Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Instituto de Artes
História da Arte IV
Atividade Final
Outro elemento muito representado era a mesa de abate, que, por sua
vez, não estava mencionada em nenhum relato dos viajantes ou jesuítas. Nessa
figura, pode-se ver um homem urinando, uma mulher cuidando de seu filho, outro
homem arrumando seu arco e flecha e uma mesa de abate ao fundo [fig. 2],
dessa forma, a antropofagia parece uma atividade corriqueira. O uso da mesa
por outro lado, já que não se faz presente nos relatos dos que aqui viajaram o
Brasil, surge a partir das crenças católicas. As pessoas se debruçando sobre a
mesa com o corpo de quem será posteriormente devorado remete a iconografia
da profanação da hóstia, na qual o corpo e o sangue de cristo estariam expostos
aos seus seguidores durante a missa em forma de pão e vinho. Contudo, é
considerado sacrilégio a repartição da hóstia, assim como imitações das práticas
de eucaristia. Dessa forma ao pôr um corpo a mesa e despedaça-lo seria uma
forma de demonstrar uma paródia e um sacrilégio por parte da cultura indígena
de mutilar a “hóstia” ao imitar a eucaristia, como explica BERBARA (2021, p.
158):
A composição dessa imagem, assim como de outras tantas
representando o mesmo tema, constituía-se como uma representação
eucarística “em negativo”, uma imitação diabólica, um plágio. As
semelhanças entre as imagens da profanação sobre o altar e o
verdadeiro rito eucarístico – durante o qual se revive o sacrifício de
Cristo – revelariam, nesse sentido, a intromissão satânica, a
contrafação do sagrado. Hóstias profanadas são o elemento central na
construção das assim chamadas missas negras, rituais miméticos e
muitas vezes paródicos que “inverteriam” a missa católica.
Logo, o uso da iconografia mesa de abate, que nunca foi mencionada, nada é
do que mais uma justificativa para a “demonização” dos indígenas, mais imagens
que entram no imaginário europeu de que se existia criaturas canibais nas
américas.
Figura 2. Ritual com a mesa de abate. Amerigo Vespucci, Diss büchlin sagt ... (Straßburg, 1509). Fonte:
BERBARA, M. Imagens do canibalismo na primeira modernidade: a mesa de abate entre América, Ásia e
Europa.
Esses rituais aconteciam de fato no continente, mas era um ritual de
guerra, não muito longe da realidade europeia que tem sua sociedade
estabelecida por guerras. Entretanto, mais da metade dos mapas feitos entre
1500 e 1650 representavam os indígenas fazendo rituais antropofágicos, como
“símbolo” da América (Davies, 2016: 65, 109), quando poderiam ser
representadas danças culturais ou algum outro ritual pacífico, é demonstrado
então um outro interesse europeu ao utilizar essa iconografia [fig. 3]. Os
moquéns e o canibalismo viraram uma metonímia para o continente americano,
quando nem todos os ameríndios praticavam a antropofagia, os mapas
começaram a representar como elemento principal esses rituais, além deles não
serem nunca deixados de ser retratados ao fundo de outras paisagens que
estariam estampando a América [fig. 4]. Essas representações acabam por
mostrar uma espécie de “ar” cotidiano, além de forçarem uma visão negativa
acerca dos rituais os comparando com as “missas negras”, o que nos revela que
as intenções dessas gravuras são, exatamente, denunciar a barbaridade
afastamento da Igreja e justificar a condição de “sub-humanidade” dos
indígenas, mostrando suas “selvagerias”.
ANDRADE, Rafael Augusto Castells de. Uma selva entre o céu e o inferno:
representações iconográficas e literárias dos índios do Brasil pelos portugueses
nos séculos XVI e XVII. 2013. 166 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura
Contemporânea) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.
BERBARA, M. Imagens do canibalismo na primeira modernidade: a mesa de
abate entre América, Ásia e Europa. MODOS: Revista de História da Arte,
Campinas, SP, v. 5, n. 3, p.141-162, 2021. DOI: 10.20396/modos.v5i3.8666207.
Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/8666207
DAVIES, Surekha. Renaissance Ethnography and the Invention of the Human.
New Worlds, Maps and Monsters. Cambridge: Cambridge University Press,
2016.
LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora,
1967.
SILVA, E. da. Europeus e Indígenas na América Portuguesa: Perspectivas de
Interculturalidade. E- Revista de Estudos Interculturais, [S. l.], n. 4, 2021. DOI:
10.34630/erei.vi4.3950. Disponível em: https://parc.ipp.pt/index.php/e-
rei/article/view/3950. Acesso em: 12 abr. 2022
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,1974.