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ABRINDO A CAIXA PRETA DA MASSA -ENERGIA

Marcília Elis Barcellosa [marcilia@if.usp.br]


João Zanetic b [zanetic@if.usp.br]

a
USP/Programa de Mestrado em Ensino de Ciências – modalidade Física
b
USP/Instituto de Física

R ESUMO
O presente trabalho é uma reflexão histórico-sociológica sobre a relação
massa-energia. A famosa equação atribuída a Einstein em seu ano miraculoso
de 1905 é um símbolo da física. Por ter tal importância e popularidade está
presente em livros didáticos, artigos, textos de divulgação e artigos de jornais,
com certa freqüência. Nos livros didáticos de ensino superior o tratamento é
mais matemático. Já os textos de divulgação e artigos específicos tentam
explorar os significados e conceitos envolvidos. Esse trabalho apresenta uma
pequena amostra de alguns fragmentos destes textos para justificar o convite ao
mergulho na história a fim de olhar para alguns pontos escondidos nessa caixa
preta representada por E=mc 2 . Usando a sociologia de Bruno Latour vamos
olhar através da história quais foram os fatores importantes e decisivos para que
a física estabelecesse uma nova forma de ver o mundo a partir dessa nova lei de
conservação. Para Latour uma caixa preta é um conceito que tem grande
funcionalidade ao mesmo tempo que esconde grandes mistérios. A relação entre
a massa energia assume muitas funcionalidades dentro da física mas o seu
significado conceitual apresenta algumas contradições. No nosso olhar para a
história pretendemos investigar como esse conceito se tornou uma verdade
científica em domínios distintos da física, em particular analisando o contexto
histórico em que a relação chega a física nuclear. Nossa hipótese é que esse tipo
de análise corroborada com uma ação efetiva no ensino seja uma faceta
importante para formar um indivíduo crítico e capaz de lidar com a pesquisa de
forma humana e criativa.
J USTIFICATIVA
A relação E=mc2 é sem dúvida uma das expressões mais famosas e populares da
Física. Podemos facilmente encontrar sua dedução matemática nos livros mais utilizados no
ensino superior, tanto no nível da chamada física básica, quanto nas temáticas de física
moderna (tratando de relatividade e quântica). Mas qual é o real significado conceitual da
relação?
Em busca de um significado
A massa de uma bola de sorvete pode ser convertida em energia? Basta substituir as
200g pelo m da expressão e obter o valor da energia. Mas o que realmente isso quer dizer?
Que a bola de sorvete é energia? E porque não podemos acessar essa energia? Da mesma
maneira posso dizer que luz pesa? De que massa estamos falando? Gravitacional? Inercial?
Quantidade de matéria?
Não é preciso muito rodeio pra perceber que uma reflexão superficial que gere
perguntas simples nos remete à busca de respostas nada simples. E o resultado dessa busca
é dos principais fatores que motiva esse trabalho 1 . Seguem abaixo alguns fragmentos de
textos retirados de revistas, livros jornais e sites da internet.
Matéria X massa e radiação X energia
Disponível em: < http://atomico.no.sapo.pt/08_10.html>

Freqüentemente ouvimos dizer que a equação ?E=(?m).c2 tornou possível a Fabricação


da bomba atômica. Porém, isso não é verdade, como veremos a seguir:

Um dos tipos de bomba atômica é construído a partir da fissão (fragmentação) do núcleo


do átomo de urânio. Um nêutron atinge o núcleo de urânio tornando-o instável. Com isso o
núcleo de urânio se divide em dois núcleos menores com emissão de dois ou três nêutrons e
alguns fótons. Nesse processo, uma parte da energia potencial armazenada no núcleo
(elétrica e nuclear) transforma-se em radiação e energia cinética dos fragmentos que
resultam após a fissão. Não há alteração no número total de prótons e nêutrons, isto é, não
há conversão de matéria em radiação, mas apenas transformações de energia.

Se quisermos, podemos calcular as variações de massa e energia e, com isso, confirmar a


validade da equação de Einstein. No entanto, não precisamos da equação para construir (e
explodir) a bomba.

Disponível em: <http://www.ufsm.br/gef/MasEne.htm>

Dizer que massa pode ser convertida em energia e justificar o dito com a equação E = mc 2
é um ato tão legítimo quanto dizer que velocidade (v) pode ser convertida em quantidade
de movimento (p) e justificar o dito com a equação p = mv. Na Física, isso não tem
qualquer sentido. A afirmação de que massa pode ser convertida em energia envolve,
talvez, a confusão entre os conceitos de massa e matéria, por um lado, e energia e
radiação eletromagnética, por outro. Matéria é uma coisa. Ra diação eletromagnética é
uma coisa. Assim, matéria pode ser convertida em radiação eletromagnética como
acontece, por exemplo, no processo de aniquilação de uma partícula pela sua anti-
partícula, com o conseqüente aparecimento de radiação ?. O processo inverso também
existe. Agora, embora seja verdade que matéria pode ser convertida em radiação
eletromagnética e vice-versa, não é isso que a equação E = mc2 significa.

Conversão Matéria-Radiação ou Massa-Energia

1
De forma concreta tanto essas dúvidas quanto o material bilbiográfico reunido para tentar responder essas
questões, surgiram num projeto do espaço PROFIS. (Espaço de Apoio, pesquisa e Cooperação de professores
de Física. (www.if.usp.br/profis), ). Esse projeto tratou da elaboração de um curso voltado a professores do
ensino médio com o tema E=mc 2 . Integraram a equipe do Projeto em que se desenvolveu esta proposta: Maria
Regina D. Kawamura, Sonia Salem, Leonardo Crochik, Ligia Valente, Marcília Elis Barcellos, André M.
Rodrigues, Rafael Correa Fonseca e Renato Pugliese.
Disponível em: <http://www.ufsm.br/gef/MasEne.htm>

É claro que se a massa de um corpo é uma medida do seu conteúdo energético e se existe
uma transferência de massa sempre que existe uma correspondente transferência de
energia, o princípio de conservação da energia inevitavelmente acarreta a lei de
conservação da massa. Contudo, existe um engano largamente difundido sobre a
interpretação dessa fórmula de Einstein. Ela é freqüentemente interpretada como
significando que massa e energia podem ser convertidas uma na outra, ou seja, que uma
parte da massa de um corpo pode desaparecer se no processo surgir uma certa quantidade
de energia. Então, massa e energia seriam grandezas não conservadas. Isto não é verdade.
Massa é a medida da inércia de um corpo.

Como distorcer a Física: Considerações sobre um exemplo de divulgação


científica.2 - Física Moderna (Roberto de Andrade Martins). Caderno Catarinense do
Ensino de Física, v.15, n.3, 1998

A "conversão" de massa em energia (ou vice-versa) é um conceito problemático, embora


infelizmente apareça em enorme número de obras. Pode-se converter energia cinética em
energia potencial, no sentido de que uma delas vai diminuindo, e vai surgindo uma
quantidade equivalente da outra. Converter massa em energia significaria, de modo
equivalente, que haveria fenômenos em que a massa iria desaparecendo e iria surgindo
uma quantidade equivalente de energia, ou vice-versa. Isso não ocorre. Afirmar a
conversão de massa em energia é o mesmo que partir da equação E=h? e afirmar que a
energia pode ser convertida em freqüência, ou vice-versa.

A relação E = mc², no seu domínio de validade, indica que há uma energia E associada a
qualquer massa m, e vice-versa. Não se trata de uma conversão. Um elétron de massa m
tem uma energia total E = mc²; a equação não diz que o elétron pode ser criado a partir de
energia pura, como por exemplo radiação eletromagnética (não pode) nem que ele pode se
transformar em energia pura (não pode). Há outras leis que impedem isso (conservação do
número leptônico, da carga, etc.).

Generalização de E = mc 2
Disponível em: < http://www.feiradeciencias.com.br/sala23/23_R09.asp>

A expressão que relaciona massa e energia implica em que todo sistema que tem energia
E, tem associado a ele uma massa m = E/c2 e todo sistema que tem massa m, tem
associado uma energia E = mc2. Assim, energia pode ser medida em kg e massa em
joules! (1 kg = 9 x 1016 joule.)

Disponível em: < http://www.feiradeciencias.com.br/sala23/23_R09.asp>

Acreditam os físicos que a expressão E = mc 2 envolve todas as formas de energia


conhecidas. Assim:
(a) - ao se aquecer um corpo sua massa aumenta;
(b) - uma pilha gasta é mais leve que uma pilha nova;
(c) - um mol de água tem massa menor do que um mol de hidrogênio mais meio mol de
oxigênio;
(d) - um átomo de hidrogênio tem massa menor do que a soma das massas do próton e do
elétron;
(e) - uma mola comprimida tem massa maior que quando relaxada etc....

Por outro lado, um sistema isolado que não troca matéria nem energia com o meio, tem
sua energia total, bem como sua massa total, constantes.

That famous Equation and You (Brian Greene) , The New York Times, 30 de
setembro de 2005.

“As ilustrações padrão da equação de Einstein – bombas e usinas – perpetuaram a crença


de que E=mc2 tem uma associação especial com reações nucleares e, assim, está ausente
da vida cotidiana.

Isso não é verdade. Quando você dirige um carro, E=mc2 está em ação. Enquanto o motor
queima gasolina para produzir energia na forma de movimento, ele faz isso convertendo
uma parte da massa da gasolina em energia, de acordo com a fórmula de Einstein. Quando
você usa seu MP3 player, E=mc 2 está em ação. Ao utilizar a bateria para produzir energia
na forma de ondas sonoras, o tocador converte uma parte da massa da bateria em energia,
como previsto pela fórmula de Einstein. Enquanto você lê este texto, E=mc 2 está em ação.
Os processos no olho e cérebro, envolvendo percepção e pensamento, está baseado em
reações químicas que intercambiam massa e energia, novamente de acordo com a fórmula
de Einstein.”

Vemos assim que existem muitas divergências a respeito dos conceitos por trás da
equação E = mc2 . Trata-se de uma verdadeira caixa preta que funciona muito bem em
vários contextos, principalmente na física nuclear, mas o que realmente tem dentro da
caixa, causa controvérsias. A proposta deste trabalho é mergulhar na história sob olhar para
a ciência do sociólogo Bruno Latour,usando alguns dos conceitos que ele define para abrir
a caixa preta da massa energia e entender como e porque ela se tornou uma caixa preta.
UM OLHAR PARA A CIÊNCIA
O Sociólogo estudioso da Ciência Bruno Latour propõe uma discussão sobre o
que é realidade, argumentando no limite entre realismo e anti-realismo, entre a objetividade
e a subjetividade, e, nos embates entre sociólogos filósofos e cientistas, no que ele
denomina Guerra das Ciências na obra "Esperança de Pandora" (Latour, 2001)..
O conflito entre a cultura científica e a não científica se dá na concepção de que a
ciência só se torna pura depois que se livra de todas as contaminações da subjetividade e da
política. Formam-se então os dois lados de um abismo cultural.
O conflito realista e anti-realista se dá na relação que existe entre sujeito e objeto.
Nessa interface, procurando construir uma ponte para o abismo cultural citado acima, fica
estabelecida a existência tanto de uma história social das "coisas"2 quanto de uma história
coisificada dos humanos.
Na obra "Ciência em Ação" (Latour, 2000), a história das coisas é narrada através
de um olhar para a história da ciência, onde humanos criam coisas que ganham cada vez
uma grau maior de verdade tornando-se "caixas-pretas".
Para ele, da pesquisa até a ciência, uma ‘descoberta’ percorre um caminho. Os
conceitos que hoje são praticamente conceitos tácitos entre especialistas de determinada
área já foram conversas trepidantes na boca de outros cientistas. Para entender como se dá
essa mudança progressiva, onde humanos fala ndo uns com os outros discorrem sobre as
coisas com grau de verdade cada vez maior, é preciso transitar entre fatores sociais (história
externalista) e puramente epistemológicos (história internalista).
Admitindo a possibilidade de fazer a história das coisas podemos pensar que as
"entidades não humanas" surgem e se modificam através de suas relações com outras
entidades. Relações do tipo associações e substituições. Quanto mais relações uma
entidade consegue estabelecer mais ganha realidade.
Isso explica como as coisas aparecem e desaparecem na história das ciências. A
sobrevivência de uma entidade depende da sua capacidade de fazer associações com outras
entidades (humanas e não humanas).
Uma caixa preta é um conceito ao qual é atribuído um grau inquestionável de
verdade, justamente pelas associações que ele faz com outros conceitos e com elementos
humanos, interessando os grupos de pessoas e as alianças que estas pessoas estabelecem.
Mas tudo isso passa despercebido por quem manipula a caixa e obtém o que deseja, assim
como um consumidor pode tranqüilamente dirigir seu carro sem ter a menor idéia de como
funciona um motor de combustão.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Usando a sociologia de Latour é possível olhar para a história procurando
estabelecer quais as relaçõe s e alianças que o conceito de massa energia estabeleceu, dando
a ele o status de fato científico como expressão de uma grande lei da natureza com validade
universal (validade que como vimos alguns autores discutem).

Quase chegando a E=mc 2

A expressão E=mc2 é geralmente atribuída a Einstein em 1905, no chamado ano


miraculoso em que escreveu 5 artigos que revolucionaram a Física. Como conseqüência da
teoria da relatividade ,apresentada no artigo "sobre a eletrodinâmica de corpos em
movimento", a relação E=mc2 é discutida em outro artigo publicado logo depois cujo título
é "A inércia de um corpo depende de seu conteúdo de energia?".
Nossa análise pretende ir um pouco além disso, e acreditamos que é de certa
ingenuidade na concepção de ciência, atribuir apenas à genialidade de Einstein tal

2
Latour dá ao termo coisa um sentido diferente do usual (que seria a perspectiva realista). Na linguagem
realista a coisa à que Latour se refere é a coisa interpretada pelos humanos.
"descoberta". Para tanto lançamos um olhar para a história antes e depois de 1905
procurando vestígios e indícios de E=mc 2 . O resultado está sistematizado na tabela 1.

Tabela 1 * - quadro histórico

Eletromagnetismo e Óptica Termodinâmica Mecânica

1873 – Maxwell
Previsão teórica de que as ondas deveriam exercer pressão sobre os
(1) (2)
corpos que absorvem radiação. 1876 – Bartoli
1881 – Tomson e Fitzgerald Deduz que a luz deve exercer uma
(1)
Energia da carga elétrica em movimento pressão de radiação sobre uma
(1) (2)
superfície refletora
e 2v 2
W=
3ac 2
1884 – Boltzmann
(2)
Usando elementos da teoria eletromagnética, aperfeiçoa e generaliza os argumentos da teoria de Bartoli

1901 – Lorentz
Momento(2)da Radiação na
1889 – Heaviside cavidade
Equações mais exatas a cerca da massa de elétrons em movimento
(1)
usando o cálculo de operadores 2µ 0 e 2
p= v
2a
1904 – Hasenohrl
Estuda as propriedades entre
1893 – J. Thomson massa e energia para caixa com
Define a densidade de momentum do campo eletromagnético
(2) radiação acelerada. Tudo se
ρ comporta como se a massa fosse
ϖ S maior . Chega à expressão:
(1) (2)
g= 2
c 4 E
m=
3 c2
1895 – Larmor 1907 – Planck
Toda a matéria é constituída apenas por cargas, sendo toda a inércia de Trabalhos que vêm a estender a relatividade para a mecânica e a
(1) (3)
um corpo de origem eletromagnética termodinâmica
1896 –Searle 1909 - Tolman e Lewis
Definição de uma massa eletromagnética adicional em função da massa Modificação do momentum
(1) (#)
do elétr on. Newtoniano
c+v
2 2
e c c 
W =  log −1 
2R  v c−v 
1897 – Thomson e Searle 1911 1912 – Laue
Concluem que é impossível acelerar uma carga até a velocidade da luz. Obtem as generalizaçõesa
(1)
partir da relação de
(2
Tompson
1897 e 1898 –Thomson e Lenard
1912 – Tolman
Fazem as experiências de raios catódicos e radiação de alta energia. (1) Interpretação da massa
Resultados confirmam de forma satisfatória as previsões de Thomson (3)
relativística

1898 – Lenard
Faz medidas de e/m para raios com velocidade até 1912 – Lorentz
(2) Formulação mais geral,
c/3 (2)
clara e coerente

*
∗ As informações da tabela são retiradas das seguintes fontes:
(1) Martins, Roberto. A Relação massa-energia e energia potencial. Caderno Catarinense de Ensino de Física,
6, págs 56-80, jun 1989.
(2) Martins, Roberto. Física e História.
(3) Ostermann, Fernanda. Relatividade restrita no ensino médio: Os conceitos de massa relativística e de
equivalência massa energia em livros didáticos de Física. Caderno Catarinense de Ensino de Física, 21,
págs 83-102, abril 2004.
Eletromagnetismo e Óptica Termodinâmica Mecânica
1900 – Poincaré
(2)
Propõem a relação da massa energia para radiação livre
ε
ρ=
c2
1901 – Kaufmann (2)
Experimentos com raios beta detectam a variação da massa do elétron.

1901 – Lebedev, Nichols e Hull (1)


Confirmação experimental dos resultados previstos por Boltzmann

1901 – Wien (2)


Variação da massa com a velocidade
1 dw 2 e 2 10 v 2
m= = 2
(1 + )
v dv 3 Rc 12 c 2
1902 – Abraham (1)
Modelo para calcular as variações transversais e longitudinais da massa
1904 – Bucherer
(1)
Elétron que se contrai pelo movimento

1904 – Lorentz
(2)
Equação “correta”para a variação da massa com a velocidade

1905 – Einstein
Publicação dos artigos, entre os quais o que introduziu o que chamamos
hoje de relatividade. Aparece como conseqüência o fato de que a luz
deve transportar momentum pela relação:
K = mc 2 (γ − 1)
Em seguida publica outro artigo no qual discute e chega efetivamente na
(3)
relação correspondente à :
E0 = mc2

Na tabela 1 vemos claramente que o eletromagnetismo teve uma enorme


importância na construção de uma nova concepção de massa. Isso é discutido por Jammer
(1961), que afirma que o eletromagnetismo muda o significado da massa dentro da física.
Para o paradigma newtoniano um corpo físico é primeiramente tudo o que é com base em
sua natureza intrínseca, invariável e permanente onde a massa é sua expressão física e a
massa inercial sua medida quantitativa. O eletromagnetismo coloca o campo como sede da
energia e não mais o corpo físico. A matéria não é mais o ditador dos eventos físicos e
julgar que a massa inercial é a medida da quantidade de matéria perde todo o sentido. Isso
se mostra bem representado na seguinte frase de Jammer (1961, p.153)
" ... a matéria não faz o que faz porque é o que é, e sim é o que é porque faz
o que faz."
Einstein e E=mc 2
Desse contexto do eletromagnetismo é que surge o trabalho de Einstein. Segundo
Stachel (2001) o trabalho de Einstein sobre a relatividade brotou de seu interesse pela
termodinâmica e pela óptica. Nos últimos anos do século XIX, ele estava supostamente
familiarizado com o princípio da relatividade da mecânica. Supõe -se também que tivesse
conhecimento dos trabalhos de Maxwell e Hertz e que já por volta de 1899 tivesse idéias
semelhantes às de Lorentz, apesar de não haver evidência de que ele houvesse,
efetivamente, lido os trabalhos de Lorentz. As evidências apontam que já em 1902, Einstein
teria tido contado com os trabalhos de Drude, Helmholtz, Hertz, Lorentz, Voight, Wien e
Floppl.
O primeiro artigo de Einstein de 1905 apresenta uma nova cinemática consistente
com a eletrodinâmica de corpos em movimento. O artigo começa discutindo e apresentando
um conceito de simultaneidade baseado em exemplos detalhados. Em seguida são
apresentados os dois postulados que irão sustentar a teoria.
Os postulados seguem as noções das transformações relativísticas, apresentando
novas noções de tempo e espaço. Em seguida, aparecem as transformações de coordenadas
relativísticas. Na seção que sucede são discutidas as implicações físicas de tais
transformações: a dilatação do tempo e a contração de corpos rígidos. É em outra sessão
que Einstein comenta as transformações apresentadas para a luz, discutindo como ficam a
energia e a freqüência também para outras radiações em espelhos perfeitos. Ainda comenta
os efeitos para as equações de Maxwell-Hertz, considerando correntes de convecção. Por
fim, apresenta e discute em detalhes a dinâmica do elétron, suas variações de massa
(longitudinal e transversal) generalizando em seguida essas variações para qualquer ponto
material ponderável. Dessa seção resulta a expressão da energia extraída de um campo
eletrostático. Einstein ainda apresenta em tópicos as considerações finais sobre o
movimento do elétron.
O artigo seguinte intitulado “A inércia de um corpo depende de seu conteúdo de
energia?” tem o intuito de explorar melhor a relação, que aparece como produto da sua
eletrodinâmica, entre a massa e a energia.
Para tanto ele lança mão de uma discussão sobre a energia de um sistema de ondas
planas, sujeito às transformações sugeridas em seu artigo anterior. Fazendo algumas
manipulações chega à conclusão de que um corpo emitindo certa energia tem sua massa
decrescida numa razão proporcional ao inverso da velocidade da luz ao quadrado. É
possível extrair do fim do texto as seguintes conclusões:
“... a massa de um corpo é uma medida de seu conteúdo de energia (...) a
radiação transporta inércia entre os corpos que a emitem e a absorvem”.
(Einstein apud Stachel, 2001, p. 186).
Em suas conclusões Einstein deixa entender que a massa inercial está associada com
todas as formas de energia, porém efetivamente estabelece o resultado apenas para a
emissão de radiação eletromagnética. Em 1906 e 1907 ele tenta fornecer elementos mais
gerais a favor da equivalência completa, mas não obtém a generalidade total que aspirava
(Stachel, 2001).
E=mc2 e suas alianças
Podemos ver nos textos didáticos uma área na qual a relação híbrida massa energia3
aparece com freqüência: a física nuclear. Aí podemos detectar uma importante aliança feita
pela relação massa energia com uma outra área. A física nuclear é uma área que irá se
consolidar mais tarde d que o eletromagnetismo. Um evento de fácil recorrência para
pensar a física nuclear é a bomba atômica de 1945. O momento histórico da guerra que
aconteceu nesse período pode nos dar mais pistas sobre outras alianças de outras naturezas
feitas pela massa-energia. Não iremos nos deter muito nisso, mas trago uma frase de
Einstein ao se defender de comentários sobre a sua responsabilidade na construção da
bomba. É fato que ele escreveu uma carta ao presidente Roosevelt e sua fala ao comentar
tal episódio é um convite a investigar como o E=mc2 foi parar na física nuclear.

3
Menezes (2005, p.30 e 131) trata massa-energia como conceito "híbrido" e "quase que um conceito novo".
"Não me considero o pai da liberação da energia atômica. Minha parte no
projeto foi absolutamente indireta. Na verdade, não previ que seria liberada
no meu tempo... Nunca houve a menor indicação de qualquer aplicação
potencialmente tecnológica. (Einstein apud Callaprice, 1998, p 142) Ela se
tornou prática apenas pela descoberta acidental da reação em cadeia. E
isso era algo que eu não poderia prever. (Enistein apud Callaprice, 1998, p
139)"
Segrè (1987) afirma que:
" ...a teoria específica da relatividade, da qual sai a famosa fórmula E=mc 2
que é praticamente tudo o que público sabe sobre Einstein. A verdade é que
algumas pessoas acreditam que esse é o segredo da bomba atômica; é um
segredo, no entanto que não mais existe, da mesma forma que um unicórnio:
ambos são produto da imaginação."
É no campo de estudo das radiações que E=mc 2 faz sair da "imaginação" e ganha
muito em destino a ser uma realidade física.
Foi Marie Currie quem batizou de radioatividade os fenômenos observados por
Becquerel. Ele observou a emissão espontânea de radiação por sais de urânio. Em 1900, os
Currie apresentam uma comunicação em Paris intitulada "As novas substâncias radioativas
e os raios que emitem". Neste, falam sobre a natureza química da substância e de seus
espectros ópticos e apresentam como o grande problema não resolvido a origem da energia
emitida e a natureza das radiações (Segrè, 1987).
Por volta de 1907 a origem da energia dessas radiações anda continuava a ser um
dos grandes mistérios nesta área. Rutherford, juntamente com os Currie, mediu essa energia
e chegou a valores elevados (Segrè, 1987).
Vemos claramente as dificuldades que esses físicos experimentais encontravam por
não estar embasados sobre uma teoria sólida. A teoria da estrutura atômica estava
engatinhando junto com a teoria quântica.
Pela teoria da relatividade, com o aumento da velocidade a massa aumenta. Mas a
associação desse conceito com a quantidade de matéria, segundo Jammer, é um processo
distinto, assim como o é na teoria eletromagnética da matéria.
Ainda segundo esse mesmo autor, em 1913 é Paul Langevin que aplica pela
primeira vez a relação massa energia para a Física Nuclear em sua explicação para a
derivação dos números inteiros do peso atômico. Lenz, Sommerfeld e Smeakal foram os
primeiros a entender a importância geral dessa relação na física nuclear.
Segrè menciona que em 1917 a emissão da luz já não era considerada do ponto de
vista maxweliano. É Einstein que em um artigo publicado no mesmo ano, usa para a
radiação eletromagnética as mesmas leis estatísticas que se aplicam ao decaimento
radioativo. A teoria do átomo de Bohr já existia então, mas o mecanismo de emissão de luz
a partir do átomo continuava a ser um mistério.
Foi por volta de 1913 que J.J. Thomson abre caminho para a espectroscopia de
massa que foi muito aperfeiçoada por F.W. Aston que, por volta de 1919, propôs que os
pesos relativos eram números inteiros tomando-se 1/16 de O16 prótons e elétrons. Nesse
modelo, os prótons conferiam a massa e os elétrons ajustavam a carga, por serem muito
mais leves e não alterarem a massa nuclear. Aqui, as divergências ordinárias da regra do
número inteiro já são interpretadas como a perda de massa que ocorre quando partículas
livres se unem, segundo a lei E=mc 2 . Para Aston, o valor parcial das massas se deve à
energia de coesão nuclear. Na verdade esse fato se deve principalmente às misturas
isotrópicas de que são feitos os elementos químicos.
O aperfeiçoamento da técnica da espectroscopia de raio X deu base para o estudo da
estrutura de sólidos e moléculas. As medições precisas de massa, unidas a E=mc 2 ,
proporcionam dados sobre a energia liberada ou absorvida em reações nucleares.
A partir daí os estudos sobre as radiações emitidas pelo núcleo, a radiação gama e o
decaimento beta, trouxeram conflitos sobre a conservação da energia. A redução do peso na
formação do núcleo era chamada de "defeito de massa". Ainda para fechar o balanço
energético na emissão de partículas foi preciso introduzir o nêutron e o neutrino, por
Chadwick e Pauli respectivamente.
A descoberta do pósitron se segui após ter sido previsto por Dirac, em 1930, na
primeira fusão da relatividade com a mecânica quântica.(Bersnstein, 1973, p.85). Fermi foi
um dos principais responsáveis pela descoberta do nêutron lento, que seria de grande
importância na construção da reação em cadeia a que Einstein se refere na sua fala sobre a
bomba, que foi transcrita acima.
Jammer, menciona que Bainbride em 1933, discute em detalhes o meio para
conseguir a precisão das prematuras medidas quantitativas das reações nucleares,
confirmando a relação massa energia. O autor ainda atribui a resposta final a Blackett e
Occhialini no seu famoso experimento de produção e aniquilação de pares. Em 1934
Klemperer demonstra que 1 pósitron e 1 elétron podem se aniquilar produzindo 2m0 c2
(=106 ev).
O autor termina afirmando que:
"Não é exagero dizer que o desenvolvimento da física moderna nuclear teria
sido impossível sem assumir a equivalência entre a massa e a energia."
Podemos olhar a relação da maneira inversa, afirmando que o fato da massa energia
se consolidar, como um princípio heurístico universal de conservação, dependeu do
desenvolvimento da física nuclear e da profunda aliança que fez com ela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse texto constitui uma reflexão histórico sociológica. É parte de um trabalho mais
amplo que está sendo desenvolvido em sala de aula no ensino superior com alunos do
bacharelado em física..O ensino tradicional oferecido nesses cursos é bastante vinculado a
resolução de problemas fechados e matemáticos e não oferece muito espaço para a
discussão conceitual e a caracterização de significados. Este trabalho esboça parte de uma
proposta de visão de ciência menos ingênua, que apresentou e apresenta contradições, que
admite interpretações e subjetividades. Cremos também que a história da ciência é uma
importante ferramenta para analisar o processo de criação da ciência, processo pelo qual ela
constitui uma forma de pensar que se distingue ras pela força de suas alianças e pela
maneira rígida e coerente com que estabelece suas relações. Nossa hipótese é que esse tipo
de reflexão/ação é uma faceta importante para formar um indivíduo crítico e portanto capaz
de lidar com a pesquisa de forma humana e criativa.
R EFERENCIAS
CALAPRICE, A. , Assim falou Einstein. Rio de Janeiro: Civilizações Brasileiras, 1998.
EINSTEIN, A.; INFELD, L.. A evolução da física. Rio de Janeiro: Zahar, 1966
EINSTEIN, A, Como vejo o Mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 7ª edição, 1981
EINSTEIN, A., Notas autobiográficas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
EINSTEIN, A., A Teoria da Relatividade Especial e Geral. Rio de Janeiro: Contraponto,
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