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[2020] Não existe arquitetura decolonial

Ana Paula Baltazar

Este texto foi escrito a partir de uma provocação do colega Leo Name,
que propôs um volume da revista Redobra com a temática “Insurgências
decoloniais”. O título original anuncia o círculo vicioso da relação entre a
prática arquitetônica e o ensino, ou, em outras palavras, a colonialidade
da arquitetura e da socialização nesse campo. O texto aponta como saída
desse círculo vicioso a representação como ferramenta, e não como para-
digma, a possibilidade de projetar interfaces e não espaços acabados, a
antropofagia e a mudança no processo de aprendizagem a partir da lite-
ratura latino-americana, uma das fontes do giro decolonial.1

A caixa preta do processo de projeto colonial

modo architectorum — a reprodução


de prescrições não ditas e não questionadas —, no último texto que

2
A caixa preta desse

externas sem as questionar e sem alterar de fato sua dinâmica interna,


3

1 Primeira publicação: Não existe arquitetura decolonial porque não existe ensino de
arquitetura decolonial porque não existe arquitetura decolonial. Redobra: Laboratório
Urbano, v. 6, n. 15, 2020, pp. 121–136.
2 banham, A black box: the secret profession of architecture, [1990] 1999, p. 295.
3 Exemplo disso é discutido por Sérgio Ferro, mostrando que a “arquitetura moderna
não é filha do vidro, do ferro e do concreto, como se conta. O concreto é filho de
uma crise enorme no canteiro, uma resposta ao sindicalismo” (ferro, Depoimento
a um pesquisador, [2000] 2006, p. 288). Ferro desmonta a narrativa universal da
evolução estilística que culminaria no modernismo, mostrando que, no século xix, a
opção pelo concreto armado, vidro e aço não teve nada a ver com estilo, mas com
uma batalha político-econômica. O sindicato da construção civil francês, extrema-
mente poderoso, organizou uma paralisação massiva da construção civil e, como
diz Ferro, “o concreto é uma resposta a eles, um material que não precisa nem de

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— ou seja, 5

é nas escolas que os futuros arquitetos são socializados com o modo


- architectorum modo architectorum é uma espé-
cie de cortina de fumaça que tenta velar o fato de que a arquitetura se

abstrato da representação do poder na forma de projeto (e eventual- desde o Renascimento, subordinada a uma série de relações de poder
mente na construção do edifício), que pouco tangencia as demandas

Renascimento italiano vem sendo reproduzido, desde então, no ensino

ao mecenas, que solicitava ajustes de toda ordem até que se desse por -
tra como, lenta e progressivamente, o paradigma da representação vai
- dominando a arquitetura desde o Renascimento,6 primeiro desvalori-
malismo estão na gênese do processo de projeto que, de certa forma, -
7
A consolidação de
os processos
que levaria a obras críticas do modernismo na forma de projetos teó-
modo architectorum 8
, a perspectiva começa a ser usada

4
-
adapta o modo architectorum para o tempo e os recursos disponíveis, sem mitisse uma comunicação abrangente da ideia, sugeria implicitamente
de fato alterar a caixa preta que aprendeu na escola para a produção -
9

Curiosamente, uma opção pela superação da representação como


pedreiros, nem de carpinteiros” (ibidem, p. 288). Ou seja, o surgimento dos canteiros paradigma — seja representação da arquitetura existente ou represen-
de obra pouco especializados remonta a esse fato, assim como a mudança estética
promovida na construção. Os arquitetos apenas se adequam às novas demandas tação como processo de produção da arquitetura10 — também acon-
materiais, sem consciência das relações de poder a que estão submetidos, como
aponta Garry Stevens (O círculo privilegiado, [1998] 2003). E mais, na historiografia
crítica contundente ao paradigma colonial na arquitetura, quando
da arquitetura parece haver uma demanda interna do campo para a suposta mudança
de estilo. Não é levado em conta, também, que a arquitetura é apenas a cereja do Francesco Colonna propõe, em seu Hypnerotomachia Poliphili, a mudança
bolo, com pouca (ou nenhuma) influência no jogo de poder político-econômico em
que se insere a construção civil.
4 Garry Stevens (O círculo privilegiado, [1998] 2003) fala que esses arquitetos estão 5 banham, A black box: the secret profession of architecture, [1990] 1999, p. 295.
todos à espera de projetos de maior prestígio em seus escritórios, que a demanda 6 pérez-gÓmez, The space of architecture: meaning as presence and representa-
ordinária não é jamais o foco do campo. Contudo, contrariando Stevens, vários tion, 1994.
escritórios e assessorias técnicas de arquitetura e urbanismo no Brasil têm se inte- 7 pérez-gÓmez & pelletier, Architectural representation and the perspective hinge,
ressado cada vez mais por demandas cotidianas. Ainda que Stevens possa estar 1997, p. 221.
certo sobre a falta de consciência das relações de poder a que estamos todos
8 Ibidem, p. 221.
submetidos, há claramente o problema da universalização do campo da arquitetura,
que é proposto por Stevens a partir da teoria de Pierre Bourdieu, desconsiderando 9 Ibidem, p. 221.
nuances e peculiaridades regionais, locais e específicas de cada caso. 10 Cf. baltazar, Multimídia interativa e registro de arquitetura, 1998.

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da representação para a interação, trazendo para a arquitetura a pos- 16
— uma vida em tempo presente, em que pode
sibilidade do tempo presente, para além das representações do pas-
não como paradigmas, mas como alimentos para um processo antro-
-
nal) e ao que poderia ser apresentado como seu contraponto medieval
- (visão romântica), que prevê a satisfação dos desejos por mero traba-
rente: , Erototrophos e -
,11 através da qual se vê um processual não impõe ou prediz os comportamentos, mas também não
mundo modesto, sem graça e pobre, indicando uma vida de contem- leva a uma abstração romântica utópica que culmine em uma desilu-

A segunda é 12

, através da qual se vê um mundo rico e vigoroso, embora completude temporariamente, por meio da interação, para além do

-
realização física dos desejos materiais através da vontade de poder e val e renascentista e que a modernidade seja questionada por Colonna,
13
Por
Erototrophos, e encontra um
lugar voluptuoso e sedutor, que Pérez-Gómez associa a “uma arquite- -
14

17
-

dos espaços contemplativo e laboral, e indica o espaço erótico como implícita no processo de produção da arquitetura ocidental e vem
Erototrophos, sendo reproduzida inquestionadamente na formação dos estudantes
e não por ou

e ensino de arquitetura num loop


levando em consideração a necessidade de autonomia das pessoas para
15
e, por outro, aponta o problema da reprodução desse paradigma na

uma suspensão dos desejos ou, como argumenta Pérez-Gómez, “uma


loop -
loop
11 Na versão deste texto na Redobra, Theodoxia e Cosmodoxia foram invertidas, mas -
corrijo aqui. sível pensar na antropofagia oferecendo uma perspectiva crítica para o
12 pérez-gÓmez, Polyphilo or the dark forest revisited, 1992, p. xvii.
13 Ibidem, p. xviii.
14 Ibidem, p. xviii.
15 Cf. baltazar, Materamoris como alternativa pós-histórica, [2014] nesta edição, v. 1, 16 pérez-gÓmez, Polyphilo or the dark forest revisited, 1992, p. xviii.
pp. 313–324. 17 Cf. ferro, Arquitetura e trabalho livre, 2006.

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modo de produção do espaço e no giro decolonial informando a crítica

estar interessado no projeto de pontes — deveriam se preocupar em


21
Para viabilizar tal deslocamento de inte-
Interfaces para além do paradigma da representação
-
A representação na arquitetura pode ser incorporada a processos de ria problematizar a travessia e prescrever qualquer coisa, mesmo que
produção sem manter sua centralidade, deixando de ser paradigma
18

tanto a lembrança do passado quanto a projeção do futuro poderiam de projeto de interfaces em vez de espaços acabados aponta na direção
da superação do projeto prescritivo (do modelo), para uma canibaliza-

e propõe a canibalização da cultura estrangeira, resgatando a essência


-

raízes (indígena e africana) e seria reinventada, partindo das próprias -


cional, cuja problematização apontou a distribuição das famílias (das

Geralmente tal distribuição acontece com a mediação das lideranças


Manifesto

19
A proposta de Andrade questiona os uni-
para projeto e implantação das casas, deixando a cargo dos moradores
a distribuição das famílias, foi proposta uma interface para mediar a
No caso da arquitetura, questionar a representação como universal
-
desencantamento com a caixa preta normativa do modo architectorum ções — eventualmente também de propostas de projeto —, por meio

representações abstratas (cubos com ícones) de equipamentos urbanos


essência normativo e prescritivo, que leva a um produto impositivo existentes no local — igreja, supermercado, bar —, e funcionava numa
acabado, podemos pensar na lógica do exemplo, que tem por pressu-
postos a experiência, a sensibilidade, a capacidade inventiva de “fazer
20
No processo movimentar esse cubo, mas visualizava o resultado da movimentação
22

Assim, foi viabilizada uma visualização do ambiente pela qual era


simulada a negociação em tempo real, e, sem muita necessidade de
18 Cf. baltazar, Além da representação, [2012] nesta edição, v. 1, pp. 249–262.
19 andrade, Manifesto antropófago, 1928, p. 3.
20 Palestra proferida por Eduardo Viveiros de Castro na ufmg, em 9/10/2017, intitulada 21 price, The square book, [1984] 2003, p. 51.
“O modelo e o exemplo: dois modos de mudar o mundo”. 22 Cf. ballerini, Sistemas interativos digitais e processos participativos de projeto, 2002.

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Interface digital para negociar a distribuição das
famílias e casas no terreno de um empreendimento
habitacional (Flávia Ballerini, 2002).

sua casa segundo as prioridades de sua família e considerando as prio-

simulando na ação (não no discurso) a distribuição das casas no terreno

O segundo caso é de uma demanda de projeto convencional de um


concurso para escolas rurais na região da savana tropical africana, com
objetivo de reprodução de aproximadamente mil escolas em dez países,
de leste a oeste do continente, com diversidades bastante acentuadas
(desde diferenças culturais, como multiplicidade religiosa e de métodos
23

de Arquitetura da , uma disciplina de projeto para lidar com o


24
O programa proposto era bastante conven-

(duzentos metros quadrados), assim como o que deveria ser acomodado

formalista — e propor uma interface para articulação espacial, levando

23 Trata-se do concurso internacional Field schools for tropical savanna climate of


Africa, proposto pela ong turca Kimse Yok Mu, em 2015.
24 A disciplina foi ofertada como pflex (projeto flexível), com carga horária de sessenta
horas, no curso de Arquitetura e Urbanismo diurno da ufmg, tendo como professor
auxiliar Guilherme Ferreira de Arruda. Participaram dessa proposta os alunos Alice
Rennó Werner Soares, Ana Paula Pitzer Angelo, André Higino Bastos Inoue, Bárbara
Madeira Antunes, Larissa Guimarães Reis, Luis Henrique Marques de Oliveira Silva,
Maria Cecilia Rocha Couto Gomes, Maria Laura de Vilhena D. e Silva, Mariana Julia
Souza Barbosa Lima, Marllon Luiz Oliveira Morais, Ricardo Yoiti Hanyu Junior, e
Vinicius Augusto Bicalho Moreira. Para uma descrição detalhada das discussões
teóricas que informaram essa disciplina (principalmente a transição entre a lógica
da representação e a lógica da diferença), cf. baltazar, Architecture as interface:
a constructive method for spatial articulation in architectural education, 2017.

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Proposta para o concurso internacional Field
schools for tropical savanna climate of Africa:
simulações de escola com pátio interno e de
escola compacta integrada (mom, 2015).
que envolvesse as comunidades, acomodando as diferenças locais, mas O grupo de doze estudantes decidiu propor uma única interface-
jogo com três etapas, no intuito de envolver a comunidade local em

- do local até simulações espaciais de uma diversidade de eventos que


-
quiz

savana tropical, e outro sobre processos participativos e alternativos cortado) e as características físicas — tais como armazenamento das
ao projeto convencional (que levantou uma série de exemplos, aprofun-

-
vamente, enriquecendo seu repertório tanto sobre as diversidades que -
deveriam ser consideradas quanto sobre as alternativas ao projeto con-
vencional existentes, mas sempre considerando esse repertório como a partir das características locais, dentre uma gama de possibilidades
alimento para uma antropofagia, cujas características seriam usadas

-
sistema construtivo, propõe um conjunto de regras para que as pes- -
soas tomem decisões sobre suas casas e autoconstruam com mate- lar articulações espaciais para acomodar tais eventos, com suporte de
25

que seria possível projetar uma interface capaz de receber materiais


diferentes e viabilizar que a população local decidisse sobre a articu- 29
e um volvelle que relativiza o uso de

da qualidade espacial da articulação da forma, suas possíveis conexões,


que é de decisão coletiva, e deixar em aberto para a população local
26
O de

Os alunos simularam duas situações, jogando o jogo para cada


- -
pical seco, e uma segunda proposta para uma escola compacta inte-
27
- grada, para o clima tropical úmido, tendo como resultado duas escolas
ram uma série de exemplos que enfatizam a possibilidade de propor totalmente diferentes usando o mesmo repertório projetado e trazendo
estruturas livres de valor, permitindo que as pessoas inventem seus
28
Assim como a interface para negociação, essa interface também traz

25 Cf. mckean, Learning from Segal, 1989.


26 Cf. habraken, Supports: an alternative to mass housing, [1961] 1972.
27 Cf. lebesque & vlissingen, Yona Friedman: structures serving the unpredictable, 1999. 29 nair et al., The language of school design: design patterns for 21st century
28 Cf. price, The square book, [1984] 2003. schools, 2013.

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- 33
Freire constata que a “educação
mento técnico e estético, além de possibilitar a inclusão de repertório
- que pensam que a educação pode mudar a sociedade “consideram que
- se a educação mantém a sociedade é porque pode transformar aquilo
to-produto pautado pelo paradigma da representação e vislumbraram
a possibilidade de projetar estruturas para organizações imprevistas,
30
Nesse caso a caixa preta do modo architec- profunda e radical da educação como sistema não pode ser produzida
torum
34

-
forma, tem o poder de transformar só porque mantém aquilo que
loop 35

- -
ção do processo, do processo particular nesta organização pela qual a

mais a um processo de escolarização social do que a demandas próprias 36

- É a desescolarização da sociedade
dos nos e, em 1910, o número aumentou para dezesseis mil, sem -
provocação planejada de liberdade no outro, contraposta ao
31
espontâneo, ao descobrimento autônomo que surge do encontro entre
brevemente uma provocação sobre a necessidade de desescolarização 37

32
matética
38

Retomando a necessidade de conscientização político-cultural


Desescolarização e giro decolonial na aprendizagem
proposta por Freire39 e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de essa
conscientização acontecer pela educação ou pelo ensino numa socie-
da educação, retomando discussões iniciadas em 1965 no Centro -

Paulo Freire, mantendo sua aposta na conscientização, deixa claro que aprendizagem autoconstruída a partir de uma crítica aprofundada do
Educação para liberdade
a educação como alavanca para a transformação da realidade, ignorando 33 freire & illich, La educación: una autocrítica, [1975] 2013, p. 24.
34 Ibidem, p. 26.
35 Ibidem, p. 31.

30 baltazar et al., Ituita: an interface for playful interaction and socio-spatial transfor- 36 Ibidem, p. 32.
mation, 2019. 37 Ibidem, p. 37.
31 Cf. stevens, O círculo privilegiado, [1998] 2003. 38 Cf. Um encontro inesquecível entre Paulo Freire e Seymour Papert, gravado pela tv
32 Cf. illich, Sociedade sem escolas, [1971] 1976. Na tradução do título original, puc-sp em novembro de 1995.

Deschooling society, perde-se a ideia de desescolarizar a sociedade, que é muito 39 rezende & baltazar, Arte-educação no cotidiano sócio-espacial, [2019] nesta edi-
mais radical do que apenas eliminar suas escolas. ção, v. 1, pp. 523–534.

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modo architectorum
consequentemente reforçar — o sistema escolar, educacional ou o pró-
prio modo architectorum e o modo de produção capitalista da arquite-

universalizante, ou do loop

três principais fontes do giro decolonial a literatura latino-americana,


exatamente por fornecer exemplos para a autoaprendizagem sócio-es-
40

pautada por exemplos sócio-espaciais trazidos pela literatura latino-

acumulado do campo, principalmente a representação, que pode ser

40 Cf. El giro descolonizador, entrevista concedida por Enrique Dussel a Diego Martín
em abril de 2012.

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