Brasil e Japão. A performer Elisa
Ohtake, por exemplo, embora tenha aperfeiçoado seus estudos de dança
no Japão ao lado dos artistas de butô Yukio Waguri e Akira Kasai, nunca
pretendeu “aplicar” o butô em nenhuma de suas performances. A Elisa tem
interessado a questão da representação, da ironia, do pastiche e do fake,
muito característicos da cultura japonesa, sobretudo no seu universo pop.
Trata-se, portanto, de um atravessamento de questões culturais que acabam
encontrando o Japão por outras vias, sem explorá-lo propriamente como um
“tema”. Outro exemplo é o da dançarina Letícia Sekito, que ao entrar em
contato com o universo pop japonês passou a interessar-se pela cultura de
seus antepassados e tem trabalhado, nos últimos três anos, uma linguagem
que não se propõe a discutir ou elaborar grandes questões, mas que se deixa
levar pelo fluxo de imagens. O próprio título de uma de suas peças, “Disseram
que era japonesa” (2004), é exemplar. De fato, foi por conta de as pessoas
indagarem que tipo de “dança japonesa” Letícia praticava, que ela decidiu
apresentar, de maneira lúdica, os seus laços de identidade, respondendo com
bom humor à obsessão generalizada por raízes étnicas.
  Além dos artistas que foram estudar no Japão ou buscaram reinventá-
lo, é importante mencionar aqueles que tiveram contato com a dança e os
treinamentos nascidos no Japão, mas implementados aqui mesmo no Brasil,
através de imigrantes que consolidaram a aliança entre as duas culturas.
  O pioneiro foi Takao Kusuno (1945-2001), que se radicou no Brasil em
166
1977 e desde então trabalhou com muitos dançarinos e atores brasileiros.
As artes japonesas no Brasil

Takao nunca mencionou a palavra butô nos primeiros anos de seu trabalho
no Brasil, e pouco se sabe sobre qual foi, de fato, a sua experiência com
butô no Japão. No entanto, as transformações que provocou entre os artistas
brasileiros são indiscutíveis. E se não fosse a sua presença entre nós,
consolidada pela amizade e empatia com Kazuo Ohno após 1986, dificil-
mente o butô teria um impacto tão significativo no Brasil. Pouco a pouco,
Takao introduziu alguns princípios da relação do corpo com o espaço e
explorou as possibilidades de cada intérprete, a relação com a vida, a morte
e a percepção do outro, até criar, nos seus últimos anos de vida, a sua
Companhia Tamanduá . Pode-se dizer que Takao deixou marcas fundamen-
tais em artistas como o diretor de teatro Antunes Filho – que já tinha forte
vinculo com Japão a partir do contato com o diretor Tadashi Suzuki e o
próprio Kazuo Ohno –, como o coreógrafo Ismael Ivo, como Denilto Gomes,
Patrícia Noronha e Emilie Sugai e como tantos outros artistas da dança e do
teatro brasileiro que conviveram com o mestre.
  O segundo imigrante japonês, que continua atuante, fertilizando processos
de criação entre artistas brasileiros, é Toshiyuki Tanaka (conhecido como
Toshi). Já está no Brasil há pouco mais de uma década e tem apresentado
a inúmeros artistas e estudantes de arte o seitai-ho, o do-ho e outros
exercícios de preparação corporal para explorar a percepção, a consciência
e os diferentes estados do corpo a partir dos ensinamentos de Noguchi, o
seu mestre no Japão. Esta pesquisa não está voltada exclusivamente para
a formação artística. Juntamente com a sua parceira Ciça Ono, Toshi tem
trabalhado também com outros públicos, uma vez que faz parte do estudo
um aspecto terapêutico e de apoio a situações diversas, como é o caso, por
exemplo, do acompanhamento a mulheres grávidas.
  A noção de caminho e a percepção da natureza sempre foram os pontos
de partida para esses treinamentos, tanto para Takao como para Toshi, e
têm rendido frutos mesmo entre aqueles que não se dedicam especifica-
mente à cultura japonesa, como é o caso do diretor de teatro e professor
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Francisco Medeiros, e da
167

As artes japonesas no Brasil

foto ©: ??????
atriz e professora da Universidade de Brasília, Rita de Cássia de Almeida
Castro, ambos ex-alunos de Toshi. Há muitos outros exemplos, como o da
atriz Ondina Castilho, que relacionou a experiência das aulas de Toshi com
suas vivências anteriores com o diretor Antunes Filho e com o Japão, onde
viveu durante dois anos.
168
O caso específico da fascinação pelo butô
As artes japonesas no Brasil

 Embora os teatros e danças tradicionais japonesas tenham sempre exercido


grande fascinação sobre nós, nada se compara ao impacto do butô. Em 1986,
quando, a convite da família Kusuno, Kazuo Ohno esteve em São Paulo pela
primeira vez, ele não apenas emocionou a platéia, como transformou o
nosso conceito de dança, de corpo, de morte e de arte. Como se mencionou
anteriormente, alguns artistas brasileiros chegaram a viajar para Yokohama
para estudar com Ohno, integrando um circuito que começou no final dos
anos 70 – período em que o butô passou a ser exportado para o Ocidente – e
que transformou o estúdio do mestre em um ponto de encontro de artistas
de todo o mundo.
  O criador do butô, Tatsumi Hijikata (1928-1986), nunca saiu do Japão e por
isso foi o mestre Kazuo Ohno quem acabou transformando-se em uma espécie
de embaixador do butô. Passados mais de trinta anos, é interessante perceber
que o grande impacto desse intérprete-criador não se deveu apenas à sua
genialidade, mas ao pensamento instaurado no mundo a partir da apresenta-
ção do que seria um corpo em crise em suas múltiplas possibilidades.
  Assim, o grande interesse pelo butô no Brasil não foi apenas decorrente
de uma curiosidade qualquer ou da vontade de copiar um modelo exótico de
corpo, embora isso tenha acontecido muitas e muitas vezes. O seu impacto
mais significativo deveu-se à importância política e filosófica do reconheci-
mento de um corpo que vive no limite – da vida, da vontade, do desejo.
  No complexo universo do butô, pouco evidente e permanentemente
exaurido, passado e futuro apresentam-se como resíduos de presente.
Embora esteja publicado em tantos livros, não foram a guerra, as bombas
atômicas, tampouco a crise existencial que permeia os limites entre a vida
e morte que engendraram o butô. O contexto geral criou possibilidades,
mas não é apropriado simplificar o butô sob o rótulo de um efeito social.
Também não vale a pena entender o que a obra de Kazuo Ohno diz. Parece
mais interessante investigar como ela se foi organizando, a cada vez, como
se fosse a primeira.
  O corpo em crise é sempre local. Não faz sentido de maneira genérica.
Portanto, os dados cronológicos ajudam, mas são insuficientes. E mesmo a
relação com o chamado butô das trevas de Tatsumi Hijikata ilumina, mas
não resolve todas as indagações. É preciso chegar cada vez mais perto das
diferenças de concepção do chamado “corpo morto” que, amadurecidas
durante mais de cinco décadas, sobrevivem aqui e ali, ganhando novas
configurações muitas vezes extremamente banais. Isso porque, nas últimas
169
décadas, uma busca messiânica tomou conta de países como o Brasil, a

As artes japonesas no Brasil


Itália, a França, a Argentina, o México e os Estados Unidos, reinterpretando
os ensinamentos de Kazuo Ohno e de Hijikata. No entanto, poucos foram os
artistas que incorporaram, antropofagicamente, algumas de suas questões
mais importantes, sem se contentar em legendar os grandes temas.

As imagens do butô
  Kazuo Ohno nasceu em 1906 na ilha de Hokkaido. Após concluir a Escola
de Atletismo, tornou-se professor de ginástica em uma escola cristã. Em 1929,
assistiu ao espetáculo da dançarina espanhola La Argentina e, pouco depois,
ao do alemão Harald Kreutzberg. Já nessa época pouco importava a iden-
tificação com uma escola, modelo estético ou técnica específica. Em 1933,
decidiu estudar com Baku Ishii e, mais tarde, com Takaya Eguchi. Os dois
artistas são considerados no Japão os precursores da dança moderna alemã
de Mary Wigman.
  A escolha de Ohno não foi aleatória. No começo dos anos 1930, o panorama
da dança em seu país era composto pelas danças clássicas japonesas, algumas
provenientes dos teatros nô e kabuki, aulas de balé clássico ocidental e de
dança moderna. As técnicas ocidentais eram bastante procuradas, apontando
para novas abordagens de trabalho corporal. No caso específico das experiên-
cias inspiradas por Wigman, havia muitas possibilidades de improvisação
para a investigação de novos movimentos que não partiam de modelos pré-
estabelecidos no sentido de uma espécie de encadeamento de “passos de
dança”. Por isso pareciam particularmente interessantes.
  De 1938 a 1946, Ohno serviu ao exército. Ao voltar para o Japão, foi
convidado a dar aulas na famosa academia de Mitsuko Ando. Supostamente,
o seu curso seria de dança moderna, mas o trabalho já tinha uma marca
bastante singular. De fato, Ohno havia estudado dança durante apenas cinco
anos e se ausentado durante os seis anos seguintes devido à guerra. Isso
não significa que a dança deixara de fazer parte de sua vida. Ao contrário,
as imagens tornavam-se mais e mais complexas. Aos 43 anos, estreou o
seu primeiro recital explorando principalmente o que chamou de “modos
de expressão”. O seu objetivo era relacionar sentimentos, mas admite que,
nessa época, ainda não sabia exatamente o que buscava.
  Em 1954, a história tomou um novo rumo. Ohno conheceu Tatsumi Hijikata,
um estudante recém-chegado de Akita (nordeste do Japão), que freqüentava
as aulas de jazz. Hijikata era um jovem estranho. Nunca participava das
aulas de Ohno, ficando o tempo inteiro em um canto da sala, escrevendo. Nas
170
famosas aulas de Ando, dona da academia, os colegas já sabiam: na vez de
As artes japonesas no Brasil

Hijikata realizar piruetas, todos se afastavam, pois algo imprevisível poderia


acontecer. Ele parecia incapaz de repetir o que era sugerido. Mas o que seria,
aos olhos de seus contemporâneos, apenas uma insanidade, tornou-se aos
poucos um dos manifestos mais radicais acerca da existência humana. Não
era uma tentativa de configurar vocabulários diferenciados de dança, mas
uma nova proposta de pensamento para reinventar o corpo. Neste sentido,
Kazuo Ohno foi o parceiro ideal, uma vez que, segundo o próprio Hijikata,
era “um dançarino que exalava o veneno do corpo”.
  A pesquisa nomeada como ankoku butô (inicialmente chamada de ankoku
buyô) incluiu, portanto, a observação das aulas de Ohno, experimentos de
improvisação com a parceira Akiko Ohara (residente no Brasil há mais de
quarenta anos na comunidade Yuba) e a memória fragmentada de uma vida
nada estável. Além disso, a leitura de autores como Yukio Mishima, Antonin
Artaud, Jean Genet, George Bataille, Marquês de Sade e Lautréaumont;
e ainda a observação cuidadosa da obra de artistas como Gustav Klimt,
Hans Bellmer, Pablo Picasso, Wolz e Francis Bacon, tudo isso foi aos poucos
compondo uma rede complexa de informações.
  Em 1977, depois de participar de muitos espetáculos sob a direção de
Hijikata e do grupo ankoku butô ha, Kazuo Ohno criou a sua própria escola
em Yokohama, e começou a carreira como solista com a obra Homenagem
a la Argentina. Em 1980, estreou A Mesa na Europa (Festival de Nancy) e
passou a viajar pelo mundo inteiro, sendo reconhecido como um dos maiores
intérpretes do século.
  Para conhecer melhor o universo criado por Ohno, é interessante observar
que ele partiu sempre de imagens externas e internas: a da dançarina
espanhola La Argentina, a pintura de Natsuyuki Nakanishi ou a memória
da mãe.
  Para a criação da coreografia Mar Morto, trabalhou com a imagem da
criança no útero materno, do mar salgado em Israel que há milhões de
anos havia sido ligado ao Mar Mediterrâneo, finalmente de um fantasma
que atravessava as placas tectônicas. Em Water Lilies, inspirada na obra de
Monet, havia também uma imagem, desta vez a da virgem Maria atraves-
sando o jardim de Monet.
  Segundo Ohno, a dança começava sempre nos gestos do cotidiano e era
preciso trabalhar durante anos para analisar, organizar os próprios gestos
e aprofundar a consciência da vida. Durante as suas aulas em Yokohama,
costumava formular muitas questões sobre a vida diária, o auto-respeito e
171
o respeito pelos outros. Os temas mais comuns eram a felicidade e a dor de

As artes japonesas no Brasil


viver, as feridas da vida e a qualidade selvagem da natureza. As cicatrizes do
corpo pareciam estar sempre abrindo-se e fechando-se, mas havia também
as cicatrizes do coração, um tema recorrente em suas lições, assim como o
dos insetos, o do útero materno e o das marionetes, que se referia ao “deixar-
se mover por algo”. Ele explica que o estudante de dança é como um criador
do mundo, sem identidade, existindo antes do aparecimento do individual.
Então, tudo não passa de um jogo. Não é à toa que Ohno reconheceu a
grande afinidade entre o butô e o teatro de bonecos. É como se o corpo fosse
manipulado por algo externo a ele mesmo.
  Outra metáfora importante é a dos insetos. Ohno sonhou com um inseto
que estava na sua mão e era uma espécie de lagarta. Após algum tempo, a
lagarta transformou-se na sua mãe já morta. O inseto, para Ohno, era uma
espécie de síntese da dança. Isso porque muitos insetos passam por fases
de metamorfose e alguns carregam o esqueleto para fora do corpo, transfor-
mando-o em um corpo virado pelo avesso. Segundo Ohno, a princípio todo
mundo dança com uma cabeça repleta de desejos. É preciso saber de onde
viemos, para onde vamos, como nos movemos. Mas, aos poucos, o treino
do butô muda o foco. O universo deixa de ser apenas o corpo individual,
buscando conexões com o seu entorno. O cérebro continua sendo importante,
mas surgem diferentes perguntas: é possível dançar partindo de outros órgãos
internos como o coração e os rins? Qual o nível de consciência que temos
desse interior? Como ele se relaciona com o que está fora, no mundo?
  A constituição do corpo não é criada apenas pelo cérebro. Essa constatação
é importante porque o uso dos sentidos diversos passa a interessar. Há coisas
que não se vêem e que não estão sob controle racional, mas que existem.
Coisas que não são tocadas, mas têm textura, materialidade. Para criar a
dança, de acordo com Ohno, é preciso compreender a origem da vida, como
ela se forma como embrião ou bactéria. Um dançarino pode falar e refletir
acerca de tudo: o corpo, Deus, a natureza, o universo; mas a origem da dança
no corpo seria sempre a não-idéia, o que ainda não foi formatado, o que
conecta o dentro e o fora em um estado primário, precário, em formação.
  A memória do corpo, portanto, é também a memória do universo e da
vida. Só assim tem sentido dançar. Não se trata de uma forma pronta que se
move, mas de algo que a precede. Certa vez, Ohno comentou que depois de
ver muitas gravações das primeiras apresentações de La Argentina, acabou
esquecendo muito do que havia feito. Afinal, não era mesmo possível dançar
172 aquilo de novo para manter o que se chamava no ocidente de “repertório”.
Butô deveria ser criado a cada segundo. Ao perder um momento, nada mais
As artes japonesas no Brasil

acontece. Por isso não haveria como dizer quando começa a criação de uma
dança. Butô não começa a ser feito para um espetáculo. É durante toda a
vida. A preparação, o estudo e a vida precisam andar juntos.
  A outra imagem recorrente em sua obra é a do coração. Segundo Ohno, no
começo ele pensou em corpo, coração e cabeça como se estivesse olhando no
espelho, sendo visto de fora. Mais uma vez, como no caso do inseto, aparecia
a questão do que está dentro e do que está fora. A dança começava com o
coração. Mas é importante lembrar que kokoro em japonês é coração que
pensa e sente. O propósito do butô é aprender como um inseto. Há ações in-
teligentes, mas não necessariamente racionais. O pensamento é o pensamento
do corpo. Por isso o trabalho é sempre individual, mas ao mesmo tempo, não
é isolado. No corpo, não estamos sós, dizia Ohno. Aprendemos o tempo todo,
mesmo com os mortos. É necessário experimentar, manter os olhos abertos
sem ver nada, como os insetos que buscam a luz. Se acendermos uma luz,
ela chamará os insetos, que a ela se dirigem, sem psicologia. Ao dançar
de olhos fechados perde-se uma parte essencial do corpo, mas ao mesmo
tempo, algo diferente é reconhecido. Ele conta que teve um cachorro que
morreu de olhos abertos e translúcidos. E que a partir de então, aquele foi o
olhar que passou a interessar-lhe para criar a dança. O olhar realista e o olhar
teatral não serviam mais. Ohno buscava o olhar de morto. Quando se entra
em contato com essas metáforas, existe um grande risco de desentendimen-
tos e elucubracões. Não se trata de um “vale tudo”. Matar o corpo para criar
uma dança significaria matar a submissão da expressão do corpo à vontade
de um sujeito, sem o reconhecimento de que o corpo é um sistema e as suas
conexões com o ambiente são decisivas, como a luz para o inseto.
  O butô não nasce da clausura de um sujeito dentro de si mesmo.
  A platéia precisa elaborar outro padrão de escuta e de olhar para estabelecer
uma conexão e reconhecer a complexidade envolvida nos movimentos que
se dão a ver. Isso porque não há interpretação de coisa alguma. A represen-
tação é sempre precária. O que dá a ignição é o que dança.

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174
As artes japonesas no Brasil

Dorothy Lenner
Tokyogaqui, 2008
175

As artes japonesas no Brasil


O espaço ma e Hélio Oiticica
Michiko Okano

176
As artes japonesas no Brasil
 Passaram-se 100 anos desde a chegada dos primeiros japoneses a bordo
do navio Kasato Maru, e 42 anos desde que os meus pés pisaram pela
primeira vez o porto de Santos, após quase 40 dias de enclausuramento na
embarcação Cerejeira, o Sakura Maru.
  Tudo era diferente aos meus olhos infantis: os cachos de banana eram
assustadores para quem via a metade de uma banana servida no prato; os
177
abraços e beijos intimidavam, por eu não estar habituada ao contato pele a

As artes japonesas no Brasil


pele; os rostos heterogêneos multirraciais pareciam estranhos para a menina
acostumada a ver apenas as faces nipônicas.
  Houve muita mudança desde então: comer sashimi e onigiri já não é alvo
de zombaria, os beijos e abraços fazem parte do meu cotidiano e ver apenas
rostos japoneses na minha terra natal me causa, hoje, estranheza.
  Adaptação e integraçãoocorreram, em duas vias, na terra brasileira, e con-
seqüentemente modificaram a forma, tanto dos japoneses imigrantes quanto
dos brasileiros, de perceber e olhar o mundo.
  Como parte desse processo, este texto apresenta um modo de comunicação
especificamente nipônico, diferente do brasileiro, e busca estabelecer um
primeiro contato, que é o início de todo e qualquer diálogo e posterior
contaminação, cruzamento e integração. Trata-se de um olhar e de um
pensamento que se instalam no que está “entre”, num espaço-tempo
intervalar – denominado Ma –, em que os meios perceptivos e sensitivos se
tornam dominantes, mais que a lógica e o conceito.

O Ma
  Há certas coisas na vida que não se explicam ou a linguagem verbal não
se presta a esclarecer suficientemente. O Ma, uma noção peculiar da cultura
japonesa, faz parte desse universo, cujo entendimento se realiza, essen-
cialmente, por meio da intuição, do corpo, e, portanto, da vivência. É uma
idéia “não conceitual”, algo que todos sabem o que é, mas não conseguem
explicar, quando lhes perguntam. No entanto, ela faz parte do cotidiano do
povo japonês. A existência desse pensamento num país nipônico justifica-
se pelo não-enraizamento da lógica cartesiana e pela ampla adoção de um
conhecimento baseado em múltiplos sentidos, sem limitar a sua aquisição
ao domínio da visão.
  É um tipo de cognição denominado “texto não-verbal” pela semioticista
Lucrécia D’Alessio Ferrara (2007), isto é, aquilo que “se apresenta diluído
no cotidiano”, que “nada impõe à nossa atenção” ou que “é mudo porque
não agride a nossa atenção”. É difícil apreendê-la, principalmente quando se
tenta fazer isso por meios lógicos, mas ela é acessível através de “um olhar
tátil, multissensorial e sinestésico”. Pelo seu dinamismo, exige “uma leitura,
senão desorganizada, pelo menos sem ordem preestabelecida, convencional
ou sistematizada”.
  Apesar dessa inefabilidade, o espaço-tempo Ma é reconhecido natural-
mente pelos japoneses no seu dia-a-dia e encontra-se, inclusive, inserido na
178
própria linguagem. A expressão Manuke (composta de dois ideogramas que
As artes japonesas no Brasil

significam respectivamente Ma + tirar = falta do Ma), por exemplo, demonstra


que a ausência do Ma corresponde à falta de inteligência, e é empregada
como sinônimo de pessoa ignorante. No Japão, é falta de bom senso não saber
obter um Ma adequado na comunicação, como uma pausa apropriada numa
conversa ou uma distância física ou emocional ideal num relacionamento.
O Ma é, assim, um conhecimento adquirido naturalmente pelos japoneses
ou, ainda, uma herança cultural do povo. Apresenta-se, portanto, como um
senso comum enraizado na vida cotidiana, sem necessidade de explicações
lógicas ou conceituais.
  A idéia do Ma, originariamente, é relacionada ao espaço mitológico vazio,
demarcado por pilastras, que podem ser atadas por uma corda, onde haveria
a aparição divina no território criado. É um território vazio no qual é possível
ocorrer um acontecimento, e pode ser correlacionado ao zero da possibili-
dade de nascimento, mas não ao da morte.
  Ma é algo que não é passível de definição, porque é um dado pré-existente
e, assim, nada se pode dizer a seu respeito antes da sua existência no mundo
fenomenológico. Corresponde ao que o semiótico Charles S. Peirce classifica
de primeiridade, a qual envolve o “estado de consciência de experienciar
uma mera qualidade”, entendendo-se qualidade como uma concepção que
“é o que é, no seu estado meramente potencial, independente de ser sentida
ou pensada” (IBRI, 1992).
  Assim, o Ma está alojado no universo dos signos de possibilidade, aqueles
que não se tornaram existentes, mas que se encontram no primeiro estágio,
ainda sem qualquer mediação lógica ou representação.

A Espacialidade Ma
  O Ma torna-se verbalizável no momento em que ele aparece no mundo,
estado esse que será denominado Espacialidade Ma. Quando Ma se faz repre-
sentável ou concretamente visível no mundo da existência, aparece como um
“espaço-entre” e ganha manifestações múltiplas: intervalo, passagem, pausa,
não-ação, silêncio, etc. Essa semântica é identificada na própria composição
do ideograma Ma , que se constitui de duas portinholas, através das quais,
no seu entre-espaço, se avista – o sol ( ).


179
(Ma) (portinhola) (sol)

As artes japonesas no Brasil


  Ao delinear as principais características das espacialidades ocidental e
japonesa, nota-se que a ocidental se vê, preponderantemente, marcada por
uma representação regida pela razão. No caso nipônico, é possível observar
montagens que inserem espaços intermediários, engendradores de novas
possibilidades: Ma é uma espacialidade intersticial em suspensão, prenhe de
potencialidades, um espaço-entre disponível para tudo poder “vir a ser”.
 Seguem breves exemplos de dois elementos da arquitetura japonesa, a
fim de facilitar o entendimento do tema: o recinto Ma e o corredor-varanda
da casa tradicional japonesa. Na história da arquitetura japonesa, o Ma
significou uma medida linear, (distância entre dois pilares), bidimensional
(área entre quatro ou mais pilares) e tridimensional (um recinto), sendo a
terceira semântica a mais utilizada nos dias de hoje, que é uma área de
tatami, geralmente desprovida de móveis, portanto “vazia” na dimensão
física, à espera de objetos e pessoas, com a possibilidade de transformar-se
em vários ambientes, determinada pela conexão estabelecida. É uma zona
intervalar de fronteiras, não distintiva, capaz de abrigar múltiplas funções.
  Convém explicitar que a flexibilidade é uma das características da
arquitetura japonesa, que pressupõe a existência de fronteiras adaptativas e
dinâmicas, isto é, o tamanho desse espaço “disponível” é definido de acordo
com a necessidade do seu uso. As vedações, que podem ser biombos, cortinas
de tecido ou bambu, ou painéis de correr de papel, apresentam-se maleáveis,
a fim de flexibilizar a dimensão espacial. Ma torna-se um espaço neutro que
permite transformações e movimentos: “um espaço em fluxo”, conforme o
arquiteto japonês Teiji Itoh (1978).
  Outro exemplo da espacialidade Ma é o corredor-terraço intervalar
denominado engawa, que separa e ata o ambiente interno e externo ou a
construção e o jardim da casa tradicional japonesa. Como se trata de um
elemento ambíguo, engawa pode ser considerado interno, já que possui uma
cobertura, mas também externo, porque, além de possuir a vedação que o
separa do ambiente interno, o pavimento de madeira distingue-se do piso
interno de tatami. A ambigüidade é estabelecida: enquanto o fechamento
vertical define o engawa como algo pertencente ao externo, os elementos
horizontais, como a cobertura e o nível do piso, indicam-no como interno.
  Assim como o recinto, o uso do engawa é múltiplo, o que permite acomodar
uma visita informal, ser lugar para crianças brincarem, para pessoas de
idade tomarem sol ou tirarem uma soneca ou ainda para a família inteira
180
se refrescar, numa noite quente de verão, ou apreciar a lua cheia no outono.
As artes japonesas no Brasil

Engawa apresenta-se como uma extensão do ambiente interno, mas invadida


pelos elementos externos: luz, vento e visão da paisagem externa. Observa-
se, assim, uma zona ambivalente de conexão, entendida tanto como externa
quanto como interna, prenhe de possibilidades de ações.
  A espacialidade Ma é, justamente, algo que está “em meio de”, o milieu
(mi=Ma, lieu=lugar, lugar do Ma), segundo o japonólogo francês Augustin
Berque, que também afirma que a passagem de um a outro não é nem um e
nem outro, ou é simultaneamente ambos. Sobre a concomitância presente no
Ma, a arquiteta Christine Buci-Glucksman (2001), também francesa, aponta:
“o espaço Ma é simultaneamente intervalo, vazio e espaçamento ‘entre’;
separa, ata e instala uma respiração, uma flutuação e uma incompletude que
engendra certa relação de tempo ao infinito, próprio do Japão”. O espaço-
entre, com possibilidades infinitas, separa e ata dois ambientes heterogêneos
e cria uma espacialidade contínua, que se atualiza conforme o tempo, por
meio das relações estabelecidas pelo homem.

Diálogos entre o Ma e as obras de Hélio Oiticica


  Hélio Oiticica (1937-1980), um dos artistas brasileiros mais revolucionários
e inovadores da geração dos anos 1960 e 1970 buscou em sua obra “propostas
de desenvolvimento de atos de vida”, transgredindo a consideração da arte
como mera representação.
  Correlacionam-se com o Ma, neste texto, algumas obras representa-
tivas do artista, como o Parangolé e os Penetráveis, que possuem grande
influência da estética da favela, do samba e da Mangueira dos anos 1960.
Em ambos os casos, japonês e brasileiro, nota-se a presença do espaço-dis-
ponibilidade, quando as espacialidades se mostram abertas como ponto de
partida para um desencadeamento posterior, do espaço-movimento, isto é,
da construtibilidade espacial numa perfeita conjunção espaço-tempo; e do
espaço-convivência, no qual o corpo desenvolve uma estreita relação com o
ambiente por meio da sua vivência.
Espaço-disponibilidade: estética do inacabado
  A espacialidade Ma oferta um ambiente disponível, a princípio vazio,
para uma possível ação. Um mesmo recinto de quatro tatami e meio,
(aproximadamente 2,70 x 2,70m), geralmente desprovido de móveis, pode
transformar-se quer num dormitório quando se estende o futon (acolchoado
para dormir), quer numa sala de estar ou de jantar, se um ozen (mesa baixa
181
e dobrável) e almofadas zabuton forem arranjados. Não há uma delimitação,

As artes japonesas no Brasil


nem uma função preestabelecidas para a esfera privada na arquitetura
residencial tradicional japonesa. Assim, a espacialidade Ma torna-se um
espaço-disponibilidade intersticial, uma mediação para a ação, e constitui
ambiente em eterna mutação.
  O objeto Parangolé, uma espécie de capa maleável feita de materiais
diversos (pano, borracha, tinta, papel, vidro, cola, plástico, corda, esteira),
pode também ser considerado um elemento de mediação: o vestir, em vez
de se limitar ao ver e atentar, é seguido do movimentar que transforma o
espectador, observador passivo, em sujeito ativo usuário. A proposta da obra
de Hélio Oiticica é que o outro complemente a sua criação, por meio do
uso do Parangolé e faça a sua descoberta do corpo e do mundo. Maleável
e fluido, quando suspenso nos vãos intersticiais do corpo, desenha formas
sempre em transformação, isto é, em movimento. O artista torna-se, aqui, um
propositor. Cria um espaço aberto que incita novas experiências, reservando
atos heurísticos ao participante. São obras que não se limitam a expressar-se
por si sós, mas a expressão ocorre “por meio” delas.
  Tanto o trabalho artístico de Hélio Oiticica, quanto o recinto Ma não fazem
parte do universo das criações imóveis, mas tornam-se ponto de partida para
um possível acontecimento, ou seja, um gatilho para a ação a ser desen-
volvida a posteriori pelo ser humano. Participantes da estética do inacabado,
essas espacialidades encontram-se em constante construção.

Espaço-movimento: construção de um processo


  A criação do Parangolé relaciona-se a um momento em que o artista
freqüentava a Mangueira e encantava-se com a experiência. Assim, é natural
que a estética desse ambiente influencie os seus trabalhos. A arquiteta Paola
Berenstein Jacques (2003) denomina-a de “Estética da Ginga”, a qual se apresenta
como composição dos fragmentos presentes nas favelas e dos movimentos dos
corpos que dançam. A construção dos barracos é algo processual, ou seja,
depende da possibilidade de obtenção do material, muitas vezes restos de
outras construções, que são adicionados ou substituídos à medida que os
favelados obtêm materiais mais adequados. É uma espacialidade movente
que, necessariamente, envolve o espaço e o tempo, dialoga com o acaso e tem
como conseqüência algo sempre inacabado, aberto a participações e comple-
mentações externas, denominado pela pesquisadora de espaço-movimento.
  No caso da espacialidade Ma presente no sandô, percurso de peregrina-
ção de um santuário xintoísta, é elaborado um espaço-tempo adaptativo
182
da zona profana para a divina. No caso do Santuário de Ise, da província
As artes japonesas no Brasil

japonesa de Mie, o transeunte passa por um portal denominado torii e por


uma ponte sobre o rio Isuzu, ambos elementos primeiros que demarcam
a passagem para o território divino, quando se descortina uma floresta e,
através dela, caminhos tortuosos de pedregulhos. Não só o visual, mas os
outros sentidos são aguçados durante a caminhada: a audição, pelo som
das águas do rio e pelo barulho dos pedregulhos sob os pés dos transeuntes;
o olfato, pelo aroma do verde das árvores; o paladar e o tato, pela água
que purifica a boca e a mão. Essa zona de ablução indica a proximidade
do ponto de chegada, o santuário, que se oculta por entre várias cercas e
não pode ser visto pelos peregrinos. O que interessa, nesse caso, não é o
santuário propriamente dito, mas o movimento de aproximação a ele, o
“espaço-tempo” desenvolvido pela experiência sensória do corpo humano
ao percorrer o trajeto para o símbolo divino.
  O “grande labirinto” foi uma das aspirações que Hélio Oiticica registrou no
seu diário no dia 15 de janeiro de 1961, e que ele vem a descobrir na favela
da Mangueira em 1964. Um dos exemplos que inclui esse conceito são os
Penetráveis, tábuas de madeira suspensas pelo teto, que compõem paredes de
diversas cores e tamanhos, consideradas por ele uma espacialidade na qual
“o espaço e o tempo se casam em definitivo” (OITICICA, 1986). O espectador,
além de penetrar na obra e escolher o seu percurso, que se apresenta como um
labirinto, poder também manipular o objeto, trocando a posição das placas:
os participantes são vivenciadores e construtores do seu próprio labirinto.
  Na espacialidade do sandô, a sensação do labirinto não é tanto no
sentido físico, mas sobretudo no da ordem espiritual, porque é um lugar de
passagem para o sagrado. A sensorialidade está implícita no labirinto e está
relacionada não à forma, mas à experiência de nele penetrar. Geralmente
tortuosos, os caminhos que se oferecem ao transeunte – paisagens diversas
que o surpreendem quando dobra uma curva – ajudam a criar a tal sensação.
Talvez outra chave para a compreensão do sandô como labirinto esteja no
fato de essa espacialidade ocultar o centro, isto é, o santuário propriamente
dito. Se a estrutura piramidal promete a certeza de um cume a atingir, essa
caminhada oferece uma invisibilidade a quem alcançar o ponto mais alto
após subir as inúmeras escadas que caracterizam o final do trajeto. A jornada
faz parte da estética do oculto, em que quanto mais escondido, mais valioso
e sublime é o objeto que se almeja. Trata-se de uma espacialidade labiríntica
e espiritual de peregrinação na qual inexiste o centro.
183
Espaço-Corpóreo: vivência do corpo no espaço

As artes japonesas no Brasil


  O Parangolé, por Oiticica denominado cor-estrutura em razão de estruturar
ações humanas, efetua o deslocamento do suporte tradicional para o corpo
de quem o veste, e permite a cada um brincar, dançar e elaborar a sua forma
de participação na arte. A obra, precisamente, correlaciona os três elementos:
o espaço, o tempo e o homem, cujo corpo atua não como mero suporte, mas
como sujeito da ação por meio da qual se constrói a arte.
  Esses aspectos também se desenvolvem na obra denominada Back Side
of The Moon (1999), do artista americano James Turrel, que se encontra no
Templo Minamidera, na Ilha de Naoshima, Japão. A ilha é um projeto do
arquiteto japonês Tadao Ando, que reformou o antigo e tradicional templo,
transformando-o inteiramente para a exposição de Turrel.
  Quando se adentra na escuridão do templo, a primeira reação do visitante
é abrir os braços para evitar algum choque do corpo com objetos estranhos.
Uma vez que a visualidade é roubada, as outras percepções se aguçam: o
olfato, a audição e o tato. Passados alguns minutos, o órgão visual acostuma-
se com a negritude do ambiente e torna-se possível enxergar algumas
sombras. E, somente após quase dez minutos de permanência no local, um
retângulo de luz azul começa vagamente a fazer-se ver. É uma espacialidade
que a princípio se apresenta vazia, e na qual, por meio da vivência temporal
do corpo no ambiente, a arte de Turrel, surpreendentemente, se mostra aos
nossos olhos. A obra apresenta-se como uma recriação de uma espacialidade
Ma, que preserva a memória cultural de um povo, já que o templo era local
de encontro dos habitantes da ilha. Conserva-se não a forma, mas a memória
espiritual e sensitiva presente nesse lugar.
  O desenvolvimento da corporeidade faz-se, tanto em Turrel como em
Oiticica, por meio de uma construtibilidade no tempo, em conjunção com a
ação humana. Ao experienciar uma arquitetura ou uma obra de arte, mais
que o olhar, o corpo, por meio da ação da espera intervalar ou do movimento
dançante, que envolve não só a visualidade, mas todos os sentidos, se torna
um elemento preponderante para obter-se a experiência fenomenológica.
Espaços em construção
  A espacialidade interna das favelas, geralmente única, divide-se, à noite,
em vários compartimentos por meio de cortinas de tecido ou de plástico,
para preservar a intimidade das pessoas ali presentes. O recinto tradicional
japonês também oferece uma espacialidade única, flexível, a ser dividida
pelas portas de correr de papel ou por biombos, dependendo do destino
184
que se deseja dar ao ambiente. No caso da favela, a flexibilidade pode ser
As artes japonesas no Brasil

conseqüência da pobreza, da falta de opção na aquisição do material ou


da carência da área disponível e, no caso japonês, é característica inerente
da arquitetura. Do lado brasileiro, cria-se uma espacialidade ambígua, no
sentido de fundir o público e o privado pela ausência de uma vedação fixa
e, do lado nipônico, introduz-se esse elemento numa arquitetura que se
caracteriza pela flexibilização espacial e pela coexistência de espacialidades
heterogêneas como público/privado ou interior/exterior.
  A vagueza significa, nesse caso, ter fronteiras maleáveis e movediças. Oiticica
representa esse aspecto, ao transportar o interior de uma favela para o exterior,
em obras que flexibilizam os limites espaciais. É bom lembrar que a própria
exposição gera também um deslocamento espacial humano: o do povoado da
favela para o museu. No caso do Ma, a fronteira entre o interno e o externo torna-se
ambígua e constitui um universo que “não é” mas que sempre “poder vir a ser”.
  Em ambos os casos, temos lugares efêmeros, fluidos e inacabados, num
eterno construir. O desconstruir e o reconstruir fazem parte do ciclo natural
da favela, da mesma maneira que a possibilidade de existir e de desaparecer
são particularidades do Ma. Não obstante, as diferenças são evidentes: a
estética do Ma, da simplicidade, do mínimo necessário, pressupõe um espaço
intervalar potencial para uma possibilidade de aparição do movimento; e a
estética da ginga é resultante de um movimento rítmico em eterna transfor-
mação, que só pode ser brasileiro, aquele do samba, dos jogadores de futebol,
que inexiste no caso japonês. Um é o branco, o silêncio ou a quietude à espera
de uma ação e o outro é o movimento ondulante caótico e incessante.
  No entanto, a cognição, tanto do Ma quanto das obras de Oiticica, faz-
se de modo plurissensorial, no qual se observa a inclusão da “vivência do
corpo em processo”. Constituem ambos o universo do “tornar-se”, de algo
que está em suspensão, da arquitetura espaço-temporal que, simultanea-
mente, se espacializa e temporaliza, em que o homem se transforma no real
construtor do mundo, não só racionalmente, mas corporalmente.
  Quem sabe Hélio Oiticica não almejava construir uma espacialidade Ma
na terra brasileira?
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As artes japonesas no Brasil

186
187

As artes japonesas no Brasil


A história dos Japonismos
no Cinema
Marcela Canizo
188
As artes japonesas no Brasil
 Com diversas nuances, o cotidiano contemporâneo das grandes cidades
do mundo inteiro oferece hoje uma diversidade de imagens e sons que,
como um palimpsesto, se superpõem no imaginário urbano. Qualquer
tentativa arqueológica para classificar possíveis origens é ultrapassada
pela dinâmica sincrética de tais imagens e sonoridades. Qualquer tentativa
fundamentalista em busca da pureza ou identidade torna-se apagada num
189
contexto polifônico.

As artes japonesas no Brasil


  Diferindo de outros processos de imigração em outros países do Ocidente,
a presença do imaginário oriental dentro da dinâmica social brasileira foi
“antropofagizada” e assimilada rapidamente. Os elementos das culturas
orientais, particularmente na cidade de São Paulo, apresentaram um
permanente fluxo de literatura, imagens, culinária e práticas que fazem parte
hoje do cotidiano da cidade e se somam às características próprias. São Paulo
abre para nós a possibilidade de viver o Japão do Brasil, um orientalismo
local, incomum em outras cidades de América Latina. A exibição Tokyogaqui
traz para o público brasileiro a oportunidade de experimentar um pouco
desse turbilhão de imagens e sensações culturalmente híbridas, geradas em
territórios intersticiais, e que fazem parte do nosso cotidiano na cidade.
  Uma possível hipótese para se pensar em relação a essa citação e mistura
infinita de imagens pode ser procurada na tradição artística do Extremo
Oriente. Uma das diferenças primordiais em relação às categorias estéticas
ocidentais é o aspecto não mimético das artes. A busca estética não partiria
da imitação e sim da criação de uma realidade artística, sem que neces-
sariamente os paradigmas de representação tenham correspondência
aparente com a realidade representada. Por exemplo, a cultura do livro
teve em suas origens a forma de um corups imagético textual, onde não
somente a palavra escrita fazia parte da obra, mas imagens acompanhavam
os textos. Entre as figuras retóricas tradicionais das artes visuais no Japão
a partir do período Edo (1615-1867) é o surgimento do mitate-e1, recurso que
apresenta personagens contemporâneos “à maneira de” algum deus ou
personagem famoso representado na época clássica, chinesa ou japonesa,
com um viés contemporâneo. O resultado é certa permanência das mesmas
imagens ao longo do tempo e a abolição da representação como conceito, já
que os objetos são apresentados metaforicamente, com um olhar renovado.
Para uma estética ocidental este é um assunto complexo. Uma personagem
disfarçada de uma personagem antiga, não é estritamente um disfarce, é
a figura contemporânea que adquire um status diferente apresentando-se
como personagem mítica ou histórica, misturando duas categorias muito
importantes nas artes do Japão: os objetos elegantes e os objetos prosaicos
ou vulgares. O conceito subjacente é a apresentação de uma personagem
fazendo parte do real e adquirindo importância a partir de sua inscrição
em uma tradição imagética, cruzando igualmente o clássico e o cotidiano, e
tornando sagrado ou elegante um objeto comum, por ser colocado no lugar
da representação tradicional.
190
  Existe também no Extremo Oriente uma familiaridade histórica com a
As artes japonesas no Brasil

construção de narrativas sincréticas em que a escrita e as imagens fazem


parte de um mesmo corpus. A prática e a fruição artísticas não estão ne-
cessariamente separadas, já que o tempo de lazer, como tempo de jogo e
do exercício intelectual, se soma ao efeito estético. O lúdico é uma prática
indiferenciada em que a poesia, a caligrafia, a música, a dança ou os
jogos grupais se apresentam igualmente entre as diversas práticas. Nesses
exercícios, comuns no Japão desde o período Heian (794-1186), a compreensão
e a apreciação processam-se de modo sobreposto (kasane2), numa festa da
fruição dos sentidos.
 A idéia de camadas e de superposição aparece como um conceito
interessante. Para o mundo oriental, a introdução de elementos das culturas
ocidentais aconteceu da mesma maneira. Foram incorporadas as iconografias
do cotidiano, criando imagens mestiças como, por exemplo, uma cena de
vistas tradicional, representada conforme as regras de perspectiva linear.
  Vem de longa data a discussão da mestiçagem, no cenário oriental, já
que a consolidação da cultura japonesa como autenticamente nacional teve
que lidar com a herança da cultura chinesa de presença marcante na do
Japão. O Japão reforçou sua identidade como uma referência positiva em
relação ao “outro”, neste caso a China. A cultura chinesa constituiu, durante
muito tempo, a legitimação da própria cultura japonesa, principalmente
em relação aos valores presentes no confucionismo. Desde a época Meiji
(1868-1912), o intercâmbio passou a ser com o Ocidente. Particularmente
com os Estados Unidos, a partir dos anos da ocupação (1945-1952) ele tinha
sido esporádico, vindo do contato com as inovações técnicas e as artes que
chegaram das mãos dos holandeses viajantes.
  Mas interessa analisar como aconteceu a apropriação das culturas
alheias no Ocidente e de que modo algumas dessas estratégias aparecem
no cinema hoje.
  Aos olhos das culturas visuais ocidentais de forma generalizada, as imagens
do oriental quebraram o automatismo perceptivo e cognitivo, exigindo com a
força de sua presença uma explicação adicional para serem compreendidas.
São como peças de um quebra-cabeça, sem uma diferenciação distinta
entre referências e fontes, mas com a clareza da sua alteridade. No meu
caso particular, a aproximação com o Oriente construiu-se a partir quer
de seriados televisivos como Kung-Fu ou Besouro Verde, quer dos filmes
A ponte sobre o Rio Kwai, ou Sayonara, para citar alguns exemplos. A
descoberta do verdadeiro Oriente dos Haikai e das Gravuras Ukiyo-e chegou-
191
me misturada com o orientalismo do japonismo da Europa do século XIX e

As artes japonesas no Brasil


com o culto ao cinema de Ozu, Mizoguchi e Kurosawa, epígono na América
do Sul do sucesso desses diretores nos festivais internacionais de cinema
dos anos cinqüenta. Mídias, épocas e contextos diversos confundem-se e
criam acontecimentos híbridos.
  A visão do Oriente nos filmes ocidentais encenou uma tendência
já existente na literatura, criando mundos a partir de estereótipos que
servissem à conservação e afirmação dos valores ocidentais como sustento
da civilização, e considerando o Extremo Oriente dentro da face relacionada
com o exotismo e a obscuridade. Em contraposição, esse mesmo exotismo
e obscuridade foram cenários privilegiados para o apelo das narrativas.
Assim, os modos de relacionar-se do Oriente e o Ocidente na cinematografia
apresentam algumas características distintivas em um corpus caracterizado
pela diversidade e grande número de exemplos oferecidos, que nem sempre
resultam significativos.
  Apresentaremos a seguir alguns exemplos de como esses diversos
elementos, descontextualizados e estilizados, foram construindo um código
orientalista particular no cinema do Ocidente.
  A literatura já tinha delineado o modelo dos orientais como homens e
mulheres que constituíam uma ameaça, desenvolvendo a figura do vilão,
cujo exemplo arquetípico foi a personagem do Dr. Fu Manchu, como no filme
O Misterio de Fu Manchu (1913). A personagem serviu de modelo para o de-
senvolvimento de uma série de vilões de origem oriental que iriam atuar não
somente na literatura, mas também no cinema. Com algumas peculiaridades,
as características das personagens foram estabelecidas respeitando os
códigos de verossimilhança que estavam sendo estabelecidos no cinema,
e o bom gosto em relação à representação de chineses, já conhecidos
como imigrantes não bem-vindos no mundo ocidental. Nos primórdios da
cinematografia, com as características próprias do cinema mudo, ou seja, uma
certa universalidadeque permitia a todo tipo de espectadores compreender
as ações filmadas, alguns procedimentos específicos contribuíram para
reforçar as características do estereótipo na representação de tipos sociais.
O nascimento e fortalecimento do estereótipo tem tido bons exemplos da
atitude de desconfiança com os asiáticos em Attack on a China Mission (1901),
filme inglês sobre rebeldes chineses, ou em The Yellow Menace (1916), uma
série de doze episódios com um vilão chamado Ali Singer encarnado por
um ator ocidental disfarçado. Num primeiro momento não era bem vista a
participação de atores de origem oriental. As características representativas,
192
ainda sob códigos relacionados com a prática teatral, não precisavam nem
As artes japonesas no Brasil

desejavam reforçar o viés realista.


  Um exemplo do cinema norte-americano está na filmografia de David W.
Griffith (1875-1948), que não somente desenvolveu as bases da linguagem
cinematográfica nos Estados Unidos como é conhecida até nossos dias,
mas também reforçou a identidade norte-americana em oposição às raças
não W.A.S.P., ou grupos sociais minoritários. Como contrapartida, o filme
Lírio Partido (1919) fez uma apologia ao chinês bem intencionado, castigado
por sua condição na Inglaterra vitoriana. Cabe destacar que o chinês bem
intencionado foi representado por um ator ocidental. O oriental transposto
a um território ocidental foi geralmente visto como um fator de conflito ou
como sujeito não adaptado à sociedade, muito embora seja considerado um
indivíduo que poderia contribuir para um melhoramento dos valores, como
o apaixonado personagem do yellow man em Lírio Partido (1919). O filme
desenvolve uma narrativa linear, construída a partir de cenas paralelas
que vão alternando a bidimensionalidade do conflito entre o maldoso pai
da protagonista e o estrangeiro pacifista e bem intencionado, até chegar
ao trágico final da morte dela, resultado da violência e intolerância do
pai. Nesse filme o estereótipo, que não está somente nas personagens
orientais, atravessa todas as personagens, além de reforçar a mensagem e
não permitir nenhum tipo de interpretação diversa da desejada através dos
textos de diálogo.
  Da cena cinematográfica primitiva até os primeiros anos de desenvolvi-
mento do Modelo de Representação Institucional, segundo a terminologia
estabelecida por Burch (1989), foram-se estabelecendo códigos de verossimil-
hança estritos, começando pelo disfarce de atores ocidentais em personagens
orientais, seguido de um lento processo de inclusão da participação de atores
de origem oriental no cinema de Hollywood. Os mais conhecidos são Sessue
Hayakawa (1890-1973), ator japonês que participou de filmes como Enganar
e Perdoar (1915), e A Ponte do Rio Kwai (1957) e entre outros papéis, foi um
indo-americano no filme Last of the Line (1914); e a atriz de origem sino-
americana Anne May Wong (1905-1961), que começou a carreira na época
do cinema mudo e atingiu um lugar de importância no star system norte-
americano. A evolução e o desenvolvimento desse primitivo yellow man
para um oriental com um lugar na sociedade ocorreu com a incorporação de
atores orientais como Bruce Lee (1940-1973), que deu origem à incorporação
das lutas orientais nos filmes e ao crescimento do gênero físico nos filmes
de ação ocidentais. Desde os primeiros contatos do cinema ocidental com a
193
figura do oriental, este em geral foi identificado com o chinês, dadas as carac-

As artes japonesas no Brasil


terísticas migratórias dos chineses para os Estados Unidos nos primeiros anos
do século XX. Posteriormente, com o desenvolvimento dos conflitos bélicos
com o Japão, o leque territorial foi-se ampliando com mais especificidade
territorial e cultural.
  O gênero musical também teve como motivos de inspiração as tradições
narrativas do Oriente, com produções musicais originais ou adaptações de
literatura oriental. Um caso interessante no estudo do orientalismo no cinema
é o de Mme. Butterfly. A novela de Luther Long que serviu de inspiração para
Giaccomo Puccini na época do auge do japonismo na Europa foi inicialmente
adaptada para um filme protagonizado por Mary Pickford (1915). No cinema
alemão dessa época encontramos uma adaptação de Fritz Lang da Opera
de Puccini, chamada Harakiri (1919). Já em 1932, há uma outra produção
de Mme. Butterfly nos Estados Unidos tendo Cary Grant por protagonista.
O viés exótico é tomado como tema de interesse nos Estados Unidos e na
Europa, mas os contextos divergem profundamente. O tom e o foco das
produções de Hollywood estavam no exotismo das roupas e da mise-en-
scène. Na Alemanha, o exotismo era explorado num tom mais obscuro,
coerente com o estilo de representação relacionado com o expressionismo e
com o romantismo alemão. De qualquer forma, a ópera de Puccini converteu-
se num clássico do japonismo e resultou em um paradigma que foi muito
produtivo – e ainda é – nas produções cinematográficas ocidentais.
  Na mesma linha dos musicais, a mise-en-scène do Mikado, sob a óptica
de Mike Leigh em Topsy Turvy, O Espetáculo (1999), com o quimono em
versão masculina, extremamente estilizado para teatro, apresenta mais
semelhanças com as representações do teatro oriental em relação à máscara,
à estilização, e à construção das personagens a partir de elementos do
vestido. A atitude corporal dos atores é extremadamente grotesca nas
pretendidas representações orientalistas. No filme há um conflito expresso
sobre qual é a maneira de representar o Japão medieval para um grupo de
artistas de gênero musical inglês de inícios do século XX, em pleno auge
do japonismo.
  No caso dos inúmeros exemplos existentes de filmes bélicos, o conflito
poucas vezes, provavelmente, apresentou nuances que permitissem fugir ao
dualismo primário representado pela necessidade de dominação, educação
ou civilização do “outro”. Um exemplo interessante é A ponte do Rio Kwai
(1957). Não foram necessários muitos atores de aparência oriental para encenar
194 o filme, já que o viés oriental estava quase monopolizado pela figura do
General Sato. O filme desenvolve a defesa do senso comum dos americanos,
As artes japonesas no Brasil

em contraposição ao delírio colonialista dos ingleses e ao delírio imperialista


dos japoneses, embora o viés orientalista se resumisse na escolha de um
lugar distante e oriental, que serviria de cenário para o desenvolvimento
do conflito imperialista-colonialista. Sayonara (1957), do mesmo ano, com
Marlon Brando, é um bom exemplo da tendência conciliadora a partir da
presença dos americanos no Japão. Está baseado num romance sobre o amor
inter-racial, muito embora as características de representação e os valores
buscassem somente dar certa familiaridade ao público dos Estados Unidos,
criando uma sistematização dos problemas sociais surgidos da presença
ocidental em território japonês e do racismo existente nas duas partes. O
filme apresenta alguns aspectos didáticos, na encenação de teatro Kabuki,
Nô e Bunraku. Há um paralelo com a tradicional história japonesa dos
Amantes Suicidas de Chikamatsu, encenado como a história do militar norte-
americano que é forçado a separar-se de sua esposa japonesa, escolhendo
como libertação, à maneira nipônica, a morte. O outro conflito importante do
filme, clássico nas narrativas japonesas, é também um conflito entre desejo
pessoal e dever social, cuja solução é americana, ou seja, prevalece o desejo
pessoal em detrimento da honra social.
  No cinema europeu, os orientalismos e o belicismo adquiriram particulari-
dades a partir do desenvolvimento do cinema de autor, contrário ao esquema de
produção massiva dos Estados Unidos. Um exemplo com grande repercussão
entre o público no período da vanguarda soviética dos anos 20 é Tempestade
sobre a Ásia (1928), de Vsevold Pudovkin. Ele faz uma apresentação da cultura
mongol, sendo a proposta do filme uma leitura política de um incidente da
Guerra Civil em 1920, baseado numa narrativa de Novokshonov, na qual os
ingleses, ocupando a Mongólia, levam preso um partisão que, parecendo ser
descendente direto de Genhgis Khan, é explorado por eles para governar o
povo mongol. Numa seqüência extremamente interessante pela economia
de recursos da montagem, o filme vai mostrando como as personagens do
general imperialista, da mulher dele, e dos sacerdotes chineses, que assistirão
a uma cerimônia religiosa chinesa, se vestem de gala para a ocasião, todos
eles representados a partir da transformação ritual do vestido. É revelado um
exotismo interessante na rodagem de um ritual dos lamas, representado e
repetido em algumas partes especialmente para a rodagem do filme, dizem
que sob protesto de alguns religiosos (Leyda, 1983).
  Um outro exemplo europeu interessante é Hiroshima Mon Amour (1959),
baseado em um romance de Marguerite Duras e dirigido por Alain Resnais,
195
numa época bastante influenciada pelo antibelicismo francês e a utopia inter-

As artes japonesas no Brasil


nacionalista no contexto europeu da geração dos Cahiers do Cinema. Era uma
época de agitação e discussões de conteúdo político em relação ao Extremo
Oriente, principalmente sobre o maoísmo. O caso de Hiroshima Mon Amour
já apresenta alguns cruzamentos interessantes e superadores do dualismo
tradicional. O território onde acontece o conflito da oposição entre Oriente e
Ocidente, vis-à-vis, é o próprio corpo da protagonista. O filme constitui um
espaço/tempo de cruzamento em que a experiência do estranhamento se
cruza com a do reconhecimento, realizando uma montagem entre passado
e presente e entre territórios conceitualmente diversos e universos humanos
próximos. Nele há uma ordem pré-estabelecida, de lugares, de situações
afetivas pré-existentes, de culturas diversas que poderiam ser estáticas.
Mas ele expressa mobilidade e proximidade, e ninguém precisa disfarçar ou
assumir imagens alheias, pelo contrário, o grande desafio do filme é poder
encontrar o próprio ser, no meio de diversidades e pontos em comum. A
inserção de um documentário sobre uma festividade local acentua a veros-
similhança e oferece um contexto concreto à história. O contexto oriental não
assume um lugar de alteridade, senão de proximidade afetiva-social-política
com o Ocidente, sendo duas faces de uma realidade semelhante. A imagem
do Oriente fica misturada com a própria imagem, e essa justaposição permite
à protagonista o reconhecimento e o perdão do conflito interior.
  Em produções recentes, do final do século XX e início deste século, há casos
nos quais o homem civilizado tem incorporado ou aproveitado o contato com
o outro como aquisição de sabedoria e de certas habilidades, por exemplo a
luta ou a meditação, como no filme The Last Samurai. De qualquer maneira,
queremos enfatizar como os pontos de contato se organizam em um nível
referencial e discursivo, geralmente restritos a elementos de estilização
e reducionismos do visual e dos aspectos culturais. Nas novas gerações,
a cultura pop de origem oriental representada pelo anime e o mangá tem
criado uma tradição cult ao redor do mundo, assim como as referências
superficiais às artes marciais ou às narrações épicas medievais, que mesmo
assim não deixaram de contribuir para a produção de filmes interessantes,
com uma estética ou simples inspiração orientalista, como é o caso de Ghost
Dog, Matador Implacável (1999) do diretor Jim Jarmush, inspirado em um
outro Samurai à ocidental , Le Samourai (1967), do diretor J.-Pierre Melville.
Como se pode observar, a figura do Samurai foi freqüentemente usada no
cinema ocidental, como no exemplo da superprodução protagonizada por
Tom Cruise, ou em filmes do gênero policial como Ronin (1998).
196
  Recentemente, alguns filmes têm encenado a busca da identidade
As artes japonesas no Brasil

do ocidental em territórios orientais, como em Erleushtung Garantiert


(2000), de Doris Dorrie ou Lost in Translation (2004), de Sofia Coppola,
ambos apresentando um ponto de vista que de formas diversas coloca a
dificuldade de compreensão nas diferenças, a partir da imersão no cenário
oriental. É importante destacar nesses filmes o recurso de estranhamento,
sendo orientalismo/ocidentalismo uma só e mesma problemática, com
um deslocamento do eixo de conflito, que pressupõe o questionamento do
lugar e da capacidade de adaptação a situações diversas por um cidadão
ocidental. Nesses filmes o entorno da cidade oriental também adquire um
caráter de índice.
  Na procura da mestiçagem da representação de temas orientais no cinema
ocidental, observamos também os orientalismos, propostos pelos próprios
orientais, que enfatizam certas características das produções, provavelmente
pensadas para uma distribuição em todo o globo; por exemplo, o quimono
como ícone do oriental, no filme Zatoichi (2003) ou no Dolls (2001), do diretor
Takeshi Kitano. Os quimonos foram especialmente desenhados pelo designer
de modas internacional de origem japonesa, Yojih Yamamoto, que, por sinal,
já tinha sido protagonista de um documentário de Wim Wenders, Notebook
on Cities and Clothes (1989).
  Finalmente, gostaria de destacar três exemplos que têm trabalhado
uma forma particular de mestiçagem caracterizada por um lado pela
superposição de imagens, e por outro pela reprodução midiática. Os três
têm como inspiração e ponto de partida um mundo de imagens do Oriente
que podem ser representadas tanto pelo cinema de Yazuhiro Ozu, no caso
do filme de Wim Wenders, quanto pelo mundo cult criado por um fã dos
seriados orientalistas de Hollywood e do cinema oriental de luta e do anime
encarnado por Quentin Tarantino, quanto ainda pelo japonismo expandido
de Peter Greenaway. Nos casos exemplificados, há uma reelaboração das
dualidades com os elementos da linguagem audiovisual, criando imagens
mestiças do corpo fílmico, encarnadas no dispositivo. Esses exemplos mais
próximos ao mundo sincrético que habitamos constituem explorações dos
entre-lugares, sem pretender deixar de ser ocidentais, pelo contrário, sendo
ocidentais confessos, mais realizando um deslocamento para o “como se”, ou
seja, imaginando a possibilidade de ser, por um instante, ou, pelo percurso
de um filme, seres híbridos, sem nacionalidade, cujo único território é o da
imagem cinematográfica.
  O primeiro, baseado no estilo criado pelo japonismo, estabelece pontos de
197
contato a partir da apropriação de elementos das artes orientais na criação

As artes japonesas no Brasil


do mundo e da mise-en-scène cinematográfica, com a transposição do
olhar metafórico mitate-e no mundo imagético contemporâneo. Trata-se do
filme The Pillow Book (1996), do diretor Peter Greenaway, que constitui um
particular ensaio visual sobre a caligrafia, a narrativa e as artes tradicionais
do Japão na cidade oriental moderna e capitalista, inspirada no Livro do
Travesseiro de Sei Shonagon, um romance do século XI.
  A particular apropriação da visualidade e a narrativa das culturas do
Extremo Oriente resulta na criação de um “filme-escrita-corpo-livro”, a
partir do estudo minucioso do universo das gravuras Ukiyo-e e da literatura
japonesa clássica. Permite analisar o Extremo Oriente como objeto de criação
numa dupla perspectiva, a tradicional e a moderna, materializada no filme,
a partir da convivência das duas heroínas fazendo parte da estória. Impõe-
se o cruzamento com os elementos que permitem a escrita cinematográ-
fica, no paradigma da luz e do material sensível. Ao mesmo tempo, não
há pretensão de criar um objeto oriental, mas há, sim, uma consciência 
orientalista na criação de uma historia de cruzamentos, de cultura e arte
orientais em territórios orientais modernos e ocidentalizados. O objetivo
não é mostrar um Oriente tradicional, nem um Oriente moderno, mas
cruzamentos permanentes e cotidianos entre ambos, enquadrados sob
um olhar ocidental. O cinema é capaz de abranger essa diversidade, quer
pela história e a estética, quer por meio da experimentação em diversos
formatos, não exclusivamente o de material fílmico. O filme é também uma
experimentação do diretor com procedimento de edição digital, o que lhe
permite trabalhar com superposições e camadas. Assim, a estrutura de sua
montagem fica alinhada e aproveita uma tradição oriental.
  Gostaríamos de ler o filme como um exercício de mitate-e realizado pelo
diretor, pela escolha de uma personagem contemporânea na pele de uma
clássica – Dessa forma, o período Edo, e principalmente o Ukiyo-e, converte-
se no classicismo da arte japonesa aos olhos do Ocidente. A personagem
escolhida realiza uma enumeração detalhada de objetos elegantes e também
destaca os deselegantes, achando também valor estético em objetos prosaicos,
do cotidiano. O Shunga, gravuras eróticas do período Edo, também adquire
o status de referência para a representação dos modernos amantes, num
jogo de transparências e opacidades do suporte fílmico e dos elementos
escolhidos para a mise-en-scène. Há uma referência clara com relação
às tradições visuais do Oriente, a tradição do japonismo no Ocidente, e
a partir desses eixos estéticos o diretor faz um trabalho em camadas, em
198
que as imagens do passado e do presente também fazem parte do jogo de
As artes japonesas no Brasil

transparência e opacidade.
  A decisão de colocar a protagonista num “entre-lugar” – por tratar-se de
uma japonesa que mora em Hong Kong, cidade chinesa sob domínio do
império colonial britânico, paradigma ao mesmo tempo, do imperialismo
e do cosmopolitismo – traz ao filme a possibilidade de trabalhar com uma
variedade e riqueza de cruzamentos culturais que podem unir a cultura
chinesa, japonesa e as influências ocidentais. A história mistura o drama
japonês dos amantes suicidas – aliás, considerado o Shakespeare japonês
– junto com o drama shakespeareano Romeu e Julieta, e mais alguns
toques característicos do imaginário de Greenaway. Os cruzamentos, então,
são efetuados em diversos níveis da diégese, e as referências e intertextos
propostos vão-se multiplicando. Todos os recursos contribuem para criar
uma representação atual de historias, imagens, dramas e tradições culturais
do Extremo Oriente, junto com a tradição ocidental do orientalismo e o
japonismo, criando uma obra feita a partir de superposições, no dispositivo
e na narrativa.
  O segundo exemplo, Tokyo-Ga (1985) de Wim Wenders, é um documentário
inspirado num filme de ficção. Também podemos mencioná-lo como um
filme situado num “entre-lugar” mais próximo da dinâmica de um mundo
globalizado e midiatizado. O filme Tokyo Monogatari (1953), de Yazuhiro
Ozu, é o enquadramento escolhido por Wim Wenders para seu diário
filmado,  Tokyo-Ga, uma reflexão em imagens e sons sobre o Japão dos
filmes de Ozu em relação ao Japão dos anos oitenta, e o olhar de um cineasta
estrangeiro seguindo os passos de um mestre do cinema, procurando os
pequenos segredos num território que pendula entre uma citação de Tokyo
Monogatari e um outro voltado à Tóquio contemporânea.
  Num esquema de palimpsesto cinematográfico o filme percorre duas
Tóquios: a documentada por Ozu e a do próprio Wenders. Naquela
documentada por Wenders há uma ambivalência que merece ser estudada.
Afinal, o filme de Ozu é considerado realidade documentada ou ficção? De
fato, trata-se de um documentário inspirado em um filme de ficção. Neste
“entre-lugar” de gêneros cinematográficos, do Oriente mítico de Ozu e o
Oriente moderno e ocidentalizado de Tóquio há basicamente imagens e
reflexões sobre essas imagens, em uma mistura de fascínio e decepção. Há
uma idéia do Oriente, especificamente do Japão, nas imagens dos filmes de
Ozu, que entra em conflito com o Oriente do documentarista. De fato, a busca
de Wenders é pelas imagens transparentes dos filmes de Yazuhiro Ozu, razão
199
pela qual, então, o status da busca mimética da realidade é substituído pela

As artes japonesas no Brasil


busca mimética de uma realidade filmica e mítica. Nesse caso, o apelo é pelo
Oriente das narrativas de Ozu e por um Japão em transformação. O fluxo das
imagens de Ozu é uma despedida de uma velha ordem familiar, e também
constitui as boas-vindas aos novos costumes sociais, com a conseqüente
modificação da ordem familiar. Todo esse processo já faz parte do passado,
embora, na mistura de tradições e modernidade do Japão contemporâneo,
ele ainda sobreviva em múltiplos aspectos.
  O interessante é que mais uma vez a imagem adquire um status de
realidade e aos olhos do diretor alemão se converte na realidade do Japão
que ele quer conservar. O filme principia com os títulos e as primeiras cenas
de Tokyo Monogatari, a voz do próprio Wenders introduzindo de maneira
informativa a obra de Ozu com suas impressões pessoais sobre ela. Logo no
começo, assistimos ao filme de Ozu, sem mediações, até o escurecimento da
tela e começo dos títulos de Tokyo-Ga. Há uma hipótese, ou uma pergunta,
que inicia a pesquisa, junto com a viagem para o Japão e a documentação
fílmica de Wenders, em relação à permanência das imagens de Ozu no Japão
contemporâneo. No decorrer do filme, com documentação realizada, o roteiro
adquire outras nuances, e surgem temas diversos. Podemos estabelecer a
hipótese de que no percurso de criação do documentário houve um momento
de registro, seguido de um momento de conceitualização do registro realizado.
O filme inicia uma reflexão sobre a vida cotidiana em Tóquio, em conceitos
e imagens, imagens distanciadas do mundo mítico de Ozu; e acaba
realizando uma reflexão metalingüística sobre a realidade e a realidade
cinematográfica. Há uma outra dimensão espacial e temporal, relacionada
não com o mundo de ficção, tampouco com uma realidade documentada: a
dimensão técnica, aquela que acontece durante a rodagem de um filme. A
partir dos depoimentos do ator Chris Ryu e do cinegrafista Yuharu Atsuta,
o filme exibe um pouco da experiência cinematográfica no momento da
rodagem. Os depoimentos do ator e cinegrafista enfatizam essa nostalgia
pelo que já passou e revelam pequenas historias do trabalho com Ozu. O
sentido do próprio filme desvenda-se e vai além do mero mapeamento das
características do Japão moderno vistas por um diretor de cinema ocidental.
  Se a pureza existe somente na estrita ordem criada pelos filmes de Ozu,
e se o caos é a força dominante no mundo contemporâneo, o filme também
tentará um ordenamento a partir de algumas ambivalências. Isso porque
a problematização do Oriente não aparece como uma questão monolítica.
Desde o início surgem ambigüidades inerentes à vida urbana no Oriente
200
contemporâneo. Algumas são absolutamente orientalistas, como a seqüência
As artes japonesas no Brasil

sobre a realização de maquetes das comidas ou o jogo de pachinko. Outras


são ocidentalistas, como a prática de golfe na condição de exercício
físico individual e não de esporte e concorrência entre pares. O filme vai
selecionando, no percurso pela cidade em permanente movimento, imagens
diversas das tradicionais, mais significativas e caras às pesquisas do diretor.
Um exemplo é o registro de outro tipo de imagens audiovisuais, especifica-
mente a multiplicação de telas em diversos formatos, que constituem uma
presença marcante do cotidiano de uma cidade em que tudo o que acontece
parece ser registrado na tela de uma televisão de hotel, de  uma televisão
de táxi, de um monitor de vigilância, onde as imagens da ocidentalização
não são empecilho para a criação de um palimpsesto formado por imagens
do Oriente oscilantes entre a tradição e a modernidade. A presença da
tecnologia e a convivência com o artesanato nas maquetes de comidas ou no
pachinko; as influências ocidentais e a antropofagização dessas influências
estrangeiras; os trens, onipresentes no mundo de Ozu e metáfora das imagens-
movimento, tudo isso serve de pano de fundo para as reflexões de Wenders
sobre a imagem. Aparecem também os parques como lugar de encontro e
de cruzamento de costumes, coletivas tradicionais e de modas e tendências
norte-americamericanizadas. No geral, é uma busca impressionista, focada
em detalhes, que está permanentemente distante do objeto de análise. Wim
Wenders passa pelos lugares, distanciado.
  A busca da pureza e da transparência das imagens é substituída pelo
estranhamento do estrangeiro que, de qualquer maneira, na visão de Wim
Wenders, em nenhuma das imagens pode igualar as imagens criadas por
Ozu, as quais não pertencem a uma ordem sobrenatural, mas fazem parte de
uma escolha técnica minuciosa e de uma vontade determinada pela escolha
de uma focal (50mm), por uma altura definida e constante de câmera, pela
mensurabilidade do tempo e da película (24/25 fotogramas por segundo),
pela paixão e devoção dos colaboradores, pela criação de uma cultura e uma
tradição na rodagem própria do cineasta. O resto, como reza a inscrição do
túmulo de Ozu, é MU – vazio, nada.
  O último filme a ser analisado é Kill Bill 1. Kill Bill 1 estabelece uma
antropofagia midiática em que engole a televisão, o cinema oriental e
ocidental, os gêneros cinematográficos emblemáticos do Oriente (cinema de
luta de espadas wu xia piam, o chambara, o yakuza-eiga, o mangá) e um
gênero ocidental por excelência, o western. Para tanto, utiliza efeitos especiais
de filmes dos anos 50, personagens inspirados em programas seriados e filmes 201
dos anos 60, e constrói um filme que restabelece o lugar do cinema de gêneros

As artes japonesas no Brasil


em relação aos outros meios de comunicação áudio-visual. A pergunta é
se a antropofagia midiática criada pelo filme, semelhante a uma ecologia
midiática, próxima às representações contemporâneas da hipermídia, não é
também uma forma de pensamento orientalista em imagens.
  Kill Bill, Cap.1 e Cap.2, fazem parte de uma mesma narrativa. A história
de vingança começa na primeira parte e é completada na segunda, como
dois episódios de um mesmo seriado. A primeira enquadra-se dentro de
uma estética orientalizante, a segunda tem como eixo principal o gênero
western. Achamos interessante o diálogo estabelecido entre imagens do
Oriente e Ocidente nesse filme, já ele que fornece um campo explícito para
analisar essa dualidade.
  Quando mencionamos uma estética orientalizante, e não oriental,
sugerimos que não se trata de um exercício de intertextualidade com as
representações audiovisuais de Extremo Oriente, basicamente a China
e Japão, mas sim do estabelecimento de uma verossímilhança própria na
superposição de referências audiovisuais orientais e outras norte-americanas
à oriental, como é o caso do cinema de Bruce Lee e os seriados televisivos
Besouro Verde – que foi um programa de rádio antes de ser um seriado –, e
Kung Fu, cujo protagonista, David Carradine, é o Bill do filme de Tarantino.
Essas representações constituíram uma referência importante quanto à
difusão midiática da idéia do Oriente, com o paradigma de conhecimento
ancestral, a transmissão de conhecimento de professores a discípulos, o
domínio das artes marciais etc. O twist introduzido no filme está diretamente
relacionado aos gêneros cinematográficos. A questão dos gêneros adquire
uma importância fundamental neste filme, estabelecendo em primeiro
lugar um ordenamento espacial de Oriente e Ocidente com o western como
subgênero (western spaghetti) e os subgêneros orientais de cinema de luta.
O herói que procura vingança é comum aos dois gêneros, e nesse aspecto há
familiaridade entre o western e o cinema de Samurais.
  Se analisarmos o gênero num sentido amplo como “força aglutinadora e
estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de
organizar idéia, meios e recursos expressivos, suficientemente estratificado
numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos produtos e a
continuidade dessa forma junto às comunidades futuras”(...) (Machado, 2000),
concluiremos que Tarantino consegue uma colagem estilizada: luta chinesa
e japonesa, sagas míticas, referências de cinema de culto, seja western
spaghetti, western, e até referências a outros filmes do mesmo diretor. Ao
202
mesmo tempo há permanentes quebras da convenção e do verossímil de
As artes japonesas no Brasil

gênero, o que tanto distancia quanto ajuda o reconhecimento do espectador,


desculpando as distâncias ideológicas, num sentido brechtiano. A heroína
do filme é uma mãe que perdeu a filha – a trama sentimental poderia
convertê-lo em um melodrama por excelência, quebrando a tradição de
gênero (feminino-masculino) do western. As referências televisivas e cin-
ematográficas adquirem outro caráter, mais emblemático, ao constituir-se
como parte do relato. O mangá, como um sub-relato dentro da narrativa,
contribui para a criação do efeito de verossimilhança proposto pelo filme,
e ao mesmo tempo lhe dá um estilo contemporâneo mais próximo às novas
mídias. A referência do mangá também faz parte do eixo orientalizante do
trabalho com os gêneros, inserindo a violência dentro da estética própria
do gênero. O cinema oriental sem dúvida tem para o diretor o apelo da
utilização estilizada da violência, tema muito próximo à filmografia anterior
de Tarantino. A profusão e mescla de gêneros faz deste filme um produto
incomum dentro do modelo de cinema de exploitation de Hollywood. É
claro que se trata de um filme híbrido, com todas as características de filme
de autor, que faz uma apropriação da convenção de gênero para realizar
um filme contra-cultural e cult. O eixo Oriente/Ocidente explorado durante
anos pelo cinema de Hollywood encontra nesse filme um apagamento das
bordas, e um reconhecimento da construção da imagem estereotipada
do Oriente como espetáculo, como uma celebração da imaginação
compartilhada e institucionalizada.
  Em relação ao eixo Oriente, há uma série de arquétipos e temas tradicionais
na representação imagética e narrativa japonesa, com os quais poderíamos
estabelecer alguns pontos de contato. O tema do espírito feminino com fome
de justiça, que procura vingança contra o homem que a traiu, é uma tradição
das narrativas e filmes de espíritos e fantasmas. A espada como força e
inspiração para o guerreiro é um tema do Bushido, o caminho da vingança
com diversas fases que o herói irá atravessar até chegar ao objetivo final. O
ronin, o samurai sem patrão, que vaga eternamente sem achar um lugar no
mundo, a aprendizagem com um mestre, o cinema de luta de Hong Kong,
o espaço urbano do Oriente contemporâneo, a modernidade do Oriente.
No filme todos esses temas misturam-se com outros, típicos da estética do
Ocidente: a paisagem desértica do western, a fronteira entre Estados Unidos
e México como lugar para fugir e adquirir uma nova identidade, a força
poderosa e melodramática de uma mãe que perdeu a filha, e que depois a
encontra, no fim do caminho, o que permite a redenção da heroína.
203
  À hibridização dos temas acrescenta-se a utilização de efeitos especiais,

As artes japonesas no Brasil


com uma estética que também inclui formas de produção de outras épocas e
lugares, construindo dessa maneira uma dupla mediação a partir da circulação
de textos e suportes diversos. O uso da tecnologia revela-se não somente nos
efeitos especiais – como as placas que procedem de outras emblemáticas
produções, por exemplo a maquete de Tóquio ou a do avião, pedidas ao
estúdio Toho, que produziu Godzilla –, mas também na incorporação de uma
velha técnica: uso de tinta em preservativos para realizar os truques das cenas
com sangue. Esta reapropriação de uma tecnologia anterior, a explicitação da
máquina, escapa à naturalização tão característica das novas tecnologias.
  O filme reforça assim uma sensação de nostalgia relacionada com o
estatuto daquilo já produzido pelo homem, transformando em fetiche algo
que já deixou de existir, ou existiu, na televisão de nosso passado, no cinema
de classe B, e se reatualiza. Há uma denúncia da materialidade do cinema,
já que apesar de ser uma imagem cinematográfica, de caráter projetado e
refletido, se a compararmos com as novas mídias, tem uma materialidade por
oposição, dada pela denúncia da materialidade do artifício. A materialidade
do fotograma, do filme fotográfico, e da maquete construída se revela para
glorificar o meio cinematográfico.
  Se a novidade tem a ver com a construção do imaginário, do verossímil
e da renovação do cinema, o filme estabelece um diálogo produtivo com a
cena contemporânea e a discussão das tecnologias, as anteriores e as atuais.
A memória e a nostalgia são a novidade. Há uma glorificação do meio cin-
ematográfico como aglutinante de uma diversidade de linguagens, que se
aproxima do conceito de ecologia midiática, no sentido em que as linguagens
novas vão incorporando as anteriores. Não é o propósito deste estudo
enquadrar ao Kill Bill em um paradigma hipertextual, mas reconhecemos
que, utilizando recursos próprios do cinema, dialoga produtivamente com a
atual cena audiovisual. Por oposição, distância e reconhecimento, quebra a
naturalidade e a automatização, e trabalha sobre uma permanente e coerente
hibridização de temas e recursos técnicos. Com o propósito de criar uma
ecologia própria, característica do cinema, reúne em si uma variedade de
referências. Excede a intertextualidade para criar um código próprio gerado
de retalhos de vida midiática. A referencialidade toma estatuto midiático.
Há também uma hibridização do conceito de gênero que contribui para a
criação da particularidade aglutinadora do filme de estudo e dispara pontos
de contato dentro da cena audiovisual para tecnologias mais antigas e
tecnologias contemporâneas. Dentro dessa hibridização estaria a adaptação
204
do referente do seriado televisivo em conjunção com o relato do herói que
As artes japonesas no Brasil

procura vingança, típico do western e do gênero de cinema de Samurai.


  Há um ritual de passagem de uma forma de representação a outra dentro do
filme, que vai dando uma característica linear ao hibridismo e à multiplicidade
da representação. A linguagem do mangá como código diverso do fotográfico
já faz parte da cena midiática contemporânea. Os recursos de iluminação
e de câmera reforçam e ajudam o reconhecimento dos códigos próprios de
cada gênero. A cena do ensaio de boda/assassinato é fotografada com valores
máximos de luminosidade, resultando numa luz estourada, apagando as
bordas nítidas das figuras fotografadas. A luminosidade estourada é mais
característica da estética de uma fotografia digital; ao mesmo tempo, reforça
a luz do deserto mexicano típica do cenário de western. A estilização da
cena da luta contra os 88 maníacos, os Kato impersonators, tem as caracter-
ísticas da mise-en-scène do cinema dos Shaw Brothers e de alguns seriados
norte-americanos dos anos 60, como a luta de sombras, de origem ancestral
chinesa, e ao mesmo tempo estabelece uma clara referência com os jogos
de videogame, em que os inimigos se reproduzem em massa, sem dar um
segundo de trégua no duelo. De fato, já existe um jogo interativo realizado na
República Tcheca baseado em Kill Bill.
  A cena do jardim da casa das folhas azuis, de bucólica e cheia de
feminilidade é transformada em duelo de rivais. Faz um jogo permanente
de transparência e opacidade. Quando o espectador acha que reconhece um
estilo, este muda para um outro e ainda um terceiro, cruzando representações
que misturam a linguagem cinematográfica com os quadrinhos japoneses, os
seriados de TV e os jogos em uma metamorfose dos elementos narrativos. A
música trabalha com temas que se repetem, contribuindo para o suspense,
e adquire um lugar de destaque nos momentos de maior intensidade
dramática, trabalhando também como contraste e mistura entre gêneros. A
montagem contribui para a linearização e a naturalização da diégese como
um corpus único e homogêneo. Para dar um viés circular, tudo acaba numa
cena doméstica mãe-filha, quase como começou. Parece voltar a este lado do
espelho, embora os jogos de espelhos não acabem nunca.
  Em relação aos conceitos de ecologia midiática (Bolter & Grusin), é um
filme que fala sobre o cinema, e também sobre as outras mídias. Neste
sentido, achamos que estabelece uma reflexão sobre a mediação. Há uma
lógica de fascinação com a mídia, uma revisão da história das representações
midiáticas e um flerte com o futuro, sem deixar de voltar a colocar o meio cin-
ematográfico em um lugar central. As novas mídias dialogam com o cinema, 205
com a televisão, com o cinema de luta, com o mangá e com a incorporação

As artes japonesas no Brasil


do Oriente e do Ocidente como representação. Tudo existe dentro do mundo
representado, que pode ser Hollywood, Hong Kong, ou o que ficou dos
estúdios cinematográficos de Tóquio. As leis são as que propõem os gêneros
cinematográficos, para ser respeitadas ou traídas. Trata-se do cinema como
artifício de produção, e como trabalho da imaginação de um diretor. Há uma
mediação da mediação. É um filme que não funcionaria sem as referências
do cinema oriental, nem dos seriados dos anos 60.
  O filme foi realizado na China para ter a oportunidade de aprender
o estilo de filmar com a equipe técnica chinesa, e provavelmente essa é
a razão principal da sua existência: o desejo antropofágico de um diretor
ocidental, pelo modo de produção do cinema oriental. De qualquer maneira,
sua possibilidade de ser realizado estabelece para nosso estudo um exemplo
importante da dinâmica de fluxos e cruzamentos entre mídias, a força da
hibridização, assim como a queda ou mudança dos eixos cultura ocidental-
cultura oriental na cena contemporânea. O tema dos orientalismos em relação
à arte e à comunicação no Ocidente adquire nova força e tem nuances que
tornam obrigatória uma revisão das dualidades geopolíticas e culturais que
ainda têm uma forte ligação com o pensamento colonial.
notas

1 Recurso paródico, de deslocamento. (Hashimoto, 2002).


2 Superposição de estímulos de diversa ordem.

Filmografia (os títulos estão na língua original)


206
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Madame Butterfly, Sidney Olcott, E.U.A. (1915).
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209

As artes japonesas no Brasil


cartaz filme
As artes japonesas no Brasil

210

cartaz filme
The Pillow Book, 1996 (França/Inglaterra/Holanda/Luxemburgo) Direção: Peter Greenway
211

As artes japonesas no Brasil


My Geisha,1962 (EUA) Direção: Jack Cardiff The Last Samurai, 2003 (EUA) Direção: Edward Zwick
JAPÃO DE BRASILEIROS
O cinema japonês e sua
inter-imagem no cinema brasileiro
212 Almir Almas
As artes japonesas no Brasil
  O cinema, em qualquer parte do mundo que seja, através das opções de
seus diretores busca maneiras de assimilar influências que acabam por moldar
estilos. Dentro do cinema japonês também podemos identificar algumas
influências visíveis da cinematografia internacional sobre seus cineastas,
mesmo aqueles afeitos à tradição japonesa de contar histórias e de trabalhar
com imagens. Percebe-se no cinema japonês, a exemplo da literatura, que 213
as influências ocidentais que entraram no país posteriormente à restauração

As artes japonesas no Brasil


Meiji foram muito bem assimiladas por alguns de seus autores.
  Por outro lado, um número de cineastas japoneses é tão fechado à influência
externa que quase não se pode identificar alguma marca de ocidentalidade
em suas obras, salvo o aparato técnico.
  Mas o que pretendo tratar neste texto não é de como os diretores
japoneses sofreram influências de seus pares internacionais, ao contrário,
de como a maneira peculiar japonesa de fazer cinema influencia gerações
mundo afora. Ou melhor, e mais especificamente, de como a cinematogra-
fia japonesa chegou e foi assimilada pelos diretores de cinema brasileiros.
E, mais ainda, restringindo esse universo, de como se pode verificar a
influência do cinema japonês em dois grandes cineastas brasileiros, Walter
Hugo Khouri e Carlos Reichenbach.
  Em suas filmografias, notam-se diversos pontos de confluência entre as
maneiras como diretores do cinema japonês atuam e tratam seus temas
e as obras construídas e em construção desses cineastas brasileiros. O
que pretendo mostrar neste artigo é que essa influência se dá de forma
consciente e com grata aceitação por esses artistas. O que reforça isso é
que esses dois diretores, diferentemente de muitos artistas que seguem um
modismo passageiro, não recebem essa influência como repetidores de ori-
entalismos (que é sempre o lado fácil da maneira de tratar a cultura oriental,
e, sobretudo, a japonesa). Em Walter Hugo Khouri e Carlos Reichenbach,
o Japão realiza-se em plena consciência de sua matriz geradora. O Japão,
e conseqüentemente a cultura japonesa, quando aparece é sempre aquele
Japão pesquisado, o Japão pensado, o Japão ligado a uma justificativa de
ordem estética, moral ou filosófica.
  Esclarecendo, uso o termo orientalismo de forma crítica. Pode-se, por
exemplo, seguir a crítica foucaultiana de Edward Said1 em que a separação
Oriente x Ocidente esconde, na verdade, intricadas relações de poder em
que um superior domina um inferior, ou em que um Oriente bárbaro deve
ser dominado por um Ocidente civilizado. Ou até mesmo seguir a critica
sobre o uso sem critérios de elementos ditos orientais como justificativas
estéticas sem ao menos se dar ao trabalho de entender a matriz codificadora
da cultura. Ou seja, critico esse orientalismo que encara as culturas ditas
“fora do padrão ocidental” ou como exotismo ou como cavalo de batalha
contra o mainstream.
  Em alguns momentos, vejo que dizer-se influenciado pelo oriente nada
mais é do que justificar uma posição dentro do contexto dito ocidental e
214
colocar-se ou em um lado ou em outro da cultura ora em poder. Não há
As artes japonesas no Brasil

um mínimo esforço para entender o outro e sua cultura, para estudar sua
complexidade e seus signos, para decodificar as matrizes culturais do outro e
buscar nelas aquilo que pode ser aplicado e absorvido. Enfim, quando critico
quero questionar essa visão orientalista como uma moda justificadora de
atos sem nenhum suporte na realidade do outro ou sem o entendimento das
matrizes culturais geradoras de significação.
 Sem o propósito de estender-me, entendo aqui que matrizes culturais
geradoras, como Iuri Lotman e a Escola de Tártu2, semioticistas russos,
entendem os sistemas modelizantes da cultura. Sistemas semióticos mod-
elizantes criam matrizes de “valor” semiótico que atuam como elementos
gerados de significação.
  Feito esse parêntese, é hora de falar mais detalhadamente da obra desses
artistas. Em Walter Hugo Khouri, a influência da cultura japonesa sobre
sua obra é clara em alguns momentos, principalmente no tratamento do
tema. Renato Pucci, que estuda a obra de Walter Hugo Khouri,3 destaca que
vários críticos consideram os filmes de Khouri como cinema filosófico. Mas,
na verdade, trata-se de filmes não baseados no verbal, mas nas questões
filosóficas e visões do mundo através da narrativa cinematográfica. O que
Khouri faz é um cinema de idéias, um cinema que se realiza através do uso de
conceitos abstratos para expressar uma visão pessoal e discutir pensamentos
filosóficos. Na obra de Khouri, a representação da angústia existencial e
da busca por transcendência, por exemplo, apresenta-se misturada a um
erotismo quase sempre levado ao limite e a uma sexualidade às vezes crua.
  Pucci destaca um diálogo que acontece nas seqüências finais de Noite
Vazia (1964). É entre Luiz (Mário Benvenutti) e Nelson (Gabrielle Tinti)
acerca do próximo encontro com outras mulheres para a noite seguinte.
Nesse diálogo é ressaltado, segundo Pucci, o erotismo e a sexualidade
ligados a uma questão existencial da infinitude do desejo. Depois daquela
noite que terminou em mesmice (como todas as noitadas anteriores), nota-
se aí a repetição de excitação e decepção. “De um lado, o sexo serve à
diversão, ao encobrir o tédio que sempre ameaça tomar conta dos espíritos;
de outro, surge como esperança de apaziguamento da angústia existencial,
sob a condição de que seja encontrada uma mulher extraordinária”.4
  Logo no começo de Noite Vazia (1964), ainda na busca de Luiz e Nelson
por mulheres na noite paulistana, eles param num restaurante japonês e lá
encontram as duas prostitutas com quem passariam aquela noite. Embora
aí já se possa identificar uma referência ao gosto de Khouri pelo cinema
215
japonês, não é isso o que marca a filiação desse filme a ele. Nem mesmo a

As artes japonesas no Brasil


cena em que uma das prostitutas, Mara (Norma Bengell), no auge de uma
das discussões levadas a cabo pelo tédio de toda a situação, pega o livro de
Kama Sutra no apartamento em que estão. Embora seja essa uma manifesta-
ção do gosto particular do diretor, não é isso que caracteriza referência de
influência do Oriente sobre o cinema de Khouri. A angústia dos personagens,
a busca desenfreada pelo prazer sexual, pelo desejo, a frustração e o tédio,
e, sobretudo, a reflexão sobre o curso da sua existência, elementos que
permeiam a obra de Walter Hugo Khouri desde o começo, são esses elementos
que ligam Khouri ao cinema japonês. Sobretudo ao cinema japonês exis-
tencialista, como o da nuberu bagu (nouvelle vague) japonesa5, de Seijun
Susuki, Yoshishige Yoshida, Nagisa Oshima e Shohei Imamura; ou de um de
seu precursor, Yasuzo Masumura.6
  Todos os elementos que aparecem em Noite Vazia atravessam a filmografia
do diretor. Tanto na concepção dos personagens quanto na temática. A busca
desesperada pelo corpo feminino, que aparece em Marcelo, personagem-
chave da obra de Walter Hugo Khouri, e também a temática existencialista,
já se encontram aqui em Noite Vazia.
  O próprio Walter Hugo Khouri, em texto apresentado no Guia de Cultura
Japonesa, publicado pela Fundação Japão7, menciona a influência do cinema
japonês sobre seu trabalho. Para ele, essa influência, que foi notada por
terceiros antes mesmo que ele tivesse consciência dela, pode ser verificada
“através da percepção de dados de estilo, de ritmo e de abordagem de
certos problemas, além do ‘tom’ intimista e existencial”, que se desdobra
em muitas de suas obras. Ele ainda observa (e eu destaco como ponto
essencial em figuras como ele e Carlos Reichenbach) que essa influência se
dá mesmo como uma absorção dos procedimentos dos mestres japoneses
e não um modismo passageiro, sem propósito, como costuma acontecer.
Ele identifica procedimentos presentes em seu trabalho em que o traço
japonês pode ser notado, como por exemplo “características de ‘timing’, de
composição, de trabalho de câmera, de plástica, de cor, de montagem, de
assunto e de atmosfera”.
  Khouri também identifica o cinema intimista japonês, com representantes
como Mikio Naruse, Yasujiro Ozu, Heinosuke Gosho, dentre outros, que
abordam “temas de vida cotidiana, familiar ou individual, relacionados com
os problemas e fatos comuns da existência das pessoas de todas as classes
no seu dia-a-dia”, como diretores que influenciaram não apenas a ele, mas
216 também a uma geração de cineastas brasileiros.
  A essa lista de diretores japoneses acrescenta-se também Yasuzo
As artes japonesas no Brasil

Masumura, Nagisa Oshima, Yoshishige Yoshida, Shohei Imamura e Seijun


Suzuki, que estão na base da influência de Carlos Reichenbach, em que a “a
violência, a revolta, o inconformismo e o sexo predominam, com alto nível
artístico (...) Em muitas obras de Reichenbach a influência desse cinema é
muito visível e positiva, absorvida de forma consciente e colaborando muito
para o resultado dos filmes, nos quais o ritmo, um certo clima anárquico,
a montagem, os personagens e liberdade de concepção lembram incisiva-
mente a nouvelle vague do Japão”. 8
  Noutro momento, já em seu último filme, Paixão Perdida (1998), Walter
Hugo Khouri faz uma homenagem-referência ao Japão, através da inserção de
uma grande pedra num jardim da casa de Marcelo. Essa pedra acaba tendo
uma função importante dentro da trama. É com ela que o filho de Marcelo,
então num autismo incurável, consegue relacionar-se. A pedra torna-se o
único elemento através do qual o menino mantém um relacionamento com
o mundo externo.
  Em conversa com o próprio Khouri, revelei que essa pedra era para mim
uma referência clara ao jardim zen de pedras do templo Ryoanji, em Kyoto.
Khouri não apenas confirmou, como fez questão de dizer que aquela pedra
era mais do que uma referência ao templo; era, para ele, uma proposta de
transportar aquele clima do jardim zen japonês para dentro de seu filme.
Quando filmou Paixão Perdida, Walter Hugo Khouri tinha acabado de voltar
de uma viagem ao Japão, financiada pela Fundação Japão, ao lado de outros
artistas brasileiros, todos acompanhados por Jô Takahashi, em que um dos
pontos-chave do programa para esses visitantes foi justamente a visita ao
Templo Ryoanji, em Kyoto. E de lá Khouri trouxe gravadas em vídeo imagens
do jardim de pedra de Ryoanji, que o marcou tanto.
  Em Carlos Reichenbach, identificam-se dois filmes emblemáticos de sua
relação com o Japão. O primeiro é Filme Demência (1985) e o segundo Liliam
M: relatório confidencial (1974).
  Liliam M é um caso bastante interessante da assimilação consciente do
cinema japonês em solo brasileiro. Reichenbach deixa claro (evidenciado
tanto no próprio filme quanto nas entrevistas que dá até hoje) que as
matrizes de Liliam M são Shohei Imamura e Yasuzo Masumura. Principal-
mente o Imamura de A Mulher Inseto (Nippon Konchuki - 1963) e Segredo de
uma Esposa (Akai Satsui - 1964) e Yasuzo de Insinuante e Pecadora (Denki
Kurage - 1970).
  Além desses, três outros diretores japoneses estão bastante presentes na
217
obra de Carlos Reichenbach: Nagisa Oshima, Seijun Suzuki e Eizo Sugawa.

As artes japonesas no Brasil


De Sugawa, o diretor brasileiro traz principalmente a questão da violência e
do radicalismo no trato das questões sociais.
  “De alguma forma, os filmes que realizei na década de 1970 têm um vínculo
muito grande com essa geração. Os assuntos estavam muito próximos do que
queria tratar nos meus filmes. Interessava-me muito a maneira como algumas
das produções dessa época tratavam a mulher, como um personagem em
permanente revolução. Lilian M foi totalmente sugestionado por dois filmes:
A Mulher Inseto e Segredo de Uma Esposa, ambos de Shohei Imamura. Em
seus filmes, os personagens femininos aparecem sempre quebrando tabus,
tentando libertar-se das amarras da sociedade japonesa. Esses temas definem
também outro filme meu, o Amor, Palavra Prostituta”.9
  Reichenbach relembra que inicialmente foi impactado pelos filmes de
Kenji Mizoguchi (Intendente Sansho/Sansho Dayu - 1954 e Contos da Lua
Vaga depois da Chuva/Ugetsu Monogatari - 1953), aos quais assistiu nos
cinemas do bairro da Liberdade, ainda no começo da descoberta dessas salas
pelos cineastas e artistas brasileiros. Desses primeiros filmes aos da nuberu
bagu (nouvelle vague) japonesa, Reichenbach descobriu e decidiu que era
um cinema parecido com esse que ele queria fazer.
  Sobretudo os temas presentes em cineastas como Yasuzo Masumura,
por exemplo, em que os problemas da juventude e corrupção moral da
sociedade japonesa do pós-guerra são tratados de forma totalmente in-
dependente; ou dos diretores da nuberu bagu de modo geral, com seu
tratamento de temas tabus (“os tabus da moral, do sexo e da política”)10.
Todo esse arcabouço forma uma matriz que transparece ao longo de uma
série de filmes de Carlos Reichenbach.
  Em Filme Demência, o espaço físico da liberdade invade o filme desde
o começo. Reichenbach já deixa clara sua paixão pelo Japão e pelo cinema
japonês. Inspirado pela figura lendária de Fausto em busca do conhecimento,
Filme Demência retrata o próprio enigma do diretor, em busca das raízes de
sua família e de sua relação com o pai. Ao retratar no filme a crise econômica
dos anos 80 no Brasil, a inflação galopante, Carlão mostra o quanto essas
questões afetam a existência e a vida pessoal das pessoas, explicitando os
aspectos intimistas dos personagens. Mais uma vez, é clara e explícita a
filiação de Reichenbach às temáticas que aparecem no cinema japonês, pelo
qual ele se declara influenciado.
  Em Liliam M: Relatório Confidencial, o enredo trágico da personagem
Liliam, que sai da miséria no campo e se envolve com os mais diversos tipos
218
na cidade grande até seu retorno ao seio familiar, podem-se notar claramente
As artes japonesas no Brasil

as características das mulheres japonesas nos filmes dos já citados Shohei


Imamura e Yasuzo Masumura. Além disso, a estrutura narrativa também,
com suas variações em diversas possibilidades de montagem, remete às
estruturas narrativas de alguns dos filmes radicais dos autores da nouvelle
vague japonesa.
  Além de Carlos Reichenbach e Walter Hugo Khouri, há um outro cineasta
(que também foi diretor e crítico), Rubem Biáfora, que recebeu forte influência
do cinema japonês. Aliás, tanto Khouri quanto Reichenbach identificam
Biáfora como o primeiro a assimilar essa influência, e inclusive o citam como
mentor dos caminhos deles próprios rumo ao cinema japonês.
  Em resumo, essas mesmas questões levantadas por Carlos Reichenbach e
Walter Hugo Khouri nos filmes aqui relatados estão presentes também nas
matrizes que os influenciaram. Entendo que o que levou esses cineastas a
deixarem transparecer de forma tão clara tal influência foi, sem dúvida, o
conhecimento real das matrizes culturais às quais eles buscavam, de forma
consciente ou não, se filiar. Sem esse conhecimento, sem uma forte vivência
com essas matrizes, a assimilação não daria os frutos que podemos ver. O
que existe, a meu ver, usando de uma própria expressão de Walter Hugo
Khouri, é efetivamente uma “absorção” e não uma cópia a partir de um
modismo passageiro, ou de um orientalismo sem nenhuma justificativa a
não ser o up-to-date superficial do suposto rebanho que saca.

Almir Almas é videasta, doutor em Comunicação e Semiótica, professor do


Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA/USP e pesquisador do
Centro de Estudos Orientais da PUC/SP.
Notas

1. SAID, Edward W. Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:


Cia Das Letras, 2. ed., 2001.
2. Lotman, Iuri; Uspenskii, Boris A.; Ivanov, V. Ensaios de Semiótica Soviética.
Lisboa: Horizontes, 1981.
3. PUCCI JUNIOR, Renato Luiz. Filosofia e Imagens no Cinema de Walter Hugo Khouri
(tese de Doutorado). São Paulo, Universidade de São Paulo, 1998.. 219
4. PUCCI JUNIOR, op. cit. p. 16.

As artes japonesas no Brasil


5. Nuberu bagu é a transcrição para a pronúncia japonesa (escrita em katakana) do
termo francês nouvelle vague.
6. NAGIB, Lúcia. Em torno da nouvelle vague japonesa. Campinas: Unicamp, 1993.
7. KHOURI, Walter Hugo. Influências do cinema japonês na concepção cinematográ-
fica de diretores brasileiros. In: Guia da Cultura Japonesa. São Paulo: JBC, publicado
pela Fundação Japão, 2004. p. 178-179. (reprodução de texto original publicado in:
Cultura Japonesa – São Paulo – Rio de Janeiro – Curitiba). São Paulo: Aliança Cultural
Brasil-Japão. p. 138-141.
8. KHOURI, Walter Hugo. op. cit. p. 178.
9. O cinema do sol nascente. Publicação eletrônica in: Revista E, portal do SESC SP.
Disponível em http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edicao_
Id=78&Artigo_ID=781&IDCategoria=956&reftype=2
10. NAGIB, Lúcia. op. cit. p. 15.
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cartaz filme
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Arquitetando pensamentos
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??????????????????????
Tokyogaqui, 2008
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Quimera - O Anjo vai voando


Takao Kusuno
Tela - técnica mista, 1995
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Andar Ohno 101 + Kusuno


Ricardo Muniz Fernandes

Um andar exposição instalação de Butoh e suas ressonâncias. Um lugar das


sombras e arquivos de memórias, emoções, e saudade. Duas vidas naquele
lugar entremeadas. Homenagem, teatro e templo. Rabiscos, arquivos, memórias,
emoções e saudade. Morte e vida. DANÇA. Um espaço construído para todos
experimentarem os terremotos do butoh. Um lugar camarim, palco, ladeiras,
praça, cofre. Descontrução e desequilíbrio. Um lugar de entrega. Museu, estúdio,
galinheiro e alcova. Travessia e Diálogo. Fantasmagorias. Verdades. Relâmpagos
e meandros da alma.
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Instantâneos
Marcelo Moraes
Tokyogaqui, 2008
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KUU (Vazio)
Yoshito Ohno
Tokyogaqui, 2008
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