Você está na página 1de 4

05/09/2020 Folha de S.

Paulo - Jacques Rancière: O silogismo da corrupção - 22/10/2000

São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

O silogismo da corrupção
Jacques Rancière

Todos corruptos!", costumávamos dizer quando sobrevinha a


notícia de maquinações fraudulentas de tal ou qual
governante. Mas todas as coisas de nosso tempo tendem a se
sofisticar e se elevar ao segundo ou terceiro graus. Quando o
presidente dos Estados Unidos da América tem de explicar,
com um quadrado vermelho na tela, o detalhe de suas
relações com a estagiária ou quando o antigo tesoureiro do
partido do presidente francês põe em questão o sistema de
tráfico de influências reinante na prefeitura de Paris na época
em que o dito presidente era prefeito, ninguém vê mais, nas
ruas das respectivas capitais, manifestantes se acotovelarem
para vociferar contra os governos corruptos. Vemos, isso
sim, muitos homens graves, com frequência os próprios
governantes ou ex-governantes, manifestarem sua
consternação.

Política assassinada
Que outro propósito têm essas revelações, dizem eles, senão
dar ocasião a que os inimigos do governo republicano
gritem: "Todos corruptos!"? É a política, dizem ainda, que
resulta assassinada. Quem ainda irá querer governar ante a
fúria dos juízes e a da mídia? A "república dos juízes" e o
"linchamento midiático" desencorajam a boa vontade
daqueles que assumem os encargos da vida pública. E
desacreditam a própria política. Na verdade, já é hora de
lançar um véu sobre todas essas torpezas e conferir brio à
política. Evidentemente, esses argumentos pro domo
prestam-se a alguma suspeita. Mas ao lado dos políticos, que
são um pouco interessados demais no assunto, há os
filósofos, desinteressados por definição, com laivos de
Aristóteles e do bem comum, de Locke e do Estado de
Direito, de Kant e do Iluminismo, de Hannah Arendt e da
glória da vida pública. A França, em especial, produz uma
incrível quantidade deles, boa parte da qual circula entre as
esferas governamentais e o mundo midiático. E estes alçam a
voz e dispõem-se a remontar à raiz do mal. Há, nos dizem
eles, um tempo da política, que impõe enxergar longe e agir
para o futuro. Como preservá-lo se ele está submetido ao
tempo da mídia, que só vive do presente e da obrigação de
vender o novo a cada dia? Há uma vida pública que deve ser
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2210200013.htm 1/4
05/09/2020 Folha de S.Paulo - Jacques Rancière: O silogismo da corrupção - 22/10/2000

preservada das torpezas da vida privada, e uma vida privada


que deve ser subtraída ao olhar público. As instituições da
vida comum repousam num simbolismo que não é para ser
tocado. A política funda-se na distância. Ela é ameaçada de
morte quando se faz menção de submetê-la ao reino
midiático da visibilidade e da publicidade integrais. O
grande inimigo da política é a idéia da transparência. Como
nossos filósofos são imparciais, não hesitam em pôr em
dúvida um membro de sua corporação. Foi de Jean-Jacques
Rousseau, segundo eles, que veio essa idéia funesta da
transparência da vida comum. Esta produziu as utopias e os
crimes da virtude revolucionária e nutriu o Terror conduzido
pelo incorruptível Robespierre. No tempo da arquitetura de
vidro e dos pequenos heróis soviéticos que denunciavam as
tramas anti-revolucionárias de seus pais, foi essa mesma
idéia de transparência que engendrou o horror totalitário.

Restaurar o segredo
Hoje, sem dúvida, ela assume uma forma mais branda no
apetite das multidões da sociedade democrática pelos
segredos dos príncipes e pela vida íntima das estrelas. Mas,
precisamente, o verme totalitário está no fruto democrático.
É para satisfazer os apetites dos indivíduos da sociedade de
massas que os jornalistas lhes franqueiam o destino daqueles
que conduzem a vida em comum e fazem a cama para os
doces totalitarismos de amanhã. Restauremos, pois, antes
que seja tarde demais, o segredo e a distância que convêm ao
bom governo republicano. Tais discursos, apesar de tudo, são
de deixar perplexo. Aqueles que vêem na "Arquitetura de
Vidro", publicada por Paul Scherbart em 1910, a
consequência do sonho rousseauísta e a marca da
cumplicidade dos arquitetos futuristas com os poderes
totalitários do futuro parecem ignorar, para começo de
conversa, que a casa sonhada por Scherbart não era
transparente e não esboçava nenhum projeto de comunidade.
Mas, sobretudo, qual ditadura real se fundou na
transparência? O regime stalinista pôde erigir estátuas ao
pequeno Pavel Morozov, morto por sua família por ter
denunciado seu pai. Ele, o regime, não foi menos fundado no
emprego sistemático do segredo, que culminou na existência
de uma Constituição segundo a qual os interessados não
tinham meios de tomar conhecimento da realidade. Certas
comunidades do tipo religioso podem ser governadas pelo
princípio da transparência. Nenhum Estado o é, e os Estados
totalitários menos que todos os outros. Por trás da falaciosa
equação rousseauísmo = casa de vidro = totalitarismo, o que
de fato buscam os raciocínios é firmar a idéia que identifica
a democracia ao triunfo de um individualismo de massas,
indiferente às formas simbólicas da vida pública, mas ávido
de publicidade como de mercadorias. Nessa democracia, é
fácil ver o princípio de um desprezo pela política que abre
caminho ao totalitarismo. E é fácil também opor a ela uma
virtude republicana, olhando altiva e remota para as grandes
finalidades da vida em comum, encarnadas no serviço do
Estado. É aqui que os governos aproveitam a ocasião
ensejada pelos filósofos. Afinal de contas, observam eles, a
quem se deve essa corrupção que reina nos mercados
públicos? Servem-se os políticos de seus poderes municipais
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2210200013.htm 2/4
05/09/2020 Folha de S.Paulo - Jacques Rancière: O silogismo da corrupção - 22/10/2000

para chantagear as empresas e financiar as despesas de seus


partidos? Mas para que essas despesas senão para as
exorbitantes campanhas eleitorais, nas quais é preciso fazer
alarde de publicidade para satisfazer o gosto depravado dos
indivíduos da massa democrática? Melhor seria, então, que
não houvesse mais partidos nem eleições? Portanto nada de
hipocrisia! Que o povo dos indivíduos democráticos tenha a
honestidade de aceitar esse mal que ele torna necessário. E
mesmo que por inadvertência caia algum dinheiro público
nos bolsos de alguns eleitos, que ele reconheça nesses
excessos individuais a imagem magnificada de seus apetites
ordinários. É por causa dele que os eleitos republicanos são
às vezes obrigados a desviar para algum tráfico mesquinho
seus olhares geralmente voltados para as grandes finalidades
da vida comum.

Pagar o preço devido


Nossa virtude, comprometendo-se assim, paga o preço
devido a seu vício. Que ele tenha, pois, a honestidade de
pagar de volta o preço devido a nosso sacrifício. E que não
vá, pelas suas hipócritas denúncias de uma corrupção da qual
ele é a causa, agravar ainda mais os perigos a que ele expõe a
causa política e abrir caminho ao totalitarismo!
Tudo se passa, pois, como se a prova da corrupção agora
funcionasse às avessas. Antes ela acusava o governo, em
nome do povo, de trair os assuntos comuns em favor dos
interesses privados. Hoje a corrupção serve para provar que
os governantes são infelizmente obstados na gestão dos
assuntos comuns pelas más tendências do povo democrático.
O detalhe do argumento conta menos do que ele quer provar:
a necessidade de deixar governar em paz os que disso se
incumbem. É sem dúvida para aprimorar essa técnica que os
homens do poder se adiantam tantas vezes aos supostos
desejos dessa multidão de pequenos democratas, ávida de
conhecer os segredos escandalosos do poder.
A mídia jamais põe em circulação senão os segredos que lhe
são franqueados. Os que exigem do presidente americano
detalhes anatômicos sobre a exata natureza de suas relações
com Monica Lewinsky não eram jornalistas a serviço dos
leitores da imprensa sensacionalista. Eram bons cristãos e
honestos juízes e representantes, defensores da paz das
famílias e do segredo da vida privada. E a fita que revela os
segredos do financiamento do partido do presidente francês
transitou pelas mãos de um ministério socialista antes de
ganhar a praça pública. Os que desvendam os segredos, em
suma, são também os que usam do segredo para mesclar os
assuntos da coletividade e os de seu partido ou deles
próprios. Usam portanto, de forma alternada, as vantagens
do segredo de Estado e as da transparência midiática que o
denuncia. Sob a condição de denunciarem como demolidores
da virtude política os jornalistas a quem transmitem suas
informações e os leitores que as lêem e de apelar à
solidariedade de seus colegas contra o "linchamento
midiático" e os abusos da democracia.

Denúncia da denúncia
Às vantagens do segredo e às de sua denúncia juntam-se,
pois, as da denúncia da denúncia. É todo um círculo no qual
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2210200013.htm 3/4
05/09/2020 Folha de S.Paulo - Jacques Rancière: O silogismo da corrupção - 22/10/2000

o próprio fato da corrupção serve para provar que não cabe


analisar de muito perto os assuntos do Estado, sob pena de
pôr a República em perigo. Nessa lógica sinuosa, os
interessados acabam por unir-se sem muito custo. Quanto
aos filósofos, o assunto é outro.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor


de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.

Texto Anterior: Frederick Crews: O gênio da retórica


Próximo Texto: Ponto de fuga - Jorge Coli: A raposa azul
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2210200013.htm 4/4

Você também pode gostar