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L ili a Mo r i t z S ch war cz

N a c i ona l i d ad e e patri m ônio

A rtístico N acional
o Segundo Reinado brasileiro
e seu modelo tropical exótico

Há quem diga que a Independência de tradicional das monarquias: tradicional, pois

e
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1822 criou o Estado, mas não a nação. Tal estamos falando de um monarca Habsburgo
afirmação é absolutamente justificável, uma e Bourbon; original na medida em que estava
vez que a própria noção de nacionalidade instalada bem no seio da América.
seria mais caudatária de meados para finais Além do mais, todo o cenário
do século XIX, quando países como a político e econômico parecia favorável
Alemanha e a Itália passavam por momentos a d. Pedro II, que, ao que tudo indicava,
assemelhados (Faoro, 1978). Mas, se a tarefa instalara-se definitivamente bem ao centro

do
de construir uma espécie de “comunidade de seu reino. Passadas as conturbações das

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imaginada”1 não foi lograda ainda durante o Regências, apaziguados os ânimos posteriores
Primeiro Reinado, seria objeto de política de ao Golpe da Maioridade, o imperador
Estado durante o governo de d. Pedro II e, começava a efetivamente governar o seu
mais particularmente, a partir dos anos 50. reino estendido. Por outro lado, parecia
É nesse contexto que o imperador anotaria hora de criar para dentro e para fora uma
em seu diário que “era preciso construir nova representação da nação, a qual deveria
uma nacionalidade” e passaria a atuar no ser, até por definição, diferente das demais 337
sentido de dotar esse país de uma memória nações latino-americanas. E o país parecia
visual e afetiva e de um novo calendário de ter visibilidade para tal. Na revista Illustração
datas, heróis e feriados. Selecionar, destacar Luso-Brazileira, de 1858, por exemplo,
e criar um determinado patrimônio nacional aparecem concentradas as representações
e procurar em um passado mítico as estacas positivas que incidiam sobre a monarquia
desse edifício foi tarefa premeditada do naquele contexto: “O seu império imenso
Segundo Reinado, que buscou no passado recortado de rios caudalosíssimos e
uma história específica. Tratava-se de constantemente coberto de uma vegetação
encontrar uma “origem” honrosa num maravilhosa, que vai debruçar-se no oceano
momento remoto em que conviveriam (...) é hoje considerado o ponto central da
indígenas e nobres brancos em uma região civilização do Novo Mundo salvo da anarquia
igualmente lendária e perdida num passado que pouco a pouco devora os outros estados Moema (1866). Vitor
Meireles de Lima. Óleo
imemorável. Aí estava a mais original e a mais da América do Sul. É lá que floresce, no sobre tela, 129 x 190 cm
Acervo: Museu de Arte de São
seu solo virgem, um novo ramo da antiga Paulo - MASP

1. Referência à expressão de Benedict Anderson (2007). e transplantada árvore dos Bragança. Os


N aci onali dade e pat r i mônio. . .
primeiros anos não foram felizes. O Brasil de mecenato estatal e monárquico se articula
estava bastante inculto para compreender a a partir de então, tendo como carros-chefes
nobreza do lugar que tinha de ocupar entre as instituições do porte do Instituto Histórico e
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nações civilizadas. Foi o imperador d. Pedro II Geográfico Brasileiro – IHGB e da Academia


que o pacificou e lhe deu a prosperidade que Imperial de Belas-Artes.
hoje se vê naquele magnífico império, cujo
destino está, mais do que em outras nações,
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ligado com o de seu monarca ...” (p. 258). O IHGB e a identificação


de um novo/velho
e
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Brasil: “natureza
combina com naturais”

Data desse mesmo ano o começo do


interesse de d. Pedro II pelo IHGB, e sua
introdução mais efetiva na vida intelectual
do país (Faoro, 1978). Se no plano político
do

uma monarquia americana era vista sob


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suspeitas pelas demais nações do continente,


Ilustração da revista Illustração Luso-Brazileira, 1858. Alegoria central
ilumina o império tropical. Acervo: Museu Marinano Procópio, Juiz de Fora (MG) internamente era também preciso criar uma
identidade local. Pode-se entender, dessa
maneira, a fundação apressada, ainda na
O país era entendido, pois, como época de d. Pedro I, das duas faculdades de
um oásis em meio à confusa situação direito do país em 1826, – uma em Recife,
338 latino-americana – uma monarquia cercada outra em São Paulo – a reformulação das
de repúblicas por todos os lados – e um escolas de medicina em 1830, assim como a
soberano de linhagem e estilo europeus criação de um estabelecimento dedicado “às
parecia garantir a paz e a civilização por letras brasileiras”.
extensão. Por outro lado, d. Pedro, que já E foi assim que em 1838, tendo como
completara sua efetiva maioridade, preparava- modelo o Institut Historique de Paris,
se para investir em uma política cultural mais forma-se o Instituto Histórico e Geográfico
evidente no país e parecia ambicionar um Brasileiro, congregando a elite econômica e
projeto maior. Era preciso não só assegurar a literária carioca. É justamente esse recinto
realeza, mas destacar também uma memória, que abrigará, a partir da década de 1840, o
reconhecer uma cultura. Esse parecia ser grupo de românticos brasileiros, assim como
o projeto do Segundo Reinado, uma vez o jovem monarca d. Pedro II, que se tornará
que sanadas as conturbações políticas e não só um assíduo frequentador, como o
econômicas passava a priorizar uma espécie maior incentivador desse estabelecimento.
de política cultural afinada com a imagem A partir de então o IHGB se afirmaria como
oficial desse Estado. Um verdadeiro projeto um centro animador de estudos, favorecendo
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a pesquisa literária, estimulando a vida de Januário da Cunha Barboza, na Revista do
intelectual e funcionando como um elo IHGB (1839), a meta desse estabelecimento.2
entre ela e os meios oficiais. Também nesse Se desde o início o Estado entrava com

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momento se conformava um saber oficial e 75% das verbas da instituição, a partir de
integrado sobre o país, e não por coincidência 1840 d. Pedro II passará a frequentar com
o estabelecimento se chamou de “brasileiro”, assiduidade as reuniões, na sede agora
como a demonstrar que a história e a cultura localizada no Paço Imperial. A partir de

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seriam ditadas a partir daquela província. então, o Instituto Histórico funcionará
Os vínculos entre o IHGB, o monarca como uma instituição basicamente oficial

e
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e o Estado tenderão a se estreitar. O centro para as experiências desse jovem monarca,
se transformará numa espécie de ponta de tão interessado em imprimir um “nítido
lança para a atuação cultural oficial, e fará caráter brasileiro” à nossa cultura3 e para
de seus intelectuais o círculo mais íntimo e a conformação de um patrimônio cultural
palaciano do Segundo Reinado. Tanto que as renovado. Para uma nova nação, nada
ligações entre o estabelecimento e o Estado como uma nova agenda de heróis, datas,
nunca foram escondidas. Ao contrário, já em eventos e modelos. Tratava-se de criar uma

do
1838, d. Pedro II é nomeado “protetor” da nova memória e selecionar um passado

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instituição. Em 1839, o imperador oferece glorificado; perdido no meio da floresta e
uma das salas do Paço Imperial da cidade para dos seus naturais. Pouco se conhecia sobre a
as reuniões do estabelecimento. Em 1840, etnografia ou a cultura desses povos, e por
por ocasião do aniversário do monarca, é isso as descrições eram imaginosas e cheias
cunhada a medalha que continha em sua parte de inspirações europeias.
posterior os dizeres: Auspice Petro Secundo. E assim, por meio do financiamento
Pacifica Scientiae Occupatio. Em 1842 o próprio direto, do incentivo ou do auxílio a poetas, 339
imperador torna-se membro do Instituto músicos, pintores e cientistas, d. Pedro II
Francês. E entre 1842 e 1844, o monarca tomava parte de um grande projeto que
instituiu prêmios destinados aos melhores implicava não só o fortalecimento da
trabalhos apresentados no IHGB. Monarquia e do Estado, como a
Composto, em sua maior parte, pela própria unificação nacional, que seria,
elite da corte e alguns literatos e intelectuais obrigatoriamente, uma unificação cultural.
selecionados, que se reuniam sempre aos
domingos, o IHGB pretendia recuperar a 2. Para uma ideia mais pormenorizada sobre esse
estabelecimento, sugiro, entre outros, a leitura das obras
história nacional, tendo como modelo uma e ensaios de Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães sobre o
história de vultos e grandes personagens tema, e meu livro O espetáculo das raças ( (1988), no qual me
detenho, em um capítulo específico, na análise dos Institutos
sempre exaltados como heróis nacionais. Históricos Brasileiros. Tratei do tema também no livro As barbas
Fundar uma historiografia nacional para esse do imperador (1989).
3. A participação do imperador não era, portanto, apenas
país tão recente, “não deixar mais ao gênio financeira. Ao contrário, d. Pedro interessou-se pelo centro,
tendo presidido um total de 506 sessões – de dezembro de
especulador dos estrangeiros a tarefa de 1849 a 7 de novembro de 1889, só se ausentando em caso
escrever nossa história ...”, eis, nas palavras de viagem.
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O Império preocupava-se, dessa maneira, No título, Niterói, ficava evidente
com o registro e a perpetuação da própria o programa nativista, anunciado já no
memória, e com a consolidação de um primeiro número por José Gonçalves
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projeto romântico, para a conformação de Magalhães, que seria, em breve, um dos


uma cultura que, ao que tudo indicava, seria protegidos do imperador e o líder do
“genuinamente nacional”. Modelos não grupo. O nome pretensamente indígena,
faltavam, mas havia originalidade na cópia que fora descoberto na narração do francês
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(Roberto Schwarcz, 1998). O romantismo Thevet, queria indicar aos brasileiros a


aparecia, aos poucos, como o caminho fonte de inspiração da nova literatura: a
e
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favorável à expressão própria da nação cultura indígena. Na verdade, Magalhães


recém-fundada, pois fornecia concepções dava vazão a uma representação recorrente,
e modelos que permitiam afirmar o na qual o Brasil sempre fora associado às
particularismo, e uma identidade particular; suas “exoticidades”; nomeadamente suas
em oposição à metrópole, mais identificada gentes e sua vegetação tropical.4 Segundo
com a tradição clássica. Antônio Cândido, advogava-se um espírito
Foi com Ferdinand Denis, já em 1826, moderno, que “consistiria em romper
do

que o projeto começou a tomar forma. Ele a coexistência e promover o triunfo da


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e Almeida Garret chamavam atenção para a literatura nacional, que no caso brasileiro
necessária substituição dos gêneros clássicos deveria levar em conta a capacidade poética
e convenções, em favor do aproveitamento do índio” (Cândido, 1990:12). O fato
das características locais. Os brasileiros é que, pela primeira vez, legitimava-se
deveriam se concentrar na descrição de uma determinada “herança nacional”, em
sua natureza e costumes, dando realce, detrimento de outras; entravam em cena
340 sobretudo, ao índio, o habitante primitivo e indígenas estetizados e esquecia-se, ou não
o mais autêntico (Cândido, 1990). Mas foi se mencionava, a população negra, mestiça e
só mais tarde que o romantismo associou- escrava espalhada pelo país.
se a um projeto de cunho nacionalista e Por outro lado, a característica moderada
palaciano. Nesse processo, foi decisiva do grupo, ajudou na recepção desse projeto.
a conversão de um grupo de jovens Trabalhando com as noções de autonomia
brasileiros residentes em Paris, mais ou e patriotismo, esses literatos propunham
menos entre 1832 e 1838 e que lá foram uma transição branda para o academicismo.
acolhidos por intelectuais franceses que Conviviam com Magalhães, Manuel de Araújo
tinham vivido no Brasil e faziam parte Porto Alegre, menos conhecido por sua vida
do Institut Historique. Esses mesmos literária e mais por sua atuação na Academia
literatos brasileiros publicaram, em 1836,
os dois únicos números da revista Niterói, 4. No primeiro capítulo do livro O sol do Brasil (2008), tive
oportunidade de desenvolver a percepção curiosa da diferença
considerada um marco do romantismo presente no século XVI. Se, por um lado, tendeu-se a edenizar
a natureza, com relação aos homens o estranhamento foi muito
brasileiro, e que previa a busca e exaltação maior. Nesse sentido, veja Melo e Souza (1986), Santa Cruz;
das originalidades locais. Holanda (1986) e Gerbi (1982).
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de Belas-Artes, Joaquim Norberto de Sousa e uma série de símbolos à disposição, desde
Silva, Joaquim Manuel de Macedo, Gonçalves o início dos tempos coloniais, e que nesse
Dias e Francisco Adolfo de Varnhagen.5 A momento teriam eficácia suficiente para

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liderança de um projeto voltado à literatura se afirmar como “patrimônios” da nação.
era evidente, em um país onde a pesquisa não Tendo um rei “europeu e civilizado” a
era tão incentivada. Assim, todas as demais orquestrar esse movimento, o país surgiria
disciplinas ficaram de alguma maneira à marcado por seu caráter exótico e diferente;

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discrição da primeira. material necessário para afirmar uma nova
São exatamente esses escritores que identidade. Nova, pois era diferente da

e
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passarão a frequentar o IHGB, a partir metrópole mãe. Nova, porque sem par.
de 1840, tendo na revista do Instituto –
que começa a ser editada em 1839 – um
órgão dileto de divulgação de suas ideias. Cunhando símbolos
Por outro lado, o caráter oficial desse nacionais: o indígena
estabelecimento auxiliou na aceitação do que deve morrer para
grupo e do projeto de renovação literária, que a nação vingue

do
sobretudo em função da presença constante

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do imperador. Este, sem dúvida, contribuiu É certo que cabia à historiografia formar
decisivamente para o fortalecimento do um novo panteão de heróis nacionais, mas foi
grupo, patrocinando as diferentes atividades. na área da literatura que a atuação do IHGB
Não obstante, gerou um conformismo afirmou-se de forma mais evidente. Debaixo
palaciano, tolhendo iniciativas mais da proteção direta do monarca, tomava
rebeldes. Sabia-se muito pouco a respeito força o movimento que pretendia promover
dos indígenas, mas na literatura ferviam os a autonomia da literatura brasileira, sob os 341
romances épicos com chefes e indígenas moldes do romantismo e da convenção do
heroicos, amores silvestres tendo a floresta indianismo. Delineavam-se, então, as bases de
virgem como paisagem. Lançavam-se, pois, uma verdadeira política literária.
as bases para esse momento de fundação de É nesse contexto que Magalhães publica
nossa cultura, que aliava de maneira mítica A confederação dos tamoios (1857), que fora
os “naturais e a natureza”. O Brasil nunca diretamente financiado pelo monarca, e
foi tão tropical e exuberante e jamais tão era aguardado como o grande documento
branco e indígena; negro jamais. Aí estava de demonstração de validade nacional do
tema indígena. Magalhães construía, sob
encomenda, o que deveria ser o maior épico
5. Varnhagen não apenas escreveu monografias baseadas em
documentação primária, como localizou textos inéditos e nacional do Império, centrado na figura dos
elaborou, entre os anos de 1854 e 1857, História geral do heróis indígenas, com seus atos de bravura
Brasil, uma grande obra em dois volumes, na qual construiu
um dos primeiros modelos para se pensar a história nacional. e seus gestos de sacrifício. Tentando fundir
Ao contrário da maioria de seu grupo, Varnhagen tinha uma
concepção antirromântica do indígena, apresentando-o como
a “excentricidade romântica com a pesquisa
selvagem, cruel, desprovido de crenças humanizadas. histórica”, o literato acreditava ser possível
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superar as especificidades regionais para da grande gênese do Império. Como um
chegar-se a um mito nacional de fundação exemplo a ser seguido, o indígena era ao
(Puntoni, 1997). Apesar do fraco resultado mesmo tempo herói e vítima de um processo
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literário, a importância do livro associou- que o atropelava e do qual era mero objeto.
se a seu vínculo institucional. Dedicada ao A primeira missa – tema também do quadro
imperador, a obra compunha uma trama igualmente oficial de Vitor Meireles de Lima
em que se opunham os colonizadores – fecha os destinos das diferentes personagens
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portugueses vilãos, aos indígenas naturais desse romance. Como um “fardo da


e determinados. Inspirada em artigo civilização”, o Império impunha-se por meio
e
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de Balthazar da Silva Lisboa, publicado da representação do indígena, mas, também,


em 1834, a obra conta a saga da nação sobre o indígena: sua grande vítima. Uma nova
tamoyo, que luta pela liberdade contra os nação ganhava representação e associava o
agressores portugueses – caracterizados Império a um passado mítico onde reinava o
como selvagens e aventureiros. Mas as bravo indígena.6
oposições não se limitam ao par acima Fica assim exemplificado o lado público do
descrito. Enquanto os brancos podem movimento, e a própria presença do imperador
do

ser divididos entre portugueses brutos e a cercear ou afirmar seus representantes e


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colonizadores (que parecem representar símbolos diletos. O Estado elegia assim um


a impureza do ato que transforma uma grupo e um tipo de imagem do país e mostrava
nação livre em escrava) e brancos religiosos o quanto era vigorosa e operante a reação
(padres jesuítas mancomunados com o contra aqueles que a ele se opusessem. 7
futuro Império), também os indígenas O fato é que já no estudo intitulado
encontram-se divididos. De um lado os “Ensaio sobre a história da literatura do
342 silvícolas bárbaros ou catequizados; de
outro os aborígenes indomáveis e livres 6. Mas o épico estava longe de ser unanimidade. O escritor
José de Alencar, apesar de vinculado indiretamente ao
como a natureza. Nessa batalha opositiva, grupo, teceu, nessa época, sérias críticas ao livro. Usando
o par enaltecido é sempre o que lembra a o pseudônimo de Ig, Alencar debochava, afirmando que os
indígenas da Confederação poderiam figurar em um romance
pureza: os portugueses do futuro Império árabe, chinês ou europeu. A ironia acabou por desagradar o
(que representam a unidade nacional, e próprio imperador, que, oculto sob a assinatura “o outro amigo
do poeta”, escreveu no Jornal do Commercio artigo de apoio a
também a fé cristã que se cola ao sacrifício Magalhães. Também na política Alencar se desentenderia com
d. Pedro II, que foi à desforra: em 1869, sendo Alencar o mais
dos nativos) e os indígenas ainda não votado dos candidatos indicados numa lista tríplice para ocupar
conspurcados pela civilização. Transformado uma vaga no Senado, teve seu nome vetado pelo imperador.
7. Na verdade, a rixa entre o monarca e o literato não
em uma monarquia dos justos, o Império pararia por aí. Em Guerra dos mascates (1870), Alencar
aparece contraposto à colonização escondia em meio às personagens ficcionais alguns políticos
da época e até mesmo o próprio imperador (que aparece
portuguesa, terreno da desigualdade. como Castro Caldas). Mesmo anos mais tarde, em dois
É assim que a literatura cede espaço números do semanário O Protesto (fevereiro e março
de 1877), Alencar continuaria atacando as qualidades
ao discurso oficial. Agora entendido como intelectuais do imperador: “Não seria muito mais feliz esse
povo se seu defensor perpétuo estivesse agora cogitando na
modelo nobre, o indígena toma parte, difícil solução da situação financeira e perscrutando os males
mesmo que como perdedor sacrificado, que nos afligem?”
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Brasil”, considerado o manifesto romântico I-Juca-Pirama,8 seu poema mais
brasileiro e redigido por Magalhães, a ideia conhecido, trazia para o Brasil o modelo
básica era a de que “cada povo tem a sua do canibalismo heroico, consagrado no

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literatura, como cada homem o seu caráter, texto “Os canibais”, de Montaigne (1580).
cada árvore o seu fruto”. O literato defendia a Os nativos brasileiros eram aqueles que
imagem de que o Brasil, após a independência sabiam por que faziam guerra e, como numa
política, vivia agora um segundo momento, refeição ritual, só se comia o bravo, o espírito

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em que o país tomava consciência de suas indomável até na morte. É esse o argumento
especificidades, constituindo-se como nação do poema de Gonçalves Dias que reconta a

e
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(Franchetti, 2007:11). Mas a “tomada de história de um bravo guerreiro tupi, feito
consciência” é também um processo de prisioneiro pelos timbiras, que espera por sua
seleção que implica destacar determinadas morte, mas teme pela sorte do pai – velho,
diferenças em detrimento de outras, fraco e cego – a quem servia como guia.
devidamente apagadas. O mesmo se daria O drama retoma a questão da bravura do
com a ementa de obras, temas e autores; herói guerreiro: diante do choro do jovem
todos devidamente selecionados. tupi, os timbiras soltam-no, pois não se mata

do
E a despeito das cisões, o Império e come o covarde. No entanto, o encontro

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continuaria a centralizar e a financiar um com o pai é marcado pela decepção. O velho
determinado grupo, delimitando aliados tupi lamenta a fraqueza do filho e o maldiz.
e inimigos. Além de Magalhães (depois É nesse momento que o jovem guerreiro se
visconde de Araguaia), Araújo Porto afasta do pai e resolve provar sua bravura
Alegre (mais tarde barão de Santo Ângelo) enfrentando sozinho os timbiras. Estes,
e Gonçalves Dias mereceriam a atenção reconhecendo o valor do tupi, concedem-lhe
do monarca, a quem parecia não escapar o sacrifício da morte em terreiro. 343
a significação nacional de um movimento O índio surgia assim como um exemplo
como esse. Considerado o grande autor de pureza, um modelo de honra a ser seguido.
romântico brasileiro, Gonçalves Dias Diante de perdas tão fundamentais – o
trouxe o indianismo para a poesia. Num sacrifício em nome da nação e o sacrifício
momento em que faltavam pesquisas na área, entre os seus –, surgia a representação de um
Gonçalves Dias cria uma poética dedicada indígena idealizado, cujas qualidades eram
à formação mítica do país: terra virgem, destacadas na construção de um grande país.
intocada até os primeiros contatos com a Entre a literatura e a realidade, a história
civilização. O que era programa na geração nacional e a ficção, os limites pareciam tênues
anterior, transforma-se em realização com a e escorregadios. No caso, a história estava a
linguagem poética romântica de Gonçalves serviço de uma literatura mítica que, junto
Dias. Enquanto Magalhães toma o indianismo com ela, selecionava origens para a nova nação.
como uma peça para a luta que visa extirpar
a herança portuguesa no Brasil, Dias faz uma 8. O título da poesia traduzido literalmente da língua tupi quer
arte mais desinteressada, apaixonada até. dizer “o que há de ser morto, o que é digno de ser morto”.
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E a despeito das desavenças pessoais de indígenas bárbaros, eles se resumem a poucos
d. Pedro II, em 1865 era publicado o romance grupos isolados. Como os europeus, os
que se tornaria uma espécie de ícone dessa silvícolas são acima de tudo nobres. Nobres
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geração, apesar da inserção contraditória de se não nos títulos, ao menos em seus gestos
seu autor em meio aos demais indigenistas e ações. As experiências de Alencar com o
românticos. Iracema, o livro mais conhecido indigenismo não haviam começado, porém,
de José de Alencar, não só trazia os temas com Iracema. Publicado originalmente em
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e paisagens caros ao gênero, mas também folhetins no Diário do Rio de Janeiro, entre
incorporava seu nome na forma de anagrama janeiro e abril de 1857, O guarani ganhava a
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(com transposição de letras) de “América”. forma de livro no mesmo ano. No romance,


Seguindo de perto a moda do que se passa no século XVII, às margens
indigenismo, era Alencar quem afirmava ser do rio Paraíba, seu principal protagonista é
“o conhecimento da língua indígena o melhor Peri, o grande herói do livro e par romântico
critério para a nacionalidade da literatura”. para a loura e alva Ceci. Já no título, Alencar
Em suas obras, uma demonstração constante pretendia representar o indígena brasileiro
dos conhecimentos sobre a natureza e os em seus primeiros momentos de contato
do

naturais do Brasil transparece a ponto de “em um momento de vigor e não degenerado


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muitas vezes o caráter didático de seu texto se como se tornou depois” (Alencar, 1857:27).
impor, em detrimento da narrativa. Também Peri é a própria representação do bom
o argumento ajudou na boa recepção da obra. selvagem rousseauniano: forte, livre, fiel e
Em Iracema, a bela “virgem dos lábios de mel” correto em seus atos. A trama desenvolve-se
aparece retratada em meio a um passado em torno de dois grandes fatores de tensão.
mitificado, nesse caso, o cenário intocado do De um lado, Peri protege a família do fidalgo
344 Nordeste de inícios do século XVII. A obra português, d. Antônio de Mariz (pai de Ceci),
representa o nascimento do Brasil, diante, do ataque dos bárbaros aimorés. De outro,
mais uma vez do sacrifício indígena. O casal ajuda a desvendar todas as artimanhas do
central – Martim e Iracema – simboliza os malvado Loredano, aventureiro que só queria
primeiros habitantes do Ceará, e de sua união as riquezas da família e as belezas de Ceci.
resultará uma nova e predestinada raça. Em Mais uma vez o embate se desenvolve entre
meio à trama, Iracema morre para que seu nobres e selvagens. Selvagens são os aimorés
rebento Moacir (o “filho do sofrimento”) e os aventureiros brancos. Nobres são todos
viva; e Martim deixa as praias do Ceará para aqueles que têm ou merecem tal título em
fundar novos centros cristãos. A partir de função da bravura e altivez de seus atos.
então, deveriam ter todos “um só Deus, como É assim que o tema da nobreza de
tinham um só coração”. Peri volta constantemente nas páginas do
Mais uma vez, distantes do Brasil do romance, como a indicar um feliz encontro
século XIX, tão marcado pela escravidão, entre uma nobreza branca, que veio ao
heróis brancos e indígenas convivem em Brasil, oriunda da Europa, com os “nobres
ambiente inóspito. Se existem alguns da terra”. Peri como espírito era nobre, e
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do
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Cenário da ópera O Guarani. Aquarela de Carlo Ferrario, 1870. Acervo: Museu Imperial, Petrópolis (RJ)

até rei. Não podendo impedir a desgraça como nos próprios indígenas: os nobres e os
maior que se abateria sobre a família Mariz, devidamente corrompidos.9 345
Peri tenta salvar Ceci, que venera com De toda maneira, afastados os índios da
paixão, separado apenas por duas naturezas: civilização em uma terra de passado e nobreza
“uma filha da civilização; o outro filho da recentes (e criadas pelo café), Alencar inventa
liberdade selvagem”. Ambos terminam um passado mítico, com senhores valentes
juntos, anunciando um amor platônico e bondosos, e indígenas fiéis e honrados.
entre o índio e a “virgem loura”, levados Trata-se, pois, de um encontro de dignidades:
pela torrente de um rio. Peri era, portanto, o cavalheiro e o selvagem. Nessa “corte
muito diferente dos demais indígenas “nos tropical” nada mais justo do que imaginar
quais a braveza, a ignorância e os instintos um rei das selvas, que conviveria e deveria
carniceiros tinham quase apagado o cunho da vassalagem, séculos depois, à realeza dos
raça humana”. Descritos como ignorantes, civilizados; tudo devidamente idealizado.
bárbaros e portadores de instintos canibais,
os aimorés representavam os selvagens que 9. Não se pode esquecer que também as teorias da época e,
em especial, Von Martius condenavam o que consideravam ser
deveriam ser esmagados pela civilização. a degeneração de alguns povos indígenas brasileiros, os quais
Assim, dá-se uma seleção não só no temário deveriam ser prontamente dizimados.
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346
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Em 1870, estrearia com êxito, no Scala de
Milão, a ópera composta por Antônio Carlos
Gomes (1836-1896), chamada O guarani, cuja

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inspiração para o libreto vinha da obra de
mesmo nome de Alencar. Tendo seu trabalho
também financiado por d. Pedro II, a obra de
Carlos Gomes combinava as normas europeias,

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com o desejo de exprimir os aspectos
considerados mais originais em nossa cultura.

e
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Compunha-se música romântica mas de base
indígena, como a afirmar uma identidade ao
mesmo tempo universal e particular.
Dessa maneira, por meio desses e de
outros autores e exemplos, percebe-se
como o romantismo no Brasil não foi apenas
um projeto estético, como também um

do
movimento cultural e político, profundamente

R evista
ligado ao nacionalismo e ao desejo de
independência cultural. Diferentemente
do movimento alemão de finais do século
XIX, tão bem descrito por Norbert Elias,
em O processo civilizador (Norbert, 1983), o
nacionalismo brasileiro pintado com as cores
locais partiu das elites cariocas, que, associadas 347
à monarquia, esforçavam-se em chegar a uma
emancipação, ao menos em termos culturais.
Os temas eram nacionais, mas a cultura, em
vez de popular, era palaciana, voltada para a
estetização da natureza local.
Atacados de frente por historiadores
como Varnhagen, que os chamava de “patriotas
caboclos”, os indigenistas brasileiros tiveram
sucesso na construção da representação
romântica do indígena como símbolo nacional.
É significativa, também, a resposta de Magalhães. Ilustrações das
vestimentas usadas
Acusado de ser fantasioso e de defender os por Peri, Ceci e demais
personagens na primeira
selvagens em detrimento dos civilizados, assim apresentação de O Guarani
no Teatro Scala de Milão,
reage o literato: “Nós que somos brasileiros, a 19 de março de 1870

porque no Brasil nascemos, qualquer que seja a


N aci onali dade e pat r i mônio. . .
nossa origem indígena, portuguesa, holandesa momento inicial o indigenismo constituiu-se
ou alemã, fazemos causa comum com os que numa forma oficial de obscurecer o problema
aqui nasceram antes de nós e consideramos negro no país, aos poucos, porém, a partir
A rtístico N acional

como estrangeiros os mais (sic.) homens. Assim dos poemas épicos, dos romances ou das telas
fazem todos os homens a respeito de seus grandiosas, o movimento passou a exercer
compatriotas”. Por fim, além de se defender das uma clara influência sobre setores mais amplos,
acusações de lusofobismo, Magalhães conclui: “A sobretudo, na corte. O indigenismo seria
Lilia Mor itz S ch war cz

Pátria é uma ideia, representada pela terra em incorporado também à representação da realeza;
que nascemos. De resto, o herói de um poema é o império realizava, então, uma “mímesis
e
P atrimônio H istórico

um pretexto, uma regra d’arte para a unidade da americana” (Alencastro, 1980:307). É assim que,
ação...” (Puntoni, 1997: 4). ao lado de alegorias clássicas, surgem indígenas
Ao fazer da literatura um exercício de quase brancos e idealizados em ambiente
patriotismo, esse gênero ganhava um lugar tropical. E a partir desse momento, ao lado de
oficial nos planos do Estado. A valorização do querubins e alegorias clássicas, estão indígenas
pitoresco da paisagem e das gentes, do típico a legitimar e a coroar o monarca, como a
no lugar do genérico, encontrava no indígena encarnação de um passado mítico e autêntico.
do

o símbolo privilegiado. Representando a


R evista

imagem ideal, o indígena romântico encarnava


não só o mais autêntico, como o mais nobre,
no sentido de se construir um passado
honroso. Por oposição ao negro, que lembrava
nesse contexto uma situação vergonhosa por
causa da escravidão,10 o indígena permitia fazer
348 as pazes com uma origem mítica e unificadora.
Também a natureza brasileira cumpriu função
paralela. Se não tínhamos castelos medievais,
igrejas da antiguidade, ou batalhas heroicas
Indígenas nas propagandas de produtos da corte no Jornal do
a serem lembradas, possuíamos o maior dos Commercio, 1853. Acervo: Fundação Biblioteca Nacional

rios, a mais bela vegetação tropical.


O sucesso do projeto cultural foi tal que,
aos poucos, ele escapava dos circuitos restritos
à intelectualidade e ganhava as classes médias
urbanas, que viram nele uma resposta às
aspirações de afirmação nacional. Se em um

10. Não se pode esquecer que, nesse momento, a pressão pelo


final da escravidão tornava-se cada vez mais forte. No entanto,
a despeito do contexto político adverso, o Brasil seria o último
país a abolir a escravidão, fazendo-o somente em 1888, depois “D. Pedro sagrado por indígenas da terra e divindades”. Litografia, c.
dos Estados Unidos e de Cuba. 1840. Acervo: Fundação Biblioteca Nacional
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
As cosmologias vão assim se misturando Academia Imperial de
de maneira evidente. No centro da cena, Belas-Artes: um retrato
o imperador divide espaço com um

A rtístico N acional
alentado e oficial
indígena – mais elevado, já que em cima do país
de um pedestal – que carrega a bandeira
da monarquia e, com os clássicos louros, Pode-se dizer que a Academia Imperial
coroa d. Pedro. Ele recebe então a coroa, de Belas-Artes representou o lugar ideal para

Lilia Mor itz S ch war cz


segurando um ramo de café na mão esquerda. a experimentação da vertente romântica
Os elementos mesclam-se: o indígena porta que aparecia em outras áreas.11 No plano

e
P atrimônio H istórico
os signos da realeza ocidental, enquanto o pictórico, a Academia é a grande responsável
imperador carrega um emblema dos trópicos. por uma transformação radical: o barroco é
relegado a segundo plano, e o neoclassicismo
francês passa a imperar, sobretudo na corte
e em algumas capitais. No entanto, se o
surgimento da instituição data da época
do Primeiro Reinado foi apenas durante o

do
Segundo que a Academia viveu uma situação

R evista
mais estabilizada, principalmente em função
dos auxílios públicos e privados do monarca.
Empreendendo uma política semelhante à
do IHGB, o imperador passou a distribuir
pessoalmente prêmios, medalhas, bolsas
para o exterior e financiamentos, participou
assiduamente das Exposições Gerais de Belas- 349

Artes, promovidas anualmente, e fez, ainda,


a entrega de insígnias das Ordens de Cristo e
da Rosa aos artistas de maior destaque. Como
se pode notar, a relação do monarca para com
Ilustração de d. Pedro II como “Imperador e defensor perpétuo do
Brasil”. Xilogravura, 1869. Acervo: Fundação Biblioteca Nacional essa instituição era, também, estreita. Afora
o apoio financeiro e oficial, os vínculos com

Mas se o IHGB tratou de criar um panteão


11. Na verdade, a origem da Academia está ligada ao
de heróis e ambientes próprios à exaltação da momento da vinda para o Brasil, em 1816, da, assim
nova nacionalidade, foi na Academia Imperial chamada, Missão de Artistas Franceses. Em 1820, a
escola é transformada, por decreto, em Real Academia
de Belas-Artes que se produziu a iconografia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil; e no
oficial do novo Estado. Num país marcado final do mesmo ano, passa a se chamar Academia de Artes.
Em 1827, finalmente, outro decreto mudou o nome do
pelo analfabetismo, a atuação da monarquia estabelecimento para Academia Imperial de Belas-Artes. Dos
fundadores restavam apenas Debret e Montigny. No meu
privilegiaria a criação de uma nova imagística livro O sol do Brasil (2008), tive oportunidade de desenvolver
para a também nova nacionalidade. essa conjuntura específica.
D. Pedro na abertura da Assembleia Geral (1872). Pedro Américo de Figueiredo e Melo. Óleo sobre tela, 288 x 205 cm. Acervo: Museu Imperial, Petrópolis (RJ)
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
d. Pedro II ficam claros em função do volume do Império, a Academia imporá não só estilos
de retratos produzidos sob encomenda, como temas: o motivo nobre, o retrato, a
tendo como modelo o imperador. Taunay, por paisagem, o indígena. Produzidas em sua

A rtístico N acional
exemplo, fez um quadro de d. Pedro II que maior parte no exterior, onde se beneficiavam
serviu para ser copiado por alunos distintos, de uma política de financiamento,12 essas
para todas as províncias do Império e obras apresentavam uma idealização da
repartições da Corte. O mesmo pode ser paisagem e da população, coerente com

Lilia Mor itz S ch war cz


dito de Manuel de Araújo Porto Alegre, cujo o olhar de quem descreve ao longe e está
quadro, D. Pedro II na abertura do parlamento, motivado por uma encomenda oficial. Esse

e
P atrimônio H istórico
mostra o imperador com seus trajes é o caso das obras de Vitor Meireles de
majestáticos, coroa na cabeça, manto com Lima em A primeira missa no Brasil (1860),
apliques de ramos de café e tabaco, murça de de Moema (1866), ou de José M. Medeiros
tucanos e o cetro com a serpe dourada. com Iracema (1881), que fazem parte do
A atitude do imperador com relação a ciclo indigenista, que chega à pintura mais
Pedro Américo não foi caso isolado. Vitor tarde do que na literatura: só na década de
Meireles também foi estudar na Europa, 1860. Nessas obras, os indígenas passivos e

do
assim como Almeida Júnior, Castagnetto idealizados compõem a cena sem alterá-la:

R evista
e Rodolfo Bernardelli. O fato é que essa eles são elementos colados à própria essência
rede de proteção e de mecenato criava uma da paisagem tropical. Além do mais, repete-
espécie de exército de artistas; pronto a se seu lugar sacrificial na lógica dessa nova
retratar a nova imagem do Império e de seus nacionalidade que se projeta para o futuro.
trópicos. A Academia não só premiava os Exemplo de atos nobres, eles deveriam
ganhadores com bolsas e viagens ao exterior, falecer para que a própria nação vingasse.
como d. Pedro II, pessoalmente, financiava Esse é também o caso da tela O último 351
seus protegidos, que ficaram a partir de tamoio (1883), de Rodolfo Amoedo, e
então conhecidos como “os pensionistas do da escultura em terracota de Francisco
imperador”. Tal vínculo se faria presente Manoel Chaves Pinheiro, denominada Índio
na produção da escola, onde predominou simbolizando a nação brasileira, de 1872.
a exaltação do exótico, da natureza e do Chaves produziu talvez o documento mais
indígena romântico. emblemático de sua geração, ao embutir
O centro inauguraria todo um didatismo, no título de sua obra a intenção do projeto
uma nova pedagogia, com exigências de nível indigenista. Com uma postura corporal
de escolaridade, currículos mínimos e cursos idêntica à imagem oficial com que o monarca
de anatomia. Nesse universo acadêmico era sempre retratado, o indígena de Chaves
predominava a pintura histórica – a exemplo carrega o cetro da monarquia, ao invés de sua
do modelo francês –, guinada essa que trazia, arma, um escudo com o brasão real em lugar
para a pintura, a mesma intenção de ruptura
12. O imperador auxiliou um total de 24 artistas brasileiros
já manifestada na literatura. Produtora, a no exterior, dentre os quais destacam-se nomes como Pedro
partir de então, de todas as imagens oficiais Américo e José Ferraz de Almeida Júnior.
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
de sua borduna. O cocar está na cabeça, mas dramas românticos produzidos na corte,
é o manto do rei que cobre a “nudez natural” os quadros grandiosos ambientados nos
desse “símbolo nobre e puro de nossa origem”. trópicos, as belas óperas que apresentavam
A rtístico N acional

um Império exótico, mas nobre; natural,


porém civilizado. Como diz o provérbio:
“A pátria é uma ideia “Si non é vero, é ben trovatto”; ou na versão de
representada pela terra Gonçalves Dias: “Meninos, eu vi”.
Lilia Mor itz S ch war cz

em que nascemos” A despeito das críticas da geração realista,


de finais do século XIX, que viu o gênero
e
P atrimônio H istórico

O romantismo alcançou grande como excessivamente imaginoso e subjetivo,


repercussão no Brasil dos Oitocentos, tendo a representação romântica criou raízes no
o indígena como símbolo dileto. Os nativos país. Sua popularidade talvez advenha menos
nunca foram tão brancos, assim como o do que contém de artificial e exterior e mais
monarca e o seu mecenato cultural, mais de seu processo de invenção, reelaboração
e mais tropicais. Afinal, essa era a melhor e releitura à realidade dos trópicos e uma
resposta para uma elite que se perguntava série de imagens e representações produzidas
do

sobre sua identidade, que deveria estar na longa duração. Como um bom selvagem
R evista

atrelada à descoberta de sua “verdadeira” tropical, o indígena mitificado permitiu à


singularidade. Diante da rejeição ao negro jovem nação fazer as pazes com um passado
escravo e mesmo ao colonizador português, o honroso e anunciar um futuro promissor.
indígena devidamente idealizado restava como Foi, portanto, nas décadas de 1850 e 1860
o exclusivo representante: digno e legítimo. que o Brasil conheceu a consagração do
Puros, bons, honestos e corajosos, atuavam romantismo, cuja manifestação considerada a
352 como reis no exuberante cenário da selva mais “genuinamente nacional”, o indianismo,
brasileira e em total harmonia com ela. teve nele o momento de maior prestígio,
A imaginação muitas vezes cedia alcançando não só a poesia e o romance, mas
espaço a um didatismo oficial e livresco, também a música e a pintura.
que conferia ao romance e à pintura a Esse é talvez o momento de maior
credibilidade necessária. Viajantes, cronistas, sucesso da construção de uma simbologia
historiadores; nomes como Gabriel dos nacional mestiçada, só suplantada pela década
Santos, Rocha Pita, Manuel da Nóbrega, de 1930, quando uma nova geração trará
Thevet, Leris, saíam dos compêndios para as suas mãos uma tarefa semelhante:
e entravam nas notas explicativas que construir os símbolos nacionais prontamente
acompanhavam os textos, que, por sua vez, convertidos em patrimônios. Nesse último
serviam de base para a pintura e até para a caso, porém, no lugar do indígena será na
ópera e o teatro. História e mito caminham ideia da mestiçagem, sobretudo com o negro,
lado a lado: o índio teria, sim, existido em que se apoiará a nova construção.
um passado remoto e glorioso. E era ele, Na representação vitoriosa dos
dessa maneira mitificado, que inspirava os anos 30, o mestiço transformou-se em
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
ícone nacional, em um símbolo de nossa
identidade cruzada no sangue, sincrética na
cultura; isto é: no samba, na capoeira, no

A rtístico N acional
candomblé e no futebol. Redenção verbal
que não se concretizava no cotidiano, a
exaltação do nacional representa uma
retórica que não encontrava contrapartida

Lilia Mor itz S ch war cz


definida na valorização das populações
mestiças discriminadas.

e
P atrimônio H istórico
De toda maneira, não só no debate
intelectual, porém, uma vez mais, na
esfera do Estado, a partir dos anos 30 “o
mestiço vira nacional”, paralelamente a
um processo de desafricanização de vários
elementos culturais, simbolicamente
clareados e transformados em patrimônio.

do
Esse é o caso da feijoada, naquele contexto

R evista
destacada como uma “receita típica da
culinária brasileira”. A princípio conhecida
como “comida de escravos”, a feijoada se
converte, a partir dos anos 30, em “prato
nacional”, carregando consigo a representação
simbólica da mestiçagem. O feijão (preto
ou marrom) e o arroz (branco) remetem 353
metaforicamente aos dois grandes segmentos
formadores da população. A eles se juntam
os acompanhamentos: a couve (o verde das
nossas matas), a laranja (a cor de nossas
riquezas). Temos aí um exemplo de como
elementos étnicos ou costumes particulares
viram matéria de nacionalidade.13 Mas esse
não é, por certo, um exemplo isolado.
A capoeira – reprimida pela polícia do final
do século passado e incluída como crime
no Código Penal de 1890 – é oficializada

13. Sobre o tema, veja a importante análise de Peter Fry Índio simbolizando a nação brasileira (1872). Escultura de
“Feijoada e soul food”, em Para inglês ver (1982), que revela Francisco Manuel Chaves Pinheiro, 192 cm. Acervo: Museu Nacional
como a utilização da comida de escravos nos Estados Unidos de Belas-Artes. Produzida no mesmo ano que o quadro de Pedro Américo, D.
Pedro na abertura da Assembleia Geral, os elementos são semelhantes embora
passou por um processo diametralmente oposto. mude a personagem: sai o imperador, entra o indígena
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
A rtístico N acional
Lilia Mor itz S ch war cz
e
P atrimônio H istórico
do
R evista

354

A primeira missa (1860). Victor Meireles de Lima. Óleo sobre tela, 268 x 356 cm. Acervo: Museu Nacional de Belas-Artes

como modalidade esportiva nacional, em Não foi também por uma feliz
1937. Também o samba passou da repressão coincidência que o novo regime introduziu
à exaltação; de “dança de preto” a “canção novas datas cívicas. Além do Dia do Trabalho,
brasileira para exportação”. Definido na do aniversário de Getúlio Vargas e do
época como uma dança de fusão de elementos Estado Novo é criado o Dia da Raça, com
diversos, o samba sai da marginalidade o objetivo de exaltar a tolerância de nossa
e ganha as ruas, enquanto as escolas de sociedade. De maneira paralela, a partir de
samba e desfiles passam a ser oficialmente 1938 os atabaques do candomblé passam a
subvencionadas a partir de 1935. ser batidos sem interferência policial. Até
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
mesmo o futebol, originalmente um esporte meus versos...”. O sucesso foi tal que Zé
inglês, foi sendo mais e mais associado a Carioca retorna com o desenho Você já foi
negros, sobretudo a partir de 1933, quando à Bahia?, mostrando aos americanos quão

A rtístico N acional
a profissionalização dos jogadores tendeu a exótico e harmonioso era o país, de norte
mudar a coloração dos clubes futebolísticos. a sul. Era agora o olhar que vinha de fora,
Esse momento coincide, ainda, com a que reconhecia no malandro uma síntese
escolha de Nossa Senhora da Conceição brasileira: a mestiçagem, a ojeriza ao

Lilia Mor itz S ch war cz


Aparecida para padroeira do Brasil. Meio trabalho regular, a valorização da intimidade
branca, meio negra, a nova santa era mestiça nas relações sociais.

e
P atrimônio H istórico
como os brasileiros. Tal qual um Macunaíma O fato é que a geração romântica
às avessas, nesse caso, a imersão nas águas e os grupos modernistas dos anos 30
do rio Paraíba teria escurecido a virgem e tiveram sucesso, cada um a sua maneira,
sua “súbita aparição” feito dela uma legítima na conformação de representações da
representante da nacionalidade (Souza, 1996). nacionalidade, devidamente selecionadas.
Em seu conjunto prevalece, portanto, a ideia Memória é processo de bem lembrar, mas
de uma troca livre de traços culturais entre os também de muito esquecer, e os discursos de

do
vários grupos, coerente com as interpretações identidade arbitram e agenciam determinadas

R evista
de Gilberto Freyre, que, nesse contexto, imagens sempre em detrimento de outras. No
eram recebidas como modelos harmônicos de entanto, se é possível dizer que a memória
convivência racial.14 manipula, vale à pena lembrar que não age
Vinculada a todo esse ambiente é que no vazio. Ao contrário, é preciso haver uma
surge a famosa figura do malandro brasileiro. comunidade de imaginação, como dizem
Evidentemente mestiça, a malandragem Baczo e Anderson, para que sua veiculação
ganhava uma versão internacional quando, ganhe eficácia e legitimidade (Baczo, 1984 e 355
em 1943, Walt Disney apresentava seu Benedict, 2008). É possível perceber como
Zé Carioca. No filme Alô amigos, o alegre nesses dois momentos específicos, o Estado
papagaio introduzia Pato Donald nas atua no sentido de fundar e arbitrar práticas
terras brasileiras, tudo com muito ritmo, de patrimônio cultural no Brasil, processos
cachaça e direito a Carmem Miranda. Na de construção da nacionalidade com lógicas
música Aquarela do Brasil alguns dos novos calcadas no passado, mas fincadas no presente.
símbolos: “Brasil, meu Brasil brasileiro, Nações não possuem data de nascimento
meu mulato inzoneiro, vou cantar-te nos identificada em um registro oficial. Como
disse certa vez o historiador Fernand Braudel,
14. Freyre até “exportaria”, anos depois e com o apoio acontecimentos como esses são poeira:
do regime de Salazar, um modelo brasileiro que deveria
servir para todo o Império português. O termo luso- eles atravessam a história como breves
tropicalismo fala das aspirações desse autor. Nesse sentido, lampejos. Mal nascem já retornam à noite
veja Omar Ribeiro Thomaz (1997). É preciso dizer, ainda,
que nos anos 30 Vargas se utilizaria tanto do projeto e, amiúde, ao esquecimento. E é em torno
modernista paulista, quanto do regionalismo de Freyre,
que, em certo sentido, significou uma forma de reação ao
dessas verdadeiras políticas coletivas – as
modelo do Sul. nacionalidades – que se constroem políticas
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
de patrimônio cultural. Uma nação é limitada, hipnótica da solidez de uma comunidade, a
uma vez que apresenta fronteiras finitas e qual naturaliza a história e o próprio tempo
nenhuma se imagina como extensão única da (Said, 2003).
A rtístico N acional

humanidade. Contudo é também soberana, Assim, é possível imaginar nações


já que o nacionalismo nasce exatamente quando uma determinada língua escrita
num momento em que o Iluminismo e a converte-se em acesso privilegiado para
Revolução estavam destruindo a legitimidade a construção de verdades ontológicas; e
Lilia Mor itz S ch war cz

dos reinos dinásticos e de ordem divina. Por quando se investe numa concepção de
fim, nações são imaginadas como comunidades temporalidade em que cosmologia e história
e
P atrimônio H istórico

porque, independentemente das hierarquias se confundem. Nesse sentido, a língua e


e desigualdades de fato existentes, elas a literatura cumprem papel fundamental,
sempre se concebem como estruturas de quando permitem a unificação da leitura, a
camaradagem horizontal. Estabelece-se a ideia manutenção de uma antiguidade essencial
de um nós coletivo, irmanando relações em e, sobretudo, a partir do momento em que
tudo distintas. se tornam oficiais. Fica assim montado o
O fato é que com o declínio das cenário para a nação moderna, que nascia da
do

comunidades, línguas e linhagens sagradas – convergência do capitalismo e da tecnologia


R evista

isto é, com o fim crescente dos sistemas da imprensa sobre a fatal diversidade da
divinos e religiosos – ocorrem transformações linguagem humana. Por outro lado, a
nos modos de “aprender o mundo” que história – ou melhor, certa concatenação
possibilitam “pensar a nação”. Além do “natural” e irreversível de fatos – fez com
mais, os discursos da nacionalidade são que os eventos vividos por diferentes
caracterizados pela noção de simultaneidade, testemunhas e analistas se tornassem “coisas
356 que inaugura uma ideia de tempo vazio e e trajetórias” com nomes próprios. Esse é o
homogêneo, ao modo de Walter Benjamim. caso, por exemplo, da Revolução Francesa,
Abolem-se divisões cronológicas claras e, cuja experiência foi modelada pela página
em seu lugar, estabelecem-se regimes de impressa, afirmando-se, hoje em dia, como
temporalidade que jogam para a esfera do um conceito definidor da modernidade
mito o passado e os momentos de fundação. ocidental; nos termos de Anderson, um
É por isso que a literatura e as telas oficiais “conjunto de nações imaginadas”.
proporcionariam os meios técnicos ideais para Mas engana-se aquele que pensa que esse
representar o tipo de comunidade imaginada processo é externo às populações estudadas.
a que corresponde uma nação. Por outro Ao contrário, processos de nacionalidade
lado, como também concluiu Edward Said, e de patrimonialização são marcados pelo
os romances de fundação acabariam por apego sentimental que os povos sentem às
se apresentar como elementos destacados suas imaginações. Os mexicanos retornam a
na construção coletiva de um passado e de um passado asteca, apesar de não falar mais
um “nós” comum e identificado. A partir a língua; assim como os suíços recorrem
deles se daria uma espécie de confirmação sempre a seu “tradicional multilinguismo”,
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
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e
P atrimônio H istórico
Moema (1866). Vitor Meireles de Lima. Óleo
sobre tela, 129 x 190 cm. Acervo: Museu de Arte de
São Paulo - MASP

do
R evista
357

O último Tamoyo (1883). Rodolfo Amoedo.


Óleo sobre tela, 180 x 261 cm. Acervo: Museu
Nacional de Belas-Artes

Iracema (1881). José Maria de Medeiros. Óleo


sobre tela, 168 x 255 cm. Acervo: Museu Nacional
de Belas-Artes
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
quando essa realidade é absolutamente cartográfico capaz de comprovar a vetustez
recente e data de finais do século XIX. Há das unidades territoriais. Por fim, não
todo um imaginário afetuoso e o que os se pode descurar da importância da
A rtístico N acional

olhos são para quem deseja, a língua é para imaginação museológica e dos serviços
o patriota. Por meio da língua, restauram-se arqueológicos coloniais, assim como dos
passados, produzem-se companheirismos, institutos históricos, que se conformaram
assim como se sonham com futuros e destinos como estabelecimentos de poder e de
Lilia Mor itz S ch war cz

bem-selecionados. prestígio. Edifícios viraram monumentos


O fato é que não resolve problema e histórias particulares foram consagradas
e
P atrimônio H istórico

algum dizer que as nações são inventadas. como nacionais, nos novos centros. Aí pode
Como afirma o antropólogo Roy Vagner, ser encontrada a urdidura essencial desse
não há como não inventar culturas. Assim pensamento classificatório e totalizante, que
como não há, também, como manter as transformava datas em eventos, passagens
suas patentes intactas: elas aí estão para rápidas em marcos fundadores nacionais.
ser copiadas e modificadas (Roy, 1981). Nem tão antigas são as nações que
Conforme provocava Renan, ainda no considerávamos perdidas no tempo,
do

século XIX, as nações precisam oublier bien assim como nem tão novo é esse Novo
R evista

des choses, mas isso sem deixar de lado a Mundo americano. Vale a pena reacender
imaginação. O que as torna possíveis é, a discussão, sempre presente entre nós,
efetivamente, seu poder de fazer sentido sobre essa nossa nacionalidade tropical, e
no repertório das nações e da gramática acerca desta identidade constantemente
dos povos. Pensemos nos estados coloniais redefinida e colocada em questão. Imaginar
e em três instituições fundamentais no sempre foi, como vimos, selecionar e
358 sentido de moldar as imaginações: os obliterar, e é interessante pensar de que
censos, os mapas e os museus. Juntos, eles maneira, em meados do século XIX, em
conformaram profundamente a maneira pela pleno Império, nos entendíamos como
qual os estados imaginavam seus domínios, europeus ou, no máximo, indígenas, isso
a natureza dos seres por eles governados quando mais de 80% da população era
e a geografia do território. Juntos eles constituída de negros e mestiços. Além do
criaram realidades unificadas, por mais mais, na representação oficial “esquecemos”
distintas que fossem; categorias raciais a instituição escravocrata e exaltamos a
claras em territórios onde os grupos se natureza provedora dos trópicos, como se o
misturavam e fundiam; histórias sequenciais país fosse feito basicamente da imagem de sua
e lógicas; fronteiras e mapas fixos. Os censos flora exuberante. Por isso o “milagre” operado
construíram realidades claras e rígidas, na década de 1930, quando a mestiçagem de
permitindo prever políticas para essas mácula se transforma na nossa mais profunda
populações devidamente imaginadas. Os redenção, é ainda mais revelador.
mapas estabeleceram limites, demarcaram Nações e patrimônios são imaginados,
espaços e constituíram um novo discurso mas não é fácil imaginar. Não se cria
N aci onali dade e pat r i mônio. . .
sobre o nada e no vazio. Os símbolos são Referências
eficientes quando se afirmam no interior
de uma lógica comunitária afetiva de

A rtístico N acional
ALENCAR, José de. O guarani, 1857.
sentidos, e quando fazem da literatura e da ______. Guerra dos mascates, 1870.
Alencastro, Luiz Felipe. “L’empire du Bresil”.
história dados “naturais e essenciais”; pouco Em Le concept d´empire. Paris: Presses Universitaires de
passíveis à dúvida e ao questionamento. O France, 1980.
BACZO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux. Paris: Payot, 1984.
uso do “nós”, presente nos hinos nacionais, BENEDICT, Anderson. Comunidades imaginadas. São

Lilia Mor itz S ch war cz


nos dísticos e nas falas oficiais faz com que Paulo: Cia. das Letras, 2008.
o sentimento de pertença se sobreponha à Cândido, Antônio. O romantismo. São Paulo:

e
mimeo, 1990.

P atrimônio H istórico
ideia de individualidade, e que se apague FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Porto Alegre:
o que existe de “eles”, e de diferença em Globo, 1978.
FRANCHETTI, Paulo. Estudos de literatura brasileira e
qualquer sociedade. Só assim se entende, portuguesa. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.
por exemplo, o nosso famoso Hino da FRY, Peter. “Feijoada e soul food”. Em Para inglês ver. Rio
República, o qual, paradoxalmente, não de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
GERBI, Antonello. La disputa del nuevo mundo. México:
é nosso Hino Nacional. Escrito em 1889, Fondo de Cultura Económica, 1982.
um ano após a abolição da escravidão, GUIMARÃES, Manoel Luiz Lima Salgado. “Nação e
civilização nos trópicos. O IHGB e o projeto de história

do
ele conclamava os brasileiros a cantar
nacional. Estudos Históricos, 1:5-27. Rio de Janeiro, 1988.

R evista
coletivamente: “nós nem cremos que HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os
escravos outrora tenha havido em tão nobre nativos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 2ª
ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986.
país ...”. A escravidão havia sido abolida MELO E SOUZA, Laura de. O diabo e a terra de Santa
há apenas um ano, mas já virava matéria Cruz. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.
do passado, assim como a nacionalidade, NORBERT, Elias. O processo civilizador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1983.
recém-descoberta, era vista como um PUNTONI, Pedro. “Gonçalves Magalhães e a
grande coletivo devidamente naturalizado. historiografia do Império”. Em Novos Estudos Cebrap, 359
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Os primeiros movimentos SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Cia. das Letras,
latino-americanos pela independência, como 2003.
mostra Benedict Anderson, eram de “pouca SCHWARZ, Lilia. As barbas do imperador. São Paulo: Cia.
das Letras, 1989.
espessura social”, mas trataram de ganhá-la. ______. O sol do Brasil. São Paulo: Companhia das
Foi assim que nos transformamos primeiro Letras, 2008.
SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. Em
no país tropical – da natureza e de seus Que horas são? São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
naturais – e mais tarde na nação do samba SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de. “Mãe negra de um
e do futebol. A ideia da exclusão social e povo mestiço”. Estudos afroasiáticos 29. Rio de Janeiro:
s.e. ,1996.
da violência é de certa maneira recente VAGNER, Roy. The invention of culture. Chicago: Chicago
em nossos noticiosos e nunca fez parte de University Press, 1981.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do
nossa “imaginação nacional”. Na qualidade
Brasil, 2 vols. Madri: Imprensa da V. de Dominguez, 1ª
de imaginário, “Deus continua brasileiro” e ed., 1854; São Paulo: Melhoramentos, 5ª ed., 1956.
gosta de cachaça e caipirinha.

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