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Histórias, Culturas e

Territórios Negros na
Educação
Reflexões docentes para uma
reeducação das relações étnico-raciais

Organizadores
Alexandre do Nascimento,
Amauri M. Pereira,
Luiz Fernandes de Oliveira,
Selma M. da Silva

Rio de Janeiro, 2008


© Alexandre do Nascimento, Amauri M. Pereira, Luiz Fernandes de Oliveira e
Selma M. da Silva (orgs.)/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2008.
Todos os direitos reservados a Alexandre do Nascimento, Amauri M. Pereira,
Luiz Fernandes de Oliveira e Selma M. da Silva (orgs.)/E-papers Serviços
Editoriais Ltda. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte
dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos editores.
Impresso no Brasil.

ISBN 978-85-7650-169-5

Projeto gráfico, diagramação e capa


Livia Krykhtine

Revisão
Elisa Sankuevitz
Helô Castro

Esta publicação encontra-se à venda no site da


E-papers Serviços Editoriais.
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Rio de Janeiro – Brasil
SUMÁRIO

5 INTRODUÇÃO

7 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS


TEÓRICOS DE UMA NOVA POLÍTICA PÚBLICA
DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL NA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Luiz Fernandes de Oliveira

47 PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO


DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Alexandre do Nascimento

59 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


Amauri Mendes Pereira

79 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA


BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ
Selma Maria da Silva

97 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO:
O NEGRO NA EDUCAÇÃO
Ana Paula Venâncio

121 ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL


NO SÉCULO XIX
Andréa Santos Pessanha
137 TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA
ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA
Claudia Fabiana de Oliveira Cardoso

153 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


Helena Theodoro

179 O QUILOMBO DE MANUEL CONGO


Maria Teresa da Silva Telles

191 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO


ESPAÇO E DA CIDADANIA
Patrícia Amaral SiqueiraPatrícia Freitas

211 PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO


MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS
Janete Santos Ribeiro

223 ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: UM


RELATO DE EXPERIÊNCIA EM SALA DE AULA –
LEITURAS ICONOGRÁFICAS
Maria Cristina da Silva Cardoso

235 AUTORES E AUTORAS


INTRODUÇÃO

Em 20 de agosto de 2007 a Secretaria de Estado de Ciência e


Tecnologia e a Fundação de Apoio às Escolas Técnicas do Es-
tado do Rio de Janeiro (Faetec), em resolução conjunta publi-
cada no Diário Oficial do Estado, instituiu o Núcleo de Estudos
Étnico-Raciais e Ações Afirmativas (Neera), órgão responsável
pela implementação de formação continuada, pesquisa, exten-
são e políticas de ação afirmativa de promoção da diversidade
e igualdade racial, em cumprimento dos artigos 26-A e 79-B
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),1 das
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasi-
leira e das Convenções Internacionais de Combate ao Racismo,
preconceito e outras formas de discriminação e violações de
Direitos Humanos.
A instituição e regulamentação do Neera na Faetec atende
a uma demanda de docentes e estudantes desde a fundação da
Faetec, tendo em vista a presença de preconceitos e discrimi-
nações raciais no cotidiano escolar e nas relações pedagógicas,
bem como a ausência de conteúdos curriculares sobre africa-
nos, afrodescendentes e relações raciais no Brasil. Os artigos
26-A e 79-B da LDB fortaleceram as propostas político-peda-
gógicas sobre a reeducação das relações étnico-raciais e a va-
lorização do legado histórico-cultural e tecnológico africano e
afrodescendente nos conteúdos curriculares.

1. Os artigos 26-A e 79-B da LDB foram instituídos pela Lei Federal no 10.639,
em 9 de janeiro de 2003, “para incluir a obrigatoriedade da temática História e
Cultura Afro-Brasileira”. Recentemente, a Lei no 11.645, de 10 de março de 2008,
alterou o artigo 26-A da LDB, para incluir também no currículo oficial da rede
de ensino a “obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena”.

INTRODUÇÃO 5
É nesse contexto que apresentamos o livro Histórias, cultu-
ras e territórios negros na educação: reflexões docentes para uma
reeducação das relações étnico-raciais. Uma obra composta de
artigos de docentes da Faetec e integrantes do Grupo de Estu-
dos do Núcleo de Estudos Étnico-Raciais e Ações Afirmativas
(Neera), que apresenta reflexões teóricas, estudos e experiên-
cias que os autores vêm desenvolvendo em sala de aula e nos
em espaços de formação acadêmica.
Os artigos 26-A e 79-B da LDB e as Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira instituem, regulam
e estabelecem a obrigatoriedade do ensino de história da África
e da cultura afro-brasileira e os conceitos e princípios orienta-
dores, a serem observados pelos estabelecimentos de ensino
públicos e particulares. Sua efetiva implementação político-pe-
dagógica vem sendo discutida na sociedade e, no Rio de Janei-
ro, já conta com a atenção e fiscalização do Ministério Público.
Porém o debate ainda está muito restrito ao âmbito acadêmico
e pouco presente nas práticas efetivas do ensino básico.
Assim, as reflexões, as pesquisas e a socialização de expe-
riências que visam a efetivação do ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e de um processo de reeducação das relações
étnico-raciais é de fundamental relevância e insere-se em um
processo mais geral de promoção de igualdade racial.
Neste sentido, a publicação deste livro não surge ao acaso,
mas reflete uma ampla e coletiva história de profissionais da
educação da Rede Faetec que, mesmo antes da obrigatoriedade
legal, já realizavam reflexões, debates e elaborações na perspec-
tiva de reeducação das relações étnico-raciais entre estudantes
e professores. Portanto, os textos desta publicação, apresentam
reflexões de diversos docentes da Faetec comprometidos com a
luta anti-racista na educação e na sociedade brasileira.

Rio de Janeiro, março de 2008.

6 INTRODUÇÃO
A CONSTRUÇÃO DOS
FUNDAMENTOS TEÓRICOS DE
UMA NOVA POLÍTICA PÚBLICA
DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE
RACIAL NA EDUCAÇÃO
BRASILEIRA
Luiz Fernandes de Oliveira

Em 9 de janeiro de 2003 o governo brasileiro sancionou a Lei n o

10.639 que altera a Lei n 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases


o

da Educação Nacional), incluindo dois novos artigos, o 26-A e


o 79-A. A nova lei estabelece a obrigatoriedade do Ensino de
História da África e da Cultura Afro-Brasileira em todo o cur-
rículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de
Literatura e de História Brasileira, além de incluir no calendário
escolar, o dia 20 de novembro como dia Nacional da Consci-
ência Negra. Este novo artigo 26-A da LDBEN obteve parecer
do Conselho Nacional de Educação (CNE) e foi regulamentado
mediante Diretrizes Curriculares Nacionais, com a Resolução
no 1, de 17 de junho de 2004 do CNE.
Desde então, inicia-se uma série de iniciativas no âmbito
acadêmico, dos movimentos sociais, das ONGs e, principal-
mente, de órgãos governamentais federais com vistas a sua im-
plementação nos sistemas de ensino federal, estaduais e mu-
nicipais.
Caracterizando-se como uma nova política pública na
educação, as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais, vêm suscitando deba-
tes, tensões e desafios teóricos e epistemológicos nas questões
curriculares, nas práticas pedagógicas e na formação de profis-
sionais da educação.

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 7


Na verdade, a discussão sobre a referida diretriz, abre
questões ainda não incorporadas nos sistemas de ensino, nos
currículos e nas práticas pedagógicas, mas do que isso, ela co-
loca em xeque não somente as lacunas pedagógicas quanto a
diversidade étnico-racial presente na educação básica, invizibi-
lizada e silenciada durante décadas, mas também, as “feridas”
(OLIVEIRA, 2004) da formação docente diante do racismo pre-
sente nas escolas.
Na tentativa de contornar estes desafios e tensões, o Minis-
tério da Educação, através da sua Secretaria de Educação Con-
tinuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), vem realizando
diversos encontros estaduais e publicando obras no sentido de
dar um suporte teórico nas questões de relações raciais e edu-
cação, na perspectiva de implementação imediata das novas
diretrizes curriculares.
Neste ensaio, vamos analisar duas publicações do Ministé-
rio da Educação que, pela sua relevância enquanto publicação
oficial, tem sido discutida nos sistemas de ensino (pois, foram
distribuídas em quase todas as secretarias estaduais e munici-
pais dos estados e capitais no Brasil) e se pretende afirmar en-
quanto orientações teóricas e pedagógicas oficiais para docen-
tes e demais profissionais da educação.
A primeira publicação intitula-se Educação anti-racista:
caminhos abertos pela Lei Federal no 10.639/2003 e a segunda
publicação História da educação do negro e outras histórias. São
publicações que reúnem uma coletânea de artigos de diversos
estudiosos das questões que envolvem relações raciais e edu-
cação. Precisamente, os artigos reunidos nestas duas obras, são
frutos de dissertações de mestrado, teses de doutorado, traba-
lhos em eventos acadêmicos ou apresentações de trabalhos e
projetos em concursos nacionais de pesquisas. Os autores des-
ses artigos se constituem desde professores e pesquisadores
universitários a militantes históricos dos movimentos negros
que, atualmente, marcam sua presença cotidiana nas univer-
sidades brasileiras, principalmente em programas de pós-gra-
duações.
A relevância destas publicações levantada aqui se justifica
por uma série de questões e iniciativas articuladas, expressas

8 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


em ações de órgãos governamentais, dos movimentos sociais
negros, dos espaços acadêmicos e de estudos de especialistas da
área reconhecidos nacionalmente. E mais, estas iniciativas ar-
ticuladas confluem, como afirmam as apresentações das obras,
no objetivo de “planejar, orientar e acompanhar a formulação
e a implementação de políticas educacionais, tendo em vista
as diversidades de grupos étnico-raciais como as comunidades
indígenas, a população afrodescendente dos meios urbano e
rural (...)”. Ou seja, a produção destas obras e sua ampla divul-
gação pretendem se constituir como referenciais de estudo e
pesquisa para os educadores brasileiros, em um contexto em
que estes se encontram fragmentados e restritos a espaços aca-
dêmicos ou ao público interessado.
Outra questão que se destaca na análise da relevância te-
órica dessas obras é o fato delas se constituírem como um dos
recursos mais acessíveis de reflexão acerca da implementação
da Lei no 10.639/2003 e que, poderão responder às demandas
imediatas dos educadores e profissionais do ensino, frente à
ausência de suportes pedagógicos e teóricos sobre as questões
étnico-raciais na educação brasileira.
Por fim, a análise dessas publicações tem como objeti-
vo situar a tentativa de formulação de referenciais teóricos e
epistemológicos para uma nova política pública na educação
brasileira sob a perspectiva do anti-racismo, tendo em vista,
como veremos mais adiante, a invisibilidade da questão racial
no Brasil, os silêncios cultivados sobre a condição dos negros
brasileiros e a ausência, por longos anos, de parâmetros cur-
riculares no enfretamento da diversidade étnico-racial presen-
te nas escolas brasileiras. Além disso, faz-se necessário situar
que questões são priorizadas, como se configura as articula-
ções entre formulações teóricas de especialistas, as intenções
governamentais e a trajetória do movimento negro, ou seja,
quais os caminhos que foram construídos para uma articula-
ção necessária entre governo, academia e movimentos negros.
Por fim, sem pretender esgotar um grande leque de questões,
abertas pela Lei no 10.639/2003, introduzir outras questões que,
a meu ver, estão ausentes nessa tentativa de formulação teórica
recém-oficializada com estas publicações.

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 9


A ORIGEM DAS PUBLICAÇÕES E OS AUTORES
ENVOLVIDOS
As duas publicações da Secad/MEC são de 2005 e faz parte de
uma coleção denominada Educação para todos, que foi lançada
em 2004 com o apoio da Unesco e do Banco Interamericano
de Desenvolvimento. A primeira obra Educação anti-racista:
caminhos abertos pela Lei Federal no 10.639/2003 é o segundo
volume da coleção e a segunda, História da educação do negro e
outras histórias, é o sexto volume.
Outros dois volumes, o sétimo e o nono, tratam também
da questão étnica, enfocando, porém, a educação quilom-
bola, indígena e diversidades culturais.2 Mas, os volumes que
são objetos de nossa análise, são os únicos referentes à Lei no
10.639/2003.
As duas publicações em foco apresentam alguns artigos
oriundos dos Fóruns Estaduais de Educação e Diversidade
Étnico-Racial promovido pela Secad e movimentos sociais ne-
gros nos anos de 2004 e 2005. Esses fóruns reuniram represen-
tantes de secretarias estaduais e municipais, militantes dos mo-
vimentos negros e docentes interessados nas discussões raciais.
Durante esse período foram realizados 20 fóruns estaduais
de Educação e Diversidade Étnico-Racial. O objetivo dos en-
contros foi discutir as políticas públicas de promoção da igual-
dade racial com professores e gestores dos sistemas de ensino.
Nesses, foram convidados como palestrantes diversos especia-
listas da área de relações raciais e educação como: Nilma Lino
Gomes, Eliane Cavaleiro, Henrique Cunha Jr., Petronilha Bea-
triz Gonçalves e Silva, Luiz Alberto Oliveira Gonçalves, Carlos
Moore, Rafael Sanzio dos Anjos, Amauri Mendes Pereira, Azoil-
da Loretto Trindade, Jeruse Romão, Ricardo Henriques, Maria
Aparecida Silvia Bento, Raquel de Oliveira, Kabengele Munanga,
Iolanda de Oliveira, Sales Augusto dos Santos e muitos outros.
Portanto, à primeira vista, percebemos que os conteúdos
apresentados por esses estudiosos nos fóruns e publicados pela

2. O volume 7 intitula-se Educação como exercício da diversidade e, o volume 9


intitula-se, Dimensões da inclusão no ensino médio: mercado de trabalho, reli-
giosidade e educação quilombola.

10 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


Secad, têm uma trajetória acadêmica e nos movimentos sociais
de longa data.
Muitos desses especialistas saíram da Associação Nacional
de Pesquisadores Negros, fundado no ano de 2000, que teve
como seu primeiro presidente, Dr. Henrique Cunha Jr. da Uni-
versidade Federal do Ceará e antigo militante do movimento
negro da capital de São Paulo. Outros, são provenientes de as-
sociações negras de pesquisa e ONGs que, há vários anos e an-
tes do surgimento da Lei no 10.639, vêm discutindo as questões
étnico-raciais na educação. Os nomes nessa área de militância
são bem conhecidos como, Jeruse Romão do Núcleo de Estudos
Negros (NEN) de Santa Catarina, Maria A. Silva Bento do Centro
de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdade (Ceert) de
São Paulo, Iolanda de Oliveira do Programa de Educação Sobre
o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) da UFF de Niterói-RJ,
Nilma Lino Gomes da UFMG, Eliane Cavaleiro da USP, Kaben-
gele Munanga da USP, Rafael Sanzio Araújo da UNB, e tantas
outras entidades não-governamentais que desenvolvem traba-
lhos nas questões raciais e educação desde o início da década
de 1990 como, o Ceafro de Salvador, Casa da Mulher Negra em
Santos-SP, Ceap no Rio de Janeiro, o Programa de Políticas da
Cor na Educação Brasileira da Uerj também no Rio de Janeiro,
Geledés – Instituto da Mulher Negra em São Paulo, O Centro de
Estudos Afro-Orientais (Ceao) em Salvador-BA, entre outros.
Faz-se necessário destacar ainda a presença desses e de
outros pesquisadores em algumas das principais universidades
e programas de pós-graduações do Brasil como: UNB, UFMG,
UFC, USP, Uerj, UFF, UFSC, Uesb e Unesp. Sem dúvida alguma,
a presença desses pesquisadores nestas instituições acadêmi-
cas – muitos deles são também professores dessas instituições
– representa uma força institucional de legitimação de suas ela-
borações teóricas e militantes.
Portanto, observa-se explicitamente que, existe uma es-
treita articulação entre especialistas e militantes na área das
questões étnico-raciais, ações governamentais e acadêmicas
na perspectiva de elaboração de políticas públicas de promo-
ção da igualdade racial na educação, principalmente a partir do
surgimento da Lei no 10.639/2003.

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 11


Nas duas publicações, o conjunto dos autores – 23 no total
– ligados às instituições acadêmicas, é assim distribuído: nove
autores da USP,3 três autores da UNB,4 dois autores da Uerj5 e
um autor das universidades UFPI, UFMG, Ucam, UFC, UFSC,
Uesb, Unesp e PUC-SP.6 A exceção se refere a Carlos Moore We-
dderburn, que é pesquisador cubano-jamaicano da Universi-
dade do Caribe (UWI), em Kingston, Jamaica. Ademais, dentre
os autores, se encontram oito que já integraram cargos em ór-
gãos oficiais de estado em nível federal, estadual e municipal.
Por fim, a grande maioria tem uma trajetória de participação
nos movimentos sociais negros. Em síntese, aqui se revelam
autores e instituições que promovem reflexões nos últimos 15
anos sobre as relações étnico-raciais na educação.
Neste sentido, o ano de 1988, segundo Silva Jr. (2000), foi um
marco para a redefinição do papel da África na concepção da na-
cionalidade brasileira. Foi assegurado na Constituição – artigos
215 e 242 – o reconhecimento da pluralidade étnica da sociedade
brasileira e a garantia do ensino das contribuições das diferentes
culturas e etnias na formação do povo brasileiro.
Tal reconhecimento legal atende a uma antiga reivindica-
ção dos movimentos negros, que há anos sinalizavam com a
importância da inclusão da história dos negros nos currículos
escolares e do reconhecimento do caráter plural étnico brasilei-
ro – bem evidenciado por Sales Augusto dos Santos na primeira
parte da publicação do Secad Educação anti-racista: caminhos
abertos pela Lei Federal no 10.639/2003. Essas discussões come-
çaram a tomar forma nos anos 90, quando o conceito de afro-
descendência, ganha força ao generalizar o enfoque da etnia. A
generalização pode ser entendida a partir da preocupação com

3. Da USP são: Adreia Lisboa de Souza, Eliane dos Santos Cavaleiro, Marcos
Ferreira dos Santos, Lauro Cornélio da Rocha, Márcia Araújo, Geraldo da Silva,
Lucimar Rosa Dias, Marcus Vinícius Fonseca e Surya A. Pombo de Barros.
4. Da UNB são: Nelson Fernando I. da Silva, Rafael Sanzio Araújo dos Anjos e
Sales Augusto dos Santos.
5. Da Uerj são: Maria Alice Rezende e Claudia Regina de Paula
6. Respectivamente: Francisca Maria do Nascimento Souza, Nilma Lino Gomes,
Amauri Mendes Pereira, Henrique Cunha Jr., Lídia Nunes Cunha, Mariléia dos
Santos Cruz e Paulino de Jesus Francisco Cardoso.

12 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


a categoria cultural, que vai ser fundamental nas discussões no
campo do currículo nos anos posteriores.
Durante os anos pós-promulgação da Constituição, no-
vos e velhos debates ocuparam o cenário acadêmico e social.
Aprofundou-se a ruptura com o mito da democracia racial e
avançou-se para as discussões no campo das ações afirmativas,
com a polêmica acerca das cotas para negros nas universida-
des. Além disso, os chamados temas de interesse dos afrodes-
cendentes começam a compor o universo das pesquisas acadê-
micas em várias áreas do conhecimento.
Nas reformas educacionais dos anos 90, o MEC elabora os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que embora criti-
cados por muitos docentes, apresentaram os chamados temas
transversais. Em seguida as escolas e os professores receberam
os PCNs; dentre eles o de História que traz em seus textos prin-
cípios, conceitos e orientações de atividades. Nele, é apresen-
tado o conhecimento histórico destacando a sua importância
social e, a partir da história do ensino de História, critica a visão
eurocêntrica que instituiu um determinado modelo de iden-
tidade nacional. Apresenta ainda, como um de seus objetivos
específicos, a construção da noção de identidade, relacionando
identidades individuais, sociais e coletivas e propondo a apre-
sentação de outros sujeitos históricos diferentes daqueles que
dominaram o ensino de História no Brasil. Esse longo caminho
de reafirmação de reivindicações dos movimentos negros dá
origem a Lei no 10.639 de 9 de janeiro de 2003:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino funda-


mental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput


deste artigo incluirá o estudo da História da África e
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinente à
História do Brasil.

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 13


§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura
Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo
o currículo escolar, em especial nas áreas de Educa-
ção Artística e de Literatura e História Brasileiras.

A lei de início trouxe consigo uma intensa polêmica: para


alguns significava imposição, para outros uma concessão. Po-
rém, com a realização de diversos fóruns estaduais e nacionais
promovidos pelo MEC e o empenho de diversos educadores e
dos movimentos negros, os debates sobre o ensino da História
da África e dos negros no Brasil nos currículos escolares, vêm
conquistando espaço como uma das formas de luta anti-racis-
mo presente na sociedade brasileira.
Ao lado das discussões sobre as ações afirmativas, em espe-
cial a polêmica sobre as cotas, as reflexões acadêmicas vêm se
ampliando e adentrando outras discussões já presentes no cam-
po educacional como currículo, práticas de ensino, multicultu-
ralismo, educação inclusiva etc. Publicações começam a tomar
corpo no cenário acadêmico, revistas de divulgação científica7
e também na mídia, aqui se destacam as iniciativas da Anped
na formação de um Grupo de Estudos Afro-brasileiros e Edu-
cação em seus encontros anuais a partir de 2002, a recorrência
de publicações de artigos nas principais revistas acadêmicas de
educação em meados dos anos 908 e, principalmente, a funda-
ção da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros em 2000.
Destaca-se também a ampliação, principalmente após a publi-
cação da Lei no 10.639/2003, de cursos de pós-graduação lato
sensu sobre História da África, relações raciais e Educação.
Mas recentemente em 2005, temos a edição do projeto a
Cor da Cultura, veiculado pela TV Futura em parceria com o go-
verno federal que, por meio de programas educativos, contri-
buem para divulgar ações e iniciativas de educadores, escolas
e ONGs no campo das relações raciais e educação, dando prio-
ridade as metodologias pedagógicas para aplicação das Diretri-
zes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais.

7. Refiro-me, por exemplo, as revistas de História da Biblioteca Nacional e


Scientific American, entre outras.
8. Como Revista Brasileira de Educação, Cadernos de Pesquisa, Teoria e Educa-
ção, Cedes etc.

14 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


Cabe destacar que este projeto é formado por uma equipe de
profissionais selecionados junto aos movimentos sociais ne-
gros e a diversos especialistas ligados as universidades citadas
acima.
Como vemos, há uma articulação em rede envolvendo ins-
tituições acadêmicas, estudiosos e, o mais importante, educa-
dores e movimentos sociais que há anos priorizam estas dis-
cussões.
Mas quais são as discussões priorizadas nesta rede de re-
lações? Qual o foco teórico argumentado nos textos? Tendo em
vista a invisibilidade da questão racial na educação até pouco
tempo atrás, quais as preocupações dos autores e especialistas
quando aceitam se integrar em um documento oficial tendo
em vista a formulação de políticas públicas inovadoras de pro-
moção da igualdade racial? Quais experiências e história são
resgatadas, já que se questiona, por parte da academia, de que
não existem referenciais teóricos e pedagógicos para uma edu-
cação anti-racista e promotora da igualdade racial, diferente-
mente dos referenciais já consolidados no campo do currículo,
da avaliação da aprendizagem ou da didática?
A partir dessas interrogações é que entramos na descrição
sintética dos textos das duas publicações da Secad, tentando
identificar o foco teórico, epistemológico e pedagógico dos
principais argumentos e produções textuais.

A FOCALIZAÇÃO TEÓRICA, EPISTEMOLÓGICA


E PEDAGÓGICA DOS TEXTOS
O marco de referência inicial das publicações da Secad são as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Bra-
sileira e Africana, expresso no parecer redigido pela doutora e
membro do Conselho Nacional de Educação Petronilha Beatriz
Gonçalves e Silva. Este parecer foi aprovado por unanimidade
no Conselho Pleno do CNE, em 10 de março de 2004.
De acordo com o testemunho da professora Petronilha,
antes da redação final do parecer, houve uma grande consulta

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 15


a militantes dos movimentos negros e especialistas da área de
relações raciais e educação.
O parecer está dividido em quatro partes. A primeira, in-
trodutória, afirma que este busca responder a uma demanda da
população afrodescendente de longos anos, expressa nas polí-
ticas de reparação, de ações afirmativas e de reconhecimento e
valorização de sua história, cultura e identidade. Enfatiza que
o parecer trata de uma política pública curricular na busca de
combater o racismo e as discriminações que atingem particu-
larmente os negros. Além disso, propõe a divulgação e produ-
ção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e va-
lores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento
étnico-racial – sejam eles descendentes de africanos, povos
indígenas, europeus ou asiáticos – na perspectiva de construir
uma nação democrática.
A segunda parte argumenta a necessidade do reconheci-
mento, valorização e afirmação de direitos da diversidade dos
descendentes de africanos na cultura brasileira e que esta se
desdobra nas políticas de reparações e de ações afirmativas.
Reconhecimento, valorização e afirmação de direitos aqui
passa pela necessidade dos sistemas de ensino e dos educado-
res mudarem seus discursos, raciocínios, lógicas, gestos e mo-
dos de tratar as pessoas negras, mas também de conhecer sua
história e cultura. Requer também, desconstruir o mito da de-
mocracia racial que difunde a crença de que “se os negros não
atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de
competência ou de interesse” e que no Brasil, se existe discrimi-
nação, esta é contra os pobres, ou seja, mas do que racial há um
problema social a resolver. Este mito ainda difunde a idéia de
que há uma convivência harmoniosa entre as “raças”, pois no
Brasil existe muita miscigenação entre negros e não negros.
Reconhecimento para a construção de políticas públicas
anti-racismo na educação, nesta parte, também é fundamentada
na necessidade de respeito às pessoas negras, além da exigência
aos sistemas de ensino, de políticas pedagógicas efetivas dirigi-
das à correção de desigualdades raciais que afetam a maioria da
população escolar, constituída por afrodescendentes.

16 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


A terceira parte vai trabalhar os fundamentos teóricos para
se construir a educação das relações étnico-raciais, colocando
que essas novas políticas de Estado, a partir das diretrizes cur-
riculares, devem ressignificar os termos raça, a história oficial
dominante, o que significa ser negro no Brasil e as visões sobre
a presença do racismo no Brasil. Afirma também que estas res-
significações não são tarefas exclusivas da escola, mas que se
deve realizar todo um trabalho comunitário visando à supera-
ção das mentalidades racistas, do etnocentrismo europeu, de-
salienando processos pedagógicos.
Também nesta parte, há uma breve descrição sobre as
construções das noções que fundamentaram o racismo, o
mito da democracia racial, a ideologia do embranquecimento
e a questão da dificuldade de negros e negras assumirem sua
condição de afrodescendentes. Essas caracterizações apontam
a necessidade de uma luta política de desconstrução de visões
e noções arraigadas e difundidas por longos anos também no
âmbito acadêmico.
Esses fundamentos teóricos se apresentam como orienta-
ções que vão justificar as determinações de caráter normativo
na quarta parte do parecer. Aqui, o texto afirma que a obrigato-
riedade da inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Afri-
cana nos Currículos da Educação Básica trata-se “de uma deci-
são política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na
formação de professores”.
Neste ponto, destaca-se os referenciais para implemen-
tação das diretrizes curriculares como: valorização das raízes
africanas da nação brasileira, o ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira no âmbito de todo o currículo escolar e de to-
das as atividades pedagógicas, articulação pedagógica com as
entidades dos movimentos negros, o resgate das histórias mile-
nares dos povos africanos não se restringindo as denúncias de
miséria e fome, a celebração de todas as manifestações das cul-
turas negras, a divulgação de personalidades negras envolvidas
na construção da história nacional em todas as áreas de conhe-
cimento, incluindo as personalidades africanas e também das
lutas dos povos africanos contra a opressão e o racismo.

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 17


Por fim, para efetivar esta política, os sistemas de ensino
e os estabelecimentos de Educação Básica em todos os níveis
precisarão providenciar: registro da história não contada dos
negros brasileiros; mapeamento e divulgação de experiências
pedagógicas de escolas sobre a questão racial; instalação de
grupos de trabalhos; cursos de formação de professores e ou-
tros profissionais para a educação das relações étnico-raciais;
Inclusão de bibliografias relativa a história e cultura afro-bra-
sileira nos programas de concursos públicos para admissão de
professores; edição de livros e de materiais didáticos para dife-
rentes níveis e modalidades de ensino.
Esses são apenas alguns dos 23 itens que, se efetivamente
cumpridos, poderão criar uma nova realidade curricular e de
práticas pedagógicas para as questões étnico-raciais na educa-
ção básica.
A partir dessas formulações iniciais, que tem uma afinida-
de com as formulações dos militantes dos movimentos sociais
negros e também estão presentes em muitas produções acadê-
micas dos autores citados no tópico anterior, percebemos que
as duas publicações da Secad tentam seguir as orientações das
diretrizes curriculares aprovadas no CNE.
A publicação Educação anti-racista: caminhos abertos pela
Lei Federal no 10.639/2003, é dividida em três partes, com uma
introdução de Eliane dos Santos Cavaleiro.
Na primeira parte, há dois textos, um de Sales Augusto dos
Santos, “A Lei no 10.639/2003 como fruto da luta anti-racista do
Movimento Negro” e outro de Nilma Lino Gomes, “Alguns ter-
mos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no
Brasil: uma breve discussão”. Essa primeira parte tem como ob-
jetivo contextualizar o surgimento da Lei no 10.639/2003 e abrir
a discussão sobre as noções e conceitos, considerados pelos
autores, como relevantes para início da reflexão racial na edu-
cação.
Sales Augusto dos Santos busca demonstrar que a nova lei
não surgiu por acaso, mas que é resultado de anos de luta do
movimento negro por uma educação anti-racista e não euro-
cêntrica. Ao longo do texto descreve os vários movimentos de
lutas negras desde a pós-abolição, suas propostas no campo

18 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


da educação, chegando até meados dos anos 80, quando esses
movimentos em aliança com políticos mais sensíveis à questão
racial brasileira, tiveram como resultado a inclusão, por meio
de leis, de disciplinas sobre a história dos negros no Brasil e do
continente africano.
Aqui o autor cita a Constituição do Estado de São Paulo, a
Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte, as leis munici-
pais de Porto Alegre, Belém, Aracaju, São Paulo, Teresina e do
Distrito Federal, todos entre os anos 1989 e 1996.
Porém, o autor aponta que não bastou a existência dessas
leis ou na sua culminância, ou seja, o surgimento de uma lei
federal. Para o autor, faz-se necessário o investimento na for-
mação de professores que, segundo ele, a aplicação da lei vai
depender dos esforços e vontade desses para que a história da
África e dos negros brasileiros sejam ministrados de fato em
sala de aula. Ele fecha o artigo afirmando que “é preciso uma
pressão constante dos movimentos sociais negros e dos intelec-
tuais engajados na luta anti-racismo junto ao Estado brasileiro
para que a lei não se transforme em letra morta do nosso siste-
ma jurídico”.
A professora Nilma Lino Gomes vai apresentar a discussão,
no segundo texto, de alguns conceitos-chave utilizados no de-
bate sobre as relações raciais no Brasil, tais como: identidade,
identidade negra, raça, etnia, racismo, etnocentrismo, precon-
ceito racial, discriminação racial e democracia racial. A autora
argumenta que estes termos se referem a uma discussão de con-
ceitos fundamentais para os educadores que desejam iniciar e
aprofundar conhecimentos sobre relações raciais e educação.
Estes dois textos, a meu ver, tem uma forte justificação teó-
rica por estar presente nesta primeira parte: trata-se no primei-
ro artigo, de um histórico sobre as reivindicações, movimen-
tos e iniciativas de políticas públicas no Brasil antes da Lei no
10.639/2003 que, vem a demonstrar que aqueles que discutem
racismo no Brasil, sempre tiveram preocupações sobre a inser-
ção e reflexão dessas temáticas no campo da educação, antes
mesmo de surgirem temas como multiculturalismo ou educa-
ção inclusiva. Por sua vez, no segundo artigo, a autora revela
um dos grandes nós e fatores de confusões teóricas, quando se

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 19


faz esta discussão dentro das instituições escolares e até mes-
mo acadêmicas, ou seja, desconstruir todos aqueles termos e
conceitos, que o mito da democracia racial tentou – e muitas
vezes conseguiu – forjar para a hegemonia das idéias de que
no Brasil não existe racismo ou discriminação contra negros e
negras. Ademais, expõe novos termos de significação da condi-
ção desses como: “afrodescendente”, termo utilizado na maio-
ria dos textos da coleção e derivado da terminologia usada no
parecer do CNE, “descendentes de africanos”.
A publicação segue na segunda parte com a discussão so-
bre as possibilidades de uma educação anti-racista. Primeira-
mente, expondo uma pesquisa de campo de mestrado da pro-
fessora Eliane Cavaleiro, que tenta demonstrar como o racismo
impregnado nas relações cotidianas da sociedade brasileira
prejudica o aprendizado de crianças e jovens na Educação Bási-
ca. A autora mostra as desigualdades educacionais entre bran-
cos e negros nas estatísticas do IBGE e trabalha com os relatos
de professoras, pais e mães de alunos, crianças e outros profis-
sionais da escola, e conclui:

a análise dos dados coletados nessa pesquisa indica


que o racismo é ingrediente básico das dinâmicas e
relações interpessoais entre os profissionais da edu-
cação e as crianças, e a operação dele no cotidiano
escolar permite uma nítida separação dos alunos em
sala de aula de acordo com o pertencimento racial.

Além do mais a autora destaca que no contexto escolar, a


existência do racismo é negada, não há reconhecimento dos
efeitos prejudiciais do racismo para os negros, nem mesmo de
seus aspectos negativos, e o pior, não se buscam estratégias
para a participação positiva da criança negra, mesmo quando
se reconhece a existência da discriminação no cotidiano esco-
lar. Ao final, se deduz que boa parcela das relações raciais no
cotidiano escolar está alicerçada no mito da democracia racial.
Por fim, a autora lamenta que as políticas públicas na edu-
cação não desembocam no âmbito escolar e que há um abismo
entre as políticas institucionais e as práticas escolares, princi-

20 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


palmente no campo do currículo, onde este (oficial e oculto)
não incorpora uma sistemática de combate ao racismo.
O segundo artigo desta parte é de Francisca Maria do Nas-
cimento que vai destacar as linguagens escolares e a reprodu-
ção do preconceito.
Tentando discutir a influência da escola no processo de
construção da auto-estima das crianças, ela vai perceber que
a linguagem verbal e não verbal têm marcado uma legitimação
do racismo e dificultado o desenvolvimento da auto-estima
positiva de crianças negras. Na mesma perspectiva de Eliane
Cavaleiro, a autora desvenda que os xingamentos, a piada pejo-
rativa, os olhares, os apelidos etc., dirigidos às crianças negras e
com o silêncio dos profissionais da educação, mantém o status
quo de reprodução cotidiana dos preconceitos e discrimina-
ções raciais.
No terceiro e último artigo desta primeira parte, Nelson
Fernando Inocêncio da Silva reflete sobre a religiosidade de
matriz africana, e procura argumentar as tensões que emper-
ram a discussão dessa dimensão no espaço escolar.
O autor caracteriza um fenômeno que ele denomina de
“negrofobia”, ou seja, uma lógica de raciocínio que desqualifica
e anula qualquer tipo de visão de mundo diferente do pensa-
mento judaico-cristão. Assim, a “negrofobia”, ou o medo de tudo
que a população afrodescendente pode representar, alcançou
os bancos escolares e acabou sendo responsável por uma série
de erros que impedem abordar certos temas nas relações entre
educadores e educandos. Dentre esses temas, encontram-se as
mitologias, os rituais, certos termos, vestimentas e tudo mais
que caracteriza ou lembra a religiosidade de matriz africana ou
sua cultura. Um exemplo que ele cita é a expressão “tocar tam-
bor” como “coisa do demônio”. O que se apresenta geralmente,
nessa expressão, é uma sintonia com idéias que aprisionam,
“pois uma frase como essa nada contém além de estereótipo,
do preconceito e, sobretudo, do medo das expressões culturais
negras, ou seja, a ‘negrofobia’ que persistentemente amedronta
e desinforma”.
Ao final ele lembra, assim como Sales Augusto Santos, que
é necessário um movimento contra-hegemônico para garantir

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 21


uma real implementação da Lei no 10.639/2003, já que estamos
atuando em um contexto cultural no qual as relações de poder
são assimétricas entre brancos e negros.
Depois de situar o contexto da Lei no 10.639/2003, os con-
ceitos pertinentes à questão racial no Brasil e as tensões peda-
gógicas e curriculares, a publicação entra na terceira parte em
uma perspectiva propositiva e não meramente analítica ou de
denúncia.
São quatro textos que propõe uma nova abordagem de as-
pectos referentes à história da África e dos africanos, a geografia
afro-brasileira, a literatura infanto-juvenil e a questão da cons-
trução de identidades.
No primeiro texto, Carlos Moore fornece informações e co-
nhecimentos preciosos para o ensino de história da África no
Brasil. Analisa, e é enfático nisto, que a maioria dos historiado-
res banaliza os efeitos do racismo na interpretação histórica, e
mais, afirma que é necessário colocar a África no lugar certo, ou
seja, este continente além de ser o berço da civilização humana,
contribuiu decisivamente em muitos aspectos para o desenvol-
vimento do conjunto da humanidade e não somente no Brasil.
Por isso, afirma o autor, que se faz necessário um rigor metodo-
lógico, teórico e pedagógico, no momento da difusão de mate-
riais didáticos e no próprio processo de ensino-aprendizagem.
Em seguida vem o artigo de Andréia Lisboa, que aborda
a presença de personagens femininas negras na literatura in-
fanto-juvenil brasileira. Realizando uma reflexão sobre estas
personagens, a autora procura demonstrar que ao contrário do
que se afirma nos meios acadêmicos, existe uma série de possi-
bilidades de trabalho com imagens negras positivas para crian-
ças e jovens.
Por fim, o artigo de Marcos Ferreira dos Santos, faz um di-
álogo com os leitores sobre sua experiência profissional den-
tro dos desafios de implementação da Lei no 10.639. Ele passa a
limpo os pressupostos marcadores da educação brasileira, fru-
tos de uma tradição branco-ocidental, e traz para o centro de
sua reflexão a importância dos valores oriundos da “cosmovi-
são afro-ameríndia” na perspectiva da construção de um modo
verdadeiramente libertário e anti-racista.

22 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


Essa primeira publicação certamente não deu conta de
uma série de questões que a Lei no 10.639/2003 abre no campo
educacional. Portanto, consciente deste fato, a Secad chama a
professora Jeruse Romão, mestre em educação pela UFSC e ex-
periente militante do movimento negro, para organizar um se-
gundo volume sobre os desdobramentos da Lei no 10.639/2003,
intitulado: História da educação do negro e outras histórias.
Este volume trabalha em cinco dimensões: a história da
educação dos negros e a legislação educacional no Brasil, a his-
tória da interdição e do acesso do negro à educação, as expe-
riências de implementação de políticas educacionais para os
negros, a formação de professores e a questão racial e a questão
dos conteúdos e os currículos escolares.
A primeira parte, História da educação, escola e legislação
educacional, é composta de três artigos, o primeiro de Mariléia
dos Santos Cruz, o segundo de Amauri Mendes Pereira e o últi-
mo de Lucimar Rosa Dias.
Mariléia dos Santos inicia o texto, “Uma abordagem sobre
a história da educação dos negros”, questionando o suposto
caráter de verdade que querem assumir as pesquisas sobre os
processos históricos, destacando também a tendência de ex-
cluir os povos não europeus das narrativas do campo histórico.
A partir destas formulações, afirma que as elites elevaram
ao status de universal o que lhes era específico e rebaixaram as
culturas que, comparadas à sua, foram percebidas como dife-
rentes e inferiores. Neste sentido, cabe uma reconstrução das
narrativas históricas para perceber que há muito que se falar da
história dos negros na educação brasileira.
Assim, ela resgata que as pesquisas e estudos sobre rela-
ções raciais nas escolas, têm ocorrido desde a década de 1970.
Destaca também que é em 1979 que surge o primeiro artigo
em um periódico acadêmico sobre negro e educação, ou seja,
na revista de educação da Fundação Carlos Chagas. Logo em
seguida, descreve que houve uma tendência de aumento das
publicações, chegando ao início da década de 1990 com cerca
de 40 publicações sobre relações raciais e educação.
Segundo a autora, nessas publicações são escassas as abor-
dagens sobre períodos históricos mais remotos. As publicações

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 23


que vão surgindo, ao longo dos anos 80, enfocam principalmen-
te as questões de sala de aula, currículo e as relações étnicas e
de poder no espaço escolar. Entretanto, o que tenta argumentar
é que existe uma série de estudos etnográficos e históricos que
dão pistas sobre as presenças e ausências dos negros na educa-
ção brasileira desde a pós-abolição. O que a autora descreve são
apenas algumas referências de obras e autores que nos forne-
cem dados para resgatar estas histórias.
Por fim, nos lembra da necessidade de contar estas histó-
rias sobre as trajetórias educacionais dos afrodescendentes nos
cursos de formação de professores.
Amauri Mendes Pereira no artigo Escola – espaço privile-
giado par a construção da cultura de consciência negra, faz uma
análise da necessidade de aprofundar o estudo sobre o passado
para que as escolas superem certa idealização, e alcancem de
fato, uma proposta pedagógica de combate ao racismo. Trata-
se de um texto teórico que tenta dialogar com o leitor sobre a
necessidade de não bloquear nossa imaginação e criatividade,
iluminadas pelo passado, na perspectiva de construção do pre-
sente.
Lucimar Rosa fecha a primeira parte com o artigo “Quantos
passos já foram dados? A questão de raça nas leis educacionais
– da LDB de 1961 à Lei no 10.639 de 2003”.
Aqui a autora lança um panorama das leis educacionais a
partir da década de 1960 e o quanto estas se fizeram presentes
ou não na questão racial e na educação. Ao longo do texto ela
afirma que há uma ausência generalizada da questão racial até
meados da década de 1990, justificando que isto se deve, so-
bretudo, a ideologia da democracia racial e a teoria do embran-
quecimento.
Entretanto, a partir da década passada, sob a pressão do
movimento negro e das publicações e trabalhos acadêmicos de
caráter quantitativo, quando estes de forma inquestionável, de-
monstram as inconsistências de manutenção de um discurso ra-
cial dissimulado e de negação do racismo estrutural brasileiro.
Assim como o artigo de Sales Augusto, da primeira publi-
cação vista anteriormente, a autora faz uma breve descrição de
leis e diretrizes educacionais que surgem na década de 1990 en-

24 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


volvendo as discussões de etnia, raça, identidade e pluralidade
cultural, até a chegada da Lei no 10.639/2003. Por fim, destaca
que para efetivação desta última, fazem-se necessárias políti-
cas públicas de Estado efetivas e uma forte pressão dos movi-
mentos sociais.
Os três textos seguintes que compõem a segunda parte,
trata da história da interdição e do acesso do negro à educação.
Com o caráter analítico e descritivo, o texto de Geraldo da Silva
e Márcia Araújo, “Da interdição escolar às ações educacionais
de sucesso: escolas dos movimentos negros e escolas profissio-
nais, técnicas e tecnológicas”, o texto de Surya Aaronovich Pom-
bo de Barros, “Discutindo a escolarização da população negra
em São Paulo entre o final do século XIX e início do século XX“
e, por fim, o texto de Marcus Vinícius Fonseca, “Pretos, pardos,
crioulos e cabras nas escolas mineiras do século XIX”, vão dar
um panorama histórico e se apresentam como referências dos
estudos sobre as presenças e ausências dos negros nas escolas
do País no início do período republicano.
De uma forma sintética, os artigos são metodologicamente
bem semelhantes, pois fazem uma descrição, em cada contex-
to, dos sucessos e fracassos dos negros presentes nas escolas
mineiras e paulistas, além das estratégias das elites dominantes
de impedirem o acesso dos afrodescendentes a escolarização
média e superior.
Observando os três textos em conjunto, percebe-se uma
nítida semelhança com os dias atuais, quando observamos as
dificuldades da população negra para alcançar certo sucesso
escolar. No mais, devemos caracterizar estes três textos em blo-
co, como sendo de extrema relevância como referência de estu-
dos em história da educação brasileira, pois, nos revela proces-
sos, disputas e tensões nas relações raciais brasileiras, que além
de não estar em resolvidas, permanecem quase que intocadas
no espaço escolar.
Após as duas primeiras partes, que são constituídas de
análises e descrições históricas, parte-se para a terceira parte,
com o objetivo de socializar as experiências de implementa-
ção de políticas educacionais na história social da educação
de negros.

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 25


Mesmo tendo conhecimento de várias iniciativas atuais e
de experiências significativas em diversos municípios, o foco
se desenvolve a partir daquilo que os autores consideram de
maior relevância e repercussão nacional, ou seja, o texto de Je-
ruse Romão, destacando a “Educação, instrução e alfabetização
no Teatro Experimental do Negro”, o texto de Alexandre do Nas-
cimento sobre “Negritude e cidadania: o movimento dos cursos
pré-vestibulares populares” e o texto de Maria Alice Rezende
sobre “A política de cotas para negros na Universidade do Esta-
do do Rio de Janeiro”.
Jeruse Romão destaca, nas suas próprias palavras, “uma
história desconhecida”, ou seja, o movimento de militantes ne-
gros, organizado em 1944, sob o nome de Teatro Experimental
do Negro (TEN).
O TEN tinha como tarefa convocar a população para um
“empreendimento de caráter pedagógico que tem por objetivo
contribuir para que se desfaçam as tensões ainda discerníveis
nas relações de raça no Brasil”. Era um objetivo claro, pois, de-
pois de mais de 50 anos da abolição da escravatura, os negros
eram ainda discriminados na sociedade brasileira. A proposta
dos organizadores do TEN se dirigia claramente na perspectiva
de qualificar profissionalmente e culturalmente a comunidade
negra para sua inserção na sociedade nacional. Jeruse Romão
nos conta que, por exemplo, o TEN obteve tanto sucesso que
chegou a alfabetizar mais de 600 pessoas adultas.
Ao longo do texto ela recolhe depoimentos de uma figu-
ra histórica desse movimento: o professor Ironides Rodrigues.
Além disso, recolhe e nos fornece a descrição dos escritos ofi-
ciais do TEN: o Jornal Quilombo, que testemunhava as iniciati-
vas educativas junto a juventude negra e as mulheres negras.
A autora conclui afirmando que havia uma “dimensão da
reeducação”, que trazia em si, “a busca de outros lugares para os
atores sociais negros e brancos, e a busca pelo estabelecimento
de outros patamares das relações sociais, em que o racismo e
suas conseqüências fossem combatidos”.
De fato, o texto de Jeruse Romão, resgata uma experiência
quase relegada ao ostracismo nas produções do campo da his-
tória da educação. Isto é bem precisado quando a autora relata

26 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


que estas histórias desconhecidas são partes da história do ne-
gro e da sociedade brasileira, e também conteúdos da escola e
da história da educação no Brasil.
O segundo texto de Alexandre do Nascimento, “Negritude
e cidadania: o movimento dos cursos pré-vestibulares popu-
lares” e o terceiro de Maria Alice Rezende, “A política de cotas
para negros na Universidade do Estado do Rio de Janeiro”, tes-
temunham experiências de políticas públicas e iniciativas edu-
cacionais de inclusão étnico-raciais na educação mais recente
e presenciada por nós.
Alexandre Nascimento nos trás um histórico do surgimen-
to dos Movimentos de Cursos Pré-Vestibulares para Negros e
Carentes, mas também suas características e objetivos não
somente de inclusão educacional, mas também de uma das
formas contemporâneas de luta anti-racismo. Por outro lado,
Maria Alice Rezende, descreve a experiência de implementa-
ção das políticas de cotas, como um dos elementos de políticas
afirmativas incorporadas oficialmente pelo Estado do Rio de
Janeiro.
São experiências descritas no calor da militância política
anti-racismo, mas que não pecam no rigor conceitual e científi-
co. Os autores não evidenciam nos textos as novas implicações
das relações étnico-raciais e a educação, mas relatam e anali-
sam as possibilidades de inclusão educacional dos afrodescen-
dentes e as tensões que envolvem propostas que mobilizam
estruturas de poder a décadas consolidadas nas relações raciais
no campo educacional.
A penúltima parte da publicação é constituída também por
três textos. Mas, neste ponto, o foco é a formação de professores
e a questão racial, intimamente ligada ao contexto dos novos
desafios abertos pela Lei no 10.639/2003.
Apresentam-se três discursos e experiências diferenciadas,
o primeiro de Paulino de Jesus Francisco Cardoso com o texto
“A vida na escola e a escola da vida: experiências educativas de
afrodescendentes em Santa Catarina no século XX; em seguida
o texto de Claudia Regina de Paula, “Magistério, reinações do
feminino e da brancura: a narrativa de um professor negro”; e, o
último, de Lauro Cornélio da Rocha com o texto “A formação de

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 27


educadores(as) na perspectiva étnico-racial na rede municipal
de ensino de São Paulo (2001-2004)”.
Através de testemunhos de mulheres negras de Florianó-
polis do início do século XX e das memórias de normalistas
afrodescendentes de Criciúma na década de 1960, Paulino de
Jesus Francisco Cardoso, busca explorar práticas educativas
quotidianas dos catarinenses de origem africana, tentando per-
ceber as tensões e desafios do exercício do magistério em uma
sociedade racista e hegemonicamente branca, como é o caso
do contexto estudado.
No segundo texto dessa parte, Claudia Regina de Paula,
vai expor a trajetória de um professor negro que ao longo de
sua biografia, adquire uma consciência da própria condição de
oprimido e, como militante da questão racial, vive as contradi-
ções na sua atuação profissional. A autora o descreve como um
indivíduo em constante tensão, pois o referido professor negro,
constata quotidianamente que sua consciência anti-racista –
adquirida inclusive por meio da militância partidária – não tem
contribuído na desconstrução de estereótipos negativos acerca
da população negra e, como diz a autora, uma realidade que
angustia o professor negro.
O texto de Lauro Cornélio da Rocha, o último sobre a forma-
ção de professores, intitula-se “A formação de educadores(as)
na perspectiva étnico-racial na rede municipal de ensino de
São Paulo (2001-2004)”. Aqui o autor descreve e analisa uma
experiência – na qual participou diretamente como integran-
te da Secretaria Municipal de Educação do município de São
Paulo – de política pública de formação docente para a questão
étnico-racial.
O autor inicia o texto argumentando que as discussões ra-
ciais deram um salto de qualidade a partir de basicamente qua-
tro fatores:
a) a ação de educadores negros dentro de determinadas escolas,
b) a presença de um expressivo número de negros em estru-
turas governamentais,
c) a ação de diversas ONGs que passam a elaborar propostas
concretas de intervenção social, e

28 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


d) a proliferação de centros ou núcleos de estudos africanos e
afro-brasileiros dentro das universidades.
Neste contexto, a partir de 2001, um grupo de militantes e
estudiosos foi convocado para repensar a prática pedagógica
na Secretaria Municipal de Educação do Município de São Pau-
lo na perspectiva de uma educação anti-racista. Neste sentido,
elaboraram-se alguns projetos de reorientação curricular e de
formação de professores. E, logo após a promulgação da Lei no
10.639/2003, o trabalho na secretaria foi desafiado pelas impli-
cações práticas e pedagógicas abertas pela lei, ou seja, como
corrigir as distorções educacionais? Qual o papel dos educado-
res no combate ao racismo? Ou, “por que é tão difícil discutir
práticas racistas no interior das escolas?”.
Nos anos de 2003 e 2004, mesmo com parcerias firmadas
com a USP e o Ceert, o projeto, segundo relato do autor, teve de
responder as questões postas pela prática pedagógica e tensões
sempre presentes e desafiadoras da questão racial e educação.
Ao longo do texto, o autor vai tentando nos mostrar as gran-
des dificuldades de implementação da reorientação curricular
e da formação docente, expondo que esta discussão da supera-
ção do racismo nas escolas tem a ver com os Projetos Pedagó-
gicos das unidades, os sistemas de avaliação e uma constante
tentativa capilar de trabalho político anti-racista. Em algumas
passagens, percebem-se as dificuldades na medida em que o
autor reitera várias vezes a necessidade de descondicionar e
reeducar os olhares, desarmar os espíritos, mudar as posturas,
as linguagens e as práticas docentes arraigadas no contexto do
mito da democracia racial.
Ou seja, questões sempre provocadoras de tensões e confli-
tos, mesmo com um projeto oficial de governo, com metodolo-
gia e propostas especificadas para os diversos níveis de ensino
da rede municipal. Enfim, para quem teve ou terá experiências
em estruturas governamentais, o autor recomenda ao final, “o
desafio atual é a construção e consolidação de programas de
ação que incorporem o tema nas práticas educativas”.
A última parte vem expondo dois artigos referentes a ques-
tão dos conteúdos e dos currículos escolares para a educação das
relações étnico-raciais. O primeiro de Lídia Nunes Cunha, “A po-

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 29


pulação negra nos conteúdos ministrados no curso normal e nas
escolas públicas primárias de Pernambuco, de 1919 a 1934”, e o
segundo texto de Henrique Cunha Jr., “Nós, afrodescendentes:
história africana e afrodescendente na cultura brasileira”.
São dois textos com enfoques diferenciados. O primeiro
aborda as diversas nuances dos conteúdos escolares para o cur-
so normal e, dentro destes, os aspectos de presença ou ausência
das culturas e valores das populações descendentes de africa-
nos. Contextualiza estes conteúdos, evidenciando a articulação
coerente entre projeto de embranquecimento e controle das
populações negras.
Para a autora, os conteúdos, expressos em aspectos his-
tóricos, eugênicos (aspectos morais), higiênicos, psicológicos,
sociológicos e cívicos, contribuíram para construir referenciais
sobre a população negra de inferioridade, exotismos, primiti-
vos, anomalias morais e físicas, anatomias deficientes, entre
outros. Ou seja, uma educação que se caracterizou profunda-
mente na criação e consolidação de estereótipos negativos so-
bre os afrodescendentes.
A relevância deste estudo se confirma na medida em que
podemos perceber uma estratégia curricular oficializada pelo
Estado, nas décadas de 1920 e 1930 do século XX, e que, em al-
guns aspectos, perdura até hoje.
Henrique Cunha Jr. fecha a última parte com uma interes-
sante abordagem sobre os conteúdos de história africana e dos
afrodescendentes, que na sua opinião, deveria ser a base de dis-
cussão para implementação da Lei no 10.639.
Cunha Jr. afirma no texto questões inovadoras e instigantes
para historiadores e todos aqueles que somente conhecem um
lado da História do Brasil, ou seja, aquela oficial das elites do-
minantes. Trata-se de um texto desmistificador, colocando no
início que os africanos trazidos ao Brasil tinham conhecimentos
técnicos e tecnológicos superiores aos dos europeus e indígenas.
E ao longo do texto, trabalha a idéia de que as culturas dos afro-
descendentes e a cultura brasileira têm uma forte base africana.
Assim, nossa cultura nacional, a partir das discussões so-
bre identidade, deve-se levar em consideração este fator de
base africana. A idéia parece bastante esclarecedora, pois, os

30 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


africanos e descendentes são milenares na história da huma-
nidade. Neste sentido, o processo civilizatório interrompido
pelos brancos europeus obrigou o negro africano a reelaborar
suas culturas no Brasil sob uma poderosa pressão econômica e
política. Assim, ocorreu um reprocessamento pensado e pro-
duzido no coletivo e na individualidade que deram novo teor
as culturas africanas de origem. E mais: a idéia de reelaboração
é importantíssima, ela tem o conteúdo da produção intelectual
dos afrodescendentes. Ela introduz a idéia do pensado, do na-
cional, do produzido através de bases civilizadas importantes
preexistentes.
A partir desta afirmação, segundo Henrique Cunha Jr., se
descortina um novo horizonte para se pensar as religiões de
matriz africana no Brasil, a capoeira, os quilombos e várias ma-
nifestações culturais e sociais dos afrodescendentes e africanos
na diáspora. Pois estas manifestações se caracterizam antes de
tudo como reelaboração de base africana.
Essa caracterização pode nos demonstrar que existiu e
existe um processo dinâmico de resistência-adaptação, conti-
nuidade na descontinuidade. As comunidades religiosas (Can-
domblé e Umbanda), por exemplo, constituem-se em institui-
ções irradiadoras do processo civilizatório e sociocultural do
africano na diáspora.
Além desta questão, o autor descreve, com muita proprie-
dade, fragmentos das civilizações milenares africanas, demons-
trando que nossos conhecimentos sobre história da humanidade
devem ser revistos e que um novo olhar sobre a África e suas his-
tórias, além de possibilitar um novo olhar sobre as relações raciais
no Brasil, deve-se tornar conhecido por todos os educadores.

RELEVÂNCIA, AUSÊNCIAS, TENSÕES E PERSPECTIVAS


DAS FORMULAÇÕES
Na breve síntese feita anteriormente sobre as duas publicações
da Secad, podemos identificar em linhas gerais que, a partir
das grandes questões abertas pela Lei no 10.639, os autores se
concentram em elementos históricos, jurídicos e ideológicos.
A questões pedagógicas e curriculares não encontram muito

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 31


espaço, mesmo fazendo-se presente nos interstícios de alguns
artigos.
Entretanto, esta constatação não pode se limitar a uma
crítica às formulações teóricas reunidas pela Secad. Faz-se ne-
cessário compreender que estamos tratando aqui de uma nova
política pública no campo da educação, e que tem como carac-
terísticas, a inovação, a disputa política contra-hegemônica e
de projetos, a desconstrução de conceitos e noções fortemente
arraigados – inclusive no campo educacional – e, por conta dis-
so, a proposição de novos parâmetros interpretativos e analíti-
cos em alternativa àqueles já consolidados.
Neste sentido, justifica-se certa prioridade, por exemplo,
no discurso enfático de aspectos históricos, na medida em
que se faz urgente, com a nova legislação, resgatar histórias
deliberadamente negadas, pois se estas histórias fossem par-
tes da história da educação, talvez tivéssemos tido uma outra
perspectiva nas relações raciais e educação. Por outro lado, a
explicitação de aspectos jurídicos, além de denunciar o silêncio
sobre os movimentos educacionais das populações negras, co-
loca em evidência que na história da educação brasileira, existi-
ram contribuições relevantes até mesmo em aspectos clássicos
estudados no campo educacional. Exemplo disto se revela na
informação fornecida por Jeruse Romão, quando afirma que
o professor Paulo Freire cunhou a categoria “conscientização”
a partir do movimento pedagógico do Teatro Experimental do
Negro na década de 1960.
Por fim, a questão que se refere aos aspectos ideológicos,
mereceu destaque de grande parte dos autores, já que o próprio
parecer do CNE – um documento oficial de Estado – evidencia
a luta anti-racismo na proposta de políticas afirmativas e de re-
paração na educação.
Este aspecto evidenciou-se como uma questão capital,
pois, a meu ver, qualquer tentativa, legislação ou ação, visan-
do à superação do racismo na educação, necessita de um com-
bate as estruturas ideológicas consolidadas que reproduzem
os estereótipos, as discriminações e o racismo contra negros
e negras no espaço escolar. Aqui fica evidente, como afirmam
alguns artigos, que a nova legislação não mobiliza somente o

32 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


espaço escolar ou a comunidade em torno dela, mas também a
sociedade por inteiro.
No mais, é preciso destacar que essas publicações, vista por
educadores enquanto textos oficiais, têm aspectos positivos de
grande repercussão para as discussões teóricas e pedagógicas
no campo educacional.
Em primeiro lugar, elas têm uma divulgação nacional. Ao
contrário das dezenas de livros, revistas acadêmicas, de divul-
gação científica e outras, a grande maioria dos órgãos responsá-
veis pelos sistemas de ensino (secretarias estaduais e municipais
além de muitas universidades) recebeu estas coleções, portanto,
há uma divulgação nacional, mesmo sabendo que poucos pro-
fessores e educadores tenham acesso fácil as mesmas.
Em segundo lugar, estas publicações foram forjadas dentro
de uma rede de contatos e articulações que envolveram espe-
cialistas da área e movimentos sociais negros. Ou seja, diferen-
temente de muitas outras publicações, construídas em espaços
restritamente acadêmicos ou intelectualizados e que, em segui-
da, se transformam em referências para os “pacotes educacio-
nais” vindos de cima – das secretarias para as escolas –, estas
tiveram a participação daqueles que também fazem parte dos
“de baixo”, ou seja, educadores e profissionais conhecedores
das tensões das práticas escolares.
Neste sentido, o que se evidencia é um movimento tam-
bém dos “de baixo”, ou seja, não somente as publicações, mas
a própria legislação foi forjada e elaborada a partir de anos de
luta e combate ao racismo presente no espaço escolar.
Em terceiro lugar se configura sua dimensão propositiva.
Ou seja, ao contrário de alguns anos atrás, os discursos textuais,
as argumentações públicas contra o racismo e a invisibilidade
de negros na educação não se limitam mais a denúncia pública,
mas a elaboração de propostas concretas de superação da desi-
gualdade racial na educação.
Sem sombra de dúvida, como afirma Lauro Cornélio da
Rocha, houve um salto qualitativo no combate a discriminação
racial nas escolas, a partir do movimento negro, da presença de
negros e negras no espaço acadêmico e em estruturas governa-
mentais desde a abertura democrática em meados dos anos 80.

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 33


O exemplo sintomático disto se expressa quando compara-
mos estas publicações e outras não oficiais, como o relatório A
África na escola brasileira do 1o Fórum estadual sobre ensino da
história das civilizações africanas na escola pública em junho de
1991, organizado por Elisa Larkin Nascimento. Neste, há uma
vasta descrição sobre livros didáticos, dicionários e materiais
pedagógicos que incitam explícita e implicitamente, o racismo
nas escolas, além de vários estereótipos sobre a África, e os afri-
canos e seus descendentes no Brasil, se caracterizando como
uma publicação meramente de denúncia.
Este relatório foi divulgado em algumas escolas do Rio de
Janeiro e São Paulo. Nas suas referências bibliográficas encon-
tram-se pouquíssimas obras referentes a questões pedagógicas
e de material didático sobre negros e educação.
Desde então, ocorreram diversas iniciativas de caráter pro-
positivo, como a LDB, os Parâmetros Curriculares Nacionais, no-
vas legislações e a culminância expressa na Lei no 10.639/2003.
Ainda neste aspecto, é importante ressaltar o livro Biblio-
grafia básica sobre relações raciais e educação, publicada pelo
Laboratório de Políticas da Cor da Uerj, que descreve minu-
ciosamente centenas de livros, artigos e materiais pedagógicos
publicados desde a década de 1980 no Brasil. Todo esse movi-
mento desemboca em um quarto aspecto positivo dessas pu-
blicações que ora analisamos: as iniciativas governamentais.
Eliane Cavaleiro e Ricardo Henriques explicitam nas intro-
duções e apresentações, que essas publicações são parte frutos
das discussões realizadas nos Fóruns Estaduais de Educação e
Diversidade Étnico-Racial e parte de elaborações dos principais
especialistas na área de educação e relações étnico-raciais.
No texto de Lucimar Rosa Dias, explicita-se que a “Lei no
10.639/2003 demorou cerca de quatro anos para ser aprovada e
que, coincidiu com a ascensão do então candidato Lula do PT à
Presidência da República”. Mas, o projeto de Lei foi apresentado
em 1999, pelos deputados federais Ester Grossi (educadora do
RS) e Bem-Hur Ferreira (oriundo do movimento Negro do MS).
Seguindo a trajetória de aprovação e regulamentação da Lei no
CNE, a responsabilidade da redação do parecer, ficou sob a res-
ponsabilidade da professora Dra Petronilha Beatriz Gonçalves

34 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


e Silva, da UFSCar e antiga militante do movimento negro em
São Paulo.
O que se percebe nitidamente é a presença de estudiosos,
militantes ou ex-militantes do movimento negro, cada vez mais
presente em estruturas de governo, que por sua vez, facilitou a
mobilização de propostas de políticas públicas de promoção da
igualdade racial na educação. A título de exemplo, dos autores
dos 23 artigos que compõem as duas obras, oito já participa-
ram ou participam dessas estruturas governamentais. Ou seja,
não há somente uma rede de articulações entre academia e mo-
vimentos negros, mas nas estruturas governamentais há uma
constante presença de negros também.
Não resta dúvida de que há uma trajetória, que se não é
linear, nos convida a perceber que antigos militantes do movi-
mento negro ascenderam aos espaços das universidades e daí
aos espaços governamentais. Isto ajuda a explicar também as
conquistas legislativas e formais sobre a inclusão das questões
raciais nos sistemas de ensino e as formas propositivas, e não
somente de denúncias, das várias formulações no atual mo-
mento.
Entretanto, mesmo caracterizando esses aspectos positi-
vos das publicações, não podemos nos omitir de uma crítica e
um alerta sobre certos limites teóricos e pedagógicos.
Se não há duvida da relevância dessas publicações, é pre-
ciso destacar que as questões propostas nos artigos ainda se
encontram muito distantes das tensões, dos conflitos e dos de-
safios das práticas de ensino e do cotidiano escolar. Essas são
bem evidentes e angustiadamente explicitadas por Lauro Cor-
nélio da Rocha: “Por que é tão difícil discutir práticas racistas no
interior da escola?”.
Esse questionamento talvez seja compreensível, que apa-
rece somente neste artigo, pelo fato deste estudioso ter enfren-
tado a dura realidade do espaço escolar como coordenador
pedagógico de uma rede municipal, ter participado de uma es-
trutura governamental – a Secretaria Municipal de Educação do
Município de São Paulo – e ser um estudioso formado por um
Programa de Pós-graduação da USP.

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 35


Ou seja, para quem conhece e vive as práticas conflituosas
do espaço escolar, as elaborações teóricas nem sempre obtêm
ecos nas práticas vivenciadas por educadores. Portanto, a pri-
meira vista, há uma lacuna a ser preenchida a partir dessas pu-
blicações: “Quais mecanismos se fazem necessários, de forma
efetiva, para que as elaborações e legislações de uma política
de promoção da igualdade racial na educação, que questiona
valores, visões de mundo etc., se traduzam no espaço escolar? E
mais: Essas publicações bastam para que educadores e docen-
tes tomem consciência das mazelas produzidas pelo racismo
na educação?”
Aqui aparecem outras preocupações: “Sabendo das contra-
dições dos sistemas de ensino e dos vícios pedagógicos dos es-
paços escolares, ou seja, resoluções educacionais impostas por
cima, pacotes pedagógicos sem contextualizações, tentativas
de construções de autoridades e vozes acadêmicas sem levar
em conta a pluralidade dos enfoques metodológicos e teóricos
e outros, não se corre o risco dessas publicações se tornarem,
somente elas, as oficiais?”9
Essas preocupações se evidenciam na medida em que se
tem conhecimento de outras produções, tanto em nível aca-
dêmico quanto nos espaços escolares. Mas, além disso, apesar
de alguns autores citarem a questão, a mudança nas práticas
pedagógicas, mais do que enfrentar uma educação tradicional,
se precisa levar em conta o racismo, os estereótipos e as visões
deturpadas e profundamente arraigadas sobre a população ne-
gra na sociedade brasileira.
Exemplos é que não faltam. Meyer (2002) cita uma história
de uma menina negra, de três anos, que passou a freqüentar a
pré-escola. Após algumas semanas de “aula”, começou a chorar
e a se recusar a ir para a instituição sem, no entanto, verbalizar
os motivos que pudessem justificar tal atitude. A mãe foi pro-
curar a professora, que também não conseguia explicar o fato,
e ambas procuraram conversar e observar mais detidamente a
criança para poder entender o que vinha acontecendo. Depois
de repetidas e variadas abordagens, a menina explicou à mãe

9. Ver bibliografia.

36 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


que não queria mais ir para a escola porque, ali, ela tinha desco-
berto que “não podia ser anjo”.
Outro caso relatado por uma professora do Rio de Janei-
ro, conta que ao solicitar dos seus alunos quem gostaria de in-
terpretar o personagem de Jesus na páscoa, um menino negro
imediatamente levantou o dedo com entusiasmo: “eu, profes-
sora!”. Imediatamente ocorreu aquele silêncio que diz tudo na
história dos homens. Em seguida, o mesmo aluno disse: “tudo
bem, pode ser outro”.
E o que não dizer dos deboches, dos xingamentos, do es-
cárnio, das piadas maldosas etc., contra as crianças e jovens
negros? E os docentes ainda acreditam que são somente brin-
cadeiras de mau gosto, nada relacionado ao racismo.
Existem diversos casos de racismo nas escolas brasileiras e,
mais casos ainda de omissões, angústias e incertezas no enfren-
tamento deste por parte dos professores. Recentemente, por
exemplo, em uma escola do interior do Estado do Rio de Janeiro,
depois de mais de 10 horas de curso de formação pedagógica,
voltado para a questão racial, tendo como referência as elabo-
rações das diretrizes curriculares nacionais do CNE, que foram
discutidas exaustivamente por professoras das séries iniciais,
o testemunho de duas professoras foram marcantes para co-
legas e responsáveis pelo curso. A primeira afirmou que depois
de dois encontros de formação, começou a observar sua tur-
ma e “descobriu” que seus 10 alunos da classe de alfabetização
eram negros. A segunda professora, depois de ter incorporado
o conceito de “negro”, como categoria social positiva e ter sido
esclarecida de que este termo foi ressignificado pelo movimen-
to negro, fundamentado por toda uma história de lutas sociais
e contra os estereótipos, perguntou aos palestrantes do curso:
“Uma coisa me angustia, como iremos chamar nossos alunos
de negros? E se os chamarmos assim e os seus responsáveis vi-
rem a escola cobrar isto de nós, como iremos responder?”
Poderíamos escrever mais 200 páginas de exemplos como
estes, entretanto, assim como todos nós sabemos, o racismo no
Brasil é sutil, delicado nesta sutileza e dissimulado, pois, “nin-
guém é racista”, “ninguém jamais discriminou o outro” que não
se encaixa no padrão branco europeu. E essa dissimulação é a

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 37


pior barreira no enfrentamento da questão pedagógica dentro
do espaço escolar.
Eliane Cavaleiro (2001), afirma que a opinião que a crian-
ça tem de si mesma está intimamente relacionada com sua ca-
pacidade para aprendizagem e com seu rendimento. Pode-se
inclusive dizer que a energia que ela utiliza para adquirir co-
nhecimento é a mesma para resolver seus conflitos. Neste sen-
tido, o que pensar de uma criança ou jovem que todos os dias,
é chamado de “macaco”, “asfalto”, “preto burro”, “preta feia”, “Só
podia ser preto!”, “Olha o beiço do negão!”, “Cabelo ruim” ou
“Nariz de crioulo?” E, para piorar (lembremos que estão em
uma fase de formação e criação de referências), não encontram
nenhum apoio entre professores, piorando ainda mais o seu
ambiente hostil.
Reconhecemos que estas publicações são de uma impor-
tância capital, entretanto, cabe uma reflexão maior nos aspec-
tos pedagógicos e de metodologias de combate ao racismo no
espaço escolar.
A meu ver, as publicações que vêm se afirmando oficial-
mente devem levar em consideração também algumas questões
essenciais para, daí, pensarmos em efetividade na implemen-
tação das diretrizes curriculares para a educação das relações
étnico-raciais:
Em primeiro lugar faz-se necessário, com estas publica-
ções, realizar uma reflexão sistemática em torno de três ques-
tões teórico-práticas abertas pelas novas diretrizes:
1) Considerando que os profissionais da educação e os do-
centes, ao longo de suas carreiras e formação inicial, já acu-
mularam saberes pedagógicos, saberes da prática e saberes
étnico-raciais e que, estes, em grande parte, são marcados
pela ausência de reflexões raciais (saberes pedagógicos e
práticos principalmente) e pelos estereótipos consubstan-
ciados pelo mito da democracia racial (os saberes étnico-
raciais), faz-se necessário um trabalho teórico in loco (nos
espaços escolares) de formação docente e desconstrução
política das teorias e conceitos que emperram o avanço da
construção das novas diretrizes curriculares.

38 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


Não são tarefas fáceis, mas são necessárias ações que mo-
bilizem conflitos teóricos e que desmobilizem as concepções
uniformizantes, generalistas, monoculturais, eurocêntricas e
racistas. O trabalho de formação docente in loco se justifica aqui
como prioritário, pois, estamos tratando de disputas de con-
cepções que, de um lado, se encontra uma visão amplamente
consolidada, mas não estável e, de outro, uma concepção que
pode revolucionar, inclusive epistemologicamente, os saberes
históricos, científicos e didáticos.
2) Considerando a disputa política que se abre, já que estamos
falando de relações assimétricas de poder na sociedade
brasileira, faz-se urgente a produção de pesquisas questio-
nadoras das experiências pessoais de docentes e educado-
res. Isto porque, nesta dimensão encontra-se outro fator de
dificuldades enfrentadas no espaço escolar para uma nova
política anti-racismo.
Os chamados saberes da experiência estão relacionados ao
senso comum dominante, ao desconhecimento de dados histó-
ricos, a pessoalidade das relações que procuram, com o famo-
so “jeitinho”, evitar conflitos cognitivos ou constrangimentos
de opinião. Neste aspecto se insere as falas de professores que,
constrangidos pela evidência do racismo, não sabem lidar com
pais ou não repreendem posturas racistas, seja lá de onde vie-
rem. Ou também, quando não enfrentam os acobertamentos
de colegas, quando estes solicitam “deixar de lado” um possível
conflito advindo de uma situação de preconceito e discrimina-
ção contra crianças e jovens negros.
3) Considerando as péssimas condições de trabalho docente,
ou seja, a falta de recursos, de tempo (tomados por uma
carga altíssima de trabalhos), e também, decorrente des-
sas condições objetivas, a não hábito da pesquisa e leitu-
ras permanentes, faz-se necessário um combate e reflexão
permanente, sempre nos espaços escolares, de superação
dessas condições objetivas e subjetivas da docência.
Aqui, se revela uma dimensão pedagógica pouco discutida
pelos especialistas da questão racial na educação, ou seja, as
condições subjetivas da docência, aparentemente não relacio-
nadas com a questão racial, que interferem na predisposição

A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 39


da grande maioria dos professores, de enfrentarem o racismo.
Ora, se não há incentivo à pesquisa por parte dos sistemas de
ensino, se há pouco investimento em material didático, se há
pouca valorização da leitura docente e, o que é o pior, se há
uma precariedade de condições de trabalho, como exigir desses
profissionais a pesquisa, a leitura ou a investigação com dedi-
cação exclusiva na formação ética, solidária e cognitiva de seus
alunos?
Por fim, somado as imposições administrativas, a perma-
nente cobrança de resultados nas avaliações e a precariedade
salarial, instala-se um cenário de dificuldades, de desmobiliza-
ção, de desanimo entre os profissionais da educação, que por
sua vez, essas próprias condições se justificam para manter
tudo do modo como está, já que, na lógica de um círculo vicio-
so, “não adianta mudar nada, pois nada muda em cima”.
Portanto, as questões raciais na educação geram desafios e
tensões na dimensão cognitiva, subjetiva e estrutural dos pro-
fissionais da educação e nos espaços escolares. Por outro lado,
não aprofundamos aqui as questões curriculares, pois nestas, se
trata de reconstruir e incluir conteúdos que, ou são totalmente
desconhecidos ou desconsiderados como “científicos” ou, além
disso, questionam e desconstroem saberes históricos alçados a
verdades inabaláveis. Exemplo disto foi muito bem argumenta-
do por Henrique Cunha Jr., quando mostra uma África que foi
responsável por grande parte do desenvolvimento tecnológico
da humanidade, desmentindo todos os saberes históricos de,
por exemplo, uma Europa irradiadora para o mundo de civili-
zação e cultura.
A questão curricular se desdobra, também aqui, em um
embate político anti-racista, pois o que está em jogo é uma
nova interpretação dos processos históricos, uma nova aborda-
gem da construção de saberes que, até o presente momento, foi
privilégio das elites dominantes e brancas.
As publicações que analisamos têm o mérito de abrir espa-
ços dentro dos sistemas de ensino e nas escolas, mas também
não podem se limitar às elaborações de especialistas que só ad-
quiriram “legitimidade”, quando se encontravam nos espaços
acadêmicos ou nos espaços governamentais.

40 A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA


Há também uma série de movimentos dentro dos espaços
escolares e das salas de aula, que devem dialogar com as publi-
cações oficiais e acadêmicas, pois, na dialética dessas relações
é que, para uma nova política pública, se construirá poderosos
laços e redes de combate ao racismo e aos estereótipos alçados
por longos anos a condição de ciência.

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A CONSTRUÇÃO DOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ... EDUCAÇÃO BRASILEIRA 45


PARA UMA PEDAGOGIA DA
(RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS
Alexandre do Nascimento

INTRODUÇÃO
Na sociedade e na educação, uma nova demanda se coloca a
partir dos artigos 26-A e 79-B da LDB (Lei no 9.394/1996, que es-
tabeleceu as Diretrizes e Bases da Educação Nacional), institu-
ídos pela Lei Federal no 10.639/2003,10 e do Parecer no 003/2004
e Resolução no 01/2004 ambos do Conselho Nacional de Edu-
cação (CNE). Como já sabemos, o artigo 26-A da LDB institui a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e a Resolução no 01/2004 do CNE institui as diretrizes gerais
deste ensino.
Trata-se, de um modo geral, da concretização de uma das
propostas e exigências mais importantes da luta histórica do
Movimento Social Negro,11 que se insere no campo da educação
e, pois, da produção de uma nova consciência social-histórica
e uma nova cultura. Esta demanda se coloca para o currículo
escolar e para a pedagogia, que necessariamente, devem passar
por uma reestruturação, sobretudo nas disciplinas de História,

10. O artigo 26-A da LDB sofreu alteração em 10/3/2008, pela Lei no 11.645/2008.
Esta nova lei alterou o texto do artigo em questão incorporando, além do ensi-
no de história e cultura afro-brasileira, a obrigatoriedade do ensino de história
e cultura indígena. O novo artigo, instituído pela Lei no 11.645, passou a ter a
seguinte redação: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de
ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e
cultura afro-brasileira e indígena.”
11. Para os organizadores do I Encontro Nacional de Entidades Negras, realiza-
do em 1991 na cidade de São Paulo, “o Movimento Negro se define como o con-
junto de entidades e grupos, de maioria negra, que têm o objetivo específico
de combater o racismo e/ou expressar valores culturais de matrizes africanas e
que não são vinculados a estruturas governamentais e partidárias” (D’ADESKY,
2001).

PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS 47


Literatura e Educação Artística, como diz a ei, e por uma revisão
de práticas tradicionais.
Estamos, dessa forma, diante um novo desafio, colocado
para os educadores pela exigência social de democratização
das relações sociais, que no Brasil passa indispensavelmente
pela superação do racismo, dos preconceitos e discriminações
contra os descendentes de africanos, sua história, valores e pro-
duções culturais. Como essa exigência social não diz respeito
somente ao combate às desigualdades raciais, mas também do
combate aos preconceitos ainda presentes nas relações sociais
em relação aos afrodescendentes, a educação, o currículo e a
pedagogia se tornaram parte dessa perspectiva democrática,
ou seja, pois o conceito de democracia propõe igualdade e não
uniformidade.
Neste sentido, além da igualdade de condições socioeco-
nômicas, a democracia proposta pela multiplicidade de movi-
mentos sociais requer que “todas as pessoas, como são, sejam
reconhecidas, visíveis e tenham as mesmas oportunidades de
participação na sociedade, na economia e na política, respei-
tando-se suas singularidades e as dimensões culturais e raciais
que as compõe”. Os movimentos sociais, principalmente aque-
les que lutam pelo reconhecimento dos direitos de cidadania,
dos direitos culturais e dos chamados direitos humanos para
os grupos sociais estigmatizados e discriminados por precon-
ceitos e racismos, ocupam uma posição-chave nesse projeto
de democracia, pois além de atores necessários ao processo
de produção/universalização de direitos são, em um sentido
amplo, movimentos que contribuem para a educação geral da
sociedade. No caso da luta anti-racista, tendo em vista uma
mudança cultural e simbólica não estereotipada e baseada no
reconhecimento positivo das heranças históricas e culturais de
origem africana, setores do movimento social chegaram a de-
senvolver propostas pedagógicas bem elaboradas e direciona-
das à educação escolar.
No movimento negro, por exemplo, podemos citar as
propostas de Pedagogia Interétnica12 e de Pedagogia Mul-

12. A proposta de Pedagogia Interétnica foi desenvolvida pelo professor Manoel


de Almeida Cruz, em Salvador-BA. Ver LIMA (2007).

48 PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


tirracial.13 Além dessas, muitas outras propostas foram e
continuam sendo criadas por militantes, educadores e pes-
quisadores negros e negras, tendo sempre como objetivo a
superação do racismo, dos preconceitos e das discrimina-
ções raciais. O movimento dos cursos pré-vestibulares para
negros, com destaque para o Curso Pré-Vestibular do Institu-
to Steve Biko, que possui a disciplina “Cultura e Consciência
Negra”, para o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC)
e o Instituto Educafro, que possuem a disciplina “Cultura e
Cidadania”, entre outros cursos pré-vestibulares que atuam
contra as discriminações e desigualdades raciais na educa-
ção, são outros exemplos de movimentos que possuem pro-
postas e práticas pedagógicas preocupadas com a superação
do racismo e com a produção de uma nova cultura de rela-
ções étnico-raciais.
O artigo 26-A da LDB tornou uma das principais reivin-
dicações do movimento negro um direito da sociedade e um
dever para a educação formal. Ou seja, os sistemas de ensino
devem incluir o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
africana e a educação das relações raciais em seu trabalho. E os
educadores e educadoras, como agentes principais desse pro-
cesso, devem rever suas práticas pedagógicas e incluir o debate
sobre relações raciais e o legado histórico-cultural de origem
africana no Brasil.
Como trabalhar esses conteúdos em sala de aula? Em que
consiste o que a lei denomina de “educação das relações étni-
co-raciais?” Como criar formas de dialogar com alunos e alunas
sobre racismo, preconceito, discriminação e intolerâncias em
relação a negros, homossexuais, mulheres, deficientes e outros
grupos sociais historicamente discriminados? Eis alguns dos
desafios que educadores e educadoras devem enfrentar. E nes-
se enfrentamento o ponto de partida é, conscientemente, fazer
a opção ética pela igualdade de tratamento e de reconhecimen-
to, pelo respeito às diferenças, pela multiplicidade e, pois, por
uma educação democrática e cidadã.

13. LOPES, Maria José. Pedagogia Multirracial em contraposição à ideologia do


branqueamento na Educação. In: NÚCLEOS DE ESTUDOS NEGROS (1997, p.
23-37).

PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS 49


Porém, considerando o movimento negro como o principal
produtor de práticas e conteúdos para a educação, o currículo e
a pedagogia, podemos partir concretamente da seguinte ques-
tão: O que os educadores podem apreender e aprender dessas
lutas e das práticas produzidas por elas?
A primeira coisa que podemos aprender com essa luta his-
tórica é que a educação escolar é parte de uma cultura racista,
preconceituosa e discriminatória que estabelece hierarquias e
desigualdades entre os diversos grupos sociais, seus valores e
aspectos culturais. Não são poucas as pesquisas e análises que
comprovam e concluem que a escola e as suas práticas educa-
cionais são, também, reprodutoras e produtoras de preconcei-
tos, discriminações, hierarquias e desigualdades raciais.
O segundo aprendizado é que as propostas de promoção de
igualdade racial e de reconhecimento histórico, social, cultural
e estético positivo, bem como a valorização da multiplicidade
étnica e cultural inserem-se em um processo democrático. E
também não são poucas as pesquisas e análises que mostram
que as imensas desigualdades socioeconômicas do Brasil e,
portanto, a falta de democracia material, tem no racismo um
dos principais determinantes.
A observância das relações entre educação, preconceitos
e discriminações raciais, bem como de propostas e experiên-
cias pedagógicas desenvolvidas no âmbito do movimento ne-
gro constituem um terceiro elemento de análise e aprendizado
que educadores podem tomar como referência para pensar-
mos e experimentarmos novos conteúdos e formas, anti-racis-
tas e multirraciais, no currículo escolar e no fazer pedagógico.
Como já dissemos, a perspectiva anti-racista, a valorização das
diferenças étnico-raciais e de reconhecimento das histórias e
produções socioculturais de africanos e afrodescendentes, são
fundamentais no Brasil para um processo social mais amplo de
constituição das condições objetivas e subjetivas de igualdade,
autonomia e, pois, de democracia. A educação (e, obviamente,
os educadores e educadoras) tem uma importante e indispen-
sável contribuição nessa perspectiva, a partir do momento em
no qual se inicie uma reestruturação curricular que incorpore
de forma consciente e positivamente, os princípios de “Cons-

50 PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


ciência Política e Histórica da Diversidade, de “Fortalecimento
de Identidades e de Direitos” e de “Ações Educativas de Comba-
te ao Racismo e as Discriminações”.14

PROPOSTAS PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)


EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Assim como tem sido até então reprodutora e produtora de
preconceitos, discriminações, depreciações e hierarquias étni-
co-raciais, a educação escolar pode passar a ser o oposto, ou
seja, uma atividade de reconhecimento e valorização da multi-
plicidade e das diferenças étnico-raciais, de produção de uma
consciência política e histórica da diversidade e de crítica ao
racismo e qualquer forma de discriminação e intolerância, e
já começa a sê-lo pelo menos nas suas diretrizes, nas políticas
educacionais do Ministério da Educação e algumas secretarias
estaduais e municipais e nas preocupações dos educadores,
que cada vez em maior número mobilizam esforços de pesqui-
sa, aquisição de conhecimentos e seleção de material para dar
conta da questão em sala de aula. Nesse sentido, alguns con-
ceitos ajudam na construção de perspectivas, projetos e ações
político-pedagógicas. Destaco o conceito “Diversidade” como
sendo a perspectiva que deve assumir uma proposta para a (re)
educação das relações étnico-raciais.
Primeiramente, podemos definir “Diversidade”, do ponto
de vista sociocultural, como o conjunto das diversas formas
de vida, estilos, valores, visões de mundo. A diversidade é uma
multiplicidade de sujeitos sociais singulares que possuem his-
tória e cultura.“Essa constatação indica que é necessário repen-
sar a nossa escola e os processos de formação docente, rom-
pendo com as práticas seletivas, fragmentadas, corporativistas,
sexistas e racistas ainda existentes” (SODRÉ apud MEC/SECAD,
2006, p. 218). Porém, “assumir a diversidade cultural significa
muito mais do que um elogio às diferenças. Representa não so-
mente fazer uma reflexão mais densa sobre as particularidades

14. Esses princípios constam das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu-
cação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana. In: MEC/Secad (2006).

PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS 51


dos grupos sociais, mas, também, implementar políticas pú-
blicas, alterar relações de poder, redefinir escolhas, tomar no-
vos rumos e questionar a nossa visão de democracia” (GOMES
apud MEC/SECAD, 2006, p. 218).
Na educação escolar, assumir a diversidade significa reco-
nhecer e valorizar as diferenças étnico-raciais e, para isso, de-
ve-se fazer escolhas curriculares e pedagógicas coerentes com
essa perspectiva, o que mais que explicitar diferenças é colocar
em discussão as relações de poder e criar condições de troca,
reciprocidade, reconhecimento e respeito ao outro. Portanto,
como perspectiva e como conceito, a diversidade pode servir
como base e objetivo geral de um projeto político-pedagógico
cujo princípio seja uma “aposta na multiplicidade”, o que quer
dizer que a pedagogia passa a ser não apenas uma ação de ex-
plicitação, mas fundamentalmente uma “ação de produção de
singularidades”. Porém, isso não se faz sem um permanente
diálogo sobre os preconceitos e discriminações, sobre as di-
mensões raciais da desigualdade social e as relações de poder
estabelecidas, sempre na perspectiva, na superação do racismo
e no etnocentrismo. Trata-se, então, de uma pedagogia militan-
te e constituinte, na medida em que pretende explicitamente
contribuir para a produção de uma nova cultura, de um novo
jeito de ser, de uma nova visão estética e de novas relações
socioculturais.
O primeiro elemento desse projeto é colocar no centro os
grupos sociais estigmatizados e discriminados (por raça/et-
nia, por gênero, por orientação sexual), propondo conteúdos
e atividades coerentes com essa opção, ou seja, um conjunto
de conteúdos, leituras e debates que explicitem e discutam as
relações de poder que se estabeleceram entre os grupos raciais,
as culturas, os gêneros etc., sempre no sentido de superação da
discriminação e da valorização da história, cultura, cidadania
e reconstrução da auto-estima dos integrantes desses grupos
sociais.
Isso conduz ao segundo elemento do projeto, que é traba-
lhar com as noções de identidade e diferenças, relacionando-as.
Essas noções são importantes às práticas que visam ajudar os
educandos a desenvolverem as dimensões histórico-culturais

52 PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


que os compõe, a compreenderem que as diferenças étnico-
raciais, culturais e religiosas não são desigualdades e, portanto,
não comprometem o ideal de igualdade de direitos, oportuni-
dades, tratamento e reconhecimento.
A multiplicidade é uma relação aberta das identidades sin-
gulares, das diferenças. É afirmando-se como multiplicidade,
ou seja, como singularidades que cooperam e que se mantém
como tais, que as novas lutas contra o racismo, cujas principais
expressões atuais são os movimentos culturais das favelas e pe-
riferias e os cursos pré-vestibulares para negros, produzem al-
ternativas de participação na sociedade, direitos, estilos, diver-
sidade e o desmoronamento definitivo da hibridação freyreana,
originária do chamado “mito da democracia racial” e da idéia
de mestiçagem como algo homogêneo.
Colocar no centro das preocupações pedagógicas os gru-
pos sociais estigmatizados e discriminados e considerar as no-
ções de identidade e diferenças em relação, são pontos básicos
de um novo projeto político-pedagógico e, dentro dele, pode-se
propor e produzir ações e práticas concretas, tais como:
 Uma postura crítica dos educadores, independente da
disciplina que leciona, em face de manifestações precon-
ceituosas e racistas entre estudantes, entre professores e
estudantes e no âmbito geral da escola. Isso é muito im-
portante, pois não é incomum na escola as atitudes de des-
prezo, depreciação e desrespeito em relação a estudantes
negros(as), muitas vezes em forma de “brincadeiras” em
relação à cor da pele e ao cabelo. Tal postura deve mobilizar
não apenas os professores, mas os diversos setores da esco-
la, como diretores, supervisores, orientadores e inspetores.
Os orientadores educacionais, em especial, devem buscar
entender o impacto das depreciações raciais na auto-esti-
ma e no desempenho escolar dos estudantes.
 Desenvolvimento de atividades culturais, artísticas e mu-
sicais, não apenas aquelas que resgatam a história, mas
que fundamentalmente incorporem elementos da cultura
de origem africana e produzam estilos e formas singulares
de estética, de linguagem, de expressão etc. O hip-hop, por
exemplo, é uma dessas produções.

PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS 53


 Mobilização das diversas disciplinas em projetos comuns.
Um projeto sobre África, por exemplo, pode mobilizar di-
versas áreas, como História, Literatura, Redação, Geografia,
Matemática (no trabalho com as estatísticas da desigual-
dade racial, por exemplo), Ciências (na discussão da biodi-
versidade, das produções científicas), Informática (na sis-
tematização de dados, produção de hipertextos etc.), Arte
e Educação Física (danças, expressões corporais, capoeira
etc.). Um projeto deste tipo pelo menos uma vez ao ano,
com apresentações na semana do dia 20 de novembro, por
exemplo, ajuda a mobilizar esforços em pesquisas e pro-
dução de materiais informativos. O trabalho pedagógico
por projetos é uma das dimensões mais importantes dessa
pedagogia da (re)educação das relações raciais com foco
no anti-racismo e na produção de multiplicidade e singu-
laridades étnico-raciais.
 Criação de gupos ou círculos de leitura de textos de litera-
tura brasileira e africana.
 Debates a partir de palestras de militantes do movimento
negro, pesquisadores e artistas que trabalham com a temá-
tica ou a partir de filmes, leituras de textos.
 Incorporação da temática pelas disciplinas nos conteúdos
programáticos. Além das disciplinas de História, Literatu-
ra e Educação Artística, que são os lugares principais em
que, segundo os artigos 26-A e 79-B, deve se desenvolver
de forma sistemática o ensino de História e Cultura Afri-
cana e Afro-Brasileira, conteúdos sobre a África, história e
produções dos afro-brasileiros e de uma (re)educação das
relações étnico-raciais podem ser trabalhados pelas outras
disciplinas: Língua Portuguesa, Redação, Geografia, So-
ciologia, Ciências, Matemática e Educação Física, levando
para seus currículos, por exemplo, discussões sobre a in-
fluência dos idiomas de origem africana em nosso univer-
so lingüístico, temas a serem explorados na produção de
textos, informações sobre características físicas, popula-
cionais e culturais do continente africano, textos e debates
sobre relações raciais e desigualdades, o debate sobre raça
do ponto de vista biológico e sociológico, tabelas e gráfi-

54 PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS


cos estatísticos, as danças, o samba, a capoeira, tudo isso
situado no tempo e no espaço. Até mesmo a disciplina de
Informática pode dar sua contribuição, utilizando dados,
imagens e pesquisas para o desenvolvimento de textos,
planilhas, banco de dados, hipertextos e softwares.
Outro elemento, não menos importante, é o da luta pela
constituição material de direitos. Neste ponto, a compreensão
do conceito de ação afirmativa e as políticas concretas que são
propostas a partir dele é muito importante. Inicialmente é pre-
ciso que os educadores debatam as políticas em discussão que
se apresentam na sociedade, como a proposta de cotas raciais
e outras, no contexto do debate teórico e político sobre ações
afirmativas, observando na realidade social concreta as desi-
gualdades e as barreiras raciais impostas aos afrodescendentes
e não com base no moralismo abstrato segundo o qual todos
devem ter os mesmos direitos e possibilidades.
A perspectiva do conceito de ação afirmativa se insere em
um projeto de democratização dos direitos, de distribuição de
renda, de reconhecimento e, portanto, de produção de condi-
ções objetivas e subjetivas de igualdade e autonomia. Cabe aos
educadores, além da compreensão teórica e política do con-
ceito de ação afirmativa, a explicitação de todas as dimensões
desse conceito e os motivos que levaram o movimento negro a
se tornar o protagonista intelectual e militante das ações afir-
mativas no Brasil. Mesmo porque os artigos 26-A e 79-B da LDB,
as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana e a pedagogia que estamos discutindo e
propondo, inclusive neste texto, são também ações afirmativas,
ou seja, inserem-s em uma perspectiva de afirmação de identi-
dade e direitos.
Por fim, e para início de um processo de criação de prá-
ticas pedagógicas anti-racistas e de valorização da diversidade
étnico-racial pelos educadores que ainda não se mobilizaram
para tal, podemos dizer que a proposta educacional que não
considera a multiplicidade e as diferenças é arbitrária, pois,
conscientemente ou não, acaba fazendo uma determinada

PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS 55


opção étnico-racial; a emancipação que não se alimenta da sua
própria história e cultura não produz autonomia.
Portanto, a pedagogia, na perspectiva aqui delineada, colo-
ca-se como uma ação militante que visa produzir uma mudan-
ça cultural e simbólica nas relações étnico-raciais e uma das
principais medidas de ação afirmativa de um processo de supe-
ração dos preconceitos e discriminações raciais, de construção
de respeito às diferenças raciais, culturais e religiosas e, pois, de
fortalecimento da democracia. O movimento negro vem mos-
trando, ao longo da sua história e com experiências concretas,
o que deve e como pode ser feito. A sociedade em geral está
mais aberta a esse debate, o Estado brasileiro já reconheceu a
necessidade de promoção da igualdade racial na educação, os
instrumentos legais existem e algumas ferramentas didático-
pedagógicas já estão à disposição e outras em produção. Resta
agora aos educadores e educadoras colocar a mão na massa.

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PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS 57


“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR,
ARRODEIA’!”
Amauri Mendes Pereira

INTRODUÇÃO
Quatro anos após a sanção da Lei no 10.639/2003 e quase três da
aprovação e ampla divulgação das Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação Étnico-Racial, ainda está desequilibra-
da, nos sistemas educacionais, a balança entre as medidas de
implementação e o “corpo mole”, ou indiferença, menosprezo,
ou ainda simples ignorância mesmo, que a empurra para o rol
das “leis que não pegaram!”.
Tenho pensado que é essencial se assenhorar da nova con-
dição de “agentes da lei” para o “cumpra-se!”. É necessário prio-
rizar a articulação e ações sistemáticas por dentro dos organis-
mos de estado e de governo, responsabilizando a hierarquia dos
sistemas educacionais; e no âmbito acadêmico pressionando a
“abertura” a novos olhares sobre o acontecer da sociedade bra-
sileira. Estes são liminares na produção de conhecimentos mais
e mais consistentemente universais – é hora de se valer do peso
institucional da lei e das legitimidades política e histórica.
Apesar dessa postura de princípio, esse texto pretende
dialogar com os educadores. E, especialmente, homenagear a
ação subterrânea daqueles que no esforço de dar visibilidade
à história e cultura afro-brasileira desde muito enfrentaram e
enfrentam hostilidades e estranhezas no ambiente educacio-
nal e, a cada iniciativa, conquistam a lei. Qualquer que seja a
intensidade e qualidade das mediações teóricas e da “alta po-
lítica”, sempre recai sobre educadores e os momentos mágicos
(ou não) das salas de aula a responsabilidade final – educadores
“seguram a Pemba!”.
E aí, há o risco, até por falta de formação, da reprodução
acrítica do que “já há”. Para alguns (já que existe a lei e ela pre-

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 59


cisa ser cumprida!) bastaria acrescentar conteúdos de História
da África; e buscar elementos da “Cultura Negra”, tidos como re-
presentativos do “negro”, e capazes de atender às exigências da
lei. Em oposição a essa visão que poderia ser considerada con-
servadora ocorre a denúncia sistemática do euroetnocentrismo
e do racismo em interpretações da História da África, e na ma-
nipulação de estereótipos e folclorização do negro brasileiro.
O objetivo desse texto é discutir entraves primordiais e
muito comuns entre educadores, mesmo alguns mais enga-
jados na implementação da lei – assumidamente “agentes da
lei”: desde a ingenuidade com que, muitas vezes, assimilamos
temáticas, conceitos, conteúdos, e suas fontes; às dificuldades
para lidarmos com algumas questões básicas, como o conceito
de História e Cultura Afro-Brasileira e a articulação de conteú-
dos capazes de dar conta da sua complexidade.
Simultaneamente aos esforços de “atalhar” (enfrentar e
tentar superar diretamente entraves políticos e de ampliação e
qualificação na produção de conhecimentos sobre o tema), que
melhor laboratório para aprofundar interrogações que a práxis
dos educadores, capazes de, nos ritmos próprios e singulares
de seu cotidiano, “arrodear” obstáculos aparentemente fortes e
insolúveis, e, agindo sempre, dar vida à lei?
É com gratidão e com a lembrança de muitos e entusiás-
ticos momentos de trocas (sempre, só há trocas!), em cursos e
outros eventos de formação de educadores para a implementa-
ção da lei, que vai esse trabalho.

HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA:


UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO
I
A primeira coisa é considerar que dos dois “lados” das “capaci-
tações” – sejam os “formadores” ou os “formandos” – estamos
sujeitos a “acidentes de percurso”: escolhas equivocadas de fon-
tes, interpretações e induções incompletas, fragmentadas, des-
contínuas. O que chamamos de História e Cultura Afro-Brasileira
é um conceito em construção. Muito ao contrário de “fechá-lo”,
dizendo que “é isso”, ele precisa ser “aberto”, ou seja, que se dei-

60 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


xe fluir as interrogações a respeito das trajetórias da população
negra, dos diversos aspectos que constituem suas vivências e
produções de sentidos sobre si própria e sobre a sociedade à sua
volta, das suas interações em cada tempo e lugar com os meios
sociais, com governos e outros poderes instituídos.
Há estudiosos que priorizam aspectos políticos dessas tra-
jetórias, outros as caracterizações e sentidos das manifestações
culturais e religiosas, outros ainda questões de identidade, ou
buscas de soluções pragmáticas para o enfrentamento do pre-
conceito e da discriminação racial. Quem pode se arrogar, neste
momento, a condição de dizer que “isso” ou “aquilo” é mais ou
menos representativo, mais ou menos verdadeiro, mais ou me-
nos eficaz? Do “outro lado”, entre educadores que demandam,
ávidos, os momentos de formação, também há expectativas e
interesses diferenciados. Certamente, que tanto do lado dos
“formadores”, quanto dos “formandos”, suas vivências jogam
um peso na hora de interagirem com os temas abordados, e no
interesse, facilidade, gosto, ou o contrário, rejeições, desconfor-
tos, desinteresses, como “rolam” os encontros e debates.
Nos fechando nessa ou naquela prioridade, até que ponto
em relação uns aos outros, procedemos de forma exclusivista,
excludente, discriminatória, como costumam proceder em re-
lação ao nosso conjunto os detentores dos “saberes-consolida-
dos”, a ampla e densa teia de conhecimentos euroetnocêntricos
que menosprezam ou que jamais valorizaram as temáticas e
abordagens que são propugnadas pela Lei no 10.639/2003? Não
será mais criativo e eficaz agasalhar cada uma das enunciações
e manifestações de interesses e tomá-las como diferentes di-
mensões de uma inefável totalidade muito mais ampla e rica
da História e Cultura Afro-Brasileira, por sinal em perene ex-
pansão?
Não há nada de novo em reconhecer (e já são muitos a prati-
carem essa visão) a dimensão política em momentos e aspectos
das manifestações culturais e religiosas de matrizes africanas;
assim como observar que certas questões de identidade tanto
podem ser tratadas dentro como fora dessas visões; ou que há
caminhos de enfrentamento do preconceito e da discriminação
que não passam pela “política racial”: as concepções e formas

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 61


de ação políticas mais comuns no Movimento Negro organiza-
do em grupos e entidades. Tanto se pode dizer que “tudo é cul-
tura”, como não estará errado afirmar que “tudo é política”.
Abrir e lutar para que permaneça aberto o conceito de
História e Cultura Afro-Brasileira, me parece que só traz vanta-
gens. Além de agregar forças, em um momento em que a lei e
os impulsos para efetivá-la não são nem pacíficos, nem disse-
minados, conecta os “agentes da lei” à vitalidade do pensamen-
to transformador, de si mesmo e de tudo que nos cerca. Nesse
sentido trabalhar pela implementação da Lei no 10.639/2003 é
muito mais que trabalhar “pelo negro”, ou pela “Cultura Negra”,
ou outros termos e visões que direcionam para o gueto, para o
“espaço reservado” da diferença, da etnização e folclorização a
vasta produção de conhecimentos que se abriga sob o guarda-
chuva conceitual da História e Cultura Afro-Brasileira. Tenho
proposto a noção de uma Cultura de Consciência Negra à ca-
pacidade de ir além de qualquer “encaixamento” das “coisas”
– das vidas e vivências, das descobertas e inaugurações, das do-
res e alegrias, das forças e fraquezas, dos erros e acertos – que
enfeixam as trajetórias de mais da metade da população, e que
constituem experiências de interações que vêm moldando a
formação da sociedade brasileira em todo o território nacional
desde o início – é muita coisa! Lenine, o nosso, já disse: “É mais
além...!”

II
Construir não é, contudo, aproveitar qualquer coisa, pensar e
agir em qualquer direção, embora isso também ocorra e “faça
parte!”. Se não há fórmulas de antemão preparadas, certas, de-
finitivas, há acúmulos que não devem ser menosprezados. Por
outro lado, se é correta a visão de que os avanços científicos
ou de outras formas de melhor compreensão do mundo, da na-
tureza, das relações sociais e da história, muitas vezes se dão
através de “saltos”, quebrando paradigmas e inaugurando no-
vas metodologias e teorizações, novos sentidos e perspectivas,
porque não aproveitarmos tão valiosas lições, no interesse de

62 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


implementação da Lei da História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana?
Apresento então uma contribuição no sentido de aprimo-
rar conceituações, articulação de conteúdos, de composições
de programas para formação de educadores, que venham a
desaguar, finalmente, em novas descobertas e ressignificações
na construção de sentidos de democracia e justiça isentos de
racialismos e “lugares raciais” em salas de aula.

O PROTAGONISMO E A LEGITIMIDADE
DA CONQUISTA
Toda lei tem uma história, que resguarda sua coerência e legiti-
midade política. Pode-se implementar a Lei no 10.639/2003 sem
se interrogar sobre sua história? Como deixar de lado essa ques-
tão nodal: porque foi preciso alterar a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDBEN), ou seja, a própria Constituição
Brasileira, para introduzir na educação básica a História e Cul-
tura Afro-Brasileira e Africana? Por que só agora?
De meu ponto de vista, a própria história da conquista da
lei é capaz de dirimir essas dúvidas. Ela se confunde com as de-
mandas do Movimento Negro Brasileiro, particularmente no
que toca aos “lugares raciais” na educação e às demandas por
conteúdos e práticas educativas anti-racistas. Desde muito:

Tudo se agita, os espíritos cultos lançam novas idéias


com o fim de melhorar a situação mundial. O mun-
do está inflamado; alguma porção do globo não su-
porta a situação aflita da época. (...) Só nós negras,
caras patrícias, extasiamos diante do acontecimen-
to mundial. Quando as lutas se sucedem com o fim
de melhorar a vida deste ou daquele povo, é sinal
de que os espíritos tomam noção dos seus deveres
e suas boas idéias são aceitas. (...) E nós, patrícias,
precisamos nos mover, sacudir a indolência que ain-
da nos domina e nos faz tardias. O cativeiro moral
para nós negros ainda perdura. Muito a propósito
do triste conceito que fazem sobre nós, olhemos o
que nos preparam. Notemos a fundação desta Es-

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 63


cola Luiz Gama com o fim de preparar meninas de
cor para serviços domésticos. (...) Por esta iniciativa
se vê que para os brancos não possuímos outra ca-
pacidade, outra utilidade ou outro direito a não ser
eternamente o de escravo. (...) Mas isto não sucede-
rá, só se não houver negros que sintam bem de perto
a necessidade de nos movimentar para nossa reabi-
litação na vida social. A vida de um povo depende da
sua juventude. Pois bem, nós além de jovens somos
mulheres... Mas onde podemos trabalhar, comungar
as mesmas idéias? Em toda parte... instruindo-nos,
procurando conhecer...15

Assim como, o exemplo de lucidez dessa militante negra


nos anos 30, nos anos 40 se construía uma visão crítica dos con-
teúdos educacionais e se enveredava por uma senda pioneira:

A UNE já não poderia ceder seus espaços, pois o


Teatro Experimental do Negro (TEN), anos 40 e 50
começou a crescer: de repente havia lá umas 300
pessoas – aulas de alfabetização, conferências – um
movimento incrível... vinha gente aprender a ler. O
curso de alfabetização fazia parte do projeto do TEN.
Acho que foi o primeiro Mobral do Brasil.16

O Teatro Experimental do Negro tinha por base o tea-


tro como um veículo poderoso de educação popular.
Tinha sua sede na União Nacional dos Estudantes,
onde aportavam dos subúrbios e de vários pontos
da cidade operários, domésticas, negros e brancos
de várias procedências humildes. Ali, a pedido de
Abdias do Nascimento, ministrei por anos a fio, um
extenso curso de alfabetização em que, além dos ru-
dimentos de Português, História, Aritmética e Edu-
cação Moral e Cívica, ensinei noções de História e
evolução do Teatro Universal. Tudo entremeado com

15. NICE. Apelo às mulheres negras. O Clarim (um órgão da Imprensa Negra de
SP), abril de 1935.
16. SOUSA, R. de. Pioneirismo e Luta. Dionysos, Minc/Fundacen, (número es-
pecial), 1988.

64 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


lições sobre o folclore afro-brasileiro e as façanhas e
lendas dos maiores vultos de nossa raça.17

As demandas são antigas, tanto pela universalização da


educação, quanto para que os currículos adotassem conteúdos
do que hoje designamos História e Cultura Afro-Brasileira. Mas
é a partir da década de 1970, com o amadurecimento do Movi-
mento Negro, simultaneamente às discussões sobre os novos
caminhos a serem trilhados pela educação brasileira, que vão
ganhando força e consistência as proposições de alterações
curriculares e outras, capazes de questionar a racialização de
conteúdos e procedimentos pedagógicos.
Pesquisadores negros e não negros com perspectiva mi-
litante formulam a hipótese e passam a investigar as relações
entre evasão e repetência, e o racismo no cotidiano escolar.
É extensa a bibliografia: desde a Dissertação de Mestrado em
Educação de Luiz Alberto Oliveira Gonçalves, O silêncio: um
ritual pedagógico a favor da discriminação racial, na UFMG,
em 1985; à pesquisa de Vera Moreira Figueira sobre “O precon-
ceito racial na escola”,18 à criação do Núcleo de Estudos Negros
(NEN), uma organização negra de Florianópolis-SC, voltada
para questão educacional, e suas publicações sobre Negros e
currículos; Negros e o cotidiano escolar etc., compondo a série
Pensamento Negro em Educação. Segundo Jeruse Romão, uma
de suas organizadoras:

A prática militante do movimento por educação, seja


ela “popular ou não formal”, “pública e popular”, in-
dica que, ora negada ora supostamente aceita, a con-
tribuição dos negros à construção do processo de-
mocrático brasileiro é efetivamente um patrimônio
não só deles, mas de todos os que teimam em querer
transformar nossa sociedade em espaço igualitário
(ROMÃO, 1999, p. 57).

Desde os anos 70 até os anos 90, em incontáveis Encontros


Estaduais, em nove Encontros de Negros do Norte-Nordeste,

17. RODRIGUES, I. Diário de um negro atuante. Revista THOTH, n. 5, 1998.


18. Publicada com esse título em Estudos Afro-Asiáticos, n. 18, maio 1990.

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 65


três Encontros de Negros do Sul-Sudeste, um Encontros de Ne-
gros do Centro-Oeste, dois Encontros Nacionais de Entidades
Negras (ENENs), em inúmeros seminários regionais; as reso-
luções voltadas para a educação, demandando o que adiante
viria ser a Lei no 10.639/2003 eram ponto pacífico enfeixando os
mais amplos consensos.
 “Que seja mais enfocada a cultura negra no ensino público
e particular.”
 “Que as Entidades Negras reivindiquem aos governos, a
adoção da história do negro no currículo escolar.”
 “Editar livros de História do Brasil que abordem com vera-
cidade o papel desempenhado pelas três raças que forma-
ram o povo brasileiro.”
Conclusões do I Encontro Estadual do Negro do Espírito
Santo – Colégio Estadual Vitória – Forte São João 19 e 20 de se-
tembro de 1987.
Optei por não eufemizar o agente primordial da conquista
da lei, embora tenha clareza de que ele jamais esteve “sozinho
em campo”. Digo isso, porque algumas vezes são perceptíveis
certos desconfortos perante a afirmação do Movimento Negro
como “este” sujeito. Cedi ao impulso, porque tenho observado
que adianta pouco: contemporizar não tem sido uma boa tática
nos embates com as renitentes defesas (mais ou menos vela-
das) do mito da democracia racial, cada vez mais questionado-
ras da lei e da necessidade de sua implementação. Na temática
que estamos tratando vão se sucedendo as coisas difíceis de re-
mexer, nas entranhas de sentimentos e idéias arraigadas. Como
esse próximo tópico.

SUJEITOS OU OBJETOS DA HISTÓRIA?


Talvez mais do que a experiência cotidiana do preconceito e da
discriminação racial – que podem ser enfrentados diretamente
quando identificados, o que é cada vez mais comum – a natura-
lização da noção de vítima, de objeto da história, que transpa-
rece nas visões sobre “o negro”, se constitua na principal fonte
da reprodução do racismo, hipertrofiando a auto-estima dos
que se consideram e são considerados brancos e rebaixando a

66 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


dos que se consideram ou sejam considerados negros. Nesse
sentido é essencial enfrentar a discussão: Como se instalaram
essas visões? O que há de veracidade nelas? É possível superá-
las? Como?
É verdade que a vitimização funciona muitas vezes como
uma tática supostamente conveniente sensibilizando opresso-
res e atenuando sofrimentos dos oprimidos em certas circuns-
tâncias. A única garantia, no entanto, que pode trazer essa tática
é o vício nas relações entre vítimas e algozes. Estudar a Histó-
ria da África e as trajetórias da população negra no Brasil serve
como antídoto a esse tipo de comportamento patológico ainda
comum nas relações “raciais” no Brasil. Tem sido uma forma
eficaz de desvendar os absurdos de estereótipos e estígmas, se-
jam atribuídos pelo racismo, ou introjetados em sentimentos
de muitos negros que se assumem como vítimas.
Certamente que houve vítimas, aí entendido como os que
perderam seus referenciais, mergulharam na amargura, no ban-
zo, em comportamentos mórbidos, na covardia, na traição...
Mas se resume a isso, ou mesmo pode-se dizer que tenha sido
essa a tônica da trajetória da população negra, na formação da
nação e da sociedade brasileira? Pobre dessa nação se tivesse
sido assim! Investir a população negra na condição de sujeito
histórico corresponde a uma mudança conceitual e teórica que
impõe severas revisões nas interpretações mais influentes da
História do Brasil. Quem pratica esse novo olhar incorpora o
impulso galvanizador de quem se reconhece historicamente
“na luta” e conquista a enunciação (a capacidade de falar por
sua própria voz) política e histórica, desnudando o imaginário
pernicioso da falência moral e espiritual, da derrota desde sem-
pre e para sempre, que penetrou a alma de “negros” e “brancos”
e ainda acomoda (e aliena) muitos em lugares “raciais”. Mas o
exercício desse novo olhar implica também em assumir o ônus
– à parte, intrínseca à condição de sujeito histórico, que nos
cabe nas responsabilidades sobre tudo que aconteceu e acon-
tece, por fraqueza e medo, por ingenuidade, por erro...
Um alerta: ser sujeito histórico não quer dizer que se é
senhor das possibilidades de sua vida, individual e/ou coleti-
vamente: quer dizer que se “está na luta!” Perde-se, ganha-se,

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 67


às vezes mais isso, às vezes mais aquilo... Tudo pode se tornar
acúmulo, propiciando maturidade e ampliação de horizontes,
o aproveitamento de oportunidades, de constituição de alian-
ças, de conquistas de espaços. Não se pode perder de vista as
responsabilidades dos que “perdem” e se escoram na demoni-
zação do outro, nem as dos que “ganham” e se esmeram na ex-
ploração e opressão.
Crucial a esse respeito, chagas abertas no imaginário social
de muitas nações das Américas são as terríveis imagens do trá-
fico e da escravidão. Pois bem, ferem o bom senso e são com-
pletamente descabidas as visões de que o europeu invadiu os
territórios negros, caçando-os, aprisionando-os e trazendo-os
para cá. Só se fossem super-homens e não houvesse vida inte-
ligente, estruturas (e hierarquias) sociais, políticas, econômicas
no continente africano – exatamente o que impregna o senso
comum a respeito desses eventos.19 Não sendo possível nesse
texto aprofundar essa discussão, vale referir brevemente que
o tráfico Atlântico representou um colossal empreendimento
euro-afro-americano, em que as partes, como sujeitos, agiam
em função de seus interesses. Um dos empecilhos a essa con-
cepção, além do impacto emocional que provoca, são as idéias
de ingenuidade “africana”, ou que “os africanos” traíram uns
aos outros, ou não tiveram a capacidade de se unir contra “os
brancos”, contra o invasor. Tal visão (que demoniza uns e vi-
timiza outros) peca pelo simplismo decorrente da ignorância
e do preconceito: aqueles agentes que começaram e desenvol-
veram o negócio do tráfico Atlântico não se viam assim, e isso
se comprova em diversos documentos de época. Não havia “o
europeu” ou “o africano”: este é uma “criação” do colonialismo
e do racismo (a partir dos meados do século XIX), que passou
a vê-los, todos, como “negros”, inferiores. O que havia – seme-
lhante à Europa até aqueles tempos – eram povos e sociedades,
às vezes com características culturais e de estruturas sociais e

19. Nunca é demais referir os estereótipos mais comuns e profundamente en-


tranhados no imaginário dos povos hegemonizados por idéias germinadas no
Ocidente europeu, que falam de um “africano” próximo da animalidade, en-
volto em primitivismos, crendices, ignorância, como os “amigos” do Tarzan e
do Fantasma; e, mais recentemente, tomados pela fome e a miséria, além da
violência endêmica e da maldição da Aids.

68 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


econômicas, e até físicas, muito distintas, com histórias de inte-
rações comerciais e políticas ora mais, ora menos conflituosas.
E que lançavam mão de alianças e oportunidades – no caso, re-
lações com comerciantes estrangeiros que trouxessem propos-
tas vantajosas – para colimar seus objetivos e interesses. A visão
de que o tráfico ocorria aleatoriamente e à revelia dos dirigen-
tes de povos nativos é inteiramente refutada por, por exemplo,
John Fage, em sua História da África:

[Essas sociedades] sabiam organizar os seus negó-


cios de modo a minimizar os prejuízos provenientes
do tráfico escravo... Em geral é possível inferir que as
comunidades da África ocidental vendiam escravos
para exportação segundo suas possibilidades de o
fazer sem causar sérios prejuízos às suas populações
e economias e às suas perspectivas de crescimento
(FAGE, 1995, p. 280 e 285).20

Em relação ao negro no Brasil, ao longo do século XX eram


muito fortes alguns estereótipos vindos desde a escravidão: a
idéia do escravo-coisa (desprovido de subjetividade, incapaci-
tado mental e espiritualmente pelas dores da escravidão); ou
da indolência e ausência de iniciativas, de disciplina, enfim, de
condições de assumir plenamente igualdade e responsabilida-
de individual e social; ou ainda sobre sua “natureza” amoral, au-
sência de princípios, tendências à morbidez, violência, crimi-

20. Além de Fage, que me parece exagerar em certas apreciações da racionalida-


de de dirigentes africanos frente ao novo negócio, quem se interessar em apro-
fundar essa discussão, pode enveredar por estudos como os de, por exemplo,
Paul Lovejoy, A escravidão na África: uma história de suas transformações. Civi-
lização Brasileira. 2002, ou aos esclarecedores artigos de Kabengele Munanga
Antropologia Africana. Estudos Afro-Asiáticos, n. 1. jan./abr. 1978, e de João José
Reis, Notas sobre a escravidão na África pré-colonial. Estudos Afro-Asiáticos, n.
14, 1987. Fundamentais os textos de Mbaye Gueye O tráfico negreiro no interior
do continente africano, mostrando a dimensão e as agruras do apresamento
e transporte dos cativos até o litoral, e o de Joseph Inikori, O tráfico negreiro
e as economias atlânticas – de 1451 a 1870, reunidos no livro: Documentos de
trabalho e relatório da reunião de peritos. UNESCO – Port au Prince, Haiti, 31.01
a 04.02.1978. Unesco. Edições 70. Lisboa, 1981. Inikori, especialmente, procu-
ra mostrar como, ao mesmo tempo, o volume extraordinário de recursos en-
volvidos no tráfico Atlântico, potencializou o que havia de pior em práticas de
dirigentes de povos do continente africano, e está na origem da acumulação
de capitais que gerou as novas condições econômicas que viriam consolidar a
hegemonia mundial de povos do Ocidente europeu.

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 69


nalidade etc.21 De pouco adiantavam os exemplos sem conta de
negros bem-sucedidos nos mais diversos meios profissionais,
nas artes etc. É recente e ainda objeto de controvérsias, a noção
de que houve sempre resistência e lutas contra a escravidão, e
de que houve inimagináveis formas de protagonismo negro du-
rante o regime escravista. Nesse caso, também, é preciso lidar
com a compreensão de que nem sempre a condição de sujeito
se presta a visões enobrecedoras, ao olhar atual, de negros du-
rante a escravidão.22
Penso que é oportuno, a esse respeito, reproduzir essa sen-
tença, atribuída a Martin Luther King:

Os negros são humanos, não super-humanos. Como


qualquer povo, possuem personalidades diversas,
interesses financeiros e aspirações distintas. Há ne-
gros que jamais lutarão pela liberdade, há outros
que procurarão obter vantagens pessoais e há outros
que colaborarão com os opressores. Tais fatos, não
devem ser motivo de desespero. Todo grupo e todo
povo possui sua parcela de covardes, oportunistas e
traidores. Os golpes de martelo do racismo e da po-

21. Um bom exemplo da “coisificação” do escravo se encontra no livro de Fer-


nando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o ne-
gro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Paz e Terra, 1977: para esse autor, os escravos seriam “testemunhos mudos de
uma história para a qual não existem, senão como instrumento passivo... nesse
sentido a consciência do escravo apenas registrava e espelhava, passivamente,
os significados sociais que lhe eram impostos” (CARDOSO, 1977, p. 126-125).
22. A respeito há, hoje, estudos históricos recuperando diferentes aspectos do
protagonismo negro durante a escravidão. Há os clássicos de Clóvis Moura, Re-
beliões na senzala, e de Décio Freitas, Palmares a guerra dos escravos, que abor-
dam os casos extremos de formação de quilombos, revoltas e guerrilhas, que
punham em sobressalto as sociedades de suas épocas. Trazendo outra perspec-
tiva, um bom exemplo é o livro de João José Reis e Eduardo Silva, Negociação
e conflito. Os autores procuram mostrar a tensão permanente entre escravos e
senhores; e a condição de sujeito e a intencionalidade de negros, buscando a
liberdade ou vantagens e melhorias de condição de vida, dentro do contexto de
relações escravistas em variadas condições sociais: escravos, alforriados, nas-
cidos livres e até mesmo referindo a conflitos entre negros proprietários e seus
escravos. Outro exemplo é Visões de liberdade, de Sidney Chaloub, mostrando
como variam os sentidos de liberdade e da condição de sujeito, conforme cir-
cunstâncias, oportunidades, interesses. Eram singulares e inesgotáveis as es-
tratégias de liberdade, de superação das condições de inferioridade, adequadas
naqueles contextos, embora, em certos casos, reprováveis aoolhar contempo-
râneo.

70 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


breza fatalmente têm de perverter e corromper al-
guns. Não se pode esperar que o fato de um povo ser
oprimido, leve todos os seus cidadãos a serem virtu-
osos e dignos. O importante é que as características
da maioria sejam a honra, a decência e a coragem
(PEREIRA, 1995).
Há quem se surpreenda com a informação de que havia,
durante a escravidão, negros proprietários de escravos. E há
mesmo os que usam essa argumentação para contrapor as de-
mandas atuais de promoção da igualdade racial. É preciso lem-
brar, no entanto, que, qualquer que fosse o status do homem
negro ou da mulher negra durante a escravidão – mesmo alfor-
riado ou nascido livre – pendia sempre sobre sua cabeça a pos-
sibilidade da sua racialização e “enquadramento”. Da mesma
forma que é um erro desconhecer as diferenças “de classe” en-
tre negros e a veracidade da exploração de escravos por negros,
é errado, também, referi-las como se fossem tão comuns, além
de menosprezar legislações e esquemas “subinstitucionais”
restritivos, dirigidos contra descendentes de africanos.
É por demais delicada essa discussão sobre a condição
(para o “bem” e para o “mal”), de sujeitos históricos, nesse mo-
mento em que, para muitos, as vantagens e prejuízos “raciais”
e sociais – inclusive os simbólicos, como o silêncio de que fala-
remos adiante – são tão vivos e vivificam os mecanismos de sua
reprodução. Mas é uma responsabilidade. Enquanto esse mag-
ma de emocionalidade não for diluído através da superação das
dores e desigualdades, funciona como grilhões aprisionando o
presente ao passado.

O SILÊNCIO HISTORIOGRÁFICO
A solidariedade e mesmo o respeito de Florestan Fernandes
e de Roger Bastide aos militantes e à “causa negra” renderam
um trabalho extraordinário de recuperação histórica. Isso não
impediu, no entanto, que suas interpretações pecassem pela
visão de que havia um “problema do negro” e não uma ques-
tão racial. Segundo Florestan Fernandes era o “déficit negro”, a
incapacidade dos negros (deformados psicologicamente pela
opressão escravista), se adaptarem às exigências de uma so-

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 71


ciedade em transformação, que dificultava sua integração à
sociedade de classes nas primeiras décadas do século XX, em
São Paulo. Além de responsabilizar principalmente “o negro”
por seus insucessos, sua análise também pecou ao conceber o
preconceito e a discriminação racial como resquícios do pas-
sado escravista, que tendiam, portanto, a ser superados em
decorrência do desenvolvimento e de novas relações econô-
micas, políticas e sociais.
Mas seu legado como estudioso perdurou porque, além de
largamente expor e discutir o pensamento político daqueles mi-
litantes (tomando-os, portanto, como sujeitos); e de reproduzir
em seu livro incontável número de exemplares de suas publi-
cações e de outros materiais visuais, ele foi capaz de perceber a
dimensão histórica daquelas lutas que estava estudando.

Arrogando-se a solução de problemas ignorados ou


descurados pelas elites do poder, o negro e o mulato
chamaram a si duas tarefas históricas: de desencade-
ar no Brasil a modernização do sistema de relações
raciais; e, de provar, praticamente, que os homens
precisam identificar-se de forma íntegra e conscien-
te, com os valores que encarnam a ordem legal es-
colhida... [Aquelas lutas] constituem uma impressio-
nante façanha histórica, na luta pela modernização
da sociedade brasileira no presente (FERNANDES,
1964, p. 307).

Oxalá surjam mais e mais exemplos de valorização desse


tipo de fonte e de material empírico entre pesquisadores no
Brasil. Flávio Gomes (2005) fala na “produção de um silêncio
nas narrativas (mais historiográficas do que necessariamente
históricas) sobre raça e classe nos anos imediatamente pós-
abolição” (GOMES, 2005, p. 27). E toca na questão central da
invisibilização da História e Cultura Afro-Brasileira como parte
da História do Brasil. Bem-vindas sejam as pesquisas regionais
e locais que vêm reconstituindo trajetórias de vidas de homens
e mulheres negras, que passam longe dos estereótipos do ser-
vilismo, da ignorância, boçalidade, indolência, violência, ou da
“sublime” folclorização etc.

72 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


Educadores na base dos sistemas educacionais deparam
com oportunidades sem conta. Quantas histórias invisíveis no
entorno e no interior de comunidades escolares! Não haverá as
que possam ser vistas da ótica da História e Cultura Afro-Bra-
sileira, nas características, prazeres e desprazeres que provoca,
pelos agentes que envolve, nas representações que constitui-
rão as lembranças, as conseqüências etc.? Não precisam (talvez
nem mesmo devam) ser “histórias de negros”. Não haverá par-
ticipação de negros? Não se encontra algum aspecto da questão
racial, ou referenciais afro-brasileiros, no início, no meio ou no
fim? São muitas vezes surpreendentes as possibilidades inter-
pretativas. Não se trata de forçar “fatos” ou versões para encaixar
o que se quer. Falsidades e arbitrariedades conceituais e teóri-
cas são danosas sempre, em qualquer coisa, e é o que menos se
precisa quando há tanto a desvendar. Memórias, sentidos, não
param de surgir “na frente” de quem se decide a ouvir e valori-
zar, as vozes populares, “As almas da gente negra”23... Será tão
difícil identificar aqui e ali, elos com as temáticas que estamos
tratando, e cuja abordagem ilumine sentimentos e motivações
insondáveis, e possa contribuir para melhores compreensões
daqueles processos, de sua importância nas vidas das pessoas,
de como partilham a construção mais ampla da sociedade?
Temos aí, sem dúvida, um espaço por excelência para a
contribuição de educadores na desracialização das práxis edu-
cativas. As micro-histórias que deságuam nas escolas e que as
constituem e produzem outras, quase sempre permanecem in-
visíveis. E elas só podem ser captadas “naquele” momento, por
quem tenha “aquela” percepção, o que só ocorre a quem está
atento e, pela vivência do ambiente, das relações, dos “cheiros,
sons e gostos”, esteja disponível – a pessoa certa, no lugar certo.
Antenas da História e Cultura Afro-Brasileira no cotidiano das
comunidades escolares.

23. Este é o título de um livro de W. E. B. Du Bois 1868-1963, uma vida dedica-


da ao pan-africanismo e um ícone do pensamento e ação libertários entre os
negros norte-americanos. Ocorre-me à lembrança, porque vejo o exemplo de
equilíbrio entre o tom pungente, apaixonado em que vaza histórias que viven-
ciava no seio de seu povo, e o rigor que empresta às suas análises, como úteis
(além de inspiradores) para qualquer exercício intelectual.

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 73


O RACIALISMO, A GÊNESE DO RACISMO
Antes de ser pensada em termos de cultura,
ou em termos econômicos,
a nação foi pensada em termos de raça.
(CORRÊA, 1998, p. 53).

Certamente que a História da África tem, por sua presença ful-


cral na História do Mundo, e sob qualquer ponto de vista, uma
importância fundamental em si mesma. Então é um desatino
tomá-la como “escora” para dizer o que precisa ser dito no hoje,
contra ou (mesmo que veladamente) a favor do racismo. Da
mesma forma os referenciais históricos, simbólicos e estéticos
de matrizes africanas, pujantes aportes às formações sociais
aonde chegaram, vêm servindo de desculpa aos seus proséli-
tos e aos seus inimigos, em diferentes contextos sociais e políti-
cos. Nem uma coisa, nem outra deve ser usada como digressão,
como válvula de escape politicamente correta, alternativa, ao
enfrentamento da questão racial.
Como falar da História e Cultura Afro-Brasileira, sem con-
textualizar as vidas “brancas”, “negras”, “mestiças”, que a pro-
duziram? Claro que se pode. Deixará, então, de ser História
do Brasil. Será “História dos negros”, um outro nome hábil da
guetização, contrapartida da hegemonia euroetnocêntrica nas
interpretações mais influentes da História do Brasil.
O que tem a ver a existência da Guarda Negra, segundo
Flávio Gomes (1991), de intensa atuação especialmente no pe-
ríodo entre a abolição e a proclamação da República, com os
sinais perceptíveis de discursos e políticas antinegras e antipo-
pulares por parte dos republicanos adventícios e suas expecta-
tivas de mudanças dentro da ordem, inclusive racial? E a funda-
ção de incontável número de clubes negros em quase todas as
regiões brasileiras, em maiores como em menores cidades, ao
longo de quase todo o século XX: não contrariam as visões mui-
to comuns de que famílias negras preferiam a “paz” da vivên-
cia recatada entre complexos e recalques? E as manifestações
culturais e religiosas afro-brasileiras deverão sua longevidade
exclusivamente às “crendices naturais” nos negros, à força dos
seus santos e orixás? Não contam as iniciativas e estratégias de

74 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


caráter social, político, econômico, marcantes em tantos epi-
sódios, como o do “Filhos de Gandhi”, na Bahia (o Candomblé
saiu às ruas, em 1949, no carnaval enfrentando a repressão po-
licial); ou do Samba no Rio de Janeiro, cuja primeira gravação
e registro de direito autoral (uma ousadia na época), ironizava
exatamente a autoridade repressiva da polícia – tudo isso visto,
hoje, como coisa trivial.
Será possível encontrar episódios da História e Cultura
Afro-Brasileira que não esteja dentro da História do Brasil? As-
sim como (sem prejuízo de espaços de alteridade “negra” ine-
rente à diversidade que constitui nossa ampla formação), foram
às formas racializadas de construção da nação e da sociedade
e as interpretações racialistas da História do Brasil, nas ações
e nas penas de seus principais que suscitaram entre as popu-
lações negras os reclamos e a produção da História e Cultura
Afro-Brasileira. Ainda hoje é difícil para muitos perceberem que
estavam produzindo – e ainda há quem ainda produza – uma
história “branca”.
Já o Decreto no 528, de 28.6.1890, em seu artigo 1 estabele-
cia o seguinte: “É inteiramente livre a entrada nos portos da Re-
pública dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho que não
se acharem sujeitos a ação criminal em seu país, exceptuados
os indígenas de Ásia e África...”
A invisibilidade ou opacidade da questão racial no pensa-
mento das elites intelectuais é especialmente problemática no
Brasil, porque há um legado insofismável da dominação branca
sobre indígenas e negros ao longo de cinco séculos.24 Quase a
metade de todos os seres humanos chegados às Américas por
meio do tráfico Atlântico (cerca de quatro milhões) foi trazida
para o Brasil; fomos à última nação da América a extinguir a es-
cravidão, e, diferentemente de outras nações e sociedades nas
Américas, a participação negra ocorreu desde os primórdios da
colonização, esteve presente em todo o território nacional sen-
do largamente majoritária em algumas regiões, e “sua cultura”
tornou-se referência fundamental da identidade nacional – Joel
Rufino dos Santos fala da cultura negra como o “núcleo pesa-
do” da cultura popular brasileira. A questão racial – ou seja, o

24. Florestan Fernandes fala no “legado da raça branca”.

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 75


contencioso das relações raciais com suas múltiplas e, algumas
vezes, irredutíveis ilações, conotações e conexões – é, portanto,
liminar na trajetória de constituição da nação, do Estado e da
identidade nacional, ao mesmo tempo, que dos campos cientí-
ficos e teorizações que pretendem interpretar esse processo.
Além disso, vem se formando a respeito uma massa críti-
ca em certos setores das Ciências Humanas que, entre outras
questões relevantes, identifica o “racialismo” – crença na exis-
tência de características hereditárias que dividiriam a espé-
cie humana em grupos geneticamente distintos (raças), cujos
membros de cada uma compartilhariam entre si certos traços
e tendências exclusivos – como um elemento constitutivo na
gênese do pensamento social no Brasil, bem fundado no sis-
tema escravista, nas hierarquizações sociais e políticas que ele
instituiu e que se enraizaram culturalmente. E que este racialis-
mo, entre outras ações extremamente nocivas às expectativas e
interesses da população negra, impulsionou a primeira grande
política pública da república: a imigração, com a perspectiva de
“lavar a mancha negra” a contaminação do tecido social pelo
sangue africano, e criar, pela mestiçagem biológica e graças à
superioridade da “gens” branca, européia, um novo povo brasi-
leiro apto à civilização.
Como intervenção oficial racista de Estado, de governos
e outros poderes e órgãos federais e de poderes estaduais, es-
pecialmente de São Paulo, de tamanha dimensão – em pouco
mais de 30 anos foi trazida mais ou menos a mesma quantidade
de imigrantes europeus para o Brasil, que em 300 anos de trá-
fico Atlântico(!) – pôde ser tão “desconhecida”, menosprezada
ou, simplesmente naturalizada, na maioria das interpretações
dos processos de formação da nação e da sociedade brasileira?
Ainda mais porque a maior incidência da imigração e potencia-
lização de discriminações e conflitos se deram justamente no
Sul e Sudeste, as regiões política, cultural, e economicamente
mais dinâmicas.
É necessário avaliar o quanto se perde ao ponto, de cer-
tas análises se transformarem em verdadeiras abstrações, ao
se enveredar por “caminhos” de interpretação da formação e
desenvolvimento da sociedade brasileira, sem a consideração

76 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


adequada da questão racial (mormente com o agravamento da
complexidade que esta se apresenta nos dias de hoje).
Há os desafios políticos à implementação da lei. Sem dú-
vida enfrentados de diferentes maneiras, com mais ou menos
engajamento, consistência, regularidade etc. Embora a correla-
ção de forças seja adversa aos “agentes da lei”, é de se notar seu
empenho, crescente qualificação de seus discursos, conquistas
de espaços, corações e mentes. Esse é o aspecto dos desafios
frente ao qual se sentem bem, sejam os que já vinham incorpo-
rando ao seu jeito a História e Cultura Afro-Brasileira em suas
práxis pedagógicas, ou os que foram conquistados/seduzidos/
abraçados recentemente: é um espaço em que, quase sempre,
a luta se dá e pode ser travada abertamente, nos intestinos das
decisões em órgãos executivos, nos debates institucionais e a
despeito de formalismos em órgãos normativos da Educação;
ou mesmo em escolas, em salas de professores, nos cotidianos
das salas de aula...
Diferente do que acontece em relação ao desafio acadê-
mico à implementação da lei. Esse é um campo muito mais
fechado e de relações de poder e de saber-poder muito mais
movediças, dissimuláveis. O desafio acadêmico implica em pôr
na “berlinda” o saber-poder “sobre o negro”, e as interpretações
do desenvolvimento da sociedade brasileira que não percebem
a existência de um obscuro silêncio historiográfico sobre a tra-
jetória das lutas negras no pós-abolição e ao longo do século
XX, e que sejam insensíveis e/ou impermeáveis às demandas
de igualdade e às manifestações contra preconceitos e discri-
minações raciais. Tem sido mais difícil intervir em um campo
de poder – o poder acadêmico – no qual tem sido tão difícil se
instalar uma nova ética na produção de conhecimentos, cujo
compromisso com a teoria incorpore a noção crucial da política
como constitutiva do conceito. Penso que são desafios à altura
da importância do saber acadêmico: a capacidade de construir
espaços mais amplos de trocas, de encontros, de entendimen-
tos, não exclusivamente mediante a racionalidade, embora
balizados por ela; questionar fundamentos de seu prestígio e
poder e assumir que nenhum discurso pode abranger a totali-
dade; que todo enunciado é sempre “um” locus de significação;

“QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!” 77


que o universalismo é perene busca e construção e a diversida-
de condição intrínseca do enriquecimento humano. Ser, enfim,
capaz de cumprir/exercitar sua vocação de estar em sintonia
com a construção da univers(al)idade.
O práxis dos educadores é uma instância de responsabili-
dade para a implementação da lei. Será correto depender das
vitórias em outros campos? Se não é possível “atalhar”, “arro-
deie” e construa suas próprias alternativas. E vamos em frente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERNANDES, F. A integração do negro à sociedade de classes. [S. l.]: Fa-
culdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, 1964.
GOMES, F. dos S. Negros e política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005.
—. No meio das águas turvas (racismo e cidadania no alvorecer da Re-
pública: A Guarda Negra na Corte 1888-1889). Estudos Afro-Asiáticos,
n. 21, 1991.
—. A nitidez da invisibilidade: experiências e biografias ausentes sobre
raça no Brasil. In: SALGUEIRO, M. A. A (Org). A República e a questão
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PEREIRA, A. M. Três desafios para o Movimento Negro: articulação,
mobilização e organização. Rio de Janeiro: IPCN/Cointer-SR 3-Uerj,
1995.
ROMÃO, J. Há o tema do negro e há a vida do negro: educação públi-
ca, popular e afro-brasileira. In: Educação popular afro-brasileira. Sé-
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Negros (NEN), n. 5, 1999.
SANTOS, J. R. dos. A luta organizada contra o racismo. In: SANTOS, R.
dos; BARBOSA, W. do N. Atrás do muro da noite. Brasília: MinC-Funda-
ção Cultural Palmares, 1994.

78 “QUEM NÃO PODE ‘ATALHAR, ARRODEIA’!”


PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:
A LITERATURA BRASILEIRA COM
SABOR E AXÉ
Selma Maria da Silva25

A prática do ensino de literatura brasileira, assim como outras


práxis metodológicas, no espaço educativo “formal”,26 deve ser
lida como ideologicamente comprometida, imersa e submer-
sa nas imagens de si e de todos, somos muitos, com várias fa-
ces e por isso mesmo, autores de diferentes textos sejam estes
expressos por imagens gráficas ou sonoras e na qualidade de
produtores, atores, cenógrafos, figurinistas etc. Possuímos e
assumimos como uma tarefa nossa, postura crítica que busca
o desvelar e o desnudar sem qualquer pudor do fazer poético
pela ótica da africanidade.
Colocando o dedo na ferida ainda aberta, pelo chicote da
escravidão, pois a leitura da africanidade sabe do seu passado
de oprimido como também sabe que as adversidades não fo-
ram empecilhos para luta, nem para os sonhos de uma socie-
dade livre. Adotamos esta postura crendo que este é um dos
caminhos possíveis e assim estamos colaborando de maneira
sistemática para o embate radical as análises e posturas críti-
cas ainda comprometidas com o ideal de branqueamento. Para
exemplificar este tipo de postura selecionamos quatro entre os
principais títulos27 de obras para o ensino de literatura, adota-

25. Texto apresentado no “III Seminário Internacional as Redes do Conheci-


mento e a Tecnologia: professores e professoras – texto, imagens e sons” (6/6
a 9/6/2005 – Uerj).
26. Compreendendo a qualificação como uma restrição semântica na perspec-
tiva dicotômica do significado de dois signos – formal versus informal –, sendo
este, o informal, circunscrito às possibilidades de aquisição/troca de conheci-
mento no extramuros da escola tanto real quanto virtual.
27. NICOLA, J. de. Língua, literatura & redação: 2. CAMPEDELLI, S. Y. Literatura;
história & texto: 2. BENEMANN, J. M.; CADORE, L. A. Estudo dirigido de portu-

PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ 79


dos tanto em escolas da rede estatal de ensino, quanto na rede
particular. Como não é de nosso interesse de imediato fazer
qualquer referência, ao lucrativo mercado editorial deste setor,
gostaríamos apenas mencionar, que apesar da existência de um
público-alvo consumidor de manuais didáticos em permanen-
te e franco crescimento, os investimentos teóricos não primam
pela mesma qualidade dos investimentos tecnológicos que pro-
piciam grande qualidade editorial e gráfica chegando inclusive,
em algumas áreas do ensino a publicação de títulos em CD.
As bases teóricas presentes em alguns manuais de hoje ain-
da são as mesmas que permitiram a Roger Bastide afirmar que

Foram os escritores brancos que descobriram a poe-


sia da África no Brasil, que cantaram as misérias da
senzala, o patético dos navios negreiros, que puse-
ram nos seus versos a canção dos trabalhadores de
cor nos campos ou a embriaguez das filhas de san-
to possuídas por divindades bárbaras. Salvo raras
exceções, os poetas de origem africana parecem ter
esquecido seus antepassados e, a julgarmos as suas
produções apenas pelos assuntos nela tratados, pa-
recem nada ter de realmente original. Mesmo os
poucos que falaram do passado de sua raça não o
fizeram senão tardiamente, depois dos brancos, e
sem acrescentar nada de novo ao que os brancos já
tinham achado.28

Nosso interesse neste trabalho e na perspectiva crítica ado-


tada fez com que nos voltássemos para o exame da análise da
produção poética de Cruz e Souza, não só por sua importância
histórica como também em relação à prática de ensino de lite-
ratura brasileira. E também por ser um dos poucos escritores de
ascendência africana e, algumas vezes o único, a que os manu-
ais didáticos fazem alguma referência explícita a respeito de sua
ascendência. O poeta Cruz e Sousa é enfocado na maioria dos
livros didáticos examinado como um homem psicologicamen-
te tomado pela obsessão pela cor branca, fato que os críticos

guês: língua e literatura. v. 2. TUFANO, D. Estudos de literatura brasileira.


28. BASTIDE, R. A poesia afro-brasileira. v. 4.

80 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ


acreditam constatar em seu poema “Antífona”, conduzindo de
forma explícita a leitura para uma proposta de branqueamen-
to dos procedimentos poéticos do poeta maior do simbolismo
brasileiro, ao sintetizar toda sua obra com o poema “Antífona”
e lê-lo pôr uma ótica bastante particularizada, no que tange
as suas características biográficas. Essa perspectiva crítica não
poderia fazer outra coisa que não fosse atribuir a Cruz e Sou-
sa uma negação da sua origem africana. Nesse sentido, de uma
vez por todas, assumindo nossa identidade, também africana,
trazemos para nossa reflexão outros textos de Cruz e Sousa e
outros escritores que sempre estiveram em permanente diálo-
go com a ascentralidade africana.
Precisamos desmascarar o mito de um País de mestiços
com ausência de conflitos raciais, pois se, de um lado, ao en-
tendermos uma postura estética de negra como forma de afir-
mação de uma cultura com bases históricas no continente afri-
cano, de outro, podemos ser classificados ou mesmo rotulados
de também etnocêntricos, o que não só repudiamos como tam-
bém temos combatido. Pois a afirmativa da existência de uma
cultura branca superior em detrimento das demais culturas
existentes nada mais seria, na modernidade, do que a reinven-
ção das teorias raciais do final do século XIX. Assim, classificar
de preconceituosas as análises críticas operadas em alguns ma-
nuais didáticos pode parecer exagerado porém qualificá-las de
simplistas, não. Como podemos observar comparando os tex-
tos abaixo, de dois autores, essencialmente direcionados para
os cursos de formação geral de 2o grau, ambos fazem de forma
sintética uma análise crítica de dois poemas de Cruz e Sousa
“Primeira comunhão” e “Antífona” a fim de exemplificarem a
“grande obsessão do poeta pela cor branca”. No livro de José de
Nicola destacamos o seguinte trecho

(...) O soneto (Primeira comunhão) trabalha com


uma interessante superposição de imagens: à ima-
gem de adolescentes cobertas de grinaldas e véus
brancos no altar para primeira comunhão se super-
põe a imagem dessas mesmas moças no mesmo al-
tar para o casamento. Uma parábola, portanto. Ou
seja, “os elementos de uma ação, exposta ao leitor, se

PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ 81


referem, ao mesmo tempo, a uma outra série de ob-
jetos e processos” (KAYSER, Análise e interpretação
de obra literária).

Esse soneto, além de enfatizar a temática sexual, nos


remete a algumas outras características do poeta,
como a obsessão pela cor branca e por tudo aquilo
que sugere brancura.29

Em relação ao poema “Antífona”, a proposição de estudo


do texto é também bastante comprometida com a ideologia da
democracia racial, observe:

Como foi dito, “Antífona” é uma espécie de síntese


da obra de Cruz e Sousa, principalmente das poesias
que formam o livro Broquéis. Nele podemos perce-
ber várias características do poeta. As questões que
seguem têm a função de salientar essas caracterís-
ticas:

1. Transcreva passagens do texto que exemplifiquem


a fixação do poeta pelo branco (...).30

Já no livro de Samira Youssef Campedelli31 a análise pode


conduzir o aluno para uma reflexão mais crítica ao apontar
para o caráter um tanto simplista da chamada obsessão de Cruz
e Sousa, como podemos perceber pelas palavras da autora:

O poema “Antífona” insiste em imagens bastante eté-


reas, a começar pela primeira estrofe onde o poeta
parece obcecado pela cor branca. Muitos viram nes-
se pormenor um contraponto à cor negra de Cruz e
Sousa – daí a sua procura pelo oposto. Em todo caso,
essa é uma interpretação muito simplista. O poema
vai mais além. Percorre-o uma abstração que carac-
teriza marcadamente a escola simbolista: sugerir um
estado inconsciente e não explicitar.

29. NICOLA, ob. cit.


30. Id. Ibid.
31. CAMPEDELLI, op. cit.

82 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ


É bastante significativo observar que as análises críticas da
obra de Cruz e Sousa, poeta consagrado nos livros de História
da Literatura Brasileira, não têm negado que entre as princi-
pais dificuldades de vida deste poeta excepcional, estavam in-
cluídas as suas características étnicas, o que não era obstáculo
para Castro Alves, o poeta dos escravos, pois a voz condorei-
ra rebelava-se contra a elite liberal, mas conhecia, usufruía e
desfrutava de suas benesses. Ambos fizeram da palavra arma e
forma de expressão de suas apreensões da realidade, ou melhor
dizendo, do contexto no qual estavam inseridos. Apesar de que,
em um certa medida, poderíamos falar que um produzia suas
imagens enquanto homem integrado e socialmente aceito e o
outro construía e produzia suas imagens enquanto ser margi-
nalizado.
O poema “Meu filho” traduz a consciência do ser que, mar-
ginalizado, luta contra as armadilhas sociais que o levariam a
negação da ascendência africana: as imagens construídas são
um misto de dor e perplexidade frente aos desatinos de uma
sociedade escravocrata e racista. Propomos uma interpretação
contextualizada dos poemas de Cruz e Souza, isto é, a partir da
realidade do seu tempo, colocando em discussão sua própria
postura estética. O poeta maior do simbolismo em nenhum
momento negou sua ascentralidade. Assim sendo, reduzir sua
“excepcionalidade” a um único poema, neste caso “Antífona”,
estabelece uma lógica redutora e simplista do homem obce-
cado pela cor branca, como se fosse possível, através de único
exemplo, termos a noção do conjunto de toda uma obra. Nossa
posição é justamente oposta a essa, devemos proporcionar o
acesso ao conjunto de uma obra literária sem induções tenden-
ciosas marcadas pela cor do vocabulário.
O poema “Meu filho” elege e constrói imagens da alegria do
nascimento de um filho e ao mesmo tempo as angústias frente
ao futuro dele dentro de uma sociedade que, com certeza, lhe
será antagônica. O poeta mergulha nas emoções do amor pater-
nal e, como um meticuloso e consciente observador, descreve a
imagem do filho adormecido, explodindo em genuínas imagens
de dor e alegria. A expressão “Ah! quanto sentimento!” em sua
repetição demonstra a profusão das sensações que dominam o

PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ 83


pai amoroso, o chefe de família, o sujeito também marginaliza-
do por sua origem étnica, que explicitamente desmentem qual-
quer afirmação de ser o escritor “um homem obcecado pela cor
branca” ao contrário desta afirmação, acreditamos, como Tasso
da Silveira, que o poema “Meu filho” é, na verdade, “...Significa-
tivo da força de ternura e do profundo enlevo com que amou
Cruz e Souza a esposa e filhos, desmentindo a insinuação, con-
tida em críticas levianas, de que o poeta se consumiu no desejo
da mulher branca impossível”.32
A prática de ensino de literatura restrita a manuais didáticos
conduz o leitor “iniciante”, caso não seja adotada uma postura
crítica, a interpretações automatizadas por rotulações estan-
ques, pois define o perfil estético do escritor, na maioria das ve-
zes, a partir, de uma certa unanimidade, a um único e grande
exemplo de sua obra, como é caso do poema “Antífona” de Cruz e
Sousa, tido por uns como poema-síntese do simbolismo brasilei-
ro, e por outros como profissão de fé do movimento simbolista,
sendo mesmo o próprio paradigma, não só do seu poeta Cruz e
Sousa, como de toda uma apreensão de mundo da época.
No livro Literatura, história & texto: 2, de Samira Campe-
delli, a autora apresenta o poema “Antífona” como paradigma
do simbolismo: “(...) O poema “Antífona”, o primeiro de Bro-
quéis, representa uma espécie de profissão de fé da poesia sim-
bolista de Cruz e Sousa e do próprio Simbolismo que se inau-
gurava entra nós”.33 Este tipo de comentário parece justificar o
fato do livro didático, apesar deste apontar o caráter simplista
quanto à dita obsessão pela cor branca, não ter necessidade
de ampliar seus exemplos ou mesmo variá-los.34 Por que não
apresentar aos, às vezes, jovens leitores outros exemplos, pois
a perspectiva reducionista impede a leitura de uma obra pro-
funda e rica em imagens e procedimentos poéticos tão sofisti-
cados quanto de uma beleza ímpar. Ler “Meu filho” com olhos
africanizados é viajar no mar de sentimentos e emoções, de um
homem em perfeita consonância com seu tempo. Sem perder

32. SILVEIRA, T. de. In: CRUZ E SOUSA. Poesia, p. 56.


33. CAMPEDELI. op. cit.
34. Entre os quatro títulos por nós selecionados, apenas um não cita o referido
poema

84 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ


de vista sua humanidade que a todo momento lhe foi negada,
Cruz e Sousa explicita de forma particular sua dor e angústia
em imagens de um tom forte, marcadas pela totalidade, sem
restrições, do seu paternal amor. Destacamos do poema “Meu
filho” algumas estrofes a fim de que estas, apesar de nossa arbi-
trariedade, ilustrem nossa leitura:

Ah! quanto sentimento! ah! quanto sentimento!


Sob a guarda piedosa e muda das Esferas
Dorme, calmo, embalado pela voz do vento,
Frágil e pequenino e tenro como as heras.

Ao mesmo tempo suave e ao mesmo tempo estranho


O aspecto do meu filho assim meigo dormindo...
Vem dele tal frescura e tal sonho tamanho
Que eu nem mesmo já sei tudo que vou sentindo.

Minh’alma fica presa e se debate ansiosa,


Em vão soluça e clama, eternamente presa
No segredo fatal dessa flor caprichosa,
Do meu filho, a dormir, na paz da Natureza.

Minh’alma se debate e vai gemendo aflita


No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:
Que esse tão pobre ser, de ternura infinita,
Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!

Dar-lhe eu beijos, apenas, dar-lhe, apenas, beijos,


Carinhos dar-lhe sempre, efêmeros, aéreos,
O que vale tudo isso para outros desejos,
O que vale tudo isso para outros mistérios?!

De sua doce mãe que em prantos o abençoa


Com o mais profundo amor, arcangelicamente,
De sua doce mãe, tão límpida, tão boa,
O que vale esse amor, todo esse amor veemente?!

O longo sacrifício externo que ela faça,


As vigílias sem nome, as orações sem termo,
Quando as garras cruéis e horríveis de Desgraça
De sadio que ele é, fazem-no fraco e enfermo?!

PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ 85


Tudo isso, ah! Tudo isso, ah! quanto vale tudo isso
Se outras preocupações mais fundas me laceram,
Se a graça de seu riso e a graça do teu viço
São as flores mortais que meu tormentos geram?!

(...)

Nesse ambiente de amor onde dormes teu sono


Não sentes nem sequer o mais ligeiro espectro...
Mas, ah! eu vejo bem, sinistra, sobre o trono,
A Dor, a eterna Dor, agitando o seu cetro!35

No caso que nos interessa analisar, como vimos, é possí-


vel descrever o agenciamento discursivo de relações de poder,
disfarçadas sob as aparências de apresentações isentas em ca-
pítulos da literatura brasileira, em livros didáticos de 2o grau.
Modos canônicos de controle e poder se reproduzem no espaço
da escola e trabalham, através dos discursos de livros didáticos,
gerando separações ideológicas que servem ao processo de do-
minação em suas práticas de identificação de subalternos e das
diferentes formas de sua segregação e exclusão. Muitas vezes
essas práticas se referem a modos de comunicação poucos evi-
dentes, não explicitados pelos sujeitos que os praticam e que,
nessa medida, devem ser explicitados através da análise dos
discursos em que ocorrem de forma “encoberta” ou “implícita”.
O caso de Cruz e Sousa aparece como nítida inversão do
modo canônico do discurso poético associado às elites do po-
der, no âmbito da sociedade da época. Um estudo como o de A.
L. Machado Neto, em Estrutura social da República das letras,
mostra que a maioria de nossos poetas e escritores no século
XIX são provenientes dos estratos hierárquicos considerados
superiores da sociedade brasileira.36
O exemplo de Cruz e Sousa rompe a univocidade das prá-
ticas poéticas legitimadas pela tradição senhorial e por com ela
romper, invertendo-a, parece requerer uma reação reparadora
corretiva, ou, no mínimo, esclarecedora dessa “execepcionali-

35. CRUZ E SOUSA. op. cit.


36. Observa-se que Cruz e Sousa não consta da lista de escritores e poetas con-
siderados na obra de Machado Neto.

86 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ


dade”. Nota-se que o simbolismo brasileiro já foi considerado
excêntrico pelos críticos e historiadores da literatura contem-
porânea (por parte dos críticos que reproduzem os valores con-
sagrados pela tradição dominante) e que, nele, muito poste-
riormente a figura de Cruz e Sousa veio a merecer consideração
“especial”.
A idéia recorrente na crítica e nos manuais didáticos de que
a poesia de Cruz e Sousa, através de itens léxicos da “alvura”,
revelaria uma atração por traços étnicos e/ou marcas culturais
dos homens brancos, aparece, nitidamente, como uma corre-
ção da “inversão”, para muitos inadmissível ou inaceitável, re-
presentada pela presença de um excelente poeta negro como
símbolo de sua época. A apresentação do poeta como “atraído”
pelos semas de alvura, como um homem sem identidade, ne-
cessitando, portanto, para preservar sua existência, negar-se é
um motivo constante nos diferentes autores de obras didáticas
de literatura.
É, entretanto, na confrontação com um outro poeta dis-
tinto esteticamente (CASTRO ALVES) que podemos observar
que, por mais que seja retirada dos descendentes africanos sua
humanidade ao transformá-los em coisa ou em animais, estes
não se deixam silenciar e gritam conscientes de suas dores sem
perderem a essencialidade humana. Ao confrontarmos os poe-
mas “Litania dos pobres” de Cruz e Sousa e “Navio negreiro” de
Castro Alves, podemos observar que os dois poemas são cons-
truídos a partir de um mesmo fato, a dor dos pobres, daqueles
marginalizados pelo sistema social e que vivem em condições
de total abandono. Em “Litania dos pobres” o canto de dor do
povo traduz-se em um ritmo marcado por imagens de pintor
plenamente envolvido, capaz, porém, do distanciamento ne-
cessário à criação de imagens de tamanho vigor poético, por de-
monstrarem a clara intenção de traduzir em palavras poéticas
a indignação frente ao processo de desumanização do homem.
Esta é, ao nosso ver, a diferença mais explícita entre “Litania dos
pobres” e “Navio negreiro”, pois no discurso poético de Castro
Alves o tom declamatório necessita de imagens grandiloqüen-
tes, apelações explícitas aos ouvidos inebriados dos liberais da
época. Assim, faz-se necessário ler os poemas lado a lado, para

PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ 87


podemos perceber que em ambos “a dor dos desprotegidos” é
matéria poética, onde a perspectiva apelativa do fato poetizado
é o mais importante e, por isso, as metáforas adquirem uma for-
ma quase corpórea como se desta maneira fosse possível não
só comover como convencer aos leitores das barbaridades. Em
Cruz e Sousa não temos tom “condoreiro” mas, em contrapo-
sição, temos a dor manifesta de forma bem mais profunda por
estar colocada no espaço do “não-dito”, o questionamento de
suas dores, no sentido de buscar nos sujeitos o domínio de suas
existências.

Ó pobres! o vosso bando


É tremendo, é formidando!”

(...)

Parece que em vós há sonho


E o vosso bando é risonho.

(...)

Que por entre os estertores


Sois uns belos sonhadores.37

Em oposição ao homem que mesmo vivendo em condi-


ções infames é capaz de sonhar, temos em Castro Alves o tom
declamatório marcado por imagens das atrocidades praticadas
contra os africanos escravizados, em um processo evidente de
animalização de sua existência. O escravo oprimido assume a
função de objeto poético a serviço dos ideais liberais da épo-
ca, e não há, de forma evidente, um mergulho profundo, há, ao
contrário, uma comoção explícita, bem ao gosto da estética da
época (conforme o paradigma de Victor Hugo em sua poesia
de temas sociais ou conforme os moldes da evasão poética na
qual os jovens entregavam-se aos amores e dores insolúveis).
Com o intuito de comentar as representações da poesia social
de Castro Alves em que o poeta se apresenta como o vate dos
escravos, como o condor que vê do alto e à longa distância a

37. CRUZ E SOUSA. Litania do pobres. In: Op. cit. p. 60, 62-63.

88 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ


dor dos outros, transcreveremos parte da 4a seção do poema “O
navio negreiro”:

Era um sonho dantesco... O tombadilho


Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite
Horrendos a dançar...

Negras mulheres suspendendo às tetas


Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães.
Outras, moças... mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas
Em ânsia e mágoa vãs

(...)

Presa nos elos de uma só cadeia


A multidão faminta cambaleia
E chora e dança ali!...
Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando geme e ri

(...)

E ri-se a orquestra irônica, estridente...


E da ronda fanfástica a serpente
Faz doudas espirais!...
Qual em um sonho dantesco as sombras voam...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam
E ri-se Satanás!... 38

Não estamos negando a importância da poética de Castro


Alves, porém, gostaríamos de questionar o tratamento didático
que tradicionalmente vendo sendo dado a sua obra em contra-
posição a de Cruz e Sousa. Como vimos, em ambos há preo-

38. CASTRO ALVES. Navio Negreiro. In: TUFANO, D. Estudos de literatura. p.


110.

PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ 89


cupação de refletir poeticamente a “dor dos pobres”. De forma
bastante distinta, em um existe o distaciamento social claro e
evidente, e no outro o distanciamento poético a não permitir
que a emoção turve a criação (CRUZ E SOUSA).
A prática de ensino de literatura deve ser uma possibilida-
de real de ler a sociedade sem rotulações apriorísticas, aprisio-
nadoras do texto, pois como disse Silviano Santiago:

A cor do vocabulário importa para o folclorista, o


antropólogo e o poeta branco. São estes que visam a
preservar, através de um discurso condescendente e
piedoso, científico e reparador, os crimes e injustiças
cometidas pelos próprios brancos contra os negros,
e acrescentemos: contra os índios. São eles que insis-
tem em guardar as relíquias da destruição, em desejo
de preservação póstuma por parte da cultura branca
dominante. (...) A cor da pele é marca indelével que
não se apaga com os bons sentimentos humanitários
ou patrióticos, nem com a política paternalista dos
governantes ou populista de oposição.39

Quebranto
às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada

às vezes sou o zelador


não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço

às vezes sou o meu próprio delito


o corpo de jurados
a punição que vem com o veredito

(...)

39. SANTIAGO, S. Vale quanto pesa. p. 122-123.

90 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ


às vezes as migalhas que me lancei de supetão no
espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição que me promulgo a
cada instante

(...)

fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.

às vezes !...40

A realização poética africanizada é manifestação de um


estado de consciência em sintonia com seu tempo presente, a
refletir de forma crítica a inserção da perspectiva africana na
cultura brasileira. O poeta posiciona-se, nem à margem, nem
ao centro: ele busca inserir seu perfil sociopolítico e cultural
sem rotulações, sem denominações tendenciosas. A palavra
poética africanizada, neste aspecto não difere daquela tratada
pelos cânones acadêmicos, pois, também revestida de pluris-
significação, almeja uma realização literária capaz de gestar em
seus leitores uma reinterpretação dos rótulos que estigmatiza-
ram os africanos escravizados no Brasil. Este fazer literário tem
por objetivo romper com o silêncio, com a ausência, isto é, com
a invisibilização do homem negro e de sua cultura: há aqui, de
forma explícita, a inserção deste sujeito cultural, repudiando
qualquer tratamento crítico em que sejam qualificados como
excepcionais, ou de folclóricos. A palavra revisitada na poéti-
ca africanizada despe-se dos rótulos racistas e depreciadores
dos seus sujeitos culturais. Assim, trazemos para a vida social,
o fato metaforizado, como muito bem realiza Miriam Alves em
seu poema “Exus”.

40. CUTI. Cadernos Negros, n. 5, p. 17-18.

PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ 91


Exus soltos
nas matas
dos sentimentos

arreliam medos
escavam toco seco

procuram verdades
escondidas nas encruzilhadas
sem despachos41

Nas palavras de Esmeralda Ribeiro, encontramos a história


que, apesar de “oficial”, necessita ser lida e escrita por aquele a
quem o fato julgou ter beneficiado

FATO
Aboliram
Escravidão
A
não
condição42

Portanto, a realização poética africanizada traz à tona, as


imagens de um passado ainda vivo na memória de muitos, que
sabem muito bem que o fogo com o qual Rui Barbosa queimou
registros de escravos, não destruiu as cinzas, e delas não só re-
nascem os atos, como se fortalecem transformando-se em fatos
que por sua vez geram a existência de uma literatura africaniza-
da, que não é espetáculo, ou apelo a tolerância dos senhores do
presente. A poética africanizada sabe do seu compromisso com
os oprimidos, como também sabe que armas e palavras podem
se tornar mais do que aliadas, pois são verdadeiras cúmplices
na construção de um processo social que visa a transformação
radical, um caminho para eliminação da prática do racismo,
em nossa sociedade, um caminho sem as armadilhas e enga-
nos algumas vezes incorporados aos procedimentos didáticos
no ensino de literatura brasileira. É necessário levar para sala

41. ALVES, M. Exus. Cadernos Negros, n. 9, p. 42.


42. RIBEIRO, E. Fato. Cadernos Negros, n. 11, p. 30.

92 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ


da escola, o que muitas famílias têm levado para as suas salas
de visita, isto é, a literatura africanizada, pois ela não pede li-
cença para entrar na sala dos seus, e na casa dos outros há que
se ter cuidado para não confundir os aplausos como aceitação
ou mesmo aprovação, pois, se os senhores não sabem, capoeira
nunca foi dança é luta e tática de ataque (assim também acre-
ditamos, poderão valer como ataque às matrizes racistas etno-
cêntricas dos textos de nossa literatura em uma perspectiva de
africanidade à brasileira).

DANÇANDO NEGRO
Quando eu danço
atabaques excitados,
o meu corpo se esvaindo
em desejos de espaço,
a minha pele negra
dominando o cosmo,
envolvendo o infinito, o som
criando outros êxtases...
Não sou festa para os teus olhos
de branco diante de um show!
Quando eu danço há infusão dos elementos,
sou razão.
O meu corpo não é objeto,
sou revolução.43

No exame de textos poéticos, de obras de crítica, de his-


toriografia literária e de livros didáticos de ensino de literatura
brasileira, verificamos a presença do comprometimento ideo-
lógico do discurso com o lugar a partir do qual é enunciado.
A contextualização feita dos textos examinados apontou
diferentes matrizes presentes tanto na produção literária quan-
to no âmbito de seus estudos, confirmando o enorme peso que
até hoje exerce no Brasil, na avaliação da escrita poética, uma
tradição pautada pela ótica etnocêntrica.
A leitura criteriosa de textos de crítica literária acadêmica
e de obras para uso didático no ensino de literatura brasileira
levou-nos à identificação de que a presença de discursos racis-

43. ÉLE SEMOG. Dançando Negor. Cadernos Negros, n. 19, p. 54.

PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ 93


tas se verifica por meio de práticas que vão da exclusão e da
desvalorização explícita à “folclorização” e a variados proce-
dimentos de “embranquecimento”. Neste sentido, concluímos
que a exclusão de poetas como Luís Gama de obras de história
da literatura brasileira, isto é de obras que operam como regis-
tro da produção literária canonizada, é um procedimento de
invisibilização semelhante ao exercido pela crítica acadêmica
com relação a autores de ascendência africana com larga pro-
dução poética. É conclusão interessante verificar que dentre
as inúmeras obras de crítica literária procedente da produção
de professores universitários apenas um restrito número con-
sagra estudos a poetas afrodescendentes, estando entre estes
o ensaio de Silviano Santiago sobre Adão Ventura citado neste
trabalho. Dentre as inscrições de discursos racistas que atuam
como instâncias de exclusão literária há ainda que destacar
a desvalorização de produções de poetas afrodescendentes,
qualificadas pejorativamente como literatura marginal, assim
como também os tratamentos críticos que colocam em relevo
a literatura africanizada considerando-a como produto exóti-
co. Uma outra estratégia discursiva foi por nós observada em
livros didáticos, relacionada à invisibilização das marcas da
etnia africana na produção de poetas canonizados, como é o
caso de Cruz e Sousa que, de modo recorrente, é apresentado
como obcecado com valores “brancos” a partir de uma leitura
simplificadora do léxico cromático presente em alguns de seus
poemas como “Antífona”.
A observação de todo o material examinado por nós per-
mite concluir que o apagamento de diferenças e a criação de
imagens de uma literatura nacional em que não é possível re-
conhecer a participação das diferentes etnias que integram a
formação da cultura brasileira, é um grave problema a que rea-
gem em seus textos os autores que integram sua produção com
signos de africanidade e que com ela marcam uma identidade
própria, determinada pela ótica específica de homem negro
em uma sociedade racista. Assim, a polarização que envolve a
exclusão e a inclusão da africanidade no discurso literário foi
um veio que nos permitiu identificar por um lado modos do-
minantes no campo da literatura canonizada e, por outro lado,

94 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ


perspectivas para a reversão crítica dos limites discriminatórios
no domínio da produção e dos estudos literários. Neste campo
relacionado à poética africanizada nosso estudo tomou como
referência central a produção poética publicada em Cadernos
Negros, e nela verificamos a memória viva de um passado atu-
ando como elemento essencial em um processo de transforma-
ção radical e tática estrutural no sentido de eliminar da litera-
tura brasileira, em particular, e de nossa cultura, em geral, as
práticas do racismo e da discriminação racial.

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PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ 95


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96 PRÁXIS DA “AFRICANIDADE”:A LITERATURA BRASILEIRA COM SABOR E AXÉ


CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO:
O NEGRO NA EDUCAÇÃO
Ana Paula Venâncio

INTRODUÇÃO
A escrita desse trabalho se traduz na continuidade da última re-
senha que trazia em seu eixo principal: “O Negro e a Educação”.
Sentindo a necessidade de fazer uma pesquisa mais aprofunda-
da no assunto não só para fins investigativos como também para
uso no cotidiano escolar, as leituras empenhadas para a realiza-
ção deste trabalho abriram novas perspectivas de reflexão sobre
o cotidiano, a autonomia curricular e a crítica auto-avaliativa so-
bre o papel do educador no contexto racial da educação.
Estarão sendo abordadas a seguir perspectivas que não es-
tão fechadas em grandes explicações teóricas, pelo contrário,
estão em processo de compreensão para quem quiser abordá-
las, criticá-las e referendá-las junto a outras teorias e autores
que podem ajudar na reflexão. Em uma proposta ousada de
estudo, esse trabalho mostra o currículo em uma perspectiva
pós-crítica, o Multiculturalismo e o Currículo em Ação e uma
incipiente proposta para um futuro trabalho de pesquisa sobre
a Literatura Infanto-Juvenil Brasileira e Européia, em uma visão
multiculturalista.

AS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS
A redefinição do cenário mundial globalizado nos faz pensar
sobre as divisões econômicas e políticas que contemporanea-
mente vem ocorrendo no mundo, pois ao mesmo tempo que se
rompe fronteiras o mundo se polariza em globalizantes e glo-
balizados.
Em uma versão hegemônica de discurso, se diz que a glo-
balização serviu para aproximar povos e romper fronteiras, mas

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 97


nas questões econômicas e culturais o discurso hegemônico
toma uma outra versão, a dominação econômica e a homoge-
neização cultural, inferindo com força sobre países economi-
camente desfavorecidos, na tentativa de apagar as suas iden-
tidades nacionais em detrimento de um modelo posto como
perfeito de cultura. Contribuindo para isso estão a grande mí-
dia televisiva, os materiais escritos de circulação e outros meca-
nismos de comunicação como a Internet, por exemplo.
No campo complexo da globalização, alguns caminhos vêm
ganhando a amplitude e a confiança para a luta em prol das
transformações sociais, econômicas e políticas significativas
e reais, mas também podem servir de instrumento mantene-
dor do discurso hegemônico globalizado para manipulação de
massas. A escola vem sendo um desses instrumentos que pode
servir tanto a uma tendência quanto a outra. Nesse momen-
to há uma mobilização em torno de políticas de inclusão, ação
afirmativa e cotas onde mostram que apesar da globalização, a
força política dos grupos sociais populares é muito grande.
Quanto à escola, que neste trabalho nos interessa de so-
bremaneira, através de seu currículo pode se tornar um campo
de luta ou da acomodação ideológica a favor de uma cultura
modelo. Nesse sentido, percebe-se o currículo como um espa-
ço político por excelência e um campo de resistência, críticas e
questionamentos, espaço que pode ser considerado flexível e
de mudanças que, diante dessa nova ordem mundial, precisa
ser constantemente rediscutido.
Houve um movimento nos anos 60 que repensou o currícu-
lo tradicional, deixando transparecer as relações de poder mar-
xista e positivista nele contido. O que representou o currículo
crítico e o seu legado não pode ser descartado. Muito do que
foi pensado e denunciado nas perspectivas críticas, hoje fazem
parte das perspectivas pós-críticas, que superaram as perspec-
tivas críticas, tornando as denúncias, ações significativas.
Nas perspectivas pós-criticas, não foram esquecidas as dis-
cussões e os discursos das perspectivas críticas, esse importan-
te legado, serviu como base de discussão para o rompimento
de crenças que caíram no descrédito. O capitalismo, o poder, o
conhecimento, as formas compactas de olhar para essas ques-

98 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


tões foram rediscutidas, o que oportunizou um rompimento,
um novo modo de concepção ideológico. O modo de discutir e
de ver essas situações, foi ampliado e relativizado com as situ-
ações que o cotidiano nos mostra. Antes o currículo tradicional
via o sujeito, carente de uma liberdade e autonomia, como se
houvesse um sujeito à social, que pudesse sair da sua teia de
significados e objetivamente olhar para a sociedade com tal au-
tonomia.
As perspectivas pós-críticas buscam através das discussões
e das ações pedagógicas uma construção curricular em que se-
jam problematizadas questões sociais, de raça, poder, gênero
e cultura, articulando a essas questões o sujeito dotado de sa-
beres e o cotidiano, tudo isso fazendo o entrelace com a teia e
o contexto histórico-social. Questionar, nessa perspectiva, sig-
nifica ter um olhar que rompa com a barreira da naturalização
dos acontecimentos cotidianos e que perceba as diferenças in-
terpessoais e grupais.
O sistema político neoliberal promove em seu objetivo a
competição econômica, a homogeneização cultural, a desca-
racterização identitária, em detrimento de uma única represen-
tação da qual deve ser seguida. A falta de espaços de discussão e
a própria condução à homogeneização, promove a naturaliza-
ção quase imperceptível das desigualdades, da violência, da po-
breza setorizada no grupo racial negro e das invisibilidades que
ano após ano vem se perdurando, inclusive do fazer curricular,
ou seja, o automatismo faz com que os profissionais da edu-
cação deixem de ser autores de seus documentos curriculares,
em detrimento do que já está pronto e acabado, sem ao menos
haver a discussão, levando para a sala de aula a representação
política hegemônica, globalizante e alienante tão desejada pelo
capitalismo e de quem dele tira maior proveito, na tentativa de
tirar dos professores a chance de se tornar autor e representan-
te das resistências sociais.
Na perspectiva pós-crítica, o questionamento é uma cons-
tante nas questões pertinentes ao currículo. Ele passa a ser mais
discursivo-social, ou seja, passa a ter um perfil mais histórico-
social. Questões como raça e etnia, por exemplo, passam a ser
vistas como processos históricos, passam a ser discutidos e ine-

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 99


rentes a tudo que representa o papel político-histórico-social.
Questões antes camufladas ou naturalizadas são nessa pers-
pectiva discutidas, promovendo a mudança no olhar, o conhe-
cimento, multiplicando saberes. Esse tipo de postura curricular
não concebe mais as descrições simplificadas da teia social. O
conceito de diversidade cultural é interpretado pelo processo
histórico tecido pelos sujeitos componentes da trama social.
Não há como se conceber como sujeito social dentro dessa
perspectiva, sem que seja participativo dessa tessitura, desse
processo histórico-constitutivo e heterogêneo.
Em um outro ponto de discussão estão as ações. A perspec-
tiva pós-crítica de currículo, abre um leque de discussões que
indicam a contramão de um processo hegemônico, uma esco-
la mais democrática e participativa da vida social do aluno. As
ações que são como conseqüências das discussões politizadas,
se materializam por meio de um currículo também construído
e autoral, democrático, com atuação imediata na escola, através
da democratização dos conteúdos e na busca da transformação
social, onde também tem sua parcela de responsabilidade.
Estamos diante de uma postura pedagógica e curricular
que, partindo de uma análise crítica das realidades sociais, ten-
ta empreender o compromisso e as finalidades sociopolíticas
da educação. Em uma postura dialógica necessária para a com-
preensão crítica da realidade e sua transformação. Compreen-
der o caráter político da educação é de irrefutável relevância
para que haja nos grupos populares desfavorecidos a mudança,
na qual a educação é também responsável.
A perspectiva curricular pós-crítica nos mostra o quanto é
importante a forma dialógica e crítica ao submetermos os pro-
cedimentos ideológicos e políticos da ação educativa. Visto e
sentido dessa forma, esses procedimentos nos fazem ter uma
visão do currículo diferenciada, de forma que o envolvimento
escolar, a atuação do professor e a atuação do aluno, sejam vin-
culadas de forma crítica e conjuntural ao contexto social, onde
são vivenciados os conflitos multiculturais e as diferenças en-
tre os grupos, nos mostrando que os procedimentos culturais e
educacionais estão interligados, fazendo o movimento dialéti-
co e ativo, como na sociedade.

100 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


MULTICULTURALISMO E CURRÍCULO EM AÇÃO
A perspectiva pós-crítica de currículo permitiu que outras dis-
cussões fossem introduzidas no currículo, demonstrando um
rompimento no discurso que outrora camuflava as questões
conflitantes do nosso dia-a-dia, nesse caso o racismo e o pre-
conceito nas atitudes e falas de alunos e professores, nas mais
diversas situações. Nessa proposta não há como olhar para as
questões históricas ou cotidianas de forma a ignorá-las ou sem
questioná-las. Uma dessas discussões fala sobre o multicultu-
ralismo e suas possibilidades de discussão sobre as diferenças,
que vão para além de diferenças interpessoais e grupais, essa
perspectiva, nos permite abrir discussão sobre os mais variados
aspectos sociais e históricos que são construídos na sociedade.
Podendo ser aspectos do passado ou do presente, do cotidiano,
da ideologia social e da psicologia, sempre relacionado a ques-
tões raciais.
O multiculturalismo como corpo teórico e campo político,
tem sido trazido à tona com intensidade nos variados campos
de debate. Nascido nos Estados Unidos, através das manifesta-
ções e reivindicações de grupos populares e étnicos que que-
riam ter visibilidade e reconhecimento de suas formas culturais
referenciais não só nos currículos escolares, mas ocupando o
mesmo espaço da cultura nacional daquele país. Assim como
nos Estados Unidos, a perspectiva multiculturalista se espalhou
pelo mundo em diversificadas formas de discurso, com o mes-
mo teor reivindicatório das populações pouco visualizadas cul-
turalmente dentro de seus países.
No Brasil, a perspectiva multicultural encontrou um cam-
po de discussões muito fértil e promissor para ações efetivas
dentro do campo pedagógico e político educacional. As rela-
ções de poder que estão contidas em cada ação empenhada
tanto no currículo como na didática deverão prover uma crítica
entre o que é nacionalmente instituído como cultura nacional
e a produção cultural de raiz, como, por exemplo, a africana, a
indígena e a européia.
Essa importante relação de poder que envolve a questão
do reconhecimento no espaço político-educacional das cultu-
ras populares em oposição à cristalizada cultura nacional que

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 101


todos os anos é relembrada através de datas cívicas e dos seus
heróis, na maioria de origem européia, nos mostra que a cultu-
ra é impregnada de poderes e que isso move as relações de dife-
rença e as relações de dominação que se atrelam a esse fator.
O multiculturalismo relativiza com o campo político a com-
preensão da diversidade cultural. Dizer hoje que não há cultu-
ras mais evoluídas que outras, ou seja reconhecer no espaço
político-educacional que, em vez de cultura se tem culturas, foi
um trabalho que a perspectiva multicultural teve por objetivo
visualizar, potencializar e reconhecer, coadunando através de
outras ciências como a Antropologia e a Sociologia, a sustenta-
ção do discurso político para uma nova visão cultural.
Na visão do multiculturalismo crítico, a relação de diferen-
ça importante para o entendimento da diversidade cultural e o
seu uso nos currículos escolares, é que cada grupo detentor de
sua cultura, que é ativa e ao mesmo tempo guarda as suas ori-
gens, são vistos sem serem comparados a cultura nacional, são
criações próprias de cada grupo que diferentemente de um ou-
tro produz e faz emergir culturalmente o que acreditam. Mais
do que a postura de respeitar a produção cultural dos grupos
populares, em vez disso, provocar o questionamento no senti-
do de busca, de contextualização social, de poder, de origem e
entrelaçar esses questionamentos com as relações sociais, eco-
nômicas e políticas da sociedade, juntamente com as desigual-
dades e com os aspectos sociais de origem que aproximam as
culturas.
Em relação à escola, é como romper com crenças muito en-
raizadas na cultura nacional da qual já se é sabido. Abrir para as
culturas populares é abrir para o novo, o desconhecido e para o
que é político e ideologicamente marginalizado dentro da cul-
tura nacional. Dentro da perspectiva multicultural, fazendo uso
da expressão de Libâneo a “Crítico Social dos Conteúdos” do
ponto de vista didático poderá ajudar nessa compreensão e na
ação curricular, realçando nisso uma proposta democrática e
dialética de trabalhar os conteúdos contidos nessa variável cul-
tual, pois a cultura é uma produção social. A relação de poder
também passa pela relação professor-aluno. Em uma perspec-
tiva onde são relativizados os saberes sociais, a relação que se

102 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


estabelece entre professor e aluno, deverá ser de processos dia-
lógicos de saberes. Segundo Libâneo, a relação que se constrói
entre professor e aluno, em uma perspectiva dialógica os dois
se tornam poderes e os dois aprendem, como nos mostra nes-
sas palavras:

(...) Situar o ensino centrado no professor e o ensino


centrado no aluno em extremos opostos é quase ne-
gar a relação pedagógica porque não há um aluno,
ou grupo de alunos, aprendendo sozinho, nem um
professor ensinando para as paredes. Há um con-
fronto do aluno entre sua cultura e a herança cul-
tural da humanidade, entre seu modo de viver e os
modelos sociais desejáveis para um projeto novo de
sociedade. E há um professor que intervém, não para
se opor aos desejos e necessidades ou à liberdade e
autonomia do aluno, mas para ajudá-lo a ultrapassar
suas necessidades e criar outras, para ganhar auto-
nomia (...) (LIBÂNEO, 1994, p. 44).

Nos parece oportuno indagar sobre as reações da escola e


principalmente do seu corpo docente às propostas multicultu-
ralistas e as reformas nas posturas políticas a serem tomadas
a partir dessa perspectiva, que vão para além do papel curri-
cular da prática em sala de aula, com o aluno nessa proposta
curricular, visto como possuidor de saberes, aos quais a esco-
la não só respeitará, mas o tornará valor de conteúdo, e uma
das reações que podemos ter é a resistência do professor a essa
nova perspectiva. São outros valores políticos e ideológicos,
que estão interferindo na acostumada normalidade curricular
e a resistência também assume nesse aspecto uma outra visão a
ser entendida. Ela também está inserida dentro da perspectiva
multicultural como uma questão de poder, Henry Giroux em
seu livro Teoria e resistência em educação, fazendo uma referên-
cia a Michel Foucault, nos ajuda a compreender esse processo
de resistência, como nos mostra nessa reflexão:

(...) o poder nunca é unidimensional; ele é exerci-


do não apenas como um modo de dominação, mas
também como um ato de resistência ou mesmo uma

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 103


expressão de um modo criativo de produção cultural
e social de força imediata de dominação. Esse ponto
é importante porque o compromisso expresso pelos
grupos subordinados não pode ser reduzido a um es-
tudo sobre dominação ou resistência. Claramente, no
compromisso de grupos subordinados há elementos
de expressão cultural e existencial, religiosa ou outra.
É nesses modos de comportamento, bem como nos
atos criativos de resistência que as imagens fugazes
de liberdade se encontram. Finalmente, é inerente
a uma noção radical de resistência uma esperança
expressada, um elemento de transcendência, para
transformação radical – uma noção que parece estar
faltando em várias teorias radicais de educação que
permanecem presas ao cemitério teórico do pessi-
mismo orwelliano (GIROUX, 1986, p. 147).

Ao falarmos sobre a resistência estamos abrindo uma brecha


importante nessa discussão sobre a diferença. O multiculturalis-
mo pode nos fazer cair em armadilhas que são previsíveis, mas
pouco levadas em conta. A discussão sobre a diferença está in-
serida na perspectiva multicultural, quando entendemos que há
várias culturas. O ponto delicado dessa multiplicidade é como as
variadas formas culturais ou o ponto de vista de um grupo é visto
pelo outro. Dizer que existem várias culturas e que a escola pre-
cisa ter olhos para elas é simples do ponto de vista subjetivo, na
prática isso se traduz em aspectos muito peculiares onde iremos
encontrar o racismo, as variadas formas de preconceitos, a mar-
ginalização dos saberes populares. Dois pontos importantes são
levantados dentro dessa perspectiva: a tolerância e o respeito.
A tolerância se mostra como uma assimetria com o outro
mesmo em oposição a ele, ou seja, diferentes formas culturais
que convivem em um mesmo espaço. Diferente de tolerar o dis-
curso do outro, pois quem tolera pode se colocar em uma situ-
ação mais elevada, por aceitar compreensivamente o discurso
diferente do outro, a tolerância no sentido crítico é de perceber
as diferenças e conviver com elas em um mesmo espaço social,
isso na prática social e escolar já acontece, a visão de tolerância
somente acontece quando as diferenças são de fato vistas.

104 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


Quanto ao respeito, ele vai para além da tolerância, no
contexto social e escolar. Ele se traduz em um processo mais
aprofundado de compreensão do outro. Implica que tenhamos
uma posição política em relação ao outro de não julgarmos,
classificarmos ou de qualquer enquadramento social. Estamos
falando de seres humanos, fazedores de cultura e produtores
de saberes, estamos falando de sujeitos sociais, que são com-
positores de discursos ou reprodutores dos mesmos, portanto
sujeitos coletivos e individuais. Nesse sentido, o respeito está
no patamar do reconhecimento humano enquanto empreen-
dedores sociais em uma via dialógica cultural como nos ajuda a
entender esses conceitos d’Adesky:

Sem dúvida, a adoção no ensino de uma ética de to-


lerância referente ao outro e de respeito da diversi-
dade cultural, contribui para uma maior realização
do indivíduo. Mediante a experiência da diferença e
do que é partilhado em comum, a ética de tolerân-
cia e de respeito proporciona ao indivíduo normas
de conduta que lhe possibilitam, no encontro com
o outro, comparar sua identidade com a do outro,
distanciar-se de sua identidade, mas também aceitar
o olhar do outro. A perspectiva fica, então, enriqueci-
da pelas outras condições de pertença. Não somente
impulsiona a dinâmica intersubjetiva, assim como
desnuda, diante dos seus olhos, a existência de uma
variedade de formas de afiliação significativas para
que ele possa diante delas fazer uma livre escolha
(D’ADESKY, 2002, p. 144).

Referindo-se à necessidade de se compreender a sociedade


como constituída de identidades plurais, com base na diversi-
dade de raças, gênero, classe social, habilidades e outros mar-
cadores identitários, o multiculturalismo constitui um divisor
de águas no discurso da contemporaneidade. O projeto multi-
cultural tem em seu cerne uma visão estrutural pós-moderna
de sociedade, em que a diversidade, a descontinuidade e a dife-
rença são os pressupostos centrais desse discurso.
As lutas empreendidas pelos diversos grupos sociais na
busca por visibilidade social e garantia de seus direitos políti-

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 105


cos, que já vem de longa data, foi tomando proporções que não
poderiam ser mais ignoradas pelos grandes órgãos políticos. Na
grande construção da nação, a nacionalização e o processo de
modernização, foram responsáveis por tentar apagar as diferen-
ças ideológicas e identitárias e atualmente, a globalização vem
tentando através de discursos homogeneizantes e discrimina-
tórios, marginalizar ou minimizar o sentimento de pertença e
as diferenças étnicas e culturais dos diferentes grupos.
A questão da pluralidade cultural não é algo novo no deba-
te, segundo d’Adesky é uma discussão que vem “desde o fim do
século XIX até a atualidade”. Desde essa época, passando pela
definição do Estado-nação e se sedimentando com a democra-
cia racial, que os interesses se prendem a um modelo-padrão
de cultura sublevada, subalternizando não só as outras culturas
como aos grupos aos quais pertence. Nos tempos mais recen-
tes, na década de 1990, os Parâmetros Curriculares Nacionais
foram o primeiro aceno de que as lutas empreendidas pelos
grupos sociais estavam ganhando eco nos primeiros documen-
tos públicos de grande monta. Sabemos que esse documento,
não deu conta de empreender um discurso que propusesse de
fato uma mudança radical curricular, mas propunha uma ati-
tude de respeito às diferenças étnicas e culturais, no sentido de
que houvesse uma aproximação da diversidade cultural e que
isso pudesse ser respeitado.
Considerar dentro da perspectiva pós-crítica de currícu-
lo, o multiculturalismo, trata-se de ir para além da valoriza-
ção da diversidade cultural em termos folclóricos ou exóticos.
Essa proposta nos leva a questionar a própria construção das
diferenças e, por conseguinte, dos estereótipos e preconceitos
contra aqueles percebidos como diferentes, no seio de socieda-
des desiguais e excludentes. Segundo Canen, trabalhar com a
perspectiva da pluralidade, é travar lutas incansáveis contra as
formas de racismo e discriminação no que se confere ao outro:

A polissemia do termo, no entanto, tem levado a crí-


tica e questionamentos ao multiculturalismo, desco-
nhecendo seu sentido mais crítico, que supera uma
visão folclórica e pouco problemática da diversidade
cultural, presente em visões multiculturais mais libe-

106 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


rais, para questionar processos racistas, discrimina-
tórios e etnocêntricos que constroem as diferenças e
marginalizam o outro (CANEN, 200, p. 66),

Não basta multiculturalizar através do currículo o saber


social, pois desta forma estaremos homogeneizando, dimi-
nuindo as potencialidades sociais. Ter uma multivisão para as
diversidades é não separá-las de seus contextos históricos, é
não deixá-las caírem no cunho folclorista, da passagem, da es-
tagnação. A cultura é dinâmica e histórica, ela é o modo de vida
global de uma sociedade, é a sua identidade, sua estrutura. Em
uma perspectiva pós-crítica, a sociedade é vista como o campo
cultural minado de significados emblemáticos de cada grupo
social, que vive em constante conflito em busca de reconheci-
mento dentro da grande teia social.
Através da cultura podemos tentar entender, o que a so-
ciedade faz para escapar do chamado “capital cultural” que faz
parte da política globalizante, política que ignora a origem so-
cial, que tenta destruir a significação concreta de conhecimen-
to e poder inseridos nas mais diversas formas de manifestações
culturais e, principalmente, por meio do poder econômico de
manipulação dos grandes espaços como a mídia, materiais es-
critos (como livros) e a Internet, homogeneizando ideologica-
mente um modelo cultural que tenta substituir as culturas lo-
cais, por uma dita mais valorizada, mais consumível.
O contraponto da teoria em questão com a teoria crítica de
currículo, é que esta última cristalizou a questão da denúncia
como suficiente para provocar a transformação social, através
do prisma capitalista de gestão econômica e desigualdades so-
ciais. A perspectiva pós-crítica, também denuncia as desigual-
dades sociais, não desaloja o capitalismo como força econômi-
ca potencializadora dessas desigualdades, mas com uma visão
mais politizada e relativizada para outras áreas sociais, essa
perspectiva coaduna a denúncia e a ação, e paralelamente a
isso, a questão da classe social se contextualiza com o histórico-
cultural dos diversos grupos e suas identidades étnicas.
Dentro dessa perspectiva, há o cuidado de classificar os se-
tores sociais sem dissociá-lo do contexto social, mas ao mesmo

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 107


tempo visibilizando as desigualdades que há dentro dos setores
como gênero, etnia, raça e os diversos tipos de exclusão, inclu-
sive a escolar.
Para que a sociedade seja participante das discussões cur-
riculares, o mapa do poder precisa de fato estar fluidificado nas
diversas ramificações sociais, um conhecimento pautado na
busca identitária, e envolvido na concentração cultural legada
ao povo, através de sua história. O conhecimento corporificado
no currículo não precisaria estar pautado nos significados so-
ciais de domínio europeu, ou de qualquer outro parâmetro que
não aquele construído historicamente pelas suas origens. Nas
perspectivas pós-críticas, a subjetividade é inerente ao sujeito,
portanto ele está impregnado de cultura, saberes, poderes, ele
está impregnado da teia histórica e social da qual faz parte.

O MULTICULTURALISMO E A LITERATURA
INFANTO-JUVENIL NO BRASIL
Depois de traçado um breve panorama das propostas curricu-
lares que atualmente estão sendo mais discutidas e em algu-
mas escolas postas em prática, esse momento do trabalho es-
tará, não mais mostrando uma proposta ou uma perspectiva
de currículo, mas tentando apontar para um possível objeto de
pesquisa.
Os textos anteriores nos mostram entre outros aspectos
importantes, a diversidade dos sujeitos sociais. Embora nós
educadores já soubéssemos disso, nas escolas onde nos for-
mamos, fomos deseducados para percebermos as diferenças,
as diversidades, as culturas, os vários sujeitos. Aprendemos a
ver nossos alunos como modelos saídos de formas, os olhamos
como modelos e os classificamos como tal e ainda somos cha-
mados de educadores.
A perspectiva multiculturalista nos propicia obter outros
modos de análise e crítica, juntamente com outros referenciais
teóricos onde podemos ter novos olhares sobre algo que está
familiarizado ou mesmo sob um outro aspecto crítico. Esse é
mais um caminho traçado por tantas outras perspectivas, que
podem nos ajudar ou colocar dúvidas nas nossas “certezas”.

108 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


A proposta para esse momento do trabalho é estar ten-
tando apontar para um possível objeto de pesquisa. O texto a
seguir terá como fomento o levantamento e narração de uma
situação para compreensão e reflexão. Será narrada a situação
que causou o estranhamento, o local e o objeto de análise, nes-
se caso os contos de fadas estrangeiros. O local é uma escola
pública do Rio de Janeiro, no Ensino Fundamental Básico, onde
há uma equipada sala de leitura de uso freqüente. A situação de
estranhamento: Por que as crianças na sala de leitura só conhe-
ciam os clássicos europeus?
Comecei desde muito tempo a perceber que na escola onde
trabalho, onde há um espaço privilegiado, pois poucas escolas
usufruem de espaços como esses, chamado sala de leitura, as
crianças podem ter um contato mais aproximado com o mun-
do do “faz de conta” e com uma diversidade de textos, gravuras,
enfim, muitas possibilidades de criação e recriação.
As estantes abarrotadas de livros dos mais variados autores
e os clássicos europeus como Branca de Neve, Rapunzel, A Bela
Adormecida, O Patinho Feio e muitos outros contos de fadas. As
crianças conhecem de “cor” essas histórias, pois estão em todos
os lugares, já fizeram parte da vida de seus pais e desde cedo a
maioria das crianças, já manuseiam esses livrinhos, em casa, na
escola, com amigos, por empréstimos.
Quando nós professoras de sala de aula, montamos em
nossa sala um cantinho literário, se não indicarmos os livros,
nossas crianças ficam sem opção de leitura, porque seus pais,
assim como as crianças, parecem condicionados a ler somente
a literatura infantil européia.
Para muitos de nós, formados para termos um olhar “ho-
mogêneo sobre nossos alunos”, na correria do dia-a-dia de uma
sala de aula, no automatismo que se tornou fazermos os nossos
currículos/planejamentos, deixamos de perceber e de termos
um olhar sensível para o cotidiano visivelmente heterogêneo,
variável e desafiador. O livro paradidático, a literatura, em mui-
tas salas de aula, deu lugar somente ao estudo sistematizado
dos conteúdos, das matérias, restando somente a sala de leitura
como “único” espaço para o contato com um contador de his-
tórias ou contato do aluno com as histórias.

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 109


Vários estudos foram feitos nos livros didáticos sobre a ne-
gação do sujeito negro como social e participante na construção
social. Foi constatado e enfaticamente propagado, que os livros
didáticos sob vários aspectos desvalorizavam, marginalizavam
e depreciavam o sujeito negro tirando dele todo o seu potencial
de valor ou ainda o colocando no passado. Isso vem mudando
ao longo do tempo, mais ainda encontramos muito pouco den-
tro dos livros didáticos como referencial para o aluno negro.
Assim como no cenário literário brasileiro, especificamen-
te o infanto-juvenil, percebo que o referencial literário que se
expressou no Brasil com Monteiro Lobato, não obteve potencial
de referência positiva que envolvesse os tipos negros e pardos
em um patamar de igualdade com o tipo branco, sendo esse úl-
timo servindo de referencial para a criança branca juntamente
com a literatura européia que até hoje nota-se sua forte pre-
sença e conseqüentemente o referencial ideológico de valores
e característica física. A literatura infanto-juvenil européia con-
quistou uma dimensão no imaginário da população brasileira
que nem os autores brasileiros tiveram esse mesmo espaço.
Segundo Negrão, a literatura infanto-juvenil pode estabelecer
uma relação igual-desigual entre crianças negras e brancas de
acordo com o discurso usado.

(...) a literatura estabelece uma relação entre iguais


no sentido de que o autor, adulto branco, se dirige
a um público por ele representado como crianças
brancas de classe média. Nessa medida, a criança
negra, com suas vivências e desejos, está excluída do
próprio processo de comunicação instaurado pela
literatura didática e paradidática. É esta dualidade
desigual-igual que explica o fato de, em um mesmo
texto, discursos igualitários coexistirem com repre-
sentações discriminatórias de personagens. O pre-
conceito veiculado pela literatura se justifica na me-
dida em que tais obras são produzidas para educar a
criança branca (NEGRÃO, 1988, p. 57).

A perspectiva multicultural nos ajuda a pensar em dois as-


pectos importantes dentro da questão social brasileira, as di-

110 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


ferenças e a diversidade cultural, dois aspectos que requerem
estudos mais aprofundados e com base teórica que os funda-
mente. A princípio quando falamos em “diferenças” estamos
falando de “sujeitos”. Diferente de como aprendemos na forma-
ção de professores, essa diferença levantada pelo estudo mul-
ticultural e por vários teóricos diz respeito aos sujeitos sociais,
construtores da história social.
A diversidade cultural está para além do que podemos
pensar sobre variados tipos de cultura no Brasil, reflexão que
só passamos a ter a pouco tempo. Essa questão nos aponta a
dimensão política que existe dentro da discussão sobre cultu-
ra e dos grupos que a compõem. Estão sendo mais criticadas a
homogeneização cultural e o folclorismo, fatos que nos leva-
vam a ver a cultura como algo do passado. A muito pouco tem-
po atrás, só falávamos de “cultura brasileira”, marcada por um
referencial que não englobava como fazedores dessa cultura o
sujeito negro e o índio, esse último figurado como folclórico e
o negro teve seus conhecimentos cristalizados como “recorda-
ções” deixadas pelos africanos escravizados no Brasil, depois
disso nada mais restou, somente o branco foi o elemento capaz
de tornar profícuo o que fez. E embarcados nessa ideologia do
branqueamento outras instituições foram incorporando essa
idéia, como as instituições de ensino, o currículo, a literatura e
seus escritores entre outros.
Para que se possa questionar uma das formas de uso da
ideologia do branqueamento em nossa sociedade como mais
um instrumento de negação (nesse caso, do sujeito negro), le-
vanto a hipótese da literatura européia ter tido forte apelo so-
cial mais pelo seu apelo visual do que literário. Mas, como em
um conto de fadas, nossa sociedade se transformou em uma
sociedade embranquecida, letrada e com valores de superiori-
dade européia. O desafio se coloca em tentarmos saber em que
momento a literatura européia entrou no Brasil e se isso está
ligado ao discurso ideológico de branqueamento. Negrão nos
ajuda a entender melhor essas questões quando diz:

A denúncia do preconceito parece estar ainda imbu-


ída de uma preocupação com a formação da criança

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 111


branca. (...) a discriminação racial não está presente
somente no escamoteamento da história do povo
negro, mas se faz presente na própria definição deste
gênero de literatura, na medida em que o cotidiano e
a experiência da criança negra estão alijados do ato
de criação dos personagens e do enredo desta litera-
tura (NEGRÃO, 1988, p. 60).

É preciso buscar os referenciais históricos de constituição


da nação brasileira e o processo de descaracterização racial,
também trazendo os referenciais históricos. A questão racial e
político-ideológica no Brasil deverá ser historicamente anali-
sada, tentando buscar pistas ou achar brechas que nos mostre
como a literatura européia se tornou um referencial importante
entre adultos e crianças.
Uma outra reflexão recorrente a essa citada, é referente à
questão política na estrutura do pensamento da elite brasileira.
Na constituição da nação, sabemos que o negro e o índio não
serviram como referenciais constitutivos da nação brasileira. A
nossa elite política pensou como estratégia para o Brasil ficar
como país que se aproximava do modelo europeu, o branquea-
mento da sociedade. Essa idéia engenhosamente desenvolvida
pela elite brasileira e fortalecida pelos profissionais que na Eu-
ropa buscavam os seus saberes acadêmicos, podem nos forne-
cer pistas para refletirmos sobre o papel da literatura européia
através de seus clássicos, a exercerem no Brasil o fortalecimen-
to do referencial branco.
Politicamente as idéias da elite brasileira do início do sé-
culo XX, tiveram campo para se expandirem e estarem sendo
difundidas em outros espaços. Um desses espaços a serem ana-
lisados é a escola. Como nos mostra Nascimento:

As conseqüências do preconceito racial e do euro-


centrismo no ensino não atingem apenas a criança
afro-brasileira. Afeta a população infantil como um
todo, pois a experiência histórica, filosófica e cultu-
ral da maioria brasileira de origem africana constitui
um dos alicerces da civilização brasileira e da identi-
dade nacional. Omitindo-a, distorcendo-a e menos-

112 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


prezando-a, o sistema educacional acaba privando a
criança brasileira de sua verdadeira herança cultural
nacional, além de lhe incutir complexos de inferiori-
dade (as crianças negras) e superioridade (nas crian-
ças brancas) (NASCIMENTO, 1991, p. 11).

A instituição de ensino foi um dos celeiros do ideário do


branqueamento no Brasil. A política educacional brasileira,
assim como os materiais de uso didático foram profícuos em
propagar e fortalecer o referencial de branquitude. Ao negro
coube o lugar relegado a marginalização social. Ainda estamos
na luta no combate ao racismo nesses instrumentos pedagógi-
cos. Algumas escolas públicas estão discutindo seus currículos
e planejamentos tornando-os mais críticos, autorais e antidis-
criminatórios.
A nossa literatura infanto-juvenil afro-brasileira atual vem
ganhando espaço e sendo escrita por autores que buscam a in-
tegração Brasil-África, demonstrando a origem étnico-social
dos sujeitos negros. A criança brasileira que tem contato com
essas histórias se vê na maioria das vezes representada sem es-
tereótipos ou caricaturas.
Histórias cotidianas, em que são incluídas auto-estima, ca-
pacidade, beleza, família e a ancestralidade, origem e o referen-
cial identitário. São histórias para serem lidas por todos, não só
por negros. A questão do referencial, ou seja, para quem se des-
tinam as histórias, é um ponto importante nessa discussão. Em
um certo momento vimos que os clássicos europeus conquista-
ram um espaço no campo educacional muito significativo lido
por todos, desconfiamos das intenções dessa conquista literá-
ria e o espaço que ela ocupa na vida das pessoas. A literatura
afro-brasileira especificamente precisa ocupar e conquistar o
espaço onde todos leiam e percebam o referencial de origem
identitária a qual se refere e que os negros principalmente se
identifiquem.

CONCLUSÃO
Tomando a escola como um dos espaços privilegiados de crí-
tica e discussão, podemos dimensionar a sua complexidade

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 113


enquanto espaço, tempo e múltiplas relações. É um espaço
complexo porque ali estão juntos, em uma mesma dimensão,
sujeitos que movimentam a dinâmica escolar e podemos pen-
sar que cada sujeito traz em si uma rede complexa de histórias,
conhecimentos e experiências que o torna único e diferente,
dentro de um espaço que uniformiza. Quer dizer, ao mesmo
tempo em que a escola é plural em sua composição orgânica,
ela é uniforme em sua composição discursiva, no currículo, por
exemplo. É contraditória essa afirmação, porque a escola não
parece ver a complexidade dos sujeitos e por isso ou na maioria
das vezes, esses sujeitos são ignorados em detrimento de um
discurso curricular que procura igualá-los, tornando-os sem
face, sem história.
Uma das questões produzidas nesse trabalho e que não
traz nenhuma novidade na discussão, é sobre o currículo mais
voltado para a nossa história. Ao longo dos anos, o currículo foi
sendo repensado e refeito pelas instâncias públicas e governa-
mentais, mas dificilmente essa mudança mexeu na essência da
questão racial do nosso País. O currículo brasileiro sempre es-
teve preso a uma concepção de história de colonização, que por
sua vez reproduz de forma hegemônica e negativa, através de
seu discurso, a ancestralidade da sociedade brasileira. Estamos
falando aqui da instancia escolar, essa reprodução também
acontece sob outros mecanismos instrutivos. Tudo isso soma-
do as estatísticas e números que cruzados com o fator social
revelam a cor da desigualdade, da pobreza e da exclusão.
Várias são as fontes de dados e pesquisas que demonstram
através de gráficos a situação de negras e negros brasileiros em
diversificados setores sociais, essa denúncia que já vem sendo
feita a muitas décadas não era novidade para ninguém, princi-
palmente para essa parcela da sociedade que mergulhada no
discurso ideológico da democracia e da igualdade, vivenciam e
sentem exatamente o contrário, a falta de democracia e a desi-
gualdade.
Isso tem se refletido também na escola. Estatísticas de re-
provação e evasão escolar evidenciam o crescimento assusta-
dor dessa situação. Durante muitas décadas a culpa tem sido
do aluno pela sua reprovação ou pelo abandono escolar, em um

114 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


discurso que tenta isentar a escola de qualquer responsabilida-
de. Esse discurso é usado para alimentar a hegemonia do status
quo e o grande foco que há na sociedade, de que o hiato social
tem cor, ou seja, os negros e as negras estão sendo impedidos
de estarem pleiteando na sociedade seu espaço de direito. Aos
negros e negras que ascendem socialmente, ainda lhes recai o
discurso da “sorte”. Na escola isso não foi diferente. Como ou-
trora dito, a escola é um espaço de uniformização do discurso
hegemônico, onde age discriminadamente desfavorecendo as
negras e os negros ali colocados.
A educação anti-racista não é mais uma utopia de grupos
de negros de vozes isoladas. Ela é uma realidade, ainda que ca-
minhe a passos muito lentos e que ainda não gere em todas as
escolas fortes discussões e fortes movimentos anti-racistas, an-
tipreconceito, antidiscriminação. É preciso que o olhar crítico,
seja uma das ferramentas para a desconstrução dos estereóti-
pos, das barreiras e dos preconceitos, dos quais muitas vezes
não nos damos conta que guardamos.
Hoje, ainda convivemos com os disfarces omissos do sis-
tema educacional, com um discurso renovado da pluralidade
cultural em nossa sociedade. As vozes que anteriormente não
eram ouvidas através de suas denúncias, ajudadas pela consta-
tação estatística, nesse momento já deixam em estado de alerta
aqueles que ainda insistem em ignorar o racismo, o sexismo e
as desigualdades. Ainda temos uma política educacional que
caminha a passos lentos quando se trata de rediscussão curri-
cular e principalmente, a sua democratização.
Como vimos na história curricular, o poder de dominação e
a sua manutenção são alimentados pelo desfavorecimento das
maiorias, fazendo-nos acreditar em um referencial que nem de
longe insere a questão racial e a pluralidade cultural. A educa-
ção escolarizada tornou-se mantenedora dessa dominação que
se reflete nos currículos onde são renovados os preconceitos, a
discriminação, o mito da democracia racial, a marginalização
das culturas. Nesse sentido concordo com Tomaz Tadeu da Sil-
va, quando nos diz que:

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 115


Diferentes currículos produzem diferentes pessoas,
mas naturalmente essas diferenças não são meras di-
ferenças individuais, mas diferenças sociais, ligadas
à classe, à raça, ao gênero. Dessa forma, uma histó-
ria do currículo não deve estar focalizada apenas no
currículo em si, mas também no currículo enquanto
fator de produção de sujeitos dotados de classe, raça,
gênero (TADEU, 1996, p. 81).

A reflexão de Tomaz Tadeu da Silva nos ajuda a pensar a


necessidade para a revisão curricular, isso não quer dizer que
não houve transformações ao longo dos anos, o que pudemos
constatar nas perspectivas de currículo, desenvolvidas por To-
maz Tadeu da Silva.
Em um esforço para reverter esse quadro anteriormente
descrito, está em vigor, sancionada pelo governo federal brasi-
leiro a Lei no 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Edu-
cação Básica, visto nesse trabalho como mais uma ferramenta
para a construção de uma educação anti-racista, no que diz:

asseguram o direito à igualdade de condições de vida


e de cidadania, assim como garantem igual direito
às histórias e culturas que compõem a nação brasi-
leira, além do direito de acesso às diferentes fontes
da cultura nacional a todos os brasileiros (Lei no
10.639/2003 – Parecer no CNE/CP 003/2004).

Esse parecer que teve a ilustre participação da professora


Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, militante de longa data
e exímia combatente do discurso hegemônico do racismo, do
preconceito e das desigualdades, nos mostra instaurado atra-
vés da lei, a luta bem como as reivindicações e propostas do
Movimento Negro e de todos aqueles que direta e indiretamen-
te contribuíram para terem finalmente suas denúncias trans-
formadas em lei, nesse caso para os currículos escolares.
Acreditando que a revisão curricular seja um meio que pos-
sa contribuir para a formação de sujeitos críticos e sua mudança
no quadro político e social, é preciso que esteja contido no cur-
rículo escolar a educação anti-racista e a cultura afro-brasileira

116 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


de forma a efetivar a mudança no processo escolar, tornando-o
referencial histórico e identitário, visando a afirmação do au-
toconceito e auto-estima e que contribua para a construção de
projetos de vida e para o rompimento das barreiras racistas de
impedimento.
A educação escolarizada tem seu papel relevante na for-
mação de cidadãos críticos e conhecedores dos seus direitos
civis, políticos e sociais. Nesse sentido é primordial que os edu-
cadores, os teóricos progressistas e pesquisadores dessa área,
aproximem seus discursos no que se refere a diversidade racial
e cultural do país e neste sentido unam forças para que o estudo
da cultura afro-brasileira mereça uma acuidade maior, equili-
brada e cuidadosa.
Uma das barreiras a serem rompidas e sem dúvida nenhu-
ma exige um grande esforço, é a crítica ao discurso das narrati-
vas hegemônicas e a manutenção do status de dominação. Para
que o conhecimento seja um dos mecanismos para esse rom-
pimento, é preciso que seja democratizado, descentralizado do
poder que o torna válido em função de uma cultura dominante,
onde o negro não é representado, pelo menos de forma a iden-
tificar-se. Não só o conhecimento como um dos mecanismos,
o currículo também se constitui nessa perspectiva, como mais
um instrumento de força para a construção de um discurso di-
ferenciado.
Defendemos a construção de um currículo que contemple
e respeite as diversidades culturais e raciais e que seja constituti-
vo de múltiplos saberes, devendo ser confrontado e implemen-
tado com estudos históricos e científicos, afim de articulá-lo de
maneira dialética, crítica e com valores identitários, valores cul-
turais, projetos, entre outras produções, que certamente cons-
truirá o mais precioso dos sentimentos, o de cidadania.
A escola não pode ser a única instância a ser criticada, mas
com certeza, precisa ser vista e entendida na sua complexidade
e também sob o ponto de vista crítico. Ela é um dos pontos de-
cisivos na vida dos sujeitos, portanto é preciso que a escola olhe
para dentro de si mesma e perceba o que de fato está fazendo
pelo aluno negro, o que de fato e de concreto está promovendo

CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO 117


para esses sujeitos, a produção de conhecimentos ou a repro-
dução de um currículo colonialista.
Nos cabe usar essas perspectivas para olharmos as nossas
práticas cotidianas, seja dentro de escolas, como agentes em
comunidades, até mesmo em posições ou funções em que di-
retamente não haja a relação professor e aluno. O que tem de
ficar privilegiado é o espaço para a crítica e a reflexão sobre a
questão do negro na sociedade, na literatura e na escola. Tor-
nando a literatura, por exemplo, como algo a se tornar objeto
de dúvida e crítica no momento em que não atende a pluralida-
de racial em um espaço multicultural, que é a escola. Privilegiar
também a igualdade de oportunidades, as variadas culturas e
principalmente a busca pelo rompimento do discurso político
e ideológico de impedimento da ascensão do cidadão negro.

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120 CURRÍCULO E MULTICULTURALISMO: O NEGRO NA EDUCAÇÃO


ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO
RACIAL NO SÉCULO XIX
Andréa Santos Pessanha

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-


ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana inclui André Rebouças como uma trajetó-
ria a ser analisada por professores e estudantes da educação
básica,44 objetivando o combate ao racismo e à discriminação
através do conhecimento da participação dos africanos e seus
descendentes na História do Brasil.
André Pinto Rebouças foi renomado engenheiro, professor
e abolicionista do final do século XIX. Integrante das elites inte-
lectuais do Rio de Janeiro, sua vida foi marcada por passagens
de aceitação e de rejeição. Neto por parte de pai do alfaiate por-
tuguês Gaspar Pereira Rebouças e da liberta Rita dos Santos,45
viveu momentos de prestígio, quando, por exemplo, foi o enge-
nheiro responsável pelas obras das docas da Alfândega do Rio
de Janeiro, e de rejeição quando a Escola Militar e de Aplicação
negou subsidiar sua ida à Europa para aprimoramento profis-
sional. Sobre este fato, anotou em seu diário: “por um maldito
preconceito de cor, negaram a mim e ao Antônio o prêmio de
viagem à Europa”.46
Nasceu em 13 de janeiro de 1838, na cidade de Cachoeiras,
província da Bahia, filho de Antônio Pereira Rebouças, advo-
gado autodidata e conselheiro do Império, e de Carolina Pinto

44. Para um estudo específico da trajetória e do pensamento de André Rebou-


ças, ver de nossa autoria Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a
vida e as idéias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet/Uniabeu, 2005.
45. GRINBERG, K. O fiador dos brasileiros. Cidadania, escravidão e direito ci-
vil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, p. 25.
46. VERÍSSIMO, J. I. André Rebouças através de sua autobiografia. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1939. p. 8

ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX 121


Rebouças. Nas décadas de 1950 e 1960, preparou-se ao lado do
irmão Antônio Pereira Rebouças Filho, dupla que ficou conhe-
cida como “os irmãos Rebouças”, para os concursos da área mi-
litar no Rio de Janeiro.“Os irmãos” foram recusados como alu-
nos pela Escola da Marinha. Matricularam-se, então, na Escola
Militar e de Aplicação do Exército, recebendo, em 1860, o grau
de engenheiro militar.
André Rebouças envolveu-se em vários projetos de enge-
nharia, destacando-se obras na fortaleza de Santa Cruz em San-
ta Catarina, orçamento das obras do Porto de São Luís do Mara-
nhão, tentativa de criação das companhias de estrada de ferro,
melhoria no abastecimento de água e nos serviços de esgoto do
Rio de Janeiro. Participou da Guerra do Paraguai, fazendo parte
da Comissão de Engenheiros do Exército.
Ingressou em 1867 como professor da Escola Central, que
posteriormente passou a ser denominada Escola Politécnica –
atual UFRJ. Lecionou diversas cadeiras: Cálculo, Botânica, Zo-
ologia, Estática, Arquitetura, Construção e Resistência dos Ma-
teriais. Sua atividade de engenheiro também ligou-se ao Clube
de Engenharia. Em 1880, foi seu sociofundador e teve diversos
artigos publicados na revista deste Instituto.
A atuação de Rebouças como engenheiro no Rio de Janei-
ro foi intensa. Hoje, sua imagem é mais facilmente associada à
engenharia do que ao abolicionismo, tendo muito contribuído
para isso o fato de seu nome ter batizado um importante túnel
para o trânsito da cidade. Aliás, a homenagem refere-se tanto a
André quanto a Antônio.
Juntamente com o reconhecimento profissional, Rebou-
ças vivia momentos de discriminação no Brasil e no exterior.
Quando esteve nos Estados Unidos da América, na década de
1970, alguns ambientes lhe foram negados. Em Nova Iorque,
por exemplo, encontrou empecilhos para hospedagem, a qual
só foi possível com a interferência do Consulado Brasileiro.
Mesmo assim, havia a restrição quanto a freqüentar o restau-
rante do hotel e dos locais visitados. Em seu diário, registrou
que em razão do “prejuízo da cor” ficou dois dias sem realizar
refeições.47

47. Idem, ibidem, p. 245-6.

122 ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX


Rebouças relacionou-se com setores privilegiados da so-
ciedade brasileira. Amigo de D. Pedro II, de ministros do Impé-
rio, de Conde d’Eu, Joaquim Nabuco, Alfredo Taunay, padrinho
do filho primogênito de Carlos Gomes – que foi batizado como
Carlos André Gomes – o abolicionista foi um homem das elites
do oitocentos.
O visconde Alfredo Taunay48 afirmou que sua amizade com
Rebouças datava da década de 1970 e era estimulada por um
gosto musical comum, ou melhor, por uma paixão contagian-
te.49 Não somente as preferências musicais e literárias de Re-
bouças estavam de acordo com os padrões ditos, então, civili-
zados. Sua aparência seguia a moda européia. Usava pequeno
bigode e o cabelo curto cortado de lado. Falava fluentemente o
italiano, o inglês e o francês. Esta última língua foi muito utili-
zada nos artigos que publicou na imprensa do Rio de Janeiro.
Taunay informa que de 1870 a 1880, André Rebouças com-
pareceu a quase todas as festas da Corte, oferecendo também
em sua casa reuniões e bailes em que participavam “as pessoas
mais finas e aristocráticas do Rio de Janeiro”. Segundo o viscon-
de, o abolicionista tentava de todos os modos “suplantar e ven-
cer as prevenções da cor”. A historiadora Emília Viotti da Costa
comentou um baile em que D. Pedro II, sabendo que Rebouças
não havia conseguido alguém para formar um par, solicitou à
Princesa Isabel que dançasse com ele.50
Este fato é interessante, pois, em outras ocasiões, o aboli-
cionista não teve dificuldade de encontrar uma acompanhante.
Vale pensar na sua posição social em cada momento. Ao longo
de seus diários,51 relembra bailes nos quais não teve dificuldade
para dançar. Em alguns desses momentos, estava em especial
posição, pois era o engenheiro responsável por obras portuá-

48. Vice-presidente da Sociedade Central de Imigração, deputado por Santa Ca-


tarina e escritor.
49. REBOUÇAS, A. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo
77, parte 2, p. 118, 1914.
50. COSTA, E. V. da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo:
Brasiliense, 1987. p. 259.
51. Os diários manuscritos referentes aos anos de 1883, 1884, 1885, 1887, 1888 e
1893 constam no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX 123


rias, recebendo, inclusive, vários pedidos de caráter pessoal de
integrantes da Corte.
À época das obras das companhias das docas da Alfânde-
ga, Rebouças tornou a fazer referência que sua cor era coloca-
da como uma barreira às suas pretensões profissionais em um
contexto de concorrência pela execução dos serviços urbanos.
Em seu diário, fez menção a uma carta anônima enviada ao
Conde de Estrela, seu amigo pessoal e colaborador em empre-
endimentos, em que o autor solicitava o afastamento do conde
da reforma “por conta da qualidade mulata” de Rebouças.
A partir deste percurso do engenheiro, é possível pensar-
mos como ele se via e era visto pela sociedade de então. En-
tendemos identidade social por sua conotação essencialmente
contrastiva.52 Só existe identidade quando um grupo em con-
tato com outro de características diferenciadas, podendo ser
étnicas, de classes e de gêneros, faz a distinção entre o nós e
os outros, entre nós e o diferente. Os agentes sociais, confor-
me suas experiências, interesses e momento histórico, podem
transitar entre os campos, pois as identidades sociais são dinâ-
micas, plásticas. Assim, André Rebouças, integrante das elites
intelectuais do Rio de Janeiro, poderia adotar uma fala de re-
presentante dos africanos, dependendo de como a questão da
alteridade era sentida.
Partindo da carta enviada ao Conde de Estrela, Rebouças
era considerado mulato pelos contemporâneos. A imagem que
ele tinha de si também era essa, reforçada entre outras passa-
gens com suas palavras a respeito da composição do movimen-
to abolicionista da cidade do Rio de Janeiro: “Só três mulatos no
Partido Abolicionista. É a minha maior dor!”53
Na segunda metade do século XIX, a cor não se referia sim-
plesmente à tonalidade da pele, adquiria um sentido de qua-
lificação social. Em geral, quando se usava os termos negros

52. FAULHABER, P. Identidade étnica em discussão. In: D’INCAO, M. A.; SILVEI-


RA, I. M. (Org.). Amazônia e a crise da modernização. Belém: M.P.E.G., 1994. p.
332.
53. REBOUÇAS, A. Diário e notas autobiográficas. Rio de Janeiro: José Olympio,
1938. p. 295.

124 ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX


e pretos eram como sinônimos de escravos.54 Desta maneira,
compreende-se que por mais escura que fosse a pele de Rebou-
ças, ele não seria tratado por negro ou preto. Aliás, estes ter-
mos eram pelo abolicionista para referir-se a escravos. Assim,
o termo mulato possuía a função de reforçar sua condição de
homem livre.
Monarquista convicto, a ponto de exilar-se com o 15 de
Novembro, afirmou, em 1891, que seu sentimento de gratidão
ao Imperador simbolizava a própria devoção da “raça africana”.
Assim, neste momento, após a Proclamação da República, hou-
ve uma identificação do abolicionista com os africanos. Ele era
um descendente de liberto próximo à família imperial:55

Meu Mestre e meu Imperador. – Não passará o ter-


ceiro aniversário da Libertação da Raça Africana no
Brasil sem que André Rebouças dê novo testemunho
de sua filial gratidão ao Mártir sublime da Abolição.

Sinto-me feliz por ter sido escolhido pelo Bom Deus


para representar a Raça Africana a Vossa Majestade
Imperial e à Princesa Redentora, e alegro-me repe-
tindo-o incessantemente.56

Desta forma, uma aproximação de Rebouças com os afri-


canos se faz sentir em sua trajetória. Foi na costa africana que
morreu em 1898, em queda de um penhasco, na qual é levan-
tada a possibilidade de suicídio. Defendemos que a construção
desta identidade foi sedimentada por todos os episódios em
que a cor restringiu seus espaços, colocava-o entre os não bran-
cos. Esta trajetória está articulada a suas propostas para o Brasil
do final do oitocentos.
Rebouças deve ter vivido intensos conflitos. Homem da
ciência, adepto das teorias evolucionistas, que afirmavam a
inferioridade de negros e mestiços, tinha de equacionar sua

54. MATTOS, H. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste


escravista – Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p 93-104.
55. NABUCO, J. Minha formação. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 201.
56. Idem, ibidem. p. 201.

ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX 125


existência nas elites às acertivas das correntes científicas para o
Brasil do pós-abolição.
Ele viveu no período de apogeu da ciência. Na Europa, as
descobertas científicas reforçavam a crença inexorável no pro-
gresso da humanidade, expressando também sua materiali-
zação. O desenvolvimento da Química, da Física, da Biologia,
o aumento da rede de transportes e comunicação, enfim, as
maravilhas do mundo industrial e capitalista confirmavam a
pujança da sociedade européia. O saber científico deveria se
sobrepor às demais formas de conhecimento para que o pro-
gresso social fosse contínuo. No Brasil, a Engenharia, profissão
de Rebouças, representava a área que tornava visível o desen-
volvimento do país, com as construções de ferrovias e portos.57
A partir de estudos no campo da Biologia, Charles Darwin
apresentou o processo de evolução das espécies e de seleção na-
tural, onde os mais fortes e os mais adaptados ao meio predomi-
nariam. Herbert Spencer, em sua leitura do darwinismo, ofereceu
base para criação de um racismo a partir de uma razão científica.
As idéias desses teóricos foram utilizadas para se pensar as socie-
dades e organizações humanas, sendo as diferenças físicas e cul-
turais entre os diversos povos interpretadas mediante o conceito
de seleção natural.58 Da mesma forma, que ocorria com outros
animais, entre os homens, as espécies superiores também deve-
riam dominar as menos evoluídas. No entendimento da época, a
dominação dos povos da Ásia e da África pelos europeus era uma
etapa da evolução das sociedades.
A partir da legitimidade que a ciência, vista de acordo com
os padrões iluministas, concedia à noção de raças humanas e a
sua hierarquização, consolidou-se o etnocentrismo científico.
Os brancos e a cultura ocidental ao controlarem outros povos,
estariam ajudando no processo de desenvolvimento da vida na
Terra.59 A etnografia e Antropologia européia do século XIX re-

57. HARDMAN, F. Foot. Trem fantasma. A modernidade na selva. São Paulo:


Companhia das Letras, 1988.
58. LÈVI-STRAUSS, C. Raça e história. 4. ed. Lisboa: Estampa, 1989.
59. “Temos aqui o ponto central em torno do qual se organizaram as expedições
universais, verdadeiros rituais de massa em que os grandes impérios se afirma-
vam segundo sistemas classificatórios tanto para os produtos de exibição como
para os povos e nações participantes. Assim, povos e culturas expostos obede-

126 ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX


forçavam o discurso da dominação sobre a África e a Ásia. Além
dos aspectos econômicos e políticos, a conquista feita pelos po-
vos, vistos como os mais capazes, tinha uma dimensão de nova
consciência planetária, pois se tratava de uma atitude generosa
dos civilizados ao levarem conhecimento, cultura, e organiza-
ção aos considerados primitivos. A idéia de superioridade da
raça branca justificava os meios e os fins da dominação colo-
nialista.
A noção de raça quebrou a unicidade da condição huma-
na. Quem viveu no século XIX tinha a certeza de que os homens
não integravam a mesma espécie. Os grupos humanos foram
compreendidos como pertencentes a raças distintas. Assim,
atos que implicavam em subordinação, discriminação, desi-
gualdades e violência tinham por base a existência de espécies
diferenciadas, não apenas física, como também intelectual e
moralmente.
De acordo com a linha evolutiva, o tipo humano que esti-
vesse bem próximo ao macaco seria o mais atrasado. Na leitu-
ra predominante, o africano foi, em essência, esse elemento. A
concepção de inferioridade dos povos da África ou a dos asiá-
ticos dependia dos critérios de quem julgava as semelhanças
com os tipos que antecederam ao atual homem branco.60
Considerando o patrimônio genético, avaliava-se a fase e o
potencial de desenvolvimento dos povos. O tema da alteridade,
a crença nas diferentes raças, a hierarquização promovida pela
ciência fizeram parte do “narcisismo europeu e sua busca de
fronteira entre si e o outro”,61 contestavam os ideais igualitários

cendo a uma organização temporal eram classificados em selvagens, bárbaros


e civilizados; em uma palavra, o planeta foi dividido entre uma raça superior
glorificada por uma missão civilizatória auto-atribuída e raças inferiores.” In:
HERNANDEZ, L. L. A África na sala de aula. Visita à História Contemporânea.
São Paulo: Selo Negro, 2005, p. 131-132.
60. De acordo com Eric Hobsbawm, “O argumento é frágil, mas era um apelo
natural para aqueles que queriam provar a inferioridade racial, por exemplo,
dos negros em relação aos brancos – ou melhor, de qualquer um em relação a
brancos. (A forma de macaco poderia ser discernida pelo olho do preconceito
até nos chineses e japoneses, como testemunham muitos desenhos da época.)”
In: A era do capital. 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 275.
61. A África na sala de aula. p. 134.

ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX 127


das revoluções burguesas e sustentavam o racismo científico.
Para o historiador Eric Hobsbawm:

O racismo atravessa o pensamento de nosso período


em uma extensão difícil de julgar hoje, e nem sempre
fácil de compreender. (Por que, por exemplo, o hor-
ror generalizado da miscigenação e a crença quase
universal entre os brancos de que os mestiços herda-
vam precisamente as piores características das raças
de seus pais?) Exceto pela sua conveniência enquan-
to legitimação da dominação do branco, sobre indi-
víduos de cor, ricos sobre pobres; (...) O liberalismo
não tinha nenhuma defesa lógica diante da igualda-
de e da democracia, portanto, a barreira ilógica do
racismo foi levantada: a própria ciência, o trunfo do
liberalismo, podia provar que os homens não eram
iguais.62

A partir de 1870, as teorias raciais receberam grande núme-


ro de adeptos no Brasil, coincidindo com o início da legislação
emancipacionista.63 O término da escravidão desmontaria uma
dada maneira de se hierarquizar a sociedade, passando a ine-
xistir dois estados básicos de distinção social: escravo e livre.
A rigor, desde meados do século XIX, a dicotomia negro/bran-
co, referindo-se a escravo/livre, esvaziou seu significado com a
progressiva conquista de alforria. Neste momento, quem deve-
ria ser trabalhador e/ou cidadão no pós-abolição era colocado
em termos raciais. O mulato André Rebouças participou de tais
discussões, fazendo uso, obviamente (como um homem de seu
tempo) dos argumentos oferecidos pelas teorias raciais.
Mas como compatibilizar sua origem com os pressupos-
tos que atestavam a incapacidade intelectual dos africanos e
seus descendentes? Como conviver com as teorias raciais? Seu
projeto de organização social não era original em si, porém,
respondia às questões suscitadas pela sua experiência pessoal,
teórica e profissional.

62. HOBSBAWM, E. A era do capital... p. 277.


63. SCHWARCZ, L M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão
racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

128 ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX


Na década de 1980, Rebouças voltou-se para a questão de
eliminação do cativeiro, que em muito se articulava à preocu-
pação modernizadora da sociedade do engenheiro. Seu ativo
envolvimento com a campanha antiescravista da cidade do Rio
de Janeiro pode ser comprovado pelo número de artigos publi-
cados na imprensa, pela atuação na Sociedade Brasileira Con-
tra a Escravidão, na Confederação Abolicionista, na Sociedade
Central de Imigração e nos meetings abolicionistas.
A estratégia de Rebouças para alcançar o fim do cativeiro
era o convencimento através das palavras aos segmentos pro-
prietários das vantagens do trabalho livre para toda a sociedade.
Por esta lógica, entendemos porque a imprensa foi por excelên-
cia seu espaço de luta.64 Ele procurava distanciar-se dos grupos
abolicionistas que apoiavam a ação mais direta dos escravos:
“Na grande obra da abolição, nós jamais nos envolvemos com
os escravizados.”65
A ação abolicionista, por sua própria natureza, fez emer-
gir, no cenário nacional, o debate sobre a transição do trabalho
escravo ao livre. O objetivo de assegurar a produção, em um
contexto após a libertação da mão-de-obra até então utilizada
em larga escala na agricultura, uniu abolicionistas e escravistas.
Discutia-se, entretanto, qual a estratégia a ser adotada e qual
era o trabalhador que mais se adequaria às novas condições de
trabalho. Tal debate tinha como ponto subjacente a polêmica
sobre em que bases deveria ser construída a cidadania no Bra-
sil, e por outro lado, quais segmentos deveriam pertencer à na-
ção que as elites pretendiam formar.
Os discursos de Rebouças favoráveis à abolição da escra-
vatura abarcava um projeto de transformações agrárias, o qual
estaria atento, a seu ver, as condições essenciais para o advento
da civilização e às exigências feitas pela modernidade do sé-
culo XIX. Ao abordar a organização econômica da sociedade
brasileira e sugerir reformas na agricultura, o abolicionista foi

64. Um estudo sobre a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro, encontramos


em MACHADO, H. F. Palavras e brados: a imprensa abolicionista do Rio de Janei-
ro. 1880-1888. (Tese de Doutorado) – São Paulo: USP, 1991. mimeo.
65. NABUCO, C. A vida de Joaquim Nabuco. São Paulo: Companhia Editora Na-
cional, 1928. p. 155.

ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX 129


revelando sua concepção a respeito do trabalho, da estrutura
fundiária, dos escravos, dos libertos e dos imigrantes.
Sua proposta para o Brasil tinha dois pontos fundamen-
tais e intrinsecamente articulados: abolição da escravatura e
fragmentação da grande propriedade. Estas duas medidas re-
presentavam uma atitude, segundo ele, verdadeiramente ca-
pazes de colocar o Brasil na rota das nações mais adiantadas.
A adoção isolada de uma delas não traria o aperfeiçoamento
desejado. A existência da escravidão posicionava o Brasil em
um estágio inferior ao das nações em que a mão-de-obra livre
constituía o regime de trabalho predominante. Por seu turno,
a fragmentação dos latifúndios, com conseqüente constituição
de pequenas propriedades, estimularia o crescimento econô-
mico através da valorização do trabalho. As terras ociosas de-
veriam ser taxadas de forma a desestimular sua conservação. O
trabalhador seria dono da terra que cultivava, atuando, assim,
com mais “dedicação” e “amor”.
As elites intelectuais do oitocentos, que debatiam a tran-
sição do trabalho escravo ao livre, construíram um discurso
de favorecimento da mão-de-obra imigrante em detrimento
do trabalhador nacional. O negro era visto por muitos como
incapaz de adaptar-se às condições de trabalho livre em virtu-
de do seu passado como mão-de-obra escrava. Segundo parte
destas elites, a liberdade era para os negros compreendida em
sua oposição ao trabalho. Neste sentido, liberdade confundia-
se com vadiagem. Por seu turno, o imigrante europeu já era ha-
bituado ao trabalho livre e já tinha introjetado valores positivos
em relação à labuta.
Desta forma, as elites intelectuais construíram dois mo-
delos de trabalhadores. Um parâmetro que entendia os ne-
gros como dotados de todos os vícios do passado escravista.
A abolição não implicaria em aperfeiçoamento imediato da
raça negra, pois ao libertá-la das correntes do cativeiro, apenas
deixava-a livre para ameaçar a “boa sociedade” devido às suas
aptidões, que se afastavam dos valores relacionados ao traba-
lho, à ordem, à moral e à família. Do outro lado, estavam os imi-
grantes que simbolizavam o desenvolvimento e a prosperidade
econômico-social, pois possuíam as virtudes necessárias para o

130 ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX


regime de trabalho livre e desejavam a obtenção de riqueza por
meio do trabalho.
Tais argumentações eram portadoras, por excelência, de
um projeto racista. Paralelamente ao imaginário de medo que
via o negro como elemento de atraso, instabilidade e perigo so-
cial, solidificou-se um cenário de paz e progresso que tinha o
imigrante europeu como agente.66
O sentido imigrantista não se circunscrevia às necessida-
des de mão-de-obra, abrangia também um ideal de construção
de uma nacionalidade. O Brasil que se pretendia formar era li-
vre e de cidadãos brancos, ou que progressivamente assim tor-
nar-se-iam. Os nacionais eram desqualificados como trabalha-
dores e cidadãos. Para estes, o presente não apresentava muita
perspectiva, porém o futuro poderia ser promissor através de
uma regeneração pensada tanto em termos biológicos quanto
culturais.
O pensamento de André Rebouças reforçou as afirmações
no tocante à relevância da imigração. A entrada de europeus
não representava pura e simplesmente o recurso de novos bra-
ços para a agricultura, tinha um sentido de contribuição das
“raças mais avançadas” para a formação da nação brasileira:

Cumpre não confundir o problema da imigração


com o da substituição dos braços necessários à gran-
de lavoura. Esta quer salariados, e chega até a prefe-
rir os de raça inferior. O escopo da imigração, porém,
é de ordem muitíssimo mais elevada; busca orga-
nizar a grande nacionalidade brasileira, senhora da
maior e melhor parte do continente Sul-Americano.
Exige, por isso mesmo, a maior seleção nestes ele-
mentos.67

Em outra passagem, o propagandista explicitou que grupos


representavam, para ele, “as raças mais ativas e inteligentes da
espécie humana”. Alegando que o estágio de desenvolvimento
das raças não implicava no direito de exploração das que se en-

66. AZEVEDO, C. M. M. Onda negra, medo branco. O negro no imaginário das


elites. Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
67. Gazeta de Notícias, 23 de dezembro de 1883.

ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX 131


contravam em níveis menos avançados, Rebouças revelou que
os escravos, portanto, os negros, eram os mais atrasados na li-
nha evolutiva social:

O primeiro escopo reúne no Partido Abolicionista


todos os verdadeiros filantropos; todos os que crêem
na Igualdade e na Fraternidade de todos os membros
da Família Humana; todos os que compreendem que
a cor não negra não é um estigma, que a cor branca
não é um privilégio de exploração das raças menos
avançadas na evolução social (grifo nosso).68

Em 1884, a Sociedade Central de Imigração69 apresentou


no Parlamento um texto de autoria de André Rebouças. O do-
cumento foi assinado por todos os membros desta associação e
clamava pela imigração européia por favorecer a elevação mo-
ral do país:

O que a Sociedade Central de Imigração ardente-


mente deseja, é que o acréscimo de população se dê
nas melhores condições e com as raças mais salien-
tes pela sua inteligência, iniciativa e atividade.70

Dito isto, a visão de Rebouças sobre os negros não ficou


isenta dos estereótipos veiculados no período. O objetivo de
aprimorar o Brasil por meio do exemplo europeu, implicava
que os brasileiros não caminhariam sozinhos, pois eram menos
capazes que demais nacionalidades:

Colocar o imigrante ao lado do liberto; ambos pro-


prietários de terra; um, ensinado a construir família,
a educar os filhos, a exigir o conforto europeu na sua
choupana; a iniciar culturas novas de trigo, de vinho

68. CONFEDERAÇÃO Abolicionista. Abolição imediata e sem indenização. Rio


de Janeiro: Typ. Central, 1883. p. 20.
69. Foi fundada em novembro de 1883, na cidade do Rio de Janeiro, com a pre-
sença do imperador D. Pedro II. Até o fim de sua atuação, em 1891, o jornal A
Immigração cumpria a tarefa de divulgar os ideais do grupo. Sobre o assunto,
verificar PESSANHA, A. S. Em nome do progresso. In: Revista Nossa História,
ano 2, n. 24, out. 2005.
70. Gazeta de Notícias, 4 de junho de 1884.

132 ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX


e de seda; o outro, dando ao recém-chegado a rotina
da velha lavoura, animando-o na labuta com a flo-
resta virgem (...).71

Essas palavras do abolicionista são reveladoras de sua con-


cepção a respeito do escravo. Se é o imigrante que vai ensinar
a construir famílias e a educar os filhos, implica que os negros
não têm relações familiares ou se têm estão indevidamente
sedimentadas. Assim, a concepção de Rebouças sobre a vida
escrava estava em consonância com o “olhar branco” para os
“lares negros”.72
Ele não discordava que os negros eram mais atrasados na
escala evolutiva social que os brancos europeus, mas seu apri-
moramento era possível mediante a adoção de certas medidas.
A discussão sobre a adaptação ou não dos ex-escravos, dos
nacionais, ao trabalho livre era solucionada por Rebouças por
meio da revisão da estrutura agrária:

Em nossa pátria a fórmula lavrador-proprietário se


subdivide:

1. em imigrante proprietário; 2. em colono nacional


proprietário; 3. em liberto proprietário.

O imigrante proprietário é o elemento que trabalha-


mos para introduzir dos países da Europa mais avan-
çados na evolução social.

O colono nacional proprietário ser-nos-á fornecido


pela educação, pelo exemplo e pelo estímulo (...).

O liberto proprietário será dado pela abolição.(...)


Com todos os estímulos a um ser livre e independen-
te, trabalhando efetivamente para assegurar o seu
bem-estar e o futuro dos seus filhos.73

71. Cidade do Rio, 2 de julho de 1888.


72. SLENES, R. W. Lares negros, olhares brancos: histórias das famílias escravas
no século XIX. In: LARA, S. (Org.). Escravidão. Revista Brasileira de História, São
Paulo: ANPUH/Marco Zero, v. 8, n. 13, 1988.
73. Jornal do Comércio, 30 de abril de 1884.

ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX 133


A valorização do trabalho só tornar-se-ia possível com a
possibilidade de acesso à terra. A exclusão dos nacionais e, con-
seqüentemente, a exploração por parte dos latifundiários redu-
ziam o entusiasmo dos brasileiros pelas atividades produtivas,
incentivando o florescimento dos “defeitos morais”, favorecen-
do o vício e a vadiagem.
Rebouças pensava que a presença de imigrantes europeus
cumpria duas funções de caráter econômico e social: uma di-
retamente voltada para a construção do Brasil desejado, era o
ideal de imigrante-cidadão; outra indiretamente ligada à orga-
nização da sociedade, que se referia ao exemplo “que as raças
mais ativas e inteligentes” ofereceriam aos nacionais.
Rebouças defendia que o sucesso da agricultura estava
na figura do lavrador-proprietário, que deveria ser constituí-
do pelo liberto, pelo colono nacional e pelo imigrante. A nação
brasileira deveria ser composta, para o abolicionista, assim, por
brancos e negros, que seguiriam o caminho do aperfeiçoamen-
to material, intelectual e moral em consonância com os princí-
pios evolucionistas.
Como vimos, afirmou que “a cor nega não é um estigma”. Ele
próprio era um exemplo de que era possível aos descendentes
de africanos o desenvolvimento de suas potencialidades. Nesta
busca de aprimoramento para os negros, a atenção deveria cen-
trar-se no trabalho e na educação. Para o abolicionista, os negros
já tinham comprovado sua capacidade de crescimento:

Há negros nas universidades, nas academias, nos


colégios e nas escolas; há negros médicos, advoga-
dos, em todas as profissões; há negros deputados e
senadores; há negros padres, em todos os ramos da
religião cristã.

(...) e ninguém ousa mais pôr em dúvida que se possa


educar o negro no mais elevado princípio da ciência
e da moral cristã.74

Desta forma, no pensamento deste abolicionista, junto ao


discurso cientificista sobre as raças, defendendo a imigração

74. O Novo Mundo, novembro de 1879, p. 250.

134 ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX


européia, encontramos posturas liberais. Estas podiam ser ob-
servadas, no ideal liberal do self-made-man, que se consubstan-
ciava no desejo de ascensão e reconhecimento social por meio
de empenho individual, ou seja, de trabalho e de esforço. O eixo
deslocar-se-ia dos aspectos biológicos e raciais para encontrar-
se na ação pessoal em busca de desenvolvimento.
No final dos oitocentos, entre as interações e negociações
possíveis aos indivíduos com seu meio social, constituiu-se o
pensamento de um homem descendente de liberto, pautado
nos valores, nas aspirações e nos padrões culturais das elites
intelectuais do Rio de Janeiro, que selecionou nas teorias raciais
e no liberalismo, os fundamentos para seu projeto de constru-
ção de pátria civilizada, que incluía através do acesso à terra e à
educação os descendentes de africanos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cidade do Rio, 2 de julho de 1888.
Gazeta de Notícias, 23 de dezembro de 1883, 4 de junho de 1884.
Jornal do Comércio, 30 de abril de 1884.
O Novo Mundo, novembro de 1879.
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das elites. Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
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HOBSBAWM, E. A era do capital. 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977.

ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX 135


LÈVI-STRAUSS, C. Raça e história. 4. ed. Lisboa: Estampa, 1989.
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MATTOS, H. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudes-
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PESSANHA, A. S. Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a
vida e as idéias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet/Uniabeu,
2005.
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SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e
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VERÍSSIMO, J. I. André Rebouças através de sua autobiografia. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1939.

136 ANDRÉ REBOUÇAS E QUESTÃO RACIAL NO SÉCULO XIX


TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA
ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA
Claudia Fabiana de Oliveira Cardoso

Um dos temas em destaque no mundo contemporâneo é o da


diversidade, ligado à importante discussão sobre as diferentes
identidades culturais existentes. Reconhecer e valorizar as di-
versas manifestações culturais é fundamental para o diálogo e a
solidariedade entre grupos sociais ou nações. No caso do Brasil,
por sua formação histórica marcada pela presença de diferen-
tes grupos étnicos, é necessário que a história e a valorização de
sua diversidade façam parte da vida social e da construção da
democracia. Um dos objetivos da criação da Lei no 10.639/2003
fundamenta-se exatamente nesse aspecto, porque a matriz
africana na constituição da nossa sociedade esteve sempre à
margem no processo educacional brasileiro, reforçando uma
visão etnocêntrica dessa sociedade, em uma atitude discrimi-
natória e preconceituosa. Assim, se os Parâmetros Curriculares
Nacionais já destacavam a atenção para o ensino da e na diver-
sidade, a referida lei, de 9 de janeiro de 2003, deixa nítido que
o currículo escolar precisa atualizar-se, voltando-se para uma
pedagogia democrática, que contemple os diferentes protago-
nistas da construção da identidade brasileira.
Muitos debates vêm sendo travados por educadores e estu-
diosos de diferentes áreas para o alcance desse objetivo. Entre
eles está a relevância da inclusão do ensino das literaturas afri-
canas de língua portuguesa no currículo da educação básica.
Não levantaremos aqui uma discussão detalhada da questão,
contudo, acreditamos que no ensino da língua portuguesa e
suas literaturas, os textos produzidos pelas diferentes regiões
de língua oficial portuguesa precisam ser considerados. Além
disso, a literatura é fundamental para pensarmos as relações
entre o Brasil e os países africanos de colonização portuguesa.

TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA 137


Dessa forma, refletiremos neste trabalho sobre a poesia an-
golana produzida a partir da década de 1970 do século XX, o que
implica em pensar tal discurso poético no seu tempo marcado
por uma crise de valores, em que as fronteiras entre o velho e o
novo não estão bem definidas, estabelecendo-se um verdadei-
ro duelo de forças entre a tradição e a modernidade.
Comecemos pelo próprio conceito de tradição. Tradição
significa, segundo a etimologia, a transmissão, de uma gera-
ção a outra, de costumes, crenças, lendas, idéias, ou seja, se-
gundo Gerd Bornheim, “o conjunto dentro dos quais estamos
estabelecidos”.75 Ela representa, pois, a continuidade do pas-
sado no presente, adquirindo um “caráter de permanência”.76
Entretanto, como afirmou Nietzsche, que é aqui citado a partir
do mesmo Bornheim,77 essa qualidade de absoluto da tradição
não passa de um desejo, pois a história existe.
Na poesia angolana, a crítica lançada sobre a tradição ini-
cia-se exatamente com a consciência que os poetas parecem
ter da história. Afinal, marcada por um pouco mais de cinco sé-
culos de história de exploração portuguesa, luta pela indepen-
dência e guerra civil, consecutivamente, Angola traz consigo as
mutilações causadas no corpo, na terra, na cultura, enfim, na
vida de seu povo.
Apesar de não ser nosso objetivo aqui esboçar uma discus-
são em torno do processo histórico angolano, não podemos
deixar de mencioná-lo, tendo em vista que a construção da lite-
ratura angolana, como destacou Mário Pinto de Andrade,78 está
diretamente ligada a uma perspectiva histórica. O crítico ango-
lano, um dos primeiros a pensar a dicotomia entre a civilização
européia e a cultura africana, via na literatura, e especialmente
na poesia, uma eficiente arma política a favor da emancipação
das então colônias portuguesas, um dos elementos para a to-
mada de consciência contra a opressão do dominador.
É, pois, nesse sentido que procuraremos traçar um breve iti-
nerário da literatura e da história de libertação do povo angola-

75. BORNHEIM, G. 1997, p. 20.


76. Idem, p. 22.
77. Cf. Idem, p. 23.
78. Cf. ANDRADE, 1969.

138 TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA


no, a fim de compreender o período atual e as metamorfoses so-
fridas pela escrita neste novo contexto sociocultural e histórico.
Situada na África Ocidental, a República de Angola, capital
Luanda, é banhada pelo Oceano Atlântico e possui um terri-
tório de 1.259.000 km2 dividido em duas partes, separadas por
uma pequena porção de terra, sendo a menor constituída pelo
enclave de Cabinda. Sua língua oficial é a portuguesa, entretan-
to, o território é habitado por nove grupos etno-lingüísticos, o
que redunda em um grande número de línguas nacionais.
A chegada dos portugueses a Angola data de 1483, com a
expedição de Diogo Cão. A resistência ao colonizador sempre
se fez sentir no território, sendo digna de menção, entre outras
figuras, a da Rainha Nzinga que, no século XVII, chegou a rea-
lizar alianças com os holandeses, que haviam invadido Ango-
la, para tentar derrotar os portugueses.79 Em 1845, instala-se o
prelo no país e, a partir daí, o colonizador português começa
a massacrar ainda mais a cultura angolana pela imposição de
seus usos e costumes letrados, que põem também em xeque o
predomínio da oralidade sobre a escrita.
Ainda no século XIX, em 1880, começa um movimento
para a criação de uma literatura pátria, tendo sido Cordeiro da
Mata um dos escritores de maior expressão no quadro da lite-
ratura produzida por essa geração, pois, como resume Laura
Cavalcante Padilha, é ele “que vai instaurar, na materialidade
discursiva do poema, a fratura do quimbundo, semeando com
isso (...) ‘de certo modo, o nacionalismo cultural’ (TRIGO, 1977,
p. 60)”.80 Mas é nas décadas de 1920 e 1930 do século XX que a
literatura em Angola atinge seu apogeu na quantidade, na in-
tensidade da visão colonialista e na aceitação do público – ob-
viamente composto de imigrantes portugueses –, colocando o
negro como um animal exótico e de feições animalescas, como
podemos constatar nos seguintes trechos: “A sua face negra, de
beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos”; “Era um negro es-
guio que dava a impressão dum excelente animal de corrida”.81

79. Cf. MACEDO, 1997, p. 10.


80. TRIGO, 1977. p. 60.
81. Cf. FERREIRA, 1987. p. 8-9.

TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA 139


Mais tarde, as discussões em torno da necessidade de afir-
mação e reabilitação da identidade cultural contribuem para o
aparecimento, em 1948, em Luanda, do Movimento dos Novos
Intelectuais de Angola (1949) com o lema “Vamos descobrir
Angola”, do qual participavam Viriato da Cruz, António Jacinto,
entre outros.
Em 1951, o Movimento publicou a revista Mensagem, indi-
cando o caráter de denúncia da situação colonial e apontando,
segundo o crítico português Pires Laranjeira, para uma “angola-
nidade”, isto é, “a representação dos esquemas ideais, literários
e formais do pensamento e expressão das tradições e culturas
de Angola”.82 Entre os poetas que contribuíram para a Mensa-
gem de um desejo de nacionalidade estão Viriato da Cruz, Antó-
nio Jacinto e Agostinho Neto. Este último, construindo uma po-
esia de combate que passa da fase da conscientização à da luta
armada, incorpora em seus poemas temas da flora e da fauna,
do cotidiano, da vida social e dos problemas vividos pelo povo
angolano, em uma luta contra a alienação colonial. A tradição,
nesse caso, é retomada como herança e tenta-se, muitas vezes,
transformá-la na representação da “verdade”, isto é, na reivindi-
cação de um direito à legitimação de comportamentos, crenças
e hábitos da cultura própria. É desse modo que, por exemplo,
no poema “Na pele do tambor”, do próprio Agostinho Neto, as
batidas do ritmo africano vibram verso a verso, em um movi-
mento de descoberta do sujeito lírico. “Onde estou eu? Quem
sou eu?”, pergunta-se em um dado momento, para responder
no instante seguinte:

Vibro no couro pelado do tambor festivo


em europas sorridentes de farturas e turismos
sobre a fertilização do suor negro
nas áfricas envelhecidas pela vergonha de serem
áfricas
nas áfricas renovadas do brilho firme do sol e da
transformação.83

82. LARANJEIRA, 1985. p. 27.


83. In: Cadernos Sol – Colectânea de poetas e poesia de Angola., 2001. p. 7.

140 TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA


Assim, sem negar a presença do colonizador, mas afirman-
do tudo aquilo que significava a diferença, os poemas dessa
geração discutem a necessidade da reconquista da imagem do
homem angolano, da recuperação e libertação de seus valores
como integrantes de um grupo social. Mesmo que os cercados
impostos pelo regime colonial fossem muitos – de ordem polí-
tica, econômica e social – o sujeito, também cercado, endure-
cido pela opressão histórica, buscava, na consciência de suas
tradições, a força para lutar contra as explorações colonialistas,
contra o cercado ideológico de imposição de uma cultura so-
bre a outra e, conseqüentemente, de um modelo estético sobre
o outro. Procurava, portanto, encontrar, nas raízes da tradição
africana, a arma para a criação de uma nova realidade, mais li-
vre, para lá de tantos cercados.
Além disso, romper o cerco, resistir como a buganvília, im-
plicava sangrar. Afinal, como acontece muitas vezes em um rito
de passagem, a experiência do rompimento é dolorosa, deixa
marcas no corpo, envolve renúncias e o confronto com a morte.
Por isso mesmo, surgem, nesse período, vários movimentos polí-
ticos de resistência contra a dominação portuguesa, entre eles a
Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), a União para a
Independência Total de Angola (UNITA) e o Movimento Popular
de Libertação de Angola (MPLA) e, no início dos anos 60, começa
a luta armada de libertação contra o jugo português.84
Procurando acompanhar as transformações sociais, os
poetas da década de 1960 propõem uma literatura social, do-
cumental, combativa e reformadora. Criar, fazer poesia, signifi-
cava pensar a literatura como uma arte necessária, um compro-
metimento com os ideais libertários e um certo endurecimento
do sujeito lírico, já que lutar requer coragem, determinação e,
por que não dizer, orgulho e não submissão à dor.
O poema “Criar”, de Agostinho Neto, é um dos mais repre-
sentativos desse momento literário angolano. A imagem dos
“olhos secos” do sujeito poético revela a objetividade e a dureza
com que a realidade é encarada. A própria linguagem do poema
faz-se nua, desprovida de grandes ornamentos, tendo em vista
que, citando um fragmento do poema de Neto, era preciso:

84. Cf., a propósito, a obra Dos jornais às armas, de Marcelo Bittencout (1999).

TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA 141


Criar criar
criar no espírito criar no músculo criar no nervo
criar no homem criar na massa
criar
criar com os olhos secos85

Na década de 1970, mais precisamente a 25 de abril de 1974,


com a queda da ditadura portuguesa, Angola inicia seu proces-
so de independência nacional, consolidada definitivamente no
dia 11 de novembro de 1975. Cerca de um mês depois, os es-
critores angolanos proclamaram em Luanda a constituição da
União dos Escritores Angolanos. É, pois, a partir daí, que a lite-
ratura angolana começa a produzir em liberdade, participando
da batalha de reconstrução nacional.
Uma das preocupações dos escritores dessa nova geração,
que começa ainda na década de 1970 com poetas como Manuel
Rui, Arlindo Barbeitos, Ruy Duarte de Carvalho e David Mes-
tre, é justamente com o perigo da perda da memória cultural.
Daí a necessidade de se resgatarem as tradições. Contudo, se “o
mundo colonizado é um mundo cindido em dois”,86 como des-
tacou Frantz Fanon, recebendo a literatura africana “a herança
de uma dupla tradição: a literatura africana oral e a ocidental”,87
o pós-colonizado também é constituído de muitos cercados. O
personagem Sábio, do romance A geração da utopia, de Pepete-
la, ao avaliar a situação da Angola atual, nos revela:

Há duas Angolas, elas se defrontaram. Duas Angolas


provenientes dessa cisão da elite, a urbana e a tra-
dicional. Isto de forma grosseira é evidente, porque
sempre houve pontos de passagem entre os dife-
rentes sectores. Felizmente nesta guerra houve um
empate, nenhuma destruiu a outra. Mas continua a
haver duas Angolas.88

85. Idem, p. 9.
86. FANON, 1979. p. 31.
87. Idem, p. 9.
88. PEPETELA, 2000. p. 364.

142 TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA


É assim que, após a independência de Angola, os conflitos
gerados, no período colonial, com o confronto entre várias cul-
turas, ganham novos contornos e reiteram a impossibilidade,
como em qualquer outra sociedade, de um reencontro absolu-
to da sociedade angolana moderna com seu passado ancestral.
A comunidade, já contaminada pelo outro, acaba por unir o ve-
lho e o novo, relendo as tradições do passado com a experiên-
cia vivida do presente, porque, como nos afirma a poeta Paula
Tavares:

a tradição, longe de constituir um legado imóvel e


fixo, pronto para ser transmitido de geração em ge-
ração, a tradição é também mudança e sinônimo de
um quadro dinâmico longamente entretecido entre
o indivíduo e o grupo, desde sempre aberto à incor-
poração de elementos novos, que alimentam o anti-
go e estabelecem a necessária ponte entre o velho e
o novo.89

Este novo contorno dado ao próprio conceito de tradição é


inevitável, tendo em vista que, no passado, o local tinha como
tarefa garantir a unidade e o absoluto da tradição. Hoje, o siste-
ma global, ao reduzir as fronteiras entre as diferentes comuni-
dades, manifesta-se sob o signo da pluralidade e da renovação
constante de estilos e práticas culturais.
No estudo “O local da cultura”, Homi K. Bhabha pensa a
respeito do esvaziamento da unidade, do desarraigamento dos
valores que constituíam o passado, o local, ou seja, sobre o ca-
ráter de absoluto da tradição, mostrando-nos que a nação, nos
tempos modernos, está instável, ambivalente, e que o local, ou
melhor dizendo, os locais da cultura são “entrelugares”,90 po-
rém capazes de fornecer elementos para a elaboração de no-
vas identidades. Vale lembrar, também, que, no Brasil, Silviano
Santiago, na década de 1970, apontava a tensão existente entre
o global e o local na literatura latino-americana, no ensaio “O
entrelugar do discurso latino-americano”.91 Para o crítico brasi-

89. TAVARES, 1998, p. 52.


90. Cf. BHABHA, 2001, p. 19-42.
91. In: SANTIAGO, 2000, p. 9-26.

TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA 143


leiro, a literatura latino-americana realiza-se exatamente neste
chamado “entrelugar”, “entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão
e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre
a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão”.92
Nesse sentido, a preposição “entre”, indicando a relação de
lugar no espaço que separa tradição e modernidade, fixa, pois,
a idéia de que a cultura – incluindo aqui a literatura e, em es-
pecial, para nós, a poesia angolana contemporânea – se cons-
trói na confluência dos tempos, no movimento dos espaços, na
relação entre o mesmo e o outro, já que, voltando a Homi K.
Bhabha,

o reconhecimento que a tradição outorga é uma for-


ma parcial de identificação. Ao reencenar o passado,
este introduz outras temporalidades culturais inco-
mensuráveis na invenção da tradição. Esse processo
afasta qualquer acesso imediato a uma identidade
original ou a uma tradição “recebida”.93

Assim, a tradição é pensada como processo de criação e


expressão de uma visão de mundo a partir da reelaboração das
formas culturais do passado. Esse processo de reelaboração se
dá por meio de uma construção discursiva, isto é, da fala, da
palavra, que garante, a partir de traços que testemunham o pas-
sado, a memória coletiva do grupo.
O filósofo brasileiro Gerd A. Bornheim, no seu já referi-
do ensaio “O conceito de tradição”, ao analisar tal conceito e,
conseqüentemente, o de ruptura, lembra que tradição vem do
latim traditio e que o verbo tradire pode significar tanto o ato
de transmitir ou entregar, como o conhecimento oral e escri-
to. Dessa forma, podemos pensar o processo de recuperação
da tradição realizado por poetas da geração pós-colonial, en-
tre eles Ruy Duarte de Carvalho e Paula Tavares, anteriormente
citados, como a doação de uma experiência. Isto porque atra-
vés da referência dialógica, constituída pelo “mundo do texto”

92. Idem, p. 26.


93. BHABHA, 2001. p. 21.

144 TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA


e pelo “mundo do ouvinte ou do leitor”,94 a poesia nos aponta
sua capacidade de trocar experiências. Os poemas, pensados
como objetos dinâmicos, possibilitam a transformação do ho-
mem em sujeito cultural, transmitindo conhecimentos e expe-
riências para o outro, em um processo também de resgate da
memória.
São, portanto, as experiências do/sobre o mundo, as histó-
rias do sujeito e da própria linguagem encenadas nos poemas
que permitirão aos poetas constituírem uma memória huma-
na necessária à vida. Através da palavra, eles registram cenas e
acenos do homem e seu tempo de fragmentação e ruína, apre-
sentando-nos novas perspectivas de olhar a pátria, o sujeito e o
fazer poético. Logo, rememorar significa também desempenhar
a função de unir o começo e o fim, “de tranqüilizar as águas
revoltas do presente alargando suas margens”.95 Os poetas, em
um trabalho de mediação criadora, refletem, enfim, sobre o ser
e o estar no mundo, em um ato de consciência histórica e, efe-
tivamente, no caso angolano, de construção de uma identida-
de cultural. Cabe ressaltar, contudo, que quando falamos em
identidade cultural não nos referimos a uma modalidade ou
expressão rígida ou imutável; ao contrário, construir uma iden-
tidade pressupõe um constante processo de transformação e,
nesse sentido, utilizamos o termo identidade, sobretudo, citan-
do aqui Boaventura de Sousa Santos, como uma “identificação
em curso”,96 que se faz permanente para o indivíduo, o grupo e
a nação. Dessa forma, o poeta, ao recriar a realidade através da
palavra, do poema, “dá significado e importância a nossa mo-
nótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um
destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após
nossa morte”, conforme preceitua Stuart Hall.97
A recuperação das tradições na poesia angolana contem-
porânea representa, então, um posicionamento do artista dian-

94. Paula Tavares, no artigo “A literatura em construção”, já assinalara que “a


Independência Nacional significou em muitos casos a fusão de dois horizontes
– o do texto e do leitor”. In: Metamorfoses 2, 2001, p. 110.
95. BOSI, E. 1994, p. 22.
96. SANTOS, 2000. p. 135.
97. HALL, 2001. p. 52.

TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA 145


te de sua história, uma tentativa estética de resgate da própria
condição: identidade e memória. Seja na observação de uma
paisagem local, como a do sul de Angola nas poesias de Pau-
la Tavares e Ruy Duarte de Carvalho, seja na denúncia de uma
paisagem maior e mais grave, como a violência da miséria e das
contradições do poder em “In (útil) folha circunstancial”, de
João Maimona, por exemplo, onde se lê:

à porta da catedral é repelida uma moeda


estendendo sua asa cor de sangue e outra
de fascinante tonalidade do mar
em indomável enigma.

talvez sejam essas igrejas, que negam sugar


o suor do meu rosto, o limiar de uma
terceira taquicardia, abrindo os lábios
que dizem: meus olhos também
anunciam a pintura do dia.
dia por dia escrevem meus passos
a infinita sombra albergando
estábulos com cortinas, alcatifa,
videoteipe e ar condicionado.98

Os poemas produzidos nessa época encenam uma identi-


dade angolana, compartilhando experiências através das quais
os leitores são capazes de reconhecer e avaliar o mundo e a si
mesmos, concluindo o ato de configuração dos textos.
Nesse sentido, podemos considerar a poesia uma forma de
conhecimento que se dá através do próprio fazer literário, da
discussão da especificidade de sua própria linguagem e sua re-
lação com o sujeito e o mundo.
Através do trabalho poético, o artista toma consciência
das coisas e de si, buscando no “eu” o sentimento de sua pró-
pria identidade, o fluxo temporal capaz de reter o passado na
memória, perceber o presente pela atenção e, ainda, esperar
o futuro pela imaginação criadora. Suas vivências, a maneira
como sente, interpreta e compreende o que se passa consigo
e no mundo que o cerca, estarão refletidas no trabalho estéti-

98. MAIMONA, 2001. p. 141.

146 TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA


co de conhecimento de sua própria poesia. Tal conhecimento
aspira ao universal, à descrição de uma coletividade, já que tais
vivências são também universalizantes. Do mesmo modo, o re-
ferido conhecimento encontra forma em uma linguagem capaz
de representar um tempo e sua problemática, capaz de registrar
a própria condição humana de busca de uma identidade, como
um jogo de memória, transmitida de geração a geração.
Voltamos, com isso, a nossa reflexão sobre a tradição, pen-
sada aqui, desde o início, como aprendizado, como processo de
elaboração consciente da realidade. Octavio Paz, na obra Os fi-
lhos do barro, chama essa tradição de a “da ruptura”, pois, se ela
postula uma continuidade entre o passado e o hoje, o que dis-
tingue a perspectiva da “moderna tradição” é o culto ao novo, a
necessidade de ruptura permanente com o passado. A “tradi-
ção moderna”, diz ele,

é uma expressão de nossa consciência histórica.


Em parte, é uma crítica do passado, uma crítica da
tradição; de outra, é uma negativa, repetida uma e
outra vez ao longo dos dois últimos séculos, por fun-
damentar uma tradição no único princípio imune à
crítica, já que se confunde com ela mesma: a mudan-
ça, a história.99

O raciocínio de Paz conduz à noção de tempo. Para ele, “a


poesia que começa agora, sem começar, busca a interseção dos
tempos, o ponto de convergência”.100 Assim, entre o passado e o
futuro desabitado, a poesia é o presente.
Essa confluência das três dimensões do tempo em Paz se-
ria, pois, a abertura necessária para que se pudesse discutir,
dentro da poesia, o novo papel da tradição. Não indo nem para
o passado nem escapando pelo futuro, a tradição, no pensa-
mento moderno, começa a entrar na construção do presente.
Assim, em uma perspectiva dinâmica, os poetas da con-
temporânea produção angolana reconhecem as tradições

99. PAZ, 1984. p. 26.


100. Idem. p. 204.

TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA 147


como “uma projeção emitida pelo e para o presente”.101 Manuel
Rui, na comunicação “Entre mim e o nómada – a flor”, apresen-
tada na VI Conferência dos Escritores Afro-Asiáticos e publica-
da pela União dos Escritores Angolanos, em 1981, ao analisar
a problemática da identidade cultural na sociedade angolana,
põe em cena os personagens simbólicos nómada (nômade) e
letrado, que tão bem ilustram a tensão entre tradição e moder-
nidade e, assim, resume nosso pensamento, quando destaca
a necessidade da transformação das tradições como forma de
atualização da memória histórico-cultural. Esta, determinada
pela pluralidade de faces de uma realidade marcada pelo con-
texto colonial, é redescoberta no “entre”, no equilíbrio entre o
local e o global, o oral e o escrito, a tradição e a ruptura. Como
nos aponta Manuel Rui,

Nem eu nem o nómada pensamos em regressar ao


antes de. Tudo para nós é depois, a partir de agora. E
nem sequer é redescoberta mas sim afirmação trans-
formadora.

Eu, letrado, aceito a tradição para hoje, nunca para


ontem. Então agora não há mais seres mitológicos
que comem gente. Nem mitologias. No meu texto
podem os seres de hoje obedecer à designação tra-
dicional, mas para comer quem quer comer a gente.
O resto, o seu passado a registrar – como tal, no seu
limite de um tempo outro que eu posso encantatori-
zar para um tempo hoje.102

Assim, entre “mim”, o escritor, a modernidade, e o “outro”,


o nómada, a tradição, está a flor, que é o poema, o além do cer-
cado, o espaço da criação, da liberdade, da identidade possível,
do humanismo, “a flor maior”.103
A ruptura que a poesia angolana pós-independência reali-
za está exatamente na recuperação da primazia da palavra e no
trabalho com o aparato estético do poema. A poética militante,

101. CARVALHO, 1997. p. 20.


102. RUI, 1981. p. 32-33.
103. Idem. p. 34.

148 TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA


do canto coletivo dos anos de luta pela independência dá lugar
à encenação de uma subjetividade, à busca por novos modelos
de representação. Diante de um país fragmentado pela guerra,
o sujeito poético, também dilacerado, assume o papel princi-
pal, buscando encontrar na linguagem o entendimento de si e
do mundo. Assim como a flor do poema de Carlos Drummond
de Andrade, “A flor e a náusea”,104 os poemas dessa nova geração
surgem do vazio deixado pelos anos de guerra, crescem sobre o
cimento bruto e as escarificações do corpo da nação e buscam
a vida, contra tudo e contra todos. Trata-se de resistir duramen-
te ao silêncio imposto pela história, de enfrentar antigas, porém
sempre novas questões: “Quem sou eu?”; “Quem somos nós?”;
“Que mundo é esse em que vivemos?”; “Qual o lugar de Angola
nesse mundo, no contexto da chamada globalização?”.
É assim que “entre a guerra e a paz”, os poetas retomam
“fisicamente o poema”, “constante meditação primeira”, lem-
brando os versos de Manuel Rui em um de seus poemas da obra
Cinco vezes onze – Poemas em novembro,105 na tentativa de ex-
ploração e de interpretação do estar no mundo.
A poesia passa a ser, com isso, lugar de experiências, onde
cada poeta vai constituir a sua própria poética. João Maimona,
por exemplo, um dos mais expressivos nomes da poesia ango-
lana desde os anos 80, opta por um experimentalismo técnico-
formal que postula a exploração do valor da palavra no proces-
so de escrita. Autor de Trajectória obliterada (1984), Les roses
perdues de cunene (1985), Traço de união (1987), As abelhas do
dia (1988), Quando se ouvir os sinos das sementes (1993), Ida-
de das palavras (1997) e Festa da monarquia (2001), seus textos
procuram atingir o ponto alto de depuração discursiva, inten-

104. Citamos as três últimas estrofes do poema: “Uma flor nasceu na rua!/Pas-
sem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego./Uma flor ainda desbo-
tada/ilude a polícia, rompe o asfalto./Façam completo silêncio, paralisem os
negócios, garanto que uma flor nasceu.//Sua cor não se percebe./Suas péta-
las não se abrem./Seu nome não está nos livros./É feia. Mas é realmente uma
flor.//Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde/e lentamen-
te passo a mão nessa forma insegura./Do lado das montanhas, nuvens maci-
ças avolumam-se./Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em
pânico./É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” In:
ANDRADE, 1973. p. 78-79.
105. RUI, 1984. p. 111.

TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA 149


sificando a reflexão crítica sobre a sua própria produção. Em
Maimona, a realidade se confronta com as palavras. No poe-
ma “Palavras do futuro”, por exemplo, encontramos a visão do
sujeito sobre o compromisso da produção literária de sua gera-
ção, compromisso esse que também vale para ele mesmo:

juntar as palavras
suaves e verdes
da estrela viva.

juntar as palavras do peito


e da boca
que nascem da harmonia
dos pulsos e dos sonhos.106

Eis, de forma sucinta, a maneira como o próprio Maimona


vê sua atividade. É com essa harmonia entre os pulsos e os so-
nhos, procurando respostas sobre a sua época e sobre o mundo
em que vive, que o poeta enriqueceu sua lírica, sabendo que o
instrumento de sua procura é a palavra.
Além de João Maimona, outras vozes poéticas instauram
a dinâmica de uma linguagem depurada, tais como José Luís
Mendonça, Lopito Feijó, João Melo e Paula Tavares. Entretanto,
as motivações e os conteúdos de cada uma das poéticas cons-
tituídas por esses autores revelam particularidades temáticas e
formais. De comum entre elas, a reflexão interior de uma cons-
ciência individual em esfacelamento, a tentativa de resistência
diante da história e o resgate de uma identidade cultural sem-
pre percebida como problemática.
Sendo assim, em uma atitude de resistência, os poemas
angolanos contemporâneos partilham conhecimento, buscan-
do a interseção dos tempos, um ponto de convergência entre
tradição e modernidade.
O estudo dessa produção literária e o seu uso nas aulas de
literatura do ensino básico das escolas brasileiras podem con-
tribuir de maneira significativa para os debates em torno da
cultura e história africanas.

106. MAIMONA, 1984. p. 90.

150 TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA


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la. Luanda: Chá de Caxinde, 2001. v. 3.
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TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA 151


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—. O sangue da buganvília: crônicas. Praia; Mindelo: Centro Cultural
Português, 1998.

152 TRADIÇÃO E RUPTURA NA POESIA ANGOLANA PÓS-INDEPENDÊNCIA


AS MUITAS MULHERES
AO TAMBOR
Helena Theodoro

(Foto Adenor Gondim)

É na palma da mão
Olha, meu amor
Nesse meu Brasil
Todo mundo bate tambor

Bumba-Boi e Boi-Bumbá
Ijexá, maculelê
Carimbó, tambor de mina
Ciranda,cateretê
Tem calango, tem fandango
Tem partido versador
Nesse meu Brasil todo mundo bate tambor
Samba-enredo, samba-reggae
Caboclinho e lundu

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 153


Tem xaxado e tem chegança
Reisado e maracatu
Capoeira na Ribeira
Sua bênção, tocador
Nesse meu Brasil todo mundo bate
tambor...
(BATE TAMBOR – Leci Brandão/Zé Maurício)

APRESENTAÇÃO
O presente trabalho busca dar visibilidade às mulheres brasilei-
ras que ficam à margem da história, apesar de sua liderança e
trajetória, por não pertencerem a etnias hegemônicas. O tam-
bor é a representação do coração que bate, pulsa, chama, aco-
lhe e revigora. As mulheres negras tiveram este papel em toda a
história deste País.
Contar a história de mulheres que transformaram o nosso
mundo com seus sons e sonhos é contar um pouco da histó-
ria do Brasil vivida pelas mulheres negras, que sempre foram
deixadas de lado ou tratadas como heroínas anônimas. Em um
momento em que nossas escolas passam a se preocupar com
a cultura negra em seus currículos, é muito oportuno oferecer
um material que permita um mergulho maior na história de um
segmento que sempre ficou em segundo plano.
Queremos mostrar “as muitas mulheres” (quilombolas, re-
ligiosas, guerreiras, sambistas, artistas) que acreditaram nelas
mesmas, em suas tradições e, que em diferentes momentos his-
tóricos, teceram as teias da manhã do amanhã de cada um de
nós, com seus ritmos e sons do tambor: os sons do coração.

MULHERES QUILOMBOLAS DE ONTEM E DE HOJE


Os quilombos eram formados em regiões afastadas das uni-
dades de produção e dos aparelhos militares escravistas. Ca-
racterizaram-se pela dimensão pan-africanista de sua luta,
implantando e expandindo os valores negro-africanos e se
constituindo como referência da resistência contra o escravis-
mo colonialista, propiciando nas Américas a continuidade do
processo de guerra de libertação africana.

154 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


Afirma Luz (1995, p. 400), que no Brasil, por volta de 1600
começa a se constituir o reino negro dos Palmares, em Alagoas,
que se tornaria até 1695 no maior quilombo das Américas, che-
gando a se estender por 27 km. Era formado por florestas tro-
picais, onde passavam inúmeros rios, com terras férteis, flora
exuberante e fauna abundante, o que permitia à comunidade
negra uma perfeita interação com a natureza e, conseqüente-
mente, um profundo conhecimento sobre como lidar com to-
dos os benefícios oferecidos pela terra, utilizando o cultivo de
produtos variados. Tal forma de trabalho da comunidade negra
produzia muita fartura, contrastando com a extrema penúria
da colônia. Por isso os quilombos não eram formados só por
negros, mas sim por índios, cafuzos, mamelucos e brancos, for-
mando uma comunidade integrada que chegou a possuir 25
mil habitantes, tendo tido como principais lideranças Ganga
Zumba e Zumbi.
Algumas mulheres se destacaram na afirmação socioexis-
tencial negra, que foram os quilombos. Uma delas foi Aqual-
tune líder do Quilombo dos Palmares. Era princesa na África,
filha do Rei do Congo, vendida como escrava para o Brasil. Or-
ganizou sua fuga e de outros escravos para Palmares e ao lado
de Ganga Zumba, iniciou o processo de organização do Estado
de Palmares. Chefiou uma das povoações que levava seu nome:
Mocambo de Aqualtune.
Outro nome destacado é o de Teresa do Quariterê. Teresa
foi Rainha do Quilombo Quariterê durante duas décadas, no
século XVIII. Teria nascido em Benguela, Angola, embora exista
a possibilidade de ter nascido no Brasil. Liderou um grupo de
negros e índios instalados próximos a Cuiabá, não muito lon-
ge da fronteira de Mato Grosso com a atual Bolívia. Impôs tal
organização a Quariterê que o quilombo sobreviveu até 1770.
Contava com um parlamento, um conselheiro da rainha e um
sistema de defesa organizado com armas trocadas com brancos
ou roubadas nas vilas próximas. Teresa exercia grande controle
e influência sobre o Quilombo, que contava com uma agricul-
tura de algodão e alimentos muito desenvolvida. Possuía teares
com os quais fabricavam tecidos que eram comercializados fora
dos quilombos, bem como os alimentos excedentes. Quariterê

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 155


se caracterizou pelo seu trabalho com a forja, pois transforma-
va em instrumentos de trabalho os ferros utilizados contra os
negros.

THEREZA SANTOS
Mulheres como Aqualtune e Teresa do Quariterê foram guerrei-
ras, mães, líderes espirituais, preservando todas as dimensões
das grandes mães ancestrais, as Iyá-mi, delineando toda uma
maneira de ser e estar no mundo das mulheres negras brasilei-
ras, seja no século XIX, como Chica da Silva ou Luiza Mahin ou
no século XX como Mãe Aninha, Tia Ciata, Mãe Senhora, Mãe
Menininha do Gantois, Tia Zica, Tia Neuma ou Thereza Santos,
cuja história aqui trazemos:

Publicitária, atriz, diretora de teatro, carnavalesca.


Autora, com Eduardo de Oliveira e Oliveira, da peça
teatral “E agora... falamos nós”. Foi registrada como
Jaci dos Santos, mas todos a conhecem como The-
reza Santos.

Participou em 1973, na África, na luta pela indepen-


dência da Guiné-Bissau, desenvolvendo um trabalho
de área cultural e de alfabetização nos territórios li-
vres com os guerrilheiros. Dirigiu o Setor de “Teatro
do Ministério da Educação e Cultura da Guiné” após
a independência.

Em Angola, onde esteve a partir de 1976 a convite do


presidente Agostinho Neto, dirigiu o Departamento
Nacional de Teatro do Ministério da Cultura. Chefiou
a delegação artística de Angola no II Festival de Arte
Negra, na Nigéria, em 1977.

De volta ao Brasil em 1979, assumiu a coordenação


de Rádio e TV da Norton Publicidade, passando,
também, a escrever enredos para as Escolas de Sam-
ba: Mocidade Alegre, Nenê de Vila Matilde, e Camisa
Verde e Branca, tendo obtido o campeonato de 1980

156 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


da Mocidade Alegre, com o enredo “Embaixada de
Many Sovo e Many Bamba”.

Com outras companheiras do movimento negro funda o


Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, sendo a primeira
representante da mulher negra no Conselho Estadual da Con-
dição Feminina.
Foi assessora da Secretaria Municipal de Cultura de São Pau-
lo de 1984 a 1985 e fundou a Associação Cultural Agostinho Neto,
da qual é diretora de Cooperação, Solidariedade e Eventos.
Thereza Santos atuou desde 1987 até 2004 como assessora
de cultura afro-brasileira da Secretaria de Estado da Cultura de
São Paulo, onde desenvolveu projetos importantíssimos como
Perfil Internacional de Literatura Negra, Projeto Kizomba, Pro-
jeto Consciência e Liberdade. Seu nome foi amplamente cogi-
tado como candidata a vice-governadora da chapa encabeçada
por Almino Afonso, tendo recebido mais de 10 mil votos em sua
candidatura a deputada estadual.
Comenta Thereza sobre sua vida:

Quantas vezes, no decorrer da minha vida, questio-


nei sobre o caminho para a consciência de ser negra,
até que me descobri uma privilegiada por toda a ex-
periência que tive oportunidade de vivenciar e que
sedimentou o que chamo de “minha consciência”.

Recordo a infância no bairro de classe média baixa,


as brincadeiras com as crianças brancas e conse-
qüentemente os apelidos: macaca, tisiu, urubu. Ser
chamada de “verdadeira preta de alma branca” me
deixava curiosa para descobrir como era possível ter
uma cor por fora e outra por dentro, já que ser negra
não me causava qualquer problema, pois minha avó
me dizia que “ser negro era motivo de orgulho e não
de vergonha”.

Perguntas e mais perguntas sem respostas me torna-


ram “Thereza porque!” Ás vezes, minha mãe perdia
a paciência:

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 157


– Porque, porque, porque! Vê se cala a boca um mo-
mento. Você quer resposta para tudo. Teu nome ago-
ra é “Thereza porque!”

Virei Thereza porque. Mas fiquei sem respostas.

Na escola, praticamente só de alunos brancos, des-


cobri que era diferente, mas não queria ser macaca
ou tisiu, queria ser chamada pelo meu nome e, tam-
bém, não queria fazer só o que mandavam para ter
o direito de brincar. Comecei a me afastar, a brincar
sozinha em casa. Passei, então, a reparar que crian-
ças negras passavam pela rua a caminho da escola ou
carregavam latas de água na cabeça. Comecei a ficar
curiosa, queria saber quem eram e de onde vinham.
Assim, descobri o morro que ficava no fim de nossa
rua, onde encontrei 90% de crianças iguais a mim. O
morro se tornou meu refúgio e nele descobri a misé-
ria e a discriminação. Passei a levar minhas amigui-
nhas do morro para brincar na vila e percebi a reação
das mães e o afastamento das crianças brancas.

Não me importava. Só sabia que ficava feliz!

Em inúmeras ocasiões, no decorrer da minha vida,


muitos brancos me questionaram e continuam me
questionando em função de minha posição, sendo
considerada “radical” por muitos. Mas minha res-
posta é muito clara e precisa: “eles” me ensinaram,
forjaram minha consciência de negra com o seu ra-
cismo e seu preconceito. Consegui, à duras penas,
perceber o jogo desenvolvido na sociedade brasileira
com a “Democracia Racial”, que só tem legado a sub-
cidadania, e em conseqüência, a miséria e a violência
para os negros. Minha compreensão de tal realidade
me levou a lutar por sua transformação.

Trabalhei no morro da Mangueira, desligada do Par-


tido, na Estação Primeira da Mangueira, onde criei
o Departamento Feminino (com 50 mulheres) tendo
sido eleita secretária-geral executiva e nomeada di-
retora cultural da escola. Aprendi mais sobre o negro

158 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


lá no morro do que em todos os livros que li! O traba-
lho cresceu muito, foi um sucesso!

Em 1969 fui presa pela polícia da Marinha. Os inter-


rogatórios diários não se referiam a mim e sim sobre
quem eram as pessoas a quem estava ligada. Não foi
difícil perceber o que pensavam e queriam: o concei-
to de negra estúpida, sem iniciativa e vontade pró-
prias ficou claro – era a postura do racismo.

Se antes tinha consciência de que não poderia cola-


borar com a polícia, acrescentei a tal convicção a rai-
va que sentia pela forma de ser vista e tratada. Fugi
para São Paulo, onde descobri um preconceito mais
claro e mais arraigado. Conheci o sociólogo Eduardo
de Oliveira e Oliveira, comprometido com a luta do
negro e com quem descobri a possibilidade de voltar
a trabalhar com teatro. Criamos o Centro de Cultura
e Arte Negra e escrevemos a quatro mãos a peça “E
agora falamos... Nós”, sobre a história do negro no
Brasil contada sob a ótica do negro.

Pela primeira vez foi encenada uma peça de teatro


escrita por negros brasileiros, sob a direção artística
de uma mulher negra e com um elenco de 12 atores
negros. Causamos comoção e o espetáculo tornou-
se um marco e uma referência para os negros de São
Paulo. Tal fato nos deu certeza que o caminho a se-
guir, para a identidade e a auto-estima do negro, se-
ria através da cultura e o teatro era a nossa arma.

As peças de teatro se sucedem: “África Liberdade”,


“Angola, povo, cultura”, “Che Guevara”, “Kuenha”.
Projetos, shows para a Rádio e Televisão de Angola,
muito trabalho, mas feito com prazer, garra e a cer-
teza de estar contribuindo para a formação de um
novo, velho mundo.

No entanto, outra vez tudo desmorona e, mais uma


vez, a discriminação racial e o preconceito são os
grandes vilões. A coisa começou de forma sutil, com
a insinuação de que no espetáculo não podia ter a

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 159


participação de brancos. O elenco de 78 pessoas se
constituía de três brancos, nascidos e criados em An-
gola. Pela Constituição do país, angolanos eram to-
das as pessoas que, independente de cor, raça, credo
político ou religioso tinham optado pela cidadania
angolana. Procuro fazer com que entendam que es-
távamos lutando para construir um país livre de to-
das as formas de preconceito. A situação, porém, vai
em um crescendo, até que passo a ser discriminada
por não aceitar discriminar.

Resolvo voltar ao Brasil, já que era comum ouvir


“Você é negra, mas é estrangeira!” Peço, então, mi-
nha liberação para retornar. Como resposta, recebo
voz de prisão. Eu que fui para a África como forma
de fugir da prisão no Brasil, passo 85 dias presa, na
mesma penitenciária que, 15 anos antes, os revolu-
cionários do MPLA atacaram para libertar os presos
de consciência.

De volta ao Brasil, a 28 de junho de 1978, chego sem


qualquer documento a não ser a carteira de identi-
dade, que escondi dentro das calcinhas, descalça, só
com a roupa do corpo e a coragem para retomar mi-
nha vida! Na Polícia Federal nova ameaça de prisão
por não estar com passaporte. Consigo, no entanto,
telefonar para casa e pedir o apoio da imprensa, que
chega. Fotografias, entrevistas, novo tratamento da
polícia e enfim, após minha chegada às 7:15h saio
da polícia à 16h, sem uma única peça de roupa para
vestir, o coração despedaçado e convicções por terra.
Choro dia e noite. Os dias se passam e não consigo
fazer outra coisa.

Dia sete de julho, meu aniversário. Luto para juntar


meus pedaços. O telefone toca. É de Angola. Todos
os meus alunos estão fazendo a festa de meu aniver-
sário: 52 alunos, mais 30 pais. Todos querem falar,
cantam parabéns e durante duas horas me passam
palavras de ânimo e carinho e que estão colocando
no oceano, para vir ao meu encontro, uma garrafa

160 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


enfeitada com o meu nome dentro e o primeiro pe-
daço do bolo. Choro muito, mais do que falo... choro
de dor e angústia, mas também de esperança e amor!
Descobri naquelas poucas horas que “TUDO VALEU
A PENA!”

MULHERES RITMISTAS
A relação das mulheres com os instrumentos de percussão, não
pode ficar desvinculada da concepção de ritmo vital do prin-
cípio feminino da tradição africana, mais especificamente da
tradição nagô. O papel da mulher se delineia a partir da idéia
de criação da vida, que se revela desde suas rotinas diárias, que
envolvem o nutrir, o organizar a comunidade até o administrar
a vida. Entre os gorjeios de um canário amarelo, que com seu
canto encanta as manhãs, em meio à conversa com as plantas
– energia cósmica revelada no verde, que responde, entende e
comprova a estreita relação de nossa energia com a dos orixás,
as mulheres vivem a relação de vida e morte, marcada pelos ba-
timentos do coração, que comanda o ciclo vital. Vida é ritmo, é
movimento em harmonia.
Na cultura negra brasileira as mulheres são representa-
das nos mitos como propiciadoras de caminhos e meios para
a aquisição, transformação ou transferência de axé (energia de
vida). O axé se transmite em uma relação interpessoal e dinâ-
mica, em um processo de comunicação direta, plena de ritmo
vital, onde a palavra, compassada e rítmica, é básica e funda-
mental. O axé se desenvolve na comunidade-terreiro que fun-
ciona como um centro irradiador de todo um sistema cultural,
do qual a oralidade é um de seus elementos, mas que deve ser
visto em função do todo.
Pode-se concluir, então, que na cultura negra, o “som”, a “pa-
lavra”, são elementos mobilizadores, que conduzem a ação, que
propiciam “axé”. Desta forma, a mulher se destaca como doadora
da vida, guardiã principal e transmissora das tradições religiosas
e culturais, sendo o laço que liga o Sagrado com a vida biológica
e espiritual, por ser a zeladora da matéria mítica que modelou o
ORI (cabeça) de cada pessoa, mantendo o ritmo da vida.

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 161


Nas comunidades-terreiros essas mulheres enérgicas, des-
cendentes de antigas escravas libertas, reelaboraram um tem-
plo mítico e um espaço sagrado de essência africana. São elas
as Iyás ou Mães de Santo, que recriaram em um novo lugar para
a sua família e para a comunidade, com suas filhas e filhos de
santo, utilizando a palavra falada ou cantada, acompanhada de
dança ou de gestos miméticos que possibilitam a integração
entre o mundo visível e o invisível, buscando o equilíbrio do
ritmo vital, pois a perda do ritmo significa doença ou morte.
No mundo do samba as mulheres de terreiro são chama-
das de baianas e simbolizam as cabeças coroadas pelos cabelos
brancos, representando a sabedoria africana das tias baianas
da antiga Praça Onze, berço do samba, onde Tia Ciata, Tia Bi-
biana e muitas outras dançavam o samba de roda da Bahia e
louvavam os orixás. As baianas, seguindo a tradição africana
dos terreiros, rodavam, inicialmente, para o lado esquerdo, já
que, segundo os mitos, estão à esquerda de Olorum – senhor de
todos os espaços para os iorubás.
Hoje, com a modificação do espaço e do papel dos desfiles,
as baianas rodam para a direita e para a esquerda, não seguindo
mais os rigores tradicionais de sua dança original. A visão que
algumas baianas ainda têm, como Dona Ivone Lara do Império
Serrano ou Tia Jurema do Salgueiro, é que o samba exige entre-
ga total, sendo como uma oração. Sambando e rodando entram
em contato com o universo, usando seus turbantes, ojás, panos
da costa, saias rodadas e tabuleiros, transformando a passarela
em revoada de pássaros, puro movimento, representação.
As baianas das escolas de samba usam a mesma indu-
mentária das baianas tradicionais dos terreiros. Elas são as que
ajudam a cuidar do universo do samba. Organizam a limpeza
da quadra, fazem as comidas e preparam toda a celebração do
samba. São elas as mães e avós dos sambistas. Sem elas, as es-
colas não conseguem funcionar em toda a sua plenitude. Elas
formam o coral feminino nos ensaios, sendo o termômetro para
os compositores dos sambas que vão pegar junto à comunida-
de. Responsáveis pela cozinha, local sagrado, onde se dá vida ao
que está morto, são verdadeiras alquimistas que transformam
e movimentam a natureza. Elas criam vida e propiciam a con-

162 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


tinuidade da vida nas quadras, sendo segmento fundamental
para a vida da comunidade. São parteiras, bordadeiras, tecelãs,
artesãs, mães, educadoras, líderes comunitárias. Aglutinam as
alas, apaziguam as confusões e organizam o samba na quadra
e na avenida. Como afirma Martinho da Vila: “a baiana foi pas-
sista, brincou em ala, e já foi até o grande amor de um mestre-
sala”.
Em um terreiro de candomblé ou umbanda a autoridade
máxima é a iyalorixá ou o babalorixá, sendo que o corpo reli-
gioso da casa se organiza por cargos masculinos e femininos,
segundo a tradição. O cargo de alabê, responsável por tocar e
cantar para os Orixás nas festas é masculino, escolhido entre
os ogãs da casa, por conta dos mitos, que ordenam a ordem e a
contra-ordem social dos terreiros. O ogã alabê é o tocador dos
instrumentos de percussão, chamados de rum, rumpi e lé, re-
presentação da orquestra de tambores Batá nos terreiros jeje-
nagôs. Ele passa por todos os rituais de consagração e tem a
obrigação principal de conduzir os toques, em especial durante
as festas públicas. Diz-se, com freqüência, que o atabaque é a
fala dos “orixás”, o instrumento principal de seu apelo, o que
pode dar uma medida dos compromissos e responsabilidades
dos alabês.

O MITO DO TAMBOR BATÁ


Segundo a professora e dançarina Inaicyra Falcão dos Santos
(2002) o tambor Batá é o fio condutor do movimento, se ligando
a Ayán, símbolo do fogo, princípio vibrante. Explica ainda que,
segundo os mitos, nos primórdios da civilização, não existia
nada parecido com o tambor na cidade de Oyo-Oro. Ali mora-
va uma mulher chamada Ayántoke, mas todos a chamavam de
Ayán. Esta mulher não tinha filhos e andava sozinha pelo mato,
sempre carregando um pedaço de madeira oco. Um dia, viu
uma pele de bode e pensou que poderia cobrir as extremidades
da madeira que carregava e tirar um som. Porém, quando ela
batia no couro com um pedaço de pau ele rasgava. Ela insistiu
várias vezes no seu intento, tendo usado até um pedaço de cou-
ro em forma de tira para bater nas extremidades do tronco, sem

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 163


sucesso. Um dia, quando tentava mais uma vez, Exu apareceu
e deu-lhe tiras de couro de veado e disse que amarrasse com
firmeza o couro no tronco. E foi nesse momento que o tambor
emitiu um som melodioso. Ayán começou a tocar o tambor por
toda a cidade e as pessoas corriam para ouvi-la, muito surpre-
sos, porque nunca tinham ouvido nada igual. Ayán passou a ga-
nhar muitos presentes. Xangô – orixá do trovão – rei da cidade,
quando a ouviu tocar, convidou-a para morar no palácio. Ela
tornou-se a tocadora oficial do palácio de Xangô. Todos sabiam
que ela não podia ter filhos, mas também sabiam que, mais
cedo ou mais tarde, ela teria um filho, já que qualquer mulher
estéril que entrasse no palácio de Xangô se tornava fértil. E as-
sim foi... Ayán casou-se com Xangô e logo teve um filho que foi
chamado de Aseorogi. Ela passou toda a arte de tocar e cons-
truir o tambor para o seu filho Ayán que é, até hoje, o nome
dado a todos os membros de uma família cultuadora do tam-
bor, entre os povos iorubá.
Ayán, então, é o símbolo do tambor Batá, orixá dos tocado-
res e que é cultuado somente por eles.
Entendemos, então, o conceito de Ayán como sendo o es-
pírito do tambor Batá, que sobreviveu nos terreiros nagô no
Brasil, como um ritmo específico, produzido pelos atabaques
rum, rumpi e lê e que faz parte do universo de diversos orixás.
Para Inaicyra Falcão dos Santos o tambor Batá promove uma
dança na qual os movimentos não são feitos de forma aleatória,
mas são simbólicos, sendo elemento integrador na comunica-
ção com o sobre-humano sendo disseminador de mensagens.
Assim, a prática litúrgica se torna um fator aglutinante e trans-
missor de uma tradição riquíssima.

RITMISTAS DO MARANHÃO: CAIXEIRAS


As mulheres negras simbolizam toda a capacidade de criação
do ser humano, sendo que, segundo o mito de Ayán, as mulhe-
res delegaram a seus filhos homens a arte de tocar e construir
o tambor. Poucas são as ocasiões em que as “mulheres negras”
fazem o ritmo da dança.

164 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


Em São Luís do Maranhão, durante a festa do Divino, no
Domingo de Pentecostes, vamos encontrar as caixeiras, que são
as mulheres idosas que tocam tambores ou caixas para saudar
o Império e o mastro e que se constituem em elementos fun-
damentais da festa. Segundo Ferreti (1985) as caixas do Divino
são tambores de madeira revestidos de couro nas duas extre-
midades, com armação de metal e cordas, pintadas com cores
vivas, em azul, vermelho ou verde e com símbolos do Divino, a
coroa ou a pomba, que são presas por cordas que servem para
pendurá-las ao pescoço nos desfiles e danças e são tocadas por
duas varetas. As caixeiras costumam ser em número de três ou
múltiplo de três. Na festa cada uma é acompanhada por uma
bandeira levada por uma menina, que a auxilia e em alguns lu-
gares executa uma dança junto com a caixeira. As caixeiras e
bandeiras, às vezes, usam roupas do mesmo tecido e enfeitam
o cabelo com uma espécie de flor de jasmim grande, muito per-
fumada, que floresce nesta época do ano. Elas entoam cantigas
em louvor ao Divino, que são repetidas em coro pelos demais.
As caixas, antes de serem usadas, são batizadas por padrinhos
que custeiam sua aquisição. O batismo das caixas costuma ser
feito no levantamento do mastro, usando-se velas, toalha, e
uma bebida e cada caixa recebe um nome.
Mãe Andresa e Mãe Celeste da Casa das Minas do Mara-
nhão, são exemplos de força e seriedade em São Luís, sempre
ligadas às festas populares e à arte em geral, sendo que Mãe
Celeste comanda as caixeiras que tocam no domingo ao ama-
nhecer, fazendo o toque da alvorada junto ao mastro, acompa-
nhando a procissão do Divino em todo o seu percurso.
A festa do Divino do Maranhão é um dos raros momentos
em que contamos com mulheres ritmistas dentro das comuni-
dades-terreiros. Nas cerimônias rituais os atabaques são toca-
dos pelos ogãs e alabês.

RITMISTAS DO RIO DE JANEIRO: SAMBISTAS


No Rio de Janeiro as baterias das escolas de samba foram ini-
cialmente formadas pelos alabês das comunidades-terreiros
dos bairros a que pertenciam. Assim, cada escola de samba ti-

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 165


nha o seu toque característico, por conta de seus ritmistas to-
carem para Ogum, Xangô ou Oxóssi, já que, sendo o tambor a
fala dos orixás, cada um tem as suas cantigas e toques próprios.
Com a gravação dos sambas em disco e o aperfeiçoamento dos
desfiles, as baterias já não se distinguem como antes, sendo que
a maneira de tocar e o som de cada escola ficou muito parecido.
Poucas mantiveram sua forma original, com exceção da Man-
gueira, que até bem pouco tempo proibia em seu estatuto que
mulheres tocassem na bateria. A maioria das escolas já contam
com mulheres ritmistas em suas orquestras.
Nas escolas de grupo especial, filiadas a Liga Independen-
te das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), temos na
Unidos do Viradouro uma ala de Xequerê (uma cabaça coberta
de miçangas) com cerca de 10 ritmistas tocando à frente dos
demais instrumentos de percussão. Já na Unidos da Tijuca va-
mos encontrar cerca de 21 mulheres na ala do chocalho, além
de existirem duas ou três na ala dos tamborins. Na Acadêmicos
do Salgueiro temos uma mulher tocando surdo de primeira e
várias no tamborim e no chocalho. No Império Serrano e na
Mocidade Independente de Padre Miguel também vamos en-
contrar mulheres na bateria nas alas de chocalho e tamborim.
As mulheres são aproximadamente 2% das baterias, sendo que
nas escolas dos demais grupos é mais comum a presença de
mulheres na bateria tocando caixa e repique.
A Escola de Música Villa Lobos conta com uma experiência
pioneira no Rio de Janeiro, sob a responsabilidade do professor
e percussionista Ricardo Riko, que foi diretor da ala de tambo-
rins do Salgueiro, que comanda a primeira bateria só de mulhe-
res do Rio. São 250 ritmistas com idades entre oito e 80 anos,
que descobriram os prazeres do surdo de primeira, do tantã, do
xequerê e dos demais instrumentos que embalam as escolas de
samba. A bateria desfilou com a Escola de samba mirim Cora-
ções dos Cieps no carnaval de 2004.
O professor Riko, que comanda a bateria de mulheres do
Rio, afirma que “os homens não se conformam”, mas que quem
é pioneiro em um ramo sempre enfrenta preconceito. Já conta
com 480 alunas, mas selecionou apenas 250 para o desfile da
Sapucaí. As ritmistas, que seguem à risca os mandamentos da

166 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


bateria, freqüentando os ensaios pelo menos três vezes por se-
mana, garantem que qualquer sacrifício vale a pena. Algumas,
como Maria Tereza Azevedo, carinhosamente apelidada de Te-
rezão pelas companheiras, pela facilidade com que toca o pe-
sado surdo de primeira, conta que seu maior sonho era desfilar
em uma bateria. Da mesma maneira, Bruna Guimarães Batista,
uma das caçulinhas da bateria, que tem apenas 13 anos, tocou
surdo na Sapucaí, pela primeira vez em 2003, realizando, ba-
nhada em lágrimas, um de seus sonhos mais caros.
O samba está vinculado a práticas lúdicas e religiosas de
escravos e seus descendentes, mais explicitamente à batuca-
da. Segundo Inaicyra Falcão dos Santos, o aprendizado do Batá
se relaciona a todas as formas de arte (canto, dança e música),
afirmando que quem toca o tambor precisa saber a função de
todos os toques, já que o ritmo complexo que produz com suas
mãos e sentimentos produz uma força criadora-inventiva, que
estabelece relações entre o seu universo e o público, por tocar
profundamente no espírito e nas emoções. Assim, a tradição
cultural da comunidade afrodescendente, a força de Ayán, se
faz presente em todos os eventos, permeando a sociedade como
um todo, possuindo uma forte comunicação entre as diferentes
artes, por ser interdinâmica e interpessoal e com uma simbolo-
gia que se relaciona com a tradição cultural africana. A dança
do samba é revelada precisamente por meio da expressão do
ritmo produzido pelos tambores Batá, que são os atabaques no
contexto brasileiro. A música é o produto que dirige o compor-
tamento no grupo, é o som organizado, possibilitando o aspec-
to social entre aqueles que compartilham experiências indivi-
duais e culturais por intermédio dos artistas. A mulher negra é,
segundo os mitos, o elemento básico do ritmo, da dança e da
criatividade. Uma das mulheres que nos provam tal fato é Leci
Brandão, que toca, canta e encanta. Em depoimento recente so-
bre o samba de terreiro, Leci nos conta da Mangueira dos anos
70, e de como as pessoas iam para a quadra fazer e ouvir sam-
bas de terreiro. Afirmou que sua experiência como compositora
da Mangueira, em 1971, foi muito enriquecida por conta disto.
Era obrigatoriedade para o compositor fazer samba de terrei-
ro para entrar na ala. Só então ele poderia fazer samba-enredo.

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 167


Acredita que, como nada é irreversível, as escolas possam rever-
ter este quadro, trazendo as rodadas de partido-alto de volta.
Afirma que aprendeu a tocar pandeiro e versar pela experiência
vivida, pelo que via na casa de Cartola, quando em um dia ver-
saram para ela e ela teve que responder. Em uma outra ocasião,
em uma festa do Neguinho da Beija-flor, alguém mandou um
verso para ela e ela respondeu, sendo então aceita “no meio”
como partideira. Hoje os compositores mais tradicionais não
ganham samba-enredo, já que outros fatores alheios à melodia
ou harmonia comandam a disputa. O samba de raiz se mantém
nas Velhas Guardas. Assim, os sambistas acabam excluídos. Nos
ensaios abertos ao público o pessoal da escola fica do lado de
fora, nas barraquinhas. Só quem fica na quadra é a Velha Guar-
da, a bateria e as baianas, já que os ensaios se transformaram
em um pula-pula. A comunidade só está presente em massa
nos ensaios técnicos feitos durante a semana. Antigamente era
diferente. Tinha livro de presença para ver a ordem de quem ia
cantar. O diretor de harmonia – Xangô, comandava as pastoras.
No início do ensaio, só as pastoras participavam, comandadas
por Tia Neuma e Tia Zica. Só depois das cabrochas da escola
estarem na quadra é que era aberto ao restante do público. É
preciso preservar o samba e voltar aos velhos tempos de valori-
zação dos ritmistas e passistas.

MULHERES RELIGIOSAS
A perseguição impiedosa feita aos quilombos em função da
íntima relação entre as insurgências negras e as comunidades
religiosas de base africana, além da ameaça representada pelo
Quilombo dos Palmares, oportunizou a liderança religiosa das
mulheres, já que o governo promoveu um extermínio brutal dos
líderes religiosos. O culto aos orixás, que pode ser liderado por
homens ou mulheres, encontrou na mulher negra o principal
esteio para a manutenção das tradições religiosas e culturais da
comunidade.
As comunidades-terreiros surgiram de confrarias religio-
sas baianas, especificamente da Ordem Terceira do Rosário
de Nossa Senhora das Portas do Carmo, fundada na Igreja de

168 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


Nossa Senhora do Rosário do Pelourinho (negros de Angola)
e da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, da Igreja da
Barroquinha (mulheres nagôs). As mulheres tiveram um papel
fundamental em sua organização, tornando-as espaços estru-
turadores de identidade e de formas de comportamento social
e individual.
A primeira comunidade conhecida (que organizou pu-
blicamente o primeiro terreiro de culto aos orixás, dedicado a
Xangô Afonjá, orixá da casa dos Alafin, reis de Oyó) surgiu na
Barroquinha, fundada por três africanas, sendo uma delas des-
cendente de Ketu – sacerdotisa Iyá-Nassô. Foi o Ilê Iyá Nassô,
conhecido por Casa Branca, de onde saíram os mais importan-
tes terreiros Nagô, que fizeram da Bahia a conhecida Roma Ne-
gra, como dizia Mãe Aninha – Obá Biyi, fundadora do Axé Opô
Afonjá, em São Gonçalo do Retiro. As mães de santo, saudadas
e respeitadas por personalidades da vida cultural do País, se
destacam neste século como mulheres negras brasileiras, que
se impõem por sua dignidade e força. Um outro nome que se
destaca na tradição dos terreiros é o de Maria Bibiana do Espí-
rito Santo, Mãe Senhora, sucessora de Mãe Aninha no Axé Opô
Afonjá. Mãe Senhora, com apoio de seu filho Mestre Didi (De-
oscoredes Maximiliano dos Santos) artista plástico reconhecido
internacionalmente, sacerdote supremo do culto dos antepas-
sados (Egungun), restabeleceu em 1953 os laços religiosos com
a Nigéria, intercâmbio que permanece até os nossos dias. Mãe
Menininha do Gantois e Mãe Stella de Oxóssi, atual iarolixá do
Axé Opô Afonjá, são nomes conhecidos e respeitados em todo
o País, destacando-se Mãe Stella por sua liderança e luta contra
o sincretismo religioso.
As comunidades se constituem em verdadeiros sistemas de
alianças, que variam segundo o Estado em que se localizam e as
origens de seus fundadores, sendo que os laços de sangue são
substituídos pelos de participação na comunidade, de acordo
com a antiguidade, as obrigações e a linhagem iniciática.
O poder feminino que tem a mulher, segundo a tradição
africana tradicional é o princípio de criação, de onde brotam
plantas, sem os quais os animais não se reproduzem, a huma-
nidade não tem continuidade. Logo, o princípio feminino é o

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 169


princípio da criação e preservação do mundo: sem a mulher
não existe vida, devendo por isso a mulher ser reverenciada e é
no culto às Gélèdès ou mães ancestrais, representadas por más-
caras que se tornam uma metáfora, sendo uma linguagem para
a mãe natureza. O ojá ou pano da costa das baianas é um sím-
bolo das Gélèdès porque personifica o útero, já que lê carrega
as crianças e as protege.
No Rio de Janeiro, a baiana Tia Ciata, da Oxum Hilária Ba-
tista de Almeida ficou conhecida no início do século por suas
ligações diretas com os músicos do chorinho e com o samba
de morro carioca, gerador das conhecidas escolas de samba.
Agripina de Souza, de Xangô, Mãe Cantulina Pacheco, Mãe
Bida ou Mãe Beata de Iemanjá são mulheres negras conhecidas
e respeitadas no Rio de Janeiro por suas lideranças religiosas
e comunitárias. Da mesma forma que Mãe Andresa e Mãe Ce-
leste da Casa das Minas do Maranhão, são exemplos de força e
seriedade em São Luís, sempre ligadas às festas populares e à
arte em geral.

MULHERES POETISAS

Geni Mariano Guimarães


Geni Mariano Guimarães é a festa da palavra marginal. Nasceu
em São Manoel, interior paulista, trabalhou nos jornais Deba-
te Regional e Jornal da Barra, em Barra Bonita, e nos mostra
sua capacidade de criar e transformar. Publicou Terceiro filho
(poesia); Da flor, o afeto; da pedra, o protesto (poesia) e ganhou
o Prêmio Jabuti com o seu A cor da ternura, literatura infanto-
juvenil lançada pela Editora FTD.
Trazemos aqui alguns textos, que selecionamos como re-
presentativos da palavra da mulher negra sobre si mesma:

Nascia um belo dia, emoção grande me causou ver-


tigem, tomei das mãos do alfabeto, símbolos, com
eles riam verso virgem. Dos rios mastiguei os córre-
gos, dos sóis sorvi doirados bicos. Mamei a minha
mãe na fonte, ganhei vida, ri um verso terno rico. Da
primeira cobra armada em bote, aprendi as infinitas

170 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


contorções molengas. Tomei da angústia, vida fluída,
risquei um verso duro capenga.

Sou hoje colheita descoberta, nos amores da aurora


nas fazendas extração dos capitães de mato e dos de
areia do Jorge. Retrato pois, o poeta é um bicho da
seda que se explode.

Como podemos observar, o poema de Geni resume sua tra-


jetória de mulher negra, de personagem a autor. Suas caminha-
das, seus passos, suas estórias de infância que, presas em seu
peito anseiam por sair, voar e se espalhar pelo mundo afora, em
seu vôo de pássaro.
A obra de Geni Mariano Guimarães reflete, assim, conteúdos
pouco conhecidos da vida e da realidade de mulheres negras.

Eu sou de uma família, dessas muitas famílias negras


nascidas e formadas em zonas rurais, plantando e
colhendo algodão. Os meus pais tiveram 12 filhos,
eu sou a décima primeira. Imediatamente antes de
mim tem a Cema, com 5 anos de diferença, depois
vem o Zezinho com quatro anos de diferença, é o
décimo segundo filho. Não ganhei, portanto, muita
atenção, porque a Cema, a que vem antes de mim, é
excepcional, é o que eu chamo de meu poema bobo.
O Zezinho era o nenê e eu fiquei no meio; aquela que
enchia o saco com perguntas absurdas, que para os
meus pais e irmãos mais velhos, não era possível res-
posta. Então, ser negra na pequena sociedade rural e
poeta dentro da família fizeram com que várias ocor-
rências de somenos importância para os demais,
marcassem profundamente minha existência, como,
por exemplo, essa estorinha que por muito tempo
atrofiou-me as emoções mais puras.

Quando eu perguntava como era o céu, me respon-


diam o óbvio. Bonito, grande, azul etc. Não enten-
diam que eu queria saber do céu de dentro, eu que-
ria a polpa que a casca era visível. Por isso foi que eu
resolvi manter contato com as pessoas, só em caso
de extrema necessidade. Comecei então a falar com

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 171


os animais, que se mostraram no mínimo coerentes.
Aprendi a imitar todo e qualquer pássaro da região,
tirava de letra todas as mensagens dos cães, gatos,
cavalos, formigas etc. Quando era para rir, eu imitava
as coleirinhas, para negar alguma coisa eu latia, para
pedir eu miava, e as pessoas começaram a me olhar
torto. Foi por isso que me botaram uma correntinha
com um crucifixo no pescoço, a conselho do padre da
igrejinha local. (...) Até que um dia, a mando da mi-
nha mãe, dei um pulinho na horta pra buscar couve
para o jantar. Lá chegando encontrei uma fila enor-
me de formigas, que carregavam uma barata morta.
Eu fiquei terrivelmente amargurada. Como estariam
por causa da perda, os amigos, filhos, mãe, esposo,
esposa? e sem ver outro jeito de mostrar a minha dor
e solidariedade, aderi ao ato fúnebre. Amarga e cabis-
baixa acompanhei-a até última morada. (...) Quando
cheguei em casa, a família estava preocupadíssima
com a minha demora. Comecei a explicar:

– Não foi nada, é que eu fui acompanhar o enterro


da barata.

Então foi um silêncio geral. Eu percebi pelos olhares


que havia alguma coisa pior que o atraso. Não saben-
do onde estava o problema, quis me fazer compreen-
der. Pus-me a latir e a miar, para achar a frase que me
explicasse. Ao contrário do que eu previa, minha mãe
começou a chorar e foi assim que nesse mesmo dia,
já bem tarde da noite, me levaram na casa da Dona
Xica espanhola, que era uma benzedeira, residente
do outro lado da colônia, que sentenciou: (...)

– O espírito de Zumbi está do lado direito dela. Eu


vou fazer um trabalho especial, afasto coisa ruim e
peço a guarda da menina Isildinha.

Naquela noite, eu deitei com o lado direito espremi-


do contra o colchão de palha. E se a coisa ruim, que
está do meu lado direito, montasse nas minhas cos-
tas? (...)

172 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


A partir de então, camuflei todos os latidos, engoli to-
dos os miados para não denunciar a presença do meu
acompanhante. Nunca mais andei de sapo e passei a
fingir indiferença aos cantos dos pássaros e cacarejar
das galinhas. (...) Foi exatamente nesta época que eu
peguei bicho de pé. Eu quase morri de felicidade. A
única coisa negativa é que eu não podia falar com nin-
guém, nem mesmo com a minha mãe, porque quan-
do ela descobria que algum de nós pegava um, pegava
logo uma agulha, queimava a ponta na labaredinha
da lamparina e cutucava até arrancar o querido bicho
de pé da gente. Mas o bom, é que eu já não estava só.
Estando ele tão comigo, não era preciso mais palavras
para diálogos. Havia um fiozinho invisível que levava
o meu pensamento até ele, na curva do meu dedinho
do pé. Daí então, vinha-me uma coceira gostosa tra-
zendo-me respostas, consolos, soluções.

Um dia, lembrei-me que tínhamos um calendário


cuja primeira folha mostrava um cão lindo, enorme.
Não agüentei e através dele mandei recado para os
outros bichos, que eu não podia estar em contato.

– Olha faz favor de dizer para todo o mundo, que eu es-


tou muito, muito feliz e que eu peguei um lindo bicho
de pé. Fala que eu não estou de mau de ninguém, é que
o espírito de zumbi, não sei se vocês conhecem, está
me perseguindo e pode até pegar neles. Juro que eu
nunca, nunca me esqueci de ninguém. Agora, quando
o bicho mau for embora e a Santa Isildinha chegar, eu
aviso. Por enquanto, tchau, dorme com Deus.

Conceição Evaristo
Mineira de Belo Horizonte, Conceição Evaristo, nascida em
1946, vive atualmente no Rio de Janeiro. Tendo se formado em
Letras, é mestre em Literatura Brasileira pela PUC/RJ e douto-
ra em Literatura Comparada. A força de sua obra é sentida nas
mais diversas formas, tanto na poesia, quanto na ficção. Eis
como Conceição Evaristo se define:

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 173


Eu – Mulher
Uma gota de leite
Que escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
Me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
Me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu – mulher em rios vermelhos
Inauguro a vida.
Em baixa voz
Violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes – vivo
Antes – agora-o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz,
Eu – mulher
Abrigo da semente
Moto-contínuo
Do mundo.

Conceição Evaristo é autora do romance Ponciá Vicêncio,


que nos narra os pequenos acontecimentos do cotidiano, com
uma linguagem poética, mas marcada pela etnicidade. A his-
tória de Ponciá Vicêncio destaca o universo feminino marcado
pela exclusão. Descreve os caminhos, as andanças, os sonhos e
desencantos da protagonista. Conceição Evaristo mostra a tra-
jetória da personagem da infância até a idade adulta, analisan-
do seus afetos e desafetos, bem como seu envolvimento com a
família e os amigos.
Logo de início Ponciá, descendente de escravos, surge sem
o nome de família, já que Vicêncio (que todos os seus parentes
usam) é um sobrenome proveniente do antigo dono da terra. A
marca de subalternidade, que tirava de todos os mínimos requi-
sitos de cidadania para Ponciá, era como uma lâmina afiada a
torturar-lhe o corpo, o que faz com que a menina saia do campo
para buscar melhores oportunidades na cidade. Em uma passa-
gem do livro Conceição Evaristo nos conta:

174 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


O inspirado coração de Ponciá ditava futuros suces-
sos para a vida da moça. A crença era o único bem
que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que
durou três dias e três noites. Apesar do desconforto,
da fome, da broa de fubá que acabara ainda no pri-
meiro dia, do café ralo guardado na garrafinha, dos
pedaços de rapadura que apenas lambia, sem ao
menos chupar, para que eles durassem até o final do
trajeto, ela trazia a esperança como bilhete de passa-
gem. Haveria, sim, de traçar o seu destino.

Segundo o professor Eduardo de Assis Duarte, da UFMG,


o trabalho de Conceição Evaristo mostra a força e o poder das
mulheres, já que o romance destaca as dores, as angústias, as
violências que as mulheres sofrem, a solidão que enfrentam,
mas, ao mesmo tempo, mostra mulheres em busca da vida, que
exibem o eterno ato de se reconstruir que exibem no seu dia-
a-dia.

CONCLUSÃO
As mulheres negras se caracterizam por discutirem o seu dia-a-
dia, sendo que em 1975, quando as feministas comemoravam o
Ano Internacional da Mulher, elas apresentaram um documen-
to que delineava sua situação de opressão e exploração. Os anos
seguintes testemunharam a criação de diferentes grupos, que
enfatizam as mulheres negras e o princípio feminino africano:
Lelia Gonzalez constatou:

A verdade é que deixamos de ser invisíveis.

Temos que estabelecer tarefas dentro de um campo


concreto e desenvolver uma militância ativa junto às
comunidades negras espalhadas pelo Brasil.

Décadas de avanços nas condições das mulheres de todos


os países do mundo não atingem a mulher negra brasileira. Ape-
sar de termos deixado de ser invisíveis as estatísticas mostram
que a concentração feminina negra é maior como empregadas
domésticas, secretárias, professoras, vendedoras, balconistas e

AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 175


enfermeiras. Apesar de o censo de 1990 indicar existirem cerca
de 30 mil altas executivas, sendo 62% dos profissionais da Me-
dicina, 42% dos diplomados em Direito, 19% em Engenharia,
40% na Imprensa ocupando 2.301 cargos de juízas no Judiciá-
rio, segundo informação da revista Veja, “Especial Mulher” de
ago./set. 1994, a “maioria” das mulheres negras não se localiza
nestes quadros. As mulheres negras ainda precisam lutar pelo
acesso a ocupações tidas como “femininas e brancas” no Brasil.
Mesmo com diploma de curso universitário, conquistado com
muito suor e lágrimas, as mulheres negras são subestimadas e
rejeitadas.
É preciso revelar e assumir o poder de Iansã: transformar
tudo pelo seu movimento. Internalizar a idéia de que “O mundo
é o nosso mercado. O céu é o lar...”, como diz o oráculo de Ifá.
O Mercado é a representação do mundo em sua forma mais
intensa e, em sua versão social, as mulheres são responsáveis
por ele, já que é onde se geram os encontros, as seduções, as
trocas de energia.

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176 AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR


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AS MUITAS MULHERES AO TAMBOR 177


O QUILOMBO DE MANUEL
CONGO
Maria Teresa da Silva Telles

INTRODUÇÃO107
O rio Paraíba do Sul nasce no Estado de São Paulo, passa pela
região serrana fluminense, faz a divisa natural do Estado de Mi-
nas Gerais com o Estado do Rio de Janeiro, atravessa o norte
fluminense e deságua no Oceano Atlântico.
Formado pelo rio Paraibuna, que nasce na serra do Mar, e
pelo rio Paraitinga, que nasce na serra da Bocaina, o rio Paraí-
ba do Sul tem em seu vale um relevo de ondulações suaves, os
morros meia-laranja.108
As cidades de Paty do Alferes e de Vassouras, cenários do
tema deste artigo, localizam-se no médio vale fluminense do
rio Paraíba do Sul.
Com o declínio do ouro em meados do século XVIII e a ne-
cessidade de investir o capital acumulado com a mineração,
numerosas famílias vindas das regiões das minas de Minas Ge-
rais vão se estabelecer ao longo do médio vale fluminense do
rio Paraíba do Sul em busca de novas atividades que dessem
lucro.
Inicialmente essas famílias irão investir na plantação da
cana e do milho para abastecer o mercado consumidor do Rio
de Janeiro, mas aos poucos, esses cultivos vão sendo substituí-
dos pela plantação do café que utilizará o mesmo sistema agrí-
cola da cana-de-açúcar: grandes extensões de terra, monocul-
tora, e trabalho escravo para abastecer o mercado externo.

107. Artigo apresentado como Monografia de final de curso para obtenção do


grau de especialista de História da África e do Negro no Brasil, sob a orienta-
ção do professor Edson Borges, no ano de 2006-2007 na Universidade Candido
Mendes/RJ.
108. É uma forma de relevo ondulado, no formato de meia laranja, daí o nome.

O QUILOMBO DE MANUEL CONGO 179


Em torno da primeira década do século XVIII foram plan-
tadas as primeiras mudas de café nessa região que, alguns anos
depois, se tornou a maior produtora de café do Império e os ho-
mens provenientes das regiões das minas, que aí se instalaram,
vão se enriquecer como donos de grandes fazendas de café e de
grandes plantéis de escravos.
Os escravos que entraram no Brasil do século XVII até o
ano de 1850, ano da proibição do tráfico, eram originários da
região do Congo e Angola. O tráfico de escravos desta região,
nesse período, superou o comércio de escravos provenientes da
Costa da Mina.
O escravo foi fundamental para essa região, pois além do
trabalho nas plantações e nos engenhos, também foi impres-
cindível nas casas senhoriais, onde fazia todo o tipo de servi-
ço doméstico, tal como cozinhar, lavar, limpar, servir, arrumar,
cuidar das crianças, amamentá-las, nos trabalhos de transpor-
tes de pessoas e de espécies, nas construções etc.
O café e o trabalho escravo foram os dois elementos res-
ponsáveis pelo desenvolvimento dessa região do médio vale
do Paraíba, que, segundo Lamego (1950), transformava a pai-
sagem por onde passava: vendas e pousos iam surgindo, novas
estradas, capelas e paróquias, pontes sobre os rios, estradas
de ferro, estreitando a comunicação e reduzindo as distâncias,
impulsionando o comércio, multiplicando a população, levan-
tando palácios imponentes e espalhando por todo o vale várias
cidades.
Em Paty do Alferes, enquanto o crescimento da povoação
estava estagnado, as fazendas cresciam prosperamente, des-
tacando-se entre elas as da Freguesia e da Maravilha, perten-
centes a Manuel Francisco Xavier, capitão-mor de ordenança,
dono de 500 escravos e de três fazendas e por conta disso, nas
primeiras décadas do século XIX era o homem mais rico dessa
região.
Vassouras, que até então chamava-se Sesmaria de Vassou-
ras e Rio Bonito, passou a ser a sede da vila, segundo o artigo 4o
do decreto de 15 de janeiro de 1833, que declarava: “Fica extinta
a Vila de Paty do Alferes e em seu lugar, erecta em Vila a Povo-

180 O QUILOMBO DE MANUEL CONGO


ação de Vassouras, compreendendo no seu termo as freguesias
da Sacra Família e de Paty do Alferes.”
Com o aumento da produção do café e de sua importân-
cia para a economia brasileira, nas primeiras décadas do sécu-
lo XIX, Vassouras ocupa o lugar de maior produtora de café no
Brasil, e os produtores de café da Vila, os “barões do café”, uma
aristocracia com muito poder junto à Corte.

O QUILOMBO
Na noite de 5 de novembro de 1838, um grupo de 80 escravos
fugiu da fazenda Freguesia, em Paty do Alferes, em direção à
mata de Santa Catarina.
Na madrugada seguinte, portanto no dia 6, os escravos fu-
gitivos foram à fazenda da Maravilha, do mesmo proprietário e
lá tentaram matar o feitor, que fugiu, e convocaram os escravos
que lá viviam para a fuga. Arrombaram as portas dos paióis e
depósitos, em busca de mantimentos e ferramentas de trabalho
e seguiram em direção à mata onde encontraram escravos de
outras fazendas.
Essa informação nos é dada pelo juiz de paz de Paty do Al-
feres, José Pinheiro de Souza Werneck, em ofício enviado, da-
tado do dia 8 de novembro para o chefe da legião da Guarda
Nacional sediada em Valença.

Ilustríssimo Senhor

Neste momento me participa o capitão-mor Manuel


Francisco Xavier que, na noite do dia 6 do corrente,
lhe fugiram oitenta e tantos escravos, e que, na se-
guinte noite, tornaram à Fazenda da Maravilha, e
tornaram a conduzir uma porção de escravos, fazen-
do hoje um número de cento a tantos escravos fugi-
dos, sendo a maior parte deles armados. Os primei-
ros que fugiram arrombaram diversas casas, de onde
roubaram mantimentos e vários outros objetos, e na
seguinte (noite) foram então à Fazenda do capitão-
mor, Maravilha, onde quiseram matar o capataz, que
escapou no telhado da casa, e, tendo espancado ou-

O QUILOMBO DE MANUEL CONGO 181


tro preto, trataram de arrombar as casas, de onde ti-
raram feijão, milho, farinha e açúcar, e bem assim ca-
pados que se achavam na seva, e continuam nas suas
excursões; e suponho, segundo os pormenores que
tenho, que o seu fim é ir reunir mais força, e depois
lançar mão de outros meios que a Vossa Senhoria e
a mim não são ocultos, e como seja de urgente pre-
cisão cortar em princípio seus danados fins, rogo a
Vossa Senhoria que mande pôr à minha disposição a
força da Guarda Nacional que Vossa Senhoria puder
arranjar, a qual se deverá achar no dia 10 do corrente,
às 4 horas da tarde, no lugar do Paty à minha disposi-
ção, os quais deverão vir armados e os que não trou-
xerem munição lhes será por mim fornecida.

O sucesso da produção do café e a exploração do trabalho


escravo gerava muita riqueza para o País e para um grupo de
fazendeiros do vale fluminense do rio Paraíba do Sul.
Por conta disso, essa fuga dos escravos levou a região de Vas-
souras e de Paty do Alferes a um estado de pânico tal que nunca
havia sido visto antes na história dessas duas localidades.
O Quilombo de Manuel Congo é pouco conhecido e teve
pouca duração, daí o conceito “efêmero” utilizado quando al-
guns autores referem-se a este quilombo. Porém, teve uma
enorme importância e bastante repercussão em função do pe-
ríodo e do lugar onde aconteceu.
O ano é 1838 e o lugar é o médio vale do rio Paraíba do Sul,
mais precisamente em Paty do Alferes, Vila de Vassouras. Nesse
período, ultrapassando a produção do açúcar, o café era a ativi-
dade econômica mais importante do Império e a região do vale
médio do Paraíba do Sul era a maior produtora cujas exporta-
ções passaram de 160 arrobas em 1792 para 3.237.190 arrobas
em 1835 (FLORENTINO, 2004), portanto, uma região de atração
de população e de investimentos era a região mais importante
do País e os donos das plantações de café da região, detinham
muito poder, tanto em escala local como também junto ao po-
der imperial.

182 O QUILOMBO DE MANUEL CONGO


TRÁFICO, ORIGEM E RESISTÊNCIA DOS ESCRAVOS
Com o processo de colonização das Américas, o comércio de
escravos se desenvolveu intensamente.
Não se sabe precisar a data em que chegaram os primeiros
escravos africanos ao Brasil, mas é fato que, com as dificulda-
des, criadas pelos jesuítas acerca da escravidão indígena e com
a necessidade de mão-de-obra nas plantações da cana-de-açú-
car e, mais tarde, nas atividades das minas, por volta de 1540
iniciou-se o tráfico de escravos entre o Brasil e a África.
A partir daí, o comércio de escravos se intensificou com
o aumento da demanda internacional de produtos agrícolas e
com a exploração do ouro nas minas brasileiras. Os escravos
negros foram trazidos da África para o Brasil pelos traficantes,
inicialmente europeus, e depois baianos e cariocas, nos navios
negreiros, e esta viagem podia levar até 50 dias. Em média, os
navios tinham capacidade para transportar entre 440 a 450 es-
cravos, mas um número considerável morria em alto mar por
conta de doenças, maus-tratos, alimentação insuficiente e su-
perlotação nos navios: a taxa de mortalidade era de cerca de
6% a 9%, quando vinham do Congo e Angola e o dobro quando
vinham de Moçambique.
O tráfico de escravos da África para o Brasil era uma ativi-
dade de tal maneira rentosa que os traficantes contratavam ar-
quitetos para fazer plantas da disposição dos escravos no navio,
a fim de embarcar o maior número possível.
Entre 1790 e 1830, entraram pelo Porto do Rio de Janeiro
700 mil escravos, trazidos por cerca de 1.576 navios, provenien-
tes da África. Até então, o porto de Salvador era a principal en-
trada de escravos, mas com a exploração do ouro na província
mineira e, mais tarde do café na província fluminense, o do Rio
passou a ser o mais importante porto de abastecimento de es-
cravos não só para o norte e sul fluminense, mas também para
o Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e
São Paulo.
Por pressão da Inglaterra, que havia abolido o tráfico em
1807, e que exigiu o fim do tráfico de escravos no Brasil em tro-
ca do reconhecimento de sua independência, em 1827, o Brasil
assinou um acordo onde se comprometeu a extinguir o comér-

O QUILOMBO DE MANUEL CONGO 183


cio de escravos em 1830. O fim do tráfico de escravos no Brasil
aconteceu 20 anos depois, somente em 1850, quando foi extin-
to oficialmente o tráfico de escravos africanos para o Brasil.
Quando desembarcados no porto do Rio de Janeiro, no
século XIX, auge da lavoura cafeeira no vale do rio Paraíba do
Sul, os escravos eram levados para o armazém do Valongo, onde
eram vendidos. Por ordem do vice-rei, marquês de Lavradio, a
partir de 1779, na rua do Valongo se localizou o mercado de
compra e venda de negros – “depósito e armazenagem de es-
cravos” – a fim de evitar que os escravos desembarcados transi-
tassem pelas ruas, da cidade, nus e doentes.
Era para lá, portanto, que os grandes fazendeiros de café,
do vale fluminense do rio Paraíba de Sul, se dirigiam a fim de
comprar escravos. Havia também os escravos que já iam direto
do navio para as fazendas, após o desembarque, pois tinham
sido encomendados pelos fazendeiros.
Nas primeiras décadas do século XIX, Vassouras, uma das
principais áreas compradoras de escravos da província, rece-
beu enormes levas de escravos provenientes da região centro-
ocidental do continente africano.
Segundo Russel-Wood (2001), “A África centro-ocidental
incluía a região que ia do atual Gabão até o sul de Angola, e os
escravos eram identificados, pelas alfândegas e por outros re-
gistros no Brasil, por suas regiões de origem, sendo-lhes atribu-
ídas também afiliações étnicas”, dentre essas Congo, Cabinda,
Angola, Cassanje, Luanda, Quiçama, Benguela.
Segundo resultado de estudos (GOMES, 1995) sobre a po-
pulação escrava de Vassouras neste período, feitos a partir de
inventários de ricos fazendeiros de café da região, em meados
do século XIX, a maioria dos escravos que trabalhavam nas fa-
zendas eram africanos, eram homens e tinham entre 15 e 40
anos. Seria interessante acrescentar aqui que na África islâmica
a mulher era quem trabalhava na agricultura, portanto a escrava
mulher tinha mais valor, era mais cara porque, além de repro-
duzir, também tinha a função de produzir. Quando o europeu
se interessou pelo comércio de escravos, preferiu o homem, era
mais barato.

184 O QUILOMBO DE MANUEL CONGO


Quando os escravos desembarcavam no Brasil, recebiam
um nome e sobrenome e este último fazia referência aos por-
tos de origem dos traficantes africanos. Em Vassouras, entre
1837-1840, a maioria dos escravos são provenientes das regiões
de Angola, Benguela (24%, a maioria dos escravos), Cabinda,
Congo (da área da bacia do rio Congo, 20%, em seguida ao de
Benguela) e Moçambique.
Sobre a origem dos africanos que vieram para o Brasil como
escravos, Russel-Wood (2001) escreve:

Designações identificadoras de escravos apresenta-


vam-se como uma mistura de referências relaciona-
das ao porto de origem, de referências genéricas ou
de termos específicos, vinculados às áreas geográ-
ficas de origem, às formas de governo, aos grupos
étnicos e à terminologia criada pelos traficantes ou
pelas pessoas encarregadas da elaboração dos regis-
tros alfandegários, que provavelmente misturavam
dois ou mais grupos étnicos em um mesmo nome
genérico (Congo), aplicando, assim, uma designação
geográfica (por exemplo, o porto de Cabinda), ou es-
tendendo a designação um tanto estreita de nagô ao
tratamento de todos os grupos que falavam yoruba.
Designações largas e amplas, tais como “mina”, eram
aplicadas a diferentes regiões e povos, em diversos
períodos.

Em relação ao plantel de escravos do fazendeiro de café


Manuel Francisco Xavier, dono de Manuel Congo, 70,3% dos
seus escravos eram provenientes do Congo, Angola, Benguela,
Moçambique e Cabinda (GOMES, 1995).
Alguns dados retirados do livro de Gomes (1995), são bas-
tante interessantes. Nesse período, ou seja, por volta de 1838,
quando ocorre a fuga dos escravos em direção a Serra de Santa
Catarina, a maior parte dos escravos da Vila de Vassouras é afri-
cana e, portanto, havia um menor número de crioulos, ou seja,
de escravos nascidos no Brasil.
Ainda segundo resultado da pesquisa da população escrava
dessa região, a naturalidade dos escravos indiciados no proces-

O QUILOMBO DE MANUEL CONGO 185


so de insurreição em 1838, em Vassouras, são Benguela, Congo,
Cabinda, Angola, Moçambique, Mofumbe, Rebolo, Quissamã.
Este estudo confirma a historiografia sobre o assunto, se-
gundo a qual os senhores preferiam comprar escravos de re-
giões diferentes da África com o intuito de dificultar a relação
entre eles, já que falavam diferentes línguas e tinham hábitos
e costumes diversos e que, inclusive, dependendo das regiões
de origem – pressupunham os donos de plantéis de escravos
– haveria conflitos entre escravos, o que dificultaria qualquer
possibilidade de criação de laços de solidariedade.
Para Florentino (2004), a grande variedade de origem étni-
ca dos escravos que chegavam da África para o Brasil, provocou
muito mais conflito do que laço de solidariedade entre eles por
conta das rivalidades históricas entre povos africanos.
Baseados nesses fatos, se por um lado os senhores se bene-
ficiavam desses conflitos entre os escravos, por outro lado, este
clima de rivalidade entre escravos de nações diferentes, atrapa-
lhava o trabalho destes.
Por fim, gostaria de levantar um assunto que considero da
maior relevância que é a relação entre o tempo de duração dos
quilombos e a sua importância.
Durante muito tempo, o quilombo de Palmares apareceu
nos livros didáticos, como se somente os escravos que constru-
íram aquele quilombo tivessem resistido à escravidão, pelo me-
nos quanto a esta forma de resistência.
Com o passar dos anos e depois de muita pesquisa nesta
área, a historiografia foi atribuindo valor aos diversos quilom-
bos que se formaram ao longo do espaço brasileiro, ao estudá-
los e identificá-los. Mas o quilombo de Palmares, por ter sido o
que mais tempo durou, manteve sua primazia sobre os outros,
inclusive sobre o “efêmero” quilombo de Manuel Congo, que
teve sua importância reduzida por conta do tempo de duração.
Analisando a questão do tempo de duração dos diversos
quilombos, Reis (1995-1996) nos diz que os quilombolas são
um péssimo exemplo para os escravos, segundo a visão dos se-
nhores de escravos, e por conta disso, muito se investiu para
criar uma força de repressão aos quilombos. João José Reis cita
muitos casos de punições a quilombolas, de extrema crueldade

186 O QUILOMBO DE MANUEL CONGO


para servir de exemplo para as senzalas. Muitos quilombolas
foram enforcados e esquartejados.
Ainda segundo Reis, “A pressão militar era constante, daí
terem sido poucos os quilombos que sobreviveram por longo
tempo, embora o mesmo lugar pudesse servir de esconderijo
para outras levas de negros fugidos. Em geral os quilombos
eram flutuantes e móveis...”.
Reis conclui dizendo que é difícil falar sempre em “comu-
nidade quilombola” porque, segundo ele “comunidade pressu-
poria alguma longevidade, que permitisse certa estabilidade, a
sucessão de gerações, o estabelecimento de uma memória gru-
pal, de costumes, rituais, valores próprios, formas consagradas
de lideranças que organizassem politicamente e defendessem
militarmente o grupo”. Segundo este historiador, poucos foram
os quilombos que conseguiram todas essas características.
É importante aqui, lembrar mais uma vez que segundo
Reis (1995-1996), a maior parte dos quilombos do Brasil foram
efêmeros, ou seja, duraram muito pouco porque não deveriam
sequer existir, segundo o desejo do poder econômico e político
da época e do lugar. Inclusive, a figura do capitão-do-mato foi
criada, no período em que houve a escravidão, para procurar os
escravos fujões nas matas.
No que diz respeito à reação da força policial frente à insur-
reição liderada por Manuel Congo, seis dias após o levante, foi
extremamente rápida para a época, quando a organização de
uma força policial normalmente era demorada, devido à difi-
culdade de comunicação, à burocracia e às más condições das
estradas.

CONCLUSÕES
Através da comunicação entre as autoridades vê-se a importân-
cia que foi dada à fuga dos escravos para a mata de Santa Cata-
rina em novembro de 1838.
Também podemos saber que os escravos estavam organi-
zados, que não foi uma idéia individual, que os escravos prepa-
raram-se e, depois, quando da chegada da força policial à mata,
os escravos reagiram como puderam com armas de fogo e com
instrumentos de trabalho.

O QUILOMBO DE MANUEL CONGO 187


Em 11 de novembro fizeram a primeira busca na mata da
serra de Santa Catarina, mas foram rechaçados pelos escravos.
Em 12 de novembro, a Guarda Nacional, agora muito bem or-
ganizada, alcançou os quilombolas e, em número maior e mais
bem armado, rendeu os escravos.
Assim como a formação e organização da expedição contra
o quilombo, também o processo contra os acusados foi rápido;
em maio de 1839 foi concluído. Manuel Congo foi acusado em
dois processos: um por crime de insurreição e o outro por cri-
me de homicídio, pois foi acusado de matar dois pedestres que
estavam na expedição para desbaratar o quilombo.
A partir do momento em que o escravo comete um crime
contra um branco, a dualidade “escravo pessoa versus escravo
coisa” fica em evidência. Se é acusado com direito a um advoga-
do para representá-lo, a justiça está dando a ele a condição de
pessoa, ele deixa de ser peça, mercadoria. Portanto, o escravo
era tratado como pessoa, deixava de ser coisa, quando cometia
um crime. Por conta desta situação, Gorender (1990) escreveu:
“o primeiro ato humano de um escravo é o crime”.
No caso de Manuel Congo, a contradição ficou muito mais
explícita, pois que o seu senhor, que o processou, também foi o
seu representante no processo de fuga e crime.
Manuel Congo foi condenado à pena máxima, morte na
forca, e aos outros escravos foram aplicados às penas de 650
açoites; quanto às escravas, todas foram absolvidas. Tratava-se,
afinal, de um levante de grandes proporções por conta do nú-
mero elevado de escravos em uma região com grande número
de população escrava e que segundo o receio dos fazendeiros,
poderia colocar a região em grande risco. Àquela altura, o tra-
balho escravo tornara-se indispensável e os negros comprados
aos milhares trabalhavam nas terras, dessa região, para aumen-
tar o patrimônio dos fazendeiros.
A rapidez da organização da expedição ao quilombo e do
tamanho do contingente mobilizado para tal, muito provavel-
mente se deveu ao fato de que o coronel chefe da Guarda Nacio-
nal sediada em Valença, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck,
era um importante fazendeiro da região e dono de um grande
plantel de escravo. Por conta disso, sequer aguardou uma or-

188 O QUILOMBO DE MANUEL CONGO


dem do ministro da Justiça, que seria o procedimento da época,
e prontamente levou seus comandados para Paty do Alferes.
Provavelmente os escravos não esperavam uma reação rá-
pida das autoridades locais. Sabiam sim, que seriam procura-
dos, mas que essa mobilização, como acontecia na época, de-
moraria o tempo suficiente para que eles alcançassem o alto
da serra, no meio da floresta, o que dificultaria o trabalho da
Guarda Nacional.
Quanto ao fato de terem sido arrolados no processo somen-
te os escravos de Manuel Francisco Xavier (apesar de escravos de
outras fazendas também participarem do levante), Flavio Gomes
pondera de maneira muito assertiva que, provavelmente, foi por-
que havia há tempos problemas na escravaria deste fazendeiro,
por conta de indisciplina entre os escravos. Pelos documentos,
os fazendeiros não estavam satisfeitos com a forma de como ele
encaminhava os problemas com seus escravos e com o intuito
mesmo de punir este fazendeiro porque, com exceção de um,
todos os 15 escravos arrolados no processo eram seus. Inclusive
isto explicaria o fato de que, apesar do escravo de outro fazendei-
ro ter sido também indicado como cabeça do levante, somente
Manuel Congo, escravo de Manuel Francisco Xavier, foi conside-
rado culpado e recebeu a pena máxima.
Por fim, seria interessante acrescentar que a divulgação
desse que foi o maior levante de escravos nesta região, é de
suma importância para a construção da identidade afrodes-
cendente da população da região.
Manuel Congo foi enforcado no dia 6 de setembro de 1839,
menos de um ano após o levante, na sede da Vila de Vassouras,
no que se tornou um grande evento público, com a presença
das autoridades e dos fazendeiros da região.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FLORENTINO, M. R. A. V.; SILVA, D. D. Aspectos comparativos do tráfi-
co de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX). Afro-Asia, Salvador,
v. 31, p. 83-126, 2004.

O QUILOMBO DE MANUEL CONGO 189


GOMES, F. dos S. História de quilombolas: mocambos e comunidades
de senzalas no Rio de Janeiro-século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Na-
cional, 1995.
GORENDER, J. A escravidão reabilitada. São Paulo: África, 1990.
LAMEGO, A. R. O homem e a serra. Rio de Janeiro: Conselho Nacional
de Geografia, 1950.
REIS, J. J.; GOMES; F. dos S. (Org.). Liberdade por um fio: história dos
quilombolas no Brasil. São Paulo: Letras, 1996.
REIS, J. J. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Povo Negro, São Pau-
lo, v. 28, p. 14-39, dez./fev. 1995/1996.
REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Através de um prisma africano: uma nova
abordagem ao estudo da diáspora africana no Brasil colonial. Tempo,
Rio de Janeiro, v. 6, n. 12, p. 11-50, dez. 2001.

190 O QUILOMBO DE MANUEL CONGO


CONSTRUÇÕES
E RECONSTRUÇÕES
DO ESPAÇO E DA CIDADANIA
Patrícia Amaral Siqueira
Patrícia Freitas

Nossa instituição – a Escola Estadual de Ensino Fundamental


República – atende aproximadamente 1.800 alunos, da Educa-
ção Infantil ao nono ano do Ensino Fundamental, funcionando
em três turnos. Ela está localizada dentro do Cetep Quintino
que ocupa o mesmo espaço que já foi envolvido no passado
com acusações de maus-tratos e classificado como uma insti-
tuição total, por já ter abrigado ali instituições como o Serviço
de Assistência ao Menor (SAM) e a Fundação Nacional de Bem-
Estar do Menor (Funabem).
No Complexo de Quintino funcionam além da nossa a Es-
cola Técnica Estadual República, a Favo de Mel, a Arte Vida e
diversas atividades profissionalizantes. No Complexo também
se encontra a sede da Fundação de Apoio ao Ensino Tecnológi-
co (Faetec).
Para entendermos um pouco mais do desenvolvimento do
ensino público brasileiro e do lugar de nossa escola nesse con-
texto é interessante que possamos reconstruir historicamente
seu passado. Para isso investigamos através de documentos
como os decretos do governo estadual que saem no Diário
Oficial (DO), e também por meio das entrevistas e conversas
informais com funcionários do governo federal – que eram
os responsáveis pela administração da Funabem – que ainda
permaneceram na escola apesar da transição. As informações
sobre o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), também estão
presentes, ainda que escassamente, nas entrevistas1 e, também,

CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA 191


no texto de Maria Rosilene Barbosa Alvim (IFCS/UFRJ), intitula-
do “A Infância Negada: ‘Meninos e meninas de rua’ no Brasil.”
Todas as informações sobre o período histórico anterior
ao SAM foram encontradas no Arquivo Nacional com o auxílio
de um grupo de antigas funcionárias da Funabem que foram
transferidas para lá junto com todo o arquivo de documentos
dessa Instituição. O documento intitulado “Exposição e orça-
mentos para organização de Serviço de Proteção à infância mo-
ralmente abandonada e delinqüente3 no Distrito Federal” (grifo
meu), 1911/doutor Franco Vaz – diretor (Biblioteca do Ministé-
rio da Fazenda/Registro dos Próprios da União, 8o andar), nos
informa que a questão do trabalho com infratores da Escola XV
de Novembro tem mais de cem anos.
O fato de sermos funcionárias da Instituição favoreceu si-
tuações em que pudemos obter informações por meio de con-
versas e bate-papos informais com colegas de trabalho, muitos
funcionários antigos da casa, ao longo dos anos de convivência.
Obtivemos valiosas informações sobre o dia-a-dia da instituição
anterior, além, é claro, de vivenciar o “nascimento” do projeto e
da transição junto com eles. Um bom exemplo do que estamos
relatando pode ser a “lenda da fazenda”. Como em boa parte do
cotidiano da sociedade brasileira, encontramos a presença ma-
ciça de elementos mágicos que compõem o nosso imaginário.
Em várias conversas sobre o Complexo de Quintino, não pode-
ria ser diferente. O assunto sempre girava em torno do ambien-
te “carregado e pesado” da escola, desde pequenos acidentes,
discussões, humor, até mal-estar físico, tudo era associado ao
referido peso do local. Este peso tinha suas explicações, afinal,
além de ter sido cenário para as dores físicas e morais de mui-
tos menores, aquela área também já tinha dado lugar a uma
fazenda, disse uma vez o professor de Língua Portuguesa, com
direito a cemitério de escravos e tudo o mais. Após algumas in-
cursões ao Arquivo Nacional pudemos, mediante comparação
de mapas, constatar que realmente existia uma fazenda naque-
la região, a Fazenda da Bica, o que acabou possibilitando uma
reconstrução histórica do local. A contextualização da transfe-
rência da Escola XV de Novembro para a Fazenda, e as modifi-
cações vividas pela instituição, com o cenário carioca a partir

192 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA


do final do século XIX e início do século XX, são extremamente
necessárias para o entendimento do espaço ocupado hoje por
nossa escola.
Acreditamos que traçar um panorama geral da cidade do
Rio de Janeiro nos primeiros anos da República nos permite
uma melhor compreensão de nossa instituição. Assim como
nos parece ser relevante tratar da questão étnica, que permeia
todo o histórico do espaço que hoje ocupamos.
As constantes transformações ocorridas no Complexo de
Quintino dificultaram a construção da identidade de nossa es-
cola a partir do momento de sua fundação como instituição
educacional, em 1906. Cada Instituição que ocupava o espaço
da antiga Fazenda da Bica trazia em sua formação um discurso
que renegava a experiência anterior.
Em 1970, o presidente da República, Emílio Garrastazu
Médici, faz um discurso na Fundação para a abertura das co-
memorações da semana da criança, onde critica duramente o
SAM. Acompanhemos a sua fala:

Cuido dar-lhe outro sentido e dimensão, vindo ver


a criança, no local mesmo em que a nação inteira
viveu o drama do SAM, e, fundamentalmente, para
assinalar o compromisso da Revolução com uma po-
lítica nacional do bem-estar do menor, sempre mais
conseqüente.

Nesta manhã, vejo todo um milagre. Vejo o milagre


da transmutação da “sucursal do inferno”, da “escola
do crime” e da “fábrica de monstros morais”, em um
centro educacional voltado para o desenvolvimento
integral do menor.

Eminente ministro do Supremo Tribunal Federal, jul-


gando o pedido de habeas corpus de um jovem que
fugira do SAM, disse, em junho de 1961, que a sua
finalidade prática era “instruir para o vício, para a re-
ação pelo crime, para todas as infâmias e misérias” e
que “deveria ser arrasado, desde o teto até os alicer-
ces7 para que começasse tudo de novo e sob moldes
inteiramente diversos”.

CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA 193


Mas como não são o alicerce e o teto que fazem a
casa, bastou, nesta hora de moralização de nossos
costumes administrativos, que ela fosse habitada de
uma nova alma, para que o milagre se fizesse. No lu-
gar do SAM, a Fundação; o amor ao invés do crime.

Esse milagre que, hoje e aqui, proclamamos a toda


nação brasileira, nós o devemos por inteiro à revo-
lução de março. E não tenho dúvidas ao afirmar que
a contestação mais cega e mais surda, que tudo ne-
gasse a obra revolucionária, haveria, pelo menos, de
bendizê-la por apagar o sangue, a corrupção e a ver-
gonha do malsinado SAM, para, neste mesmo lugar,
erguer a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
(nosso grifo).

A semelhança dos discursos de Médici com aqueles que


ouvimos neste período de transformação da Funabem para o
CEI indica que se manteve ali a tradição que, com tanta virulên-
cia, se repudiava. É claro que não deixamos aqui de pontuar as
nítidas diferenças de um momento para o outro e do desenrolar
de uma história para a outra. Todavia, não podemos deixar de
marcar as semelhanças de certas atitudes e colocações políticas
em relação aos projetos. O que nasce é sempre melhor do que
aquele que é suplantado, sua filiação à corrente política que o
inaugura também é alardeada. E, no caso específico do Com-
plexo de Quintino, é a terceira transformação substancial, digo
substancial, pois antes da Funabem ser extinta e nascer o atual
projeto, ocupou ali o Centro Brasileiro de Infância e Adolescên-
cia (CBIA), que teve poucos anos de existência.
Vejamos agora um trecho da reportagem da Veja Rio de
ago./set. 1996:

Nada que espante a ex-comunista Nilda, que de-


sembarcou ali há um ano e meio, quando o lugar
ainda atendia pelo nome de Funabem, o depósito
de menores infratores, de triste memória, onde se
sucediam fugas e rebeliões, e no qual se formaram
grandes criminosos.

194 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA


A idéia que se tinha do SAM, quando por volta do período
de inauguração da Funabem, é muito semelhante à que se ti-
nha, no período do surgimento do CEI, da própria Funabem.
O que não vai se repetir quando o espaço passa a se chamar
Cetep, onde o nome foi novamente modificado por questões
políticas. Os governos que se sucedem, não querem dar con-
tinuidade ao trabalho do outro, mas neste período, não havia
mais a carga simbólica utilizada como marketing que acom-
panhou as outras modificações, a idéia agora era de ampliação
para divulgação do novo governo.
Devemos ao interacionismo simbólico dois dos principais
conceitos que utilizamos no artigo para entendermos o espaço
e sua clientela: desvio e estigma. Ambos estão relacionados e
são desenvolvidos por Erving Goffman. Embora também faça-
mos uma referência à instituição total ao falar sobre a Funa-
bem, é com as noções de desvio e estigma que elaboramos nos-
sa interpretação dos grupos de crianças e jovens que estiveram
como internos e alunos no Complexo de Quintino.
Logo no prefácio de Estigma – Notas sobre a manipulação
da identidade deteriorada, o autor nos diz:

(...) estigma – a situação do indivíduo que está inabi-


litado para a aceitação social plena.

Durante todo o livro, Goffman discorre sobre como uma


pessoa estigmatizada, marginalizada, constrói sua identidade
social, e sobre as mais variadas formas de situações sociais pe-
las quais o estigma é imputado a alguém, que vão de circuns-
tâncias físicas, mentais, e até morais. Entendemos por estigma
um atributo que torna alguém menor, inferior, menosprezado
pelos demais. O estigmatizado é alguém que traz uma marca,
não necessariamente os sinais físicos, como para os gregos, ou
ainda as deficiências físicas com as quais trabalhou o próprio
Goffman, mas uma marca que lhe é na verdade imputada pe-
los outros membros da sociedade, tornando-o depreciativo aos
olhos de todos. Essa desvalorização de alguma característica
física, social ou moral de determinado indivíduo ou grupo de
indivíduos, que marca toda a sua trajetória social e que irá, des-

CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA 195


ta forma, ser o contexto no qual se construirá sua identidade
social, é um dos pontos principais. Afinal, podemos afirmar que
o estigma imputado aos indivíduos pode também recair sobre o
espaço ocupado por eles, neste caso, o Complexo de Quintino.
Outro conceito importante e que está relacionado a este é
o de desvio. Embora este conceito apareça no último capítulo
do livro de Goffman, preferimos basear nossas observações na
interpretação do conceito de desvio, proposta por Howard Be-
cker e trabalhada por Gilberto Velho (VELHO, 1985). Vejamos o
que nos diz o autor:

O grupo dos chamados interacionistas tem impor-


tante contribuição nesta área. A noção básica é que
não existem desviantes em si mesmos, mas sim uma
relação entre atores (indivíduos, grupos) que acusam
outros atores de estarem consciente ou inconscien-
temente quebrando, com seu comportamento, limi-
tes e valores de determinada situação sociocultural.
Trata-se, portanto, de um confronto entre acusado-
res e acusados. Diz Howard Becker em seu livro Out-
siders: (...) Quero dizer que os grupos sociais criam o
desvio ao estabelecer as regras cuja infração consti-
tui desvio e ao aplicá-las a pessoas particulares, mar-
cando-as como outsiders. Sob tal ponto de vista, o
desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa faz,
mas sim a conseqüência da aplicação por outrem de
regras e sanções ao transgressor (...) (Becker, 1966, p.
8-9) (VELHO, op. cit., p. 23, 24).

Em outros termos, podemos dizer que é classificado como


desviante todo indivíduo que fizer uma leitura diferente da cha-
mada realidade, diferente daquela estabelecida como uma ver-
dade, uma regra. Elegemos a leitura feita por Gilberto Velho na
medida em que concordamos com sua argumentação de que a
idéia do inadaptado/desviante tem como pano de fundo uma
visão estática da cultura. Como afirma o próprio autor à cultura
não é algo acabado e sim uma linguagem permanentemente
acionada e modificada por pessoas que não só desempenham
“papéis” específicos, mas que têm experiências existenciais
particulares (VELHO, op. cit., p. 21). Desta maneira quando

196 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA


classifico este ou aquele indivíduo como desviante, na verda-
de, estou apenas dizendo que a leitura que ele faz é divergente
daquela estabelecida por um determinado grupo social como
regra de conduta. Em momento algum interpreto o comporta-
mento desviante como anormal, e sim, como uma leitura dife-
rente das demais.
O conceito de desvio também foi utilizado para a análise
da questão da etnia. Para que seja possível compreender em
que medida se deu essa utilização, vamos retornar a Goffman.
No último capítulo do livro citado, intitulado “Desvios e com-
portamento desviante”, o autor faz uma referência às minorias
étnicas, vejamos:

(...) os desviantes intragrupais, os desviantes sociais,


os membros de minorias e as pessoas de classe baixa
algumas vezes, provavelmente, se verão funcionan-
do como indivíduos estigmatizados, inseguros sobre
a recepção que os espera na interação face a face,
e profundamente envolvidos nas várias respostas a
essa situação. Isso ocorrerá pelo simples fato de que
quase todos os adultos são obrigados a manter rela-
ções com organizações de serviço, não só públicas
como comerciais, onde se supõe que prevaleça um
tratamento cortês, uniforme, com base limitada ape-
nas à cidadania, mas onde surgirão oportunidades
para uma preocupação com as valorações expres-
sivas hostis baseadas em um ideal virtual de classe
média (GOFFMAN, op. cit., p. 157).

A partir desta argumentação de Goffman e levando em


consideração a leitura de desvio feita por Gilberto Velho, con-
cluímos que a questão da etnia na escola poderia também ser
interpretada por meio desses conceitos, na medida em que a
minoria étnica é estigmatizada e que a construção da identi-
dade dessa minoria é fortemente influenciada pela classifica-
ção social que fazem dela. Sendo assim, poderíamos explicar as
questões étnicas que existem em nossa instituição através des-
sas categorias, principalmente sua relação com a auto-estima.
Ao analisarmos historicamente o Complexo de Quintino, per-

CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA 197


ceberemos qual grupo étnico ocupou este espaço ao longo do
tempo de maneira mais permanente e, até mesmo, as relações
sociais estabelecidas para que isso acontecesse.

CONTEXTUALIZAÇÃO
A cidade do Rio de Janeiro, durante a primeira década da Repú-
blica, sofreu mais intensamente as transformações que ocor-
riam desde a época do Império, visto que o Rio de Janeiro ocu-
pava o posto de maior cidade e capital econômica, política e
cultural do País.
Dentre as transformações ocorridas, o crescimento da po-
pulação em termos relativos foi o primeiro a ser sentido pelos
habitantes da cidade. Houve uma alteração profunda no que
se refere ao número de habitantes, de composição étnica e de
estrutura ocupacional. O crescimento da população deveu-se
a Abolição, que liberou o restante da mão-de-obra escrava da
zona rural, à intensificação da imigração, da migração interna e
ao saneamento do Rio de Janeiro que favorecia a expansão in-
dustrial, incrementando a oferta de mão-de-obra e o mercado
consumidor.
De acordo com Eulália Lobo, em 1872 a população da capi-
tal contava com 274.972 habitantes, passando para 522.651 ha-
bitantes em 1890. Em 1900, a população da capital era aproxi-
madamente 691.565 habitantes, chegando a 811.443 em 1906.109
A autora ressalta que, os recenseamentos de 1872 e 1890 englo-
bavam, o primeiro, os ausentes na época do censo, e o segundo,
a população regular e flutuante. O censo de 1900 foi considera-
do falho pelo próprio governo que classificou o resultado como
uma estimativa. Já o censo de 1906 foi o mais perfeito.
Os nacionais eram em número de 190.689 em 1872. Em
1890, contavam 398.299 habitantes e em 1900, chegaram a
519.849. Os estrangeiros perfaziam a seguinte marca: em 1872,
eram 84.283 habitantes, ou seja, 30,65% da população; em 1890,
124.352 habitantes (23,80% da população); e em 1900, 171.716
habitantes (24,83% da população).110

109. Eulália M. L. Lobo. História do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1978.


110. Idem.

198 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA


O efeito deste crescimento populacional pode ser sentido
no acúmulo de pessoas em ocupações mal remuneradas ou
sem ocupação fixa. Essa população vivia na frágil fronteira en-
tre a legalidade e a ilegalidade, muitas vezes, participando de
ambas ao mesmo tempo. Devido ao alto índice de desemprego
estrutural e permanente imposto à sociedade carioca, grande
parte da população estava condenada ao subemprego, mendi-
cância, criminalidade e a expedientes eventuais e incertos.
Essa população era composta por ladrões, prostitutas,
malandros, desertores do Exército, da Marinha e de navios es-
trangeiros, ciganos, ambulantes, operários, trapeiros, ratoeiros,
serventes das repartições públicas, recebedores de bondes, en-
graxates, carroceiros, floristas, entre outros. Dentre estes perso-
nagens, destacamos a figura tipicamente carioca do “capoeira”.
Tais pessoas eram as que mais compareciam nas estatísticas
criminais da época, especialmente as relacionadas às contra-
venções do tipo desordem, vadiagem, embriaguez, jogo.
Outro problema causado pelo crescimento populacional
acelerado diz respeito à questão habitacional. Estas pessoas ha-
bitavam os subúrbios, encostas de morros, casas de cômodos
e os “zungas” ou “hospedarias baratas”. As péssimas condições
de abastecimento de água, saneamento e higiene eram proble-
mas corriqueiros, agravados pelos surtos epidêmicos de varío-
la, febre amarela e malária, que faziam com que a cidade fosse
conhecida no exterior como o “túmulo dos estrangeiros”.
No plano econômico e financeiro, a cidade também pas-
sou por momentos de turbulência.
A necessidade de contemplar os cafeicultores, e de atender
uma demanda real de moedas para o pagamento de salários,
fez com que o governo imperial se lançasse em uma política
emissionista. Tal política, denominada Encilhamento, foi segui-
da pelo governo provisório. De acordo com José Murilo de Car-
valho, os anos de 1890 e 1891 foram considerados insanos, pois
o governo concedeu a vários bancos o direito de emitir papel
moeda. A praça do Rio de Janeiro, inundada de dinheiro sem
nenhum lastro, foi acometida de uma febre especulativa sem
precedentes. O autor ainda salienta que, por dois anos o novo

CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA 199


regime pareceu uma autêntica república de banqueiros, onde a
lei era enriquecer a todo custo com dinheiro de especulação.111
Os efeitos desta política foram devastadores: inflação e alta
de preços dos produtos, levando ao encarecimento do custo de
vida. Esta situação foi agravada pela imigração, que ampliava a
oferta de mão-de-obra e acirrava a luta pelos poucos empregos
disponíveis.
No plano político, a Proclamação da República trouxe es-
peranças de renovação e maior participação no poder por parte
não só das elites do Nordeste e Sul do País, bem como da nas-
cente camada média urbana, composta por funcionários públi-
cos, militares, comerciantes, entre outros.
Os primeiros anos da República foram marcados por gran-
des agitações. Os anseios políticos mesclaram-se com a carestia
provocada pela política econômica e pela chegada dos imigran-
tes. De um lado, os militares julgaram-se donos e salvadores da
República, achando-se no direito de intervir assim que lhes pa-
recesse conveniente. De outro, os operários tentaram organi-
zar-se em partidos, promoveram greves, por motivos políticos
ou em defesa do seu poder aquisitivo corroído pela inflação.
Havia ainda os pequenos proprietários, empregados, funcioná-
rios públicos que também se mobilizaram pela primeira vez,
contrários à vinda de estrangeiros para o então Distrito Federal,
marcando o auge da xenofobia florianista, organizando clubes
jacobinos e batalhões patrióticos, como atesta José Murilo de
Carvalho.112
Entretanto, os setores pobres da população parecem não
ter sido contagiado com a sensação de que abriram novos ca-
minhos de participação política. A Monarquia foi derrubada
quando atingia seu ponto alto de popularidade entre este setor,
conseguida em parte pela Abolição da escravidão.113 Os repu-
blicanos não obtiveram o apoio do setor pobre da população,
principalmente dos negros. A prática republicana em relação
aos negros incluía a perseguição aos capoeiras e aos “desocu-

111. CARVALHO, J. M. de. Os bestializados. São Paulo, 1991.


112. Idem. p. 21-23.
113. Ibidem. p. 29.

200 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA


pados”, e estava ligada à adequação dos indivíduos às novas de-
mandas do mundo do trabalho.
A Abolição da escravidão trouxe consigo o fantasma da de-
sordem, personificado pela figura do liberto.
A figura do liberto gerava temor entre as elites brasileiras e,
em julho de 1888, a Câmara dos Deputados apreciava o proje-
to de repressão à ociosidades, elaborado pelo ministro Ferreira
Viana. Este projeto, deixa claro a necessidade premente de ade-
quação do universo do trabalho às transformações socioeconô-
micas que estavam ocorrendo.
A Abolição da escravidão é acompanhada pelo temor da
desordem. Sidney Chalhoub ressalta que os libertos eram pen-
sados como indivíduos que estavam despreparados para a vida
em sociedade. Na condição de ex-escravos eram desconhece-
dores do conceito de justiça, respeito à propriedade e, sobre-
tudo de liberdade. Sendo assim, o liberto não possuía respon-
sabilidade sobre seus atos e estava propenso a ingressar em
uma vida de ócio, furto e roubo. A fim de manter a ordem, era
fundamental reprimir seus vícios, que seriam superados atra-
vés da criação do hábito do trabalho.114 A transformação do li-
berto não se daria somente através da violência e repressão. A
educação seria a melhor maneira de incutir nestes indivíduos
os ideais da civilização e resgatá-los de um estado de barbárie.
Elevar um liberto à condição de cidadão civilizado significava
fazê-lo amar o trabalho, visto não como um meio de suprir suas
necessidades materiais, mas como condição necessária do ser
cidadão.
Outro problema enfrentado pelo novo regime republicano
era organizar um outro pacto de poder que pudesse substituir o
arranjo imperial e garantir um grau satisfatório de estabilidade.
Para o setor exportador, o mais influente da economia, o ponto
principal era manter o País unido e acabar com a instabilidade
política. Fazia-se necessário, neutralizar a influência da capital
na política nacional. Isto implicava em retirar de cena os milita-
res e restringir o nível de participação popular. Destacamos que
havia militares ao lado de civis, participando de greves, tumul-
tos e até tentativas de golpe. Esta aliança foi mais forte no perí-

114. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. p. 67, 68, 69.

CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA 201


odo jacobino, entretanto, até mesmo em 1904 percebemos esta
ligação, com interseções de uma revolta militar e uma popular.
A maneira indireta de neutralizar a capital e as forças que
nela agiam era fortalecer os estados, cooptando e pacificando
suas oligarquias em torno de um arranjo que garantisse seu
domínio local e sua participação no poder nacional, de acordo
com o cacife político de cada uma.
O Rio de Janeiro, embora fosse a caixa de ressonância do
País, não possuía força política própria. Tal afirmativa pode ser
explicada pelo fato de a cidade possuir uma população urbana
socialmente heterogênea e indisciplinada e dividida por confli-
tos internos, não tendo condições de sustentar as forças domi-
nantes do Brasil agrário.
Segundo José Murilo de Carvalho:

a expectativa inicial, despertada pela República, de


maior participação, foi sistematicamente frustra-
da. Desapontaram-se os intelectuais com as perse-
guições do governo Floriano; desapontaram-se os
operários, sobretudo sua liderança socialista, com
dificuldades de se organizarem em partidos e de par-
ticiparem do processo eleitoral; os jacobinos foram
eliminados. Todos esses grupos tiveram de aprender
novas formas de inserção no sistema, mais fáceis
para alguns, mais difíceis para outros. Os intelectuais
desistiram da política militante e se concentraram
na literatura, aceitando postos decorativos na buro-
cracia, especialmente no Itamaraty de Rio Branco.
Os operários cindiram-se em duas vertentes princi-
pais, a dos anarquistas, que rejeitava radicalmente
o sistema que os rejeitava, e a dos que procuravam
integrar-se através de mecanismos de cooptação do
Estado. Os jacobinos desapareceram de cena. Quan-
to ao grosso da população, quase nenhum meio lhe
restava de fazer ouvir sua voz, exceto o veículo limi-
tado da imprensa.

Entretanto, devemos ficar atentos para o fato de que ha-


via no Rio de Janeiro, um vasto mundo de participação popular
que passava ao largo dos canais oficiais da política. A participa-

202 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA


ção existente era antes de caráter religioso ou social, e sempre
fragmentada. Fazia-se presente nas grandes festas populares,
como as da Penha e da Glória, e no entrudo; caracterizavam-se
em pequenas comunidades étnicas, locais ou mesmo habita-
cionais.
Em meio às transformações políticas, sociais e econômi-
cas, percebemos também a entrada massiva de capital estran-
geiro, acelerando o ritmo dos negócios e arrebatando todos os
setores da sociedade.
A cidade do Rio de Janeiro possui, neste momento, o papel
de intermediária dos recursos da economia cafeeira, ocupan-
do também o posto de centro político do País. Devido a estes
atributos, a então capital contou com a ampliação de vastos
recursos enraizados, principalmente nos setores do comércio,
das finanças e nas aplicações industriais.
O Distrito Federal possuía uma vasta rede de transportes,
sendo o núcleo da maior rede ferroviária nacional, estando em
contato direto com o Vale do Paraíba, São Paulo, os Estados do
Sul, Espírito Santo e o hinterland de Minas Gerais e Mato Gros-
so. O Rio de Janeiro completava sua cadeia de comunicação na-
cional com o comércio de cabotagem para o Nordeste e o Norte
de Manaus.
Essas condições contribuíram para transformar a cidade
no maior centro comercial e financeiro do País. O Rio de Janei-
ro era a sede do Banco do Brasil, da maior bolsa de valores e da
maioria das casas bancárias nacionais e estrangeiras. A cidade
também era o maior centro populacional do País, oferecendo
às indústrias o mais amplo mercado de consumo e de mão-de-
obra.
O translado do centro da economia cafeeira do Vale do Pa-
raíba para o Oeste Paulista, e o envio da produção de café do
Oeste Paulista para o Porto de Santos, levou à diminuição da
atividade exportadora do Rio de Janeiro. Entretanto, este fato
foi compensado pela ampliação das importações e do comércio
de cabotagem, que fizeram crescer em mais de 1/3 o movimen-
to portuário carioca no período de 1888 a 1906. De acordo com
Eulália Lobo, apesar da perda de predomínio na exportação do
café, o Rio de Janeiro figurava entre os 15 principais portos do

CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA 203


mundo e em terceiro lugar no Continente americano. Somente
nos primeiros anos do século XX, Buenos Aires ultrapassou o
Rio de Janeiro em volume de comércio, em virtude da expansão
extraordinária da agricultura nas Províncias do Prata.
Diante das novas demandas, a velha estrutura urbana da
cidade do Rio de Janeiro tornara-se obsoleta. O antigo cais não
permitia que atracassem os navios de maior calado, que pre-
dominavam, obrigando a um sistema lento e dispendioso de
transbordo. As ruelas estreitas, recurvas e em declive, típicas de
uma cidade colonial, dificultavam a conexão entre o terminal
portuário, os troncos ferroviários e a rede de armazéns e de es-
tabelecimentos de comércio de atacado e varejo da cidade. As
áreas pantanosas faziam da febre tifóide, impaludismo, varíola
e febre amarela, endemias inextirpáveis. E o que era mais ter-
rível: o medo das doenças, somado às suspeitas para com uma
comunidade de mestiços em constante turbulência política,
intimidavam os europeus, que se mostravam parcimoniosos e
precavidos com seus capitais, braços e técnicas no momento
em que era mais ávida a expectativa por eles.
As sucessivas crises políticas desde a Proclamação da Repú-
blica haviam não só exaurido o Tesouro Nacional, como sustado
a entrada de capitais e dificultado a imigração. Era preciso findar
com a imagem da cidade insalubre e insegura, com uma enorme
população de gente rude plantada bem no seu âmago, vivendo
no maior desconforto, imundície e promiscuidade e pronta para
armar em barricadas as vielas estreitas do centro ao som do pri-
meiro grito de motim. Somente oferecendo ao mundo uma ima-
gem de plena credibilidade era possível drenar para o Brasil uma
parcela proporcional da fartura, conforto e prosperidade em que
já chafurdava o mundo civilizado. Acompanhar o progresso sig-
nificava como paradigma a sociedade européia.
Em 1904, o regime encontrava-se consolidado e a estabili-
dade política garantida, através do mecanismo neutralizador da
política nacional, a “política dos governadores”. A remodelação
da cidade e a consagração do progresso como objetivo coleti-
vo fundamental marcam o processo de substituição das elites
sociais. Foram demolidos os casarões coloniais e imperiais do
centro da cidade. Estes, transformados em casas de cômodos

204 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA


abrigavam a população pobre da cidade. As ruelas estreitas da
cidade deram lugar a avenidas, praças e jardins.
Aliada à transformação do espaço público, percebemos
também modificações no modo de vida e na mentalidade ca-
rioca. Destacamos as características principais deste processo,
a saber: 1) condenação dos costumes e hábitos conectados pela
memória tradicional; 2) repúdio ao elemento de cultura popu-
lar que pudesse manchar a imagem civilizada da sociedade do-
minante; 3) política de expulsão dos grupos populares da área
central da cidade; 4) cosmopolitismo agressivo, identificado
com a vida parisiense. São perseguidas as expressões de cultura
e religiosidade populares. A luta contra o “atraso” também era
a luta contra a ignorância. As festas de Judas e do Bumba-meu-
Boi são proibidas, todas as formas de religiosidade popular – lí-
deres messiânicos, curandeiros, feiticeiros,... – são combatidas.
Ao contrário do período de Independência, em que as
elites procuravam identificar-se com grupos nativos – princi-
palmente índios e mamelucos – e manifestavam um desejo de
ser brasileiros, as elites do período republicano demonstravam
uma vontade de parecer estrangeiras.
Neste período ocorre também a diluição dos modos tradi-
cionais de solidariedade social, simbolizados por relações de
grupos familiares, comunidades vicinais, relações de compa-
drio ou relações senhoriais de tutela. As relações sociais passam
a ser marcadas pelos padrões econômicos e mercantis.
Nicolau Sevcenko coloca que a transformação do plano
urbano da capital seguiu uma diretriz claramente política, que
tinha como objetivo retirar aquela “massa” temível do centro
da cidade. A febre demolitória viria complementar o quadro
de violência pública. A ação do governo não se fez contra seus
alojamentos: seus pertences pessoais, sua família, suas rela-
ções vicinais, seu cotidiano, seus hábitos, seus animais, suas
formas de subsistência e de sobrevivência, sua cultura enfim,
tudo é atingido pela nova disciplina espacial, física, social, éti-
ca e cultural imposta pelo gesto reformador. Todos estes fatores
atuavam como uma grande força segregadora. Neste período
destaca-se a imagem da grade. Foram reformadas, moderni-
zadas e ampliadas as instalações presidiárias, penitenciárias,

CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA 205


manicômios e hospitais públicos. São grades que se somam às
dos parques e jardins urbanos e que se destinam ao mesmo fim:
conter, isolar, segregar.
A pressão por imóveis e a especulação, nas zonas central e
portuária, empurraram a população pobre para a periferia da
cidade ou para bairros mais distantes e degradados. Viviam em
condições desumanas nos cortiços, “zungas” – alugava-se ape-
nas uma esteira, posta em um salão aberto, onde se amontoa-
vam várias famílias vivendo sem nenhum recurso higiênico ou
sanitário. Construíam barracos em morros ou mangues. Para
esta periferia foram transferidas juntamente com a população
pobre, as doenças e endemias expulsas do centro da cidade.
De acordo com Nicolau Sevcenko:

A enorme massa popular de trabalhadores, subem-


pregados, desempregados, vadios compulsórios era
empurrada para o alto dos morros e para o subúrbio
ao longo da estrada de ferro e ao redor das estações
de trem. Nesse espaço, aproveitando as facilidades
de transporte e oferta maciça de força de trabalho,
instalou-se também o parque fabril que circunda a
cidade. O centro tornou-se o foco de toda a agitação e
exibicionismo da burguesia arrivista: seu pregão, sua
vitrine e seu palco. A zona sul, beneficiada pelos in-
vestimentos prioritários das autoridades municipais
e federais se constituiu no objeto de uma política de
urbanização sofisticada e ambiciosa, voltada para os
poderosos do momento, que encheu de vaidade os
novos ricos e de lucros os especuladores... o mundo
do trabalho torna-se assim, invisível para a socieda-
de burguesa. Ele é realizado longe dos seus olhos, em
locais distantes... Neste mundo em que não se dese-
ja ver o trabalho, não se suporta a visão da doença,
da rebeldia, da loucura, da velhice, da miséria ou da
morte, que todas são excluídas para os sanatórios,
prisões, hospitais, asilos, albergues e necrotérios.

Havia diferenças inclusive no estilo de repressão da socie-


dade escravista e republicana. A nascente sociedade burguesa
não tolera a visão da brutalidade física. Desta forma, os des-

206 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA


mandos, humilhações e espancamentos são feitos no interior
das casas de detenção, ao contrário das cerimônias públicas de
açoitamento, tão comuns na sociedade escravista. A repressão,
portanto, tornar-se-ia invisível.
As mudanças urbanas deste período atingiram brutalmen-
te a população assalariada, de mais baixa renda, encarecendo o
custo de vida, aumentando os preços dos alimentos e dos alu-
guéis. A camada mais pobre, obrigada a se deslocar para bair-
ros de subúrbios mais distantes sofria também com os custos
adicionais dos transportes. Dentro deste contexto, aparecem os
primeiros estímulos para as organizações operárias e populares.
Articulavam-se meetings e comissões para pressionar o gover-
no federal, enquanto que os operários organizavam greves para
pressionar os seus patrões. Estes Centros e Associações de Re-
sistência preconizavam a ação sindical e os primeiros partidos
operários. Entretanto, nos momentos de auge da crise social e
econômica, a tendência da população pobre era irromper em
motins urbanos, um exemplo é a Revolta da Vacina, em 1904.
É importante salientar que a Escola XV de Novembro foi
transferida para o terreno em Quintino Bocaiúva em 1906, jus-
tamente no período no qual a transferência das camadas mais
pobres está sendo efetuada.
Entendemos que estamos diante de um universo extrema-
mente rico de significações e possibilidades no sentido da com-
preensão do lugar que ocupamos e de suas conseqüências para
a construção da identidade de nossa escola. Nosso desejo é
transformar esse espaço mais uma vez. Torná-lo aprazível, aco-
lhedor e, por que não, voltarmos a ser uma escola de primeira.
Ponto de referência na educação nesse que é um dos estados
mais importantes do País.

CONCLUSÃO
Nossa instituição tem um grande valor histórico e social no es-
paço onde está inserida, por isso, recuperar sua infra-estrutura
significa revitalizar não apenas um prédio onde funciona uma
escola – o que por si só já seria relevante – mas um lugar que
atende a comunidade local e adjacências.

CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA 207


A história do Complexo se confunde com a história do bair-
ro de Quintino, e nossa escola E.E.E.F. República (que está lo-
calizada no Complexo de Quintino) tem a importância de ser
uma escola de ensino fundamental de grande porte, que recebe
a maior quantidade de alunos entre todas as escolas da região.
Promover a revitalização da escola é valorizar a história do
bairro, valorizar a história é difundir a consciência da própria
identidade local. Descobrir quem somos significa reconstruir
o passado para então criarmos uma base sólida para a cons-
trução de um futuro consciente, participativo e transformador,
é trabalhar no desenvolvimento de cidadãos preparados para
buscar meios de enfrentar as dificuldades sociais em que vive-
mos em nosso País.

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210 CONSTRUÇÕES E RECONSTRUÇÕES DO ESPAÇO E DA CIDADANIA


PASSEIOS PEDAGÓGICOS –
CONSTRUINDO MEMÓRIAS
EMANCIPATÓRIAS
Janete Santos Ribeiro

Um curumim, capixaba, chega ao Porto do Rio de Janeiro, pri-


meira parada de uma longa viagem de estudos, patrocinada
por projetos sociais que buscam valorizar o ensino de História
como contribuição à construção da auto-estima positiva de jo-
vens educandas brasileiras e educandos brasileiros que têm ao
longo de nossa história oficial a ocultação ou a invisibilização
de suas raízes étnico-culturais.
Ao atracar no Porto do Rio estabelece contatos com seus
estivadores, marinheiros, estrangeiros e outros viajantes. Qual
não foi sua surpresa ao compreender que o primeiro estrangei-
ro que ali aportou vinha da Europa Moderna em busca de ouro
e pedras preciosas e que o entorno da Baía foi palco de inúme-
ros conflitos, diálogos e negociações de diversos povos que co-
lonizando a terra, construíram monumentos, destruíram pai-
sagens, embarcaram e desembarcaram mercadorias humanas,
imateriais e materiais.
A partir desta percepção, nosso curumim sai em busca de
conhecimento acerca desses povos: que aqui viviam, que aqui
chegaram e que aqui construíram e/ou destruíram. Suas cultu-
ras de origem, sua diversidade étnica, a transformação da na-
tureza e a cultura que implementaram nos lugares em que se
estabeleceram ou estiveram, e os registros que fizeram. Enfim,
muitas são as descobertas das diversidades étnicas e culturais
do ontem e de hoje!
Nosso curumim registra em seu diário de bordo suas im-
pressões acerca das paisagens e dos roteiros que vai construin-
do após cada nova descoberta. Ele vê a Baía de Guanabara do

PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS 211


alto do Pão-de-Açúcar, faz um passeio oferecido pelas Barcas
S.A. aos domingos, aprecia as exposições permanentes dos Mu-
seus Histórico e da Marinha, visita os monumentos do Centro
da cidade do Rio de Janeiro, faz a travessia da Baía levando na
memória as crônicas de Machado de Assis acerca da paisagem
da Baía de Guanabara e os relatos de seus ancestrais termini-
dós e tupinambás, visita Paquetá, a casa de Banho D. João VI no
Caju e sonha com a despoluição da Baía que tanto encantou os
colonizadores.
Conhece Niterói e São Gonçalo e fica impressionado com
a rica história da Escola Estadual de Ensino Fundamental Hen-
rique Lage, a ponto de apaixonar-se e querer, além de levar os
alunos e alunas às aulas-passeio, ajudar na criação de um pro-
jeto pedagógico cujo principal objetivo seja proporcionar aos
alunos conhecimento efetivo da área onde vivem, de um ponto
de vista interdisciplinar e transdisciplinar, no intuito de que co-
nhecendo a história do lugar e a história de sua escola, em suas
múltiplas abordagens, passem a valorizá-la, resgatando memó-
rias locais e globais.
Na escola ele encontra outros iguais a si, descendentes
como ele de tupi-guaranis, encontra também guris, descenden-
tes de africanos escravizados, islamizados ou convertidos ao
catolicismo. Encontra, também, praticantes do protestantismo,
espiritismo, e tantas outras crenças. Temos nordestinos, beatos,
estrangeiros nacionais e internacionais. É tanta diversidade que
resolve trocar cartas falando sobre estas diferenças e aprofun-
dando os temas estudados, utilizando a Internet e a pesquisa
de campo. Troca e-mails com seus novos amiguinhos, pois afi-
nal, faz parte do mundo atual se alfabetizar digitalmente. Quem
sabe, não encontraremos uma forma de sistematizarmos todo
este trabalho e produzirmos um vídeo, um livro, painéis, ou en-
cantamentos, pensa ele.

EXPLICAÇÕES NECESSÁRIAS
Ficou interessante abordar nas turmas de 7a série (8o ano esco-
lar), no caso da História, os conteúdos referentes à Colônia e
Império em seus aspectos macros e micros, a partir da inven-

212 PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS


ção de um personagem que viajando pela História, parasse em
diversos portos/conteúdos e pesquisasse sobre a multiplicida-
de de saberes e fazeres desses lugares, desses sujeitos e desses
tempos. Convidando e recrutando as alunas e os alunos a fa-
zerem parte da tripulação que visitará os diversos lugares ima-
ginários ou reais, instrumentalizando-os com procedimentos
que façam com que a viagem seja, prazerosa, ilustrativa e que
tragam na bagagem de volta, novas rotas de descobrimento, in-
venções criativas que nos ajudem a rever e quem sabe transfor-
mar a escola em um espaço de vivências criativas.
De onde busquei referências para a criação do Projeto “O
que é que a baía tem? O que é que a baía tinha?”
Como ponto de partida, recorrerei à entrevista dada pelo
comandante Marcos, um dos líderes da luta dos povos indí-
genas no estado de Chiapas, uma das regiões mais pobres do
sudeste do México, “aonde chegou em 1984 à selva lacandona
e ali viveu durante 17 anos com as comunidades indígenas tzot-
ziles e tzeltales, até 11 de março de 2000, quando a marcha que
encabeçou e que cruzou meio país terminou com uma mani-
festação gigantesca na Praça da Constituição – mais conhecida
como Zócalo – na Cidade do México. (...) Nesse lugar, carregado
de um enorme peso histórico, o chefe do Exército Zapatista de
Libertação Nacional (EZNL), sem nenhuma arma, tornou ofi-
cial sua decisão de fazer política pacificamente. Vamos à entre-
vista:

O Escritor e o Guerrilheiro A Revolução Hoje

Gabriel García Márquez: Em meio a tantos proble-


mas, o senhor tem tempo para ler?

Comandante Marcos: Claro. O que fazemos? Nos


exércitos de antes, o militar aproveitava o tempo
para limpar sua arma. No nosso caso, como nossas
armas são as palavras, temos de estar com o nosso
arsenal o tempo todo.

PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS 213


Gabriel García Márquez: Tudo que o senhor abor-
da demonstra uma formação literária muito antiga.
Como ela foi construída e de onde saiu?

Comandante Marcos: Tem a ver com nossa família. A


palavra tinha um valor muito especial. A forma de ver
o mundo era através da linguagem. Não aprendemos
a ler na escola, mas lendo os jornais. Meu pai e mi-
nha mãe nos davam livros que permitiam enxergar
outras coisas. De uma ou de outra forma, adquirimos
a consciência da linguagem não como uma forma de
comunicar, mas de construir algo. Como se fosse um
prazer, mais do que um dever. Quando vem a etapa
das catacumbas, para os intelectuais burgueses a
palavra não é o mais valorizado, fica relegada a um
segundo plano. Mas, quando chegamos às comuni-
dades indígenas, a linguagem chega como uma cata-
pulta. Você se dá conta de que te faltam palavras para
expressar muitas coisas e isso obriga a um trabalho
sobre a linguagem; voltar uma e outra vez sobre as
palavras para armá-las e desarmá-las. In: (http://
www.nodo50.org/insurgentes/textos/zapatismo/es-
critor.htm. Acessado em: 20.6.2007.

Aprendi, lendo esta entrevista que são muitos os lugares


de aquisição de armas para a luta contra as injustiças deste
mundo e que enquanto profissional da educação, preocupada
com a qualidade de meu trabalho no ensino e aprendizagem
de minhas jovens alunas e de meus jovens alunos, colocarei à
disposição minha escuta e sensibilidade para as parcerias que
a construção do conhecimento impõe. Conhecimento este que
se constrói no coletivo.
O Projeto de História Local teve seu início na Escola Henri-
que Lage em 1999, com a equipe de História, na comemoração
de aniversário da Escola, na descoberta por parte da equipe da
riqueza da história que envolvia a escola e o lugar onde está si-
tuada (Barreto-Niterói).
Os alunos da 7a e 8a série do ano de 1999, orientados pelos
seus respectivos professores, fizeram uma belíssima pesquisa
sobre a história da escola e do bairro. A pesquisa propunha-se a

214 PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS


estabelecer as relações entre passado e presente. Então, os alu-
nos fotografaram o bairro, destacando seus problemas.
A partir deste primeiro levantamento de dados, vimos que
não podíamos parar. Guardamos todo o material adquirido na
pesquisa. Mais tarde, contamos com a ajuda dos alunos de prá-
tica de ensino da área de História da Universidade Federal Flu-
minense (UFF) para organizá-lo e planejar oficinas de estudo.
Descobrimos também que a maioria de nossos alunos re-
side em São Gonçalo ou em outros municípios próximos, daí a
relevância de conhecermos o entorno da Baía de Guanabara e
ampliarmos a participação de outras disciplinas escolares. Re-
estruturamos o Projeto de História Local e passamos a contar
com o apoio das Faculdades de Educação e História da UFF,
através de seus respectivos laboratórios.
É neste contexto que surge, a partir de 2002, o subprojeto
“O que é que a Baía tem? O que é que a Baía tinha?” Sobre a his-
toricidade do entorno da Baía. Já que as aulas-passeio são parte
do currículo da Escola, a preocupação em pensar a teoria e os
conteúdos significativos ao processo de ensino-aprendizagem
de nossos alunos, tornaram-se mais atraentes a partir da elabo-
ração e práxis de roteiros educativos.
Os alunos foram sendo estimulados a expor suas idéias, a
escreverem textos, a trocarem e-mails e a participarem de uma
lista de discussão na Internet, criada para que eles recebessem
e mandassem mensagens. O nome da lista era baiafundamen-
tal@grupos.com.br e para acessá-la bastava mandar um e-mail
para assinar – baiafundamental@grupos.com.br.
Penso, também, que seguir alguém é sempre arriscar a si
e a este alguém. Ainda mais, se este alguém, como eu, acredi-
ta nos sonhos gestados nos encontros propostos pela vida e na
vida. E, que faz um convite a sua capacidade de soltar-se em
um cais inventado e nada seguro para quem for navegante ex-
periente da modernidade e na modernidade,115 dito de outra
forma, esta viagem/abordagem escrita a convida a abandonar-

115. Modernidade no sentido dado por Jorge Larrosa Bondía no texto: Nota so-
bre a experiência e o saber da experiência, publicado pela Secretaria Municipal
de Educação de Campinas e que ora transcrevo: O sujeito moderno é um sujeito
informado que, além disso, opina. É alguém que tem opinião supostamente
pessoal e supostamente própria e, às vezes, supostamente crítica sobre tudo o

PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS 215


se e encontrar-se nas buscas incessantes de quem acredita na
vida e quer celebrá-la no diálogo com a diversidade de mundo
existente em quem faz do ensino e pesquisa seu arsenal de luta
para uma escola pública e de qualidade.
Ser alguém, neste contexto, não é ser indefinido, mas, es-
tar em definição dos rumos que me leva ou pode vir a levar a
ser uma professora-pesquisadora da e na escola pública e acre-
ditar nesta escolha. Ou será orientação? É ser alguém que não
se molda em papéis pré-concebidos e que busca na vida pa-
péis identitários que permitam a conquista de mundos onde
façam parte a alegria da busca e do encontro e que esta possa
ser compartilhada e celebrada por diversas subjetividades em
mim, sonhadora, que escrevo e, em você com quem gostaria de
compartilhar estas buscas e encontros com a aprendizagem de
novas formas de aprender e ensinar.
É este, em linhas gerais, o rumo que gostaria de dar a expla-
nação de minha trajetória como professora que tem nos pas-
seios pedagógicos um roteiro possível de busca de aprendiza-
gens significativas aos alunos e alunas da escola fundamental,
na qual tenho como responsabilidade apresentar ou será res-
significar a disciplina História?
Como ponto de partida e de chegada, utilizei os dizeres e as
imagens de alguns educandos que acreditaram e embarcaram
na minha viagem e que trouxeram na bagagem anotações para
seus e meus diários de bordo.
Partida, no sentido de cais/porto, no qual me ancorei para
discutir as possibilidades de construção de memórias emanci-
patórias, termo (emancipatórias) apresentado a mim por Regi-
na Leite Garcia, no texto “Alfabetização, Valores e Cultura – em
uma perspectiva emancipatória”. Trabalho apresentado, em
fevereiro de 1997, na cidade do México. Percebem como as ex-
periências de outros me toca? Se não, retorne à entrevista do
Escritor e do Guerrilheiro. Regina Leite Garcia apresentou seu
trabalho 10 anos antes de eu ler a entrevista que Gabriel García
Marques fez com o comandante Marcos.

que se passa, sobre tudo aquilo de que tem informação. In: LARROSA, J. Notas
sobre a experiência e o saber da experiência. p. 3.

216 PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS


Chegada como objetivo destas viagens ou dos passeios: ro-
teiros que apresentem aos educandos a riqueza do saber cons-
truído e ainda por construir.
Este é o convite que faço a vocês leitores e leitoras. Sigam-
me neste passeio pelos retalhos, recolhidos nas viagens e paradas
por diversos portos, nas vivências, que transformo em experiên-
cias possíveis de compartilhar com quem acredita em colchas de
retalhos que possibilitam um aconchego para quem se lançar em
rotas de descobrimentos da vida, na vida e pela vida.
Vamos aos relatos e imagens que nosso curumim recolheu:

Carta 1

Olá,
Somos da turma 705. Todos na faixa de 12 e 13 anos.
Três meninas e dois meninos: Victoria, Tâmara, Jés-
sica, Jhonatan e Ricardo.
Tâmara e Ricardo moram no Barreto, Victoria, Jho-
natan e Jéssica em São Gonçalo.

Agora vamos falar da Baía de Guanabara:

Linda, a Baía de Guanabara banha municípios da


baixada.
Tem uma importância fundamental, ela facilita o
transporte de navios e barcas indo de Niterói ao Rio
de Janeiro.
A Baía é uma das belezas da cidade maravilhosa.
Nela se encontram: a Ilha de Paquetá, cenário do ro-
mance A moreninha de Joaquim José de Macedo e a
Ilha do Governador, onde está situado o Aeroporto
do Galeão.
Porém, toda a beleza da Baía está se acabando devido
à poluição. Grande número de lixos de todo tipo. As
praias de Niterói e São Gonçalo estão ficando mui-
to poluídas. Algumas em São Gonçalo parecem até
esgoto de tão sujas que estão. Em Niterói, dá até pra
salvar algumas praias de Camboinhas, Piratininga.

PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS 217


Cuidado se você for a alguma das praias de São Gon-
çalo, pois corre o risco de sair da água com sacolas
plásticas agarradas na sua perna.
Estão dizendo que a Baía de Guanabara está desa-
parecendo. E agora, e as praias? Ah, se todos ajudas-
sem. Será que existe alguma solução?

Carta 2

Niterói, 20 de maio de 2004.

Oi!
Meu nome é Pamella Ellen, tenho 13 anos sou mo-
rena, olhos castanhos escuros, cabelos cacheados,
magra. A coisa que mais gosto de fazer é sair com mi-
nhas colegas. Meus grupos preferidos são LS’Jak, Os
Moleques, Jota Quest entre outros.
Sou brasileira e moro no Estado do Rio de Janeiro
onde há muitas belezas naturais que acabaram vi-
rando pontos turísticos. Um destes pontos que é
muito interessante é a Baía de Guanabara.

Antigamente a Guanabara tinha uma fauna abun-


dante, além das matas que ao redor a cercavam. Hoje
em dia, estas belezas naturais resistem com dificul-
dade às barbaridades feitas pelos humanos (esgotos
que não são tratados e são despejados nela, entre
outras barbáries). Mas, suas histórias são muito bo-
nitas. Em 1501 desembarcaram na Baía os primeiros
portugueses (na região Sudeste). Mais tarde forma-
riam ali uma das capitais do Brasil. Nela também se
encontra a Ilha Fiscal que é um lugar onde a família
imperial portuguesa fazia seus bailes daquela época.
Hoje em dia ela é usada apenas para comemorações
importantes da Marinha do Brasil. Esta é a história
da Baía de Guanabara.

E você? Conta-me a história de uma beleza natural


do seu estado ou país!

Beijos, Pamella Ellen de J. Rosado.

218 PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS


Pão-de-Açúcar Alunos da Aceleração116 e professora Janete

Foto: 21 de março de 2005 alunos da Aceleração

116. Projeto Aceleração, alunas e alunos retidos por mais de dois anos na mes-
ma série e que completaram a idade de 15 anos, sendo encaminhados por ne-
cessidades pessoais ao ensino noturno no intuito de ter um processo de ensi-
no-aprendizagem que diminua sua defasagem ano/idade na permanência do
ensino fundamental. O projeto está montado em torno de ciclos I (6o e 7o ano)
e II (8o e 9o ano).

PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS 219


Foto: Alunos da 7a série
É importante relatar que os passeios pedagógicos não fo-
ram uma invenção deste espaço-tempo. Freinet nos anos 30 já
experimentava aulas-passeio, nome ao qual me remeto para
dialogar com minha práxis.
Vivenciar os sorrisos, as brincadeiras, as conversas, as pa-
queras. Enfim, a vida experimentada com é o que me move a
buscar teorias que fundamentem o que me toca e o que me
passa.
Em termos de aulas-passeio, tenho conseguido levar mi-
nhas turmas ao Museu Histórico Nacional, visita imprescindí-
vel no projeto, pois atravessamos a Baía de Guanabara de barca
e andamos até o cais da Praça XV, imaginando como seria che-
garmos ali no século XIX, entramos no Paço Imperial e vemos
uma imagem do Cais, antes do aterro. Andamos por entre os
prédios dos Poderes Judiciário e Legislativo como se estivésse-
mos indo para o Morro do Castelo, marco da fundação da ci-
dade do Rio de Janeiro, destruído no início do século XX. Para-
mos na Ladeira da Misericórdia, única memória material de um
lugar histórico. O museu adquire outras dimensões após esta
contextualização, dimensões estas ainda por capturar.

220 PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS


Farei uma pausa para interagir com sua leitura crítica e di-
gerir com as possíveis falas de vocês, novas pessoas que con-
videi a fazer parte da tripulação deste processo de construção
dos passeios pedagógicos como prática de um currículo eman-
cipatório.
Muito já andei, muito tenho que caminhar. Sei que no ca-
minho haverá pedras. Mas, escolhi este caminho como porta
de entrada ao saber da experiência e pela experiência. Aguardo
seu diário de bordo.

PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS 221


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, M.; SOIHET, R. (Org.). Ensino de História – conceitos, temáti-
cas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/Faperj, 2003.
BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História. In: Magia e técnica, arte e
política. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1.
BITTENCOURT, C. (Org.). O saber histórico na sala de aula. Rio de Ja-
neiro: Contexto, 1998.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia – saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura.)
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Leitu-
ras. Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das unidades da Rede
Municipal de Educação de Campinas/Fumec, Rio de Janeiro, n. 4, jul.
2001.
RIBEIRO, R. J. Liberdade, liberdades. In: Lua Nova – Cultura e Política,
São Paulo: Brasiliense, v. 12, n. 4, p. 7-10, jan./mar. 1986.
TARDIF, M.; LESSARD, C.; LAHAYE, L. Os professores face ao saber Es-
boço de uma problemática do saber docente. Revista Teoria & Prática,
n. 4, p. 215-233, 1991.
TODOROV, T. Nós e os outros. A reflexão francesa sobre a diversidade
humana – 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
HALL, S. Identidades culturais na pós-Modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A Editora, 1997, Capítulo 1.

222 PASSEIOS PEDAGÓGICOS – CONSTRUINDO MEMÓRIAS EMANCIPATÓRIAS


ARTES PLÁSTICAS NA LEI
Nº 10.639/2003: UM RELATO
DE EXPERIÊNCIA EM SALA DE AULA
– LEITURAS ICONOGRÁFICAS
Maria Cristina da Silva Cardoso

A temática deste estudo: artes plásticas na Lei n 10.639/2004 e o

sua relação com a disciplina Educação Artística, exige o esclare-


cimento de duas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, é
importante desmistificar a idéia de que a “disciplina Artes Plás-
ticas” seja considerada mera “recreação” ou simples “fazedora
de trabalhos manuais/artesanato”. Em segundo lugar, é mister
esclarecer a importância do estudo da imagem e seu uso.
Sem clarear e aprofundar os dois pressupostos acima ci-
tados torna-se difícil conseguir realizar a inclusão e desenvol-
vimento da Lei no 10.639/2004 nos âmbitos História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana. A abrangência desta inclusão valo-
riza a contribuição da cultura e arte africanas, como também
auxilia na criação e reafirmação de identidade dos afrodescen-
dentes. É função da aplicação da lei elaborar mecanismos de
resistência e luta contra o preconceito velado ainda existente
na sociedade brasileira. A demolição do preconceito começa já
dentro do primeiro núcleo social no qual a criança se insere,
fora do espaço doméstico: a escola. O preconceito está presente
na vida do estudante dentro do espaço escolar, tanto no ensino
fundamental, desde o primeiro ciclo, quanto no ensino médio
e profissionalizante.
Uma dificuldade das pessoas, de modo geral, em relação às
Artes Plásticas, reside em estereotipar o professor de educação
artística com um “decorador de escola”. Esta idéia está impreg-
nada de um velho ranço histórico. Ela surgiu no período da di-
tadura getulista e é mantida até hoje por motivos ideológicos

ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS 223


no sistema de sucateamento da educação. Percebem-se traços
deste preconceito na falta de um maior comprometimento tan-
to dos profissionais da área de artes, como também das escolas
e seu corpo pedagógico e dirigente.
Os anos 30 marcam o início do processo de industrializa-
ção do Brasil. Até então, o Brasil era caracterizado pela presença
de latifúndios e latifundiários, como era, por exemplo, o caso
do próprio Getúlio Vargas (BARBOSA, 1999). Nos princípios da
industrialização e na entrada do investimento de indústrias
multinacionais no Brasil, o governo brasileiro percebe que o
operário não estava qualificado para operar as modernas má-
quinas. A solução imaginada pelo governo para resolver esse
problema foi preparar na base da população uma mão-de-obra
qualificada. Nesta época, o sentido de qualificação profissional
foi reduzido ao conceito de habilidade manual. A linguagem
popular os apresenta caricaturalmente como “meros aper-
tadores de parafusos”, “meros produtores de manufaturas”,
“mão-de-obra barata não crítica nem pensante”. Introjetou-se
nas camadas populares, o preconceito de que os operários são
pessoas “meio cidadãos”, “não-cidadãos” com plena capacida-
de de atuarem na sociedade como sujeitos históricos. Acima de
tudo, os operários, não eram tidos como conhecedores do seu
papel social e de sua função como agentes de transformação
em vistas da construção de uma sociedade melhor, mais justa
e menos desigual.
Criou-se assim, nos anos 30, nas escolas do País, como ma-
téria obrigatória a disciplina “Educação Artística”. O ensino de
arte não foi proposto como exercício “de” para “a” cidadania,
mas sim como disciplina para formar futuros operários com
boa habilidade manual. Visava-se não a formação do homem
integral, crítico, autônomo, mas a mão-de-obra capaz de operar
as máquinas nas indústrias com maior rapidez, agilidade. Este
contingente de operariado servia apenas para produzir mais e
gerar mais lucros à elite industrial que começava a ganhar, cada
vez mais, um grande espaço no Brasil.
Com isso, a disciplina educação artística começa a ser im-
plantada não só em todos os anos de escolaridade fundamental,
mas também nas escolas de formação de professores, o antigo

224 ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS


“Normal”. Assim sendo, começam os grandes equívocos que se
arrastam até hoje (BARBOSA, 1999).
Arte não se reduz a trabalhos manuais, nem artesanato,
embora haja afinidades entre eles. A Arte é produtora de co-
nhecimento, geradora de tensões para fomentar criação, ques-
tionamento, crítica e consciência política. O artesanato, como
também os trabalhos manuais são procedimentos inversos à
Arte com A maiúsculo. O artesanato compreendido como tra-
balho manual, possui criatividade no sentido de dispersão, de
aliviar tensões e de acalmar. Tem sua criatividade, mas não tem
uma mensagem social (FAYGA, 2004).
No caso específico das artes plásticas – em particular, na
pintura –, percebemos claramente o teor de mensagem social.
Uma imagem tem uma força muito grande de fruição para
quem a observa. A imagem fala muito mais rápido e diretamen-
te do que o texto. A imagem trabalha com a sensação, com a
observação e o sensível.
Para entendermos melhor a eloqüente objetividade da
imagem, precisamos atentar para algumas coisas. Primeira-
mente, toda a produção artística, seja em que linguagem ela for
concebida (artes visuais, música, teatro etc.), está diretamente
relacionada com o tempo e com a sociedade em que ela foi pro-
duzida. Toda produção artística está inserida no seu contexto
histórico. Compreende-se por contexto histórico tudo o que
está acontecendo naquele período: política, economia, religião,
poder político e econômico, ideologia dominante, guerras, van-
guardas etc. Um claro exemplo da contextualização histórica da
imagem se dá na produção artística da Idade Média. Naquele
período a Igreja tinha um papel muito forte na dimensão reli-
giosa, econômica e política. Daí, a produção artística e cultural
desse período histórico aborda predominantemente o tema da
religião e da Igreja Católica, com desenhos e pinturas de papas,
santos, clero.
O predomínio da Igreja Católica continua no Renasci-
mento, porém, ganha outros contextos e influências históri-
cas, políticas e culturais. Tais aquisições irão mudar a visão
de mundo medieval e dará origem à uma nova representação
imagética. Embora a Igreja ainda conserve sua força, ela é re-

ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS 225


dimensionada por outras ideologias e desenvolvimentos cul-
turais e científicos.
Abaixo são apresentados alguns exemplos de leitura da
imagem:

Imagem 1 – Pintura anônima do século XIII.

Observa-se na iconografia acima a seguinte representa-


ção e contexto: o clero, simbolizado na figura do papa, está no
centro do quadro, em cima de uma torre. Em tamanho propor-
cionalmente bem maior (para destacar sua importância), vigia
tudo e todos. Ele segura um báculo (cajado), que simboliza

226 ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS


sua preeminência hierárquica. Atrás dele, são avistados outros
membros da Igreja, de grau hierárquico menor.
No segundo plano vemos os nobres dentro das casas. Eles
são de tamanho menor que os representantes eclesiásticos.
Na parte inferior do quadro e em tamanho ainda menor
que os precedentes, notam-se os servos trabalhando. A escala
bem menor para representar os servos era propositadamente
feita. Talvez o quadro queira demonstrar que eles eram inferio-
res, com pouca importância na Terra, e, portanto, deveriam ser
sempre submissos.

Imagem 2 – Pintura anônima do século XI.

Nesta imagem percebemos a figura de um músico da época


medieval, em que ele segura um instrumento de corda e arco.
O ponto que devemos melhor perceber na imagem é re-
presentação da pessoa humana. Ela não é retratada de manei-
ra realista. A pessoa não é pintada como se fosse uma foto. Ao
contrário, temos a impressão de que a figura humana é um “bo-
nequinho” desenhado. Nela não se encontra qualquer traço de
figuração individualizada.

ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS 227


Tal era a maneira de se representar a figura humana que o
homem, segundo a mentalidade medieval, não era importante.
Ele não precisava ser retratado de maneira realista, muito me-
nos, com traços que caracterizassem a sua individualidade.
Ademais, o mais importante e decisivo era a vida espiritual,
e não a terrena.

Imagem 3 – Teto da Capela Sistina (1508-1512);


A Criação do Homem (1511) – Vaticano, Roma.

Esta pintura mostra claramente as mudanças que aconte-


cem a partir do Renascimento.
Os corpos muitos bem desenhados, com fortes conotações
realistas. Vemos Deus (lado direito) e o homem (lado esquerdo).
Michelangelo retratou o homem do mesmo tamanho de
Deus. Pode-se deduzir que, para o pintor, o homem é tão impor-
tante quanto Deus. Isto demonstra a importância do homem e
sua valorização. O homem agora é “a imagem e semelhança do
seu Criador”.
Ao observar com maior atenção a pintura, constata-se que
Deus está se esticando, se tencionando para tocar o homem.
Isso pode ser interpretado como o Criador valoriza o homem e
o reconhece como um indivíduo com personalidade, individu-
alidade e importância no mundo.
A partir da comparação destas três imagens, percebe-se
claramente as diferentes leituras que elas proporcionam. En-

228 ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS


tende-se a mensagem contida nelas, de acordo com o momen-
to e local em que elas foram produzidas.
Agora visualizaremos outro período histórico e chegare-
mos ao final do século XIX e início do século XX. Alguns movi-
mentos de vanguarda e engajados surgirão e criticarão a ideo-
logia dominante. Ou seja, nessa época, a produção intelectual
e artística do final da segunda Revolução Industrial – quando
o capitalismo está se fortalecendo –, denunciará que os traba-
lhadores são vítimas, cada vez mais explorados nas indústrias.
Surgem dentro desse momento os movimentos sociais oriun-
dos das idéias de Marx e Weber, que irão influenciar artistas a
criticarem o sistema capitalista dominante.
Por exemplo, contemporaneamente, surge o Expressio-
nismo alemão. Ele mostra através de suas obras, tudo o que
o capitalismo produz: pobreza, fome, deformação, mutilação
e outras graves conseqüências do desejo de lucro (CARDOSO,
2004). Esse movimento retrata através da imagem dos seus ar-
tistas e seus quadros, o que acontece nesse momento histórico
e o critica arduamente. Ao denunciar os abusos capitalistas, os
expressionistas atingem seu objetivo: o povo não lê, mas com-
preende muito bem uma imagem. Ele se identifica na imagem
e nela vê seus anseios retratados.
O mundo atual é um mundo de imagens. Televisão, meios
de comunicação em massa, Internet, MSN, Orkut, ou seja, o
mundo atual está totalmente formado de imagens. A respon-
sabilidade dos professores é mostrar para nossos estudantes
que cada imagem possui uma mensagem, tem uma idéia. Por
detrás da imagem sedutora, há todo um interesse político, ide-
ológico de consumo. Assim, as artes plásticas servem para ensi-
nar aos estudantes uma leitura crítica na sociedade. No ensino
de artes plásticas importa propor uma alfabetização visual aos
estudantes.
A arte ganha uma função protagonista neste processo.
Através das artes plásticas, é mister trabalhar com a imagem e
sua leitura, e tomar sempre o cuidado de não usar a imagem
como ilustração. A obra artística constitui-se como documento
iconográfico, cujos códigos de leituras, interpretações e mensa-
gens intrínsecas seguem um criterioso quadro de leitura. A arte

ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS 229


trabalha a alfabetização visual e busca contribuir para a visão
de mundo e sociedade em que o nosso estudante está inserido,
de forma crítica e analítica.
Após abordar a diferença entre arte e trabalho manual,
como também a importância da imagem e sua leitura através da
alfabetização visual de docentes e discentes, nosso estudo vol-
ta-se para os instrumentos de aplicação da Lei no 10.639/2004
no Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
A História da Arte serve como fio condutor para tematizar
os movimentos artísticos. A leitura das produções artísticas dos
pintores do movimento do século XX ensejará uma leitura da
sociedade em que essas obras foram produzidas. Tal procedi-
mento ajudará a levantar várias discussões e temáticas, bem
como os temas transversais: questão de gênero, meio ambien-
te, homossexualidade, intolerâncias, preconceitos etc.
O recorte temporal, século XX, é justificado por estar mais
próximo da realidade e do universo imagético do corpo discen-
te de nossas escolas. Nesse período histórico surgiram movi-
mentos de vanguarda, que usaram a Arte e suas leituras como
mecanismos de resistência, críticas e insatisfações da socieda-
de em que viviam. Estes artistas, a começar com os Expressio-
nistas, usam a arte para criticar a elite burguesa dominante da
época e denunciar o que esta elite, movida pelo sistema eco-
nômico capitalista produzia na sociedade, uma sociedade de
marginalizados e explorados (CARDOSO, 2004). Em seguida, o
Movimento Cubista e particularmente Pablo Picasso ajudarão
a trabalhar a questão da africanidade e discussão racial em sala
de aula.
A metodologia triangular de Ana Mae (FERRAZ, FUSARI,
2001), é a mais adequada para nosso propósito. Neste caso, o
pintor é Pablo Picasso e a obra As Senhoritas de Avignon; o local
é Paris, e o ano é 1907 – início do século XX.
Pablo Picasso foi um divisor de águas na Arte Moderna. Ele
criou não só uma nova concepção de representar o objeto, mas
também de como olhar esse objeto representado. Picasso foi o
mais célebre dos artistas do século XX e autor de uma criação
singular. Ele cria o Movimento Cubista, onde o objeto é multi-
facetado. Ele parece querer dar conta de todos os ângulos pos-

230 ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS


síveis de ser visto o objeto. O Cubismo foi uma reação contra
a pintura de ilusão, o desejo de criar uma arte concebida pela
inteligência, e de reduzir as formas simples, representando o
objeto sob seus diferentes aspectos, construído em múltiplas
facetas.
A obra que deu impulso ao cubismo, As Senhoritas de Avig-
non, de 1907, foi uma de suas mais importantes obras. Ela teve
grande influência sobre o desenvolvimento posterior da pintu-
ra moderna.

Imagem 4 – Les Demoiselles d’Avignon, 1907.

Ao trabalhar a obra de Picasso, iremos aplicar a Lei no


10.639/2004 e introduzir os temas África, africanidade e arte
afro-brasileira em sala.

ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS 231


Em primeiro lugar, vê-se como Pablo Picasso retrata nessa
pintura o tema África. Ele substitui os rostos brancos por más-
caras africanas. Este fato, para época representou uma verda-
deira revolução. Picasso rompe com a estética eurocêntrica, ou
seja com o padrão branco, loiro de olhos claros, e coloca como
referência de beleza e estética a negra africana.
A História da Arte e o Movimento Cubista colocam aos es-
tudantes novas representações, novos conceitos de estética, de
beleza, de valorização das nossas origens africanas. Assim fa-
zendo, a disciplina constrói uma ponte entre a realidade atual,
dos nossos estudantes e nossa sociedade, ao tematizar a ques-
tão racial, discriminação e preconceito.
Tendo o Cubismo e Pablo Picasso como introdução, sur-
gem temas transversais: discussão sobre questão racial, valores
estéticos e o rompimento com os padrões europeus, dentre ou-
tros. Em um segundo momento, desenvolvemos a temática da
arte brasileira, enfocando os artistas plásticos modernistas e a
Semana de Arte Moderna de 22.
Não podemos deixar de observar, que as referências usu-
ais para o estudo da Arte no Brasil é de matriz européia. Os
pintores modernistas e expressionistas brasileiros tiveram sua
formação acadêmica em Paris. Ao virem para o Brasil, eles que-
rem romper com o padrão estético europeu e pretendem criar
uma arte genuinamente brasileira, com cores e traços dos des-
cendentes africanos no Brasil. Dentre estes artistas podem ser
elencados: Tarsila do Amaral, Anita Mafaltti, Lasar Segall, mais
adiante Portinari, Di Cavalcanti, Heitor dos Prazeres, Rubens
Valentim e tantos outros. A característica precípua do traba-
lho destes artistas é a matriz africana. Eles buscam fortalecer
a identidade e resistência dos negros africanos aqui no Brasil.
Com estas prerrogativas, os artistas modernistas não permitem
a perda da África que existe em todos nós, e que faz de nossa
cultura e folclore tão rico.
Para isso, nós, professores de Artes Plásticas, temos um ex-
celente material e uma riqueza imensa de conteúdos da História
da Arte e dos movimentos artísticos. O conteúdo programático
de nossa disciplina nos permite trabalhar os temas transversais
e principalmente a cultura e a Arte afro-brasileira.

232 ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS


Com o trabalho de lecionar História da Arte, estaremos in-
cluindo a Lei no 10.639/2004 e acima de tudo, criando cidadãos
críticos, cidadãos plenos. A História da Arte será meio para va-
lorizar a africanidade, colaborar para que os descendentes afro-
brasileiros se reconheçam como negros brasileiros e sujeitos
transformadores de uma sociedade com menos preconceito. O
fruto dos esforços é fornecer elementos para que possam ad-
quirir seus direitos, bem como prepará-los para o mercado de
trabalho, não como “apertadores de parafusos”, mas como su-
jeitos críticos, conscientes de seus valores e de sua história.
Em conclusão, a metodologia de ensino de Artes Plásticas,
aqui esboçada muito brevemente, pode inaugurar um novo
horizonte temático transdisciplinar. A disciplina será ponto de
confluência de diferentes fontes. Nela deságuam a História da
Arte propriamente dita, além de corresponder à aplicação da
Lei no 10.639/2004, e auxiliar na formação de cidadania de nos-
sos estudantes, bem como abrir para numerosos temas trans-
versais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS 233


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234 ARTES PLÁSTICAS NA LEI Nº 10.639/2003: ... LEITURAS ICONOGRÁFICAS


AUTORES E AUTORAS

Luiz Fernandes de Oliveira


Mestre em Sociologia (...) e doutorando em Educação (PUC/RJ);
professor da Faetec, onde integra o Núcleo de Estudos Étnico-
Raciais e Ações Afirmativas (Neera); professor do CAP/Uerj.

Alexandre do Nascimento
Mestre em Educação (Uerj); doutorando em Serviço Social
(UFRJ); professor da Faetec, onde integra o Núcleo de Estudos
Étnico-Raciais e Ações Afirmativas (Neera), da Faculdade Re-
dentor e do Movimento Pré-vestibular para Negros e Carentes
(PVNC).

Amauri Mendes Pereira


Mestre em Educação (Uerj); doutor em Sociologia (Uerj); pro-
fessor do Centro Universitário da Zona Oeste (Uezo), onde co-
ordena o Laboratório Afro-Brasileiro (Lab-Uezo).

Selma Maria da Silva


Mestre em Educação (Uerj); professora da Faetec, onde integra
o Núcleo de Estudos Étnico-Raciais e Ações Afirmativas (Nee-
ra); professora da Secretaria de Estado de Educação do Rio de
Janeiro; membro-titular do Conselho Estadual dos Direitos do
Negro (Cedine).

AUTORES E AUTORAS 235


Ana Paula Venâncio
Graduada em História pela Universidade Veiga de Almeida/RJ;
especialista em História da África e dos Negros no Brasil pela
Ucam; professora do Iserj.

Andréa Santos Pessanha


Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense;
professora de História da Escola Técnica João Luiz do Nasci-
mento/Faetec; coordenadora acadêmica do curso de Licencia-
tura em História da Uniabeu/Centro Universitário.

Claudia Fabiana de Oliveira Cardoso


Doutoranda em Literatura Comparada na UFF; mestre em Lite-
ratura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa
pela UFF; professora de Literatura da Faetec/Etefev e de Litera-
turas Africanas no Ensino Superior, Uniabeu/ Centro Universi-
tário.

Helena Theodoro
Doutora em Filosofia pela Universidade Gama Filho; mestre em
Educação pela UFRJ; professora da Faetec/Cetep Mangueira.

Maria Cristina da Silva Cardoso


Licenciada em Artes Plásticas, História da Arte, Música, Bacha-
rel em História (UFRJ); pós-graduada em História da África e do
Negro no Brasil pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Ucam;
professora de Artes Plásticas da Faetec e da Secretaria Estadual
de Educação do Rio de Janeiro.

Maria Teresa da Silva Telles


Graduada em Geografia pela Uerj; professora de Geografia na
Guiné Bissau – África, entre os anos de 1982 e 1983; professora
de Geografia da Escola Técnica Estadual Ferreira Viana e res-

236 AUTORES E AUTORAS


ponsável pelo Centro de Memória Ferreira Viana da mesma es-
cola; especialista em História da África e do Negro do Brasil pela
Ucam/RJ.

Patrícia Amaral Siqueira


Mestre em Ciências Sociais pela Uerj; coordenadora de projetos
da EEEF República.

Patrícia Freitas
Mestre em História pela UFRJ; doutoranda da mesma institui-
ção; professora da equipe de História da EEEF República.

Janete Santos Ribeiro


Professora do Ensino Fundamental do EEEF Henrique Lage;
mestranda do Campo Cotidiano/Grupalfa do Programa de Pós-
graduação/Mestrado da Universidade Federal Fluminense.

AUTORES E AUTORAS 237

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