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Este texto foi escrito a partir de uma provocação do colega Leo Name,
que propôs um volume da revista Redobra com a temática “Insurgências
decoloniais”. O título original anuncia o círculo vicioso da relação entre a
prática arquitetônica e o ensino, ou, em outras palavras, a colonialidade
da arquitetura e da socialização nesse campo. O texto aponta como saída
desse círculo vicioso a representação como ferramenta, e não como para-
digma, a possibilidade de projetar interfaces e não espaços acabados, a
antropofagia e a mudança no processo de aprendizagem a partir da lite-
ratura latino-americana, uma das fontes do giro decolonial.1
2
A caixa preta desse
1 Primeira publicação: Não existe arquitetura decolonial porque não existe ensino de
arquitetura decolonial porque não existe arquitetura decolonial. Redobra: Laboratório
Urbano, v. 6, n. 15, 2020, pp. 121–136.
2 banham, A black box: the secret profession of architecture, [1990] 1999, p. 295.
3 Exemplo disso é discutido por Sérgio Ferro, mostrando que a “arquitetura moderna
não é filha do vidro, do ferro e do concreto, como se conta. O concreto é filho de
uma crise enorme no canteiro, uma resposta ao sindicalismo” (ferro, Depoimento
a um pesquisador, [2000] 2006, p. 288). Ferro desmonta a narrativa universal da
evolução estilística que culminaria no modernismo, mostrando que, no século xix, a
opção pelo concreto armado, vidro e aço não teve nada a ver com estilo, mas com
uma batalha político-econômica. O sindicato da construção civil francês, extrema-
mente poderoso, organizou uma paralisação massiva da construção civil e, como
diz Ferro, “o concreto é uma resposta a eles, um material que não precisa nem de
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— ou seja, 5
abstrato da representação do poder na forma de projeto (e eventual- desde o Renascimento, subordinada a uma série de relações de poder
mente na construção do edifício), que pouco tangencia as demandas
ao mecenas, que solicitava ajustes de toda ordem até que se desse por -
tra como, lenta e progressivamente, o paradigma da representação vai
- dominando a arquitetura desde o Renascimento,6 primeiro desvalori-
malismo estão na gênese do processo de projeto que, de certa forma, -
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A consolidação de
os processos
que levaria a obras críticas do modernismo na forma de projetos teó-
modo architectorum 8
, a perspectiva começa a ser usada
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-
adapta o modo architectorum para o tempo e os recursos disponíveis, sem mitisse uma comunicação abrangente da ideia, sugeria implicitamente
de fato alterar a caixa preta que aprendeu na escola para a produção -
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da representação para a interação, trazendo para a arquitetura a pos- 16
— uma vida em tempo presente, em que pode
sibilidade do tempo presente, para além das representações do pas-
não como paradigmas, mas como alimentos para um processo antro-
-
nal) e ao que poderia ser apresentado como seu contraponto medieval
- (visão romântica), que prevê a satisfação dos desejos por mero traba-
rente: , Erototrophos e -
,11 através da qual se vê um processual não impõe ou prediz os comportamentos, mas também não
mundo modesto, sem graça e pobre, indicando uma vida de contem- leva a uma abstração romântica utópica que culmine em uma desilu-
A segunda é 12
, através da qual se vê um mundo rico e vigoroso, embora completude temporariamente, por meio da interação, para além do
-
realização física dos desejos materiais através da vontade de poder e val e renascentista e que a modernidade seja questionada por Colonna,
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Por
Erototrophos, e encontra um
lugar voluptuoso e sedutor, que Pérez-Gómez associa a “uma arquite- -
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17
-
dos espaços contemplativo e laboral, e indica o espaço erótico como implícita no processo de produção da arquitetura ocidental e vem
Erototrophos, sendo reproduzida inquestionadamente na formação dos estudantes
e não por ou
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modo de produção do espaço e no giro decolonial informando a crítica
tanto a lembrança do passado quanto a projeção do futuro poderiam de projeto de interfaces em vez de espaços acabados aponta na direção
da superação do projeto prescritivo (do modelo), para uma canibaliza-
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A proposta de Andrade questiona os uni-
para projeto e implantação das casas, deixando a cargo dos moradores
a distribuição das famílias, foi proposta uma interface para mediar a
No caso da arquitetura, questionar a representação como universal
-
desencantamento com a caixa preta normativa do modo architectorum ções — eventualmente também de propostas de projeto —, por meio
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Interface digital para negociar a distribuição das
famílias e casas no terreno de um empreendimento
habitacional (Flávia Ballerini, 2002).
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Proposta para o concurso internacional Field
schools for tropical savanna climate of Africa:
simulações de escola com pátio interno e de
escola compacta integrada (mom, 2015).
que envolvesse as comunidades, acomodando as diferenças locais, mas O grupo de doze estudantes decidiu propor uma única interface-
jogo com três etapas, no intuito de envolver a comunidade local em
savana tropical, e outro sobre processos participativos e alternativos cortado) e as características físicas — tais como armazenamento das
ao projeto convencional (que levantou uma série de exemplos, aprofun-
-
vamente, enriquecendo seu repertório tanto sobre as diversidades que -
deveriam ser consideradas quanto sobre as alternativas ao projeto con-
vencional existentes, mas sempre considerando esse repertório como a partir das características locais, dentre uma gama de possibilidades
alimento para uma antropofagia, cujas características seriam usadas
-
sistema construtivo, propõe um conjunto de regras para que as pes- -
soas tomem decisões sobre suas casas e autoconstruam com mate- lar articulações espaciais para acomodar tais eventos, com suporte de
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- 33
Freire constata que a “educação
mento técnico e estético, além de possibilitar a inclusão de repertório
- que pensam que a educação pode mudar a sociedade “consideram que
- se a educação mantém a sociedade é porque pode transformar aquilo
to-produto pautado pelo paradigma da representação e vislumbraram
a possibilidade de projetar estruturas para organizações imprevistas,
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Nesse caso a caixa preta do modo architec- profunda e radical da educação como sistema não pode ser produzida
torum
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-
forma, tem o poder de transformar só porque mantém aquilo que
loop 35
- -
ção do processo, do processo particular nesta organização pela qual a
- É a desescolarização da sociedade
dos nos e, em 1910, o número aumentou para dezesseis mil, sem -
provocação planejada de liberdade no outro, contraposta ao
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espontâneo, ao descobrimento autônomo que surge do encontro entre
brevemente uma provocação sobre a necessidade de desescolarização 37
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matética
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Paulo Freire, mantendo sua aposta na conscientização, deixa claro que aprendizagem autoconstruída a partir de uma crítica aprofundada do
Educação para liberdade
a educação como alavanca para a transformação da realidade, ignorando 33 freire & illich, La educación: una autocrítica, [1975] 2013, p. 24.
34 Ibidem, p. 26.
35 Ibidem, p. 31.
30 baltazar et al., Ituita: an interface for playful interaction and socio-spatial transfor- 36 Ibidem, p. 32.
mation, 2019. 37 Ibidem, p. 37.
31 Cf. stevens, O círculo privilegiado, [1998] 2003. 38 Cf. Um encontro inesquecível entre Paulo Freire e Seymour Papert, gravado pela tv
32 Cf. illich, Sociedade sem escolas, [1971] 1976. Na tradução do título original, puc-sp em novembro de 1995.
Deschooling society, perde-se a ideia de desescolarizar a sociedade, que é muito 39 rezende & baltazar, Arte-educação no cotidiano sócio-espacial, [2019] nesta edi-
mais radical do que apenas eliminar suas escolas. ção, v. 1, pp. 523–534.
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modo architectorum
consequentemente reforçar — o sistema escolar, educacional ou o pró-
prio modo architectorum e o modo de produção capitalista da arquite-
universalizante, ou do loop
40 Cf. El giro descolonizador, entrevista concedida por Enrique Dussel a Diego Martín
em abril de 2012.
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