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A Planeswalker’s Guide to Alara

Alara Unbroken

Path of the Planeswalker

Path of the Planeswalker, volume 2


Fansub
Tradução:
Alysteran
Revisão:
Luizards of the Coast e
Academia Tolariana
RETURNO A RAVNICA
O Secretista, Parte Um
©2012 Wizards of the Coast LLC.

Todos os personagens deste livro são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou falecidas, é pura
coincidência.

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Arte da capa de: Jaime Jones

eISBN: 978-0-7869-6455-0

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v3.1
Índice

BATENDO EM PORTAS ........................................................................................ 6


DENTRO DA MENTE DE FOGO.......................................................................... 17
ESCULPINDO MENTES ...................................................................................... 23
O ALCANCE DA LEI ............................................................................................. 27
A MULTIDÃO BARULHENTA ............................................................................... 35
O CAMINHO SUBTERRÂNEO ............................................................................. 41
SOBRE O AUTOR ................................................................................................ 51
BATENDO EM PORTAS

Jace Beleren segurou uma folha de pergaminho perto da janela. Espremida entre
torres muito mais altas do Décimo Distrito de Ravnica, a construção só tinha alguns
andares acima do nível da rua, mas uma luz noturna gélida refletia-se nos tijolos e
nas pedras através do vidro. Manchado de tinta e marcado magicamente com seu
selo de mago exclusivo, o pergaminho estava coberto de anotações sobre o código
que ele tinha encontrado. Sua caligrafia tinha uma aparência que ultimamente se
tornava cada vez menos sã. As paredes do santuário estavam cobertas de páginas
como essa. Jace se perguntou quando tinha lavado o cabelo pela última vez ou tido
uma noite completa de sono. Ele torceu para que o outro pesquisador, um homem
vedalkeano chamado Kavin, não tivesse percebido que ele estava ficando direto no
edifício que abrigava o santuário, dormindo apenas quando estava incapaz de
manter os olhos abertos por mais tempo, sem nem mesmo andar do lado de fora até
os mercados ou os vendedores de rua no distrito que o cercava. Sua cama tinha se
transformado em uma pilha de anotações, sua mobília eram os estranhos pedaços
de construções arquitetônicas coletados pelo Décimo, e seu principal alimento era a
ponta roída de sua caneta tinteiro.
A descoberta – a atual obsessão de Jace – tinha vindo gradualmente. Ele não a
reconhecera como um código quando a vira inicialmente, e na verdade não tinha
percebido mesmo nenhuma conexão até vê-la se manifestar algumas vezes pelo
distrito.
Ele quase passara reto por ela da primeira vez. Não era incomum ver um grupo
de magos da guilda Izzet desenterrando uma camada de paralelepípedos da rua. A
guilda deles era encarregada da manutenção de grande parte da infraestrutura
mágica da cidade, e quando aconteceu de Jace passar enquanto eles trabalhavam
ao longo de uma estrada do Décimo, ele ignorou as atividades deles. Mas Jace viu
que os magos Izzet tinham desmontado um antigo pedaço de pedra do meio-fio, e,
conforme eles trabalhavam arduamente em uma extensão de tubos de vapor
expostos e conduítes elementais, ele percebeu que o pedaço de pedra jogado de
lado tinha um padrão entalhado no lado de baixo. Tinha sido desgastado pelo tempo
e estava semicoberto por teias de aranhas, mas Jace podia ver uma série de
marcas curvas ao longo de sua superfície, como uma procissão de parênteses
geometricamente perfeitos.
Jace achou curioso que tivessem tomado tanto cuidado ao entalhar um padrão na
superfície inferior das pedras, um lado que nem mesmo seria visível para quem
estivesse na rua. Mas não pensou nisso novamente até que o código aparecesse
em uma nova forma.
Um antigo e mal cuidado bairro do Décimo estava sendo escavado. Um dia Jace
parou e observou enquanto um ciclope corpulento com manoplas crepitantes de
mizzium demolia os restos de uma fábrica têxtil. O ciclope levantou grandes lajes de
pedra e as arremessou sobre um monte de escombros, provavelmente para abrir
espaço para um novo experimento Izzet. Jace viu que a pedra descartada fora
entalhada com uma sequência de triângulos.
Reconhecendo aquilo como um código, Jace omitiu os detalhes de Kavin, seu
companheiro de estudos e confidente, que fora de grande ajuda em encontrar
outras ocorrências daquele padrão geométrico, coletando entulho, mapeando a
localização de outros avistamentos e, ocasionalmente, dando cobertura a Jace
quando este se esgueirava em territórios de guilda restritos em busca de mais
peças do código. Mas Kavin era um homem lógico e prático – não era dado a
impulsos obsessivos. Se Jace demonstrasse o quanto esse código tinha tomado
cada momento de sua consciência enquanto estava acordado, Kavin abandonaria o
projeto.
Os olhos de Jace ardiam. Ele os apertou bem fechados por um momento e
esfregou as pálpebras. Eles tinham muitas amostras, mas nenhuma resposta. As
peças não se encaixavam. Havia regularidades e padrões nas formas sinuosas
gravadas nas pedras, mas nenhuma sequência, nenhuma mensagem. Algo estava
faltando.
Houve uma batida na porta no andar de baixo.

Em uma câmara esquecida do submundo, a muitas horas de caminhada abaixo


do nível das ruas, uma antiga parede de tijolos começou a brilhar. Relâmpagos
azuis dançaram ao longo das bordas dos tijolos. A argamassa velha começou a
soltar fumaça e chiar. A parede explodiu para dentro da câmara, os tijolos caindo
em um amontoado, deixando um buraco grosseiro de formato oval.
O planeswalker Ral Zarek passou pelo buraco que acabara de fazer. Poeira
dançava pelo ar úmido e com cheiro de decomposição enquanto os instrumentos
em sua manopla tilintavam e giravam, o mana remanescente de seu feitiço
cintilando para fora.
Ral estremeceu e colocou a mão sobre o nariz. Ele chutou um tijolo com a bota e
bufou. ―Ugh. Skreeg, me diga que este não é o lugar certo.‖
Um goblin vestido em armadura Izzet pulou para dentro da câmara, olhando ao
redor com as mãos entrelaçadas. Ele vasculhou a bolsa e retirou um dispositivo
Izzet de detecção de mana recém-construído e o balançou pela câmara.
―Sim!‖ Skreeg respondeu. ―As concentrações são mais altas aqui! Tem que ser
aqui.‖
Um grupo de magos Izzet seguiu Ral e Skreeg para dentro da câmara, onde
começaram a investigar os arredores com magias analíticas e dispositivos
alquímicos, iluminando o local conforme energias mágicas brilhavam através da
névoa úmida.
Ral andou pela câmara, empurrando cortinas de musgo de lado e pisando sobre
antiquíssimas colunas caídas. Ele se ajoelhou para investigar algo coberto por
raízes doentias. Ral ergueu uma gavinha coberta por musgo de uma protuberância
e recuou. A face cinzenta de uma caveira sorriu através da folhagem com alguns
dentes pontudos. Ral respirou fundo e deixou o impulso de luta ou fuga
desaparecer.
Ele se virou para os outros. ―Estamos prontos?‖ perguntou. ―Skreeg, a serpentina
de mana. Carregue-a logo.‖
Skreeg colocou uma escultura de bronze espiralado no chão. Os outros
pesquisadores magos Izzet se colocaram ao redor do dispositivo alquímico e
começaram a operá-lo com estardalhaço. Gemas carmesim e turquesa se
acenderam ao longo de sua extremidade e ele começou a fazer um zumbido baixo.
―Quase pronto, senhor,‖ o goblin disse.
―Quase? Acha que o Grande Mente de Fogo ficaria satisfeito com ‗quase‘?‖
―Lamento, meu colega, mas leva algum tempo para as serpentinas—‖
―Conecte a uma fonte mais forte,‖ Ral rebateu sem paciência. ―Se essa câmara
tem uma das linhas de força passando por ela, então deve ter uma fonte de mana
debaixo dela – uma fonte antiga, provavelmente há séculos sem ser usada.‖
―Realmente tem uma fonte profunda aqui,‖ disse uma dos outros magos Izzet,
com os olhos fechados.
―Mas as serpentinas vão sobreaquecer,‖ disse Skreeg. ―Elas vão se ligar
diretamente ao poço de mana. Esse tanto de força—‖
―Direcione todo o mana para mim,‖ disse Ral. ―Eu vou conseguir dizer
imediatamente se essa é a linha que nós deveríamos estar seguindo.‖
O som do bater das mandíbulas de insetos ecoou de um dos corredores antigos
que chegavam à câmara. Os magos Izzet congelaram.
―Quem está aí?‖ Ral perguntou em direção ao corredor.
Ele tentou enxergar o que havia lá, mas a luz dos instrumentos Izzet não
conseguia penetrar a escuridão. Houve o som de algo raspando, como uma casca
de ovo sendo passada em um pedaço de porcelana – e mais ruídos de mandíbulas
estalando, dessa vez acompanhados pelo som de passos. Muitos passos.
―Encerrem seus experimentos antinaturais,‖ sibilou uma voz vinda da escuridão.
―Deixem esse lugar. O Mestre de Guilda Jarad reivindica esse território para o
Enxame Golgari.‖
Um pequeno grupo de elfos e humanos pálidos com dreadlocks avançou para a
área iluminada. Pedaços de ossos e de sujeira trançados em seus cabelos
emaranhados retiniam baixinho. Suas armaduras quitinosas estavam cheias de
minúsculos insetos agitados que se moviam para dentro e para fora dos musgos
brilhantes que cresciam nas ombreiras – um local para o crescimento de fungos. Se
eram os próprios Golgari que produziam o ruído ou seus insetos, Ral não sabia
dizer. Alguns deles portavam espadas curtas, mas a maioria estava desarmada:
conjuradores de feitiços.
Aquela que falara, uma elfa, levantou um cajado retorcido. Ela mirou a ponta, que
era decorada com o crânio de uma ratazana, diretamente na direção de Ral Zarek.
―Você. Saia daqui agora.‖
Ral gesticulou indicando o que havia à sua volta. ―Isso não é nada além de um
túnel abandonado e em ruínas. Ninguém é dono desse lugar.‖
―Tudo o que a civilização descarta é nosso,‖ zombou a elfa Golgari.
―Bom, vocês vão ter que fugir de volta para qualquer que seja o buraco de onde
saíram. O dragão Niv-Mizzet reivindica essa área agora – e qualquer outro canto
abandonado que ele ache adequado para a Liga Izzet.‖
As queixas dos Golgari foram guturais e sem palavras. Ral pensou ter ouvido algo
que era quase um rosnado.
―Esse tipo de invasão teria sido ilegal de acordo com o Pacto das Guildas,‖ disse
a elfa.
―Bem, não tem um Pacto das Guildas agora, tem? Sumam daqui. O dragão não
gosta de esperar por suas descobertas.‖
A xamã elfa riu novamente, mas abaixou a cabeça e recuou. E, com ela, o resto
dos Golgari voltou às sombras. Houve um último som de chocalho quando a xamã
balançou seu cajado com a caveira de rato, então tudo ficou em silêncio.
Skreeg soltou um suspiro no silêncio. ―Que bom que acabou.‖
Assim que ele disse isso, formas escuras estremeceram e ganharam vida ao
redor da expedição Izzet: restos de esqueletos se sacudiram até ficarem de pé;
montes de lixo se transformaram em horrores apodrecidos; musgos em
decomposição se enrolaram em pedaços de ossos para se erguerem como criaturas
de muitas pernas, soltando gritos sombrios e brandindo garras maliciosas.
―Elfos de esgoto que moram na podridão,‖ Ral xingou. Ele virou para os outros
magos Izzet. ―O que estão esperando? Destruam eles!‖
Os Izzet se apressaram para conjurar magias, mas os zumbis Golgari feitos de
lixo se lançaram em direção a eles com uma velocidade desconcertante. O goblin
Skreeg uivou quando as garras de um zumbi o agarraram e o ergueram em direção
a uma boca monstruosa. Ral lançou um raio na criatura apodrecida, fazendo-a em
pedaços temporariamente. Skreeg caiu para a imundície do chão enquanto a
criatura morta-viva se regenerava, fazendo restos de teias de aranha se fundirem à
sua anatomia.
Ral agarrou os cabos de bronze do dispositivo experimental e tentou usá-los
como arma. Ele espetou um horror morto-vivo com um, mas o cabo carregado mal
chamuscou sua carne cinzenta. Ele poderia ter parado o coração de outra criatura,
mas é claro que o coração da besta necromântica – se é que ela tinha um – já
estava parado.
As coisas-zumbis atacaram em um enxame, se apertando em volta dos magos
como cordas. Ral ouviu gritos de seus colegas de guilda, e múltiplas gavinhas
começaram a se lançar em direção aos seus braços e pescoço.
―Se segurem em alguma coisa,‖ ele disse, e enfiou os cabos de mana direto em
sua manopla.
As pálpebras de Ral começaram a cintilar. Um vento que não tinha origem se
ergueu na câmara, e todos os pelos do corpo de Ral ficaram arrepiados. Enquanto
mãos zumbificadas o seguravam e começavam a arrastar seu corpo em direção à
horda zumbi, minúsculos arcos de energia de tempestade estalaram ao seu redor. O
ar mudou com energia hipercinética, e Ral se sentiu flutuar a alguns centímetros do
chão. Ele ouvia apenas o zumbido sussurrante da carga elétrica, como uma caldeira
superaquecida. Sua visão foi tomada por um branco crepitante conforme ele se
esforçava para absorver tanto mana quanto conseguia. Como um sol recém-
nascido, cada parte do corpo de Ral explodiu com poder. Tudo era barulho e luz, e
então tudo se tornou silêncio e escuridão. Ele não conseguia ouvir nada – ver nada.
Ele ouviu um estranho som de algo batendo, e depois de alguns momentos
percebeu que era seu coração sobrecarregado. A seguir, constatou que estava
respirando – evidência de que tinha sobrevivido de algum modo.
Alguém acendeu uma lâmpada incandescente. Ral viu objetos físicos novamente,
mas através de uma névoa espessa. A cena surgiu ao seu redor aos poucos. Ele
percebeu que a câmara estava coberta por uma nuvem de poeira e entulho
destruído pela explosão.
―Quem está ferido?‖ ele tossiu.
―Acho que estamos bem, senhor,‖ disse um mago Izzet, escurecido e
chamuscado, mas vivo.
―Graças a você,‖ disse Skreeg, surgindo da nuvem de pó.
Os mortos-vivos Golgari tinham sido obliterados, tendo recebido a carga do surto
de corrente elétrica. Pedaços de tijolos caíram do teto, expondo faixas de alvenaria
antiga.
Ral se sentiu mais vivo do que nunca antes. Seu coração estava batendo rápido
demais, e ele gostava disso.
―Skreeg,‖ disse Ral. ―As serpentinas de mana. Ligue-as novamente. Nós vamos
terminar esse experimento.‖
―Senhor?‖ disse um pesquisador Izzet.
―O que é?‖
O mago estava olhando para o teto, para um pedaço de rocha antiga exposto pela
explosão. ―Você vai querer dar uma olhada nisso.‖

Jace desceu as escadas para o andar principal e se aproximou da porta. Kavin


não teria batido, e ele não estava esperando nenhuma outra visita. Ele preparou um
feitiço para sentir a mente de quem quer que estivesse do lado de fora. Quando
detectou os pensamentos de sua velha amiga, abriu rapidamente a porta com tudo.
Emmara parecia tão jovem como sempre, mas ela era uma elfa, sua idade tendia
a não se mostrar. Emmara usava um vestido branco bordado com um padrão de
hera rasteira que se enrolava ao redor de suas mangas, ramificando-se em ricas
linhas marrons nos punhos que lembravam as raízes de grandes árvores. Jace
sabia que ela detinha uma sabedoria e um poder silencioso que desmentiam sua
aparência juvenil.
―Boa noite, velho amigo,‖ ela disse com um meio-sorriso.
―Emmara! Há quanto tempo. Entre.‖
Assim que disse isso, ele se arrependeu. O santuário de Jace não era
exatamente adequado para visitantes. Assim que ela passou pela porta, ele
precisou guiá-la através dos escombros de sua pesquisa enquanto se desculpava.
Jace tirou do caminho algumas peças de pedra das construções e eles se sentaram
no chão perto de uma antiga lareira que não era usada, onde o carpete puído dava
lugar a uma ampla área para acender o fogo.
Emmara examinou o lugar. ―Você está envolvido com arqueologia?‖
―Acho que posso dizer que é um projeto novo. Um colega e eu estamos
estudando padrões em antigas obras de pedra. Eu tenho visto os mesmos padrões
usados em dezenas de locais diferentes ao redor do distrito. São entalhes
geométricos com elementos repetidos. Estou fascinado. Sabia que quase todas as
construções desta rua possuem pedras provenientes do mesmo local?‖
―Eu não sabia.‖ O rosto dela estava plácido, mas pelo modo como apertava as
mãos no colo, Jace soube que essa não era uma visita social.
―O que te traz de Ovitzia?‖
―Eu moro aqui agora, no Décimo,‖ disse Emmara. Ela ofereceu um pequeno
objeto a Jace, segurando-o delicadamente com os dedos: um broche de madeira no
formato de uma folha com veios intrincados. Era muito detalhado para ter sido
esculpido mesmo por um mestre artesão; ele devia ter sido moldado por magia.
―O que é isso?‖
―Um presente. Da minha mestra de guilda.‖
Jace pegou a frágil folha de madeira com as duas mãos. ―Mestra de guilda?‖ Ele
olhou o pequeno broche com forma de árvore no ombro dela. ―Você se juntou a uma
guilda?‖
―Eu retornei a ela. O Conclave Selesnya. Eu estava no Conclave há alguns anos –
na verdade, antes de você nascer, garoto humano. E agora que estão
reconstruindo, eles me chamaram de volta. Você deve ter visto como as guildas
voltaram com força.‖
―Para ser honesto, eu não tenho visto muito além deste edifício ultimamente,‖
Jace disse com um dar de ombros. Ele percebeu que provavelmente seus cabelos
estavam apontando para todas as direções, e que Emmara tinha aumentado
dramaticamente o contraste de limpeza com sua visita.
Emmara colocou toda sua atenção nele. ―Jace, o que você sabe sobre o Pacto
das Guildas?‖
Era uma pergunta delicada. Jace nunca tinha sido completamente honesto com
Emmara – ele nunca dissera que era um planeswalker, um mago capaz de viajar
entre planos de existência. A maior parte das pessoas não tinha ideia de que havia
planos além dos delas mesmas, e aqueles que estavam presos a um único plano
não gostavam de ouvir que o lar com o qual estavam familiarizados era apenas um
de uma gama potencialmente infinita de mundos.
Jace costumava manter sua natureza de planeswalker em segredo. Isso
significava que às vezes tinha que fingir um pouco, mostrando conhecimento
suficiente para se passar por um nativo, assim como em conversas iguais a esta.
Ele conhecia a história da cidade-mundo Ravnica apenas através do que tinha
coletado em sua pesquisa – e do que tinha visto nas mentes das outras pessoas.
Ele pensou em tentar bisbilhotar a mente de Emmara para ver se conseguia
aprender mais sobre o Pacto das Guildas. Sua especialidade mágica era um atalho,
mas às vezes era um atalho necessário. Porém, Emmara era uma maga habilidosa
por si só, e costumava ser capaz de detectar a magia mental dele quando Jace a
usava perto dela.
―Política nunca foi a matéria em que me saí melhor,‖ ele disse.
―Nós não deveríamos ficar surpresos por as guildas estarem se erguendo
novamente,‖ disse Emmara. ―As guildas são os pilares da história. A espinha dorsal
de toda nossa civilização por milhares de anos, e, independentemente do que
digam, o Pacto das Guildas foi o que as manteve unidas. Mas o Pacto das Guildas
se foi. Dissolvido. Não há mais uma execução mágica de nenhum dos tratados ou
leis. Os líderes de guilda não estão mais vinculados às restrições antigas.‖
Jace pensou naqueles que conhecera e que buscavam poder – Liliana, Tezzeret,
Nicol Bolas. Ele pensou em como eles sempre usavam seus poderes para
conseguir mais. ―Qualquer centro de poder testará seus limites.‖
Emmara assentiu. ―E sem esses limites...‖
―Você acha que eles tentarão ultrapassá-los.‖
Emmara olhou a frágil escultura em madeira nas mãos de Jace. ―Eles já
começaram a ultrapassá-los.‖
―Quem? Os Rakdos?‖ Jace supôs. Ele nunca entendera por que os ravnicanos
permitiram que um culto assassino venerador de um demônio permanecesse como
uma das dez guildas oficiais – isso simplesmente parecia perigoso demais. A teoria
corrente era de que a guilda Rakdos fornecia os requisitados serviços de
entretenimento de mutilação e perversão aos que possuíam riqueza e poder, e que
isso fora o suficiente para serem mantidos por perto.
―Não,‖ Emmara disse. ―Os Izzet. Magos Izzet têm feito incursões ilegais para
dentro do território de outras guildas.‖ A Liga Izzet – a mesma guilda dos
experimentadores mágicos que frequentemente estavam presentes quando Jace
descobrira artefatos de pedra gravados com o código.
―Mas isso não é um problema para os magos legistas? Os Azorius não deveriam
assegurar esses limites?‖
―Eles estão tentando. O Senado Azorius tem emitido embargos e decisões contra
os Izzet dia após dia, a pedido das outras guildas. Mas, sem o Pacto das Guildas,
os Azorius se tornaram burocratas sem poder para executar suas medidas. A
legislação deles é só um monte de palavras no papel. Niv-Mizzet não parece se
importar.‖
Niv-Mizzet era o mestre de guilda e fundador da Liga Izzet, um arquimago curioso
e profundamente engenhoso que também calhava de ser um dragão ancião. Se os
Izzet tinham um novo plano, com certeza Niv-Mizzet era sua origem.
―O que o dragão disse?‖
―Nada. O que quer que os Izzet estejam empreendendo, estão mantendo em
segredo.‖
―E você quer descobrir sobre o que é o projeto deles.‖ Você quer que eu descubra
sobre o que é, ele pensou.
―Trostani, minha mestra de guilda, acha que é urgente que os Izzet exponham o
que estão planejando. Mas se eles não cooperarem, as suspeitas crescerão entre
as guildas. As tensões aumentarão. Isso pode levar a conflitos que podem colocar
as guildas umas contra as outras.‖ Ela abriu as mãos e então as fechou novamente,
―Nós precisamos que os Izzet cooperem.‖
Jace se sentou novamente e respirou fundo, examinando o rosto de Emmara. Ela
estava tentando não suplicar pela ajuda dele, mas ele conseguia ver a urgência por
trás da expressão dela. Tinha algo em seu jeito que Jace nunca vira antes. Não era
medo. Emmara não se preocupava com nenhuma ameaça à sua própria segurança.
Ele percebeu que ela falava de uma obrigação – algo que Emmara sentia
profundamente, uma preocupação além e acima da lealdade por sua guilda. Jace se
perguntou se havia mais alguém que ela protegia.
―Como eu posso ajudar?‖
O sorriso dela se iluminou. ―Junte-se a nós,‖ ela disse. ―Nos ajude. Nos ajude a
entender o que os Izzet podem estar fazendo, assim podemos manter a paz neste
distrito e em todos os distritos.‖
―Você quer que eu me junte à sua guilda?‖
―Você seria bem-vindo no Conclave. Os Selesnya acreditam em reunir as
pessoas, em construir formas de todos coexistirmos. Jace, com os seus talentos –
você teria um potencial enorme para se conectar com as pessoas. Nós poderíamos
usar sua habilidade.‖
―Não sei.‖ Uma guilda significaria se prender a um conjunto de valores, a um
ponto de vista. Mais do que tudo, significaria se prender ao plano de Ravnica. E ele
não tinha certeza, mesmo se ele fosse escolher uma das guildas de Ravnica, se
escolheria os Selesnya. Jace olhou seu santuário ao redor, indicando a pesquisa em
volta deles com um gesto vago. ―Eu tenho muitos projetos em andamento... não
posso me comprometer com isso agora.‖
―Mas você seria capaz de ajudar tantas pessoas. Eu sou influente na guilda, Jace.
Trostani me escolheu como um tipo de dignitária. E você poderia pegar o jeito em
unir as pessoas. Nós poderíamos trabalhar para o mesmo propósito. Poderíamos
aprender a verdade. Juntos.‖
Jace hesitou. Não foram muitas as pessoas que tinham olhado para ele do modo
como Emmara estava olhando neste momento. Jace queria dizer algo que fizesse
com que ela olhasse para ele assim por muito mais tempo. Jace imaginou como o
rosto dela se iluminaria muito mais se ele dissesse sim – como poderia tocar a mão
dela e lhe dizer que nada era mais importante para ele do que se unir a ela, ajudá-
la. Jace desejou que pudesse fazer isso, por ela.
Mas ele não podia.
―Lamento. Eu simplesmente não posso me juntar aos Selesnya. Mas talvez eu
possa ajudar de outra forma.‖
O sorriso de Emmara se desmanchou. ―Ah, eu estou atrasada, então. Você já é
parte de outra guilda?‖
―Não. Não é isso.‖ Ele pensou em todo o tempo que passara em outros planos.
Pensou em todos os mistérios que o levaram de um lado do Multiverso a outro. ―Eu
só não sou... alguém que goste de ficar muito ligado a algo.‖
Isso a atingiu. ―Entendo,‖ ela disse e se levantou. Seu comportamento se encheu
de formalidade e etiqueta. ―Bem, eu preciso ir. Tenho muitos assuntos da guilda
para cuidar. Obrigada por seu tempo, Jace. Foi bom te ver.‖
―Não, Emmara, me desculpe,‖ ele disse, se levantando com ela. ―Eu só quis dizer
que não posso me dar ao luxo de me meter em nenhuma dessas... políticas de
guilda neste momento. Estou pesquisando algo importante, e isso está tomando
todo o meu tempo. Eu adoraria te ajudar a resolver isso.‖
Ela assentiu. ―Nós adoraríamos te ter conosco,‖ Emmara disse. Quando estava na
porta de Jace, ela se virou. ―Essa folha que eu te dei é um artefato Selesnya, feito
por um lignomoldador. Você pode usá-lo para me contatar, se quiser. Apenas diga
as palavras de ativação para ele, e eu poderei te ouvir.‖
Jace olhou para o presente dela em sua mão. ―Quais são as palavras?‖
―Preciso de você.‖

As lâmpadas da rua tinham começado a acender na hora em que a elfa Selesnya


saiu do edifício. Mirko Vosk permaneceu de pé sobre o telhado plano da construção,
perto da beirada, observando-a adentrar a noite. Seguir a mulher tinha valido a
pena, e não da forma como ele esperava.
Os olhos de Vosk refletiram a luz das lâmpadas como os de um gato, e ele estava
com o peito quase nu apesar da noite fria. Mirko passou sobre a abertura da
chaminé novamente, por onde ficara escutando com seus ouvidos afiados, mas não
ouviu mais nada do homem que ela visitara. A mulher tinha demonstrado um claro
interesse nesse homem, um conhecido que ela chamava de Jace. Ela acreditava
em seus talentos – provavelmente um tipo de mago. E esse Jace mencionara estar
conduzindo uma pesquisa sobre algum tipo de padrão ou código.
Esse era exatamente o tipo de informação que o mestre de Mirko Vosk gostaria
de possuir. A mulher Selesnya tinha um cheiro apetitoso, e seu acesso direto a
Trostani era valioso. Mas Vosk sentiu que tinha mais de um alvo agora.
Mirko Vosk deu um passo para além da beirada do edifício. Ao invés de cair, ele
flutuou pelo céu noturno diretamente para o alto, com uma elegância casual. Era
hora de procurar uma audiência com seu mestre oculto.

Os magos Izzet não eram difíceis de se encontrar. Depois de alguns dias de


observação, Jace ouviu uma explosão e viu uma assustada revoada de pássaros
através do distrito. A nuvem de fumaça azul era um sinal que denunciava um dos
experimentos pirotécnicos dos Izzet. Jace rastreou a origem da explosão e espiou
dois magos, um humano e um goblin, vestidos com engenhocas alquímicas e
manoplas de mizzium. Eles saíram de um túnel em desuso, deixando para trás
tijolos carbonizados e uma nuvem de fumaça, e seus instrumentos estalavam com
energia. Pelo que Jace percebera, esse era o estilo das pesquisas Izzet: continuar
adicionando energia até algo explodir, e então observar o resultado.
Jace ficou escondido na entrada do túnel, deixando os dois passarem. Ele abriu a
mente para roçar brevemente seus pensamentos. O goblin, Skreeg, parecia ser um
assistente do humano, ou possivelmente um aprendiz. O humano se chamava Ral
Zarek.
―Nenhum sinal de nenhum portão lá, mesmo a energia sendo promissora,‖ disse
Skreeg. ―O que vamos dizer ao Grande Mente de Fogo?‖
―Deixe que eu me preocupe em cuidar disso,‖ disse Zarek.
Skreeg e Zarek estavam se movendo, virando em uma rua principal e
conversando rapidamente, então Jace não podia mergulhar fundo em suas mentes
para descobrir o que eles sabiam. Ao invés disso, ele os seguiu, tentando se manter
perto sem ser visto.
―Seria possível os Dimir simplesmente não terem seu próprio portão?‖ perguntou
Skreeg.
―Impossível,‖ disse Zarek. ―Ele está aqui. Está esperando em algum lugar por nós.
Só temos que procurar mais.‖
―Como é que a gente sabe disso? Como é que a gente sabe mesmo que vai
encontrar o que está procurando?‖
―Esse caminho foi construído para nós pelos ancestrais, Skreeg. Um parun criou
tudo isso, entendeu? O fundador de uma das guildas montou esse quebra-cabeça
através de todo o distrito para que nós o encontrássemos.‖
―Claro,‖ disse Skreeg. Ele coçou a orelha. ―Mas por que achamos que ele é para
nós?‖
Zarek bufou. ―Porque nós achamos ele primeiro.‖
Os dois magos Izzet caminhavam rápido e falavam baixo, e Jace não conseguiu
caminhar perto o suficiente deles sem parecer suspeito. Ele tinha que encontrar
uma forma de ficar mais perto. Jace conhecia feitiços de camuflagem que poderiam
mascarar sua presença na mente de espectadores, mas não achava que
conseguiria manter tal feitiço, ler os pensamentos dos dois e se manter no ritmo
deles, tudo ao mesmo tempo. Talvez ele pudesse chegar mais perto sem
permanecer no nível da rua.
Jace entrou em um beco enquanto os dois magos Izzet seguiram em frente. Ele
escalou uma cerca e se puxou para cima até o telhado de uma taverna. Jace
engatinhou pelo telhado, se mantendo agachado, até que pudesse olhar sobre a
beirada oposta para ver Skreeg e Zarek. Ele ouviu os pensamentos superficiais
deles de novo. Infelizmente, tinha perdido parte da conversa.
―Esse é só o primeiro passo,‖ Zarek estava dizendo. ―De acordo com Niv-Mizzet, o
código nos diz algo mais. Não é suficiente apenas encontrar os portões. Temos que
saber qual é o caminho antes de descobrirmos o que está por trás dele.‖
Skreeg juntou as mãos e sorriu para Zarek. ―Ah! Me diga o que está por trás dele!‖
―Ele é um velho lagarto descortês, Skreeg. Não compartilha comigo todos os
segredos que conhece. Mas acho que sei o que estamos procurando.‖
Eles estavam de novo se movendo para longe de Jace. Ele teve que saltar sobre
um precipício para chegar à construção ao lado, correr para a borda do telhado
inclinado e rastejar pela beirada logo acima dos magos para ouvi-los. Eles estavam
falando ainda mais baixo agora, e mesmo com seus sentidos internos ativos, Jace
teve que se esforçar para compreender o que estavam dizendo.
―Eu acho que é uma grande arma, Skreeg,‖ disse Zarek. ―Escondida aqui, no
Décimo. Os fundadores ancestrais das guildas sabiam que o Pacto das Guildas
poderia não durar. E eu acho que um deles sabia que, se ele fosse quebrado, uma
única guilda teria que se erguer para governar todas as outras. É por isso que eles
nos deixaram uma arma, Skreeg, e a esconderam de um jeito que apenas aqueles
dignos de usá-la pudessem encontrá-la. E nós somos os dignos, não somos? É por
isso que Ravnica será nossa.‖
Uma arma, Jace pensou. O código, os portões, o caminho – tudo isso esconde um tipo
de arma. Ou ao menos era no que Zarek acreditava.
Jace não podia mais segui-los pelo telhado, e teve que observar enquanto
cruzavam a rua para longe dele. Os magos tinham chegado ao início do território
controlado pelos Izzet, cercado por altas barricadas rígidas cobertas por tubos de
metal fumegantes. Skreeg e Zarek subiram um largo lance de escadas em direção a
um grande portão arredondado, coroado com um gigantesco sinete que se
assemelhava à silhueta do próprio dragão. Um esquadrão de guardas Izzet assentiu
para eles, e o portão se abriu deslizando para admitir a entrada dos dois.
Quando o portão se abriu, Jace ficou surpreso em ver a silhueta de uma cabeça
de dragão olhando pelo outro lado. Era o próprio Niv-Mizzet esperando pelo retorno
deles.
―O que vocês encontraram para mim?‖ perguntou Niv-Mizzet.
A voz do dragão ressoou de tal modo que Jace pôde ouvi-la de seu esconderijo.
Mas não conseguiu ouvir a resposta, e os magos Izzet em breve estariam do outro
lado do portão fechado.
Ele sentiu que estava perto de descobrir o que estava por trás de todos os
segredos, mas tinha certeza de que seria pego se tentasse passar pelo portão Izzet
tão bem guardado. Jace já estava perdendo a conexão com as mentes dos magos.
Além disso, Skreeg e Zarek não tinham toda a informação que ele desejava.
O dragão, porém, tinha. Jace tinha uma chance. Ele teria que olhar dentro da
mente do dragão antes que o portão se fechasse, se ousasse.
Ele ousou.
DENTRO DA MENTE DE FOGO

Jace reuniu mana e disparou sua magia mental como uma flecha. O feitiço,
invisível, navegou pelo ar até Niv-Mizzet e penetrou a mente do dragão. Jace sabia
que não teria tempo para se enraizar ao redor do conhecimento que
indubitavelmente enchia as memórias do dragão ancião, então se focou em uma
tarefa: descobrir o que Niv-Mizzet sabia sobre o labirinto.
Foi como cair em um inferno. Pensamentos incompreensíveis passaram por ele
em chamas. Teorias selvagens, experimentos impossíveis e teses loucas
turbilhonaram como um temporal ao seu redor, tudo exposto contra o pano de fundo
de milhares de anos de memórias. Niv-Mizzet não tinha pensamentos superficiais.
Era como se o tempo todo ele tivesse redemoinhos de ideias competindo entre si,
frentes de tempestades mentais colidindo umas contra as outras, e ainda assim
todas convergindo de alguma forma em pensamentos coerentes.
Mas enquanto o feitiço de Jace o levava através da mente do dragão, ele
conseguiu reconhecer um padrão, como um único relâmpago que se destacava em
meio ao caos. Era a obsessão do dragão com seu projeto. Em sua mente, ele o
chamava de Labirinto Implícito, um quebra-cabeça esculpido ao longo da própria
Ravnica, um mistério que ele acreditava levar a um poder incalculável.
Jace foi consumido pelo fervor do dragão pelo Labirinto Implícito. Mil possíveis
soluções se agitavam na mente de Niv-Mizzet. Infinitas rotas chiavam e se
quebravam através de sua paisagem mental. Mas Jace sabia, como o dragão sabia,
que nenhuma delas estava totalmente correta.
E então ele viu o que esperava ver. O dragão conhecia o prêmio do Labirinto
Implícito. Jace o viu também, e percebeu seu poder. E então entendeu por que Niv-
Mizzet tinha colocado toda sua guilda para resolvê-lo.
Quando o portão Izzet se fechou e o contato com o dragão se dissipou, Jace
sentiu que sua intrusão fora notada. A atenção do dragão se direcionou a ele
naquele momento, como o olhar de um predador mirando sua presa, curioso e
inquietantemente paciente.

―Jace, que bom que você voltou,‖ disse Kavin.


Jace voltara a seu santuário e bateu a porta atrás de si. Ele estava respirando
ofegante e tentando se acalmar. Seu compatriota vedalkeano Kavin estava lá,
provavelmente ainda trabalhando nos fragmentos do código que eles tinham
encontrado, reunindo agonizantemente o que Jace aprendera em um momento
abrasador.
―Kavin, nós precisamos conversar.‖
Kavin agitou um maço de papéis, cobrindo sua mão elegante com tinta fresca.
―Sim, você está certo, porque você vai querer ouvir isso. Eu descobri algo.‖
―Eu também.‖
―Excelente. Agora, então. Eu estive pesquisando todas as amostras que
coletamos. As obras em pedra, os escombros, os artefatos. E eu achei um padrão.‖
―Kavin.‖
―O código. É uma versão de um escrito Azorius obsoleto, datado de centenas,
talvez milhares de anos atrás. Nós teremos que encontrar alguém que consiga
decifrá-lo, naturalmente. Mas, na verdade, acontece que eu tenho alguma facilidade
com runas Azorius. Você pode chamar isso de um antigo hobby—‖
―Kavin, escute.‖
―Eu não tinha percebido isso antes porque não estávamos organizando os
fragmentos do jeito certo, e nossas amostras estão incompletas e gastas pelo
tempo. Mas eu consegui supor alguns dos termos e conceitos aos quais eles se
referem.‖
―Kavin, eu sei o que o código significa.‖
Kavin piscou. ―Você sabe?‖
―Eu fiz uma... observação. Os Izzet estão investigando o mesmo mistério que
nós.‖
Kavin levantou a cabeça um centímetro. ―Você estava seguindo membros da
guilda Izzet?‖
―Eles encontraram algo relacionado ao código.‖
―Espere. Você usou magia para invadir as mentes deles?‖
―Eu obtive um pouco do conhecimento deles, sim.‖
―Jace, interferir em assuntos das guildas pode ser muito perigoso.‖
―Uma rota. Eles começaram a juntar as peças de uma rota específica.‖
Kavin ergueu suas anotações. ―Foi o que eu descobri também. Há repetidas
menções nas pedras a uma ‗rota que atravessa a civilização‘, uma ‗rota que leva a
uma grande promessa‘.‖
Jace assentiu. ―Os Izzet pensam nisso como um labirinto.‖
―Um labirinto, sim, é uma tradução melhor. Então, você descobriu o que esse
labirinto é?‖
―Não parece ser um labirinto no sentido tradicional. O labirinto parece levar de um
ponto a outro – construído na própria estrutura dos distritos existentes. Um labirinto
implícito. É por isso que nós temos visto os Izzet aparecendo repetidamente,
fazendo experimentos por todo o Décimo – eles estão descobrindo a rota através
desse labirinto. Todo esse tempo você e eu temos encontrado os restos da mesma
trilha que eles têm seguido.‖
Jace observou Kavin absorver essas revelações. O rosto do vedalkeano
raramente demonstrava emoções da mesma forma que os humanos, mas Jace
pôde perceber que ele estava se debatendo. Esse mistério era uma tentação para
sua própria mente curiosa, mas Jace sabia que seu compatriota tinha sérias dúvidas
sobre persegui-lo.
―Jace, os Izzet não são apenas rivais acadêmicos. O mestre de guilda deles não
encara a competição gentilmente.‖
―Eu sei. Mas não é a competição que me preocupa. É o que está no final do
labirinto. Acho que é algo que pode se mostrar muito, muito perigoso. Algo que pode
alterar o equilíbrio entre as guildas. Algo que pode impactar nosso mundo inteiro.‖
―O que é?‖
Jace se perguntou se deveria dizer a Kavin até mesmo o que compreendera da
mente de Niv-Mizzet. Mas esse era o fim da pesquisa deles. Essa era a resposta
que eles tinham buscado. ―Poder. Os Izzet acreditam que o labirinto leva a alguma
forma de grande poder. Talvez até mesmo uma arma. Eu não sei exatamente o que
é ainda, e não acho que Niv-Mizzet saiba também.‖
Os olhos de Kavin se arregalaram à menção do nome do dragão, mas Jace
prosseguiu.
―Mas esse labirinto, esse código, tudo isso – é antigo. Foi algo construído ao
longo dos distritos, há muito, muito tempo. Se é algo que inspira tal obsessão em
um dragão, se é algo que ele pensa que vale seu tempo, então provavelmente é
algo que não deveria cair em suas mãos. Nós temos que perseguir isso, Kavin.
Precisamos descobrir o que está no final do labirinto antes que o dragão descubra.
Mas há um problema ainda mais urgente.‖
―Jace, quem exatamente te deu essa informação?‖
Jace agarrou a bainha de seu manto. ―Esse é o problema.‖
―Quem foi?‖
―O dragão, o próprio Niv-Mizzet. Eu vi isso, tudo isso, na mente dele. E ele talvez
tenha me visto também.‖
―Jace...‖ Kavin apertou os olhos bem fechados. Ele pressionou os dedos em sua
testa de pele azul até que manchas arroxeadas se formaram ao redor das pontas
dos seus dedos, e respirou fundo várias vezes. Então Kavin abriu os olhos
novamente, suas palavras vieram lentamente e ele colocou paciência nelas à força.
―A resposta é não.‖
―Eu sei que há riscos. Mas talvez a gente consiga ficar à frente deles. Talvez a
gente possa chegar ao fundo disso antes deles.‖
―Você não entendeu. Eu não estou apenas recusando. Eu estou te dizendo não.
Você não pode prosseguir com isso. Nenhum de nós pode. É suicídio.‖
Jace se lembrou da sensação dos olhos do dragão, da mente do dragão, se
virando em sua direção, apenas por aquele instante. Isso trouxe à mente o encontro
de gelar a alma com o dragão Nicol Bolas. Seu conhecimento recém-adquirido
sobre a descoberta dos Izzet viera com um custo problemático – a possibilidade de
mais um dragão saber seu nome.
―Jace, terminamos com isso. Eu preciso te lembrar o que acontece quando as
guildas querem algo? Elas arruínam vidas. Elas usam as pessoas. Se nos
envolvermos, nos exporemos ao pior do que elas são capazes.‖
―Mas isso não significa que nós deveríamos nos envolver? Você não acha que isso
é importante?‖
―Claro que é importante. Pelo que você está dizendo, é tremendamente sério. E é
exatamente por isso que estamos encerrando esse projeto, destruindo todos os
traços da nossa pesquisa e deixando esse distrito.‖
Jace queria contradizê-lo. Queria se rebelar, seguir em frente sem a ajuda de
Kavin. Ele sabia que investigar esse labirinto poderia colocá-lo em perigo, e tinha
aceitado isso. Mas pensou em seu tempo com o Consórcio do Infinito e em como
tinha aprendido que, quando se colocava contra os poderosos, aqueles com os
quais se importava eram os que se feriam. Ele pensou em seu amigo Kallist, que até
o próprio Jace manipulara no final. Ele pensou em Kavin – um homem talentoso,
mas que não era páreo para a crueldade dos mestres das guildas de Ravnica.
E ele pensou em Emmara, que o trouxera da beira da morte e novamente não
pedira nada em troca. Ela não fora nada além de uma amiga para Jace, e ele não
trouxera nada além de perigo para ela. Emmara sobrevivera a uma tentativa de
assassinato por causa dele. Quanto mais ele perseguia sua curiosidade, mais ela
sofria as consequências.
Talvez isso não fosse nada. Talvez fosse só uma fantasia selvagem de um
dragão caprichoso – Jace não encontrara nada em sua pesquisa que sugerisse que
o labirinto levava a uma arma ou outra coisa que pudesse colocar Ravnica em
perigo. Talvez ele estivesse colocando em risco a si mesmo e seus aliados por,
mais uma vez, colocar o nariz onde não devia. Jace desejou poder mergulhar nas
camadas de segredos, mas não conseguiu ver nenhuma forma de contornar os
graves riscos.
―Então?‖ Kavin perguntou.

Mirko Vosk caminhava agilmente, esquadrinhando a noite por testemunhas.


Quando chegou à intersecção escolhida, as ruas estavam abandonadas. Então ele
se aproximou de uma parede de tijolos e caminhou diretamente através dela.
A parede se transformou em névoa por um momento, permitindo sua passagem,
e então voltou a ser de tijolos sólidos quando ele chegou ao outro lado. Os
corredores abandonados do submundo se ramificavam diante dele. Vosk desceu
uma escada semidesabada, passando sob uma série de arcos, e traçou seu
caminho através de passagens laterais não sinalizadas. Mesmo na escuridão, seus
olhos refletiam como espelhos.
O corredor se ampliou para uma catacumba qualquer. Vosk estava rodeado por
um anel de prateleiras de rocha bruta onde restos de esqueletos de ravnicanos
esquecidos estavam sepultados. Ele soube que tinha chegado ao local de encontro
correto porque suas presas desceram involuntariamente. Vosk podia sentir a
presença de seu mestre como uma respiração em seu pescoço.
Ele se virou em um círculo lento, se dirigindo ao ar ao seu redor. ―Eu tenho
novidades, Mestre.‖
―De Beleren... Sim, eu vejo,‖ veio a voz – um grasnado rouco onidirecional que
ecoou pelas passagens.
―Ele sabe de algo – algo que pode ser de valor para a guilda.‖
―Sim,‖ disse a voz. ―Ele pode se mostrar o instrumento de que precisamos.‖
Vosk se virou, falando para as paredes ao seu entorno. ―Eu devo drená-lo para o
senhor, Mestre?‖
―Fale-me da outra, Vosk. O que seus sentidos dizem sobre a garota Selesnya?‖
―Trostani a tem em alta conta, como o senhor previa, Mestre. A importância dela
cresce. Eu farejo isso ao redor dela.‖
―E como se chamam dois caminhos que se cruzam e se tornam um?‖
―Sincronia?‖
―Oportunidade,‖ grasnou a voz. ―Ao aplicar pressão em um ponto, nós tiramos a
atenção de outro, não é?‖
―Sim, Mestre.‖
―E então nós podemos conseguir a elfa por meio do Culto, e Beleren por meio da
elfa.‖
―Como o senhor desejar.‖
―Você é meu agente mais promissor, Vosk.‖
Vosk assentiu solenemente. ―Obrigado, Mestre.‖
―Mas se você falhar comigo,‖ disse a voz, ―eu vou substituir as suas costelas por
pedaços de madeira, assim cada respiração sua ameaçará espetar seu coração.‖
―Eu entendo,‖ disse Vosk.
Não houve mais resposta.

Em um bosque sagrado do Décimo Distrito, Emmara se curvou diante de Trostani,


uma criatura composta por três dríades reunidas. Cada um dos corpos da parte de
cima de Trostani se movia e falava independentemente, cada um era uma bela
mulher com folhagem no lugar dos cabelos, cada um era uma voz poderosa do
Conclave Selesnya. Mas a parte de baixo de seus corpos convergia para um único
tronco sinuoso, como uma árvore robusta. Trostani era a líder dos Selesnya, mas
Emmara sabia que ela era mais do que isso. Trostani era o símbolo vivo da crença
de sua guilda na unidade, a encarnação do poder das massas reunido em um só
corpo.
―As criaturas selvagens do mundo estão abertas para você, Emmara Tandris,‖
disse Trostani. Conforme sua mestra de guilda falava, as três diferentes dríades
entrelaçavam seus discursos, não exatamente falando em uníssono, mas
harmonizando suas palavras em uma única voz. ―Seus talentos como curandeira
são grandes, mas nós desejamos vê-la executar magias ainda maiores. Convoque o
poder dos elementais da natureza. Eles ainda respondem quando nós os
chamamos, desde que continuemos acreditando no mundo como uma entidade
única, como eles acreditam. Você é a embaixadora deles agora, e eles são seus
guias.‖
Emmara fez uma mesura novamente. ―Meus mais profundos agradecimentos,
Mestra de Guilda.‖
―Sua gratidão é bem-intencionada, porém prematura. A hora do perigo se
aproxima. Reúna todos os que você quer bem, pois está chegando o dia em que
nossa unidade será testada.‖
Emmara pensou no projeto secreto dos Izzet e na paranoia das outras guildas.
―Mestra de Guilda, há um caminho para preservar as guildas sem o Pacto das
Guildas?‖
―Apenas se nos tornarmos um,‖ disse Trostani, as palavras flutuando
graciosamente das três dríades. ―As guildas são uma expressão das crenças deste
mundo, e não podemos sobreviver sem elas, assim como não podemos sobreviver
sem nossa crença. Mas lembre: o indivíduo não significa nada. Fronteiras são uma
ilusão. Se você pretende nos tratar, curandeira, deve dissipar as barreiras. Você não
deve permitir que as dez se separem, ou todos iremos à ruína.‖
Emmara se sentiu indigna desse encargo. Ela fez mais uma reverência a Trostani,
e as três dríades fizeram uma mesura para ela em resposta, seus troncos se
curvando como um salgueiro gracioso. Emmara se virou para partir do bosque, e
sabia quem ela precisava convencer a ajudá-la, estivesse ele disposto a se juntar à
guilda ou não.
Antes mesmo que tivesse deixado o bosque Selesnya, um mensageiro correu até
ela, claramente a procurando. ―Emmara Tandris?‖ ele perguntou. Quando ela
confirmou, ele lhe entregou uma carta enrolada. ―Me disseram que o remetente era
alguém chamado Berrim.‖
―Obrigada.‖
Berrim era o pseudônimo que Jace usara quando ele e Emmara se encontraram
pela primeira vez. Ela abriu a carta e leu.
Emmara,
Peço desculpas. Entendo agora por que você tentou me convencer a me juntar a você
para alcançar as outras guildas. Entendo agora por que as guildas ficaram com medo e
hostis com os Izzet, e por que você e sua guilda estão procurando toda a ajuda que
puderem encontrar para os tempos que estão por vir. Mas receio que eu não possa ser
aquele a lhe ajudar.
Meu compatriota Kavin e eu descobrimos pistas que nos levaram à origem dos
planos Izzet. Mas infelizmente este deve ser o fim de nossa investigação. Eu trouxe um
grave perigo para nós e Kavin me convenceu de que o melhor caminho é abandonar
nossa pesquisa completamente. Na verdade, eu pretendo ir um passo além: em breve
destruirei nossas memórias de algum dia ter aprendido sobre esses assuntos. Se você
me perguntar sobre qualquer coisa relacionada a isso em algum futuro encontro, não
me lembrarei desses eventos, incluindo essa carta, e não entenderei o que você estiver
perguntando. Essa carta é para informá-la da razão para meu comportamento futuro, e
para pedir perdão por minha relutância.
Lamento. Sei que isso será um desapontamento para você. Espero que com o tempo
você entenda meus motivos. Enquanto isso, minha amiga, espero que leve em conta sua
própria segurança, e considere abandonar suas preocupações com as ações dos Izzet.
Seu,
Jace
Ela amassou a carta no punho e se virou para o mensageiro. ―Quando isso foi
enviado?‖
―Nesta manhã, senhora.‖
―Você pode chamar um meio de transporte? Eu preciso da coisa mais rápida que
você puder encontrar pra mim.‖
ESCULPINDO MENTES

Jace olhou para fora da janela do albergue barato na torre, a Estalagem Torre de
Pedra, a apenas uma quadra de distância da nada notável construção de tijolos que
fora seu santuário. Ele pediu um quarto em um dos andares mais altos, com vista
para o edifício do santuário, e guiou Kavin escadas acima, o persuadiu a entrar no
quarto e trancou a porta.
Kavin passou a mão pela própria cabeça careca e lisa. Ele tinha a pele azul quase
sem nenhum pelo, expressões atenuadas e mente lúcida típicas da raça
vedalkeana, mas pouco de sua paciência característica – motivo para Jace gostar
ainda mais dele. ―Agora você vai me dizer o que estamos fazendo aqui?‖ ele
perguntou.
―Você não trouxe documentos consigo, certo?‖ perguntou Jace. ―Nenhuma
anotação escondida? Nenhum diagrama ou tradução do código?‖
―O quê? Não. Eu deixei tudo no santuário, exatamente como você pediu.‖
―Bom,‖ disse Jace.
Com isso, ele enviou um comando mental ao mercenário que contratara, um
campeão guerreiro dos Gruul – uma guilda de exilados brutos e anárquicos. Jace
escolhera um ogro de duas cabeças chamado Ruric Thar, o guerreiro com
aparência mais beligerante e menos intelectualmente curioso que conseguiu
encontrar, para demolir o santuário.
Pode prosseguir, ele pensou para seu contratado, e a única resposta que ouviu foi
um par de rugidos mentais sem palavras.
Do lado de fora, sons de vidro sendo estilhaçado e madeira partida vieram da
construção do santuário.
―O que está acontecendo?‖ perguntou Kavin.
―Eu garanti que toda nossa pesquisa seja destruída,‖ disse Jace.
―Achei que você e eu cuidaríamos disso.‖
―Não tenho certeza se faríamos um trabalho minucioso o suficiente. Sei ao menos
que eu ficaria tentado a poupar algumas das minhas anotações e que seria atraído
para o projeto de novo. Não podia correr esse risco.‖
Kavin assentiu lentamente. ―Mas então quem está destruindo nosso trabalho?
Nós deveríamos mesmo só deixá-lo lá?‖
―Eu contratei alguém para destruir o trabalho para nós. E o edifício também.‖
―Mas nós não deveríamos sair daqui? Eu esperava ir para longe do Décimo –
certamente mais longe do que a Estalagem Torre de Pedra.‖
―Depois de hoje, você ainda vai poder fugir do Décimo se preferir. Mas, depois de
hoje, nós não vamos precisar fugir.‖
―O que você quer dizer com isso?‖
―Você sabe que mesmo quando toda nossa pesquisa estiver destruída, ela não
terá sumido completamente. Ainda haverá resquícios deixados para trás, resquícios
que poderiam ser tomados de nós e usados contra nós – nas nossas memórias.‖
As mãos de Kavin se levantaram lentamente, quase por conta própria, para uma
posição defensiva. ―Espere, Jace. O que exatamente você está sugerindo?‖
―Você está certo. É perigoso demais seguir com essa pesquisa. Mas enquanto
soubermos o que sabemos, estaremos em perigo, e todas as pessoas que
conhecemos estarão em perigo. Eu não vou deixar nós sermos empurrados nas
conspirações de um dragão só pelo que está nas nossas mentes. Eu não vou ser
um peão, nem deixar que você seja usado como um peão por aqueles com mais
poder do que consciência. Não enquanto puder consertar isso.‖
―Você nunca me disse que podia fazer isso. Eu não sei se quero ser consertado.‖
―Eu não vou deixar aqueles com quem me importo serem usados. Acredite, eu sei
como é. Você acha que Ravnica é grande. Mas mesmo se você deixasse seu lar
agora, e deixasse o Décimo Distrito para trás para sempre, aqueles que almejam o
poder te encontrariam. Você se tornaria parte do jogo deles simplesmente por ter
demonstrado curiosidade por algo, simplesmente por ter se importado o suficiente
para explorar um segredo. Eles usariam seus pensamentos contra você e te
encontrariam usando esses mesmos pensamentos.‖
―Isso é mesmo possível? Alguém poderia mesmo fazer isso?‖
Jace não olhou nos olhos de Kavin. ―Eu poderia.‖
Kavin ficou em silêncio por um longo tempo. Perto dali, através da janela, os dois
observaram fumaça subir do edifício do santuário. Chamas tremularam dentro da
construção. Jace achou que podia discernir a sombra de uma grande figura de duas
cabeças quebrando tudo lá dentro.
―Se eu desistir do meu conhecimento sobre o código,‖ disse Kavin, ―estarei
entregando minha única arma. Minha única vantagem.‖
―Não,‖ disse Jace. ―Você estaria se recusando a ser uma arma.‖
Houve um guincho do lado de fora. Jace e Kavin se viraram para ver um grifo
carregando dois ginetes pousando no meio da rua. O ginete da frente segurou as
rédeas, controlando o grifo indisciplinado, enquanto o de trás desmontou das costas
da criatura. O grifo levantou voo novamente, batendo as asas e se erguendo no céu.
Jace reconheceu a figura imediatamente. Era Emmara. Ela estava andando para
frente e para trás diante do edifício do santuário agora coberto de fumaça. ―Jace!‖
ela gritou em direção à porta em chamas. ―Jace!‖
―Ah, não. Não, não, não. Não agora.‖ Jace abriu a janela. ―Emmara!‖ ele chamou,
acenando. ―Emmara, aqui em cima!‖
Emmara se virou, olhou para eles e foi correndo em direção à Estalagem Torre de
Pedra.

―Não faça isso,‖ disse Emmara, sem ar depois de subir correndo as escadas até o
quarto. ―Não se atreva.‖
―Kavin, essa é minha amiga Emmara,‖ disse Jace com uma etiqueta fingida.
―Emmara, nós precisamos fazer isso. Você não vai impedir isso, e eu não vou me
envolver em um conflito de guildas só para satisfazer minha própria curiosidade. E
não vou deixar Kavin ser usado como um peão no jogo de um dragão. Você se
lembra do meu chefe anterior, Tezzeret. Você deve entender o porquê.‖
―Você é crucial para este esforço, Jace,‖ ela disse. ―Você é o único que pode me
ajudar. Por favor, não dê as costas para mim. Não depois de todas as vezes que eu
juntei os seus pedaços, não depois de todos os problemas em que você se
envolveu – e me envolveu. Você não pode me abandonar quando eu preciso de
você. Quando todos nós precisamos de você.‖
―Eu não vou me envolver por causa de todo o problema que eu te causei. Tezzeret
enviou os homens dele para te matarem. Não posso deixar algo assim acontecer de
novo. Não vou deixar.‖
―Com licença,‖ disse Kavin, ―mas você é Selesnya, certo? Que participação sua
guilda tem nisso? Como isso afeta o Conclave?‖
―Isso afeta a todos nós,‖ disse Emmara. ―Ou afetará em breve. O que quer que os
Izzet estejam planejando, veio bem em uma hora em que as guildas estão
especialmente desconfiadas umas das outras. Niv-Mizzet é muito velho e muito
ambicioso. O dragão pode estar planejando algo terrível. Ele pode ter criado um
jogo de poder que nunca teria sido possível – não até o Pacto das Guildas ser
dissolvido.‖
Os olhos de Kavin se arregalaram. ―Um golpe. Estamos falando de um golpe de
estado.‖
―Mesmo se ele não estiver planejando um golpe, você não acha que as outras
guildas estarão esperando por um? Elas vão criar uma guerra entre guildas. Nós
precisamos nos unir. É hora de alcançarmos a todos. E eu preciso da sua ajuda.‖
―Não. Eu não vou ser parte disso.‖ Jace balançou a cabeça. Ele podia ver aonde
isso levaria. Jace seria recrutado para uma luta com a promessa de assegurar a
paz, então seria usado como uma ferramenta pelos poderosos para promoverem
suas guerras pessoais. Quanto mais soubesse, mais valor teria para o dragão, e
talvez para outros. E enquanto fosse valioso para eles, podia imaginar como esses
poderosos veriam seus amigos. Kavin e Emmara não seriam mais do que moedas
de troca, mercadorias atreladas ao que havia entre as orelhas de Jace. Ele não
queria se render aos caprichos desse dragão, nem abandonar sua pesquisa. Mas
disse a si mesmo que não era isso o que estava fazendo. A última coisa que queria
era destruir informação, apagar o conhecimento adquirido com dificuldade – mas
não havia escolha. No fim das contas, não era melhor para ninguém saber sobre
aquilo.
―Coloque algum bom-senso na cabeça dele, Kavin,‖ ela disse, fazendo um gesto
frustrado na direção de Jace. ―Diga a ele que isso vai explodir e ferir muitas, muitas
pessoas. Diga a ele que não é hora de voltar atrás.‖
―Eu não posso, Emmara,‖ disse Jace. ―Não posso. Não dessa vez. Kavin, por
favor, sente-se.‖
E com isso ele começou o feitiço para destruir memórias.

Jace estava em sua casa dentro da mente de outro homem.


Ele era um mago mental desde que usara magia pela primeira vez. Tinha
explorado os contornos da consciência e sondado as profundezas sombrias da
memória. Tinha até mesmo alguma experiência em destruir mentes por completo.
Quando trabalhou para o Consórcio do Infinito de Tezzeret, um cartel interplanar de
planeswalkers e bandidos, tinha reduzido muitos homens a tolos babões sem
mente, com a justificativa de que aquilo era melhor do que matá-los. Ele não tinha
orgulho do dano psíquico que causara. Mas o fato era que Jace era bom nisso
quando precisava.
Ele avaliou a mente de Kavin, seu olho interno observando o domínio mental do
vedalkeano como uma águia sobre o mar. Jace perscrutou as memórias de seu
compatriota, rastreando vislumbres daquelas semanas em que ele e Kavin tinham
trabalhado no código. Jace usou a própria consciência como escalpelo, cortando
aqueles pedaços do passado, separando-os de suas ligações como teias de aranha
brilhantes. As memórias levaram algum tempo para se dissolverem completamente
enquanto ele passava pela mente de Kavin. Jace emitiu tremores de destruição
mental específicos, deixando que se espalhassem por todas as associações,
metáforas e justaposições mentais que pudessem levar Kavin àqueles pensamentos
novamente.
Depois de um tempo que pareceu dias, Jace recuou dos pensamentos de Kavin.
Ele não conseguia achar mais nenhum fragmento de memória pertencente ao
código, à pesquisa deles ou ao labirinto. A obliteração fora completa. A mente de
Kavin estava intacta, mas não continha nenhum traço do conhecimento que poderia
colocá-lo em perigo. Jace deixou sua consciência retornar à própria mente.
Ele acordou, caído de lado na cama no quarto da Torre de Pedra, exausto e
suando pelo esforço. Jace se empurrou para uma posição sentada. Emmara estava
lá, a preocupação estampada em seu rosto. Kavin, porém, se fora.
―Aonde...‖ Jace secou a transpiração de seu rosto. ―Aonde ele foi?‖
Emmara não conseguia esconder o horror que sentia. ―Jace. Ele conseguia sentir.
Ele conseguia sentir enquanto você fazia isso com ele. No início ele estava calmo,
sentado aí com você, mas então ele saiu tropeçando daqui. Ele correu, balbuciando.
O que você fez com ele?‖
Jace enxugou a testa, friccionando o cabelo emaranhado contra o couro
cabeludo. ―Eu fiz o que tinha que fazer. Ele não vai se lembrar de nada que o
envolva nisso.‖
Os olhos dela se encheram de lágrimas, mas sua voz estava severa. ―Eu nunca
tinha te visto fazer isso.‖
Jace respirou fundo. Ele ainda tinha mais trabalho a fazer. ―Fique comigo,‖ ele
disse. ―Por favor.‖
―Não faça isso,‖ ela disse.
―Por favor. Eu sei que é difícil de assistir.‖ Jace não gostava do jeito que ela
estava olhando para ele agora.
―O problema não é te observar fazendo isso. Não é nem você ter escolhido não
me ajudar, nem estar presente enquanto você destrói uma parte de si mesmo. É o
erro que você está cometendo. É isso que é impossível de assistir.‖
Ele se perguntou se a amizade deles estava se desfazendo, mas decidiu que
mesmo isso valeria a pena se fosse para protegê-la.
―Eu não posso te ajudar.‖
―Você precisa me ajudar. Só pense nisso por um momento.‖
―Eu já pensei,‖ ele disse. ―Por favor, fique.‖ E então ele conjurou o feitiço que
nunca pensara que usaria em si mesmo.
O ALCANCE DA LEI

Jace acordou estremecendo nas tábuas do chão de um quarto que não lhe era
familiar. Ele estava com uma palpitação feia no crânio e um buraco na memória.
Jace não entendeu por que estava de bruços, nem por que estava no chão, embora
também não se lembrasse de por que não deveria estar no chão. Ele tinha a
sensação de que algum tempo tinha se passado, embora não se lembrasse do
porquê.
Jace percebeu que alguém estava falando com ele.
―Senhor,‖ disse a voz hesitante de um homem. ―Senhor, você está bem?‖
Enquanto Jace se empurrava para cima, sentiu uma pontada de dor perto a linha
entre a testa e o cabelo. Por reflexo, colocou a mão na cabeça, e, quando a afastou,
havia sangue em seus dedos. Um homem estava de pé ao lado dele, as mãos
apertadas. Jace tentou reconhecer seu rosto. Pareceu estranho se esforçar para
uma tarefa que sempre fora feita automaticamente antes, como simplesmente
reconhecer uma face.
―Receio que eles tenham levado sua amiga,‖ o homem disse. ―Lamento muito pela
sua perda.‖
―Desculpe, qual é o seu nome de novo?‖ Jace perguntou. Sua voz estalando
conforme ele falava, como se não tivesse falado por horas.
―Andrek. Eu sou o estalajadeiro.‖
Estalajadeiro. ―A Torre de Pedra,‖ Jace disse.
―Isso mesmo, senhor.‖
Jace ficou de pé, se arrependendo de fazer isso assim que sentiu a mente se
turvando de dor. Ele cambaleou até a janela. Jace estava em um andar alto do
edifício, olhando de cima para a rua à noite. Ele percebeu que se encontrava do
outro lado da rua em relação a seu santuário, que estava, de forma alarmante, em
chamas.
Não era o jeito que Jace se lembrava de tê-lo deixado.
―Receio que você vá ser taxado pelos danos,‖ disse Andrek, o estalajadeiro.
Examinando o quarto, Jace percebeu que o lugar estava arruinado. A cama jazia
de ponta-cabeça e quebrada junto à parede, uma cadeira estava despedaçada e
marcas de faca raivosas tinham talhado o lambris. Flocos de cinzas de algum feitiço
piromântico desconhecido sujavam o chão como se fosse confete negro. Jace
percebeu uma moeda imunda no chão – não era uma peça do dinheiro usualmente
utilizado no Décimo. Parecia um símbolo novo e barato. De um lado havia o
desenho do rosto de um demônio de olhar maldoso, e do outro estavam as palavras
CORRA COM A MULTIDÃO BARULHENTA.

Jace distraidamente guardou a moeda. ―O que aconteceu aqui?‖


―Como eu disse, senhor. Eles levaram sua amiga. A elfa.‖
Emmara. Jace lembrava que ela estivera aqui com ele, apesar de não lembrar o
motivo. ―Quem a levou?‖
―Eles eram Rakdos, senhor. Uma turba inteira deles. Eu lamento muito.‖
Jace agarrou a camisa do estalajadeiro com os punhos. Suas próximas três
palavras foram intencionalmente ditas com os narizes bem próximos. ―Aonde eles
foram?‖
―Não sei dizer, senhor. Além disso, tem alguns oficiais Azorius lá embaixo fazendo
perguntas. Você sabe algo sobre esse edifício em chamas do outro lado da rua?‖

Jace chegou à escadaria logo antes de dar de cara com os oficiais Azorius
subindo do piso inferior da estalagem.
―Senhor, você é Jace Beleren, o homem que vive no edifício do outro lado da
rua?‖ perguntou a oficial, uma mulher alta vestindo uma reluzente armadura de
placas. O sinete em sua capa era um círculo rúnico dentro de um triângulo
equilátero, o símbolo da guilda Azorius. Atrás dela, dois cavaleiros bloqueavam a
escada com as mãos em suas bainhas.
―Ocorreu um sequestro,‖ disse Jace. ―Uma gangue de cultistas Rakdos levou
minha amiga deste hotel.‖
―O estalajadeiro nos informou desse incidente e um requerimento foi preenchido
pelo ministro de investigações,‖ disse a oficial. ―Você é Jace Beleren?‖
―Minha casa está queimando, sim, e eu não sei o motivo. E fui... fui atacado, acho.
Posso tentar responder às suas perguntas sobre esse local depois. Neste momento,
preciso da sua ajuda para encontrar minha amiga.‖
A cabeça de Jace latejava, e uma gota de sangue escorreu por sua testa e atingiu
sua sobrancelha.
―Não tenho autorização para investigar isso neste momento, senhor. Um oficial
será designado em concordância com todas as leis e estatutos aplicáveis. O senhor
poderia vir conosco?‖
Jace se perguntou como os oficiais o encontraram, como sabiam o seu nome e
quanto tempo tinha se passado desde que o edifício começara a pegar fogo.
Normalmente levavam semanas para os Azorius encaminharem os formulários
apropriados através do seu sistema desconcertante de permissões e regulações. E
mesmo assim, aqui estavam eles, com intenção de questioná-lo. Ele apertou os
punhos, desejando conseguir lembrar que eventos o trouxeram até aqui.
―Se vocês não vão encontrá-la, então eu vou,‖ disse Jace.
Jace atacou com uma magia que deveria incapacitar os oficiais Azorius, mas eles
apenas franziram seus cenhos para ele. Seu feitiço falhara. Um deles devia ser um
mago legista, e eles já deviam ter espalhado feitiços pela área – exatamente o que
ele faria se pensasse haver um mago mental aqui.
―Suspeito Jace Beleren,‖ disse a oficial Azorius, unindo as mãos para formar uma
espiral apertada de runas mágicas brilhantes. ―Suas ações correspondem a uma
definição razoável de resistência, e por isso o uso de força mágica está autorizado.
Venha conosco, agora.‖ Ela deu um passo em direção a Jace. ―Sua colaboração é
obrigatória.‖
Jace estava sem tempo e sem opções. Era hora de se entregar. Mas ao invés
disso ele se viu correndo para uma janela do lado oposto do hall da estalagem. Jace
se atirou contra o vidro, que se estilhaçou enquanto ele caía no telhado do piso
superior do edifício ao lado. Jace rolou por parte do telhado inclinado, caiu em uma
plataforma mais baixa, rolou por mais telhas inclinadas e caiu metade de um andar
para dentro de uma barraca de amoras. Ele saiu cambaleando, cuspindo um bocado
de amoras.
Jace esperava ver os oficiais Azorius já na parte de trás da estalagem, mas ao
invés disso viu pés enormes. Conforme ele analisava mais acima, os pés se
mostraram conectados a pernas musculosas do tamanho do tronco de uma árvore,
que por sua vez estavam ligadas a um corpo gigantesco que bloqueava seu
caminho. O ogro que o encarou olhou para ele de dois ângulos devido ao fato de ter
duas cabeças. Um dos antebraços do ogro de duas cabeças tinha sido substituído,
ou possivelmente melhorado, por um gigantesco machado prostético, e rudes
tatuagens clânicas cobriam seus membros de cima a baixo.
―É você,‖ disse uma das cabeças do ogro com um grunhido gutural.
―É ele,‖ concordou a outra cabeça, as palavras retumbando por suas presas.
Jace não teve tempo para processar isso. Ele procurou por rotas de fuga, mas os
Azorius o alcançaram, correndo ao redor do edifício e se aproximando dele. Os
números deles tinham aumentado, mas, quando viram o ogro de duas cabeças,
hesitaram. Cada uma das cabeças do brutamontes retribuiu o olhar deles com um
par de risos zombeteiros, um grunhido profundo retumbando em seu peito.
―Eu sou a Oficial Lavínia do Décimo,‖ disse a oficial Azorius, a mesma mulher que
o confrontara no topo da escadaria. ―Jace Beleren, você está preso pela autoridade
da Juíza Suprema Isperia e o governo de Nova Prahv. Você, cidadão,‖ ela
adicionou, indicando o ogro, ―ficará para trás dessa vez e não interferirá.‖
Jace examinou a formação circular de oficiais e magos legistas Azorius em suas
armaduras. Nenhum deles o ajudaria a encontrar Emmara, mas ele não conseguia
ver uma saída. Ele caminhou à frente, mãos para cima, e a líder Lavínia o tomou
sob custódia simplesmente colocando a mão sobre o ombro dele. O toque dela era
frio através do material da capa dele, e o fez se sentir instantaneamente lento e
obediente. Se Jace tinha alguma resistência sobrando, ela o estava abandonando
rapidamente.
Nisso, o ogro foi na direção de Lavínia e deu uma cabeçada nela com suas duas
cabeças simultaneamente, ressoando em seu elmo a partir de duas direções
diferentes.
Enquanto Lavínia tombava, os magos legistas Azorius lançaram seus feitiços de
restrição no ogro gigantesco, mas mal conseguiram reduzir sua velocidade.
Soldados avançaram para enfrentar o ogro de duas cabeças com espadas e lanças,
mas um movimento do machado da criatura os cortou, seus corpos revestidos em
armaduras jogados para longe fazendo o barulho de latas de estanho sendo
derrubadas.
Com a líder dos Azorius caída e toda a unidade distraída, Jace tentou dar um
passo para o lado, buscando um caminho para longe da luta. O ogro rugiu com as
duas cabeças e bateu outro soldado Azorius contra a parede. Jace considerou
momentaneamente ajudar esse fortuito guerreiro ogro, mas pensou melhor e
escapuliu para longe com a confusão da briga.
Jace deixou para trás a Estalagem Torre de Pedra e a casca arruinada do edifício
que fora seu santuário e adentrou o Décimo. Enquanto caminhava, ele repassou a
cena em sua mente, tentando retraçar seus passos e descobrir o que tinha
acontecido antes de acordar. Jace se viu acordar no chão, tocar o ferimento na
cabeça e olhar para o estalajadeiro de pé ao lado dele. Os momentos anteriores
estavam escuros, vazios – apenas um nada estrondoso. Era como se um punhado
de dias tivessem sido arrancados dele à força.
Jace encontrou um beco vazio e cambaleou para dentro dele. Ele foi até um tipo
de caverna urbana, cercada por altas construções de tijolos e caixas de madeira
cheias de entulho. Jace se jogou de costas contra a parede e se deixou escorregar
até o chão. Ele cobriu a cabeça com o capuz e dobrou os joelhos à frente do peito,
como se para trazer cada parte de si o mais perto possível de seu próprio centro de
gravidade. Se pudesse ficar pequeno, ele pensou, poderia de alguma forma cair
para dentro das rachaduras. Todo mundo poderia ignorá-lo, e Jace poderia acreditar
que nada daquilo era real.
Ele encarou os próprios joelhos. As costuras das suas calças estavam gastas. Um
arranhão irregular estava visível através de um buraco no joelho, das suas
andanças pelo distrito. Ele se levantou e tentou achar um caminho através da
escuridão pegajosa de sua memória. Mas o vazio persistia. Jace tentou se lembrar
de um ano antes, e de muitos meses atrás – e então sua mente escorregava em
faixas de tempo incerto. Ele mal conseguia se lembrar de um dia que tivesse
passado no santuário, ou o que acontecera nos momentos antes do aparente
desaparecimento de Emmara.
Jace pressionou os olhos com as palmas das mãos. Ele lutou para respirar, mas
só conseguia sugar o ar em arfadas curtas.
Jace abriu os olhos e olhou ao redor. Ele podia sentir pessoas caminhando pelas
pontes elevadas nas torres do Décimo, ouvi-las se misturando ao passarem pelo
beco, vê-las lançando olhares em sua direção. Esse lugar não era mais sua casa
adotiva, nem um santuário contra a vastidão do Multiverso. Era um labirinto de olhos
acusadores. Ele se deu conta de que poderia simplesmente deixar o plano e se
lançar para alguma outra existência. Para um planeswalker, recuar era quase
sempre uma opção.
Uma janela foi aberta na parede quatro andares acima dele. Um par de mãos foi
colocado para fora e despejou um pote com os restos do jantar de alguém – ele
esperou que fosse o jantar. As sobras caíram pelo ar e bateram contra o pavimento
perto dele, perto o suficiente para respingar em sua capa. Era um pouco de
ensopado de carne com batatas, frio, porém feito em casa – um sinal de vida e
normalidade. Ele olhou para a janela, de onde a luz brilhava, as sombras de figuras
se movendo de vez em quando.
Jace enviou seus sentidos para aquela janela, percebendo as formas das mentes
dentro do edifício. Detalhes inundaram sua mente. Ele sentiu duas pessoas,
humanos sem guilda. Eles eram um casal que possuía uma padaria ali perto. Os
dois trabalhavam em turnos diferentes. Jace não conseguia ouvir suas vozes, mas
podia ler as palavras em suas mentes enquanto eles as pronunciavam.
―Você nem disse o que achou,‖ um estava dizendo.
―Sei lá,‖ disse o outro. ―Longo e chato, como qualquer outro dia. Os negócios
estão indo melhor agora que as guildas estão de volta. Mas ainda não temos tantos
clientes quanto eu gostaria para conseguirmos pagar o forno novo.‖
―Eu me referia ao ensopado. Você não disse nada sobre ele.‖
Jace se agarrou às palavras deles, equilibrando as duas mentes em sua
consciência, aconchegando-se ao calor da conversa deles.
―Bem, estava frio. E o bife estava fibroso.‖
―Você chegou tarde.‖
―As ruas estavam uma loucura. As guildas saíram de novo em peso hoje à noite.
Impositores Boros, desordeiros Rakdos... mal consegui chegar em casa.‖
Jace fechou sua consciência de volta na própria mente. Ele teve pena deste
casal, dois dos inúmeros inocentes cujas vidas eram impactadas todos os dias pelas
atividades das guildas de Ravnica. Sua mente formou flashes de imagens das
aberrações Rakdos entrando com tudo em seu quarto na estalagem, com Emmara
em pé, desafiadora diante deles. Seriam essas memórias reais ou forjadas – sua
imaginação a respeito de um evento de que ele só vira as consequências? Jace
colocou as pontas dos dedos nas têmporas e pressionou, como se pudesse
espremer os pensamentos para fora da cabeça, ou como se pudesse empurrar os
buracos vazios de sua memória. Ele ficou olhando para frente, para o nada,
tentando ignorar que a ponta de seu casaco estava mergulhada em uma poça de
algo não identificável.
Jace colocou as mãos sobre a capa e sentiu algo no bolso. Ele retirou a folha de
madeira primorosamente trabalhada que Emmara lhe dera. Ela tinha a mais leve
fragrância da pele dela. Emmara lhe dissera que aquela era uma forma de contatá-
la, mas ele não sabia se ela conseguiria responder. Jace não sabia nem se o broche
lhe indicaria que a mensagem chegara ao seu destino – estivesse Emmara viva ou
morta.
Ele deixou o artefato balançar na palma da mão. Era tão delicado que se movia
levemente com sua pulsação.
―Preciso de você,‖ ele sussurrou.
O artefato se acendeu com uma luz branca por um momento, os intrincados veios
esculpidos brilhando como fios superaquecidos, e Jace sentiu um formigamento em
sua pele. Então o artefato se apagou, os veios se atenuando para fios frágeis como
cinzas, e o objeto se desintegrou em sua mão.
Ele desejou que ela pudesse ouvi-lo, onde quer que estivesse. Jace desejou que,
se ela tivesse escutado, soubesse que isso significava que ele a encontraria. Ao
menos se ela tivesse escutado, pensou, significava que ele tinha dito as palavras.
Então Jace esticou a mão para o outro bolso onde estava a moeda estranha que
ele encontrara na estalagem. Ela podia ter sido derrubada pelos atacantes. Jace
examinou o lado em que figurava o demônio de sorriso enviesado – provavelmente
um símbolo dos Rakdos, considerando a associação deles com as forças
demoníacas. Ele leu o outro lado: CORRA COM A MULTIDÃO BARULHENTA. Talvez fosse um tipo de
grito de guerra para o Culto de Rakdos, pensou Jace, ou um slogan de
recrutamento. Ou alguma outra coisa.
Ele se levantou abruptamente. Subitamente, ele soube onde procurar.
A Oficial Lavínia ficou de pé diante das gigantescas portas duplas que levavam à
mais alta espiral de Nova Prahv, o reduto de sua mestra de guilda. Apenas olhando
para ela, nada pareceria fora do lugar: sua capa estava elegantemente colocada
sobre sua armadura de oficial, sua espada brilhava como uma peça decorativa que
alguém poderia expor sobre a lareira e suas medalhas de três lados mostravam sua
patente e o distrito sob sua jurisdição. Mas sua sobrancelha tremia, mais de
frustração do que de medo. ―Sua Excelência, a Juíza Suprema deseja ter uma
palavra com a senhora.‖
Quando os hussardos abriram as portas para ela, Lavínia pisou sobre o estrado
coberto por um carpete azul e assentiu com a cabeça, o tradicional aceno de
respeito. Sob um enorme sinete Azorius, com suas runas que mais pareciam um
labirinto formando um triângulo perfeito, estava sua mestra de guilda, a Suprema
Juíza em pessoa: a esfinge Isperia. Um escriba vestindo um robe e que tinha
sobrancelhas cinzentas quase maiores do que seu rosto ficou por perto, segurando
uma pena pronta sobre um longo rolo de papel.
―Vossa Excelência,‖ disse Lavínia.
O escriba escreveu em seu papel, fazendo um som agudo de algo arranhando, e
então parou novamente.
As imensas asas emplumadas de Isperia estavam dobradas contra suas costas
de leão, e ela se sentava com a coluna arqueada nobremente. Suas patas se
flexionaram, espetando partes do carpete com suas garras.
Os olhos da esfinge se focaram diretamente em Lavínia. Alguns diziam que a
mestra de guilda nunca piscava, e Lavínia não encontrou evidências do contrário.
―Você retornou da investigação ao suspeito,‖ disse Isperia.
―Sim, Excelência,‖ disse Lavínia.
―E mesmo assim Jace Beleren não está diante de mim agora. Por que isso?‖
O escriba continuou arranhando. Lavínia não conseguiu evitar lançar a ele um
olhar de incômodo.
―Ele fugiu das nossas patrulhas. Nós precisamos de mais hussardos, mais magos
legistas.‖
A esfinge agitou as grandes asas. ―Não me parece que você vá obter sucesso
com mais recursos.‖
Os dentes de Lavínia se apertaram. Não se contradizia uma esfinge, muito menos
sua mestra de guilda.
―Você descobriu o que podia da cena?‖
―A evidência parece clara, Excelência. Temos testemunhas que confirmarão que o
suspeito fugiu da cena depois de tentar usar magia em nossos oficiais.‖
―Esse homem parece perigoso, Oficial Lavínia. Como você o perseguiu?‖
―Nossa perseguição foi atrasada por uma altercação com um indivíduo não
relacionado ao caso. No momento em que resolvemos esta situação, o suspeito
tinha escapado. Mas nós o encontraremos.‖
―Uma pessoa atrasou toda a sua investigação?‖
―Era um ogro, Excelência. Um dos Gruul. Um guerreiro temível.‖
―E ele, é claro, foi apreendido em concordância com os protocolos?‖
―Sim, Excelência. Nós o confinamos temporariamente.‖
―Temporariamente?‖
―Ele quebrou os feitiços de detenção.‖
―Desfazendo suas runas de lei?‖
―Esmurrando-as... Excelência. Ele também está desaparecido.‖
Isperia lançou-lhe um olhar zangado. ―Oficial Lavínia,‖ ela vociferou, ―quando eu
lhe fizer uma pergunta, você responderá com nada menos do que a mais perfeita e
transparente verdade. Entendeu?‖
Foi necessária toda a força de vontade de Lavínia para não dar meio passo para
trás. O escriba continuava escrevendo, sua pena indo para frente e para trás, e ele
murmurou algo para si mesmo.
Lavínia manteve os ombros erguidos. ―Sim, Excelência.‖
―Que informação à levou até aquele edifício?‖
―Nós recebemos uma indicação de um mensageiro. A mensagem foi enviada
anonimamente. Ainda não foi feita uma investigação sobre a origem dessa
indicação, mas cuidarei disso em seguida.‖
―Oficial Lavínia, a senhora está ciente de que foi relatado que a colega de
Beleren, Emmara Tandris, foi sequestrada naquela mesma noite?‖
―Estou.‖
―E está ciente de que ela é – ou era – uma dignitária do Conclave Selesnya?‖
―Eu—eu não estava, Excelência.‖
―E está ciente de que alguns dentre os Selesnya estão culpando a inadequação
da segurança do Décimo Distrito pelo desaparecimento dessa elfa?‖
Lavínia gaguejou, tentando formar palavras de protesto. A esfinge se sentou
novamente sobre as ancas e ajeitou as asas. Seus olhos que não piscavam
vagaram para longe, observando o resto da câmara. Lavínia sentiu que sua mestra
de guilda tinha perdido o interesse nela naquele momento.
―O que os Boros fizeram quanto a essa situação?‖
―Logo depois que nos reagrupamos, a Legião Boros enviou seus próprios
investigadores. Como de costume, eles demandam controle sobre a investigação, e
como de costume eles não submeteram seu requerimento pelas vias adequadas.‖
―Deixe que eles cuidem da apreensão de Beleren.‖
Lavínia congelou. ―Vossa Excelência, eu não entendo.‖
―Minhas palavras foram claras e verdadeiras.‖
―A senhora está—a senhora está entregando isso aos Boros? Mas eles vão só
fazer confusão com este trabalho. Eles vão transformar isso em uma guerra de rua
e nunca encontrarão a verdade.‖
―Porém, eles podem encontrar Beleren.‖
Lavínia perdeu a compostura. Ela olhou pela câmara, tentando encontrar alguma
campainha para tocar, alguma porta para bater. O escriba deu uma olhada para ela,
sem mais nenhum diálogo para transcrever, mas quando ela viu o rosto do homem,
ele rapidamente virou os olhos de volta para os próprios papéis.
―Eu formalmente requisito estender essa investigação,‖ disse Lavínia.
―Preencherei as ordens judiciais necessárias.‖
―Lembre-me,‖ disse a esfinge. ―O que a sua jurisdição abrange?‖
―Todo o Décimo, Excelência, e uma parte dos distritos afastados.‖
―Sua jurisdição agora é cuidar da guarda dessas espirais. Você entregará toda a
documentação e os materiais relativos a Beleren ao líder de investigação da Legião
Boros.‖
O queixo de Lavínia caiu para seu peito. ―Eu serei uma glorificada guarda da
nossa morada.‖
A esfinge não piscou. ―Não vejo glória nisso.‖
A MULTIDÃO BARULHENTA

Enquanto estava parado em frente à porta, Jace sentiu uma rajada de ar quente
vinda debaixo de si. Ele estava sobre uma grade de ferro na rua. Diante dele estava
o notório clube noturno que procurava, onde todos os tipos de desejos estranhos
podiam ser satisfeitos pelo Culto de Rakdos. Fumaças sulfurosas e chamas
tremeluzentes se erguiam da grade abaixo, assim como os ecos de gargalhadas,
risos escandalosos e rosnados inumanos. O sinal sobre a entrada exibia o nome do
clube: A MULTIDÃO BARULHENTA.
Ele bateu.
Uma criatura abriu a metade superior da porta. O indivíduo era do tamanho de
uma criança, mas com presas curtas e um crânio oblíquo. Ele usava uma coleira
decorada com algo que pareciam dentes. Ele apoiou os antebraços pálidos no
peitoril da porta e olhou Jace de cima a baixo, lambendo as presas. ―Dor ou prazer?‖
―Eu tenho negócios a tratar aqui.‖
―Vamo lá, raio de sol,‖ a criatura disse. ―Cê sabe que num tem opção. Quer se
machucar? Ou quer ficar aí fora?‖
―É um assunto urgente que envolve os cultistas de vocês.‖
―Cai fora.‖
O porteiro lançou-lhe um sorriso zombeteiro e bateu a porta na cara dele. Jace
preparou um feitiço e bateu de novo.
A criatura abriu a porta novamente e suspirou. ―Eu acho que te disse—―
―Seu turno acabou.‖
Jace lançou seu feitiço e o porteiro caiu em um sono repentino e profundo antes
de desabar no chão. Jace se inclinou sobre a porta e a abriu por dentro. Ao invés de
pernas, a criatura tinha um monociclo enferrujado em sua metade inferior.
Jace entrou no clube Rakdos, se empurrando contra uma parede de odores e
sons. O teto era surpreendentemente alto na parte de dentro, cheio de bandeiras e
correntes espinhosas penduradas. Uma criatura diabólica assobiava conforme se
balançava em uma corda alta enquanto um homem vestindo calças de couro
engolia bolas de fogo e as cuspia de volta através de seus dentes horríveis.
Dragonetes de escamas negras cheios de cicatrizes lutavam violentamente em
celas que pendiam do teto, e o cheiro de suor e carne queimada vinha de aposentos
adjacentes.
De pé contra a parede estava uma enorme sentinela, alguma coisa entre um
homem roliço e um gigante compacto, vestida com o que parecia o traje colorido de
um arlequim misturado com arame farpado. Era um ferroador Rakdos. Jace sabia
que ferroadores eram ferozes em batalhas, principalmente porque não se
importavam se estavam causando mais dano a si mesmos do que aos seus
inimigos. O ferroador olhou Jace enquanto este entrava, apertando o cabo de uma
maça com pontas de ferro do tamanho de um eixo de carrinho de mão.
Jace queria subir em uma mesa e desafiar o clube inteiro. Ele queria ameaçar
todo mundo que visse, exigindo saber onde Emmara estava. Mas se acabasse
sendo morto, nunca a encontraria. Jace tinha que encontrar uma forma de localizar
aqueles que a capturaram. Ele não podia chegar e perguntar aos clientes do clube
Rakdos se conheciam alguns sequestradores. Mas precisava agir antes que alguém
notasse que havia deixado o porteiro inconsciente.
Por todos os lados, pessoas de todas as formas e tamanhos bebiam e dançavam
e se divertiam. Ele não via ninguém que parecesse um líder Rakdos aqui – esses
eram clientes e fregueses, aqui para satisfazer desejos devassos. Ali perto, uma
mulher com língua de cobra sussurrou na orelha de um clérigo Orzhov. Um viashino
participava com um goblin de uma competição de bebida – do sangue escorrendo
do braço de um homem bem vestido. Jace passou por um vão coberto por uma
cortina de miçangas, mas não olhou muito de perto para ver se eram miçangas
mesmo ou outra coisa.
O aposento dos fundos estava cheio de pessoas de aparência mais dura
iluminadas por tochas bruxuleantes. Guerreiros com chifres o encararam e diabretes
sádicos riram. Gargalhadas e gritos emanavam em igual medida das alcovas
privativas nos cantos da câmara. E através de fendas estreitas nas portas dos
quartos, Jace podia ver de relance traços de carne reluzente. Havia uma pequena
plataforma no meio do aposento, vazio naquele momento, mas manchado com
sangue seco e escuro. Ele se sentiu ainda mais fora de lugar nesta câmara, como
um ator pisando no palco sem saber suas falas – ou pior, sabendo que aquela
atuação seria o fim de sua carreira.
Jace caminhou através da multidão lúgubre e deixou seus sentidos mágicos
escorregarem para fora de si. Ele se concentrou em pensar em Emmara, tentando
encontrar uma mente que tivesse qualquer tipo de conexão com ela.
Algo se prendeu em sua mente como um gancho. Alguém neste aposento tinha
uma conexão de algum tipo com Jace. Ele não conseguia ver Emmara exatamente
– mas era como se estivesse ouvindo ecos de uma voz familiar saltando de volta
para si em farrapos de sua memória. Era tudo o que ele tinha para prosseguir. Jace
caminhou em direção ao fundo da câmara por instinto, buscando a parede mais
distante da saída, e a impressão de conexão se tornou mais forte. Havia uma
mulher sentada sozinha à mesa. Ela usava vestes de couro escuro decoradas com
ganchos farpados. Jace podia ver linhas verticais cortando seu rosto e passando por
olhos da cor do fogo – se eram uma maquiagem ou cicatrizes, ele não sabia dizer.
Ela sorriu perversamente enquanto Jace se aproximava.
―Parece perdido, docinho,‖ ela disse.
―Estou procurando alguém,‖ disse Jace. ―Uma amiga minha. Uma elfa da guilda
Selesnya. O que você sabe sobre isso?‖
―Estamos todos procurando alguma coisa, querido. Olhe à sua volta. Todos os
gostos podem ser satisfeitos aqui. Por que não para de procurar e se diverte um
pouco?‖
―Não estou com humor para brincar.‖
―Que pena. Você está no lugar errado. Por que não vai embora e deixa a gente se
divertir?‖
Jace bateu com o punho na mesa. Ao mesmo tempo, enviou um lampejo com a
imagem de Emmara para a mente da mulher. ―Você viu ela, não viu?‖ ele intimou.
A mulher Rakdos piscou de surpresa, e então a surpresa se transformou em
raiva. ―Quem te deixou entrar aqui?‖
Jace se abriu para a mente da mulher, deixando as emoções dela o inundarem,
lendo a reação dela ao ver o rosto de Emmara. A mulher a reconhecera, isso estava
claro. Por um curto momento, ele viu um lampejo da mulher liderando um grupo de
guerreiros Rakdos para a Estalagem Torre de Pedra. Jace os viu invadir o edifício,
assobiando e brandindo suas armas. Se ele tivesse um pouco mais de tempo,
poderia olhar mais a fundo e descobrir mais, talvez até saber para onde levaram
Emmara. Mas a mulher sentiu sua magia. Ela se levantou, derrubando a cadeira, e
agarrou um cajado retorcido de trás da mesa. Seus olhos chamejaram e seus lábios
se curvaram em algo como um sorriso. ―Você está fora do seu lugar, garoto. Acha
que pode exigir algo aqui? Sabe quem eu sou?‖
Com isso, ela gritou, e o grito se transformou em uma risada insana e estridente.
Todas as cabeças no clube se viraram para eles quando a cortina de miçangas se
partiu e o enorme ferroador apareceu, pronto com sua maça.
―Estava esperando que você começasse alguma coisa,‖ grunhiu o ferroador.
Com isso, uma luz se acendeu iluminando a plataforma no centro da câmara. O
guerreiro Rakdos gigante pegou Jace e o levou para a luz, onde artistas da guilda
com aparência sombria rodearam o palco, apontando lanças e espadas denteadas
para ele.
―Senhoras e senhores,‖ cantarolou a mulher de olhos de fogo, balançando seu
cajado ao redor para todos os espectadores reunidos.
―Exava!‖ aplaudiu a multidão reunida de assassinos, cultistas e bêbados joviais.
―Gostaríamos de pedir sua atenção para o palco principal!‖
Todos os olhos estavam em Jace. A multidão saudou o novo ato voluntário com
um coro de palmas e copos erguidos. Exava foi na direção dele, controlando
habilmente a multidão com sua voz estrondosa. Ela era uma bruxa sanguinária,
Jace percebeu. Exava não era só uma atendente do bar ou mesmo líder de apenas
um grupo da guilda. Ela era uma feiticeira de alta hierarquia do Culto de Rakdos.
―Nossa estrela é um jovem mago com sonhos de fama, que veio ao Multidão
Barulhenta procurando sua grande chance!‖
A audiência riu. Jace não gostou do jeito que ela disse ―chance‖.
―O que dizem, pessoal?‖ gritou a bruxa sanguinária Exava, gesticulando
animadamente. ―Devemos dar a ele o que espera por ele?‖
Vieram palmas e assobios, incluindo algumas sugestões sinistras do que o ato de
Jace deveria ser.
―Atravessa ele com a presa de um loxodonte!‖ Risadas.
―Faz ele comer os próprios pés!‖ Mais risadas.
No meio de todo o caos, Jace não conseguia se concentrar para examinar a
mente de Exava em busca de informação. Ao invés disso, procurou saídas. Ele teria
que pular para fora do anel de aberrações Rakdos ao seu redor, então chegar até a
porta dos fundos, que no momento estava bloqueada pelo ferroador brutamontes.
Ou podia tentar voltar pela cortina de miçangas, mas ela estava bloqueada por
espectadores.
―Qual é o seu nome, garoto?‖ Exava perguntou.
―Pode ser Berrim,‖ ele disse.
―Pode ser Berrim,‖ ela imitou, recebendo mais aprovação do público.
Isso estava ficando feio. Jace tinha pouco tempo. Ele sabia que os Rakdos eram
impulsivos e perigosos, e tão abruptos e imprevisíveis quanto crocodilos. Não
adiantaria ser mais esperto do que eles. Ele precisava impulsioná-los.
―Bem, Pode-Ser-Berrim, é nossa tradição aqui no Multidão Barulhenta deixar a
audiência escolher a natureza da performance da nossa estrela.‖
―Vou poupá-los desse trabalho todo.‖
Com um rodopio, Jace lançou ilusões de pirotecnia explodindo ao redor do palco
enquanto colunas de fumaça ondulante encobriam Jace em uma névoa azul. Os
guardas Rakdos em volta do palco avançaram para onde ele estivera. Suas mãos
agarraram tornozelos, e eles puxaram uma figura para fora da fumaça.
Para a surpresa de todos, pareceu que a própria Exava emergiu da névoa, furiosa
e chutando. Mas a ilusão de Jace é que lhe dera a forma de Exava. Ele chutou e
ganiu, atuando e tentando parecer tão furioso quanto ela teria ficado se fosse pega
pelos próprios lacaios. Ele apontou um dedo para onde Exava estivera e executou
sua melhor imitação dela, berrando, ―Matem ele!‖
A luz se moveu para onde Exava estava, e a mulher fora trocada de lugar com a
forma de Jace em sua capa azul.
Exava, com a aparência de Jace, caiu para trás quando seus guardas avançaram
contra ela. Em meio a seus protestos, os guardas Rakdos a agarraram. Mas os
guerreiros Rakdos enfurecidos não pararam aí.
―O show acabou mais cedo, homenzinho,‖ disse o ferroador enorme, e ele
atravessou as tripas da bruxa sanguinária em um só golpe com a ponta de ferro de
sua arma. Sangue jorrou da boca dela.
A multidão no Multidão Barulhenta aplaudiu vigorosamente, acreditando que o
trapaceiro Jace fora o transpassado. Na nuvem fumacenta, as pessoas não
perceberam que ele, disfarçado de Exava, ia em direção à porta dos fundos.
―Tenha certeza de ficar de olho nele,‖ ele disse ao guerreiro que portava um
machado nas portas dos fundos, apontando o polegar para a ferida Exava. Então
saiu dali.
Assim que estava do lado de fora, Jace desfez a ilusão sobre si mesmo. Ele
esperava que ao fazer isso a ilusão que conjurara sobre a bruxa sanguinária duraria
o suficiente para lhe dar um tempo para respirar. Então talvez ele conseguisse um
momento para esquadrinhar a mente da bruxa sanguinária de novo, se ela ainda
estivesse viva. Mas a parte de trás do Multidão Barulhenta se abriu com uma
explosão, a arquitetura do clube totalmente incapaz de se opor ao frenesi e à sede
de sangue de uma multidão enraivecida de cultistas Rakdos. Um grupo de diabretes
alados rodearam Jace, uivando e convergindo para bloquear seu caminho.
―Onde exatamente você acha que está indo?‖ disse a bruxa sanguinária.
A ilusão fora quebrada, e Exava estava de volta à sua própria aparência
novamente. Com uma mão, ela apertava um ferimento pulsante no estômago. Os
outros cultistas fizeram um círculo ao redor dos dois, mas deram a ela um espaço
amplo.
―Não faça isso. Tudo o que eu preciso é saber para onde eles a levaram,‖ disse
Jace.
A bruxa sanguinária gargalhou com uma risada lenta e bamboleante que cresceu,
respiração após respiração, até virar um cacarejo insano. ―Garoto, você não
aprendeu? Nunca diga não faça para uma garota Rakdos.‖
Ela lançou uma inundação de magia de dor pelos dedos, atravessando a noite e
atingindo Jace como garras de relâmpago. Jace caiu de joelhos, cada músculo do
corpo preso na rigidez da dor, seus dentes pressionando uns contra os outros
enquanto o feitiço de dor perfurava o seu corpo em todas as direções. Finalmente, a
bruxa sanguinária cedeu e deixou o feitiço acabar. Jace desabou sobre suas mãos e
joelhos, a cabeça flácida, o suor brilhante na testa. Fumaça arcana emanava de seu
corpo.
Os saltos de Exava tilintaram nas pedras do pavimento conforme ela se
aproximava. A respiração de Jace se acalmou. Alongando os músculos para se
livrar da dor, ele se esforçou para colocar um pé no chão, e se empurrou para ficar
de pé.
―Pare com isso agora,‖ ele disse. ―Me diga onde ela está, e eu vou seguir meu
caminho.‖
―Ah, querido, não,‖ ela disse. ―Você não pode ir embora sem isso.‖
A maga Rakdos lançou outra onda de agonia que bateu contra Jace. Ele arqueou
as costas e caiu de lado, batendo-se contra a rua. Enquanto o feitiço durava um
momento e depois mais um momento, Jace forçou os pulmões a respirarem através
da dor. Ele respirou ruidosamente entre os dentes, engolindo saliva.
O feitiço de Exava terminou, e Jace ofegou.
―Certo,‖ ele sussurrou. ―Já chega. Estamos quites agora.‖
Exava riu das palavras dele. ―Quites? Chega? O que são essas palavras que você
está dizendo, homenzinho? Estou começando a achar que essa é sua primeira festa
Rakdos.‖
Exava reuniu poder novamente. Ela criou uma jaula com seus dedos de unhas
longas, fazendo gotejar sangue de seu próprio ferimento. Exava fechou as mãos
uma sobre a outra, formando uma esfera de agonia que cintilou como o fogo em
seus olhos. Os sapatos dela tilintaram para mais perto da forma prostrada de Jace.
Finalmente, ela ergueu as mãos acima da própria cabeça e trouxe o feitiço abaixo
como um martelo, mas a mão de Jace se ergueu como um chicote, e a esfera de
dor congelou entre eles, parada no meio de sua trajetória, girando suspensa e sem
peso no ar. Jace se desvirou e levantou, mantendo a mão direcionada ao feitiço
Rakdos, os dedos em forma de garras para mantê-lo imóvel no espaço. Ele se
ergueu totalmente, alongando seus músculos rígidos. Fechando um punho, Jace se
se focou em sua contramágica, e o feitiço de dor evaporou.
Exava bufou zombeteiramente. Ela lançou uma chuva de ataques arcanos, cada
um como um rojão feito de morte elétrica direcionado a Jace. Mas ele se moveu
agilmente, contra-atacando cada feitiço com uma mágica de negação própria, e a
plena força da malícia de Exava nunca chegou totalmente até Jace. Ele caminhou
na direção do bombardeio dela, e ela deu alguns passos para trás conforme lançava
mais feitiços, todos repelidos pela defesa hábil de Jace. Em um movimento rápido
como um raio, ela lançou uma adaga de três lâminas, um ataque físico inesperado.
A adaga girou pelo ar e atingiu a bochecha de Jace enquanto passava rapidamente
por ele. Os outros cultistas Rakdos berraram de rir e rodearam os dois.
Jace contra-atacou a bruxa sanguinária com magia mental. Ele arremessou a
própria consciência contra a dela, sem se segurar. Jace se tornou ela, se deixando
ser absorvido por ela, compartilhou a mente dela e enxergou a partir dos sentidos
de Exava. Ele sentiu o poder nela, a liberdade feroz independente de lei ou moral ou
contenções.
Finalmente, Jace viu uma série de imagens, impressões sem palavras
desconectadas do pensamento racional. Ele viu uma câmara úmida no submundo,
acessada apenas através de um caminho retorcido por túneis iluminados por
tochas. Era uma área reivindicada pelos Golgari, mas os Rakdos ocasionalmente
faziam negócios escusos com outras guildas ali. Ele viu uma figura coberta por uma
capa lá naquela câmara cheia de musgo, contratando Exava para procurar uma
certa dignitária Selesnya. Ele a viu voltando ao Multidão Barulhenta, selecionando
uma gangue de rufiões Rakdos e liderando-os à Torre de Pedra para pegar a elfa
Selesnya. Jace viu Exava instruí-los a levá-la para a câmara no submundo. E ele a
viu lembrá-los de que a elfa devia permanecer ilesa.
Obrigado, ele disse dentro da mente dela.
Jace separou as mentes deles, retornando a si mesmo. Os dois ficaram lá, um de
cada lado, os peitos arfando com o esforço do duelo mágico, ainda em posições de
batalha.
Como seu último esforço, Jace invocou a ilusão mais simples, porém com o maior
alcance que conseguia: as vozes de oficiais Azorius.
―Pela ordem e autoridade do Senado Azorius, eu ordeno a todos vocês que
parem,‖ veio a voz ribombante, tão forte quanto Jace podia projetá-la na mente de
todos os guerreiros Rakdos. ―Cessem todas as suas atividades imediatamente, e
preparem-se para ser detidos em acordo com todas as leis e estatutos
governantes.‖
Não era muito, e ele tinha certeza de que estava usando as palavras legais
erradas, mas foi o suficiente. Houve um momento de confusão enquanto os Rakdos
giravam procurando pelos oficiais Azorius e silvando com sede de sangue. Jace
empurrou para o lado alguns dos guerreiros Rakdos, se misturou com a noite e
desapareceu.
O CAMINHO SUBTERRÂNEO

Um viashino ancião com os olhos esbranquiçados se apoiava em um poste de


luz. Suas escamas um dia foram de um vermelho flamejante, mas estavam pálidas
e lascadas pela idade.
―Boa noite,‖ disse Jace.
O viashino virou a cabeça em direção ao som. Seus olhos se dirigiam à sua
frente. ―Não posso deixar de concordar,‖ grunhiu o viashino. ―Todas as evidências
indicam isso.‖
O encontro com Exava no Multidão Barulhenta trouxera Jace até aqui, à sombria
parte da cidade controlada pelos Golgari. A decoração batia com o que ele vira nos
fragmentos de memória da bruxa sanguinária. Em algum lugar perto daqui, ele
poderia entrar no submundo e encontrar a câmara para onde os Rakdos haviam
levado Emmara.
Jace piscou enquanto olhava o viashino. ―Você não saberia dizer... onde é a
entrada mais próxima para o submundo?‖
―Eu saberia,‖ o homem-lagarto disse. ―Sim.‖
―Estou perto?‖
―Uma pergunta melhor seria: você está sozinho? Não é um lugar para se ir sem
um bom grupo. As sombras lá embaixo estão vivas, sabe? Elas vão chamar o seu
nome. Aranhas que você não pode nem ver vão subir pela sua pele. Coisas que
mordem vão devorar a sua mente.‖
―Eu consigo me virar sozinho.‖
―Consegue? Muito bem, então. Estou honrado em ser a última coisa viva que
você vai ver. Tem umas palavras finais que quer que eu lembre?‖
―Está tudo bem.‖
―E essas serão suas últimas palavras?‖ O viashino virou o queixo vagamente para
trás e para frente, seus lábios reptilianos se franziram. ―Faça como quiser. Não que
importe. Eu não ia me lembrar delas de qualquer forma.‖ Ele se ajeitou contra o
poste. Seus olhos ficaram encarando o nada.
―Então, por favor, senhor, e a entrada?‖
―Eu acho que você está de pé sobre ela.‖
Jace olhou para baixo. Ele estava no meio da rua, mas o padrão em ziguezague
das pedras do pavimento mudava para uma súbita espiral onde estava. Jace agora
podia sentir um encantamento na rua, um mecanismo acionado de forma mística
que podia ser ativado por qualquer mago. O que exatamente ele acionava não
estava claro.
Jace se preparou. Era hora de erguer algumas defesas mais fortes. Ele invocou
um feitiço e deixou-o envolver todo o seu corpo. Jace observou suas múltiplas
sombras sob as luzes da rua desaparecerem, e então seu próprio corpo
desapareceu com elas.
―Você vai querer se preparar antes de ir lá embaixo,‖ o viashino sugeriu.
―No momento, estou invisível aos sentidos,‖ disse Jace. ―É uma magia mental de
encobrimento.‖
O viashino tossiu. ―Muita coisa lá embaixo é como eu,‖ ele disse. ―Eles não
precisam de olhos pra te encontrar. E com certeza não precisam de uma mente.‖
―Vai ter que servir.‖
Jace canalizou um punhado de mana na direção do padrão espiral na rua. Pedra
arranhou pedra, e a rua se desenrolou para baixo, formando um tipo de escada
espiral que descia para a escuridão. O submundo emitiu um bafo de ar pútrido.
―Bem... boa noite,‖ disse Jace.
O viashino ancião assentiu, e Jace desceu os degraus, deixando a superfície para
trás.
Invisível ou não, ele se sentiu nu. Seus pés eram transparentes para seus
próprios sentidos, um truque do seu feitiço, mas ainda emitiam anéis concêntricos
de ondas nas grandes poças de água parada que cobriam o piso do túnel. Seu
corpo não refletia luz, mas a superfície dele ainda criava contornos de forma
humana nas cortinas de teias de aranha. Sua respiração ainda aquecia o ar gélido,
deixando rastros de névoa no ar.
Ele podia sentir a magia Golgari no submundo à espreita como um esporo
persistente. Jace parecia estar atravessando as ruínas tomadas por fungos de
alguma grande biblioteca: colunas de mármore branco cobertas por fungos
prateleira se assemelhavam a troncos caídos; lajes de estantes se amontoavam em
ninhos para abrigar sabe-se lá o quê; poças salobras se acumulavam em buracos e
concavidades da câmara conforme centenas de milhares de tomos se
decompunham até virar lodo.
O submundo estava cheio de insetos negros e quitinosos do tamanho do punho
de Jace escalando as ruínas. Alguns deles abriram múltiplos pares de asas que
ficavam fazendo o movimento de tesouras, e foram zumbir em volta da cabeça dele,
agitando as antenas. Sombras se moviam com barulhos pesados demais, atreladas
a anatomias ocultas na escuridão. Criaturas-planta bioluminescentes rastejavam de
poça em poça, parando para beber a sujeira. Em algum lugar, os degraus de uma
escada de metal retiniram, o som ecoando como pingos de água pelos túneis.
Era estranho se guiar assim. Ele usou detalhes fugazes da memória de Exava
como um tipo de mapa, mas era um mapa pobre. Várias vezes, Jace teve que voltar
por onde viera enquanto ficava mais e mais perdido. Mas quando se viu em uma
gigantesca câmara úmida iluminada por alguns raios vibrantes, foi tomado por uma
sensação de déjà vu. A água dentro dos tubos de bronze em ângulos insanos
sussurrava como se fossem vozes apressadas. Jace se lembrava do cheiro
bolorento da câmara alagada através da memória da bruxa sanguinária, mas
experienciá-lo em pessoa trazia uma urgência terrível. Este era o lugar para onde os
guerreiros Rakdos trouxeram Emmara. Mas não havia sinal dela. Ele seguiu em
frente.
Jace foi pisando nas pedras erguidas da água, evitando as poças escuras. Apesar
da clara influência Golgari, a presença da guilda Izzet era tão forte quanto ela aqui
embaixo. Os inventores meio-loucos da Liga Izzet tinham roscado milhas de
canalizações sob a cidade, fornecendo elementos essenciais aos distritos. Em
algum lugar havia gigantescos geradores barulhentos, os órgãos pulsantes do
plano, onde equipes de trabalho de magos e elementais empregavam magia para
manter a infraestrutura de Ravnica.
Grande parte da tubulação, latão reluzente sobre a alvenaria coberta de líquen,
parecia nova. Jace pensou sobre a hostilidade crescente entre as guildas, e aqui
estava: engenharia Izzet correndo pelos túneis Golgari, uma manifestação física da
disputa das guildas pelo domínio. Ele seguiu os canos, entrando em túneis
adjacentes e ouvindo o líquido lá dentro que murmurava e gorgolejava como se
fossem vozes.
Besouros rastejavam pelo corpo invisível de Jace. Não estava claro se seu feitiço
de invisibilidade, que se baseava em manipular a mente, funcionava neles, ou se
eles simplesmente não se importavam e estavam perfeitamente felizes em escalar
superfícies invisíveis, como suas pernas. A capa molhada grudava em seu corpo,
visível ou não, e o cheiro desse lugar era avassalador.
Jace passou suas mãos transparentes pelos tubos Izzet que delineavam o túnel.
Não era só água que corria dentro deles. Ele podia sentir mana, bruto e poderoso,
fluindo por eles também, perceptível apenas à sua aptidão como mago. Mais
precisamente, Jace sentia que o mana fluía paralelo aos canos – a energia mágica
não era domada pelos condutos de metal. Os tubos tinham sido construídos ao
redor do fluxo de mana. O mana não era só uma corrente direcional, mas uma
trama complexa de potencial mágico que atravessava o túnel até a próxima câmara,
traçando seu próprio caminho.
Quando o teto da câmara ficou mais alto novamente, a corrente de mana subiu
para o topo, correndo ao longo de uma arcada coroada por uma escultura em pedra
antiga do símbolo da guilda Golgari. Jace se perguntou se Ravnica sempre tivera
aquelas estranhas correntes de mana fluindo pela cidade, e quantos magos sabiam
disso.
E foi então que ele viu os corpos.
Julgando pelas máscaras com chifres e armaduras cheias de espinhos e pintadas
como arlequins, deviam ser guerreiros Rakdos. Um estava amassado na parede da
câmara. Outro estava de rosto para baixo sobre um monte de entulho de
decomposição. Outro tinha sido rasgado em dois na altura da cintura e suas partes
foram jogadas em direções diferentes. Eles não podiam ter morrido há mais de uma
hora; o sangue ainda escorria de suas feridas, e sua carne ainda não tinha
começado a se decompor.
Os corpos capturaram sua atenção tão completamente que Jace não percebeu o
gigantesco trol de esgoto que quase pisou nele.

Ral Zarek estava em pé no meio da praça lotada, olhando carrancudo para o


pergaminho que segurava entre duas hastes metálicas de mizzium. Ao seu redor,
outros pesquisadores Izzet conduziam experimentos, conversando entre si e
atraindo olhares estranhos dos transeuntes. Ral olhou as figuras rabiscadas no
pergaminho. Eram uma série de demandas de seu mestre de guilda, mas as
palavras do dragão frequentemente pareciam enigmas. Se comunicar com o gênio
dragônico nunca era fácil. Niv-Mizzet não era um mentor ou um exemplo a ser
seguido para Ral – era um incômodo. Ele forçava Ral a expandir seu pensamento,
mas Ral sabia mais do que Niv-Mizzet jamais poderia: ele conhecia a existência de
outros planos.
―Com licença, Mago de Guilda Zarek.‖
Uma das pesquisadoras, uma mulher com uma geringonça de múltiplas lentes na
cabeça, estava apontando para sua própria manopla. O objeto era feito de mizzium
metálico alquímico, e estalava com energia, deixando seu cabelo riscado de branco
em pé.
―Sim? O que você achou?‖
―A trama de mana é interrompida perto daqui,‖ ela disse.
―Para onde ela vai?‖ Ral perguntou. ―Para dentro do esgoto?‖
―Não, nós já verificamos. Skreeg explorou três níveis abaixo. Esta trama parece
que simplesmente some.‖
Ral franziu o cenho. ―Ela não pode só desaparecer,‖ ele disse.
Eles tinham rastreado o fio retorcido de mana por metade do distrito. Este era um
novo desdobramento. A corrente invisível de mana parecia uma forma de encontrar
a rota do Labirinto Implícito. O fenômeno percorria um caminho sob muitas ruas,
então ziguezagueava para longe de uma forma aparentemente aleatória,
atravessando edifícios até as folhagens de um parque urbano, passava por distritos
industriais cobertos de fumaça e descia para os túneis do submundo. Mas agora
eles tinham perdido a trilha.
Ral olhou de novo para os enigmas nas instruções. O dragão obcecado
claramente achava que essa era uma área importante de ser pesquisada. A forma
como os garranchos tinham atacado violentamente e atravessado o pergaminho,
verticalmente e horizontalmente e de todas as direções ao mesmo tempo, para Ral
parecia formar um sorriso de deboche de alguém que sabia algo. Ele enrolou o
pergaminho e o enfiou na manga.
Ral caminhou pelas pedras do pavimento, observando os padrões, meio que
esperando que alguma mensagem estivesse escrita na rua. Não estava. Os outros
magos observavam.
Ele piscou. Ral apertou os olhos para o sol, que rodeava uma torre alta como um
halo. Formas parecidas com pássaros planavam em círculos pelo céu. ―Verifiquem a
torre,‖ ele disse.
Todos os outros magos olharam para cima, protegendo os olhos com as mãos.
Eles murmuraram.
―A trama de mana de fato pode se tornar vertical aqui,‖ disse a pesquisadora que
ele estivera questionando, olhando para a própria manopla. ―Mas, Mago de Guilda
Zarek, nós estamos impossibilitados de prosseguir.‖
―É só—‖ Ele respirou fundo. ―É só ‗Zarek‘. Nada de ‗Mago de Guilda‘. Fui claro? E,
me desculpe, mas eu realmente acabei de ouvir uma maga de guilda me dizendo
que estava impossibilitada de tentar algo?‖
―É só que... é um ninho Azorius. Eles criam grifos para os hussardos celestes lá
em cima.‖
Ral deu de ombros. ―Conjure um dispositivo de detonação. Arremesse-o na torre
mais alta. Você acha que esse é um experimento que vale a pena desenvolver,
Maga de Guilda?‖
A pesquisadora olhou para os outros magos, e então para a torre, e de volta para
Ral.
―Eu falei diretamente com o Mente de Fogo. Esse projeto é a prioridade máxima
dele. Sabe o que isso significa? Significa que é sua prioridade máxima também. Nós
vamos resolver esse labirinto, e os Izzet vão controlar uma das maiores—‖ Ele
parou e abaixou a voz. ―Nós vamos controlar tudo.‖
―Mas, senhor,‖ outro mago falou. ―Não são só os Azorius. São os grifos.‖
Nuvens se aglomeraram no céu, encobrindo o sol. O rosto de Ral foi coberto
pelas sombras.
―Esqueçam. Deixem comigo.‖
Ral levantou as mãos e apertou os dentes. Em alguns instantes, relâmpagos
azulados chiaram entre as nuvens. Um raio caiu das nuvens negras e se ramificou,
atingindo as torres de quatro edificações em quatro diferentes quarteirões ao
mesmo tempo. Os relâmpagos ricochetearam nas torres e convergiram para um
ponto no ar sobre a linha do horizonte, produzindo o estalo ensurdecedor de um
trovão. No ponto em que os relâmpagos se juntaram, um ser surgiu – um ser feito
da própria tempestade. Seu corpo era de nuvens cinzentas e densas e os olhos e
boca eram relâmpagos.
Ral enviou sua vontade ao elemental, a quarteirões de distância, e ele respondeu.
Sua voz era um rugido de furacão e seus braços e pernas eram ventos de tornado.
Ral esticou o braço no céu, apontando para o ninho Azorius. O elemental de
tempestade respondeu novamente, reconhecendo o comando com o estrondo de
um trovão. Ele deslocou-se ribombando até o edifício Azorius. A ventania cortava o
ar. Ral podia ver jovens grifos levantando voo para dentro da tempestade e então
caindo como brinquedos jogados de lado.
Os outros magos Izzet estavam gritando algo para Ral, mas ele não conseguia
ouvi-los acima dos ventos agitados.
Ao comando de Ral, o elemental de tempestade desceu sobre a torre. A criatura
abriu as mandíbulas, liberando relâmpagos que serpentearam até a construção com
um lampejo. O topo da estrutura explodiu com um desabrochar de faíscas. Acima
dos trovões e dos ventos, Ral conseguia ouvir os guinchos dos grifos.
O lado do edifício foi atingido pelos ventos, lançando pedaços de alvenaria na
praça. Pessoas correram, protegendo as cabeças dos escombros que caíam.
Uma falange de hussardos apareceu, as armas brilhantes a postos. Eles se
colocavam atrás de uma administradora, algum tipo de subministra ou legislatocrata
que começou a ler uma lista de infrações e estatutos que alegavam que Ral tinha
descumprido. Ele achou isso extraordinariamente engraçado.
Sobre eles, o elemental de tempestade varria a torre com suas garras de
relâmpago, deixando arranhões nas pedras e dispersando os grifos restantes em
todas as direções. O elemental virou seu olhar elétrico para baixo, e Ral olhou para
cima e acenou para ele. O elemental trovejou uma resposta e flutuou para baixo,
cobrindo a praça com um caos de golpes de vento através das selvagens correntes
mágicas.
A subministra leu sua lista de demandas cumprindo seu dever até que os ventos
sopraram o pergaminho para o ar e um relâmpago o transformou em cinzas. As
expressões de todos os Azorius estavam retorcidas contra a tempestade. Um a um,
eles recuaram.
Assim que a praça ficou vazia exceto pelos magos Izzet, Ral apertou o punho e o
abriu. O elemental de tempestade se agitou para longe no céu, se dissipando até
virar névoa. Trovões ribombavam ao longe, em algum lugar muito além do
horizonte.
―Mago de Guilda—é... Zarek, senhor,‖ disse a jovem maga depois que a
tempestade tinha passado.
Ral não se virou.
―Você estava certo. A trama de mana continua para cima pelo ar a partir da trilha
que nós tínhamos seguido. Ela passa pela torre e então faz um ângulo para baixo,
para um telhado adjacente.‖
―Vamos continuar, então,‖ disse Ral.
―Tem mais uma coisa, senhor. A Pesquisadora Klama morreu enquanto
lutávamos contra os Azorius, senhor. Ela ficou presa em um dos feitiços de
detenção deles. Quando nós, hm, dispersamos os magos legistas, ela não
conseguiu sair. E sufocou.‖
―Nós temos muito o que fazer,‖ disse Ral. ―Não vamos deixar a trilha esfriar de
novo.‖

O símbolo da guilda Golgari estava pintado em branco na face do trol como uma
máscara de inseto albino. Ele era alto o suficiente para que o nível dos olhos de
Jace lhe batesse no peito. Uma florescência de cogumelos prateleira crescia pelas
costas e ombros enormes da criatura. Seu corpo musculoso era coberto por um
tecido de cicatrizes entrecruzadas – a marca de uma queimadura no ombro, um
ferimento causado por um corte irregular na coxa, uma lesão causada por algum
tipo de furo do lado da cabeça – todas se fecharam formando cicatrizes rígidas e
ásperas. Estava claro que o trol já entrara em muitas lutas, e aparentemente seu
corpo era muito bom em se curar dos danos, mesmo que não de um jeito bonito.
A julgar pela forma como o trol passou direto por Jace, sem tomar conhecimento
dele, parecia que o feitiço mental de encobrimento estava fazendo seu trabalho. Ele
manteve a respiração tão silenciosa quanto possível e tentou formular um plano
para sair antes de ser descoberto, mas o caminho para fora estava bloqueado pelo
trol formidável.
O trol cheirou o ar, bufando forte pelas narinas. Seus bíceps se flexionavam
conforme ele brandia o porrete para frente e para trás no túnel escuro, rasgando
teias de aranha tão grossas quanto dedos humanos. Jace permaneceu tão imóvel
quanto conseguia. Ele sabia que devia tentar permanecer calmo, assim não
transpiraria, espalhando seu cheiro pela câmara, e as batidas do seu coração não o
denunciariam. Qualquer evidência que Jace revelasse de si mesmo poderia
enfraquecer sua ilusão e fazer com que o trol o notasse. Mas seu corpo parecia
pensar que era um bom momento para se inundar de pânico. Um besouro do
tamanho de seu punho escalou sua perna, satisfeito em tratá-lo como qualquer
outro obstáculo imóvel. Se o trol percebeu, não demonstrou.
Então, sem aviso, o trol golpeou a parede do túnel com seu porrete, esmagando
outro inseto gigante e transformando-o em polpa. Ele agarrou os restos
esverdeados que escorriam do exoesqueleto partido e o limpou com a língua. O trol
engoliu e estalou os lábios indelicadamente. Jace pressionou a boca com as mãos,
mas não conseguiu abafar um gemido.
O trol se virou com tudo. ―Quem tá aí?‖ ele rugiu. ―Sai, coisa das sombras. Eu
sinto o cheiro da carne em você.‖
Jace podia sentir sua ilusão se dissolvendo. Os sentidos do trol eram bons
demais para serem enganados pelo feitiço, e em instantes ele estaria à vista
novamente. Jace pensou em quais outras magias poderiam ajudar a protegê-lo ali,
mas, no pânico do momento, não conseguia se lembrar de nada. Ele pressionou as
costas contra os tubos Izzet, ouvindo o sibilo de seus conteúdos pressurizados, e
tentou evitar o porrete do trol.
―Aí está você, coisinha das sombras,‖ disse o trol.
Contato visual. Ele estava visível. Jace preparou uma contramágica no impulso,
mas ela não faria nada contra o gigantesco porrete do trol.
―Você invadiu meu portão? É isso? Você traz carne para as terras do Enxame
achando que vai levar a melhor sobre mim e pegar o que é nosso?‖
Jace olhou ao redor e agarrou uma adaga serrilhada de um dos guerreiros
Rakdos mortos, só para se sentir armado. Então teve uma ideia.
O trol riu. ―Vai lá,‖ ele disse. ―Dá um golpe no Varolz. Bate o mais forte que você
consegue.‖ Ele abriu bem os braços, expondo seu peito cheio de cicatrizes e
costuras de ferimentos que mais pareciam sorrisos.
Jace se virou para a parede atrás de si, enfiando a adaga nos tubos de bronze, e
mergulhou para o lado. Uma inundação de água pressurizada superaquecida se
espalhou a partir da fenda, atingindo o trol. Jace rolou, tentando dar a volta no trol
distraído, e ficou em pé novamente.
O jato de água já tinha diminuído para um fio. A nuvem de fumaça se dissipou, e
o trol ainda estava lá, gargalhando com grunhidos de tremer o peito. A água
escaldante tinha devorado muitas camadas do peito do trol, expondo músculos
brilhantes, mas sua pele já estava se espalhando em tiras regenerativas sobre o
ferimento.
―Agora é a vez do Varolz,‖ disse o trol.
―Jace!‖ chamou uma voz feminina vinda da escuridão. ―Se abaixe!‖
Apesar disso, o porrete do trol acertou seu alvo. O mundo de Jace se transformou
em uma explosão cegante de dor, e então em um vazio negro enquanto ele caía
mole para um sono de pedra.

Quando Jace acordou, estava olhando para a cara de um monstro. Mas não era
Varolz, o trol.
A criatura olhando para ele era um enorme aglomerado de vinhas, folhagem e
mármore branco vagamente humanoide. Jace ainda estava na úmida câmara
Golgari, mas este monstro não era Golgari. Ele florescia com vida, uma escultura
feita de plantas e animada por uma luz interna.
Uma mão o tocou. Para o imenso alívio de Jace, era Emmara, ajoelhada ao seu
lado.
―Achei que você não ia conseguir,‖ ela disse. Emmara estava lançando feitiços,
curando suas feridas. Assim como nos velhos tempos.
Ele olhou para cima novamente, para o gigantesco elemental da natureza, e de
volta para Emmara. ―Achei que você tivesse sido raptada,‖ Jace disse.
―Mude o que você pensou,‖ Emmara disse secamente. ―É nisso que você é bom,
não é?‖
―Os Rakdos... os Rakdos não te pegaram?‖
―Bem, eu fui com eles, mas por vontade própria. Eles quebraram tudo abrindo
caminho até o quarto da estalagem, e fizeram uma demonstração de como devastar
o lugar. Eles sabiam meu nome e tentaram me ameaçar. Me disseram para ir com
eles. Esse não é o estilo deles – os Rakdos são homicidas, não sequestradores.
Acho que alguém os colocou nisso.‖
Jace pensou na figura encapuzada que vira na memória da bruxa sanguinária.
―Alguém os colocou nisso. Só que ainda não sei quem. Mas por que você foi com
eles?‖
―Por sua causa. Se eu estivesse sozinha na estalagem, poderia tê-los dispensado
imediatamente. Mas você estava ocupado demais destruindo a própria mente.‖
―Eu estava... o quê?‖
―Eles quebraram tudo no quarto, e você caiu e não acordava. Um deles te pegou
pelo pescoço. Os Rakdos iam te matar. Então fiz um trato com eles.
―Eles te deixaram em paz,‖ Emmara continuou, ―e eu permiti que me conduzissem
até aqui embaixo. Eles me trouxeram aqui e nós esperamos. Acho que os Rakdos
deviam me entregar para alguém. Mas, ao invés disso, eu invoquei meu amigo aqui,
e ele matou todos eles. Foi o suficiente para afastar aquele trol Golgari também.‖
Jace observou o gigantesco elemental Selesnya. Ele estava de cabeça baixa para
caber ali, mesmo com o teto alto da câmara. Invocar uma criatura daquelas era uma
magia poderosa. Jace vira Emmara criar pequenos constructos vivos antes, mas
eram apenas brinquedos. Ele nunca a vira conseguir invocar algo como isto.
Emmara olhou para o elemental e abaixou a cabeça em um aceno para ele. O
elemental retribuiu o cumprimento com sua cabeça enorme, e ela deixou o feitiço de
invocação se esvair. A criatura brilhou por um momento, iluminando a câmara.
Então seu corpo gigantesco se tornou transparente conforme a magia se dissipava.
O elemental se dissolveu no ar, deixando para trás apenas algumas poucas folhas
verdes que flutuaram até o chão da câmara.
Era muita coisa para entrar na cabeça de Jace, e ele tinha certeza de que não
estava entendendo tudo. Mas havia ao menos um detalhe que Emmara mencionara
que Jace entendera. Ela tinha dito que, quando estavam na estalagem, ele estava
destruindo a própria mente. Antes que tivesse uma chance de perguntar o que ela
queria dizer com isso, uma presença se juntou a eles.
Um vampiro apareceu da escuridão, tão quieto quanto uma brisa. Estava nu da
cintura para cima, apesar do frio do subsolo, e seus olhos refletiam a luz como os de
um gato. Ele flutuou sem esforço das partes mais altas da câmara e se alinhou ao
chão perto dos dois.
―Meu nome é Mirko Vosk,‖ o vampiro disse. ―E parece que vocês deram um jeito
naqueles lacaios Rakdos. Obrigado. Me pouparam de um problema.‖
―Você é Dimir,‖ disse Emmara.
―Para o azar de vocês. Mas já era hora de vir te buscar, minha cara, já que meu
mestre não gosta de ser deixado esperando. E você, Beleren, será um bônus – ele
está de olho em você há algum tempo.‖
Kavin subiu degrau por degrau da escadaria luminosa, espiralando lentamente em
seu caminho através de uma das torres de Nova Prahv. Ele tinha uma ordem de
passagem em mãos, assinada pela líder da guarda do portão Azorius, e a mostrava
para cada burocrata, escriba ou mago legista que encontrava. Qualquer um que
olhasse o vedalkeano diria que seu rosto parecia plácido, mas havia uma dureza
nele capaz de transformar pedra em poeira.
Um par de guardas lado a lado abriu a porta para ele. O escritório de Lavínia era
surpreendentemente compacto.
―Já faz um longo tempo, Kavin,‖ disse a Oficial Lavínia. ―Chá?‖
Kavin entrou e se sentou no lado oposto da pequena escrivaninha. ―Obrigado por
me encontrar.‖
―Você disse que tem informação para mim? Sobre Jace Beleren?‖
―Tenho.‖
―Onde ele está?‖
―Não sei seu paradeiro atual.‖
―Quando o viu pela última vez?‖
―Há três dias. Ele me levou para uma estalagem perto de seu santuário, onde eu
trabalhei para ele em sua pesquisa. Mas esse santuário foi destruído. Assumi que
você já soubesse disso.‖
―Que tipo de pesquisa ele conduzia lá?‖
―Não me lembro muito dos detalhes. No nosso último encontro, ele destruiu a
maior parte das minhas memórias relacionadas ao que descobrimos.‖
―Ele é capaz de destruir memórias com magia?‖
―Sim.‖
―E ele usou essa magia para evitar que você se lembrasse da pesquisa?‖
―Sim. Mas enquanto ele executava o feitiço de destruição de memória, eu fugi.
Consegui anotar algumas coisas antes que o feitiço estivesse completo.‖ Kavin
mostrou um pergaminho com garranchos apressados e o colocou sobre a
escrivaninha. ―Não entendo tudo o que escrevi, mas essa é a minha letra. Anotei
sobre as pistas que encontramos esculpidas nas edificações da cidade e sobre uma
mensagem escrita em um antigo código Azorius. Também rabisquei sobre um
caminho que os Izzet estão tentando descobrir, que poderia levar a um poder capaz
de desbalancear as guildas. No final, escrevi o seu nome.‖
―Estou muito feliz que tenha feito isso.‖
―Você entende que não tenho como saber se o que quer que eu tenha escrito é
verdade, certo? Ainda sinto que essas anotações podem ser parte de alguma piada
elaborada. Mas achei que era algo que deveria ser trazido para as autoridades
competentes.‖
Lavínia colocou sua xícara na mesa e dobrou as mãos. ―Você deveria voltar para
nós, Kavin. Seria um bom mago legista. Nós poderíamos fazer uso de você.‖
―Essa não é mais minha vida. Além disso, o Pacto das Guildas se foi. Velha Prahv
se foi. Não tenho mais lugar nessa guilda.‖
―Tem certeza de que isso não é sentimentalismo, Kavin? Lealdade a esse homem
que você chama de Mestre Beleren?‖
―Não me insulte. Quão leal eu poderia ser? Estou aqui, não é?‖
―Sim, está. Kavin, você não teria interesse em nos ajudar a contatar Beleren?‖
―Você quer dizer montar uma armadilha.‖
―Eu quero dizer fazer o que for necessário para restaurar a ordem neste distrito.‖
―Ele pode não ser muito útil. Estava planejando destruir as próprias memórias
também. Pode ser que ele saiba ainda menos do que eu.‖
―Sabia que uma oficial Selesnya de alto escalão estava com Beleren na noite em
que o santuário foi destruído?‖
―Sim, me lembro disso. A amiga dele, Emmara Tandris.‖
―Uma favorita de Trostani, as dríades irmãs. Você estava ciente de que ela foi
sequestrada naquela mesma noite? E que nenhum dos dois foi visto desde então?‖
‖Não estava. Você confirmou isso?‖
―Está acontecendo muito mais do que o que você sabe, Kavin. Volte para nós.‖
―Mas é como eu lhe disse, Lavínia. Ele não sabe nada desse labirinto. Se estiver
um pouco como eu, então ele já deve ter enlouquecido.‖
―Pode ser. E também pode ser que tenha sido melhor para ele. Neste exato
momento, essa pode ser a única coisa que o mantém vivo.‖

CONTINUA…
SOBRE O AUTOR

Doug Beyer começou como um fã de MAGIC: THE GATHERING®, então se tornou web
developer do magicthegathering.com, depois um escritor prolífico de flavor text, e
eventualmente um escritor e creative designer do time criativo de pesquisa e
desenvolvimento de Magic™. Ele reside em Seattle, Washington.

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