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Conteúdos literários UNIDADE 2 FREI LUÍS DE SOUSA, de ALMEIDA GARRETT

FREI LUÍS DE SOUSA, de ALMEIDA GARRETT O SEBASTIANISMO: HISTÓRIA E FICÇÃO

• evemos assinalar o patriotismo de Garrett, que exprime nesta peça o seu


D
A DIMENSÃO PATRIÓTICA E A SUA EXPRESSÃO SIMBÓLICA
sentimento nacional, o orgulho por temas pátrios e o seu combate pela liber-
dade na período da política autoritária e opressiva do governo de Costa Cabral
• O patriotismo é um dos temas de Frei Luís de
(1842-46). O olhar crítico sobre uma época do passado (Dinastia Filipina) alude
Sousa. A ação do drama é marcada pela situação
indireta e criticamente às circunstâncias políticas da época da escrita da peça
do País em fins do século XVI, época em que se
(1843-44).
encontra sob dominação de Espanha, e pelos sen-
timentos de amor nacional que esta realidade polí- • A ação de Frei Luís de Sousa decorre vinte e um anos após a histórica Batalha
tica desperta nas personagens. de Alcácer-Quibir (1578), em que morreu o rei D. Sebastião e parte da nobreza
nacional. A batalha teve consequências diretas na perda da soberania nacional,
• A situação política de Portugal tem grande im-
pois Portugal foi politicamente anexado a Espanha em 1580.
portância na ação da peça, tendo em conta que
D. Manuel de Sousa Coutinho, Telmo e Maria • sebastianismo consiste, inicialmente, na crença de que o jovem rei, que
O
desejam a independência do Reino e não aceitam morre em Alcácer-Quibir, regressará não só para recuperar a independência
a governação espanhola; o protagonista recusa-se de Portugal como também para dar um novo impulso ao Reino a fim de conse-
mesmo a colaborar com os governadores ao ser- guir que este saia do estado de ruína e marasmo em que se encontra. Nesta
viço do rei estrangeiro e a afronta-os incendiando vertente, trata-se de uma crença messiânica pois parte do princípio de que
a sua própria casa. Numa das linhas de ação da a salvação da pátria e de um povo está nas mãos de uma figura (histórica ou
peça, a tensão dramática resulta deste conflito. lendária) e que ela fará renascer a Nação a partir das cinzas e a conduzirá num
caminho glorioso.
• A própria ideia de Portugal é assumida como tema
desta obra de Garrett, que se assume como a tra- • om o passar dos tempos, o sebastianismo já não se referirá ao regresso físico
C
gédia coletiva de um povo. Frei Luís de Sousa de D. Sebastião mas sim à chegada de uma personagem que assumisse esta
apresenta uma reflexão sobre a nação portuguesa, função salvadora ou a uma ideia que desempenhasse esse papel, como sucede
uma nação que tinha sido grande mas que, na com o mito do Quinto Império, de que Vieira e Fernando Pessoa trataram.
época histórica da ação do drama, perdera a sobe-
• Em Frei Luís de Sousa, D. João de Portugal não regressa de Alcácer-Quibir, é
rania política e se encontrava em estado de hiber-
Miguel Lupi, D. João de Portugal, cena de Frei Luís de Sousa (1865). feito prisioneiro e só voltará vinte e um anos depois à Pátria, com D. Madalena
nação, esperando ressurgir… caso ainda fosse
casada em segundas núpcias, desencadeando assim as consequências trágicas
possível.
que se conhecem. D. João alude simbolicamente a D.  Sebastião, e o seu
• A peça constrói a ideia de que Portugal deixou de existir durante a Dinastia regresso serve para especular sobre as consequências do regresso do antigo rei.
Filipina e é um mero fantasma (é «Ninguém!») que alguns creem poder res-
• esta peça de Garrett, o sebastianismo é perspetivado de forma crítica e nega-
N
suscitar (Lourenço, 2013: 86): o Reino perdeu a sua independência e espera
tiva. Por um lado, porque a saudade deste velho Portugal, que Telmo protago-
recuperá-la com a chegada de D. Sebastião, que, na verdade, morreu na
niza, não traz a solução para o problema da Pátria. Por outro, porque o regresso
Batalha de Alcácer-Quibir.
de D. João (e da ideia de uma nação decadente) impossibilita que se opere
• A família de D. Manuel de Sousa Coutinho representa simbolicamente a tragé- a mudança e o surgimento de um novo Portugal (de Madalena, Manuel e
dia coletiva de Portugal. Os protagonistas, Maria e Telmo, anseiam pela liber- Maria) que consiga triunfar.
dade e pelo ressurgimento da pátria. O velho aio deseja que o seu antigo amo,
D. João de Portugal — que representa simbolicamente D. Sebastião —, esteja
vivo e regresse. Porém, hesita quando dá conta de que o seu regresso trará RECORTE DAS PERSONAGENS PRINCIPAIS
a ruína da família.
1. D. Madalena
• Desta forma se inculca que o velho Portugal, que morreu em Alcácer-Quibir
— o Portugal de D. Sebastião e de D. João —, já não conseguirá um novo • D. Madalena vive numa grande instabilidade emocional: o terror que lhe provoca
ímpeto e fazer ressurgir a Nação; trata-se apenas de um fantasma sem sentido a possibilidade de regresso de D. João nunca a deixa desfrutar da felicidade de
que está preso na saudade e na ideia de passado. Por outro lado, o novo viver ao lado do homem que ama. Os seus receios são alimentados pelas contí-
Portugal, representado por D. Manuel, D. Madalena e Maria, acaba por não ser nuas alusões de Telmo à iminente vinda daquele que considerava como o verda-
a solução para o problema da Nação, pois estas personagens morrem (física ou deiro amo. A  tensão nervosa em que vive mergulhada é também aumentada pelo
simbolicamente) e com eles morre a esperança de futuro de um novo País. pecado que lhe pesa na consciência: o facto de se ter apaixonado por D. Manuel
de Sousa Coutinho enquanto ainda era casada com D. João. Muito embora se
tenha mantido fiel ao seu marido, considera que o facto de amar secretamente
D. Manuel era já uma traição. O sofrimento é ainda intensificado pelo profundo
amor que sente pela filha, na medida em que tem consciência de que o regresso
de D. João — ou a simples noção da sua existência — a poderiam matar.

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•    A sua crença no oculto leva-a a entrever  4. Telmo
presságios de desgraça em vários aconte-
• O escudeiro destaca-se, numa fase inicial, pela sua severidade, que o leva a
cimentos aparentemente fortuitos.
criticar D. Madalena por se ter casado segunda vez sem estar certa da morte
•    Apesar de parecer psicologicamente mais  do primeiro marido e mesmo a sugerir que, em consequência disto, Maria
frágil do que D. Manuel, curiosamente,   poderia não ser uma filha legítima.
é ela quem, no fim, se mostrará mais re- 
• No entanto, a inflexibilidade que revela (e que se manifesta, por exemplo, no
voltada por ser forçada a  separar-se do 
facto de nunca mentir) virá a ser quebrada aquando da chegada do Romeiro.
marido e a ingressar no convento. 
Confrontado com a necessidade de salvar Maria, apercebe-se de que já a
•    Ao contrário de D. Manuel, mantém até  amava mais do que ao primeiro amo. Assim, dispõe-se, pela primeira vez na
ao último momento a esperança de evitar  vida, a mentir, em nome dos afetos. É interessante verificar que, desta forma,
o desenlace trágico. se humaniza, aproximando-se de D. Madalena, a quem tanto criticara anterior-
mente, na medida em que se apercebe de que o amor por vezes se sobrepõe
2. D. Manuel de Sousa Coutinho aos princípios morais.

•  Esta personagem é, tal como D. Madalena, uma figura de grande densidade 
psicológica, o que se manifesta nos contrastes que marcam a sua personali- 5. Frei Jorge
dade. Todo o seu discurso se pauta por uma racionalidade e lucidez que se  • Tal como o irmão, Frei Jorge caracteriza-se pela sensatez, procurando sempre
traduzem na recusa dos agouros e de qualquer sentimento de culpa em relação  auxiliar a família.
ao passado. Apesar disto, até ele se mostra desagradado quando Maria lhe fala 
• A personagem tem um papel determinante na resolução do conflito entre
na possibilidade de regresso de D. Sebastião, o que demonstra que, na reali-
D. Manuel e os governadores ao serviço de Castela.
dade, não estava absolutamente convicto de que D. João tinha morrido na 
Batalha de Alcácer-Quibir. O ceticismo que mostra em relação aos presságios  • No Ato Terceiro, quando D. Manuel se verga ao peso da desgraça, é Frei Jorge
é também contrariado quando recorda que o pai fora morto pela própria  quem toma todas as providências para que o irmão e D. Madalena ingressem
espada, interrogando-se sobre se também ele não será vítima do fogo que  no convento — procurando, simultaneamente, amparar a família e funcionar
ateou. como intermediário entre as personagens.
•  O heroísmo que demonstra ao atrever-se a enfrentar abertamente os governa- • Apesar de se comover com o sofrimento a que assiste, Frei Jorge mostra-se
dores portugueses ao serviço de Castela parece esbater-se aquando do regresso  inflexível na obediência aos seus princípios, recusando qualquer solução que
de D. João: ao contrário de D. Madalena, o seu sofrimento não o impede de  passasse pela mentira, mesmo que esta lhe permitisse impedir a catástrofe.
aceitar com resignação a solução de ingressar numa ordem religiosa. Com efeito, considera que a entrada na vida religiosa proporcionará a D. Manuel
e a D. Madalena o consolo e a redenção de que necessitavam.
•  Finalmente, a cultura revelada por D. Manuel e o seu amor às letras funcionam 
como prenúncios de que se irá converter num dos maiores prosadores da lite-
ratura portuguesa. 6. D. João de Portugal
• Este fidalgo, apesar de ser considerado pelas outras personagens como uma
3. Maria figura digna de temor pela dignidade e rigidez na fidelidade aos seus princípios,
acaba por revelar-se muito humano. Confrontado com o facto de que
•  Maria é uma menina muito inteligente e precoce para a sua idade.
D. Madalena tinha feito todos os esforços para o procurar e de que ela tinha
•  Tendo sido criada por Telmo, tem-lhe um amor profundo, partilhando da sua  uma filha, mostra-se disposto a anular a sua própria existência para salvar toda
crença no regresso de D. Sebastião.  a família da catástrofe.
•  Maria acredita ter a capacidade de desvendar o oculto, traço que, supostamente, 
é agudizado pelo aumento da sensibilidade que o facto de estar tuberculosa lhe 
proporciona. A sua intuição apurada leva-a a compreender que há algo que toda 
O ESPAÇO E O TEMPO
a família lhe quer ocultar, no intuito de a proteger. 
1. O espaço
•  A coragem que demonstra quando incita o pai a queimar o palácio  manifesta-se 
• odemos distinguir dois tipos de espaço num texto dramático: o espaço
P
também no fim, quando enfrenta as convenções sociais e as próprias conven-
cénico, formado pelo palco e pelo cenário, e o espaço representado, o lugar
ções religiosas, afirmando que nada justifica a destruição de uma família.
a que o espaço cénico pretende aludir («faz de conta» que estamos num
•  Apesar da sua força interior, a sua fragilidade física não lhe permite sobreviver   palácio, no campo, etc.). A informação sobre o espaço é dada ao leitor atra-
ao desgosto de descobrir que é filha ilegítima, acabando por morrer de vergonha. vés das didascálias, sobretudo as que se encontram em início de ato, mas
também através das falas das personagens.

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• A ação de Frei Luís de Sousa desenrola-se em dois palácios de Almada. As salas • O solilóquio inicial de D. Madalena dá voz às inquietações da personagem,
dos palácios onde os acontecimentos têm lugar constituem o espaço represen- ainda que de forma enigmática. Na penúltima cena do Ato Primeiro, é D. Manuel
tado. As personagens fazem também referência a outros locais com importância que, só em palco, justifica o gesto de atear fogo à sua própria casa. Na Cena IX
para o enredo: este é o espaço aludido, mencionado por palavras. Esses lugares do Ato Segundo, desempenhando funções semelhantes às do coro da tragédia
são, sobretudo, Alcácer-Quibir e a Palestina, onde D. João estivera aprisionado. grega, Frei Jorge, só em palco, dá conta da preocupação que sente com a situa-
ção em que aquela família se encontra. Por fim, no importante solilóquio da
• Em termos de macroespaços, toda a ação de Frei Luís de Sousa decorre em
Cena IV do ato final, Telmo manifesta o conflito interior entre a fidelidade ao seu
Almada. A cidade reveste-se de um forte valor simbólico pela oposição que
antigo amo e um grande amor a Maria.
estabelece com Lisboa: na capital está instalada a sede do governo de Portugal,
que é controlado pela coroa espanhola. A classe dominante e os governadores
portugueses traíram a sua pátria e colaboram com a potência invasora. Daí que 2. O tempo
a peste que se abateu sobre Lisboa sugira simbolicamente o estado de corrup-
• A peça inicia-se com a apresentação dos antecedentes da ação, que abarcam
ção moral e política em que vivem aqueles que se venderam ao rei de Espanha.
um longo período temporal. Há referências à Batalha de Alcácer- Quibir, que
Por seu turno, do outro lado do Tejo, longe da corrupção moral, Almada respira
tivera lugar vinte e um anos antes, e a momentos ainda anteriores. Depois da
ares «saudáveis». Aí se encontram as personagens patrióticas, fiéis a Portugal:
batalha, e durante sete anos, D. Madalena promoveu buscas para saber se
destacam-se D. Manuel, Maria, Telmo e D. João.
D. João ainda está vivo. No fim deste período, e como a procura se revelou
• O Ato Primeiro decorre no palácio de D. Manuel, numa sala ornamentada e infrutífera, acabou por casar-se com D. Manuel.
luxuosa, sugerindo que este lugar é habitado por personagens nobres. Se uma
• Em contrapartida, a ação da peça desenrola-se num breve período de tempo,
casa simboliza a estabilidade de uma família, este palácio transmite a ideia de
sensivelmente uma semana. O segundo ato decorre no dia do aniversário
conforto, bem-estar e a união e o amor familiares. Por esse motivo, o incêndio
da Batalha de Alcácer-Quibir. Tendo em conta que esta batalha teve lugar no
que destrói o solar revela-se um presságio da desagregação do núcleo familiar,
dia 4 de agosto de 1578, e que D. Madalena afirmara que já haviam passado
consumada pela catástrofe que se abaterá sobre os seus membros.
vinte e um anos desde a batalha, é possível localizar a ação deste ato no dia
• Perdido o palácio de D. Manuel, a família muda-se para a antiga casa de 4 de agosto de 1599. Uma vez que estes acontecimentos se desenrolam oito
D. João de Portugal (e de D. Madalena). O Ato Segundo decorrerá numa sala dias depois dos do primeiro ato, podemos concluir que o primeiro ato decorre
austera e fria, pouco ornamentada e de «gosto melancólico e pesado». Os retra- no dia 28 de julho de 1599. Quanto ao terceiro ato, passa-se durante a noite
tos de D. Sebastião, D. João e Camões conferem solenidade à cena e são uma do dia 4 de agosto.
recordação do velho Portugal independente e grandioso que pereceu em
• Constatamos que há uma progressiva concentração temporal: da evocação dos
Alcácer-Quibir. Esta sala é uma divisão interior, sem janelas ( simbolizando a
episódios de um longo período de vinte e um anos (Ato Primeiro), passamos a
prisão e o afastamento do mundo), inóspita, pautada pela gravidade e ilumi-
acontecimentos que se desenrolam em dois dias, separados entre si no período
nada por tochas e não pelo Sol. As personagens perderam a noção de lar.
de uma semana. Nos Atos Segundo e Terceiro, a velocidade dos acontecimen-
D. Madalena vive em estado de receio e tensão.
tos precipita-se: tudo sucede no dia do aniversário da Batalha de Alcácer-
• A ação do Ato Terceiro decorre na parte baixa do palácio de D. João. O espaço - Quibir, prolongando-se depois pela noite e pela madrugada, que anuncia já o
subterrâneo é ainda mais fechado, mais escuro, quase não tem ornamentos: dia seguinte.
trata-se de um lugar propício a sensação de claustrofobia — há mesmo portas
• Este afunilamento progressivo do tempo contribui para intensificar a tensão
que separam as personagens e que lhes impedem a livre circulação. A sala
dramática, na medida em que todos os acontecimentos se sucedem de forma
subterrânea tem ligação à «capela da Nossa Senhora da Piedade», represen-
cada vez mais rápida, até ao desenlace trágico.
tando que o casal optou pela vida religiosa e a família está condenada à desa-
gregação. No fim do ato, surge, ao fundo, o interior da Igreja de São Paulo.
• Podemos, assim, interpretar a sucessão de espaços como um percurso grada- A DIMENSÃO TRÁGICA
tivo do mundo terreno para o sagrado e espiritual. É este o caminho que a
família vai percorrer: D. Madalena e D. Manuel, porque ingressarão na vida • No que diz respeito à intriga trágica, é interessante verificar que há uma con-
monástica; Maria, porque morrerá e irá para o «Céu». centração de personagens, de espaço e de tempo, como vimos, de modo que
nada seja supérfluo e que tudo contribua para a intensificação da tensão dra-
• Assistimos também a um progressivo afunilamento do espaço: de uma sala com mática.
grandes janelas e onde a luz natural penetra, no Ato Primeiro, passando por uma
sala fechada (Ato Segundo) até chegarmos a um espaço subterrâneo e em que as • De notar que, de acordo com os factos históricos, D. Madalena tivera três filhos
personagens parecem já enclausuradas (Ato Terceiro). Por um lado, este fecha- do primeiro casamento, que são aqui eliminados, para que a aniquilação de
mento do espaço contribui para o aumento da tensão em cena; por outro, esse Maria represente, de facto, o extermínio completo da família.
trajeto ilustra a progressiva limitação de soluções para o problema com que a • Da mesma forma, todo o desenrolar da ação converge para o desenlace trá-
família de D. Manuel depara. gico. Mesmo o momento em que D. Manuel parece revoltar-se contra o destino,
• O espaço psicológico — domínio das vivências mentais de uma personagem: incendiando o seu palácio, acaba por servir a fatalidade que se abate sobre as
pensamentos, sonhos, sentimentos dessas — tem, no texto dramático, o monó- personagens, na medida em que as obriga a família a mudar-se para o palácio
logo e o solilóquio como modos privilegiados de expressão (mas não os únicos). de D. João, local aonde este regressará.

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1. Presença dos elementos da tragédia clássica (continuação)

Elementos da tragédia clássica Presença em Frei Luís de Sousa


Elementos da tragédia clássica Presença em Frei Luís de Sousa
• Pathos — sofrimento crescente • O sofrimento das personagens vai-se intensificando,
• Hybris — consiste num desafio feito • A hybris é perpetrada tanto por D. Madalena como por das personagens. a ponto de o próprio Frei Jorge se sentir inclinado a acreditar
pelas personagens à ordem instituída D. Manuel de Sousa Coutinho. Com efeito, no primeiro caso, na possibilidade de uma catástrofe iminente.
(leis humanas ou divinas). o desafio consistiu no facto de a personagem se ter apaixonado
por D. Manuel de Sousa Coutinho quando ainda era casada com • Ananké — é o destino; preside • A presença do destino é visível pelo facto de todos os
D. João de Portugal. Além disso, ambas as personagens põem à existência das personagens acontecimentos convergirem para o desenlace trágico e de haver
em causa a ordem instituída ao casarem sem terem provas e é implacável. um afunilamento do espaço e do tempo, que mostra que as
irrefutáveis da morte de D. João de Portugal. personagens são inexoravelmente conduzidas para a catástrofe.

• Peripécia — de acordo com a Poética, • A peripécia e a anagnórise ocorrem em simultâneo: com • Catarse — efeito purificador que • O terror e a piedade desencadeados nos espectadores são
de Aristóteles (2000 [c. 300 a. C.]), a chegada do Romeiro e o reconhecimento da sua identidade a tragédia deve ter nos espectadores: adensados pelo facto de a catástrofe se abater sobre uma família
é «a mutação dos sucessos no (anagnórise), dá-se uma inversão brusca nos acontecimentos ao desencadear o terror e a piedade, (na qual se inclui Telmo) que se ama profundamente e de todas
contrário», isto é, o momento em (peripécia) — o casamento torna-se inválido e Maria torna-se permitir-lhes-ia purificarem as suas as personagens serem profundamente retas e dignas.
que se verifica uma inflexão abrupta filha ilegítima. emoções.
dos acontecimentos.
• Anagnórise — palavra que significa
«reconhecimento»; segundo a Poética,
de Aristóteles, «é a passagem do
ignorar ao conhecer», podendo consistir
na revelação de acontecimentos
desconhecidos ou na identificação
de determinada personagem.
• Na Poética, Aristóteles afirma que
«[a] mais bela de todas as formas [de
anagnórise] é a que se dá juntamente
com a peripécia, […] porque suscitará
terror e piedade […].»

• Clímax — momento culminante • O clímax ocorre na cena final do Ato Segundo, pois é neste
da ação. momento que a tensão dramática atinge o seu auge: D. João de
Portugal dá a conhecer de forma inequívoca a sua identidade,
demonstrando, ao mesmo tempo, de forma paradoxal, que LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA
o esquecimento a que foi votado anulou a sua existência.
1. Estrutura
• Catástrofe — desenlace trágico. • A família é totalmente exterminada: D. Madalena e D. Manuel
morrem para o mundo, ingressando na vida religiosa, e Maria 1.1 Estrutura externa
morre, de facto. • estrutura externa de uma obra diz respeito à organização «visível» do texto
A
literário (e traduz-se na forma como essa organização se apresenta grafica-
• Ágon — conflito vivido pelas • As atitudes de D. Madalena ao longo da intriga são um reflexo
mente). Frei Luís de Sousa é uma obra dramática, ou seja, um texto preparado
personagens; pode designar do conflito interior que a atormenta: desde o primeiro momento
para a representação teatral.
o conflito com outras personagens que mostra sentir-se grata por viver com o homem que ama,
ou o conflito interior. tendo, no entanto, consciência de que a sua felicidade é frágil, • C
omo a esmagadora maioria das obras do modo dramático, a peça de Garrett
dado que a construiu com base na suposição da morte é composta por um texto principal, que consiste nas falas das personagens, e
do marido. por um texto secundário, que é constituído pelas didascálias, ou seja, pelas
• Por seu lado, também Telmo é vítima de um conflito interior: indicações cénicas sobre a ornamentação do palco, os adereços, a luz, a movi-
depois de ter passado vinte e um anos a desejar o regresso mentação e os gestos das personagens, etc.
do antigo amo, apercebe-se de que, na verdade, o seu amor por • Enquanto drama romântico, Frei Luís de Sousa é um texto em prosa estruturado
Maria acabou por superar o que nutria por D. João de Portugal, em três atos: a mudança de atos corresponde à mudança do local da ação.
mostrando-se disposto a abdicar dos seus princípios éticos para (Note-se que as tragédias clássicas eram compostas em verso e dividiam-se,
a salvar. por regra, em cinco atos.) Por sua vez, cada ato organiza-se em várias cenas,
(continua) que terminam com a entrada ou saída de personagens do palco.

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1.2 Estrutura interna • As frases interrogativas, frequentes nas falas mais tensas, dão igualmente
conta dos anseios e do desassossego das personagens, mas também da sua
• A estrutura interna de uma obra dramática refere-se à organização do enredo.
desorientação ou da incerteza em relação ao futuro. Por outro lado, a frase
Tradicionalmente, divide-se a ação dramática em três momentos: exposição
curta (por vezes constituída por uma única palavra: «Ninguém!») confere um
inicial da situação, conflito e desenlace.
tom incisivo aos diálogos e contribui para fazer crescer a tensão dramática.
• Na exposição inicial de Frei Luís de Sousa, que ocupa, sensivelmente, as Cenas I
• Por fim, ainda a nível do vocabulário, encontramos certas personagens associa-
a IV do Ato Primeiro, são-nos apresentados a época e o contexto em que o
das a determinados campos lexicais. Frei Jorge e os outros prelados glosam
enredo se desenrola, as personagens centrais do drama (D. Manuel é apenas
o campo lexical da religião; Telmo, o aio, recorre a termos associados às ideias
referido) e os antecedentes da ação (o passado das personagens).
de honra e servidão («senhor», «amo», «servidor»). As repetições de palavras
• O conflito vai-se adensando ao longo do texto (entre a Cena V do Ato Primeiro são utilizadas para exprimir a ansiedade ou a inquietação, mas frequentemente
e a Cena IX do Ato Terceiro). As questões que animam este conflito são, essen- também o afeto entre os membros da família.
cialmente, os receios de D. Madalena, o antagonismo entre D. Manuel e os
governadores do Reino e a doença de Maria. Um primeiro momento de grande
intensidade ocorre quando o Romeiro afirma que D. João de Portugal (ele pró-
3. O drama romântico: características
prio) está vivo, no fim do Ato Segundo. 3.1 O género de Frei Luís de Sousa
• O desenlace (Cenas X e XII do Ato Terceiro) dá conta da resolução do problema • Como introdução a Frei Luís de Sousa, Garrett apresenta uma «Memória ao
entral da obra e do «caminho» que cada personagem toma: Maria morre,
c Conservatório Real», texto ensaístico no qual reflete sobre questões centrais da
D. Madalena e D. Manuel ingressam na vida religiosa. Note-se que este desenlace sua obra dramática — sobretudo sobre o seu género, as suas fontes e o que
tem na morte de Maria o segundo momento de grande intensidade da peça. o levou a escrevê-la.
• A estrutura interna de Frei Luís de Sousa é pautada pelos elementos trágicos da • Relativamente ao género da obra, há que sublinhar o facto de Frei Luís de
ação (cf. páginas 35-37 deste livro). Sousa ter sido escrito em pleno Romantismo, um período literário cuja estética
dominante rompia com os princípios da arte do período anterior — o Neo-
classicismo. Coloca-se então a questão: este texto é uma tragédia clássica,
2. Linguagem e estilo
de matriz greco-latina, ou um drama romântico, género literário que nasce
• o contrário da tragédia clássica, por regra escrita em verso, Frei Luís de Sousa
A no Romantismo e que representa o espírito da época? Garrett defenderá
foi composto em prosa. Desta forma, os diálogos ganham um sabor de colo- que Frei Luís de Sousa é um drama romântico que incorpora, a nível formal,
quialidade e fluidez que dificilmente teriam com o verso. características da tragédia (hibridismo de género).
• Por outro lado, seguindo as regras da tragédia clássica, a linguagem das perso- a) Marcas da tragédia clássica
nagens centrais adequa-se ao estatuto social da nobreza: assim domina o nível
— Assunto digno de uma tragédia clássica, pela
de linguagem elevado e, frequentemente, encontramos um léxico rico e até
beleza, pela simplicidade e pelo sublime
erudito («ignomínia», «opróbrio», «pejo», etc.).
(segundo Almeida Garrett, na «Memória ao
• As falas das personagens de Frei Luís de Sousa são marcadas por uma grande Conservatório Real»);
emotividade, fruto do seu estado de espírito quando confrontadas com os
— Presença dos elementos da tragédia
acontecimentos intensos ou com os seus receios. No texto abundam marcas
clássica (cf. páginas 36-37 deste livro);
linguísticas que traduzem os sentimentos das personagens: as interjeições
(e as locuções interjetivas), as frases exclamativas e os atos ilocutórios expres- — Ambiente carregado de presságios e sinais;
sivos. Os melhores exemplos estão nas falas de D. Madalena e revelam a — Tom grave e estilo elevado;
influência dos melodramas românticos com uma linguagem demasiado retórica
e emotiva. — Linguagem cuidada;

• Associados aos sentimentos e ao estado de espírito das personagens estão as — Personagens de condição elevada;
frases suspensas (ou seja, interrompidas), que pontuam as falas de diferentes — Figuras que desempenham o papel do coro
personagens, exprimem as suas inquietações, perplexidades e hesitações. Por grego (que tem a função de comentar a ação):
vezes, deixam no ar alguns subentendidos cujo significado é partilhado pelas Telmo e Frei Jorge.
personagens (ver o diálogo da Cena II do Ato Primeiro). Telmo e D. Madalena
deixam por terminar as frases por não quererem mencionar o que receiam b) Marcas do drama romântico
(o regresso de D. João, a desonra ou a doença de Maria) ou por hesitarem em — Texto em prosa (e não em verso, como deve-
verbalizar certos factos (a possibilidade de D. João não ter morrido). ria suceder na tragédia clássica);

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Conteúdos literários

— Não cumprimento da lei das três unidades (ação, espaço e tempo): na


tragédia clássica, todos os acontecimentos deveriam convergir para o
desenlace trágico, desenrolar-se no mesmo espaço e durar apenas vinte
e quatro horas. Em Frei Luís de Sousa, não há, claramente, um cumpri-
mento da unidade de tempo (a ação desenrola-se numa semana). Quanto
à unidade de lugar, embora toda a ação se desenrole em Almada, há,
de facto, uma mudança de espaço. Finalmente, podemos considerar
que temos unidade de ação. Apesar de alguns estudiosos afirmarem
que esta unidade é quebrada pela introdução do incêndio do palácio,
evento que consideram que introduz uma ação secundária, a verdade é
que o facto de D. Manuel destruir a sua casa obriga as personagens a
mudarem-se para o palácio de D. João, local aonde este regressará;
— O drama romântico dá conta frequentemente de um tema histórico, que
trata com liberdade literária;
— Presença de temáticas marcadamente românticas:
i. Liberdade individual — é visível na revolta de D. Manuel de Sousa
Coutinho contra um governo ao serviço de Espanha, revolta que é
apoiada por Maria e por Telmo, bem como no discurso final desta
última personagem, no qual a jovem se insurge contra as normas de
uma sociedade que lhe impõe a separação dos pais; além disso, a
própria D. Madalena afirma a sua liberdade, ao casar-se com o
homem que amava sem ter provas irrefutáveis de que o seu anterior
marido tinha morrido;
ii. Patriotismo — é evidente não apenas na crença no comportamento
de D. Manuel anteriormente referido, mas também na esperança de
Telmo e de Maria no regresso de D. Sebastião, que implicaria a liber-
tação de Portugal do jugo estrangeiro;
iii. Cosmovisão cristã — a religião tem um papel fundamental em Frei
Luís de Sousa: é graças a ela que D. Manuel e D. Madalena conse-
guem libertar-se da desonra que se abateu sobre eles com o regresso
de D. João de Portugal (o ingresso na vida monástica permitir-lhes-á
expiarem o seu pecado e renascerem para uma nova existência);
iv. Importância do oculto — a valorização do inconsciente e da intuição
característica do Romantismo é visível pela referência às premoni-
ções de Telmo, de D. Madalena e de Maria (que, no caso desta
última, se associam à crença de que possui a capacidade de prever
o futuro, através de elementos como os sonhos ou as estrelas); de
notar que, à medida que a tensão dramática se adensa, a visão
racional do mundo defendida por D. Manuel e por Frei Jorge é cada
vez mais posta em causa — até que, no desenlace, todos os pressá-
gios de catástrofe se cumprem;
v. Primazia dos sentimentos sobre a razão — além de comprovável
pelo destaque conferido ao lado mais irracional do Homem (referido
no tópico anterior), a valorização das emoções é também visível na
importância conferida ao amor: é ele que leva D. Madalena a casar
com o homem que amava sem ter a certeza plena de que o seu
primeiro marido estaria morto;
vi. Mitificação da figura de Camões — no Romantismo, o poeta é,
muitas vezes, configurado como uma figura incompreendida e des-
prezada pela sociedade, que não reconhece o seu génio; essa foi a
imagem de Camões transmitida pelos românticos portugueses: a de
um poeta que dedicou a sua vida à pátria e que, em troca, apenas
foi alvo de ingratidão.

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