Você está na página 1de 4

HERMAN DOOYEWEERD — UM ESBOÇO BIOGRÁFICO[36] Sr.

Presidente, Membros do
Conselho, Corpo Docente, Funcionários e Estudantes, Distintos convidados, Senhoras e
Senhores: Muitos de vós estais familiarizados com o trabalho do falecido Herman
Dooyeweerd, quem ele foi, o que defendia, o que escreveu e qual impacto teve em seu
próprio país e em outros lugares ao redor do mundo. Por outro lado, suspeito que há muitos
outros aqui esta noite que, a respeito de Dooyeweerd, sabem pouco além de nome, do fato de
que viveu nos Países Baixos, de que esteve envolvido no desenvolvimento de uma filosofia que
soa bastante complexa, chamada “a filosofia da ideia cosmonômica” e que, por vezes, é
chamada de filosofia “calvinista” ou filosofia “cristã”. Aqueles nesta audiência que pertencem
ao segundo grupo podem muito bem estar se perguntando uma série de questões. Por
exemplo, quem foi esse homem, o que ele de fato fez, por que ele é aparentemente
considerado tão importante para que tenha, aqui na América do Norte, um centro acadêmico
com seu nome; o que esse centro busca realizar e por que se encontra no Redeemer College?
Também: o que é a “The Herman Dooyeweerd Foundation” e qual é seu papel em tudo isso?
Os demais palestrantes desta noite abordarão a maior parte dessas questões. Contudo, para
oferecer ao menos um pano de fundo para aqueles que não estão tão familiarizados com o
trabalho de Dooyeweerd, creio que, antes de irmos noite adentro, seria útil se eu usasse o
tempo que tenho à minha disposição para oferecer um breve esboço biográfico de
Dooyeweerd, conforme visto a partir de minha perspectiva pessoal como seu filho mais velho.
Herman Dooyeweerd foi um filósofo neerlandês que alcançou estatura internacional. É
considerado por muitos um dos mais proeminentes filósofos — alguns julgam o mais
proeminente — que os Países Baixos produziram desde uma longa linha de eminentes
pensadores que remontam há trezentos anos, incluindo nomes como Erasmo e Spinoza. Tanto
a Encyclopaedia Britannica quanto a Encyclopaedia Filosofia italiana têm seções com
referências ao pensamento filosófico de Dooyeweerd. Alguns de seus escritos já foram
traduzidos e publicados em inglês. Alguns foram originalmente escritos em francês ou em
alemão pelo próprio Dooyeweerd, ao passo que outros foram traduzidos, após sua morte, para
o coreano, japonês e espanhol. No mês passado, por exemplo, recebi pelos correios uma obra
recém-publicada, vinda da Itália, feita a partir de uma tradução do francês para o italiano, de
uma série de cinco palestras que Dooyeweerd ministrou na França nos anos de 1950. Assim,
estamos começando a ver traduções de traduções. A obra de Dooyeweerd é considerada uma
grande contribuição para o desenvolvimento de uma nova filosofia cristã sistemática que, em
seu escopo, na abordagem e profundidade inteiramente acadêmicas de sua percepção
filosófica não precisam absolutamente ocupar uma posição inferior em relação a filosofias
amplamente conhecidas e academicamente aclamadas. Contudo, Dooyeweerd não aspirava
ser um filósofo. No último mês, completou-se cem anos desde seu nascimento em Amsterdã.
Ele foi criado numa família convictamente calvinista. Seu pai era um escriturário no
Departamento Neerlandês de Tributação e um consultor tributário particular, em seu tempo
livre. Era um homem de muitas leituras, tinha um grande respeito pelo trabalho acadêmico,
profunda afinidade com as artes, especialmente a poesia, e era um seguidor devotado do
renomado pregador, escritor e estadista Dr. Abraham Kuyper e do movimento de renovação
cristã que este último fundou. Todos esses valores, incluindo muitos daqueles tão
eloquentemente articulado pelo Dr. Kuyper, ele transmitiu a seu filho e a seus demais filhos
que o amavam e o respeitavam imensamente. O jovem Dooyeweerd recebeu uma educação
secundária clássica numa escola cristã que ficava bem próxima da Universidade Livre. Embora
sua mãe o tivesse encorajado a tornar-se um corretor, a ideia não atraía Dooyeweerd. Pelo
contrário, ele queria estudar, mas não sabia exatamente o quê. Era profundamente
interessado pela literatura, mas, ao fim, contentou-se com o direito. Ele matriculou-se na
Universidade Livre, que havia sido estabelecida em 1880 pelo Dr. Kuyper e outros como uma
universidade cristã reformada. Ali Dooyeweerd obteve um doutorado em direito quando tinha
22 anos. Sua tese fora intitulada “Os Ministros do Gabinete sob o Direito Constitucional
Neerlandês”. Recebeu resenhas positivas na imprensa da época e permanece sendo uma
referência padrão sobre o tema até hoje. O primeiro emprego de Dooyeweerd foi como
inspetor fiscal assistente na província da Frísia, seguido por uma lotação durante um ano como
assistente de um conselheiro municipal na antiga cidade universitária de Leiden. Menos de um
ano depois, convidaram-no a participar no Ministério do Trabalho do governo nacional, onde
se tornou vice-chefe do Departamento de Saúde Pública em Haia. Durante seus poucos anos
no serviço público, Dooyeweerd dispendeu grande parte de seu tempo livre aprofundando-se
nos estudos em casa, particularmente na filosofia do direito. Ocasionalmente, deparava-se
com uma grande divergência, quando não confusão, entre os filósofos do direito, com cada um
defendendo uma abordagem diferente (e amiúde conflitante) em relação à lei, nenhuma das
quais ele conseguia reconciliar com suas próprias crenças religiosas que lhe calavam
profundamente. Isso convenceu Dooyeweerd da necessidade de uma filosofia abrangente e
pensada com profundidade, que apresentaria uma descrição mais credível do mundo em que
vivemos e das estruturas e interação dos vários aspectos daquilo que sentimos, vemos e
experienciamos ao nosso redor. Acima de tudo, deveria fornecer um entendimento e
fundamento genuinamente cristãos e biblicamente fundados. Em 1922, Dooyeweerd teve sua
chance de desenvolver seu pensamento filosófico a sério e aplicá-lo num sentido bastante
prático. Na época, o partido político que o Dr. Kuyper havia fundado e conduzido desde o
princípio era um dos principais partidos do governo. Não muito depois do falecimento do Dr.
Kuyper, os três homens a quem foi legada a liderança do partido perceberam que era
necessário criar um novo instituto de pesquisa acadêmica — ou think tank, na designação
atual — para aconselhar o partido em questões fundamentais que deveriam governar as
futuras propostas de políticas por ele promovidas. Dooyeweerd, que contava seus 27 anos, foi
avaliado e selecionado, dentre outros seis candidatos muito mais velhos, pelo então Ministro
da Defesa e pelo Primeiro Ministro — ambos também representavam a liderança veterana do
partido — para tornar-se o primeiro diretor do novo instituto de pesquisa do partido. Ao
aceitar essa posição, Dooyeweerd insistira que lhe dessem tempo suficiente para desenvolver
os sólidos fundamentos filosóficos que, segundo acreditava, deveriam governar qualquer
partido cristão e o Estado, a sociedade como um todo, bem como seus cidadãos individuais.
Foi durante seus cinco anos no instituto de pesquisa — que ainda existe hoje e é conhecido
como Instituto Kuyper — que suas ideias filosóficas começaram a tomar forma definitiva. Ele
estava para fazer sua mudança final de carreira cinco anos mais tarde, quando, com apenas 32
anos, aceitou uma oferta para tornar-se professor na Universidade Livre [de Amsterdã], não na
faculdade de filosofia, mas na de direito. Ali permaneceu pelos 40 anos seguintes ensinando
enciclopédia do direito, direito neerlandês antigo e direito constitucional neerlandês, até
aposentar-se em 1965, aos 70 anos de idade. Seus anos na Universidade Livre foram
agitados. Foi lá que, nos anos 1930, durante a Grande Depressão, terminou seu trabalho mais
proeminente, sua magnum opus com mais de 2200 páginas, apresentando sua filosofia
sistemática. Em 1953, uma edição em inglês foi publicada na América do Norte, contendo
revisões e adições extensas que refletiam o desenvolvimento posterior de seu pensamento
durante esse período intermediário entre as edições. Esse período, é claro, inclui os cinco
longos e tenebrosos anos da 2ª Guerra Mundial e a ocupação e supressão brutais da Holanda
por parte dos nazistas. Quando a guerra terminou e toda a energia e atenção públicas e
concentram na reconstrução e reedificação da sociedade e suas instituições políticas (e de
outras naturezas), Dooyeweerd tomou parte ativamente nos debates promovidos para a
consecução desses objetivos. Ele usou sua posição como editor chefe num jornal semanal para
publicar seus pontos de vista. Por mais de trinta anos trabalhou também como editor chefe de
um periódico internacional de filosofia cristã reformada, uma publicação da Associação da
Filosofia Reformacional que Dooyeweerd e seu cunhado, o professor Vollenhoven, fundaram
em meados da década de 1930 e que, até hoje, é subscrita por centenas de pessoas ao longo
de dezenas de países. Ele contribuiu com vários artigos e editoriais próprios, além de editar as
contribuições de outros autores e de publicar resenhas de novos livros. Ao todo, incluindo seus
livros mais importantes, seus escritos compreendem mais de 200 títulos. Ora, para completar
o retrato, alguns comentários sobre a vida pessoal de Dooyeweerd: ❊ Era, como dizem, “bem
casado”. Sua esposa era uma mulher amável e impressionante (e não é só porque sou eu
quem diz, pois é claro que sou suspeito!). Eles tiveram nove filhos. Para sua tristeza, nenhum
deles foi para a vida acadêmica, muito menos seguiram, ainda que remotamente, suas
pegadas. ❊ Ele amava arte, especialmente música e poesia. Era um talentoso pianista amador
e praticava diariamente no piano que tinha em seu escritório. Seus compositores favoritos
eram Chopin e Tchaikovsky. Ele também gostava de improvisar por conta própria. ❊ Ele
gostava de histórias de detetive e muitas vezes era visto saindo de fininho de uma festa de
aniversário ou de uma reunião em casa, indo para o andar de cima, a fim de escutar ao rádio,
quando seu programa de mistério ou detetivesco favorito estava para começar. ❊ Ele se
tornou um grande e ávido fã de futebol, primeiramente por meio das partidas transmitidas
pela rádio, e posteriormente pelas transmitidas pela televisão, especialmente quando o
famoso time Ajax, de Amsterdã, estava jogando. ❊ Ele podia desfrutar um pouco de jazz e
pareceu não se importar quando, anos mais tarde, seu caçula, que é um músico profissional de
jazz (baixo e composição) passou a ser mais prontamente identificado pelo público com o
nome Dooyeweerd do que o próprio pai. ❊ Ele rigorosamente praticava uma hora de exercício
físico pesado toda manhã, mesmo nos períodos de suas viagens. ❊ Ele tinha, em sua casa,
uma imensa biblioteca pessoal para o trabalho, a qual ocupava cada parede, do chão ao teto,
nos dois amplos quartos que constituíam seu escritório, expandindo-se também para os
corredores daquele andar e dos de cima. Ele afirmava ter lido cada um dos volumes. Não havia
razão para duvidar dele, já que sempre parecia saber exatamente onde encontrar uma citação
específica de um livro particular. ❊ Ele era uma pessoa profundamente religiosa e frequentava
fielmente a igreja. Contudo, sua assiduidade na igreja não lhe sustava a ocasional crítica
ferrenha a um ministro particular ou a seu sermão, ao chegar à casa depois do culto. ❊ Ele
atuava em diversas organizações, incluindo o Hospital Juliana em Amsterdã e a organização
para as Prisões e Reabilitação de Prisioneiros, que seria o equivalente neerlandês da Sociedade
John Howard. Ele foi presidente de ambas as organizações por muitos anos. Espero que esses
meus comentários tenham sido úteis, até aqui, para dar-vos uma ideia de algumas realizações
de Dooyeweerd e alguns aspectos pessoais de sua vida. Contudo, deveria mencionar mais uma
coisa: suas viagens para o exterior que o levaram a turnês de palestras na Suíça, África do Sul,
França, Estados Unidos da América e Canadá. Sua turnê norte-americana, em particular, foi
longa e bastante árdua. Acompanhada por sua esposa, ele esteve em atividade por muitos
meses contínuos e falou em inúmeras universidades e faculdades importantes de uma costa à
outra, tanto nos Estados Unidos quanto no Canadá. As palestras e inumeráveis eventos
menores e reuniões sociais criaram um seguimento de pessoas neste continente. Muitos deles
ainda se lembram, de tempos em tempos, do primeiro encontro com Dooyeweerd, que era,
segundo todos os relatos, um orador dinâmico. A viagem, embora tenha sido um sucesso em
muitos aspectos, exigiu dele um imenso esforço físico do qual jamais se recuperou
plenamente. A morte prematura de sua esposa também o afetou profundamente. De meu
longo “esboço em miniatura”, pode ser que tenhais a impressão de que me esforcei em
colocar Dooyeweerd em um tipo de “pedestal”. Se assim pareceu, meu pai teria desaprovado
fortemente. Pelo contrário, espero que tenha sido capaz de mostrar que Dooyeweerd foi um
homem talentoso, mas, em muitos aspectos, uma pessoa bastante pé no chão. Em nossa
família, o amávamos profundamente e temos — cremos que justificadamente — orgulho dele.
Lembramo-nos dele como alguém que era bastante humilde perante Deus e sempre se
esforçava para apresentar-se ao serviço dele. Poucos dias antes de sua morte, testemunhei
pessoalmente como ele lutava com o fato de que, a seus próprios olhos, ele não havia feito
tudo para o qual sentia que Deus lhe havia chamado. Ora, antes de concluir minhas
observações, gostaria de aproveitar esta oportunidade, falando como Presidente da The
Herman Dooyeweerd Foundation e em nome da família Dooyeweerd, e, por este meio,
expressar publicamente minha estima ao Redeemer College, especialmente seu novo
Presidente, Dr. Justin Cooper, ao seu antigo Presidente, Reverendo Henry De Bolster, aos
membros da Diretoria, aos membros e ex-membros do Comitê Diretor e à faculdade e
funcionários que ajudaram que o Dooyeweerd Center for Christian Philosophy se tornasse uma
realidade. Obrigado.

Dooyeweerd, Herman. Filosofia cristã e o sentido da história (Portuguese Edition) (pp. 160-
167). Editora Monergismo. Edição do Kindle.

Você também pode gostar