Você está na página 1de 7

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Instituto de Artes

Bacharelado em História da Arte

História da Arte IV
Atividade Final

A ICONOGRAFIA EUROPEIA DOS RITOS ANTROPOFÁGICOS DOS


INDÍGENAS NA AMÉRICA

Luiza Ramalho Lima1

Com a chegada das primeiras caravanas europeias na América, iniciou-


se os primeiros contatos dos europeus com os indígenas. A partir dos
documentos descritivos, tais quais como cartas, livros e gravuras,
principalmente, pode-se perceber o choque da cultura europeia católica com a
cultura indígena e seus rituais, logo, não tão bem recebidos pelos exploradores
e viajantes.

A esperança e a ansiedade do imaginário europeu estavam instauradas


na “descoberta do Novo Mundo”, após a crise da Peste Negra, a Europa estava
preparada para o apocalipse, logo, no Novo Mundo poderia-se imaginar tanto o
purgatório quanto o paraíso.
As crenças milenaristas e a angustiante espera pelo anticristo
multiplicavam-se, começando a haver, de forma contundente, uma
invasão demoníaca permeada por crenças que o pecado estava a
dominar o mundo dos homens. (AMARAL, 2008, p.3)
Ao chegarem ao território americano e se depararem com a grande fauna e flora,
muitos homens descreveram a “ilha”2 como algo próximo do paraíso, mas ainda
existia o temor por essa “nova humanidade”, os indígenas que aqui viviam e
como eram seus costumes. Ao entrar em contato com essa nova cultura, houve
uma certa aversão exatamente pelos costumes cristãos à essas práticas pagãs.
As primeiras impressões dessa comunicação com os indígenas foram
documentadas na literatura, tendo surgido muitas gravuras a partir dos escritos.

1 Turma 1 de História da Arte IV, Matrícula: 202010247211


2 Ainda não se tinha conhecimento do tamanho do continente, logo se era referenciado como
ilha.
Com as descrições dos exploradores e viajantes ao continente,
cartógrafos, pintores, gravuristas procuravam representar os ditos que liam em
suas obras que remetiam as Américas, em especial Theodor De Bry que ilustrou
diversas cenas inspirado pelos relatos dos viajantes Hans Staden, Jean De Lery
e Américo Vespúcio.
Os relatos desses exploradores acabavam por descrever os rituais
antropofágicos da aldeia Tupinambá, os quais se comia a carne do inimigo de
guerra derrotado, como forma de “vingança” como descrito exatamente por
Vespúcio, que foi o primeiro a descrever esse tipo de prática. Vespúcio descreve
os indígenas como “animais racionais”, que vivem em guerra constante contra
seus inimigos, atrelando logo a antropofagia à vingança e não a uma alimentação
cotidiana. Logo, se diferencia os indígenas descritos por Vespúcio de canibais,
pois canibais se alimentam de carne humana. Os rituais antropofágicos dos
indígenas chocaram os povos europeus e, com sua forte cultura católica, assistir
e entender esses rituais os faziam ligar os indígenas ao diabo e ao maligno,
afastando o “Novo Mundo” de uma terra de Deus.
As imagens produzidas por De Bry mostrariam a cultura e os hábitos dos
povos americanos, mas pelas descrições amedrontadoras de Jean De Lery,
mostram uma visão muito mais violenta do que a realidade dos indígenas.
Primeiramente, em sua gravura [fig.1] em que mostra a preparação da carne
humana, as técnicas de corte estão erradas, pois se assemelham a como os
europeus tratavam suas carnes de animais, podendo esse ser um erro acidental
ou feito com o propósito de retratar a bestialidade do povo; porém, o gravurista
retrata ainda assim como descrito corretamente a função das mulheres nos
rituais, que participam ativamente do processo; a cabeça e o interior da vítima
são postos a ferver enquanto os membros vão para o moquém, uma espécie de
grelha feita com madeira. Entretanto, os usos desses motivos iconográficos não
estavam restritos as descrições exatas dos viajantes, pois assim como defende
BERBARA (2021, p.147)
Embora o moquém, portanto, fosse um artefato central na cultura tupi,
a maneira como o artista o emprega revela sua intenção de criar uma
imagem exótica e apelativa – como se as aldeias estivessem
quotidianamente salpicadas por grelhas assando pessoas.
Figura 1. Preparação da carne humana para o consumo ritual. Theodor De Bry, 1592.
Fonte: AMARAL, Marília Perazzo Valadares do. O Conceito de Alteridade Atrelado à Evolução da
Representação Social do Índio no Brasil (Séculos XVI, XVII e XIX).

Outro elemento muito representado era a mesa de abate, que, por sua
vez, não estava mencionada em nenhum relato dos viajantes ou jesuítas. Nessa
figura, pode-se ver um homem urinando, uma mulher cuidando de seu filho, outro
homem arrumando seu arco e flecha e uma mesa de abate ao fundo [fig. 2],
dessa forma, a antropofagia parece uma atividade corriqueira. O uso da mesa
por outro lado, já que não se faz presente nos relatos dos que aqui viajaram o
Brasil, surge a partir das crenças católicas. As pessoas se debruçando sobre a
mesa com o corpo de quem será posteriormente devorado remete a iconografia
da profanação da hóstia, na qual o corpo e o sangue de cristo estariam expostos
aos seus seguidores durante a missa em forma de pão e vinho. Contudo, é
considerado sacrilégio a repartição da hóstia, assim como imitações das práticas
de eucaristia. Dessa forma ao pôr um corpo a mesa e despedaça-lo seria uma
forma de demonstrar uma paródia e um sacrilégio por parte da cultura indígena
de mutilar a “hóstia” ao imitar a eucaristia, como explica BERBARA (2021, p.
158):
A composição dessa imagem, assim como de outras tantas
representando o mesmo tema, constituía-se como uma representação
eucarística “em negativo”, uma imitação diabólica, um plágio. As
semelhanças entre as imagens da profanação sobre o altar e o
verdadeiro rito eucarístico – durante o qual se revive o sacrifício de
Cristo – revelariam, nesse sentido, a intromissão satânica, a
contrafação do sagrado. Hóstias profanadas são o elemento central na
construção das assim chamadas missas negras, rituais miméticos e
muitas vezes paródicos que “inverteriam” a missa católica.
Logo, o uso da iconografia mesa de abate, que nunca foi mencionada, nada é
do que mais uma justificativa para a “demonização” dos indígenas, mais imagens
que entram no imaginário europeu de que se existia criaturas canibais nas
américas.

Figura 2. Ritual com a mesa de abate. Amerigo Vespucci, Diss büchlin sagt ... (Straßburg, 1509). Fonte:
BERBARA, M. Imagens do canibalismo na primeira modernidade: a mesa de abate entre América, Ásia e
Europa.
Esses rituais aconteciam de fato no continente, mas era um ritual de
guerra, não muito longe da realidade europeia que tem sua sociedade
estabelecida por guerras. Entretanto, mais da metade dos mapas feitos entre
1500 e 1650 representavam os indígenas fazendo rituais antropofágicos, como
“símbolo” da América (Davies, 2016: 65, 109), quando poderiam ser
representadas danças culturais ou algum outro ritual pacífico, é demonstrado
então um outro interesse europeu ao utilizar essa iconografia [fig. 3]. Os
moquéns e o canibalismo viraram uma metonímia para o continente americano,
quando nem todos os ameríndios praticavam a antropofagia, os mapas
começaram a representar como elemento principal esses rituais, além deles não
serem nunca deixados de ser retratados ao fundo de outras paisagens que
estariam estampando a América [fig. 4]. Essas representações acabam por
mostrar uma espécie de “ar” cotidiano, além de forçarem uma visão negativa
acerca dos rituais os comparando com as “missas negras”, o que nos revela que
as intenções dessas gravuras são, exatamente, denunciar a barbaridade
afastamento da Igreja e justificar a condição de “sub-humanidade” dos
indígenas, mostrando suas “selvagerias”.

Figura 3. Mapa representando os indígenas brasileiros. Sebastian Münster, Typus cosmographicus


universalis. In: HUTTLICH, Johann (ed.). Geographica universalis. Basileia, 1532. Fonte: BERBARA, M.
Imagens do canibalismo na primeira modernidade: a mesa de abate entre América, Ásia e Europa
Figura 4. Américo Vespúcio ‘descobrindo’ a América, ao fundo indígenas assando carne humana.
Johannes Stradanus (Jan van der Straet), “The Discovery of America,” c. 1587–89. Fonte:
faculty.fiu.edu/~harveyb/clsyl.htm

Assim, “o papel dos colonizadores era levar a civilização aos bárbaros


transformando aqueles semi-humanos ou não-humanos em cristãos civilizados.
Mais uma vez justificava-se a colonização e a destruição bárbara das culturas
indígenas” (AMARAL, 2008, p.5). A justificativa dos colonizadores se apresenta:
com gravuras tão chocantes que representavam os tais costumes como
corriqueiros, mostrando a violência indígena e seus rituais que iam contra os
ditos da Bíblia, logo, foi possível praticar os atos genocidas e coloniais sem
oposições do tal “mundo civilizado”. Montou-se a narrativa de que os indígenas
eram selvagens que precisavam da ajuda do homem branco, e aos que não eram
“salvos” não se hesitaria à descarta-los, assim se escreveu a história com
sangue, ignorância e simples manipulação por imagens.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Marília Perazzo Valadares do. O Conceito de Alteridade Atrelado à
Evolução da Representação Social do Índio no Brasil (Séculos XVI, XVII e XIX).
21 f. Universidade Federal de Pernambuco.
AML 4213. Fiu.edu. Disponível em: <https://faculty.fiu.edu/~harveyb/clsyl.htm>. Acesso
em: 28 abr. 2022.

ANDRADE, Rafael Augusto Castells de. Uma selva entre o céu e o inferno:
representações iconográficas e literárias dos índios do Brasil pelos portugueses
nos séculos XVI e XVII. 2013. 166 f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura
Contemporânea) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2013.
BERBARA, M. Imagens do canibalismo na primeira modernidade: a mesa de
abate entre América, Ásia e Europa. MODOS: Revista de História da Arte,
Campinas, SP, v. 5, n. 3, p.141-162, 2021. DOI: 10.20396/modos.v5i3.8666207.
Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/mod/article/view/8666207
DAVIES, Surekha. Renaissance Ethnography and the Invention of the Human.
New Worlds, Maps and Monsters. Cambridge: Cambridge University Press,
2016.
LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora,
1967.
SILVA, E. da. Europeus e Indígenas na América Portuguesa: Perspectivas de
Interculturalidade. E- Revista de Estudos Interculturais, [S. l.], n. 4, 2021. DOI:
10.34630/erei.vi4.3950. Disponível em: https://parc.ipp.pt/index.php/e-
rei/article/view/3950. Acesso em: 12 abr. 2022
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,1974.

Você também pode gostar