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Prefácio do Tradutor

A filosofia reformacional de Herman Dooyeweerd experimentou no Brasil,


nesses últimos anos, uma popularização exponencial, um nome que há
algum tempo atrás era desconhecido no meio reformado, hoje é bastante
apreciado. Mas como em qualquer assunto que nos aventuramos a estudar,
sempre é necessário e saudável termos conhecimento das críticas e das
vertentes contrárias, pois estar ciente dessas críticas nos auxilia a não
tomarmos atitudes precipitadas para com o assunto que estudamos: as
críticas podem nos ajudar a vermos falhas que poderiam passar
despercebidos diante de nossos olhos; podem reforçar ainda mais o nosso
posicionamento; ou até mesmo fazer-nos afastar da vertente que estamos
nos ingressando, se for necessário. Por esses motivos, se faz conveniente
traduzir e publicar este livreto, bem como fazer o mesmo com quaisquer
críticas à Dooyeweerd que estiverem disponíveis. Espero que o leitor esteja
aberto para ler os contrapontos e tomar a decisão que, sob um amparo
bíblico, melhor lhe parecer ideal.

No presente livreto, John Frame busca fazer uma crítica integral à Filosofia
Reformacional, tocando nos tópicos mais conhecidos e propagados, que
todos os aderentes em geral aceitam, além daqueles que são cruciais para a
fé cristã. A crítica é feita de forma sucinta, porém direta e profunda,
tocando no âmago da questão. E apesar de ser uma crítica sob um viés
pressuposicionalista vantiliano, outras vertentes filosóficas podem usufruir
dos questionamentos e falhas que Frame nos expõe. A crítica não é neutra,
nem imparcial, o pensamento de Amsterdã é aqui designado por expressões
de teor adverso: para Frame essa filosofia é de "segunda categoria" e de
"má qualidade", além de ser um "incentivo à idolatria" e cheia de "tentadas
autonomias"; além disso Frame considera que essa filosofia é nociva de tal
forma que conclui que "...se as metas da filosofia de Amsterdã
prevalecerem em nossos círculos, a Fé Reformada como temos conhecido
desaparecerá completamente desses círculos.", e por causa dessa
gravidade, Frame convoca a todos os cristãos, mesmo aqueles sem
especialidade em filosofia, a submeterem essa vertente ao crivo das
Escrituras, e alertar à igreja de Cristo a evitarem essa corrente.

Posto assim, espero que o leitor aproveite bem o conteúdo, tenha uma
ótima compreensão e que, de alguma forma, lhe seja edificante.

Matheus Valentim
Prefácio, 2005

Este livreto foi publicado pela Pilgrim Press em 1972, em meio a uma
guerra teológica. Representantes da Filosofia de Amsterdã estavam
tomando uma postura militar contra a teologia reformada tradicional, e a
controvérsia gerou uma batalha partidária no campus do Westminster
Seminary, onde eu ainda era um jovem professor. Esse embate também
ameaçou dividir igrejas, escolas cristãs e outras organizações cristãs. Como
membro de um comitê do Presbitério de Ohio da Orthodox Presbyterian
Church, me pediram para escrever um breve estudo sobre o movimento
que resultou neste livreto. Originalmente publicado junto com um ensaio
de Leonard Coppes, o presidente do comitê.

Quando leio este livreto hoje, penso que meu tom foi muito estridente. O
livreto também tem muitas coisas dignas de um metido a sabichão (smart-
alecky stuffs). Penso que eu poderia ter reescrito totalmente, mas isso teria
feito meus esforços de 1972 parecerem melhores do que foram.
Atualmente prefiro deixar os leitores me julgarem conforme mereço,
expondo os meus erros sem pudor. Também penso que as questões sobre
os pontos mais básicos nunca foram respondidos, embora tenha recebido
várias injúrias, e muitas acusações sem provas de que eu não entendi
Dooyeweerd corretamente. Sobre esses problemas, eu deixarei que os
leitores julguem.
4

1. CONTEXTO HISTÓRICO

A Filosofia de Amsterdã1 é um movimento que nos últimos cinquenta anos


(aproximadamente) tem tentado desenvolver um sistema filosófico sobre
uma base radicalmente bíblica, radicalmente cristã. Seus pioneiros foram o
Prof. Herman Dooyeweerd e seu cunhado Prof. D. H. Th. Vollenhoven da
Universidade Livre de Amsterdã (VU), e o Prof. H. G. Stroker da
Universidade de Potchefstroom, África do Sul. Outros nomes associados
ao movimento nos Países Baixos são K. J. Popma, J. P. A. Mekkes, H. van
Riessen e J. M. Spier. Na América do Norte, por muitos anos, o proponente
mais importante desse movimento foi geralmente reconhecido como sendo
o Prof. Cornelius van Til do Westminster Theological Seminary,
Filadélfia.2 Sua influência foi, talvez, o fator importante em atrair jovens
como H. Evan Runner (atualmente no Calvin College) e Roberto D.
Knudsen (atualmente no Westminster Seminary) para o círculo de
Amsterdã. Durante o mesmo período, outros homens como William Young
e David H. Freeman (ambos atualmente na University of Rhode Island) e
T. Grady Spires (atualmente no Gordon College) tiveram consideráveis
interesses acadêmicos no movimento de Amsterdã, mas mantiveram uma
atitude crítica suficiente para com o movimento para evitar de serem

1 Essa expressão parece ser a designação do movimento que causa menos dificuldades. O
nome que Dooyeweerd deu a essa filosofia, "A Filosofia da Ideia de Lei" (com sua
variante helenizada "A Filosofia da Ideia Cosmonômica") é um pouco complicado demais
para ser uma referência fácil. "Dooyeweerdianismo" é geralmente considerado um pouco
vulgar, e, além disso, acredita-se que imponha ao movimento um apego mais próximo ao
pensamento de seu membro mais conhecido do que geralmente se deseja reconhecer.
Expressões como "Reformacional" e "Cristão Radical" são muito honoríficos para usar no
contexto do debate.
2 Dr. van Til é ainda listado como editor da Philosophia Reformata, e a impressão de
1968 de In the Twilight of Western Thought de Dooyeweerd (Nutley, Craig Press, 1960)
lista-o como membro da escola (p. 197). Todavia, como nós veremos, Dr. van Til se
tornou cada vez mais crítico do movimento em anos recentes; tão crítico, de fato, que seria
incorreto considerá-lo como membro dessa escola atualmente. Cf. abaixo, especialmente a
seção 14.
5
listados junto com membros desta escola. Os últimos dez anos trouxeram
muito mais nomes de proeminência como aderentes da Escola de
Amsterdã. No Trinity Christian College de Palos Heights, Illinois,
podemos notar Calvin Seerveld e Carl T. McIntire, filho do famoso
pregador de rádio. Um número de "pensadores de Amsterdã" podem ser
encontrados no Dordt College, Sioux Center, Iowa, tais como J. van Dyk,
J. Vander Stelt e H. L. Hebdem Taylor, um dos divulgadores mais
prolíficos do movimento. O Institute for Christian Studies, Toronto,
Canadá, fundado especificamente com o propósito de propagar essa escola
de pensamento, ostenta-se da presença de B. Sylstra, James Olthuis, John
Olthuis, Arnold de Graaf e Hendrik Hart. Dentro da área de nosso
presbitério, Peter J. Steen advoga sua versão da filosofia de Amsterdã em
suas aulas de filosofia no Geneva College, Beaver Falls, Pensilvânia.
Organizações que apoiam os objetivos do movimento são a Association for
the Advancement of Christian Scholarship (A.A.C.S.) (anteriormente
Association for Reformed Scientific Studies) e a National Association for
Christian Political Action (N.A.P.C.A.). A influência dessa filosofia é forte
no movimento trabalhista cristão no Canadá, e está sendo sentido cada vez
mais no movimento escolar cristão no Canadá e nos Estados Unidos,
principalmente no National Union of Christian Schools. Desenvolvimentos
no movimento podem ser vistos em periódicos como Philosophia
Reformata (publicado nos Países Baixos), na popular revista Vanguard, no
Politikon da N.A.P.C.A., e no New Reformation (direcionado a estudantes
acadêmicos),3 do Center for Christian Studies, Santa Barbara, California.

Desde que o movimento está bem difundido, e cresce cada vez mais, ao
invés de diminuir em influência, uma advertência precisa ser feita: nem
todos os comentários feitos sobre o movimento nas próximas páginas será
aplicado a todos os seus aderentes. Apesar disso, tais aderentes alegam
pertencer a uma "escola", um grupo dedicado ao avanço de certos
princípios básicos e à aplicação desses princípios em todas as áreas da
3 N. T. expressão latina que significa "à primeira vista". Diz-se da primeira impressão que
temos de uma declaração ao ouvi-la pela primeira vez. Consultado em
<https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/prima-facie>. Visualizado em
09/10/2020.
6
vida. Tal alegação não é apenas legítima, mas necessita de uma avaliação
crítica, o qual é direcionado para os princípios e os objetivos afirmados no
movimento como um todo, e não apenas para pontos de vista individuais.

Um outro empecilho: será impossível neste livreto (report) ir mais do que


sumarizar os problemas basais desse movimento. A filosofia de Amsterdã,
conforme exposto por Dooyeweerd e especialmente por Vollenhoven, é
extremamente difícil mesmo para pessoas com treinamento filosófico. É
complicado, às vezes não é claro, carregado de uma terminologia técnica
instável (baffling). Ocasionalmente é dito que tomaria uma vida inteira de
estudo para realmente entender o que Dooyeweerd e Vollenhoven estão
dizendo. Logo tem sido fácil para alguns descartar as críticas a estes
filósofos, dizendo que as críticas não se encaixam no requisito de uma vida
inteira de estudo, e, portanto, não entendem o que realmente estão
criticando. Mas esse descarte é muito fácil [de ser contornado]: (1) Poucos
de nós têm uma vida inteira devotada a Dooyeweerd, e ainda pouquíssimos
desejariam devotar uma vida inteira a Dooyeweerd na ausência de alguns
argumentos prima facie4 persuasivos demonstrando o valor potencial de
tal devoção. Logo, antes mesmo de considerar tal compromisso de uma
vida inteira, é necessário desenvolver uma perspectiva crítica. Devemos
perguntar se ou não a filosofia de Amsterdã pode fazer por si mesma um
caso de prima facie, se exibe uma promessa suficiente tal que nos garanta
uma atenção mais profunda, seja como partidários, seja como críticos. Se
este livreto, portanto, leva seus argumentos até certo ponto a um nível de
prima facie, em si mesmo isto não pode invocar seu valor em questão.
Crítica prima facie, bem como uma análise profunda, é necessária nessa
situação. (2) Embora Dooyeweerd e Vollenhoven escrevam em um estilo
altamente técnico, muitos de seus discípulos têm desenvolvido uma
retórica que é vívida, com os pés no chão, e tem um tremendo apelo às
pessoas com pouco treino filosófico. Esses discípulos têm levantado muitas
questões na comunidade cristã acerca das quais todos os cristãos
concordam. Poderia uma escola cristã adotar uma confissão de fé como sua

4 Sobre essa distinção, compare com a distinção entre "lei" e "norma" em, ex.: J. M.
Spier, What is Calvinist Philpsophy? (Grand Rapids, Eerdmans, 1953), p. 32.
7
base? A Bíblia é confiável quando fala sobre assuntos científicos?
Evangelismo inclui a reestruturação das instituições sociais? Estas são
questões que todos os cristãos têm interesse, sobre os quais todos são
chamados a tomarem uma posição. Ainda aqueles que não têm as
ferramentas técnicas necessárias para entender Dooyeweerd devem de
alguma forma decidir que posição vão tomar. Sobre essas questões, é
legítimo e necessário, para criticar o movimento de Amsterdã, ser tão pé no
chão, quanto "popular", como são alguns de seus proponentes. (3) Um
movimento, assim como um homem, é conhecido pelos seus frutos.
Quando um movimento defende posições errôneas, posições que podem
ser expostas como estranhas às Santas Escrituras, devem, portanto, serem
levadas em consideração, mesmo por aqueles que sejam incapazes de
compreender as premissas filosóficas dos quais essas posições derivam.

Por causa destas três razões acima, é tão legítimo, quanto necessário, para
não-filósofos fazerem uma avaliação da filosofia de Amsterdã,
principalmente das suas implicações concretas para a doutrina e vida cristã.
Esse fato não implica que este livreto será completamente não-filosófico,
mas implica, no entanto, que os argumentos deste livreto não podem ser
evadidos pela observação de que estão às vezes em um nível "popular", ou
pela consideração de que tais argumentos nem sempre mostram o
entendimento técnico mais profundo das categorias dooyeweerdianas. E
isso ainda implicará no fato de que os não-filósofos na igreja poderiam
ignorar tais problemas dizendo "é muito complicado para mim". As
questões, antes de nós, são assuntos de vida ou morte para a igreja de Jesus
Cristo. Cada cristão, portanto, deve apaixonadamente se preocupar com
essas coisas.

2. O APELO DO MOVIMENTO

O que faz a filosofia de Amsterdã tão atraente aos cristãos reformados?


Um dos fatores é certamente a sua ênfase na soberania de Deus ―
soberania tanto no sentido de um decreto exaustivamente controlador sobre
8
todas as coisas, quanto no sentido de uma reivindicação completamente
abrangente.5 Deus é Senhor sobre tudo, e exige nossa fidelidade em todas
as áreas da vida. Não há um compartimento da nossa vida onde podemos
afirmar a nossa autonomia, onde podemos servir a nós mesmos. Nós
devemos fazer tudo para a glória de Deus. Logo, tudo na vida, não apenas a
adoração formal, é "religião" ― serviço a Deus. Em todas as nossas
decisões, decidimos entre estar a favor de Cristo ou contra Ele. Esses
princípios reafirmam a ênfase da Reforma de que cada ocupação legítima
pode e deve ser uma "vocação" ― um chamado de Deus. Todos os
trabalhos são trabalhos do Reino. Ninguém precisa se sentir fora do Reino
simplesmente por ter sido chamado a ser um fazendeiro, ao invés de ser um
pregador. Deus ainda se importa com o nosso dever de encher e dominar a
Terra (Gn 1.28; 9.1-7). E também Deus nos quer para fazermos os nossos
ofícios na agricultura, na carpintaria, nos trabalhos domésticos, na música,
na medicina, nas finanças ― todo nosso trabalho ― de forma que O
agrade. Deveria haver negócios cristãos, assim como deveria haver igrejas
cristãs. Deveria haver escolas cristãs, sindicatos cristãos, associações
políticas cristãs. Nem sequer as ciências escapam da reivindicação
compreensiva do nosso Deus. A ciência, também, não é neutra, é uma
atividade humana que é boa ou má, certa ou errada, a favor ou contra Deus.
Cientistas e filósofos incrédulos compreensivelmente se esforçam em vão
em entender o mundo de Deus. Eles devem falhar, pois não conhecendo o
verdadeiro Deus, e ainda exigindo um critério último de verdade, eles
inevitavelmente deificam, e, portanto, distorcem, alguns elementos do
mundo criado. Logo precisamos de filósofos e cientistas cristãos, se o
nosso entendimento do mundo de Deus é para ser verdadeiro no sentido
mais profundo.

Por outro lado, diz a filosofia de Amsterdã, devemos nos acautelar em


olhar essas disciplinas acadêmicas como o fim último da vida humana.
Nenhum acadêmico, muito menos um teólogo acadêmico, tem o direito de
estabelecer a si mesmo como mediador entre Deus e os homens. Nenhum
conhecimento acadêmico, muito menos teologia acadêmica, é necessário

5 Cf. Dooyeweerd, In the Twilight of Western Thought, p. 135.


9
para a salvação do homem.6 A filosofia de Dooyeweerd é apenas um
trabalho de um homem falho, o qual pode não estar em consonância com a
Palavra de Deus.7

Todos estes princípios são, em nossa visão, bíblicos, Reformacionais, e


dignos de nosso apoio. E pode também ser dito que os filósofos de
Amsterdã produzem esses pontos com tanta eloquência quanto qualquer
um nos círculos reformados ― se não mais. Se isso fosse tudo que
houvesse nessa filosofia, então todos nós deveríamos ser
"dooyeweerdianos"! De fato, todos nós somos dooyeweerdianos ― na
medida em que temos sido auxiliados e enriquecidos com essas ênfases no
movimento, particularmente no sentido em que temos sido inspirados pelas
formulações peculiarmente vívidas desses princípios na retórica do
movimento.

3. SUMÁRIO DA NOSSA CRÍTICA

O problema é, todavia, que esses princípios bíblicos, Reformacionais e


brilhantemente bem expressados não são tudo que existe na filosofia de
Amsterdã. Infelizmente essas ênfases são misturadas com outras, os quais
em nossa visão não são bíblicas, nem Reformacionais, e não são
claramente expressadas. Quero dizer: (1) Os escritos desse movimento são
cheios de afirmações que não são claras, argumentos inválidos, e, em geral,
intelectualidade de má qualidade. Esta crítica não é tão séria quanto a
próxima, mas é algo sério [de qualquer forma]. Tal falta de rigor em uma
filosofia cristã não é agradável a Deus. Isso não fará os cristãos apoiarem
um sistema filosófico de segunda categoria, apenas porque esse sistema
alega ser cristão, ou ainda, porque é cristão em alguns aspectos. E mais: (2)
Os escritos desse movimento contém uma quantidade substancial de

6 Ibid., p. 53ss.

7 Essas expressões devem ser tomadas de forma apositiva, [ou seja] como formas
diferentes de denotar a mesma distinção
10
ensinos que podem ser demonstrados como antibíblicos, e, portanto, falsos.
Essas duas críticas serão provadas adiante.

4. SENSO COMUM E CIÊNCIA

Esperamos que a discussão que se segue não seja muito técnica, de tal
forma que o leitor perca sua atenção neste tópico. Mas se for assim,
recomendo que o leitor pule desta parte para as últimas seções deste livreto
que são mais "práticas", em algum sentido, do que estas. Todavia esta é
importante. A distinção entre senso comum e ciência, entre "experiência
ingênua" e o "pensamento teórico", entre "pré-teórico" e "teórico"8 é
central para o esquema de Amsterdã. Essa distinção é a razão porque, na
visão de Amsterdã, não pode haver um conhecimento teórico de Deus ou
de si mesmo (self). Mostra a razão do porque não pode haver qualquer
estudo teórico do tema central bíblico da criação, queda e redenção. Nos
mostra o porquê desses temas centrais deverem ser acentuadamente
(sharply) distinguidos de todas as [outras] doutrinas teológicas. Nos mostra
o porquê da teologia estudar apenas o "resultado" de uma "abstração
teórica" e nunca a "realidade integral ou plena" de Deus.9 Por fim, essa
distinção nos mostrará o porquê das Escrituras não falarem diretamente ao
cientista sem a mediação da filosofia, e porque o filósofo tem o direito de
dizer ao teólogo o que as Escrituras podem e não podem dizer a ele.

Dooyeweerd e outros pensadores de Amsterdã claramente querem delinear


uma distinção acentuada (sharp) entre "pré-teórico" ou experiência
"ingênua", por um lado, e pensamento "teórico", por outro. Acentuado, isto
é, no sentido de que cada pensamento humano deve ser classificado, a
princípio, como ou "ingênuo" ou "teórico". Não há uma terceira categoria,
e nem alguma sobreposição.

8 Dooyeweerd, Twilight, p. 135.


9 Spier, J., An Introduction to Christian Philosophy (Phila., Presbyterian and Reformed,
1954), ênfases dele. “Científico” = “teórico.”
11
Agora o que, precisamente, está envolvido nessa distinção? As ilustrações
típicas são muito claras (straightforward). Uma criança caminha pelo
campo em um dia ensolarado, observando as margaridas. Um botânico
caminha pelo mesmo campo, colhe uma margarida, leva-o para casa para
uma experiência ligada a sua dissertação de doutorado. A criança
"observa", o botânico "experimenta". Certamente há uma diferença entre
essas duas pessoas em suas atitudes para com a margarida! Sem dúvida, há
uma diferença entre a vida comum, onde admiramos as margaridas
conforme caminhamos pelo campo, e o pensamento teórico, onde
estudamos essas margaridas.

Bem, parece haver uma diferença! Mas o assunto se torna um pouco mais
complicado quando consideramos outros casos. Concordemos que a
criança observando as margaridas é algo "ingênuo" ou "pré-teórico", em
algum sentido óbvio. Mas e quanto à criança cuja professora pediu para
procurar várias flores de cores diferentes o quanto ela puder? Ela caminha
pelo campo, olha para uma margarida, e anota "amarelo e branco"; olha
para um dente-de-leão, e escreve "amarelo"; olha para uma rosa, e escreve
"vermelho". Isso é teórico ou ingênuo? Bem, isso certamente não é o início
de uma dissertação de doutorado! Podemos dizer que é uma matéria de
simples observação. Isso ainda pressupõe um certo conhecimento sobre
cores ― palavras, habilidade de escrever. De fato, esse conhecimento é o
começo do que podemos chamar de "equipamento teórico". Que criança da
nona série escreve um ensaio sobre sua filosofia política? O ensaio poderia
consistir em sua maior parte de observações "ingênuas" ― ainda que
estejam em um nível mais sofisticado do que esperaríamos de uma criança
da sexta série! Dessas ilustrações, portanto, parece que "ingênuo" e
"teórico" não são compartimentos hermeticamente fechados como a
filosofia de Amsterdã sugere, mas são dois extremos de um contínuo. Todo
pensamento é relativamente teórico (em que todo pensamento pressupõe
algum aprendizado, algum equipamento teórico), e todo pensamento é
relativamente ingênuo (nosso aprendizado nunca chega a ser tão perfeito,
ao ponto de podermos dispensar totalmente a nossa necessidade de simples
12
percepção). As ilustrações, portanto, parecem apontar para uma direção
diferente daquela que a filosofia de Amsterdã sugere.

Mas devemos ir além das ilustrações e perguntar como os filósofos de


Amsterdã definem tal distinção. Aqui está a dificuldade de obter alguma
clareza. Evidentemente o pensamento teórico é percebido como sendo em
algum sentido mais "abstrato" do que a experiência ingênua; o pensamento
teórico faz certas "distinções" que a experiência ingênua não faz:

Pensamento científico é discriminativo, analítico e antitético. Em


nossa experiência ingênua estamos mais próximos da vida-em-sua-
totalidade ou plenitude.10

Isso não quer dizer, todavia, que a experiência ingênua não faz análises,
nenhuma distinção de qualquer tipo:

Na nossa experiência ingênua temos uma visão ingênua da


realidade concreta. Sabemos como distinguir um homem de um
animal e de uma planta. Estamos conscientes de que a vida familiar
é diferente da vida eclesiástica. Sabemos que o estado possui outras
capacidades que a igreja não possui.11

Mais significativamente, a experiência ingênua faz distinções entre os


vários aspectos da experiência humana os quais Dooyeweerd chama de
"aspectos modais" (sobre esse conceito, veja a discussão mais a frente):

Na experiência ingênua percebemos [um ninho de pássaro] como


um todo individual, qualificado pela sua relação sujeito-objeto com
a vida do pássaro; e isso encontra expressão no nome pelo qual a
coisa é simbolicamente significada [...] Uma boa obra de arte
plástica é experimentada como um todo individual, funcionando em

10 Ibid., p. 11
11 Dooyeweerd, Twilight, p. 15. Cf. Spier, Introduction, p. 39.
13
todos os aspectos modais de nosso horizonte temporal, mas
tipicamente qualificado pela sua relação sujeito-objeto estética.12

Note aqui que é na experiência ingênua que determinamos que aspecto


modal "qualifica" um objeto particular. À primeira vista, pelo menos, esse
tipo de ideia faz a experiência ingênua soar um tanto teórica!

Então qual a diferença entre a experiência ingênua e o pensamento teórico?


Dooyeweerd e outros descrevem essa diferença de várias formas. A
formulação mais comum e mais promissora geralmente se parece com a
seguinte:

[Na experiência ingênua] nós [...] experimentamos os eventos e as


coisas concretas nas estruturas típicas, das totalidades individuais
que a princípio funcionam em todos os aspectos modais do nosso
horizonte temporal em sua coerência mútua contínua. Nosso modo
lógico de distinção está totalmente incrustado nessa experiência
integral. Nossos conceitos lógicos pré-teóricos estão apenas
relacionados às coisas e eventos como um todo individual, e não
como aspectos modais abstratos de sua realidade empírica.13

A ideia aqui parece ser que a experiência ingênua foca em coisas (mesas,
cadeiras, árvores, pedras, pessoas) e eventos (Batalha de Waterloo, a
invenção da imprensa, a ida de Mary Jane à mercearia), enquanto que o
pensamento teórico foca nos aspectos das coisas (número, espaço,
movimento, valor econômico, beleza estética, etc.). Dizemos que foca, pois
Dooyeweerd disse que a experiência ingênua faz certas distinções entre
esses aspectos, e tem interesse neles (próximo à última citação). O

12 N. T. O termo "pístico" é a tradução do inglês "pistic" que vem do grego "pistis" (fé),
é um termo utilizado para denotar tudo aquilo que pertence à esfera da fé humana. Em
outros escritos da Filosofia Reformacional podemos encontrar este termo traduzido como
"credal" ou "confessional".
13 Spier, Introduction, p. 132. Note aqui, incidentalmente, o grau em que o
"conhecimento ingênuo" de Spier está preocupado com distinções modais! Cf. em sua
conexão com p. 39.
14
problema aqui, contudo, é que "focar" é um conceito relativo. Alguém
pode ser mais ou menos "focado" em algo. Temos dito até agora que a
experiência ingênua é relativamente mais interessada em coisas e eventos,
enquanto que o pensamento teórico é relativamente mais focado nos
aspectos (aspectos das coisas). E esse tipo de ideia não nos dá uma
distinção acentuada que Dooyeweerd pretende.

Um outro tipo de distinção relacionado é encontrado na afirmação de que


na experiência ingênua, em distinção ao pensamento teórico,

Esses aspectos são apenas experimentados implicitamente nas


coisas e eventos em si mesmos, e não explicitamente em sua
dissociação analítica e oposição à função lógica do pensamento.14

Agora deixe-nos considerar a distinção entre "implícito" e "explícito"


(deixando outros aspectos dessa afirmação de lado por enquanto). O
problema é que novamente essa distinção não é acentuada o suficiente.
Implicitude, enquanto oposto de explicitude, é algo de teor relativo,
passível de gradação (characterizable by “more” and “less”). Dizemos,
por exemplo, que a doutrina da justificação pela fé é "mais explícita" no
Novo Testamento do que no Velho. Dentro do Novo Testamento, podemos
ver que é mais explícito em Lucas 18 do que em Tiago 2. Há um sentido,
para ser mais exato, no qual dizemos que é "perfeitamente explícito" na
passagem de Romanos 3.28 que é o extremo mais extremo desse contínuo.
Nesses poucos [exemplos que vimos] há muitos graus de explicitude.
Portanto parece que se a distinção implícito/explícito deve ser o nosso
critério para a distinção ingênuo/teórico, novamente teremos apenas uma
distinção relativa, uma diferença em grau ao invés de tipos, um contínuo
ao invés de uma disjunção acentuada. O próprio Dooyeweerd novamente
sugere isso, quando ele diz que a experiência ingênua está interessada nos
aspectos modais das coisas que percebe. (Veja discussão abaixo) Se a
experiência ingênua percebe essas distinções modais, então certamente tais

14 Spier diz isso em: What Is Calvinistic Philosophy?, p. 80.


15
distinções são apenas relativamente "implícitas" na experiência ingênua, e
também estão em algum grau explícitas.

Spier sugere que as duas formas de conhecimento têm diferentes


propósitos ou objetivos:

O processo de conhecimento ingênuo [...] pode ter múltiplos


objetivos. Pode procurar alcançar um fim econômico, como no caso
do conhecimento industrial, ou pode ter um fim pístico, como no
caso do conhecimento pístico.15 Conhecimento científico, em
contraste, sempre tem um fim analítico; está preocupado com o
entendimento científico da realidade.16

Conforme ficará estabelecido, esta citação não servirá (won't do for) como
definição, desde que na descrição de "conhecimento científico" o termo
"científico" é usado, a definição torna-se circular. Mas deixando isso de
lado, é verdade que o conhecimento científico tem apenas um único
propósito? É verdade que o conhecimento científico é apenas para buscar
conhecimento e nunca para buscar ter mais saúde ou aprofundar a fé?
Cremos que não, a menos que Spier esteja empregando algum tipo de
conceito bastante incomum de "ciência" aqui. E não seria o caso de que o
conhecimento ingênuo está preocupado com um entendimento da
realidade?17 Se o conhecimento científico está enraizado no conhecimento
ingênuo, conforme Dooyeweerd diz, então ficará evidente que algum
conhecimento ingênuo, pelo menos, é necessário para (e, portanto, é um
instrumento para) um conhecimento científico da realidade. Essa sugestão

15 Spier, Introduction, p. 135. Cf. What Is Calvinistic Philosophy?, p. 39. "Em um


pensamento científico rigoroso [as esferas de lei] estão claramente mais diferenciadas"
16 Spier, What Is Calvinistic Philosophy?, p. 81. Alguém se admira de como o
comentário sobre o conhecimento "aprofundado" é consistente com seu argumento na p.
80: "Conhecimento ingênuo é indescritivelmente mais rico do que o conhecimento
teórico."
17 Spier, "Em nossa experiência ingênua cotidiana, se observarmos uma bela mesa, por
exemplo, examinamos-a precisamente..."
16
de Spier, então, não é mais útil do que outras que temos considerado na
questão de definir claramente a distinção entre o teórico e o ingênuo.

Algumas caracterizações dessa distinção na literatura de Amsterdã


sugerem um contínuo muito "explícito", note:

Há conceitos não-científicos e científicos. O primeiro, o conceito


ingênuo, está fortemente amarrado ao substrato Psíquico das
representações sensoriais. O último se liberta do substrato psíquico,
e sob a liderança da norma dos símbolos cognitivos, ergue-se ao
nível da abstração alcançada pelo conceito ingênuo. Por causa
desse alto grau de abstração, um conceito científico ganha em
clareza, mas perde seu contato direto com a vida.18

Aqui as expressões "fortemente amarrado" e "alto grau" sugerem o tipo de


contínuo que temos argumentado. De fato, se Spier tivesse especificado o
grau preciso de abstração que os conceitos científicos obtém, então a
distinção poderia ter sido tão acentuada quanto ele deseja; mas, de fato, ele
não fez. Note também a citação a seguir:

[...] conhecimento teórico é um conhecimento aprofundado.


Finalmente, conhecimento ingênuo não é sistemático, ao passo que
a ciência continuamente busca sistematizar e completar seu
conhecimento.19

Aprofundar é algo que pode ser feito gradativamente, e geralmente


assumimos que é, a menos que o nível preciso de aprofundamento seja
esclarecido. Quanto ao ser "sistemático", isso também é questão de
gradação. O próprio Spier fala de experiência ingênua como tentando
alcançar "precisão".20 Certamente o conhecimento que obtemos na vida
cotidiana não é caótico, totalmente desorganizado. Por outro lado, o

18 Dooyeweerd, Twilight, p. 11, 15ss., 126, etc.


19 Ibid., p. 6; cf. p. 8, 11, 13, etc. "Oposição" é em qualquer caso uma metáfora. Cf.
abaixo.
20 Ibid., p. 11, 13, etc.
17
conhecimento científico nunca é tão perfeitamente sistematizado que não
precise de reconstrução. A experiência ingênua aparenta ser relativamente
não-sistemático, enquanto que o conhecimento científico é relativamente
sistemático.

Temos propositalmente evitado discutir as formulações mais técnicas dessa


distinção, simplesmente porque essas formulações técnicas pressupõem
outras partes da filosofia de Amsterdã, partes que não queremos endossar.
Exemplos disso são os conceitos de "dissociação analítica" 21 e "substrato
físico" encontrados em algumas das citações acima. Mais um:

[Pensamento teórico] exibe uma estrutura antitética em que o


aspecto lógico do nosso pensamento fica em oposição aos aspectos
não-lógicos da experiência temporal.22

Esta formulação certamente pressupõe que alguém pode distinguir


claramente entre os "aspectos" "lógico" e "não lógico", algo que não
cremos que Dooyeweerd tenha feito. Uma outra formulação típica, a ideia
de que o pensamento científico é caracterizado por uma "abstração
teórica"23 (como oposto, presumivelmente, a algum outro tipo de abstração)
é de nenhuma ajuda, a menos que tenhamos uma definição de "teórico";
mas isso é precisamente o que temos buscado em vão.

O verdadeiro poder da distinção ingênua/teórica, todavia, parece repousar


sobre conotações de certas imagens e metáforas constantemente
empregadas na literatura. A experiência ingênua está próxima de seus
objetos, ao passo que "na ciência mantemos uma certa distância entre nós
mesmos e o objeto de nossa investigação."24 A ciência tenta "entender"
seus objetos, os quais, por sua vez, "oferecem resistência" a isso. 25 O

21 Spier, Introduction, p. 2.
22 Dooyeweerd, Twilight, p. 8, 126.
23 Ibid., p. 11.
24 Ibid., p. 12, cf. p. 16.
25 Ibid., p. 13.
18
pensamento teórico "separa as coisas [da realidade concreta]", 26 enquanto
que a experiência ingênua os vê na "conexão contínua de sua coerência." 27
Na experiência ingênua, "nossa função lógica permanece completamente
imersa na continuidade da coerência temporal entre os diferentes
aspectos."28 Não apenas "imerso", mas ainda "amarrado"!29 A experiência
ingênua tem um caráter "integral"30, distingue o sujeito do objeto, mas o
pensamento teórico os opõe, quebrando em pedaços essa experiência o
qual a mente ingênua preserva em uma "coerência inquebrável". 31 A força
dessas metáforas é inegável. Todos nós temos tido a sensação, como se
estivéssemos a nos sentar para escrever um artigo acadêmico, de que
estamos em algum sentido "recuando" da realidade . É como se
estivéssemos separando as coisas que a vida ordinária mantém juntas.
Sentimos que estamos, por assim dizer, cavando o universo com nossos
dedos, e desmontando-o para ver como funciona. Ocasionalmente, como
lhe é típico, um pensador orientado pela filosofia de Amsterdã explicará a
distinção ingênuo/teórico fechando os olhos, ficando bastante irritado (very
intense), pronunciando suas palavras lentamente, dizendo "Experiência
ingênua não faz distinções te-ó-ri-cas" ou algo do tipo. Seu
comportamento imita o sentimento que nós todos temos tido, de que o
trabalho teórico é algo muito difícil, abstrato, preciso, removido da vida
ordinária, etc. A dificuldade, todavia, é que ― paradoxalmente! ― essas
metáforas não têm precisão suficiente para distinguir "teoricamente" entre
uma coisa chamada experiência ingênua e outra muito diferente chamada
pensamento teórico. O conceito de "distância", quando aplicado à relação
do conhecedor com a coisa conhecida, é uma metáfora, e uma metáfora o
qual pode ser tomada de várias formas. Certamente há sentidos nos quais,
ainda na vida ordinária, nos sentimos "distantes" das coisas que
percebemos. Logo, se não houver explicações mais profundas, a metáfora

26 Ibid., p. 14.
27 Ibid., p. 16.
28 Ibid., p. 17.
29 Spier, Introduction, p. 12.
30 Ibid., p. 13ss.
31 Dooyeweerd, Twilight, p. 11.
19
da "distância" não distingue claramente a experiência teórica da ingênua. O
mesmo para "entendimento", "separar", "imerso", "integral", etc. Também
o conceito de "coerência" não é claro aqui, pois, obviamente, não é uma
"coerência" literal como, por exemplo, entre as partes de uma escrivaninha.
Há tipos de "coerência" figurada tanto no pensamento ingênuo, quanto no
teórico, e se alguém não especifica o tipo de coerência em vista, então o
conceito não pode nos ajudar com a distinção em questão. Essas
observações, de fato, não negam a força da sensação gerada por essas
figuras. Cremos que teorizar é mais "distante" do mundo do que a
experiência ordinária ― em vários sentidos de "distante". Mas esse
sentimento é perfeitamente consistente com a visão de que a experiência
ingênua e o pensamento teórico são extremos opostos de um contínuo, que
há graus de "distância" (e, por isso, de teoricidade), e, portanto, a filosofia
de Amsterdã está errada nesse ponto crucial.

Se nós estamos certos, e nenhuma distinção acentuada pode ser traçada


nesse ponto, isso implica que "as pessoas que vivem pela experiência
ingênua vivem em um mundo de ilusão..."?32 Não. Não há razão para
assumir que o lado teórico do nosso contínuo é algo mais "verdadeiro" do
que o lado ingênuo. Cientistas fazem e devem continuamente fazer
descrições baseadas nas observações do "senso comum". Mas o senso
comum também precisa de um refinamento técnico, se é para ser adequado
a certos propósitos. Diferentes propósitos requerem diferentes graus (e
tipos) de refinamento técnico.

Concluímos esta seção com algumas observações sobre a visão de


Amsterdã das relações entre a experiência ingênua e o pensamento teórico.
Spier nos fala que a filosofia, um tipo de pensamento teórico,

…ganha forças com a experiência ingênua, e foca sua atenção sobre


a realidade concreta que experimentamos na nossa vida cotidiana.
Os diversos aspectos e coerências diretamente observados na

32 Ibid., p. 120. ― e talvez para além [dos limites] da "experiência ingênua" também. Cf.
abaixo.
20
experiência ingênua são submetidos à análise científica na filosofia
[...]

A visão científica do cosmo criado não é superior à visão ingênua


da experiência cotidiana. De fato, a filosofia não pode fazer algo
sem a experiência ingênua, sobre o qual está baseado.33

Filosofia, e, por implicação, todo o pensamento teórico, pressupõe as


informações da experiência ingênua; essas informações são precisamente o
que o teórico estuda. E o teórico deve assumir, sob a visão de Amsterdã,
que as informações com as quais ele lida são unidas na "integração
contínua" da experiência ingênua. A "oposição" entre os aspectos, que é
característico do pensamento teórico, não corresponde à realidade. Ao
invés disso, o mundo real é aquele da experiência ingênua onde essa
oposição não existe.34 Até aqui já expressamos alguns desnorteamentos a
respeito do significado de "oposição" nesse contexto. Além disso,
desejamos assinalar que nesse esquema o pensamento teórico requer o uso
de premissas derivadas da experiência ingênua. Os escritos de
Dooyeweerd, incluem muitas referências a Deus e ao ego humano (self),
por exemplo, ambos dos quais são ditos estarem além [dos limites] do
pensamento teórico.35 Mas esse fato não tende a borrar ainda mais a
distinção entre a experiência ingênua e o pensamento teórico? Se uma
teoria pressupõe proposições do tipo "não-teórico", discutir essas
proposições os incluem na sua estrutura teórica, então o que na verdade nos
impede de chamar essas proposições de "teóricas"? O fato de que uma
teoria não pode funcionar sem uma referência a essas proposições "não-
teóricas" nos faz perguntar se o rótulo de "não-teórico" é qualquer coisa

33 Ibid., p. 6, cf. p. 125ss.


34 Dooyeweerd, “Cornelius Van Til and the Transcendental Critique of Theoretical
Thought” in Geehan, E. R., ed., Jerusalem and Athens (Presbyterian and Reformed, 1971,
local de publicação não especificado), p. 85, ênfase dele. Pressumivelmente quando ele,
em outros lugares, fala da experiência "se referindo a" algo supra temporal (ex.: Twilight,
p. 7), ele quer dizer "pressupondo".
35 Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought (Phila., Presbyterian and
Reformed, 1953), I, p. 8.
21
senão uma convenção linguística. Proposições necessárias a uma teoria
certamente são "teóricas" no sentido mais importante do termo.
22

5. CIÊNCIA E O TEMPO

Dooyeweerd coloca uma limitação definida sobre a capacidade do


pensamento teórico ou científico: "pensamento teórico está amarrado ao
horizonte temporal da experiência humana e se move dentro desse
horizonte."36 À primeira vista, essa alegação parece implicar que o
pensamento teórico não poderia falar sobre as coisas eternas ou supra-
temporais. Logo, não poderia falar sobre Deus, ou ainda sobre o ego
humano (desde que Dooyeweerd, embora não outros no movimento,
considera o ego humano, o coração do homem, ser supratemporal).
Todavia Dooyeweerd tem muito a dizer sobre Deus e o ego em seus
escritos filosóficos (e, portanto, teóricos). Logo, muito deve ser dito. Como
pode um teórico falar sobre Deus enquanto seu pensamento está "amarrado
ao horizonte temporal da experiência humana"? Alguém poderia observar
que "amarrado" é mais uma das metáforas de Dooyeweerd que nunca é
literalmente explicado. Dizer dessa maneira que o pensamento teórico está
"amarrado", certamente não é dizer que não tem relações com realidades
supra-temporais. De fato, Dooyeweerd claramente ensina o oposto. Mas,
então, o que isso significa?

Talvez seria melhor começar do outro lado da "fronteira". Isto é, ao invés


de perguntar sobre a natureza da "integração" entre o pensamento teórico e
o horizonte temporal, devemos perguntar como as realidades supra-
temporais, tais como Deus e o ego, podem funcionar no contexto do
pensamento teórico. Agora, talvez, podemos chegar a algum lugar; pois
Dooyeweerd aqui faz alguns apontamentos que podem ser discutidos.
Essencialmente ele sustenta que, enquanto Deus e o ego podem ser falados
em um contexto teórico, eles têm um status especial nesse contexto, [de
forma] que não é muito apropriado chamá-los de elementos da teoria. Esse
status especial é o da pressuposição.

36 Veja as referências abaixo.


23
[...] todo o conhecimento conceitual em seu caráter analítico e
sintético inter-modal pressupõe o ego humano como seu ponto de
referência central, o qual consequentemente deve ser de natureza
supra-modal e não é suscetível à análise lógica.37

Deus e o ego, Dooyeweerd diz, são pressupostos de qualquer teoria


verdadeira, e, portanto, não são parte da teoria em si. Certamente, em uma
discussão teórica, é perfeitamente apropriado discutir os pressupostos da
teoria em questão. Mas na visão de Dooyeweerd, a teoria como tal não
inclui suas proposições.

Encontramos aqui mais um princípio bastante arbitrário. Por que é que as


pressuposições de uma teoria não podem ser consideradas como parte da
teoria? Não há razão óbvia do porquê deveria ser assim. Tradicionalmente
historiadores, físicos, filósofos e teólogos têm frequentemente discutido as
pressuposições de suas teorias, e Dooyeweerd oferece nenhum argumento
óbvio, conforme podemos observar até aqui, ou mostrar que essa prática é
errada, ou então mostrar que isso não pode ser estendido ao pensamento
teórico em geral.

A resposta de Dooyeweerd, sem dúvidas, seria de que "pressupostos supra-


temporais não são como outros pressupostos". Pressuposições supra-
temporais são transcendentais, mostrando as condições necessárias para a
verdadeira possibilidade do conhecimento. Eles têm o caráter de "ponto de
referência central" (última citação), "ponto arquimediano",38 etc. De

37 Dooyeweerd, “Cornelius Van Til”, p. 85ss.


38 Esse uso não é o único seguido na filosofia de Amsterdã. Como temos visto, Spier fala
de "conceitos não-científicos" (Introduction, p. 135), os conceitos da "experiência
ingênua". Dooyeweerd daria por certo que há "conceitos ingênuos" de Deus e do ego?
Essa possibilidade, bastante relevante, não parece passar pela sua mente nesses contextos.
A relação entre a experiência ingênua, por um lado, e o conhecimento de Deus e do ego,
por outro, não é claro em Dooyeweerd. Ambos são contrastados com o pensamento
teórico, mas o conhecimento de Deus e do ego não aparentam ser uma forma de
experiência ingênua. Mais provavelmente (conforme ficará explícito mais a frente) o
conhecimento de Deus e do ego transcendem ainda o que Spier chamaria de "conceitos
ingênuos", de modo que esse conhecimento de Deus e do ego é ainda menos conceptual
24
alguma forma, portanto, essas realidades pressupostas devem estar "além"
do pensamento os quais tornam este possível. Ah, mas esse "além" nos traz
de volta às metáforas espaciais novamente! E, de novo nesse ponto, a força
da concepção de Dooyeweerd repousa sobre conotações emotivas de certas
figuras:

No processo de direcionar meu pensamento filosófico em direção à


totalidade de significado, devo ser capaz de ascender a um mirante
de uma torre [que está] sobre todas as especialidades modais de
significado que funcionam dentro da coerência dos aspectos
modais.39

A pressuposição é uma espécie de um mirante de uma torre ― e o mirante


não pode estar no chão, se não, não seria um mirante de uma torre! Então o
"ponto de referência central" não pode ser parte de uma teoria, ou não seria
o ponto de referência central para o qual uma teoria se refere! Sim, esta
figura é persuasiva. Todavia teorias não são paisagens, e dessa forma a
questão se levanta a respeito de como a analogia de Dooyeweerd (não
apenas a analogia "explícita" da ilustração supracitada, mas também o que
está "implícito" nas definições metafóricas) deve ser aplicada. Depois de
tudo, nem todas as relações pressuposicionais se encaixam na imagem do
mirante com a mesma facilidade. O livro sobre a minha mesa não existiria
se o papel estivesse ausente: o livro pressupõe o papel. Mas eu não diria
sob esta alegação que o papel não é parte do livro! Nem eu diria que o
papel deve estar "acima" do livro ou "além" do livro, assim como um
mirante deve estar "acima" de sua paisagem. Um dicionário é um tipo de
"ponto de referência central" para a pronúncia adequada das palavras, mas
esse fato não implica que o dicionário deve estar "sobre" ou "além" do
reino das palavras, o dicionário contém palavras ― palavras que são
pronunciadas de acordo com seus próprios princípios. O dicionário legisla
completamente sobre o uso da sua língua, incluindo a sua própria.

do que é a experiência ingênua.


39 Dooyeweerd, “Cornelius Van Til”, p. 87. Ênfases do autor
25
Ou talvez alguém poderia dizer: na verdade o dicionário está sim "acima"
do reino das palavras, mas não em um sentido que proíbe-o de ser
considerado como um grupo de palavras entre vários, não em um sentido
que proíbe-o de ser discutido como uma peça da linguagem. Então: por que
não poderia as pressuposições de uma teoria serem consideradas elas
mesmas parte da teoria? Dooyeweerd não responde a essa questão com
clareza. Por que alguém não poderia formar uma teoria baseada em
[outras] teorias? Por que a filosofia de Dooyeweerd não deveria ser
considerada como uma meta-teoria? Tal teoria refletiria sobre sua própria
base, bem como sobre a base de outras teorias. Mas o que há de errado com
isso?

O leitor pode estar ficando impaciente no que agora parece ser mais uma
discussão acadêmica árida. Qual a importância de tudo isso? Como matéria
de fato, esse ensino levanta muitas questões importantes. Muitas filosofias
não-cristãs, seculares, principalmente o de Immanuel Kant, têm sustentado
que o pensamento teórico está em algum sentido "amarrado ao horizonte
temporal da experiência humana". Nesses sistemas não-cristãos, essa
limitação efetivamente deixa Deus trancado do lado de fora de todas as
teorias, eliminando de tais teorias toda possibilidade de uma referência a
Deus. Alguém pensaria que Dooyeweerd, como um filósofo cristão,
desejaria nitidamente desafiar esse tipo de abordagem, insistir que Deus é
relevante para o trabalho teórico, que teorias não têm o direito de trancar
Deus do lado de fora. Todavia a formulação de Dooyeweerd é ambígua.
Ele deseja falar de Deus, mostrar a necessidade de Deus para todo
pensamento teórico; mas ao mesmo tempo ele quer fazer um uso de uma
formulação quase Kantiana que invoca o papel de Deus na questão.

Essa ambiguidade fica explícita especialmente na declaração de


Dooyeweerd de que não pode haver um "conhecimento conceptual" de
Deus e do ego.40 Isso é uma afirmação peculiar, pois certamente aparece
40 O debate de Dooyeweerd com Van Til no artigo que citamos é bastante confuso de
várias formas, não menos na questão do "conhecimento conceptual" de Deus. Van Til
afirma tal conhecimento, mas claramente ele não está usando "conceptual" no sentido
estrito de Dooyeweerd o qual restringe ao que ele chama de "pensamento teórico". Por
26
em muitos dos escritos de Dooyeweerd de que alguém pode ter tal
"conhecimento conceptual", pois Dooyeweerd frequentemente fala de
Deus e do ego de forma altamente "conceptual". O fato é, certamente, de
que Dooyeweerd está usando "conceptual" aqui em um sentido bastante
técnico, um sentido no qual apenas o pensamento teórico é "conceptual". 41
Dooyeweerd mais adiante diz que quando um pensador teórico usa a ideia
de Deus ou do ego,

...os conteúdos conceptuais genuínos dessas ideias transcendentais


limitantes não transcendem a dimensão modal do nosso horizonte
temporal da experiência. O mesmo se aplica aos conceitos
teológicos limitantes relacionados aos então chamados atributos de
Deus.42

Mas então o que acontece com a visão de Dooyeweerd de que o


pensamento teórico deve reconhecer algum ponto de referência
supratemporal? Se uma teoria não pode incluir qualquer linguagem que se
refere às realidades supra-temporais; se uma teoria [que] parece estar
fazendo tais referências, na verdade está fazendo uma referência teórica,
conceptual, apenas à experiência temporal; então a relação de uma teoria
com as suas "pressuposições supra-temporais" é na verdade misterioso. É
uma relação o qual não pode ser dita teoricamente; é uma relação que,
quando é dita, aparenta se referir apenas ao mundo finito, de modo que
"Deus", "ego", "maternidade", "onisciência", etc. (usados como conceitos
teóricos), referem-se apenas à coisas temporais! Qual, então, é o status da
afirmação de Dooyeweerd de que pensamento teórico pressupõe Deus e o

que, então, Dooyeweerd está tão aborrecido? Parece que no pensamento de Dooyeweerd
há uma aversão a qualquer alegação de um "conhecimento conceptual" de Deus. Não
apenas "conhecimento conceptual" no sentido estrito de Dooyeweerd, mas em qualquer
sentido. Esse fato faz nossa comparação entre Dooyeweerd e Kant algo bastante sério.
Mas essa aversão aos "conceitos de Deus" não é claramente ou consistentemente
articulado em Dooyeweerd; logo preferimos crer na melhor alternativa sobre ele ― que
ele simplesmente não entendeu o problema.
41 Dooyeweerd, Twilight, p. 7.
42 Spier, What Is Calvinistic Philosophy? p. 37.
27
ego supratemporal? Essa afirmação não pode ser teórica; uma análise
teórica disso deve interpretar como não se referindo absolutamente a Deus
e ao ego! É uma afirmação da experiência ingênua? Dooyeweerd também
não nos responde, e isso parece bastante improvável (veja acima a nota de
rodapé sobre essa questão). Há algum outro tipo de afirmação? Se há,
como pode ser relevante a uma teoria que pela sua natureza não pode
afirmar a verdade e a validade conceptual de tal afirmação? Ou
Dooyeweerd quer ir de todas as formas com Kant (e com alguns "cristãos
modernos" ateístas), e afirmar que o termo "Deus" nunca se refere a algo
senão a realidade temporal criada?! Essa visão tornaria Dooyeweerd um
completo (sheer) idólatra (alguém que louva uma coisa criada como se
fosse Deus), e faria sua filosofia explícita e flagrantemente não-cristã.
Essencialmente, todavia, pensamos que Dooyeweerd está confuso e
confundido. Ele se apresenta a nós com uma base não esclarecida sobre o
qual ataca a concepção kantiana ou ainda distingue sua própria posição da
dele. Ele deixa o status de linguagem de Deus completamente incerto, ao
mesmo tempo em que essa linguagem está sob intenso escrutínio (e ataque)
por todas as comunidades filosóficas e teológicas. Um filósofo cristão,
cremos, deveria honestamente repudiar a visão kantiana e dizer clara e
energicamente que o teórico não apenas pode, mas deve falar de Deus em
seu trabalho teórico. É isso que pensamos que Dooyeweerd realmente quer
fazer em seus melhores momentos ― quando ele está desafiando cientistas
a reconhecerem a necessidade de pressupor Deus.43

43 Algumas questões que podem ser levantadas: (i) São as esferas de lei elementos do
mundo real, ou elas são meramente formas nos quais os seres humanos percebem o
mundo? As formulações de Dooyeweerd não são completamente claras nesse ponto. (ii)
Como alguém pode distinguir uma esfera de lei da outra, quando na visão de Dooyeweerd
o "momento nuclear" de cada esfera, o qual distingue [uma esfera] de todos os outros, é
indefinível? (iii) Por que o universo deve ser arranjado em esferas de lei do tipo que
Dooyeweerd descreve? Dooyeweerd nunca oferece qualquer argumento ao porquê do
universo ser arranjado dessa forma (Nem ainda ele argumenta a competência da mente
humana em discernir essa estrutura!). Pelo contrário, Dooyeweerd assume que há tais
esferas e então prossegue em questionar que esferas são. Talvez ele ache que essa ordem é
imediatamente percebida, mas certamente muitos outros filósofos discordariam de
Dooyeweerd sobre como suas visões se conectam a essa visão (on precisely what their
perceptions are in this connection). Mais provável é que Dooyeweerd crê que pode
28
6. A ESTRUTURA BÁSICA

a. As Esferas Modais (Esferas de Lei ou Aspectos Modais)

Como dissemos anteriormente, Dooyeweerd diz que tanto o pensamento


teórico, quanto o ingênuo, percebem certas distinções básicas no universo:

Nosso horizonte temporal empírico tem um aspecto numérico, um


aspecto espacial, um aspecto de movimento extensivo, um aspecto
de energia no qual experimentamos as relações físico-químicas da

oferecer um argumento negativo ― a saber, que qualquer filósofo ou cientista que nega a
estrutura o qual Dooyeweerd descreve cairá em contradições e outras dificuldades
insuperáveis. Mas os exemplos de Dooyeweerd sobre tais dificuldades não são sempre
claras ou persuasivas. (iv) Dado por certo que há tais esferas, por que eles devem ser
arranjados na ordem precisa que Dooyeweerd sugere? Muitos dos argumentos para essa
ordem precisa são altamente duvidosos. Spier, por exemplo, diz que a esfera linguística
deve preceder a esfera social, pois símbolos são necessários para intercursos sociais
(Introduction, p. 43). Realmente é verdade; mas não é também verdade que poderia haver
nenhum simbolismo convencional a menos que tivesse havido algum tipo de intercurso
social? Não é evidente que ambas as esferas "pressupõem" umas às outras, ao invés de
uma ser a "base" inequívoca da outra? Os filósofos de Amsterdã raramente consideram
essas relações mútuas, relações reflexivas entre suas alegadas esferas. Também cf. o
argumento de Spier a respeito da economia e estética (mesma página da última referência.
N. T. nota de rodapé 45). Alguém realmente acha esse tipo de coisa persuasivo? (v) E
quanto aos conceitos que aparentam sobrepor várias esferas? Os filósofos de Amsterdã
chamam-nos de conceitos "analógicos" ― conceitos como "economia de pensamento" ou
"movimento vital", ou ainda "sensação espacial". Spier argumenta que embora uma esfera
seja relatada em muitas outras, cada uma "pertence a" uma e apenas uma (Introduction, p.
60ss.). Aqui seus argumentos são de alguma forma mais persuasivos do que outros, mas é
em parte devido ao fato de que ele tinha escolhido cuidadosamente seus exemplos. Se ele
escolheu discutir, digamos, "linguagem ética", ou "história estética", ou "psicofísica",
"análise estética", "julgamento econômico", e muitos outros, ele teria sido duramente
pressionado a mostrar a qual esfera cada uma "pertence". "História estética", por exemplo,
é de interesse tanto dos artistas, quanto dos historiadores, e é realmente difícil ver qual
interessaria mais. Em outras palavras, pensamos que a realidade é muito mais complicada
do que o que o esquema da filosofia de Amsterdã faz parecer. E consideramos, ao menos
possível, que embora Deus tenha revelado a nós seu poder e glória no mundo criado, ele
não tem necessariamente revelado a nós a estrutura geral do mundo criado.
29
realidade empírica, um aspecto biótico ou da vida orgânica, um
aspecto de sentimento ou sensação, um aspecto lógico, i.e., a
maneira analítica de distinção na nossa experiência temporal o qual
é a fundação de todos os nossos conceitos e julgamentos lógicos .
Então há um aspecto histórico no qual experimentamos a maneira
cultural do desenvolvimento da vida societária. Essa é seguida pelo
aspecto da significação simbólica, sendo a fundação de todo
fenômeno linguístico empírico. Mais adiante há também o aspecto
do intercurso social, com suas regras de cortesia, polidez, boas
maneiras, educação, e assim por diante. Essa modalidade
experimental é seguida pelos aspectos econômico, estético,
jurídico, moral e, finalmente, pelo aspecto da fé ou crença.44

Esses são os "aspectos modais" que a experiência ingênua percebe (em


unidade), e que o pensamento teórico estuda. Nenhum pode ser reduzido a
qualquer um dos outros. A lista de Dooyeweerd supracitada segue uma
ordem de complexidade ascendente. Ele sustenta que essa ordem é
irreversível, pois o mais complexo sempre pressupõe o menos complexo,
nunca vice-versa. Cada aspecto "pode apenas existir fundamentado no
anterior."45 Esses aspectos estão relacionados uns com os outros de várias
formas complicadas; coisas, pessoas, estruturas sociais, etc., podem ser
teoricamente analisadas de acordo com suas funções em diferentes esferas.
Esse sistema impressiona muito em sua simetria e equilíbrio, e se é válido,
provê um guia pronto para analisar muitos problemas na filosofia e outras
disciplinas.

Tomaria muito tempo para produzirmos uma crítica elaborada desse


sistema. Às vezes as categorias parecem um pouco arbitrárias, um pouco
simples demais, como se o mundo tivesse que ser comprimido um pouco a
fim de se encaixar nas categorias do sistema.46 Em Dooyeweerd, embora
não em alguns outros membros do movimento, há bastante distorção

44 Dooyeweerd, Twilight, p. 6.
45 Ibid., p. 7.
46 Spier, Introduction, p. 52ss.
30
estranha nessa doutrina das esferas modais ― isto é, que todas as esferas
são "aspectos do tempo em si mesmo".47 A diversidade dos aspectos
modais...

...referem-se a uma unidade e totalidade de significado central e


supratemporal no nosso mundo experimental, o qual é refratado na
ordem do tempo em uma rica diversidade de modos ou
modalidades de significado, assim como a luz do sol é refratada por
um prisma em uma rica diversidade de cores.48

Todos os diferentes tipos de "ordem" no mundo são considerados modos


do tempo ― ordem numérica, relações espaciais, a sensação psicológica de
duração, a ordem lógica entre a premissa e a conclusão, etc. O aluguel é
ainda visto como um tipo de "tempo econômico". 49 Esse esquema serve
para destacar a limitação temporal do pensamento teórico (veja abaixo,
seção 5) para desencorajar a visão de que alguns objetos do pensamentos
(tais como proposição, pensamentos, números, etc.) são em algum sentido
"atemporais". Essa visão ainda aparenta repousar sobre um equívoco no
uso do [termo] "tempo" que não tem base no significado atual da palavra.
Se Dooyeweerd deseja redefinir o termo, isso é privilégio Dele, 50 todavia
as coisas se tornam mais chocantes quando Dooyeweerd nos pede para
confinar a nossa capacidade de teorizar ao "temporal". Ele quer dizer que
todo nosso pensamento deve ter algum tipo de "ordenação"? E o
"supratemporal" quer dizer "desordenado"? Encontramos pouca clareza
nessa abordagem.

b. O Ego

47 Dooyeweerd, Twilight, p. 19.


48 Ibid., p. 25.
49 Ibid., p. 27ss., 121. N. T. No original a nota de rodapé é "Ibid., 27, f. 121." Considerei
que Frame editou mal, portanto consertei.
50 Dooyeweerd, “Cornelius Van Til”, p. 85.
31
A filosofia de Amsterdã define o ego humano de várias formas. É o "ponto
de referência central em nossa consciência do qual sua síntese teórica pode
começar."51 É o "centro da experiência e existência humana." 52 É o "ponto
de referência central de todo o nosso horizonte temporal da experiência
com sua diversidade de aspectos modais."53 É o "ponto de concentração
religioso."54 É o "ponto de partida da filosofia cristã."55

Note mais uma vez o demasiado uso de metáfora. O "centro" nessa visão
não é claramente o centro geométrico; o "ponto de partida" não é um ponto
de partida geográfico. O "ponto de concentração" não é um pedaço de uma
experiência de liofilização. O que, então, essas expressões significam?
Duas ênfases parecem ser encontradas: (i) Que o coração ou o ego em
algum sentido "concentra" toda a experiência humana. Mas em que
sentido? Isso significa que é o coração que tem todas as experiências?
Significa que o coração apresenta os conceitos "universais" pelos quais a
experiência é "unificada" (i.e., organizado, representado, analisado, etc.)?
Significa que todas as experiências pressupõem a existência do coração?
Significa que qualquer descrição fiel da experiência humana deve
pressupor a existência do coração? Significa que o coração de alguma
forma percebe supra-temporalmente o que os sentidos percebem
temporalmente? Dooyeweerd parece considerar a doutrina em todos esses
diferentes sentidos em diferentes ocasiões. Realmente, todos eles poderiam
ser verdade ao mesmo tempo. Mas nenhum deles é tão óbvio que nenhum

51 Spier, Introduction, p. 16.


52 É verdade que as Escrituras falam do coração em termos comparavelmente gerais:
"sobre tudo que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da
vida" (Pv 4.23; cf. Mt 12.34; 15.18; e paralelos). O ensino de tais passagens, cremos, é
que cada homem tem uma orientação básica a favor ou contra Deus, e que essa orientação
básica determinará se os atos específicos de sua vida são agradáveis a Deus ou não. Nesse
caso, essas passagens não estão tentando mostrar, como Dooyeweerd está, a relação
precisa entre os data da experiência humana, as descrições dessa experiência, e o ego. Por
causa desse emprego, não é o bastante imitar a generalidade das representações bíblicas.
53 Dooyeweerd, Twilight, p. 19.
54 Dooyeweerd, New Critique, I, p. 31, nota de rodapé.
55 Spier, Introduction, p. 54
32
argumento seja exigido; e argumentos diferentes são requeridos para cada
um. Dooyeweerd evita sua responsabilidade em defender essas teses
repousando em suas metáforas sem interpretação. A outra ênfase (ii) é que
o coração ou o ego, desde que "concentra" toda a experiência humana, é o
"ponto de partida" necessário para qualquer descrição da experiência
humana. Mas os termos "ponto de partida" e "ponto de referência" são,
novamente, ambíguos. Como o coração serve como um "ponto de partida"
para o pensamento? Isso significa que eu deveria aceitar a validade das
minhas visões atuais até que esses sejam refutados? Isso significa que em
algum lugar da minha consciência há algumas "ideias inatas" que eu
deveria aceitar para o meu pensamento ser verdadeiro? Isso significa que o
pensamento deve pressupor a existência do coração? É o coração um tipo
de faculdade pelo qual eu aprendo proposições de um poder mais elevado?
Essas e muito mais coisas podem ser os significados das metáforas em
questão. Sem dúvida Dooyeweerd não desejaria aceitar todos; mas, de
novo, ele evita argumentar em favor de sua tese, repousando sobre uma
metáfora não interpretada.56

Devemos tomar nota de um outro ensino de Dooyeweerd sobre esse


assunto, um ensino que alguns outros membros da escola de Amsterdã
discordam. Dooyeweerd ensina que o coração humano é supratemporal.
Por que? Parte do argumento parece ser baseado na metáfora do mirante da
torre que discutimos anteriormente (seção 5). "Na ordem temporal," diz
Dooyeweerd, "...não encontramos um ponto de referência central
transcendendo a diversidade dos aspectos modais."57 Bem, desde que nós
56 Dooyeweerd não diz que devemos ser divinos para conhecermos a Deus. Na verdade
ele traça uma distinção entre a eternidade de Deus, por um lado, e a "eternidade criada" ou
"aevum", por outro. Mas, então, o que acontece ao argumento que tomamos nota? Se o
homem deve ser eterno para conhecer as coisas eternas, então também não deve ser dito
que o homem deve ter precisamente a eternidade de Deus para conhecer a eternidade de
Deus? Um argumento é apenas tão forte quanto outro. O uso desse tipo de argumento é,
sustentamos, em si mesmo um compromisso com a distinção criador-criatura que
Dooyeweerd não pretende fazer, sem dúvida; mas um compromisso mesmo assim.
57 Para mais sobre esse problema, aconselhamos ao leitor a [consultar] uma dissertação
de doutorado não publicada, escrita por Peter J. Steen, The Idea of Religious
Transcendence in the Philosophy of Herman Dooyeweerd (Westminster Theological
33
realmente não sabemos o que Dooyeweerd quer dizer por "ponto de
referência central", deixaremos esse argumento de lado. Há um outro
argumento, todavia, que detém nossa atenção: "Como poderia o homem
direcionar a si mesmo em direção às coisas eternas, se a eternidade não
estivesse 'posto em seu coração'?"58 Cf. também Spier:

Se o nosso coração fosse sujeito à temporalidade, não possuiríamos


uma ideia de eternidade e não seríamos capazes de relacionar nossa
vida temporal com Deus na auto-concentração religiosa.59

A essência dessas citações parece estar em que, se o coração humano não


fosse supratemporal, ele não poderia ter qualquer relacionamento com
Deus. Dois pontos devem ser feitos: (i) Esse argumento é claramente
inválido. Dooyeweerd e Spier estavam querendo dizer que não poderíamos
ter uma ideia de Deus a menos que nós fôssemos Deus? Então por que eles
não dizem que devemos ser eternos para termos uma ideia de eternidade?60
Nós deveríamos ser oniscientes para termos uma ideia de onisciência? Ou
onipotentes para termos uma ideia de onipotência? (ii) O argumento não é
apenas inválido, mas perigoso. É precisamente esse tipo de argumento que
tem sido usado por toda a história do pensamento para quebrar a distinção
criador-criatura. De novo e de novo, filósofos como Plotino, João Scotus
Erigena, Tomás de Aquino e outros têm argumentado que não podemos
verdadeiramente conhecer a Deus ou ter relações com Ele, a menos que
compartilhemos algum tipo de ser em comum, alguns atributos em comum
com Ele. Alguns têm sustentado, sob a mesma base, que embora não

Seminary, 1970). Steen, que se considera um "filósofo de Amsterdã" registra nessa


dissertação uma discordância vigorosa contra a noção de Dooyeweerd de eternidade
criada. Ele identifica essa ideia com o conceito escolástico da cadeia de seres, e coleta
muitas referências a outros membros da escola que compartilham com suas críticas. Não
estamos convencidos, todavia, de que Steen tem adequadamente purgado de si mesmo
esses "remanescentes de escolasticismo" que permanecem em seu pensamento. Veja seção
6-c.
58 Cf. acima, seção 5
59 Dooyeweerd, “Cornelius Van Til”, p. 83ss. Cf. também a seção 8 abaixo.
60 Spier, Introduction, p. 32.
34
tenhamos qualquer atributo em comum com Deus, nós compartilhamos os
atributos de algum ser semi-divino que por sua vez compartilha alguns
atributos com Deus. Esse tipo de argumento tem como pano de fundo a
ideia da "grande cadeia de seres" encontrada na filosofia grega
(especialmente no neoplatonismo), Gnosticismo, e em muitos pensamentos
atuais. Um cristão bíblico não deveria advogar a favor de um movimento
em que o homem deve ser divino em algum sentido a fim de conhecer a
Deus.61 Deus é perfeitamente capaz de se revelar às Suas criaturas sem
produzir deuses fora Dele [mesmo]. Não necessitamos ser eternos para
termos uma ideia de eternidade; pois o nosso Deus nos diz o que a
eternidade é em Sua Palavra.62

c. Deus

Dooyeweerd diz muito sobre Deus como criador e legislador, e como a


"origem" que deve ser pressuposta por todo o pensamento. Como temos
notado, todavia, Dooyeweerd pensa que é impossível ter qualquer conceito
de Deus, desde que em sua visão não pode haver qualquer conhecimento
teórico de Deus, e desde que ele considera todos os conceitos como
teóricos.63 A ideia de "conhecer" a Deus é bastante obscura na filosofia de
Amsterdã, desde que conhecimento de Deus e do ego, para Dooyeweerd,
parece ser totalmente distinto de todos os outros conhecimentos. Não é um
conhecimento teórico "conceitual", nem aparenta ser uma forma de
experiência ingênua. É algo maior do que esses que incluem algum
conhecimento fatual como um de seus elementos? Ou é algo totalmente
distinto de todo conhecimento fatual, teórico e diferente?64 Sobre esse
assunto, Dooyeweerd não é claro. Ele objeta fortemente contra a afirmação
de Van Til de que um filósofo cristão deve se submeter ao "conteúdo
teórico" das Escrituras.65 Às vezes essa objeção parece repousar sobre um

61 Ibid.
62 Dooyeweerd, Twilight, p. 8.
63 Spier, What Is Calvinistic Philosophy?, p. 32ss.
64 Ibid., p. 32.
65 Cf. também Spier, Introduction, p. 119-122; What Is Calvnistic Philosophy?, p. 76ss.
35
desentendimento sobre Van Til, a saber, de que Van Til está tornando o
conhecimento de Deus "teórico" no sentido estrito de Dooyeweerd de
"teórico" (Como matéria de fato, não é claro se Van Til aceita
completamente a distinção de Dooyeweerd entre ingênuo e teórico). Em
outras vezes, parece que Dooyeweerd simplesmente não quer incluir
qualquer "conteúdo teórico" dentro do escopo do "conhecimento de Deus".

Mas isso é um tipo mais sério de falta de clareza. Em toda a história do


pensamento humano, homens têm tentado declarar Deus como
"desconhecido". O homem caído descobre que o conceito de Deus
desconhecido é mais atraente: um deus desconhecido não fala, não
comanda, não julga ou redime, não põe o homem em dúvida sobre si
mesmo. Filósofos e pessoas religiosas têm argumentado a favor do
desconhecimento de Deus de forma vigorosa. Tem frequentemente sido
dito que, porque Deus é transcendente, supratemporal, distante de nós,
nada pode verdadeiramente ser dito sobre Ele. Cada palavra, alguns têm
argumentado, limita-O. Logo algo nunca pode ser verdadeiramente
afirmado sobre Ele. As Escrituras, todavia, confrontam tal pensamento e
atacam-no diretamente. O que os pagãos louvam como desconhecido, o
apóstolo Paulo anuncia (At 17.23). Embora Deus seja exaltado, alto e
elevado, Ele não não está desconhecido para o homem. Pelo contrário:
porque Ele é transcendente, porque Ele é soberano, Ele grava Sua
realidade sobre cada coisa criada, de modo que suas criaturas não podem
deixar de conhecê-Lo (Sl 19; Rm 1.18-32). E esse conhecimento não é
inarticulado, não-discursivo; é um conhecimento que pode ser
verdadeiramente articulado em palavras. Ainda aqueles sem acesso às
Escrituras têm conhecimento de certos mandamentos de Deus que podem
ser verdadeiramente formulados de forma linguística (Rm 1.32). Sem
sombra de dúvidas, o conhecimento de Deus é mais do que conhecimento
de fórmulas verbais, mas certamente não exclui tais fórmulas. Sem dúvida,
também, há um sentido em que Deus é incompreensível, no qual o nosso
conhecimento Dele é não-exaustivo; mas as Escrituras sempre assumem
que é possível ter verdadeiro conhecimento de Deus que pode ser expresso
em verdadeira linguagem.
36

Dooyeweerd sustenta esse claro testemunho bíblico contra o conceito de


deus desconhecido? Parece que não. Não estamos dizendo que
Dooyeweerd ensina o conceito de Deus desconhecido; mas fica claro que
ele não se guarda adequadamente contra isso. Tudo o que ele diz sobre o
conhecimento de Deus desencoraja, ao invés de encorajar, uma afirmação
confiante de que conhecemos a verdade sobre Deus. Quando Dooyeweerd
argumenta que Deus é supratemporal, e, logo, nada pode ser dito sobre Ele
teoricamente, ele está usando um tipo de argumento que tem sido usado
historicamente para provar o total desconhecimento de Deus. Em nossa
visão tudo isso dá auxílio e conforto ao inimigo. Pode ser que, se
pressionado, Dooyeweerd permitiria que possa haver algum conhecimento
racional, discursivo, de Deus (embora não-teórico); mas quase todas as
coisas que ele diz tendem à direção oposta; e ele usa certos argumentos
que, se válidos, invalidariam não apenas o conhecimento teórico de Deus,
mas todo o conhecimento de Deus.

Esse problema, devemos adicionar, não diz respeito apenas a Dooyeweerd,


mas também a todo o movimento. Nem todos os membros da escola
aceitam a decisão de Dooyeweerd do ego supratemporal, mas todos
aceitam o caráter do pensamento teórico de ser amarrado ao tempo, além
de não serem claros em relação à possibilidade de um conhecimento
racional de Deus. Aqueles na escola de Amsterdã que estão preocupados
em evitar o escolasticismo fariam bem em reexaminar essa fase do seu
pensamento. Pois o maior erro do escolasticismo não foi o conceito de
eternidade criada, como Steen sustenta (veja acima, seção 6-b, última nota
de rodapé). Muito mais fundamental ao escolasticismo (e sua herança mais
básica do neoplatonismo) foi o conceito de Deus desconhecido, o Deus que
pode ser descrito apenas em figuras, o Deus sobre o qual nenhuma
predicação pode ser realmente verdadeira. O conceito de eternidade criada
(e outros aspectos da "escala de seres") emerge, por causa da necessidade
de mediação entre o Deus desconhecido e Suas criaturas ignorantes. De
fato, o compromisso com o conceito de Deus desconhecido também produz
um tipo de "escala de seres" no esquema de Amsterdã. Ainda se
37
rejeitássemos a ideia de Dooyeweerd de "eternidade criada", devemos
ainda levar em conta o fato de que geralmente no movimento de Amsterdã
há mediadores de vários tipos entre Deus e Suas criaturas, outros
mediadores além daquele mediador que é Deus e homem, Jesus Cristo. Há
a "lei" que tem status metafísico bastante incerto (vide seção 7, abaixo). Há
o "coração" que é chamado de "ponto de referência central" para todo o
pensamento (note que é o coração, e não Deus, ou a Palavra de Deus, que é
chamado de "ponto de referência central"). E então há a hierarquia das
esferas modais. Sempre encontramos hierarquismo quando Deus é
considerado desconhecido; pois na ausência de um conhecimento direto de
Deus, o conhecimento das entidades subordinadas se tornam, de alguma
forma, necessariamente suficientes, e isso necessita, ao menos, de uma
autoridade, que se torna o representante de Deus.

7. LEI

Lei é obviamente um conceito crucial para a "Filosofia da Ideia de Lei". É


pela lei, na visão de Amsterdã, que Deus controla todas as coisas, e é por
ela que Deus provê normas para a conduta humana. "Lei é a fronteira entre
Deus e o cosmo."66 O cosmo, em outras palavras, é sujeito à lei, mas Deus
não é. Deus é livre da lei; ainda que Deus não esteja, na visão de Amsterdã,
"fora" dela.67 Por "fora" temos aqui mais uma das metáforas sugestivas
dessa filosofia; parece significar que embora Deus não tenha que
"obedecer" a qualquer lei, Suas leis são consistentes com seu caráter, e,
portanto, pode ser esperado que Ele aja de forma consistente com essas
leis. Ao menos isso é o que Calvino quis dizer pela ideia, e Spier cita
Calvino!

66 Spier, Introduction, p. 88.


67 Em relação ao assunto desta seção, estamos em dívida com N. Shepherd, "The
Doctrine of Scripture in the Dooyeweerdian Philosophy of the Cosmonomic Idea",
Christian Reformed Outlook XXI, 2 (Fev., Mar., 1991), 18-21; 20-23. Recomendamos
esses artigos aos leitores deste livreto.
38
Como a "lei" se encaixa na "estrutura básica" que discutimos na seção
anterior? Lei, assim como Deus e o ego, aparenta primeiramente ser uma
realidade supratemporal que é "refratada" pelo prisma do tempo em uma
grande diversidade de normas específicas. A realidade supratemporal é o
que Dooyeweerd chama de "unidade central da lei divina, a saber, o
mandamento de amar a Deus e ao próximo." 68 Esse mandamento central
assume várias formas no mundo temporal. Há as leis da aritmética, leis da
física, leis do crescimento biológico, da história, linguagem, estética, ética,
fé, etc. Nas cinco primeiras esferas modais, a aritmética, espacial, física,
biológica e psicológica,

a lei é dada diretamente por Deus, e não pode ser quebrada. Um


animal sempre age de acordo com seus instintos psicológicos, e
nunca de outra maneira. Da mesma forma, plantas e coisas
inanimadas estão absolutamente amarradas às leis postas sobre eles
pelo Criador. Por outro lado, nas mais altas, esferas de lei
unicamente humanas, a lei tem o caráter de norma, isto é, uma
regra para uma conduta apropriada que pode ser quebrada por livre
escolha. Em nosso pensamento podemos transgredir as leis do
pensamento pelo raciocínio ilógico. Cometemos erros linguísticos.
Violamos as leis sociais, e agimos sem amor, etc. É de tais
maneiras que o pecado humano vem à expressão.69

É importante, todavia, que não compreendamos errado, achando que os


aspectos de cada esfera são "leis":

Alguns sustentam que a história nunca é normativa, e nunca pode


ser o padrão da ação; enquanto que outros sustentam o oposto,
alegando que a história certamente é normativa. Quem está dizendo
a verdade? A argumentação de que a história é normativa é
verdadeira no sentido de que a ação histórica em seu lado subjetivo
é determinada pelas leis históricas. Mas a história entendida como o

68 Dooyeweerd, Twilight, p. 41ss.


69 Ibid., p. 42
39
processo subjetivo de desenvolvimento cultural não é normativo.
Isto quer dizer que alguém não pode usar os fatos históricos, que
são sempre subjetivos, como normas para sua conduta. Em outras
palavras, o sujeito histórico nunca se torna uma lei histórica, pois
cada sujeito histórico é sempre sujeito a uma lei histórica.70

Essa visão de Amsterdã da lei levanta várias questões:

(a) Qual a relação entre a lei e Deus? É a lei algo criado ou é


essencialmente divino? A ideia de que a lei é a "fronteira entre Deus e o
cosmo" obscurece o assunto, pois alguém iria querer saber de que lado da
fronteira a fronteira está! As Escrituras ensinam que Deus é o criador, o
mundo é Sua criatura, e que há nada entre [ambos], não há uma terceira
categoria. Onde a "lei" se encaixa nessa estrutura?

Às vezes parece que para a filosofia de Amsterdã a lei é um tipo de


estrutura criada no universo, um tipo de maquinaria cósmica. As
Escrituras, todavia, nunca consideraram isso dessa forma. Na Bíblia a lei
de Deus nunca é uma coisa criada, ou uma estrutura criada nas coisas. As
Escrituras frequentemente falam da natureza em obediência às ordenanças
de Deus (p. ex., Sl 119.89-93), mas nunca falam de qualquer "estrutura de
lei" ou "ordem de lei" na natureza. A natureza obedece à lei de Deus, mas
não é em si mesmo a lei de Deus, nem é alguma parte da natureza lei de
Deus. Ao contrário, a lei de Deus, nas Escrituras, é pura e simplesmente
divina. Logo a "lei de Deus" é uma expressão que se refere à "Palavra de
Deus" (cf. Sl 119.89); e a "Palavra de Deus" é igualada ao próprio Deus em
em João 1.1. Obedecer a lei é obedecer a Deus. A lei merece de nós um
tipo de obediência total que apenas Deus merece; os atributos divinos são
imputados à lei (Sl 119). A Lei de Deus, em outras palavras, não é algum
tipo de maquinaria criada no universo que é mediadora entre Deus e o
homem (cf. última seção). A "Lei de Deus" é simplesmente uma forma de
falar das reivindicações de Deus sobre Suas criaturas. A Lei é falada por
Deus, não criada por Ele (note a distinção em João 1.1-3). Se a filosofia de

70 Ibid., p. 125.
40
Amsterdã considera a lei como algo criado, um aspecto do universo, muita
pouca estima está sendo posta sobre essa lei. Tal visão é um incentivo à
idolatria, pois concede autoridade aos elementos do mundo criado.

Não estamos dizendo que essa é a visão do movimento de Amsterdã, mas


cremos que há uma falta de clareza aqui, especialmente no uso de
expressões como "estrutura de lei" e "esferas de lei".

(b) A visão de que todas as leis físicas, biológicas, linguísticas, etc., são
expressões temporais da lei supratemporal do amor: essa visão é algo mais
do que uma mitologia? Na medida em que podemos observar, há nenhuma
base bíblica para isso; e realmente podemos descobrir conclusões sobre o
mandamento do amor de Deus em qualquer outra base além das Escrituras?
E se Dooyeweerd e outros tiverem outra base para essa visão, não foram
bem sucedidos em tornar essa base clara. Eles não mostraram, em outras
palavras, se essa lei de amor é algo supratemporal, ou que as outras leis são
"expressões" temporais desse amor, ou ainda, o que significaria dizer, por
exemplo, que a lei da gravidade é uma expressão da lei de amor a Deus e
ao próximo. Mais uma vez essa filosofia parece ter sido seduzida por
metáforas tentadoras.

(c) Deus realmente nos falou sobre a estrutura básica do universo? O


esquema de Amsterdã, que considera as leis físicas, lógicas, etc., como
refrações do mandamento básico do amor, parece implicar que sim. As
Escrituras, todavia, não sugerem que Deus nos revelou uma cosmologia
completa. Quando as Escrituras falam da revelação de Deus na natureza,
não é dito que essa revelação dá ao homem todos os tipos de informação
sobre biologia ou economia. Pelo contrário, essa revelação é para revelar
em si mesmo Deus ― Sua glória (Sl 19), Sua misericórdia e graça (At
14.17; Mt 5.45), Sua ira contra o pecado (Gn 3.17-19; Rm 1.18; Lc 13.1-
5). Mas também, sem sombra de dúvida, o homem aprende muitas coisas
do seu estudo da natureza ― coisas sobre números, movimento, sensação,
vida biótica, etc. E certamente há um sentido no qual todos esses fatos têm
sido revelados por Deus. Mas a filosofia de Amsterdã pensa que temos
41
algo a mais do que isso. Sustentam que na lei do amor de Deus tem nos
sido dado um tipo de "chave" para o conhecimento, um meio pelo qual
podemos trabalhar um sistema que inclui os princípios de todas as ciências
― um sistema que tem tanta sanção divina quanto o próprio mandamento
do amor! Mas não poderia ser o caso de que Deus nos deu a habilidade de
entender vários fatos no universo, fatos importantes para nossa vida na
Terra, sem nos dar um mapa divinamente sancionado do cosmo? A
filosofia de Amsterdã não parece considerar essa possibilidade seriamente;
pensamos que eles deveriam.

(d) É verdade que o estudo da lógica, história, linguística, sociologia,


economia, estética, jurisprudência, ética, ou teologia fornecem normais
além daquelas encontradas nas Escrituras? A filosofia de Amsterdã parece
responder que sim. Anteriormente nesta seção, citamos Spier no sentido de
que tais estudos podem produzir normas, as quais temos a obrigação divina
de obedecer ― desobediência a tais normas é "pecado".71 Logo é
"pecaminoso" fazer um erro de lógica, ou usar menos do inglês mais
"apropriado". É ainda pecaminoso, implica Spier, "construir igrejas em
estilo romano, ou escrever um livro em um estilo literário do século 17..."72
Na nossa visão, essas afirmações comprometem a suficiência das
Escrituras. Deus direcionou Seu povo a buscar Sua lei, não através de seus
estudos sobre a criação, mas através de Sua palavra escrita. Para ser mais
exato, a natureza revela algo das ordenanças de Deus (Rm 1.25, 32;
2.14ss.). Mas as Escrituras nunca sugerem que a natureza contém uma
revelação mais rica e plena do que a palavra escrita. Pelo contrário: em
Romanos 3.1-2, é dito que os judeus, por causa de seu conhecimento das
Escrituras, têm uma tremenda vantagem sobre os gentios que (de acordo
com os capítulos anteriores) têm uma revelação geral. As Escrituras, diz o
apóstolo Paulo, são suficientes [de forma] "que o homem de Deus pode
estar completo, inteiramente equipado para cada boa obra." Tanto a adição
quanto a subtração à palavra de Deus é um ato de presunção humana (Dt
4.2; 12.32; Ap 22.18). Concordamos que um estudo da natureza e da

71 Dooyeweerd, “Cornelius Van Til”, p. 82.


72 Spier, Introduction, p. 76ss.
42
situação humana pode ser necessário a fim de determinar a aplicação
apropriada de um mandamento bíblico. Mas não podemos concordar com
Spier de que um estudo da natureza revelará novos mandamentos,
mandamentos que se somam à palavra de Deus escrita, mandamentos que
declaram que a palavra escrita de Deus é insuficiente. Consideramos que a
ideia de Spier da elevação de "normas" culturais, linguísticas, etc., a um
status de quase bíblico é uma usurpação da autoridade divina e um assalto
à liberdade do cristão. E não cremos que (na ausência de outros fatores)
Deus condenará alguém por construir uma casa do século 17 no século.

8. ESCRITURA E A PALAVRA DE DEUS

As considerações acima nos levam naturalmente à mais importante área da


controvérsia ― a visão de Amsterdã sobre as Escrituras e a Palavra de
Deus. Muito é dito na literatura sobre o caráter radicalmente bíblico dessa
filosofia, e como temos indicado anteriormente, muito do apelo inicial
dessa filosofia aos cristãos reside na sua alegação de relacionar as
Escrituras a todas as áreas da vida. Na verdade, há alguns no movimento
que sustentam a visão histórica reformada da autoridade das Escrituras, que
apoia a infalibilidade e a inerrância bíblica. Todavia há também alguns que
não sustentam isso. E há muitos de nós que creem que as premissas
filosóficas da escola de Amsterdã tendem a minar a autoridade da Bíblia.

A Palavra de Deus, assim como a Lei, é uma realidade supratemporal que


assume várias formas dentro da experiência temporal, na filosofia de
Amsterdã.73 Talvez seja que a Palavra de Deus é equivalente ou muito
próxima à Lei nessa visão. Muito é dito na literatura de Amsterdã sobre as
três "formas" da Palavra ― a Palavra na criação, em Jesus Cristo, e nas
Escrituras. Essas são as três formas temporais da plenitude supratemporal

73 É digno de nota que essa distinção é contrária ao uso bíblico do termo "fé"; pois nas
Escrituras, "fé" é precisamente um compromisso do coração humano de se relacionar com
Deus.
43
que é a Palavra propriamente dita. A Palavra propriamente dita é
frequentemente descrita como o

...tema bíblico radical e central da criação, queda no pecado e


redenção por Jesus Cristo como a Palavra de Deus encarnada, na
comunhão do Espírito Santo.74

[Esse tema] também é chamado de "motivo básico" ou "motivo-base" das


Escrituras.75 Dooyeweerd, todavia, aponta que "não deve ser confundido
com os artigos eclesiásticos de fé..."73 ― isto é, quando ele fala sobre o
"motivo básico da criação, queda e redenção", ele não está falando sobre as
doutrinas da criação, queda e redenção. As doutrinas da criação, etc.,
podem ser estudadas teoricamente; já o "motivo básico" não pode, pois é
endereçado apenas ao coração do homem e não ao pensamento teórico.
Isso
...tem uma unidade radical de significado, que está relacionada à
unidade central da nossa existência humana. Ele efetiva o
verdadeiro conhecimento de Deus e de nós mesmos, se nosso
coração estiver realmente aberto para o Espírito Santo, de forma a
encontrar-se cativo à Palavra de Deus e tornar-se prisioneiro de
Jesus Cristo. Enquanto este significado central da Palavra-revelação
estiver em questão, estaremos além dos problemas científicos, tanto
da teologia como da filosofia. Sua aceitação ou rejeição é uma
questão de vida ou morte para nós, e não uma questão de reflexão
teórica.76

A linguagem de Dooyeweerd aqui sugere que a Palavra em seu significado


central é um tipo de poder, uma força que nos "cativa" e "efetiva" um
verdadeiro conhecimento de Deus e do ego. Na verdade Dooyeweerd gosta

74 Spier, Introduction, p. 93.


75 Para mais informações sobre essa distinção, veja os artigos de N. Shepherd que
citamos anteriormente.
76 Para mais dessa discussão, veja Dooyeweerd, Twilight, p. 149ss.
44
de falar [do] "motivo-base central da revelação bíblica como um poder de
moção ou dunamis..."77

Essa linguagem levanta a questão do grau em que essa "Palavra" se


assemelha a outras palavras. Há algum sentido em que essa Palavra, em
seu significado central, é apropriada pelo ouvir, compreender, crer e
obedecer? Ou é a Palavra um tipo de força cega que "cativa" uma pessoa e
a muda, sem dá-la qualquer informação, mandamentos, questões,
promessas, etc.? A teologia neo-ortodoxa tende a conceber a Palavra dessa
última forma, como faz a "nova hermenêutica". Nesses círculos, a Palavra
é concebida como um tipo de poder que transmite nenhuma ideia, dá
nenhum mandamento ― no fato de que ainda poderia vir sob a forma de
um falsa linguagem, [mas] sem perder o seu poder. Dooyeweerd não
afirma essa visão neo-ortodoxa, mas sua linguagem frequentemente parece
sugerir algo assim ― principalmente na sua visão do contraste acentuado
entre a Palavra e todas as expressões doutrinárias. Quanto à linguagem de
"cativar", etc.: É isso uma outra metáfora não interpretada de Dooyeweerd,
ou é esse "cativar", talvez, tudo o que pode ser dito sobre a relação da
Palavra com o crente? A falta de clareza de Dooyeweerd, mais uma vez,
deixa a porta aberta para uma falsa doutrina.

E quanto a esses contrastes entre o conhecimento do coração e a reflexão


teórica, entre "uma questão de vida ou morte" e "uma questão de reflexão
teórica"? Por que uma questão de vida ou morte nunca poderia ser também
uma questão de reflexão teórica? Dooyeweerd parece assumir isso como
óbvio; mas frequentemente gastamos nossas maiores energias teóricas nos
problemas que mais nos preocupamos, e poucos de nós percebem algo de
estranho nisso. A crise ecológica presente, por exemplo, pode ser dita ser,
em um sentido, "uma questão de vida ou morte"; mas esse fato não se torna
uma questão de um estudo mais urgente da ecologia? A fortiori78 parece
que se a criação, queda e redenção forem questões de vida e morte eterna,
então eles deveriam ser estudados ― teoricamente, bem como
77 Ibid., p. 37ss. N. T. No original "De Graaff argues that he is not a believer in 'situation
ethics.' He does not believe that 'love' is all we have 'to go by.'"
78 Dooyeweerd, Twilight, p. 229.
45
"ingenuamente". Dooyeweerd não oferece argumentos para refutar essa
suposição lógica. Ele parece sentir, tanto aqui como em outros pontos de
seu pensamento que temos discutido, que a criação, queda e redenção são
pressupostos do pensamento teórico e, portanto, incapazes de uma análise
teórica. Mas argumentamos anteriormente, e ainda sustentamos isso, que
não há razão porque as pressuposições de um pensamento teórico não
poderiam ser analisadas teoricamente. Talvez, na verdade, a razão porque a
Palavra em seu significado central não pode ser analisada teoricamente é
que não é realmente uma palavra ― não é realmente uma comunicação
linguística de Deus ao homem. Talvez, como temos suspeitado acima, a
Palavra seja um tipo de poder nu que "efetiva" e "cativa", mas não informa,
comanda ou questiona. Talvez, na verdade, os termos "criação", "queda" e
"redenção", usados nesse tipo de contexto (e acentuadamente distinguidos
das doutrinas da criação, queda e redenção, como temos visto) são meros
códigos para designar esse poder bruto sem nome. Talvez poderia ainda ser
possível substituir "x", "y" e "z" por "criação", "queda" e "redenção". Se é
assim, Dooyeweerd está muito distante da base bíblica. E ele, de fato, não
tem claramente excluído tal visão antibíblica.

Voltemos agora ao ensino de Amsterdã em relação às formas temporais da


Palavra: criação, Cristo e as Escrituras. Essa filosofia nada de incomum
tem a dizer sobre Cristo como a Palavra, então restringiremos nossa
discussão às outras formas. Criação, como notamos acima (última seção), é
dita conter uma "estrutura de lei", ao estudá-la, uma estrutura básica da
realidade será revelada, e também proverá "normas" para todas as áreas da
vida humana. Na seção 7, argumentamos que essa concepção obscurece a
distinção criador-criatura, é uma hipótese especulativa, distorce o ensino
bíblico em relação à revelação geral, e compromete a suficiência das
Escrituras. Mas agora, onde as Escrituras se encaixam no esquema de
Amsterdã?

Spier argumenta que as normas descobertas na estrutura de lei devem ser


"positivadas" ou "especificadas":
46
Amor, por exemplo, é um princípio não-nativo, mas o princípio do
amor não nos fala em si mesmo o que é demandado em uma
instância concreta. Nem sempre proporciona aos pais uma solução
imediata aos problemas concretos que emergem ao criar os filhos.79

"Normas" estéticas, "normas" históricas, "normas" éticas, "normas"


písticas ― todas são dadas por Deus na estrutura de lei e podem ser
descobertas pelo homem nessa estrutura; mas a descoberta dessas normas
dadas por Deus não é o fim dos nossos labores. Devemos também aplicar
essas normas para situações concretas onde devemos decidir como nos
portar. As Escrituras, na visão de alguns membros da escola de Amsterdã,
é uma "positivação" das normas písticas para um grupo particular de
situações.

"Normas da fé" são normas do "aspecto da fé", o mais alto das esferas
modais. Não é completamente claro o que esse "aspecto da fé" é na
filosofia de Amsterdã. Ao menos pode ser dito que esse aspecto da fé não é
a mesma coisa que a orientação básica do coração humano.80 A orientação
básica, em direção a Deus ou para longe Dele, direciona todos os aspectos
da vida humana dos quais o "aspecto da fé" é apenas um. O "aspecto da
fé", em distinção daquele compromisso do coração humano, tem a ver com
atos como "ir ao culto, se engajar em oração, ou participar dos
sacramentos."81 Dizer, então, que as Escrituras são uma positivação das

79 Dooyeweerd também diz que a filosofia deve considerar os resultados das ciências
especiais ― presumivelmente a teologia está incluída. Logo há um sentido em que o
teólogo "dita" ao filósofo, assim como há um sentido em que o filósofo "dita" ao teólogo.
De alguma forma, apesar disso, na literatura de Amsterdã o filósofo sempre fica em uma
posição mais elevada! A razão parece ser que, apesar do filósofo dever aceitar as
informações com as quais a teologia trabalha, o filósofo tem a palavra final sobre o que o
teólogo pode ou não fazer com as informações. O filósofo declara os limites da teologia
― uma declaracão que o teólogo é incompetente para fazer.
80 Dooyeweerd, "Cornelius Van Til", p. 83.
81 Mais uma vez lembramos ao leitor que para Dooyeweerd "conceito" se aplica apenas
aos conceitos teóricos. Alguém poderia legitimamente perguntar a Dooyeweerd se as
Escrituras não podem ensinar ao filósofo alguns "conceitos" de um tipo "ingênuo". Mas
Dooyeweerd não reflete sobre essa possibilidade no contexto, e, portanto, devemos
47
normas da fé é dizer que as Escrituras aplicam as normas da estrutura de lei
a coisas como oração, sacramentos, a igreja institucional, pregação, etc.
Essas coisas, de fato, são muito importantes. Eles influenciam, por sua vez,
outras áreas da vida humana tais como os padrões éticos, suas
sensibilidades estéticas, seu uso da lógica. Mas o encargo das Escrituras
sobre essas outras áreas é "indireto". A Bíblia fala diretamente apenas à
"esfera da fé".

Essa visão levanta sérios problemas de dois tipos. Devemos questionar (a)
a limitação da Escritura à esfera da "fé", e (b) o conceito de Escritura como
uma "positivação" da estrutura de lei.

(a) Mesmo se aceitarmos o uso antibíblico de "fé" para aplicarmos apenas


a um aspecto da vida humana ao invés da sua relação central do coração a
Deus, devemos rejeitar a visão de que a Bíblia fala diretamente ao aspecto
da fé apenas. As Escrituras contém nenhuma ideia de tal limitação em sua
relevância à vida humana. A Bíblia se endereça ao coração do homem (Pv
4.23, e outras referências similares), chama o homem a levar cativo todo
pensamento à obediência a Cristo (2Co 10.5), a fazer tudo para a glória de
Deus (1Co 10.31). A Bíblia fala a todas as áreas da vida humana. Sem
dúvida há um "foco" na revelação bíblica, a saber, a obra salvífica de Jesus
Cristo. Mas a obra de Cristo certamente não é algo que lida apenas com
alguns "aspectos" da vida humana; essa obra reorienta toda a existência
humana.

Aqui está um dos paradoxos mais surpreendentes da filosofia de Amsterdã.


Muitos de nós fomos atraídos pelo movimento primeiramente por causa da
sua promessa de "abrir" as Escrituras, mostrar sua relevância, não apenas

assumir que Dooyeweerd está excluindo das Escrituras a derivação não apenas dos
"conceitos" de um tipo técnico e sofisticado, mas ainda de qualquer conteúdo significante,
autoritativo e racional. Em outras palavras, Dooyeweerd está dizendo o que os teólogos
modernos têm sempre dito, que não podemos aceitar qualquer visão filosófica
simplesmente porque as Escrituras ensinam isso. De fato, no esquema total de
Dooyeweerd, parece que não podemos aceitar qualquer coisa sobre a autoridade das
Escrituras.
48
para as nossas atividades dominicais da "igreja", mas para todas as áreas da
vida cotidiana. Todavia, quanto mais alguém estuda sobre o movimento,
mais se descobre em que grau essa filosofia "fecha" as Escrituras, e em que
grau essa filosofia faz das Escrituras uma coisa "dominical". Os filósofos
de Amsterdã, talvez, sentem a força desse paradoxo. Na verdade eles
gostam de dizer que as Escrituras se endereçam ao coração, que carrega
todos os aspectos da vida, etc. Parece, todavia, que quando eles usam esse
tipo de linguagem, eles estão pensando nas Escrituras, não como um livro
com palavras e sentenças, mas como um veículo dessa dunamis, esse
"poder" que Dooyeweerd descreve como a Palavra de Deus. Lemos as
Escrituras, o poder nos "cativa", muda a nossa "direção", e assim afeta
todas as áreas da vida. Como um livro com palavras e sentenças, todavia, a
Bíblia é dita ser endereçada apenas ao aspecto da fé da vida humana. Essa
distinção entre a palavra como "poder" e a Bíblia como um texto escrito 82
resolve o paradoxo que temos notado. Tomando por certa essa distinção,
podemos usar as Escrituras (enquanto poder) para endereçar a todas as
áreas da vida. Mas as palavras e sentenças atuais das Escrituras ― as
palavras que podemos analisar, fazer exegese, parafrasear, traduzir, etc. ―,
essas palavras nos falam apenas sobre o aspecto da fé da existência
humana. Descobrimos que essa distinção, todavia, é totalmente antibíblica.
Nas Escrituras, o "poder" da Palavra é o poder da mensagem verbal
acompanhada pelo Espírito Santo. O "poder" é operativo na vida humana
quando a palavra é crida, obedecida e confiada. As verdadeiras palavras e
sentenças que Jesus falou aos seus discípulos, e que temos registrado nas
nossas Bíblias hoje, essas palavras são "espírito" e "vida" (João 6.63, cf.
v68). Nem Jesus, nem os apóstolos, nem qualquer outro escritor bíblico
deram qualquer vestígio de que há uma distinção entre "poder" e "texto" tal
como esses filósofos imaginam. Experimentamos o "poder" da Palavra
quando cremos o que as palavras dizem. E certamente, repetimos, há nada
nas Escrituras que sugere que essas "palavras" se endereçam apenas a um
único aspecto da vida humana; muito pelo contrário!

82 Op. cit., pp. 11, 23.


49
A tentativa de distinguir acentuadamente entre o "poder da Palavra" e o
"texto da Palavra" é característica da teologia neo-ortodoxa, a "nova
hermenêutica", e outras formas de pensamento moderno. Nesses
movimentos, o "texto da Palavra" é sempre depreciado como uma palavra
meramente humana, ao passo que o "poder da Palavra", que transmite
nenhum conteúdo inteligível, é exaltada como a verdadeira Palavra de
Deus. Esse esquema habilita esses teólogos modernos a aceitarem a
falibilidade da Bíblia e negar que Deus sempre falou aos homens em
palavras e sentenças. A construção de Amsterdã perigosamente se
aproxima dessas visões modernas, e alguns membros dessa escola tem, de
fato, rejeitado a inerrância e a infalibilidade das Escrituras.

Mas mesmo sem negar explicitamente a autoridade bíblica, é possível para


um filósofo de Amsterdã minar a autoridade bíblica adotando princípios de
interpretação que distorcem o significado pleno da Bíblia. Dooyeweerd,
por exemplo, argumenta que os "seis dias" de Gênesis 1 nada têm a ver
com os conceitos astronômicos e geológicos de tempo, desde que as
Escrituras estão preocupadas apenas com o aspecto da fé. Esses seis dias,
logo, são dias da fé, ao invés de períodos geológicos dos dias do calendário
(Dooyeweerd não é muito claro sobre o que esses "dias da fé" são, exceto
que eles têm algo a ver com o mandamento do Shabat). 83 Note aqui que a
interpretação de Dooyeweerd não levanta qualquer estudo sobre o texto
hebraico; pelo contrário, é ditado por sua pressuposição filosófica (e
antibíblica) de que as Escrituras, enquanto texto, falam apenas ao aspecto
da fé. Mas esse tipo de "interpretação" mina a autoridade da Bíblia, assim
como faz uma negação explícita de sua autoridade!

(b) Também rejeitamos decisivamente o conceito de Escritura como uma


"positivação" da estrutura de lei. Já temos argumentado (seção 7) que a
filosofia de Amsterdã compromete a suficiência das Escrituras por
reconhecer a natureza como uma fonte para normas extrabíblicas. Mas
83 R. J. Rushdoony, em sua Introdução ao Twilight (p. xiii) critica Bultmann por
reconhecer a ciência como "uma nova fonte de normas, uma dentro do cosmos."
Pensamos que Rushdoony devia ter perguntado seriamente se Dooyeweerd não teria feito
o mesmo.
50
agora há mais para ser dito ― pois a filosofia de Amsterdã encontra não
apenas normas extrabíblicas na estrutura de lei; [mas também] alguns
desses pensadores ainda reconhecem as próprias Escrituras como um tipo
de "positivação" ou "aplicação" das normas dessa estrutura de lei. Essa
visão implica que as Escrituras contém nada que não poderia, a princípio,
ter sido descoberto por meio do estudo da estrutura de lei. Além disso,
desde que uma "positivação" ou "aplicação" é válida apenas para um
conjunto particular de circunstâncias e para um espaço e tempo particular,
essa visão implica que as Escrituras, como nós a temos, estão
ultrapassadas. Foi válido para as circunstâncias em que foi escrita, mas a
mudança cultural tornou impossível para nós hoje obedecer aos seus
mandamentos. O valor principal das Escrituras, nessa visão, é que elas nos
mostram como os homens de antigamente (possivelmente sob inspiração
divina, embora nossos filósofos falem pouco sobre esse assunto)
positivaram as normas da fé. A autoridade das Escrituras para nós, então, é
que devemos escrever nossas próprias Bíblias através do estudo da
estrutura da lei e descobrir como isso se aplica a nossa própria situação.
Apenas essa estrutura de lei, fundada sobre a lei do amor, é absoluta. As
Escrituras, por outro lado, devem ser suplementadas pelas "positivações"
atualizadas conforme as mudanças temporais.

De Graaff argumenta que ele não é alguém que crê em "situações éticas".
Ele não crê que o "amor" seja tudo que temos para "passar". 84 Ele enfatiza
que, na verdade, temos as Escrituras como um exemplo de como devemos
positivar a estrutura de lei. Ele também enfatiza, o que o situacionista não
faz, de que há uma "estrutura de lei", e que isso, também, nos ajuda a
tomar decisões. Cremos, todavia, que essas diferenças entre De Graaff e os
situacionistas não são terrivelmente significantes. Quanto ao "exemplo"
das Escrituras, qualquer situacionista concordaria que temos muitos
"exemplos" de amor que são dignos de imitação até certo ponto. Esses
"exemplos", todavia, podem não ser feitas regras absolutas, pois eles não
antecipam as características únicas das situações que confrontamos. A
visão de De Graaff não é substancialmente diferente disso. Quanto à

84 Sobre esses pontos, cf. Spier, Introduction, p. 222ss.


51
"estrutura de lei", o situacionista, bem como De Graaff, admite que há
certas constâncias sobre o mundo e sobre a natureza humana que devemos
considerar em nossas decisões. Mas ambos admitiriam que essas
"constâncias" não nos capacitam a analisar exaustivamente cada situação
antes de ocorrer. Logo, para De Graaff, bem como para o situacionista, não
há "regras" pelos quais podemos determinar de antemão o que é certo e o
que é errado. De Graaff diria contra o situacionista que certa vez (o período
bíblico) houve tais regras. Mas para o nosso tempo e cultura, De Graaff e o
situacionista concordam sobre a natureza essencial da decisão moral.

O cristão reformado não necessitará muito de nossa ajuda para perceber o


quão antibíblico é essa visão. As Escrituras não são uma mera aplicação da
lei de Deus a uma situação particular; As Escrituras são a lei de Deus. As
Escrituras são a verdadeira Palavra que procede da boca de Deus, o "sopro"
de Deus (2Tm 3.16, texto grego). A "lei" de Deus referida nas Escrituras é,
não uma "estrutura de lei" no mundo criado, mas a Palavra de Deus
escrita (ou, ocasionalmente, possivelmente no Salmo 119.91, a Palavra
falada de Deus). Não é endereçado apenas a uma cultura: a cultura dos dias
de Abraão foi muito diferente da de Davi, ou de Jesus, ou de Paulo. Jesus
ainda disse sobre todo o Antigo Testamento que "a Escritura não pode ser
anulada" (João 10.35), e Ele mostrou pelo seu uso das Escrituras que cada
parte do Antigo Testamento estava ligada à cultura de Seus dias. É verdade
que no processo da história da redenção, as exigências de Deus sobre o
homem mudam. As leis dietéticas do Antigo Testamento não estavam
literalmente ligadas aos crentes do Novo Testamento. Mas mudanças desse
tipo não ocorrem por causa do "processo de mudança cultural". Eles
ocorrem por causa das designações específicas de Deus (cf., p. ex., Marcos
7.19). Além do mais, admitimos que os mandamentos bíblicos podem
variar em suas aplicações, assim como as mudanças culturais: p. ex., 1Pe
2.13 agora se aplica às leis de velocidade em estradas que não existiam no
primeiro século. Mas essa variação é uma variação na aplicação dos
mandamentos bíblicos; não é uma mudança que contradiz as Escrituras no
interesse de reaplicar algumas "palavras de lei" mais fundamentais.
52
Pode estar errado em dizer que a doutrina da autoridade das Escrituras é a
doutrina "mais importante" da nossa fé; mas é certamente verdade que se
essa doutrina for rejeitada, nenhuma outra pode ser estabelecida. Cremos
que a abordagem de alguns filósofos de Amsterdã à autoridade das
Escrituras, que temos discutido acima, de fato elimina essa autoridade no
sentido histórico, e eleva a razão humana como a regra última para a fé e
vida cristã. Rejeitamos essa posição o mais fortemente possível.

9. FILOSOFIA E TEOLOGIA

Se, como temos sugerido, muitos pensadores de Amsterdã rejeitam a visão


cristã histórica da autoridade bíblica, como eles propõem fazer uma
filosofia ou teologia cristã? Essa questão se torna a mais importante
quando consideramos que a ausência de uma doutrina robusta das
Escrituras nos faz mais dependentes de filósofos e teólogos para
aprendermos o que costumávamos achar que poderíamos aprender das
Escrituras. Isso é verdade, apesar de Dooyeweerd argumentar
frequentemente contra o estabelecimento da filosofia ou teologia como
mediador entre o crente e a Palavra de Deus.

Dooyeweerd sugere que o termo "teologia" tem sido usada de forma


ambígua através da história da igreja:

De um lado, esta palavra é usada no sentido de verdadeiro


conhecimento de Deus e de nós mesmos, e refere-se à sagrada
doutrina da Igreja. Como tal, ela não pode ter um sentido teórico,
científico, como ficará evidente a seguir. Mas, por outro lado,
teologia cristã refere-se a uma explicação teórica dos artigos da fé
em sua confrontação científica com os textos das Sagradas
Escrituras e com as visões heréticas.85

85 N. T. texto na versão Almeida Revista e Atualizada (ARA)


53
Já discutimos sobre a distinção acentuada de Dooyeweerd entre o
conhecimento do coração sobre Deus e o ego, por um lado, e o pensamento
teórico, por outro. É na base dessa distinção que Dooyeweerd argumenta
que a teologia deve ser ou uma ou outra ― ou o conhecimento do coração
sobre Deus e o ego ou o conhecimento teórico. Combinar ambas as ideias,
nessa visão, é usar o termo "teologia" de forma ambígua. Todavia, desde
que temos rejeitado essa distinção de Dooyeweerd, temos nenhuma razão
em dizer que a teologia deve cair em uma categoria ou outra, e, portanto,
temos nenhuma razão de achar que o uso histórico tem sido ambíguo a esse
respeito. Historicamente teólogos criam que o verdadeiro conhecimento de
Deus e do ego não era acentuadamente distinguível do conhecimento
científico, esse trabalho teórico poderia contribuir para o conhecimento de
Deus e do ego de formas importantes, de modo que certo conhecimento
teórico poderia, na verdade, ser conhecimento de Deus e do ego. Isso não
quer dizer que o pensador teórico é um mediador necessário entre Deus e o
homem. Pessoas "simples" conhecem a Deus, e muito frequentemente
melhor do que teóricos sofisticados. O conhecimento de Deus não é de
modo algum equivalente ao conhecimento acadêmico de Deus. Mas o
último, se fielmente executado, é um aspecto do primeiro, e pode ser usado
por Deus para expandir e aprofundar o conhecimento do coração de
qualquer crente.

Dooyeweerd, todavia, por causa da sua dicotomia entre o conhecimento do


coração e o pensamento teórico, está forçado a fazer uma escolha: ou a
teologia é conhecimento do coração ou é conhecimento teórico. Ele
escolhe o segundo, mas sem, em nossa opinião, uma análise de um trabalho
de teologia adequado para justificar tal escolha. Tendo feito essa escolha,
ele pergunta qual deve ser o assunto da teologia. Ele considera a
possibilidade de que a teologia provê uma visão de mundo compreensível,
total, o qual mostra todas as relações dos diferentes aspectos modais da
experiência humana. Ele rejeita essa alternativa ― novamente, em nossa
opinião, sem qualquer argumento sério e nenhuma análise séria da natureza
e tarefa da teologia. Assim ele chega à conclusão de que a teologia é uma
ciência especial, a ciência do "aspecto da fé". Não é um estudo sobre Deus,
54
pois Deus está além do pensamento teórico na visão dooyeweerdiana. Não
é um estudo sobre a Palavra de Deus, pois a Palavra de Deus está também
além do pensamento teórico. Nem é um estudo das Escrituras, pois as
Escrituras, como um veículo do poder da palavra, estão além do estudo
teórico, e as Escrituras, enquanto positivação das normas da fé, são
diretamente válidas apenas para sua própria cultura e circunstâncias.
Teologia, na verdade, pode se beneficiar do estudo das Escrituras, mas
apenas (ou seria semelhante à doutrina das Escrituras que discutimos na
seção anterior) como um exemplo de como as normas da fé podem ser
aplicadas a uma situação particular.

Essa visão da teologia é essencialmente uma implicação da visão de


Amsterdã sobre as Escrituras, que discutimos anteriormente, e rejeitamos a
implicação pela mesma razão que rejeitamos a premissa. Sustentamos que
a teologia é simplesmente o ensino da Palavra de Deus ― a Bíblia: é por
esse ensino que o povo de Deus é edificado no conhecimento de Deus e de
si mesmos. Esse ensino pode ser relativamente "teórico" ou relativamente
"ingênuo". Pode ser por meio da percepção ou por meio do exemplo. O
acadêmico não pode alegar ser um mediador entre Deus e o crente, pois o
conhecimento acadêmico é apenas uma parte do conhecimento de Deus,
uma parte que, por causa da perspicácia das Escrituras, não é necessária
para a salvação. Mas é uma parte desse conhecimento, uma parte que
soma, enriquece, aprofunda outras formas de conhecimento. E mais: se
relativamente "ingênuo" ou "teórico", a teologia é o ensino das Escrituras;
e a teologia está amarrada às Escrituras como sua autoridade necessária,
suficiente e perspicaz. O teólogo pode não considerar as Escrituras como
limitadas em sua autoridade a algum "aspecto da fé", nem pode considerá-
las como uma mera aplicação de algumas leis básicas. As Escrituras são a
Sua lei (veja acima, última sessão).

O que é, então, a filosofia na visão de Amsterdã? Filosofia é a ciência que


mostra as relações entre todas as ciências. Filosofia dá uma visão de
mundo geral, mostrando os limites do conhecimento humano, mostrando
os limites de cada ciência, mostrando a estrutura geral do universo. O
55
filósofo, logo, tem o direito de dizer ao teólogo o que ele pode e não pode
fazer.86 O filósofo determina que as Escrituras são uma positivação das
normas da fé para uma cultura particular, e assim ele proíbe ao teólogo de
interpretar os dias da criação como períodos geológicos. O filósofo decide,
em outras palavras, o que as Escrituras podem e não podem dizer ao
intérprete. E ele decide esses assuntos não pela exegese, não pelo estudo
intensivo do texto bíblico, mas sob a base do seu próprio estudo da
estrutura de lei, "dirigida" de uma forma misteriosa pelo "poder" da
Palavra. Nesse ponto Dooyeweerd é bastante explícito. Ele severamente
repreende Van Til, pois Van Til chama os filósofos a "subordinar todo o
seu pensamento às verdades das Escrituras."87 Dooyeweerd considera a
posição de Van Til como "racionalista", pois Van Til deseja "derivar" os
conceitos filosóficos do "conteúdo teórico" das Escrituras. Pelo contrário,
diz Dooyeweerd, a Bíblia não contém "conceitos" que o filósofo deve
aceitar sob sua autoridade. O encargo das Escrituras sobre o trabalho
filosófico é para ser expresso exclusivamente pela noção de "poder": as
Escrituras devem exercer poder sobre o filósofo, mas nunca deve ensiná-lo
algum conceito.88

Sob o risco de sermos monótonos, devemos mais uma vez rejeitar essa
visão de termos incertos. Pois nesse esquema, Dooyeweerd tem
essencialmente rejeitado o papel das Escrituras sobre o trabalho do
filósofo, e tem dado ao filósofo uma autoridade final e virtual sobre a vida
e a fé cristã. Dooyeweerd na verdade nega que uma filosofia cristã deva ser
tão imperialista! Ainda nessa análise, parece que a filosofia de
Dooyeweerd é tão imperialista quanto qualquer filosofia que o homem
inventou. O filósofo, pela virtude do seu conhecimento superior da
estrutura de lei do universo, pode ditar a todas as outras ciências o que eles
podem e não podem dizer; e ele não dita isso sobre a base do que as
Escrituras dizem (ele nunca, como filósofo, deriva qualquer conteúdo

86 Dooyeweerd, Twilight, p. 243.


87 Spier, na verdade, faz muitas dessas distinções, Introduction, p. 119ss. Percebemos,
todavia, que o movimento como um todo os esquecem às vezes.
88 Dooyeweerd, New Critique, I, p. 37.
56
racional das Escrituras); pelo contrário, ele diz o que diz sobre a base de
sua própria especialidade e sobre a afirmação de um "poder" divino vago
direcionando-o de alguma forma. O filósofo, portanto, tem uma autonomia
virtual; e as polêmicas de Dooyeweerd contra a "autonomia do pensamento
teórico" perdem todas as forças. Exortamos urgentemente ao povo de Deus
a não se envolverem nesse cativeiro filosófico. Submetamos nossa
atividade filosófica, além de todo o nosso pensamento, às palavras que o
nosso Senhor nos disse; pois apenas essas palavras nos falam a verdade
que nos liberta (João 8.31-32).

10. CIÊNCIA

Nossas observações remanescentes podem ser mais curtas aqui, desde que
o delineamento básico deva agora ser mais claro. Obviamente, se o
esquema de Amsterdã rejeita a autoridade das Escrituras, no sentido
histórico, para a filosofia e teologia, não é provável aceitar essa autoridade
no caso das outras ciências. E embora os pensadores de Amsterdã falem
muito de uma "ciência dirigida pelas Escrituras", seus trabalhos científicos
aparentam ser muito mais dirigidos pela filosofia do que pelas Escrituras.
Como Shepherd pontuou,89 os pronunciamentos científicos dessa escola
são baseados em premissas filosóficas, ao invés de exegéticas: a evolução é
errada, não porque as Escrituras ensinam o contrário, mas porque a
evolução é baseada em pressupostos filosóficos opostos ao esquema de
Amsterdã.90 Negamos essa abordagem e clamamos aos cientistas a
submeterem suas hipóteses científicas, juntamente com seus pensamentos,
ao julgamento da Palavra escrita de Deus.

11. EDUCAÇÃO

89 Dooyeweerd, Twilight, p. 141.


90 Van Til in Geehan, E., ed., Jerusalem and Athens (Presbyterian and Reformed, 1971),
p. 108.
57
Membros da escola de Amsterdã sempre tiveram um forte interesse em
escolas cristãs, e hoje eles exercem uma influência considerável, p. ex., na
National Union of Christian Schools, essa influência foi fortemente sentida
em 1971, quando o Conselho Administrativo propôs uma nova base
doutrinária. A base anterior afirmava que a organização aceitava as
Escrituras tanto como explicada pelos Padrões Reformados, quanto como
sua autoridade final. A nova proposta incluiu (a) uma afirmação muito
ambígua da autoridade das Escrituras, em que a Bíblia foi mencionada
como uma das "formas" da Palavra de Deus (coordenada com Cristo e a
criação), sem menção a qualquer que seja as relações entre as várias
"formas" da Palavra; (b) eliminação de todas as referências aos Padrões
Reformados (exceto pela referência bastante vaga à doutrina das Escrituras
contida nesses padrões). O novo documento falhou, não apenas
comprometeu a organização [em ser fiel] às Escrituras e à Fé Reformada,
mas também comprometeu [a fidelidade] ao simples Evangelho do pecado
e do perdão: pois o próprio documento continha apenas umas poucas
referências às "implicações" do pecado e da redenção para o campo da
educação, e falhou inequivocamente em referir seus leitores a qualquer
outro documento em que definições autoritativas de pecado e redenção
podiam ser encontradas. Logo o documento continha nada mais do que
poderia ser afirmado por qualquer humanista liberal.

A mudança no compromisso para com as Escrituras é compreensível à luz


da discussão anterior. A eliminação do compromisso aos Padrões
Reformados vem de um dogma de Amsterdã que ainda não mencionamos,
a saber, o dogma de que um "credo eclesiástico" não pode ser usado como
base para uma instituição educacional. Esse dogma é baseado no sistema
de Dooyeweerd das modalidades: a igreja é uma instituição de fé, ao passo
que a escola é uma instituição analítica. Ambos pertencem a diferentes
esferas modais, e assim nunca podem compartilhar uma base em comum.
Em nossa visão, isso é insano. Por um lado, nós não podemos reconhecer a
escola e a igreja como tão diferentes ao ponto de não poderem
compartilhar uma base em comum. Uma perspectiva bíblica sobre o
assunto indica que há certas verdades que todos os cristãos devem
58
confessar. Pode ser que em adição à confissão cristã comum, uma escola
cristã possa desejar confessar verdades bíblicas de relevância particular
para o dever educacional; mas isso não implica que a escola e a igreja
possam confessar nada em comum. Por outro lado, os Padrões Reformados
não são "credos bíblicos" em um sentido estrito. A Confissão de
Westminster, a Confissão Belga, o Catecismo de Heidelberg, etc. são
simplesmente sumários da mensagem redentiva das Escrituras. Não estão
preocupados com detalhes do governo eclesiástico, rituais litúrgicos, etc.
Como as Escrituras propriamente ditas, se endereçam ao coração do
homem, não para alguma área estritamente definida da vida humana.
Portanto é completamente apropriado que uma escola cristã, assim como
uma igreja cristã, deva confessar os padrões históricos da Fé Reformada.

Todavia, estamos felizes em dizer que, posteriormente em 1971, o


Conselho Administrativo do N. U. C. S. revogou a sua posição sobre esse
assunto, e recomendou que a base da organização seja as Escrituras do
Antigo e Novo Testamento, conforme explicadas nos Padrões Reformados.
Ainda estamos certos de que os aderentes da filosofia de Amsterdã não se
agradarão com tal formulação, e trabalharão duro para diluir o
compromisso da N. U. C. S. para com as Escrituras e a Fé Reformada.
Clamamos a todos os cristãos preocupados com a educação cristã a
resistirem à influência de Amsterdã, uma influência que poderia destruir as
defesas das escolas cristãs contra o humanismo secular que tanto permeia
as escolas públicas atualmente.

12. IGREJA E SOCIEDADE

A filosofia de Amsterdã faz uma distinção acentuada entre a igreja como a


"instituição" e a igreja como o "corpo visível de Cristo". Essa distinção não
é a mesma da distinção teológica entre a igreja visível e a invisível. Antes,
na visão de Amsterdã, tanto "instituição", quanto "corpo visível de Cristo",
são entidades visíveis. A última é uma categoria mais ampla, manifestando
a si mesma em múltiplas instituições das quais a "instituição da igreja" é
59
apenas uma delas. Algumas outras são: escolas cristãs, sindicatos cristãos,
partidos políticos cristãos, etc. Portanto, nessa visão, a escola cristã é tão
corpo de Cristo quanto é a igreja local.91

Não negamos que escolas cristãs e outras instituições sejam legítimas e


importantes; mas devemos questionar a legitimidade da distinção entre a
instituição da igreja e o corpo visível de Cristo. Não encontramos isso nas
Escrituras. Efésios capítulo 4 fala do "corpo", e explica que esse corpo
cresce por meio dos dons que Deus tem dado a cada membro. No topo
dessa lista de dons temos os "apóstolos", "profetas", "evangelistas",
"pastores'' e "mestres". Esses são os homens que Deus designou "com
vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço,
para a edificação do corpo de Cristo" (v. 12). 92 Nessa passagem os
apóstolos, profetas, evangelistas, e pastores-mestres são os líderes e
edificadores, não meramente da "instituição da igreja", mas do próprio
"corpo de Cristo". Essa passagem desconhece qualquer distinção entre
ambos. Os administradores da igreja institucional são os administradores
do corpo de Cristo. Os administradores de um são encarregados de
supervisionar o outro. Esse é o padrão bíblico regular: no Novo
Testamento a "Igreja" é essa "organização" comandada por Deus através
dos seus presbíteros (elders) e diáconos, onde o culto a Deus em oração,
pregação, sacramento e ofertas é contínuo. O Novo Testamento desconhece
outra forma visível da "Igreja". A distinção de Amsterdã é pura
especulação.

Escolas cristãs e outras organizações, sem dúvida, manifestam a "unidade


do corpo de Cristo" de várias formas. Cristãos que são "um em Cristo"
demonstrarão seu amor em todas as áreas da vida. Paulo, no final da carta
aos Efésios, aponta para esse fato quando dá instruções em relação à
família (Ef. 5.22-6.4) e à relação senhor-servo (6.5-9). Esses pontos,
todavia, não fazem a escola, família ou os negócios serem formas visíveis
do corpo de Cristo coordenadas com a igreja institucional. No Novo
Testamento a igreja institucional é o corpo visível de Cristo.
91 Ibid., p. 112ss.
92 Ibid., p. 121.
60

Isso não quer dizer que todas as organizações cristãs devem ser
eclesiasticamente controladas. A igreja institucional, na verdade, deve
aplicar a palavra de Deus a todas as áreas da vida humana, e deve chamar
essas "organizações cristãs" a prestarem contas, se andarem em direções
antibíblicas. Mas a igreja institucional não é chamada por Deus para
controlar escolas, sindicatos, governos. Quando concedemos tal
"independência" a essas organizações, todavia, não precisamos ao mesmo
tempo concedê-los um status de "corpo visível de Cristo".

13. EVANGELISMO

A filosofia de Amsterdã não cessa a sua afirmação de que escolas,


sindicatos, partidos políticos, etc. podem ser instituições visíveis do "corpo
de Cristo". Essa asserção é parte de um conceito mais amplo que devemos
considerar agora.

Conforme vimos acima (seção 7), a filosofia de Amsterdã alega ter


descoberto muitas leis divinas, ou normas, além daquelas dadas pelas
Escrituras. Há normas estéticas, históricas (ex.: "alguém não pode construir
uma casa do século XVII no século XX"), etc. Quebrar qualquer dessas
leis, nessa visão, é pecar contra Deus. Essa concepção, na verdade,
expande o conceito de pecado para além daquele que é geralmente
encontrado entre os cristãos reformados. Mas a filosofia de Amsterdã
amplia ainda mais. Desde que o coração do homem é o "ponto de
concentração" de todo o cosmo temporal, diz Dooyeweerd, a queda do
homem no pecado "implicou a apostasia de todo o mundo temporal". 93

93 N. B. pelas expressões "abre uma brecha para" e "ameaça" estamos fazendo uma
qualificação importante que temos também feito no texto. Não estamos dizendo que
Dooyeweerd ou qualquer um desses filósofos querem ensinar a ideia de "Deus
desconhecido" ou a Cadeia de Ser grega. Nem estamos dizendo que eles explicitamente
ensinam tais doutrinas. Mas estamos dizendo que eles falham em se guardarem contra
tais doutrinas adequadamente, e mais, que tais doutrinas podem ainda serem derivadas do
esquema de Amsterdã sob algumas interpretações de suas terminologias ambíguas.
61
Logo não apenas o homem, mas todo o mundo é de alguma forma
envolvido no pecado: rochas, árvores, rios; e especialmente as entidades
corporativas humanas como famílias, escolas, governo, etc.

Se, então, o pecado se estende a todas essas entidades, logo a redenção


também. E se a redenção também, conforme o argumento prossegue, logo
o evangelismo vai junto. Isso quer dizer que o evangelismo não deve ser
meramente a pregação das boas novas aos indivíduos; também deve incluir
a reestruturação das instituições sociais. Deve ainda envolver o "subjugar a
terra" mencionado no "mandado cultural" de Gênesis 1.28, desde que deve
ser incluído a remoção dos efeitos do pecado na criação. E Colossenses
1.20 não diz que Cristo [veio para que] "reconciliasse consigo mesmo
todas as coisas"?

Cremos, todavia, que a filosofia de Amsterdã tem falhado aqui em fazer


certas distinções cruciais. Sem dúvida o pecado do homem afeta toda a
criação; as Escrituras dizem [isso] muitas vezes e de várias maneiras. Mas
há uma diferença importante entre o pecado em si mesmo e os efeitos do
pecado. Pecado é uma categoria exclusivamente pessoal. Apenas uma
pessoa pode pecar. Apenas uma pessoa pode desobedecer a lei de Deus;
apenas uma pessoa pode odiar o seu Criador; apenas uma pessoa pode se
rebelar contra o seu Senhor. Uma árvore pode ser afetada pelo pecado, mas
não pode pecar. Cardos e espinhos podem arruinar um jardim como um
juízo divino por causa do pecado humano, mas esses cardos e espinhos não
são pecadores.94 O mesmo é verdade para as instituições sociais. Um
sindicato pode ser afetado pelos pecados de seus membros; mas o sindicato
não pode ser um pecador.

Assim como o pecado é uma categoria exclusivamente pessoal, a fé e o


arrependimento também são. Uma árvore ou uma rocha não podem se

94 Steen, como temos notado no texto, é um membro da escola de Amsterdã, e sua


posição exibe um número de fraquezas que temos descrito neste livreto. Essa dissertação
em particular, todavia, é basicamente uma crítica a algumas ideias de Dooyeweerd,
portanto o listamos no tópico "Trabalhos Críticos ao Movimento".
62
arrepender; apenas uma pessoa pode. Um sindicato ou escola cristã não
pode crer em Cristo; apenas pessoas podem.

Sustentamos, portanto, que o evangelismo também é uma categoria


exclusivamente pessoal; pois o evangelismo é essencialmente o chamado
para que as pessoas se arrependam de seus pecados e creiam em Cristo.
Sem sombra de dúvidas, "redenção", em um sentido amplo, inclui outros
elementos além do evangelismo. O Novo Testamento, todavia, põe toda a
sua ênfase sobre o exortar as pessoas à fé em Cristo. As buscas culturais
comuns, de acordo com 1° Coríntios 9, por exemplo, devem tomar uma
posição secundária em relação à pregação do Evangelho, por causa da
urgência da condição humana e, mais basicamente, por causa de uma
prioridade divinamente ordenada.

É muito perigoso, cremos, expandir demasiadamente os conceitos de


"pecado", "arrependimento", "fé" e "evangelismo" de tal forma que o seu
foco humano seja perdido. Se "pecado", por exemplo, se torna algo menos
do que desobediência pessoal, ódio, rebelião; se é um tipo de desordem
geral no mundo; então não é o que as Escrituras dizem o que é. Na
linguagem de Cornelius van Til, pecado é "ético", e não "metafísico". É
uma atitude pessoal do coração, não meramente uma fraqueza da
constituição. Se "pecado" e os outros termos citados são expandidos para
incluir todo o universo, então o Evangelho de Cristo se perderá em [mero]
palavreado. Cremos que há ao menos uma tendência nessa direção na
filosofia de Amsterdã.

14. APOLOGÉTICA

Os filósofos de Amsterdã não afirmam serem apologetas; ainda que a


filosofia de Amsterdã esteja constantemente em diálogo com as ideologias
não-cristãs em sua tarefa de "evangelizar" todos os aspectos da vida
humana. É importante, todavia, para nós perguntarmos como os pensadores
de Amsterdã abordam os não-cristãos. Quais as regras fundamentais para o
63
"diálogo"? Qual, se houver, "terreno comum" é pressuposto? Essas são as
questões que são geralmente questionadas em conexão com a apologética.

Conforme mencionamos anteriormente, o Prof. Cornelius van Til por


vários anos tem sido considerado por muitos estar em ligação com a escola
de Amsterdã. Na verdade, Van Til apoiou o movimento de várias formas,
endossando muito do trabalho de Dooyeweerd, Vollenhoven e outros.
Durante os últimos anos, todavia, Van Til se tornou muito mais crítico do
movimento de Amsterdã. Parte dessa mudança tem sido devido à
emergência dos "jovens radicais" dentro do movimento tais como Arnold
de Graaff e Hendrik Mart. Mas parte disso também foi resultado da
releitura mais próxima dos escritos de Dooyeweerd. Naturalmente, desde
que Van Til é um professor de apologética, suas críticas se concentram na
área da apologética. A principal questão é: Dooyeweerd proclamou
claramente ao descrente de que nenhum raciocínio ou filosofia é possível à
parte do pressuposto do Deus das Escrituras?

Van Til crê que não. O "método transcendental" de Dooyeweerd,


especialmente aquele que Dooyeweerd "aguçou" em seus escritos mais
tardios, rejeitou todas as críticas meramente "transcendentais" ou
"dogmáticas" da filosofia não-cristã. Crítica "transcendente" é uma crítica
que meramente mostra que a filosofia sob consideração conflita com o
Cristianismo. A crítica "transcendental", por outro lado, é uma "inquirição
crítica às condições universalmente válidas, que sozinho tornam o
pensamento teórico possível, e que são requeridas pela própria estrutura
imanente desse pensamento."95

O que Dooyeweerd encontra nessa estrutura?

As antinomias que resultam do pensamento teórico oriundas da


desconsideração da natureza irredutível dos modos fundamentais da

95 N. T. No original não consta o segundo parêntese, o tradutor crê que foi um erro de
digitação.
64
experiência mostram que há um estado de coisas estrutural em
nossa experiência que não pode ser negligenciado impunemente.

Esse estado de coisas pode fornecer uma base comum para toda a
discussão filosófica, uma vez que são dados transcendentais e,
como tais, têm validade geral para toda filosofia.96

Dooyeweerd parece assumir, todavia, que esse "estado de coisas" são nada
menos do que a realidade do Deus triúno das Escrituras. Introduzir Deus
nesse estágio do argumento seria, na visão de Dooyeweerd, uma forma de
crítica "transcedente", uma forma de dogmatismo. Pelo contrário, devemos
mostrar primeiro ao filósofo não-cristão que o pensamento teórico
pressupõe a experiência ingênua e o tempo cósmico; em segundo lugar
devemos mostrá-lo que tudo isso pressupõe a existência de um ego que
transcende o tempo; e em terceiro lugar devemos mostrar que esse ego, em
si mesmo, pressupõe algo além de si mesmo, a saber, "uma origem". É
nessa terceira etapa que o confronto entre os motivos-base bíblicos e não-
bíblicos ocorre. Van Til responde:

Minha contenção contra isso é, Dr. Dooyeweerd, que essa


confrontação deve ser trazida [já] na primeira etapa, e que se não é
trazida na primeira etapa, não poderá ser trazida apropriadamente
na terceira. Mas dizer isso equivale a dizer que há apenas uma
etapa, ou melhor, que não há etapa alguma.97

O ponto de Van Til é que Dooyeweerd, pelo seu esquema de três etapas,
leva o filósofo não-cristão a crer que alguém pode raciocinar sobre a
existência do tempo cósmico e do ego supratemporal sem pressupor o Deus
das Escrituras. E mais, Dooyeweerd, ainda na terceira etapa, apenas insiste
que o descrente reconheça a existência de "uma" origem, "um" fim último

96 Ibid., p. 13ss., cf. p. 84. Dooyeweerd não quer dizer que conceitos pré-teóricos não
têm qualquer relação com os aspectos modais abstratos, pois na próxima sentença ele
descobre que o segundo está "implícito" no primeiro.
97 Ibid., p. 14; cf. p. 84.
65
― alguém que não necessita ser o verdadeiro Deus! Em outras palavras,
Dooyeweerd nunca desafiou seriamente o filósofo descrente a aceitar o
Deus das Escrituras. Ele constantemente assume que o descrente é capaz
de raciocinar perfeitamente bem sem assumir [esse Deus]. Logo
Dooyeweerd concede o que ele alega desafiar, a saber, a autonomia do
pensamento teórico, ou melhor: Dooyeweerd desafia a independência do
pensamento teórico da experiência ingênua, do ego supratemporal e da
origem última; mas ele não desafia a autonomia que é muito mais
significante ― a pretensa autonomia do homem pecador contra o
verdadeiro Deus vivo!

Van Til também fornece críticas a assuntos que já temos discutido, tais
como o caráter desprovido de conteúdo "conceitual" dos movitos-base
transcendentais dooyeweerdianos98 e o ego supratemporal como a "esfera
central dos acontecimentos".99 Por agora estamos satisfeitos em endossar a
crítica básica de Van Til do posicionamento face-a-face de Dooyeweerd
para com o filósofo não-cristão. As Escrituras não permitem uma esfera
"neutra" no qual podemos raciocinar nossas conclusões filosóficas sem
referência a Deus. Nas Escrituras todos os fatos confrontam o homem
diretamente com Deus, pois todos os fatos são o que são por causa do
plano de Deus. Sugerir que um incrédulo possa examinar certos estados de
coisas sem considerar a relação desses fatos com Deus é conceder [ao
incrédulo] toda a questão do cristão desde o início.

Mas o que mais poderíamos esperar de um filósofo que tem também


comprometido os ensinos bíblicos sobre muitos outros assuntos?! Essa
filosofia está completamente saturada de tentadas autonomias!

98 N. T. No original: "Then why should they say that we must be eternal to have an idea
of eternity?"
99 N. T. No original: "Or is it something wholly distinct from all factual knowledge,
theoretical and otherwise?"
66
15. CONCLUSÕES

Cremos que agora temos substanciado completamente a nossa asserção


inicial de que o movimento de Amsterdã é (1) cheio de falta de clareza e
argumentos pobres, e (2) não-bíblico em muitos pontos cruciais. Deixe-nos
agora sumarizar os principais pontos nessas 14 seções:

1. Esse movimento é importante e deve ser avaliado mesmo por aqueles


que não são especialistas em filosofia.

2. Elementos genuinamente bíblicos nessa filosofia dão-lhe um forte apelo


aos cristãos reformados.

3. Mesmo assim, a filosofia é tanto intelectualmente quanto


doutrinariamente deficiente.

4. A distinção "acentuada" entre a experiência ingênua e o pensamento


teórico não é clara em sua definição, baseando sua persuasão sobre
metáforas não interpretadas.

5. A limitação de Dooyeweerd da ciência ao mundo da experiência


temporal repousa sobre uma base não substancial, e abre uma brecha
para100 o conceito kantiano do "Deus desconhecido".

6. O esquema metafísico básico de Dooyeweerd, esferas modais → ego


supratemporal → Deus, é precariamente argumentado e ameaça100 tornar

100 N. T. Segundo a Wikipédia: "A fortiori é o início de uma expressão latina — a


fortiori ratione — que significa "por causa de uma razão mais forte", ou seja, "com muito
mais razão". Indica que uma conclusão deverá ser necessariamente aceita, já que pela
lógica ela é mais verdadeira que outra considerada como tal anteriormente. Um raciocínio
é a fortiori quando contém certos enunciados que se supõem reforçarem a verdade da
proposição que se tenta demonstrar. Traduz-se mais ou menos como 'se aceitamos a
verdade daquilo, então com muito mais razão temos de aceitar a verdade disto'."
Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/A_fortiori>. Visualizado em 12/11/2020.
67
tanto Deus quanto o homem aspectos correlativos de uma escala de ser em
comum.

7. O conceito de Amsterdã de lei obscurece bastante a relação entre Deus e


o mundo, desencoraja uma humildade filosófica apropriada, e compromete
a suficiência das Escrituras

8. Alguns membros dessa escola põem uma forte dicotomia entre o texto
das Escrituras e a Palavra de Deus. Eles fazem das Escrituras nada mais do
que uma aplicação da lei natural a uma esfera da vida humana para uma
cultura particular e para um período da história.

9. Essa escola de pensamento absolve o filósofo de qualquer


responsabilidade para com o conteúdo verbal das Escrituras, e dá ao
filósofo uma autoridade virtualmente ilimitada sobre o reino do
conhecimento teórico.

10. Esse movimento também previne qualquer crítica baseada na exegese


bíblica às teorias científicas.

11. A influência desse movimento na área da educação cristã tem sido


nociva em muitos aspectos importantes.

12. A distinção de Amsterdã entre o "instituto da igreja" e o "corpo visível


de Cristo" não possui qualquer fundamento bíblico.

13. O conceito de Amsterdã de evangelismo ameaça jogar por água abaixo


o verdadeiro conteúdo do Evangelho.

14. Dooyeweerd falha em confrontar os filósofos incrédulos com a falência


total de sua posição.

Essas críticas são sérias, e não os fazemos suavemente. Reconhecemos que


esse movimento tem muitos apoiadores na Orthodox Presbyterian Church e
muita influência em outras igrejas e organizações cristãs. Consideramos ser
68
muito importante que os cristãos em nosso presbitério fiquem informados
em relação a esse movimento, e que se posicionem firmemente contra suas
ênfases antibíblicas. Estamos convencidos de que se as metas da filosofia
de Amsterdã prevalecerem em nossos círculos, a Fé Reformada como
temos conhecido desaparecerá completamente desses círculos. As boas
coisas dessa filosofia não são peculiares a ela; têm sido sustentadas por
Calvino, Kuyper, e muitos outros reformados. Os elementos distintivos da
filosofia de Amsterdã, esses que o distinguem dos outros pensamentos
reformados, descobrimos ser quase inteiramente nocivos.

Nossa denominação tem sido por muito tempo conhecida pela sua devoção
à pureza doutrinária. Chegou a hora de falarmos sobre as noções
antibíblicas aqui descritas. É muito fácil para nós confinar nossa
preocupação doutrinária a esses movimentos que não têm influência em
nossos círculos. Quando um movimento desse tipo se aproxima da nossa
casa, é aí que a pureza doutrinária exige coragem. Portanto recomendamos
que os presbitérios emitam um aviso oficial contra as tendências
antibíblicas do movimento de Amsterdã que analisamos nesse livreto, e
que os ministros e presbíteros (elders) sejam encorajados pelo presbitério a
estudar esses assuntos suficientemente para educar o seu povo acerca dos
perigos envolvidos.
69

BIBLIOGRAFIA

I. Trabalhos Representantes do Movimento Filosófico de Amsterdã

DeGraaff, A., Seerveld, C., Understanding the Scriptures. Hamilton,


Ontario: Guardian Press, 1968.

Dooyeweerd, H., A New Critique of Theoretical Thought. Philadelphia:


Presbyterian and Reformed, 1953. 4 vols.

___., “Cornelius Van Til and the Transcendental Critique of Theoretical


Thought” In Geehan, E. R., ed., Jerusalem and Athens. Lugar de
publicação não localizado: Presbyterian and Reformed, 1971.

___., In the Twilight of Western Thought. Nutley, N.J.: Craig Press, 1960.

Hart, H., The Challenge of Our Age. Hamilton, Ontario: Guardian Press,
1968.

Knudsen, R. D., “Progressive and Regressive Tendencies in Christian


Apologetics.” In Geehan, E. R., ed. op. cit. (veja Dooyeweerd).

Mekkes, J. P. A., “Knowing” In Ibid.

Olthuis, J., et al., Out of Concern for the Church. Toronto: Wedge, 1970.

Schrotenboer, P., “The Bible, Word of Power” International Reformed


Bulletin, XI, 32-33 (Jan., Apr., 1968). A discussão continua na edição XII,
38 (July, 1969).

Spier, J. M., An Introduction to Christian Philosophy. Philadelphia:


Presbyterian and Reformed, 1954.
70
___., What Is Calvinistic Philosophy? Grand Rapids: Eerdmans, 1953.

Taylor, E. L. H., The Christian Philosophy of Law, Politics and the State.
Nutley: Craig Press, 1966.

___., Reformation or Revolution. Nutley: Craig Press, 1970.

II. Trabalhos Críticos ao Movimento

Jellema, D., “The Philosophy of Vollenhoven and Dooyeweerd” Calvin


Forum, XIX (1954), 169-172, 192-194. A discussão prossegue no volume
seguinte.

Nash, R., Dooyeweerd and the Amsterdam Philosophy. Grand Rapids:


Zondervan, 1962.

Shepherd, N., “The Doctrine of Scripture in the Dooyeweerdian


Philosophy of the Cosmonomic Idea” The Christian Reformed Outlook,
XXI, 2, 3 (Feb., Mar., 1971), 18-21 de XXI, 2; 20-23 de XXI, 3.

____., “God's Word of Power” In International Reformed Bulletin, XII, 38


(July, 1969), 17-20. (Resposta ao artigo de Schrotenboer listado acima,
com repostas posteriores de Schotenboer).

Steen, P., The Idea of Religious Transcendence in the Philosophy of


Herman Dooyeweerd ― With Reference to its Significance for Reformed
Theology (Dissertação de Doutorado em Teologia não publicado,
Westminster Theological Seminary, 1970).101

Van Til, C., "Replies to Dooyeweerd and Knudsen" In Geehan, E. R., ed.,
op.cit. (vide Dooyeweerd acima).

101 N. T. No original: "If Dooyeweerd wishes to redefine the word, of course, that is His
privilege"
71
Young, W., “Herman Dooyeweerd” In Hughes, P., ed., Creative Minds in
Contemporary Theology. Grand Rapids: Eerdmans, 1966.
72

Sobre o autor102

JOHN FRAME serviu como J.D. Trimble


Chair de Teologia e Filosofia Sistemática no
Reformed Theological Seminary, Orlando, até
se aposentar em 2018. O Dr. Frame se
destacou durante 31 anos no corpo docente do
Westminster Theological Seminary, e foi um
membro fundador do WTS California. Ele é
mais conhecido por seus escritos prolíficos,
mas também é um músico talentoso e crítico
de mídia perspicaz que está profundamente
comprometido com o trabalho de ministério e
treinamento de pastores.103

102 Para uma biografia completa: <https://frame-poythress.org/about/john-frame-full-


bio/>. Visualizado em 30/01/2021.
103 Disponível em <https://frame-poythress.org/about/>. Visualizado em 30/01/2021.

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