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A Questão de Onésimo

Irmão Antônio Severo Junior.

Filemon v. 8-20

Amados, é sempre um prazer estar em comunhão com os irmãos no Dia


do Senhor. Muito embora sejamos pouco numerosos, cumprimos o mandamento
de Deus e, muito certamente, Cristo está no meio de nós. Sem mais delongas,
vamos à análise do texto.

A carta de Filemon foi escrita por Paulo em prisão em Roma, cerca de 60


d.C., para Filemon, irmão em Cristo e dono de escravos em Colossos. Onésimo,
um escravo fugitivo, provavelmente buscou a Paulo por proteção, quando se
tornou cristão. O propósito principal da carta, então, é a intercessão por
Onésimo. O argumento principal de Paulo foi a relação fraternal entre Paulo e
Filemon, mas também a unidade cristã.

Começamos no verso 8, com o termo “ordenar”. Paulo tinha a autoridade


apostólica para dar ordens a Filemon, para que aceitasse a Onésimo. Porém,
ele toma outra abordagem: o convence pelo amor, não pelo dever. Ainda no
verso 8 temos o termo “convém”. Curiosamente, tal termo indica que tomar uma
atitude diferente do conselho paulino seria, de fato, um pecado.

Indo para o verso 9, vemos Paulo se descrevendo como “o velho”. No


Grego, presbytês é usado para homens na faixa dos 50 aos 56 anos de idade. A
idade de Paulo, em uma época tão distante da medicina e da qualidade de vida
modernas, explicaria a sua dependência da ajuda de Onésimo. Mais adiante no
mesmo verso encontramos “prisioneiro de Cristo”, que é denotado também no
verso 1; apesar de Paulo estar preso, ele não se considerava prisioneiro do
Estado, mas de Cristo, confinado devido aos seus esforços por espalhar o
evangelho. Mas, mesmo preso, ele continua sua missão.

Nos versos 9 e 10 temos uma sequência que tem como núcleo o termo
“solicito”. Paulo queria que Filemon escolhesse fazer a coisa certa, ao invés de
ser compelido; isso se dá muito provavelmente pela consideração de Paulo por
Filemon, pois este encontraria galardão da parte de Deus por conta de sua
decisão amorosa.

No verso 10 Paulo chama a Onésimo de “meu filho” — Paulo considerava


Onésimo como um filho espiritual. Provavelmente Onésimo fora levado a fé por
Paulo. Timóteo e Tito também foram descritos como filhos. Então, finalmente, o
nome de Onésimo, o escravo fujão, aparece no texto.

É bom que pontuemos como se dava a escravidão nesse contexto. A


escravidão na Grécia e Roma antigas era diferente da escravidão praticada pelos
americanos e europeus nos séculos XV ao XIX. As pessoas no século I se
vendiam a si mesmas para pagar dívidas ou para subir na vida social —
essencialmente usando a escravidão como sistema de crédito. Embora a
escravidão não fosse de fato desejada, os escravos podiam ter posições de
autoridade e possuir propriedades. E, de fato, nem toda escravidão era
permanente, e muitos escravos conquistaram sua liberdade. Paulo sempre
exortava para que enxerguemos a escravidão dentro da perspectiva cristã: os
escravos deveriam servir a seus senhores como se estivessem servindo a Cristo;
os mestres devem ter em mente que eles também servem a um mestre — Deus
— e, assim, devem tratar seus escravos com justiça. Vale ressaltar que, em
Colossenses (que provavelmente fora entregue na mesma ocasião que
Filemon), Deus declara, através de Paulo, que todos somos iguais diante de
Cristo.

Voltando ao texto, no verso 11, Paulo faz um jogo de palavras usando


“útil” e “inútil”. Onésimo, no original, significa “útil”. Antes de Cristo, Onésimo se
tornou inútil em sua rebeldia, mas, em Cristo, se tornou útil tanto a Paulo quanto
a Filemon. E, de fato, quantos de nós não éramos inúteis antes de Cristo? E
ainda, depois de conhecermos a Cristo, ou, antes, depois de Cristo nos
conhecer, quantas vezes não nos fazemos inúteis em nossa rebeldia? Quantas
vezes não cedemos ao pecado ou aos nossos desejos? Glória a Deus,
entretanto, por Sua infinita misericórdia!

A seguir, no verso 12, Paulo diz “eu to envio de volta”. Aqui há grande
risco para Onésimo. Na época, um escravo fugitivo que fosse pego poderia ser
surrado, posto para trabalhar de maneira tão intensa que sua expectativa de vida
diminuiria, ou até mesmo ser executado. Mas Paulo apela dizendo “o meu
próprio coração”. No Grego, isso indica o núcleo de todos os sentimentos. Paulo
deixa claro que ele próprio sofreria caso algo acontecesse a Onésimo.

No verso 13 Paulo indica “no teu lugar”. Paulo quer que Filemon saiba que
Onésimo tomou parte e o ajudou em seu ministério. No texto em Grego, o
comentário se dá de forma a entender que Filemon mandou a Onésimo para
ajudar a Paulo.

Nos versos de 13 a 14, Paulo sinaliza que gostaria que Onésimo ficasse
para servir em lugar de Filemon, porém, não o quis manter sem o consentimento
de Onésimo. Paulo solicitou não apenas que Filemon perdoasse a Onésimo, mas
o enviasse de volta para servir a Paulo. Da mesma forma, o fato de Paulo indicar
que queria o consentimento de Filemon indica que Paulo reconhecia que o
destino de Onésimo estaria nas mãos de Filemon, por tal motivo Paulo não
mantém Onésimo ao seu lado. Aí está, portanto, o motivo da volta de Onésimo
para Filemon.

Ainda no verso 14, Paulo indica que não gostaria que Filemon o fizesse
por obrigação. Aqui, o sentido é o mesmo dos versos 9 ao 10. A decisão, de fato,
deveria ser tomada com liberdade de juízo.

No verso 15, a expressão “a fim de que” denota que Paulo não desculpava
o crime de Onésimo, mas podia ver a providência Divina até em seu pecado.
Isso, de fato, poderia ser análogo à crucificação: é inegável que se tratou de um
pecado, talvez até o mais hediondo que já se viu; Deus, porém, o foi glorificado
nesse ato.

E, finalmente, no verso 16 se encontra o coração da mensagem: o fato de


que o evangelho transforma relações. Ambos (Onésimo e Filemon) estavam,
agora, sob o jugo da mesma família. Se Filemon abraçasse isso, ele
testemunharia o poder transformador e reconciliador do evangelho. Ainda no
mesmo verso, há o termo “irmão”. No Grego, adelphos, é usado no Novo
Testamento como referência aos que creem em Jesus. Enfatiza, assim, a
unidade e igualdade que temos em Deus mediante Cristo. Curiosamente, Paulo
utiliza o mesmo termo outras duas vezes em referência a Filemon (v. 7, 20), um
sinal de igualdade entre servo e mestre.
No verso 17, o termo koinõnos (companheiro) indica a partilha de Filemon
no ministério. Se trata de uma reiteração do pedido para que recebesse a
Onésimo.

Temos, em seguida, uma linda mensagem no verso 18, onde Paulo diz
para colocar tudo em sua própria conta. Paulo reconhece que Onésimo
provavelmente devia a Filemon; portanto, Paulo se coloca na posição de credor
de Onésimo. Isso, de fato, é seguir o exemplo de Cristo, que se colocou na
posição de Credor pelos pecados dos eleitos. Que façamos como Paulo disse
em outro momento, e sigamos seu exemplo, imitando-o, assim como ele imita a
Cristo.

No verso 19 vemos um Paulo um pouco mais duro. Ele diz que Filemon
deve até a si mesmo. Provavelmente fora Paulo que trouxe a Filemon para a fé,
o que, por conseguinte, implica que Filemon deve a Paulo sua vida eterna. Paulo
então transforma essa graça em dívida em favor de Onésimo, o que denota, de
fato, grande amor. Apesar de Filemon não ter como pagar, ele pode “reanimar”
a Paulo. Esse termo que aparece no verso 20 se trata, provavelmente, de um
jogo sonoro, pois, no Grego, o som é semelhante a “Onésimo”. Isso é uma
possível indicação da vontade de que Filemon mande Onésimo de volta.

Gostaria, agora, de proceder a algumas pontuações:

O “que convém” (verso 8) não é tão claro. O termo em Grego é anekon,


que indica algo como “adequado, certo”. É usado também em Colossenses 3:18,
em relação as esposas serem sujeitas aos maridos como convém (hos aneken).
Também é usado em Efésios 5:4 de forma negativa, sobre palavras que “não
convém” (ouk aneken). Lohse vai argumentar que isso se trata do dever cristão
de Filemon em contraste com uma moral geral, já Dunn vai dizer que Paulo apela
para o dever de Filemon em Cristo, ou seja, suas responsabilidades e deveres,
que foram transformados depois de se tornar um cristão. No todo, os acadêmicos
recentes concordam que Paulo apela para que Filemon, por sua vontade,
cumpra sua obrigação como cristão.

Também há a questão no papel de Deus na separação. Nos versos 15 a


16 aparece o termo Grego chorizo (afastado), em forma passiva, o que implica
na ação Divina, ou um esforço de Paulo para evitar a menção da fuga. Wright
defende a primeira visão, e diz que a linguagem de Paulo, especialmente nos
termos tacha (talvez) e hina (para que), diz, de forma oblíqua, que Deus quis que
Onésimo fugisse para achar Cristo por si e voltasse para Filemon como irmão
em Cristo. Já Vicent advoga pela segunda e dá ênfase na tática de Paulo em
evitar descrever a fuga de maneira a retratá-lo como simples escravo fujão; ainda
assim admite a provisão Divina, apesar de se dar em nível secundário.

E, por fim, há a questão do verso 18, sobre lançar tudo na conta de Paulo.
Isso se dá, a princípio, para que Filemon e Onésimo tenham uma relação de
irmandade; assim, Paulo assumiria a dívida de Onésimo. A construção dessa
oração se dá em condicional de primeira classe, o que indicaria que Paulo está
ciente do erro de Onésimo. Barth e Blanke, porém, argumentam que essa
construção indica uma situação hipotética. Em ambos os casos, porém,
estaríamos falando de que tipo de dívida? Há, de fato, muitas visões, mas há um
padrão em torno de duas visões: a primeira seria de que Onésimo roubou a
Filemon para cobrir os gastos da fuga; já a segunda diz que Onésimo devia os
custos pelo trabalho que ele deixou de fazer. De qualquer forma, ambas as
visões são especulativas, tanto pela falta de clareza no texto, quanto pela falta
de informações sobre como essa questão era lidada na antiguidade.

Gostaria, então, de proceder para as aplicações do texto:

Em primeiro lugar, apesar de faltar a clássica explicação teológica paulina,


o evangelho é a base de argumentação. Em Gálatas 3:28 nós lemos “Dessarte,
não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem
mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” Em Colossenses que, como
fora dito anteriormente, provavelmente fora entregue junto a carta de Filemon,
no capítulo 3, versículo 11, temos: “no qual não pode haver grego nem judeu,
circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo
em todos.”

Em segundo lugar, temos a crença de Paulo no poder reconciliatório do


evangelho, ao ponto de sacrificar a si mesmo em favor da união dos irmãos.
Sigamos, então, o exemplo de Paulo.

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