Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ALGUMAS CONTRADIÇÕES
Ricardo Karama [karam@usp.br]
Guilherme Brockingtonb [ mercer112@hotmail.com]
Fábio Beigc [fabiobeig@gmail.com]
a
CEFET-SC e Universidade de São Paulo / EDM / Faculdade de Educação
b, c
Universidade de São Paulo / EDM / Faculdade de Educação
R ESUMO
Um dos resultados mais contra-intuitivos da Teoria da Relatividade Restrita de
Einstein é o postulado da constância da velocidade da luz e, em virtude disso, diversos
trabalhos presentes na literatura já indicaram a dificuldade de aceitação do mesmo por parte
dos estudantes. Os argumentos presentes no artigo de Einstein são baseados em
incoerências encontradas na tentativa de conciliação entre o Eletromagnetismo e a
Mecânica, o que pode nos levar a concluir que seja preciso um razoável conhecimento das
bases do Eletromagnetismo para que a Teoria da Relatividade Restrita seja suficientemente
compreendida. Entretanto, se aceitarmos essa premissa como verdadeira, estaríamos
praticamente excluindo qualquer possibilidade de se abordar tópicos da Relatividade
Restrita com estudantes do Ensino Médio. Diante desse aparente impasse, o presente artigo
se propõe a apresentar e discutir algumas experiências de pensamento que têm como
objetivo a abordagem do postulado da constância da velocidade da luz, sem fazer qualquer
menção à sua natureza eletromagnética. Muitas dessas experiências foram propostas pelo
próprio Einstein quando o mesmo, ainda jovem, começou a se debruçar sobre os problemas
da eletrodinâmica dos corpos em movimento. As experiências de pensamento descritas
neste trabalho procuram evidenciar algumas contradições que sur gem quando se tenta
aplicar a transformação clássica de velocidades (adição galileana) à luz. Considerando que
a relatividade galileana costuma ser abordada logo nos primeiros contatos do estudante da
escola média com a Física, defendemos que experiências como as mencionadas podem
servir como porta de entrada para que o postulado da constância da velocidade da luz seja
discutido com estes estudantes, visando assim uma inserção de tópicos de Física Moderna
organicamente articulados com os temas clássicos.
INTRODUÇÃO
1
mundo distante e ontologicamente diferente do mundo dos sentidos (MORTIMER, 1994);
entre outras.
Pode-se dizer que as pesquisas brasileiras sobre o tema já saíram do campo das
justificativas (é quase um consenso acadêmico que temas de FMC devam ser ensinados) e
se encontram, ainda que de forma incipiente, no campo das metodologias (como inserir).
Entretanto, muitas são as dificuldades encontradas por aqueles que têm se dedicado ao
como. Pietrocola (no prelo), reinterpretando Bachelard, propõe a existência de 4 obstáculos
epistemológicos para a compreensão de temas de FMC : i) Fenomenologia – os fenômenos
da física moderna não estão presentes no mundo cotidiano do aluno, ii)
Linguagem/formalização – as estruturas matemáticas são demasiado complexas para a
compreensão de estudantes da educação básica, iii) Estruturação conceitual – os conceitos
da FMC necessitam de idéias contra-intuitivas e iv) Ontologia de base – as entidades
presentes nas teorias modernas e contemporâneas são construídas contra o senso comum.
Trataremos, neste artigo, de uma dificuldade inevitavelmente presente quando se
pretende ensinar tópicos da Teoria da Relatividade Restrita: a plausibilidade do segundo
postulado (constância da velocidade da luz). A justificativa apresentada por Einstein é
baseada na tentativa de conciliação do princípio da relatividade da Mecânica com as leis do
Eletromagnetismo. Na verdade, toda argumentação presente no seu famoso trabalho de
1905 (Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento 1 ) é de caráter eletromagnético, o
que dificulta sobremaneira sua abordagem no Ensino Médio.
Um dos autores que discute a questão da plausibilidade da teoria da Relatividade
Restrita (ARRUDA, 1994), especificamente do postulado da constância da velocidade da
luz, defende que a aceitação de algumas idéias centrais da teoria se dá devido à autoridade
dos livros, dos professores ou mesmo da comunidade física, e não porque as mesmas são
significativas para os estudantes. Segundo o autor:
Desde muito jovem, Einstein já refletia sobre questões relacionadas com princípios
físicos. Em suas notas autobiográficas, ele mesmo conta que, aos 16 anos de idade,
1
Uma boa tradução dos trabalhos de Einstein pode ser encontrada em STACHEL (2001).
2
deparou-se com um enigma que seria o germe da teoria da relatividade. Pensando sobre o
que aconteceria se fosse possível alcançar um raio de luz, ele percebeu que haveria uma
incoerência com o princípio da relatividade. Para ele, a luz era um fenômeno por si só e,
como a constância de sua velocidade seria uma das leis da natureza, isso não deveria ser
diferente somente pela mudança na velocidade do observador. Este paradoxo é enunciado
pelo próprio Einstein:
3
Figura 1: Assimetria no eletromagnetismo. Fonte http://www.geocities.com/zcphysicsms/fig1.gif.
Nesta seção, procuramos ilustrar o mais sucintamente possível que o problema que
Einstein pretende resolver quando propõe a relatividade restrita é uma incoerência teórica
entre a Eletrodinâmica e a Mecânica. Entretanto, para fins didáticos, acreditamos ser
possível ensinar tópicos de relatividade, mais especificamente o postulado da constância da
velocidade da luz, sem mencionar as leis do eletromagnetismo (Equações de Maxwell). A
proficuidade dessa opção é evidenciada quando pensamos em abordar algumas das idéias
de Einstein na Educação Básica. Na seqüência, descrevemos experiências de pensamento
que têm exatamente este objetivo.
ALGUMAS CONTRADIÇÕES
Paradoxo do espelho
4
movimento retilíneo e uniforme através de uma experiência feita no interior do próprio
móvel.
c = 300.000 km/s
Considerando que a luz se comporta como uma onda, consideração esta que era
dada como um fato na época em que Einstein começou a pensar sobre o assunto, é possível
estabelecer um paralelo e pensar a luz como análoga ao som. Esta é justamente a estratégia
utilizada no clássico A Evolução da Física de autoria de Leopold Infeld e do próprio
Einstein (EINSTEIN e INFELD, 2008) quando os autores pretendem expor as contradições
decorrentes na aplicação da transformação clássica à luz. Mais uma vez a situação é
apresentada através de uma experiência de pensamento:
Estamos sentados em uma sala fechada de tal modo isolada que nenhum
ar pode entrar ou escapar. Se ficarmos quietos e falarmos, estaremos, do ponto de
vista físico, criando ondas sonoras que se espalham da sua fonte em repouso com a
velocidade do som no ar. [...] Imaginemos agora que a nossa sala se move
uniformemente através do espaço. Um homem do lado de fora vê pelas paredes de
vidro da sala tudo que se passa ao lado de dentro.[...] O observador do interior
alega: a velocidade do som é, para mim, a mesma em todas as direções. O
observador de fora alega: a velocidade do som que se espalha na sala em
movimento e determinada em meu SC (sistema coordenado) não é idêntica em
todas as direções. É maior do que a velocidade-padrão do som na direção do
movimento da sala e menor na direção oposta (EINSTEIN e INFELD, 2008, p.
144, grifo nosso).
Essa conclusão decorre da adição galileana de velocidades aplicada ao som e os
autores apontam outras conseqüências dessa aplicação como a possibilidade de uma pessoa
5
se deslocar mais rapidamente que o som para não ouvir o que outra está dizendo ou aviões
que chegam a atingir velocidades maiores que a do som. Até aqui, nada de estranho, tudo
previsto pela relatividade galileana e facilmente comprovado experimentalmente. Como a
luz também é uma onda, é natural questionar se observaríamos esses mesmos fenômenos
com a luz. Seria possível, por exemplo, fugir de um raio de luz para não receber a
informação luminosa emitida por ele, ou seja, podemos nos deslocar mais rápido do que a
luz se não quisermos enxergar um determinado objeto? As conseqüências da possibilidade
da analogia entre luz e som, considerando o éter luminífero como análogo do ar, são
evidenciadas pelos autores:
Apesar dessa tentativa de se fazer uma analogia entre a luz e o som, Einstein e
Infeld concluem evidenciando as contradições presentes na suposição da existência da
mesma e enunciando o postulado da constância da velocidade da luz:
6
Invertendo causa e efeito
Nossa última experiência de pensamento foi idealizada por um dos autores com o
objetivo de apresentar mais uma contradição da aplicação da adição galileana à luz. Dessa
vez a contradição envolve a inversão da ordem entre causa e efeito, ou seja, a experiência
foi pensada para que a interpretação clássica nos permita concluir que a causa foi posterior
ao seu efeito.
Para esse inédito experimento, vamos precisar dos seguintes itens:
• uma caixa totalmente fechada, com uma lâmpada interna acesa, com paredes
pretas e cuja parede frontal é constituída de um delicado vidro (todo pintado
de preto, de modo que a luz não seja capaz de atravessá-lo);
• uma bolinha azul, que se encontra livre dentro da caixa (não podendo ser
vista por observador externo, já que a caixa é hermeticamente fechada);
• um observador (que seja paciente para aguardar todo o experimento sem se
mover);
• uma armadilha a uma distância d do observador (que pare o movimento da
caixa e logo em seguida quebre o vidro frontal).
Inicialmente a caixa se encontra em movimento retilíneo e com velocidade
constante (v) na direção do observador. A bolinha se encontra em repouso no fundo da
caixa (mas tem velocidade v em relação ao solo) (Figura 4).
ρ
v
d
Figura 4: Esquema da experiência de pensamento – inversão de causa e efeito. Nossa autoria.
7
bolinha dentro da caixa antes do vidro quebrar e ser possível observar seu interio r, ou seja,
ele veria o efeito (ser possível observar a bolinha dentro da caixa) antes da causa (vidro
quebrar e permitir a passagem da luz).
Alguma coisa deve estar errada em nossa teoria, ou na hipótese da soma das
velocidades, ou na hipótese da causalidade (causa e efeito). Em nosso cotidiano, entretanto,
nunca observamos o efeito antes da causa. O mesmo acontece nos mais avançados
laboratórios, já que uma situação semelhante jamais foi observada. Logo, podemos supor
que o problema não está na causalidade, mas na soma das velocidades.
Dessa forma, essa experiência também permite evidenciar que algo “dá errado”
quanto tentamos aplicar as transformações clássicas à luz e pode promover uma melhor
aceitação do segundo postulado da relatividade restrita.
CONSIDERAÇÕES F INAIS
O objetivo deste trabalho foi propor algumas experiências de pensamento que
evidenciam a impossibilidade de pensarmos classicamente ao fazermos transformações de
velocidades com a luz. Todas as experiências mencionadas podem ser compreendidas sem
qualquer conhecimento prévio de eletromagnetismo e, apesar de não estar perfeitamente de
acordo com a motivação histórica de Einstein, defendemos que as mesmas facilitam a
abordagem do segundo postulado com estudantes do Ensino Médio.
Nossa proposta está em ressonância com Helm e Gilbert (1985) quando os mesmos
defendem que as experiências de pensamento, ou Gedankenexperimente, têm
desempenhado um importante papel na história da Física e que por incentivarem a
imaginação, são essenciais para o ensino de Física.
Além disso, em se tratando do como inserir temas de Física Moderna e
Contemporânea, Resnick (1987) propõe que essa inserção deve estar fundamentada em três
pilares:
1. Overview – Análise prévia da relevância do ensino de determinados conceitos
para promover uma redução da quantidade de conteúdos clássicos abordados, assim como
de detalhamentos matemáticos exaustivos e da repetição de exercícios-padrão.
2. Sprinkle – Pulverização dos temas modernos tratados paralelamente à concepção
clássica de determinados conceitos.
3. Broaden – Ampliar as fontes dos estudantes para que os mesmos não se
restrinjam ao aprendizado dentro do ambiente de sala de aula. Indicar livros e artigos sobre
temas modernos e incentivar atividades extracurriculares como clubes de ciência
(RESNICK, 1987). Assim, pensamos que muitas das experiências mencionadas podem ser
trabalhadas em turmas do início do Ensino Médio, período no qual os estudantes
tradicionalmente iniciam o estudo das transformações galieanas, a fim de implementar o
segundo pilar proposto por Resnick (1987).
R EFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS
ARRUDA, S. M. Mudança Conceitual na Teoria da Relatividade Especial. Dissertação
de Mestrado. São Paulo, 1994.
ARRUDA, S. e VILLANI, A. Sobre as origens da relatividade especia l: relações entre
quanta e relatividade em 1905. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 13, n. 1, p.
32–46, 1996.
8
BRASIL, PCNEM + Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias Secretaria de
Educação Média e Tecnológica – Brasília: MEC; SEMTEC, 2002. 144 p. Disponível em:
<http://www.mec.gov.br/semtec/ensmed/ftp/CienciasNatureza.pdf>. Acesso em 09 de
agosto de 2003.
EINSTEIN, A. Notas Autobiográficas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
EINSTEIN, A.; INFELD, L. A evolução da Física. Tradução: Giasone Rebuá. Rio de
Janeiro: Zahar, 2008.
GOLDSMITH, M. Albert Einstein e seu universo inflável. Trad. Eduardo Brandão. São
Paulo: Companhia da letras, 2002.
HELM, H. e GILBERT, Thought Experiments and Physics Education – Part.1 Physics
Education v. 20, n. 3, p. 124-131, 1985.
HEY, T. e WALTERS, P. Einstein’s Mirror. Cambridge: Cambridge University Press,
1997.
KÖHNLEIN, J. F. K. e PEDUZZI, L. O. Q. Uma discussão sobre a natureza da ciência no
Ensino Médio: um exemplo com a Teoria da Relatividade Restrita. Caderno Brasileiro de
Ensino de Física v. 22, n.1, p.36-70, 2005.
MORTIMER, E. F. Evolução do Atomismo em Sala de Aula: Mudança de Perfis
Conceituais. Tese de Doutorado, São Paulo, 1994.
OLIVEIRA, I. S. Física Moderna: para iniciados, interessados e aficionados. São Paulo:
Editora Livraria da Física, 2005.
OSTERMANN, F. Tópicos de Física Contemporânea em Escolas de Nível Médio e na
Formação de Professores de Física. Tese de Doutorado, Porto Alegre, 1999.
PIETROCOLA, M. A Atualização dos currículos de Física da Escola Média: uma pesquisa
em condições reais de sala de aula analisada a partir da teoria da Transposição Didática, in
Propostas Interativas na Educação Científica e Tecnológica, Regina Maria Rabello
Borges (org.), educ (no prelo).
RESNICK, R. Overcoming Constraints and Problems. Proceedings of the Conference on
the Teaching of Modern Physics held at the Fermi National Accelerator Laboratory,
American Association of Physics Teachers, 1987.
STACHEL, J. (org.) O ano miraculoso de Einstein: cinco artigos que mudaram a face
da física. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.
SCHWARTZ, J. Einstein para principiantes. Ilustrações de Michel McGuinness e
tradução de Cardigos dos Reis. Lisboa: Publicações Dom Quixote, Ltda, 1999.
TERRAZZAN, E. A. A inserção da Física Moderna e Contemporânea no ensino de Física
na escola do 2º grau. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 9, n. 3, p. 209-214,
1992.
ZANETIC, J. Física Também é Cultura Tese de doutorado, São Paulo, 1989.