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O silogismo da corrupção
Jacques Rancière
Política assassinada
Que outro propósito têm essas revelações, dizem eles, senão
dar ocasião a que os inimigos do governo republicano
gritem: "Todos corruptos!"? É a política, dizem ainda, que
resulta assassinada. Quem ainda irá querer governar ante a
fúria dos juízes e a da mídia? A "república dos juízes" e o
"linchamento midiático" desencorajam a boa vontade
daqueles que assumem os encargos da vida pública. E
desacreditam a própria política. Na verdade, já é hora de
lançar um véu sobre todas essas torpezas e conferir brio à
política. Evidentemente, esses argumentos pro domo
prestam-se a alguma suspeita. Mas ao lado dos políticos, que
são um pouco interessados demais no assunto, há os
filósofos, desinteressados por definição, com laivos de
Aristóteles e do bem comum, de Locke e do Estado de
Direito, de Kant e do Iluminismo, de Hannah Arendt e da
glória da vida pública. A França, em especial, produz uma
incrível quantidade deles, boa parte da qual circula entre as
esferas governamentais e o mundo midiático. E estes alçam a
voz e dispõem-se a remontar à raiz do mal. Há, nos dizem
eles, um tempo da política, que impõe enxergar longe e agir
para o futuro. Como preservá-lo se ele está submetido ao
tempo da mídia, que só vive do presente e da obrigação de
vender o novo a cada dia? Há uma vida pública que deve ser
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05/09/2020 Folha de S.Paulo - Jacques Rancière: O silogismo da corrupção - 22/10/2000
Restaurar o segredo
Hoje, sem dúvida, ela assume uma forma mais branda no
apetite das multidões da sociedade democrática pelos
segredos dos príncipes e pela vida íntima das estrelas. Mas,
precisamente, o verme totalitário está no fruto democrático.
É para satisfazer os apetites dos indivíduos da sociedade de
massas que os jornalistas lhes franqueiam o destino daqueles
que conduzem a vida em comum e fazem a cama para os
doces totalitarismos de amanhã. Restauremos, pois, antes
que seja tarde demais, o segredo e a distância que convêm ao
bom governo republicano. Tais discursos, apesar de tudo, são
de deixar perplexo. Aqueles que vêem na "Arquitetura de
Vidro", publicada por Paul Scherbart em 1910, a
consequência do sonho rousseauísta e a marca da
cumplicidade dos arquitetos futuristas com os poderes
totalitários do futuro parecem ignorar, para começo de
conversa, que a casa sonhada por Scherbart não era
transparente e não esboçava nenhum projeto de comunidade.
Mas, sobretudo, qual ditadura real se fundou na
transparência? O regime stalinista pôde erigir estátuas ao
pequeno Pavel Morozov, morto por sua família por ter
denunciado seu pai. Ele, o regime, não foi menos fundado no
emprego sistemático do segredo, que culminou na existência
de uma Constituição segundo a qual os interessados não
tinham meios de tomar conhecimento da realidade. Certas
comunidades do tipo religioso podem ser governadas pelo
princípio da transparência. Nenhum Estado o é, e os Estados
totalitários menos que todos os outros. Por trás da falaciosa
equação rousseauísmo = casa de vidro = totalitarismo, o que
de fato buscam os raciocínios é firmar a idéia que identifica
a democracia ao triunfo de um individualismo de massas,
indiferente às formas simbólicas da vida pública, mas ávido
de publicidade como de mercadorias. Nessa democracia, é
fácil ver o princípio de um desprezo pela política que abre
caminho ao totalitarismo. E é fácil também opor a ela uma
virtude republicana, olhando altiva e remota para as grandes
finalidades da vida em comum, encarnadas no serviço do
Estado. É aqui que os governos aproveitam a ocasião
ensejada pelos filósofos. Afinal de contas, observam eles, a
quem se deve essa corrupção que reina nos mercados
públicos? Servem-se os políticos de seus poderes municipais
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Denúncia da denúncia
Às vantagens do segredo e às de sua denúncia juntam-se,
pois, as da denúncia da denúncia. É todo um círculo no qual
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