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Os Cinco Divertem Se A Valer
Os Cinco Divertem Se A Valer
Enid Blyton
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Um homem que engole fogo, outro que
faz milagres com o chicote, uma jovem que se deixa
enrolar por cobras. São os saltimbancos que acabam de chegar ao acampamento onde
os Cinco se encontram a passar férias. Simultaneamente, os jornais publicam a notícia
do desaparecimento de dois cientistas famosos. Estarão os saltimbancos envolvidos no
caso? É o que os valentes Cinco e a sua amiga João, a pequena cigana, vão tentar
descobrir.
A Zé está sozinha
- Eu acho que isso é mesmo uma maldade - disse a Zé num tom furioso. - Por que
razão não posso ir onde os outros vão! Passei duas semanas em casa e não os vejo
desde que a escola terminou. E agora eles vão passar fora quinze dias maravilhosos e
eu fico aqui.
- Basta, Maria José - disse o pai por cima do jornal. - Há três dias que andámos a
falar do mesmo ao pequeno-almoço. Cala-te.
A Zé nunca respondia quando lhe chamavam Maria José - por isso, por muito que
lhe tivesse apetecido responder, fez beicinho e olhou noutra direcção. A mãe deu uma
gargalhada.
- Oh, Zé, querida. não estejas tão zangada. Foi por tua culpa que apanhaste essa
constipação - ir nadar e ficar na água durante tanto tempo - e afinal estamos apenas na
terceira semana de Abril.
- Eu disse “Cala-te” - disse o pai, batendo com o jornal na mesa. - Mais uma
palavra, Zé, e não vais mesmo ter com os teus primos.
- Uauf! - fez o Tim, do outro lado da mesa. Não gostava quando falavam mal à Zé.
- E tu não comeces a refilar também - disse o pai da Zé, dando um toque no Tim
com a ponta do pé.
A mãe riu-se.
- Oh, acalmem-se vocês os dois - disse ela. - Zé, sê paciente, querida. Deixo-te ir
ter com os teus primos amanhã , se te portares bem e se não tossires muito hoje.
- Oh, mãe, porque não dissestes isso antes! - disse a Zé, como se a sua zanga
tivesse passado como por magia. - Não tossi uma única vez esta noite. Estou
perfeitamente bem. Oh, se eu for para o castelo de Faynights amanhã, prometo que não
tusso hoje.
- Oh, não, querido Alberto. Falei-te nele pelo menos três vezes - disse a mulher. -
Um amigo de escola emprestou duas antigas roulotes ao David, ao Júlio e à Ana. Eles
estão instalados num acampamento junto ao castelo de Faynights.
- Ah, então estão hospedados num castelo - disse o pai da Zé. - Bem, bem, não
vou consentir que a Zé chegue a casa toda vaidosa.
- E ter aventuras - sorriu a Zé, que agora estava com uma óptima disposição só
de pensar que iria juntar-se aos primos no dia seguinte.
- Não, não me parece que desta vez vás participar numa dessas terríveis
aventuras - disse a mãe. - Seja como for, não sei como isso seria possível num sítio tão
pacato como o castelo de Faynights e instalada numa velha roulote.
- Não há muitas pessoas como a Zé - disse a sua mulher. - O Júlio e o David, por
exemplo, sempre envolvidos em qualquer coisa, sempre com a Ana atrás, a suspirar por
uma vida sossegada.
- Bem, estou farto desta conversa - disse o pai da Zé, empurrando a cadeira
vigorosamente e batendo acidentalmente no Tim, que ganiu. - Que cão mais estúpido! -
disse o pai da Zé, impaciente. - Fica sempre debaixo da mesa à hora da refeição e espera
que eu me lembre que ele está lá! Bem, vou trabalhar um pouco.
Saiu da sala e bateu com a porta. Depois, ouviu-se bater a porta do escritório. Em
seguida, ouviu-se a janela fechar com estrondo, e a lareira a ser atiçada vigorosa-mente.
Depois, ouviu-se o ranger de uma cadeira e de alguém a sentar-se pesada-mente. Por
fim, fez-se silêncio.
- Agora o teu pai fica fora da realidade até à hora do almoço. Oh, minha querida,
falei-lhe pelo menos três vezes sobre o castelo de Faynights, onde estão os teus primos.
Acho que realmente podes ir amanhã. Pareces bem melhor hoje. Podes ir preparar as
tuas coisas para eu te fazer a mala esta tarde.
- Obrigada, mãe - disse a Zé, abraçando-a de súbito. - Seja como for, o pai vai
ficar satisfeito por me ver fora de casa durante uns tempos! Sou muito barulhenta para
ele!
- Que dois! - exclamou a mãe, lembrando-se das portas a bater umas nas outras.
- Por vezes, vocês são muito aborrecidos, mas não conseguiria viver sem vocês. Oh,
Tim, ainda estás debaixo da mesa? Gostaria que não deixasses a cauda em todo lado!
Magoei-te?
- Oh, ele não se importa que lhe pises a cauda, mãe - disse a Zé. - Vou preparar
as minhas coisas imediatamente. Como vou para o castelo de Faynights? De comboio?
- Sim. Levo-te até à estação de Kirrin e podes apanhar o das dez e quarenta -
disse a mãe. - Depois farás o transbordo em Limming e apanhas o comboio que vai para
Faynights. Se mandares uma carta ao Júlio, ele recebê-la-á amanhã de manhã e irá ter
contigo.
- Anda, Tim! - disse a Zé, e saíram os dois da sala pela porta como um furacão.
Bateram a porta atrás deles e a casa estremeceu toda. De imediato a porta do escritório
abriu-se e ouviu-se uma voz zangada gritar:
- Mas quem é que anda a bater as portas desta maneira quando eu estou a
trabalhar? Será que nesta casa ninguém consegue fechar uma porta sem fazer barulho?
A Zé sorriu enquanto subia as escadas a correr. Quem batia mais com as portas
era o pai, mas ele só ouvia as outras pessoas a fazê-lo. A Zé revolveu a sua caixa de
correspondência para encontrar um bilhete postal. Tinha de o enviar imediatamente para
o Júlio o receber o quanto antes, e seria tão bom ter os três primos à espera!
- Vamos embora amanhã - disse ela ao Tim, que olhou para ela e abanou a cauda
vigorosamente. - Tu também vens, claro, e os Cinco estarão novamente reunidos. Os
valentes Cinco! A ideia agrada-te, não te agrada, Tim? A mim também!
Rabiscou o postal e foi a correr pô-lo no correio. Bateu com a porta da frente, o
que fez o pai saltar da cadeira. Era um cientista muito inteligente e trabalhador,
impaciente, temperamental, bondoso e muito esquecido. Como gostava que a filha não
fosse tão parecida com ele e fosse como a sua sossegada e simpática sobrinha Ana.
“Passou a constipação. Chego à manhã às 12h 05m, por isso vão buscar-
me a mim e ao Tim. Temos as caudas a abanar de contentamento.
Zé.”
A Zé abriu as gavetas e começou a tirar as coisas que queria levar com ela. A
mãe foi ajudá-la. Havia sempre discussão na hora de fazer as malas, porque a Zé queria
sempre levar o menos possível e nada de agasalhos, e a mãe tinha opiniões exatamente
contrárias às dela. Contudo, entre as duas conseguiram encher a mala com coisas
razoáveis. Como de costume, a Zé recusou-se a levar qualquer tipo de vestido.
- Amanhã verás - disse a mãe. - Oh, Zé, estás a tossir outra vez!
Mas a mãe achava realmente que a Zé estava melhor. Tinha estado na cama
durante uma semana, a fazer uma fita terrível e tornando-se uma doente muito difícil.
Agora, depois de estar a pé durante uns dias, parecia ter voltado a ser ela mesma.
“Vai fazer-te bem ir até a Faynights, o ar é bom”, pensou a mãe. “Também precisa
de companhia - ela não gosta de estar completamente sozinha, sabendo que os outros
estão de férias sem ela.”
A Zé estava contente nessa noite. Apenas mais uma noite e estaria de partida
para quinze dias de caravanismo. Se ao menos o tempo estivesse bom, como iriam
divertir-se! De repente, o telefone tocou. A mãe da Zé foi atender.
- Não estejas tão ansiosa, Zé. Está tudo bem, podes ir amanhã. O Júlio estava a
ligar apenas para saber se o teu pai não tinha sido um dos cientistas que desapareceu
de repente. Ao que parece apareceu hoje no jornal uma notícia sobre dois cientistas que
desapareceram por completo e o pobre do Júlio queria saber se o teu pai estava a salvo!
- Como se o pai desaparecesse! - disse a Zé, em jeito de gozo. - O Júlio deve ter
enlouquecido! Devem ser mais dois daqueles cientistas patetas que são desleais com o
seu país, e desaparecem para outro país para vender os seus segredos! Eu podia tê-lo
dito ao Júlio!
Juntos de novo
- Claro que estou acordada! - gritou uma voz. - A porta está aberta. Entrem. Estou
a tomar o pequeno-almoço.
- Não posso olhar agora - disse ela. - Estou a contar a cozedura pelo relógio. Só
falta um minuto.
- O carteiro acabou de trazer um postal da Zé. Diz que a cauda dela e a do Tim
estão a abanar!
- Vamos todos ter com ela - disse a Ana, sem tirar os olhos do relógio. - Só mais
vinte segundos.
- Só chegamos há três dias, por isso ela não perdeu muito - disse o David. - Esses
ovos já estão mais que cozidos, Ana!
A Ana parou de olhar para o relógio.
- Não, não estão. Estão no ponto. - Tirou-os da pequena caçarola com uma grande
colher. - Põe-os nos suportes de ovos, David. Estão aí mesmo debaixo do teu nariz.
O David agarrou num ovo do prato onde a Ana os tinha posto. Estava tão quente
que o deixou cair com um grito e partiu a casca. A gema escorreu para fora da casca.
- David! Tu viste-me tirá-lo da água a ferver! - disse a Ana. - Agora tenho que
cozer outro. É uma pena o velho Tim não estar aqui. Lamberia imediatamente o ovo do
chão e poupava-me ter de limpar esta porcaria.
Sentaram-se a comer ovos cozidos, pão com manteiga e compota caseira com
pedaços de fruta e, a seguir, maçãs suculentas. O sol abriu e o Júlio despiu o casaco.
As duas roulotes estavam instaladas numa encosta suave coberta de erva. Atrás
delas crescia uma sebe alta que resguardava o vento. As primaveras desenhavam uma
barra dourada na base da sebe, e havia celidónias berrantes que brilhavam ao sol,
virando as faces polidas para ele.
Não muito longe estavam outras duas roulotes, mas essas eram modernas. As
pessoas que nelas habitavam ainda não estavam a pé e as portas estavam totalmente
cerradas. Os três jovens não tinham tido oportunidade de fazer amizade com eles.
Uma muralha alta e grossa rodeava o castelo, ainda de pé ao fim de tantos anos.
Alguns pedaços do topo da muralha tinham caído na colina e jaziam meio enterrados
nas ervas. Em tempos, fora um castelo magnífico, erguido na colina, alta e íngreme, por
razões de segurança, um sítio de onde as sentinelas podiam ver facilmente a região que
o rodeava, numa distância de muitos quilómetros.
Tal como o Júlio dissera, qualquer pessoa que estivesse numa das torres, ou
mesmo numa das muralhas, podia ver os inimigos aproximar-se vindos dos sete
condados em redor. Haveria mais do que tempo suficiente para fechar o grande portão,
instalar a guarnição nas muralhas e aprontar tudo para suportar um cerco prolongado,
se necessário.
- Deve haver milhares de corvos ali - disse o David. - Quem me dera que
tivéssemos binóculos para podermos olhar para eles. Seria tão bom como no circo.
Adoro a forma como voam todos juntos em círculos sem nunca chocarem contra os
outros.
- Oh, sim, enchem as torres com raminhos - disse o David - e fazem os ninhos no
cimo. Aposto que se fossemos ver, daríamos com o chão debaixo das torres com uma
altura de raminhos que nos chegaria ao tornozelo.
- Eu também - disse o Júlio. - Espero que a Zé traga os binóculos que lhe deram
nos anos. Podemos levá-los connosco para o castelo e ver toda a região em redor.
Podemos até encontrar os sete condados!
- Não achas mesmo que a Zé vai reparar se estão arrumadas, pois não? - disse
o David. - Será uma perda de tempo, Ana.
Mas a Ana gostava de manter sempre tudo em ordem e arrumar as coisas nos
armários e nas prateleiras. Gostava de ter as duas roulotes ao seu cuidado. Tinha
acabado de se adaptar muito bem a cuidar delas e estava ansiosa por mostrá-las à Zé.
Correu até à sebe e apanhou um ramo de primaveras. Voltou para trás e dividiu o
ramo em dois. Meteu metade numa jarra azul, dispôs as folhas verdes amarrotadas e
rugosas à volta e pôs as outras numa segunda jarra.
- Assim combinam bem com as cortinas verdes e amarelas! - disse ela. Pouco
depois, andava atarefada a varrer e a limpar o pó. Hesitou em pedir ao David que fosse
ao ribeiro lavar a louça do pequeno-almoço, mas decidiu não o fazer. O David podia partir
a louça, que não era deles mas do dono das roulotes.
- Credo, não! - disse a Ana. - É a última coisa que quero! E também a última coisa
que iremos ter, neste sítio tão pacato, e ainda bem.
- Bom, nunca se sabe - disse ele. - Estás pronta para irmos receber a Zé, Ana?
Temos de nos pôr a andar.
- É melhor trancar a porta - disse o David. - Nós trancamos a nossa. - Ele trancou
a porta da Ana e partiram os três pela colina cheia de relva até à passagem que conduzia
ao caminho mais abaixo. O velho castelo da colina oposta parecia agigantar-se, à medida
que eles desciam em direcção à aldeia.
- Vai ser óptimo ver novamente o Tim - disse a Ana. - E vou ficar muito contente
em ter a Zé connosco outra vez, na minha roulote. Não me importo de ficar sozinha à
noite, mas é sempre bom ter a Zé por perto e o Tim a roncar durante o sono.
- Olhem, não é o comboio que vem ali? - perguntou a Ana. - Deve ser! Só há um
comboio de manhã aqui! É melhor apressarmo-nos!
- Uauf! - ladrou o Tim, e saltou para o cais, quase para cima do David. A seguir,
saltou a Zé, com os olhos a brilhar. Deu um abraço à Ana e um murro ao David e ao
Júlio.
- Cheguei! - disse ela. - Senti-me mal só de pensar que vocês estavam a acampar
sem mim. Fiz a minha mãe passar um mau bocado.
- Aposto que sim - disse o Júlio, dando-lhe um abraço. - Deixa-me levar-te a mala.
Vamos só até à aldeia comer uns gelados para celebrar. Há uma loja aqui perto que tem
uns muito bons.
- Eu devia trazer uma toalha comigo quando vou ter com o Tim - disse a Ana. - As
lambidelas dele são tão molhadas! Oh, não, Tim, outra vez, não! Vai lamber o Júlio, vai!
- Bem, achei que os devia trazer - disse a Zé. - são as primeiras férias que tenho
a possibilidade de os usar. A mãe não me deixou levá-los para a escola. Bom. ainda falta
muito para chegarmos à tal loja de gelados?
- É nesta leitaria - disse o Júlio, fazendo-a entrar. - E sugiro-te que comeces com
baunilha, passes para o morango e acabes no chocolate.
- Tens ideias óptimas! - disse a Zé. - Espero também que tenhas dinheiro se
vamos passar a comer gelados desta maneira. A minha mãe não me deu muito.
- Bom, vão aparecer mais uns - disse uma senhora baixinha e forte. - Disseram-me
que vêm aí uns artistas de circo. Costumam acampar no terreno onde vocês estão.
- Ah, óptimo! - disse o David. - Poderemos fazer algumas novas amizades. Nós
gostamos de artistas de circo, não gostamos, Tim?
- E que mais haverá? - perguntou a Ana. Ela não conseguia imaginar alguém a
comer fogo!
- Ena! Daria um bom ladrão! - disse a Zé. - Quem me dera ser como borracha!
Esse homem consegue ressaltar quando cai.
Todos se riram.
- Ele terá cobras venenosas? - perguntou o David. - Nem quero pensar ter uma
roulote junto à nossa com um monte de cobras venenosas rastejando de um lado para
outro.
- Um engolidor de fogo! - disse o David. - Sempre quis ver um. Aposto que ele
realmente não come o fogo. Queimaria a boca e a garganta.
- Quem vo-las emprestou? - perguntou a Zé, quando saíram da loja. - Foi algum
amigo da escola?
- Sim, ele e a família vão sempre acampar nas férias da Páscoa e de Verão - disse
o Júlio. - Mas esta Páscoa, vão para França e, em vez de as deixarem vazias, pensaram
em emprestá-las e fomos os sortudos!
- Oh, desculpa, e tua também, Tim - disse o David, e todos deram uma risada. Era
engraçada a forma como o Tim soltara de repente uma interjeição adequada, como se
tivesse percebido realmente todas as palavras. A Zé, claro, tinha a certeza que sim.
As roulotes estavam assentes sobre grandes rodas. Tinham uma janela de cada
um dos lados. A porta era à frente e também os degraus, é claro. Cortinas coloridas
cobriam as janelas e um friso esculpido contornava o teto.
- Até parece que queres vender-mas! - disse a Zé, dando uma gargalhada. - Não
precisas. Gosto de ambas e acho-as muito mais engraçadas do que aquelas mais
modernas ali em baixo. De alguma forma, estas parecem mais verdadeiras!
- Oh, as outras também são verdadeiras - disse o Júlio. - E têm mais espaço, mas
o espaço não nos interessa porque vamos passar grande parte do tempo fora das
roulotes.
- Temos uma fogueira? - perguntou a Zé, ansiosa. - Oh, sim, já vi que temos. Lá
estão as cinzas, onde tinham a vossa fogueira. Oh, Júlio, vamos fazer uma fogueira à
noite e sentarmo-nos à volta dela no escuro!
- Com mosquitos a morder-nos e morcegos a bater-nos na cara - disse o David. -
Sim, claro que sim. Entra, Zé.
- Ela vai entrar na minha roulote primeiro - disse a Ana e puxou a Zé pelos degraus
acima. A Zé estava realmente encantada.
Estava muito contente pensando que ia passar duas semanas sossegada com os
seus três primos e o Tim. Abriu e fechou o beliche para ver como funcionava. Abriu as
portas da dispensa e do armário. Depois, foi ver a roulote dos rapazes.
- Tão arrumadinha! - disse ela. - Esperava que a da Ana estivesse arrumada, mas
a vossa está mesmo reluzente. Ah, espero que vocês não se tenham tornado um modelo
de limpeza. Eu não!
- Não te preocupes - disse o David, fazendo uma careta. - A Ana tem andado
atarefada; sabes como ela gosta de ter tudo arrumado. Não precisamos de nos
preocupar com isso quando a Ana está por perto.
- Mesmo assim, a Zé tem de dar uma ajuda - disse a Ana, em tom firme. - Todos
temos de manter tudo arrumado e cozinhar.
A Zé resmungou:
- Está bem, Ana. Eu faço a minha parte, às vezes. Não vai haver muito espaço
para o Tim no meu beliche, à noite, pois não?
- Bom, para o meu não virá com certeza - disse a Ana. - Ele pode ir dormir no
chão em cima de uma manta. Não podes, Tim?
- Vês? Ele diz que nem sonha fazer uma coisa dessas! - disse a Zé. - Ele dorme
sempre a meus pés.
O Júlio tirou o jornal dobrado do bolço e atirou-o ao David. Sentou-se nos degraus
da roulote e abriu-o. Andava à procura da secção de meteorologia quando um cabeçalho
atraiu a sua atenção. Soltou uma exclamação.
- Eh, lá! Cá estão mais notícias sobre aqueles dois cientistas desaparecidos, Júlio!
- Ele nunca pensaria que o tio Alberto faria uma coisa dessas. Só no jornal de
ontem diziam que dois dos mais famosos cientistas tinham desaparecido e pensei que
talvez tivessem sido raptados. E como o tio Alberto é realmente famoso, pensei telefonar
para me certificar de que estava tudo bem.
- Oh - exclamou a Zé. - Bem, como a minha mãe não sabia de nada ficou muito
surpreendida quando lhe perguntaste se o meu pai tinha desaparecido. Especialmente
quando ele andava a bater com as portas no escritório, à procura de algo que tinha
perdido.
- Cá está! Justamente o que tinha dito a minha mãe! - exclamou a Zé. - Foram
vender os segredos a outro país.
- O tio Alberto não vai ficar satisfeito com isto - disse o Júlio. - Ele não trabalhou
com Terry-Kane uma vez?
- Sim, acho que sim - disse a Zé. - Ainda bem que não estou em casa hoje, o meu
pai deve estar desvairado por todo o lado, a dizer à minha mãe centenas de vezes o que
se pensa sobre os cientistas traidores!
- Deve estar de certeza - disse o Júlio. - Também não o recrimino. É uma coisa
que eu não compreendo: trair o próprio país. Só de pensar nisso, fico enjoado. Vá, vamos
começar a pensar em jantar, Ana. Que vamos comer?
- Há doze - disse a Ana, passando o saco ao David. - Dá três a cada um. Nenhuma
para o Tim. Mas tenho um grande osso suculento para ele. Júlio, vais buscar-me água,
por favor? Está ali o balde. Quero descascar as batatas. Zé, importas-te de cortar os
pêssegos sem te cortares como da última vez?
- Sim, meu capitão! - disse a Zé, com uma careta. - Ah, isto é como nos bons
velhos tempos. Boa comida, boa companhia e bom tempo. Três vivas para nós!
E depois Tim atirava-se para o chão junto dos seus quatro amigos, arquejando
como uma locomotiva a subir uma serra com a sua longa língua cor-de-rosa
dependurada da boca.
- Só de olhar para ti fico com calor, Tim - disse a Ana, afastando-o. - Olha, Zé, ele
está com tanto calor que até deita fumo! Um destes dias, o Tim rebenta!
À tarde foram dar um passeio mas não chegaram a ir ao mar. Viram-no da colina,
azul e brilhante, à distância. Pequenos iates brancos salpicavam a água azul como
cisnes distantes com as assas abertas. Lancharam numa quinta, com uma série de
miúdos do campo, de olhos esbugalhados, a assistir.
- Ah, sim, claro - disse o David. - E talvez nos possa vender uma parte desse bolo
de frutos. Estamos acampados em roulotes em Faynights Field, mesmo do lado oposto
ao castelo e por isso fazemos piqueniques todos os dias.
- Sim, podem levar o bolo - disse a mulher do dono da quinta. - Fiz bolos ontem e
por isso ainda há muitos. E querem levar um pedaço de presunto? E também tenho
algumas cebolas em conserva.
A coisa não se ficou pelos cheiros. Todos tiraram uma cebola - excepto o Tim que
recuou imediatamente. Cebolas era uma das coisas que ele realmente não supor-tava.
O David fechou novamente o frasco.
- Acho que devia ser outra pessoa e não o David a levar as cebolas - disse a Ana.
- Por este andar, não irão sobrar muitas quando chegarmos às roulotes.
- Uau! Olhem! Há duas roulotes ali, muito parecidas com as nossas. Pergunto-me
se não serão artistas de circo a chegar.
- E ali está outra a subir o caminho - disse o David. - Terá de entrar pelo portão
principal, porque não poderá ir pelo mesmo caminho que nós e passar por cima da
vedação. Lá vai ela.
Subiram até às suas roulotes e observaram com curiosidade uma roulote vizinha.
Era amarela, com enfeites a azul e preto, e a precisar de uma nova demão de tinta. Era
muito parecida com as roulotes deles, mas devia ser mais antiga. Não parecia haver
ninguém nas roulotes. As portas e janelas estavam fechadas. Ficaram os quatro de pé a
olhar com curiosidade para elas.
- Está uma caixa enorme debaixo desta roulote mais próxima - disse o Júlio. -
Pergunto-me o que estará dentro dela.
Era uma caixa comprida, larga e baixa. Tinha buracos redondos dos lados,
separados por espaços regulares. A Zé foi até à roulote e baixou-se para observar a
caixa, perguntando-se se dentro dela haveria algum ser vivo. O Tim foi atrás dela,
farejando com curiosidade os orifícios. De repente, recuou e começou a ladrar muito alto.
A Zé agarrou-lhe na coleira para o arrastar, mas ele recusou-se a obedecer-lhe. Ladrava
sem parar.
- Pára com isso, Tim! Pára! - ordenou a Zé, dando-lhe fortes puxões. - Júlio, vem
ajudar-me. Existe algo nesta caixa que o Tim nunca viu antes, sabe-se lá o quê, e ele
está meio confuso, meio assustado. Está a ladrar em desafio e não irá parar enquanto
não o tirarmos daqui!
- Ohhh, cobras! - disse a Ana, afastando-se. - Zé, há cobras ali dentro. Afasta o
Tim.
- Desculpe - disse a Zé, puxando o Tim com mais força. - Por favor, pare de gritar,
ou o meu cão pode atirar-se a si.
- Atirar-se a mim! Atirar-se a mim! Vocês têm um cão perigoso como esse, que
anda a farejar as minhas cobras e vai atirar-se a mim! - gritou o pequeno homem furioso,
gingando como um pugilista em bicos dos pés. - Ah! Esperem até eu soltar as minhas
cobras e ver o vosso cão a fugir!
Puxara a enorme caixa e abrira a tampa. Os três ficaram a olhar, fascinados. Que
cobra teria ele ali? Cascavéis? Cobras-capelo? Estavam prontos para desatarem a correr
se as cobras se enfurecessem tanto quanto o seu tratador.
- É uma pitão - disse o Júlio. - Uau, que monstro. Nunca tinha visto uma tão de
perto. Pergunto-me se ela não se enrolará em volta do sujeito e não o esmagará até à
morte.
- Ele tem-na presa pela cauda - disse o David, observando. - Oh, espera. Lá está
outra!
Havia de facto uma segunda pitão a sair da caixa; a pele brilhava, anel atrás de
anel. Também se enrolou em torno do seu tratador, emitindo silvos enquanto o fazia. O
corpo dela era mais grosso do que a perna do Júlio.
A Ana estava a olhar da janela da sua roulote, mal podendo acreditar no que os
seus olhos viam. Nunca na sua vida tinha visto cobras tão grandes. Nem sabia o que
eram. Começou a desejar que as roulotes estivessem a quilómetros de distância.
O homenzinho sossegou por fim as suas cobras. Quase o tapavam com os seus
grandes anéis! De cada um dos lados da sua cabeça erguia a cabeça de uma cobra,
achatada e brilhante.
O Tim estava também a espreitar pela janela, com a cabeça ao lado da de Ana.
Ficou surpreendido ao ver as cobras deslizar e parou imediatamente de ladrar. Desceu
da janela e foi para debaixo da mesa. O Tim não estava a gostar nada daqueles animais.
Gritou as últimas palavras com tanta fúria que os três deram um pulo.
- Olhe - começou o Júlio -, só viemos pedir desculpa pelo facto do nosso cão ter
ladrado daquela maneira. Os cães costumam ladrar com coisas estranhas que não
conhecem ou compreendem. É muito natural.
- Azar - disse o Júlio. - Parece que começamos mal com a gente da feira e eu que
esperava que eles fossem simpáticos e nos ensinassem alguns dos seus truques.
- Não gostei nada da última coisa que ele disse - disse a Zé, preocupada. - Um
“apertãozinho carinhoso” dado por uma das pitões seria o fim do Tim. É certo que irei
manter o Tim afastado quando vir aquele homem pequeno e estranho a tirar as cobras.
Ele parece gostar realmente delas, não parece?
- Sem dúvida - disse o Júlio. - Bem, pergunto-me quem viverá na segunda roulote
que acaba de chegar. Mal me atrevo a espreitar para o caso de conter gorilas ou
elefantes ou hipopótamos, ou...
- Não sejas parvo - disse a Zé. - Anda lá, está a escurecer. Olhem, aí vem a roulote
que vimos passar pelo caminho à pouco!
- Oh, o homem de borracha! - disse a Zé. – David, deve ser o condutor, não achas?
Todos fitaram o condutor. Era alto e magro e dobrava-se para a frente, e parecia
estar prestes a irromper em lágrimas a qualquer momento.
- Bem, deve ser realmente o Homem Borracha - disse o Júlio. - Mas de certeza
que não deve ter muita capacidade de saltar! Olhem, está a apear-se.
O homem desceu com uma agilidade incrível, que não pareceu ajustar-se ao seu
corpo curvado. Tirou o cavalo dos varrais e deixou-o à solta no campo. O cavalo
afastou-se, mordiscando aqui e ali na relva, continuando a parecer triste e curvado como
o dono.
- Eh, Borracha! - chamou ele. - Nós chegámos primeiro. Entra. A Skippy tem a
comida pronta.
A Ana chamou-os.
Subiram os degraus da roulote dela e deram com a Ana a preparar um jantar leve:
uma sanduíche de presunto para cada um, uma fatia de bolo e uma laranja.
- Eu quero uma cebola de conserva na minha sanduíche, por favor - disse o David.
- Vou picá-la e espalhá-la por cima do presunto. Tenho sempre ideias brilhantes, não há
dúvida!
- Percebo muito bem que não gostes de cobras, Tim, mas quando eu te digo para
parares de ladrar e te afastares, tens de me obedecer. Percebes?
A cauda de Tim desceu e ele poisou a cabeçorra sobre o joelho da Zé. Soltou um
ganido.
- Acho que nunca mais se aproximará da caixa agora que viu as cobras saírem
de lá - disse a Ana. - Devias ter visto como ficou assustado quando olhou para fora da
janela e as viu. Foi a correr esconder-se debaixo da mesa.
- É uma pena termos tido um mau começo com os artistas de circo - disse o Júlio.
- Não conto que gostem muito de crianças, porque em regra os miúdos só dão
problemas: metem o nariz em todo o lado.
- Acho que estou a ouvir as roulotes a chegar - disse a Zé, e o Tim arrebitou as
orelhas e rosnou. - Está quieto, Tim. não somos os únicos a ter o direito a estar neste
acampamento!
- Estas sanduíches estão óptimas, Ana - disse o David. - Alguém quer mais uma
cebola de conserva?
- Bom, eu posso comer uma cebola de conserva sem uma sanduíche, não posso?
- perguntou a David. - Passa-me uma, Ana.
- Esconde-as - disse ela. - Queres algumas para amanhã, não queres? Não sejas
glutão. Come um biscoito se ainda estiveres com fome.
- É verdade! Será que podemos fazer uma fogueira lá fora, hoje à noite? -
perguntou a Zé. - Mas estou tão ensonada que acho que iria deixar-me dormir se me
sentasse à fogueira!
- Também tenho sono - disse a Ana. - Vamos arrumar isto, Zé, e enfiar-nos nos
beliches. Os rapazes podem ir para as suas roulotes e ler ou jogar se lhes apetecer.
O David bocejou.
- Acho que vou ler um pouco - disse. - Espero que tenhas água suficiente, Ana,
para as coisas de que costumas precisar, porque eu não tenciono atravessar este campo
escuro às apalpadelas até ao ribeiro e tropeçar em cobras ou em qualquer outra coisa
que os artistas de circo tenham espalhado pela relva.
- Não achas que as cobras vão soltar-se, pois não? - perguntou a Ana, ansiosa.
- Claro que não! - respondeu o Júlio. - Seja como for, o Tim irá ladrar desalma-
damente se aparecer um ouriço-cacheiro, por isso não terás de te preocupar com as
cobras!
- O David acendeu a luz - disse a Ana. A delas já estava acesa e a roulote parecia
confortável e simpática. A Ana mostrou à Zé como abrir o beliche. Ficou em posição com
um clique, e pareceu ser agradável e firme, com um aspecto muito convidativo.
Ela e a Ana tiraram as duas almofadas das cadeiras, e por baixo estavam as
fronhas sobre as almofadas, preparadas para a noite. Despiram-se, lavaram-se na água
do ribeiro no pequeno lavatório, lavaram os dentes e escovaram o cabelo.
- A água vai para baixo da roulote quando eu tiro o tampo do lavatório? - perguntou
a Zé.
- Vai, pois!
A água gorgolejou ao sair e espalhou-se pelo chão por debaixo da roulote. O Tim
arrebitou as orelhas e pôs-se à escuta. Ele podia perceber que ali teria de se habituar a
uma grande quantidade de sons novos!
- Tens a tua lanterna? - perguntou a Ana, quando por fim, se enfiaram nos seus
beliches. - Vou apagar a luz. Se precisares de alguma coisa durante a noite terás de
acender a tua lanterna, Zé. Olha para o Tim sentado no chão tão quieto, não percebe
que já fomos para a cama! Tim! Estás à nossa espera para subirmos a escada?
O Tim bateu com a cauda no chão. Era exactamente disso que ele estava à
espera. Quando a Zé ia para a cama, ela subia sempre escadas, quer estivesse na
escola ou em casa e embora ele ainda não tivesse descoberto as escadas na roulote,
ele tinha a certeza de que a Zé sabia onde estavam! O Tim levou uns minutos a perceber
que a Zé ia passar a noite a dormir no beliche. Depois, com um salto, trepou para cima
dela e instalou-se sobre as suas pernas. Ela soltou um gemido.
- Oh, Tim, que bruto! Sai de cima das minhas pernas, vai mais para baixo, junta-te
mais à curva dos meus joelhos.
Mantinha, contudo, um ouvido atento durante todo o tempo - um ouvido para uma
ratazana que por alguma razão estranha percorreu o telhado, um ouvido para um coelho
atrevido que mordiscava a erva por debaixo da roulote - e um ouvido alerta para um
grande escaravelho que voara de encontro ao vidro da janela da direita, mesmo por cima
do beliche da Zé.
Zás! Foi de encontro à vidraça e caiu de costas, aturdido. O Tim não fazia a
mínima ideia do que era aquilo mas rapidamente adormeceu, ainda com um ouvido à
escuta. O melro do espinheiro acordou-o cedo. Tinha criado uma melodia totalmente
nova e estava a ensiná-la muito alto e deliberadamente. Um tordo que estava por perto
juntou-se-lhe.
Bem afinado, bem afinado, cantou o tordo com toda a força. O Tim sentou-se e
espreguiçou-se. A Zé acordou imediatamente, porque o Tim pisara-lhe pesadamente a
barriga. A princípio, não conseguiu perceber onde estava, depois lembrou-se e sorriu. É
claro, numa roulote, com a Ana. Como cantava aquele melro, uma melodia muito melhor
do que o tordo! As vacas mugiam ao longe e o sol da manhã entrava pela janela e
iluminava o relógio e a jarra de primaveras.
- A Ana faz sempre tudo como deve de ser - disse o David. - Toma, segura o teu
prato, Júlio, o teu bacon está pronto. Tira o nariz do caminho, Tim, cão parvo. Vais ficar
outra vez com gordura no nariz. Zé, toma conta do Tim enquanto eu cozinho. Já devorou
uma fatia de bacon.
- Bem, pelo menos poupou-te o trabalho de a cozinhar - disse a Zé. - Ouçam lá,
não há muitas roulotes aqui hoje? Devem ter chegado ontem à noite.
- Deve ser um tipo muito feroz - disse o David. - Um engolidor de fogo normal,
com um temperamento feroz, uma voz estrondosa e de passada grande.
- É uma mulher - disse a Ana. - Deve ser a mulher dele. É tão magra, mas tem um
ar muito meigo. Parece ser espanhola, é tão morena.
- Deve ser o engolidor de fogo que vem atrás dela - disse a Zé. - Claro que é! É
tal e qual o imaginavas, David. Que esperto!
- Bem, pelo menos vai buscar água para ela ao ribeiro - disse a Ana. - Dois baldes
enormes. Ele parece realmente um engolidor de fogo, não parece?
- Está ali outra pessoa, olhem! - disse o David. - Quem será? Vejam como se
dirige ao ribeiro. Caminha como um tigre ou um gato, todo sinuoso e cheio de força.
- É o homem que se consegue libertar das cordas depois de ter sido amarrado! -
exclamou a Ana. - Tenho a certeza que é ele.
- Vão às compras - disse a Ana. - Era o que eu pensava fazer. Vens, Zé? Dentro
de dez minutos parte uma camioneta que vai lá embaixo à aldeia. Quando regressarmos,
arrumaremos tudo.
- Ok - disse a Zé, levantando-se também. - Que irão os rapazes fazer entretanto?
- Oh, vão buscar mais água e arranjar lenha para a fogueira - disse a Ana,
alegremente.
- A sério? - disse o David, fazendo uma careta. - Bem, é possível. Por outro lado,
talvez não. Seja como for, vão porque estamos a ficar com pouca comida. E a ideia é
terrível! Ana, traz-me mais pasta de dentes, sim? E se me conseguires descobrir mais
daqueles doughnuts da leitaria, traz-me uma dúzia.
- Vão aos correios e vejam se chegou alguma carta - disse o David. - E não se
esqueçam de comprar um jornal. É melhor sabermos se aconteceu alguma coisa no
mundo exterior. Não que eu tenha muito interesse no que por lá vai neste momento.
Gente desagradável
Os dois rapazes decidiram que iriam buscar água e empilhar alguma lenha na
ausência das raparigas. Também fizeram os beliches, pelo simples processo de arrancar
todas as roupas e de as encafuar na prateleira, e depois dobrando os beliches contra a
parede.
Depois desta operação, não tinham nada para fazer a não ser esperar pelas
raparigas. Por isso, foram dar um passeio pelo acampamento. Mantiveram uma boa
distância do homem das cobras, que estava a fazer qualquer coisa estranha a uma das
suas pitões.
- Parece que está a poli-la, mas não pode ser - disse o Júlio. - Quero aproximar-me
o mais possível, mas aquele homenzinho temperamental pode atiçar uma daquelas
pitões!
O homem das cobras estava sentado em cima de uma caixa, com uma cobra num
dos joelhos, alguns de seus anéis em volta de uma das pernas, e os outros anéis em
torno da cintura. A cabeça dela parecia espreitar por baixo do sovaco do homem. O
homem estava a esfregar com vigor o corpo escamoso da cobra e a pitão parecia estar
a gostar!
- Está ali - exclamou o Bufflo, apontando para algo distante. - Pega nele outra vez,
Skippy. Acho que este chicote está bom agora.
- Não! - exclamou Bufflo. - Ainda não estou muito confiante neste chicote.
Segura-o na mão.
- Vocês, afastem-se - disse, mal levantando a voz. - Aqui não são permitidos
miúdos. Afastem-se ou eu faço estalar o meu chicote e arranco-vos os cabelos do alto
da cabeça.
O Júlio e o David tiveram a certeza absoluta de que ele cumpriria a sua ameaça
e retiraram-se com toda a dignidade possível.
- O homem das cobras deve-lhe ter contado sobre a confusão que o Tim armou
ontem com as cobras - disse o David. - Espero que isso não tenha estragado as coisas
para nós junto dos artistas de circo.
- Saiam daqui - disse ele. - Os miúdos não podem vir para o nosso acampamento.
- O acampamento é tão vosso como nosso - disse ele. - Temos duas roulotes aqui.
São aquelas duas.
- Bem, este sempre foi o nosso acampamento - disse o Homem Borracha. - Por
isso, vão para outro.
- Mesmo que quiséssemos ir, e não queremos, não temos cavalos para puxar as
nossas roulotes - retorquiu o Júlio, zangado. - Seja como for, porquê tantas objeções
contra nós? Gostaríamos de ser seus amigos, não lhe vamos fazer mal nenhum, nem
armar confusão.
- Não vamos discutir por causa disso - disse o David, que tinha estado a observar
o homem com enorme curiosidade. - O senhor é tão elástico que consegue entrar e sair
de canos, e coisas dessas? É?
- Olha, lá vem ele - disse o Júlio. E de facto, mesmo ao virar da esquina, surgiu o
Fred a correr velozmente. Vinha em direcção aos rapazes e, a princípio, o Júlio pensou
que ele iria correr com eles. Não queria fugir do Alfredo, mas também não era agradável
ficar ali quieto com aquele homenzarrão a correr na direcção deles, com as faces
vermelhas como fogo, com a sua grande madeixa de cabelo a saltitar para cima e para
baixo.
E foi então que perceberam o que fazia correr Alfredo! Atrás dele vinha a sua
mulher minúscula e morena. Gritava com ele em língua estrangeira, e corria atrás dele
com uma colher de pau. O Alfredo passou pesadamente pelos dois rapazes, parecendo
assustado de morte. Desceu até à vedação, saltou por cima dela e desapareceu pela
vereda. A mulher viu-o desaparecer. Quando ele se voltou para olhar, ela brandiu-lhe a
colher de pau.
Mas o Alfredo não fazia tenções de regressar. A mulherzinha furiosa virou-se para
os dois rapazes.
- Ele queimar sempre o pequeno-almoço - disse ela. - Ele não ver, ele queimar
sempre.
- Parece estranho um engolidor de fogo queimar algo que esteja a cozinhar - disse
o Júlio. - Embora, pensando melhor, talvez não.
- Bem, acho que ele ganha dinheiro a fazê-lo - disse o David, divertido.
- É o meu grande malvado - disse a pequena mulher. Deu meia volta para se ir
embora e depois virou-se novamente com um sorriso inesperado. - Mas ele é muito bom
às vezes - disse ela.
O homem que a Ana pensara poder ser o artista que conseguia desembaraçar-se
de cordas vinha a descer a cancela. Caminhava com facilidade e leveza, em tudo
parecido com um gato. O Júlio olhou para as mãos dele: eram pequenas mas pareciam
muito fortes. Sim, certamente ele seria capaz de desatar nós com umas mãos daquelas.
Eles olharam para ele com curiosidade.
- Credo, que gente tão simpática! - disse o Júlio. - Parecem estar mesmo atrás de
nós, sabe-se lá porquê. Conseguem fazer coisas realmente desagradáveis. Não vamos
continuar a bisbilhotar mais esta manhã. Vamos manter-nos afastados até que eles se
habituem um pouco mais a nós. Então talvez se tornem mais amigáveis.
- Bem, tentamos falar com elas mas foram muito antipáticas - disse a Ana. -
Sentimo-nos muito pouco à vontade. E o Tim rosnou imenso, claro, o que piorou ainda
mais a situação. Acho que ele não gostou muito do cheiro delas.
- Também não nos saímos muito bem com os artistas de circo - disse o Júlio. - Na
verdade, não posso dizer que eu e o David tenhamos feito muito sucesso. Só nos
queriam à distância.
- Trouxe-te o jornal - disse a Ana. - E a Zé recebeu uma carta da mãe. Vem dirigida
a todos nós, por isso não a abrimos. Lê-la-emos quando chegarmos às roulotes.
- Espero que sejam horas de jantar - disse a Zé. - Que achas, Tim?
O Tim conhecia a palavra jantar. Ladrou alegremente e liderou o caminho. Jantar?
não poderia haver ideia melhor!
Zé, o teu pai está muito aborrecido com o desaparecimento dos dois
cientistas. Ele conhece Derek Terry-Kane muito bem e trabalhou para ele durante
algum tempo. Diz ter a certeza absoluta de que ele não anda a trair o seu próprio
país; acha que ele foi raptado e escondido em qualquer lado, e o Jeffrey
Pottersham também, provavelmente levados de avião para longe, para um país
onde os irão forçar a revelar os seus segredos. Ainda bem que te foste embora
porque esta manhã o teu pai anda a passear pela casa a grandes passadas,
falando incansavelmente e a bater as portas todas que apanha pela frente. Deus
o ajude.
- Engolidor de fogo - disse o Júlio, com uma careta, enquanto a Zé procurava uma
palavra melhor. - Um dia, ele vai fazer com que a tia Clara ande atrás dele com uma
colher de pau! Mas a história dos cientistas é estranha, não é? Apesar de tudo,
Terry-Kane tinha planeado deixar o país, comprou o bilhete de avião e tudo, por isso, Zé,
embora o teu pai acredite nele, parece um pouco estranho, não parece?
“Cientistas desaparecidos
- Está explicado - disse o Júlio. - Dois patifes. Olhem, aqui está a fotografia deles.
- Bem, julgo que alguém reconhecerá Terry-Kane se o vir - disse a Ana. - Aquelas
grandes sobrancelhas espessas e arqueadas e aquela testa enorme. Se eu visse alguém
com umas sobrancelhas assim pensaria que não eram verdadeiras.
- Ele irá rapá-las - disse o David. - Depois irá ficar completamente diferente. Talvez
as cole acima do lábio superior e as use como bigode!
- Não sejas pateta - disse a Zé, com uma risada. - O outro fulano tem um aspecto
normal, à excepção da cabeça em bico. É pena que nenhum de nós tenha uma testa
muito alta! Devemos ser muito estúpidos!
- Não somos assim tão maus - disse o Júlio. - Já tivemos de usar o cérebro em
muitas das nossas aventuras, e não nos saímos assim tão mal!
- Vamos arrumar isto e dar uma volta outra vez - disse a Ana. - Se não formos,
ainda adormeço. Este sol está tão quente que ainda vou torrar.
- Sim, é melhor irmos dar um passeio - disse o Júlio, levantando-se. - Que acham
de irmos ver o castelo? Ou deixamos o castelo para outro dia?
- Agora escuta, Tim, não aceites comida daquela gente ali, vês?
- Oh, David! - exclamou a Zé, alarmada. - Achas realmente que eles fariam mal
ao Tim?
- Não, não acho - respondeu o David. - Mas é melhor termos cuidado. Tal como o
homem de borracha fez questão de referir de manhã, nós e eles pensamos de forma
diferente sobre certas coisas, não gosto deste tipo de situações.
- Bem, seja como for, vou andar sempre com o Tim debaixo de olho - disse a Zé,
com determinação. - Tim, aqui! Compreende, por favor, que desde que estejamos no
acampamento deves estar sempre perto de mim! Compreendes?
- Não - disse o Júlio com firmeza. - Acabamos agora de almoçar, vamos guardar
o gelado para a hora do lanche. Nunca chegaremos a ver o mar se ficarmos a comer
gelados a tarde toda.
Foi um passeio maravilhoso, por carreiros ladeados por violetas e depois por
campos cheios de primaveras, e mesmo umas raras campainhas, para grande felicidade
da Ana, que as adorava.
- Não irias gostar - disse o Júlio. - A água deve estar fria como gelo! Vá lá, vamos
descer até ao pequeno cais e dar uma olhadela aos barcos de pescadores.
Desceram até ao cais de pedra, aquecido pelo sol, e começaram a falar com os
pescadores. Alguns estavam sentados ao sol a remendar as suas redes e estavam muito
conversadores.
- Como é bom sermos bem tratados em vez dos olhares fixos e antipatia dos
artistas de circo! - disse o David ao Júlio, que assentiu com a cabeça.
- O velho Joseph, acolá, tem um barco que vos poderia alugar, se quisessem -
disse o homem com quem falavam. - Alugou-o no outro dia, e julgo que ele vo-lo alugaria
se acham que realmente conseguem andar nele.
- Obrigado. Iremos ter com ele se nos decidirmos a sair - disse o Júlio. Olhou para
o relógio. - É melhor irmos lanchar a um sítio qualquer. Queremos chegar às roulotes
antes de anoitecer. Estamos acampados no castelo de Faynights.
- Eles são muito metidos com eles - disse Joseph. - Tiveram problemas no local
onde estavam antes de vir ter connosco, alguém mandou a Polícia atrás deles e agora
não fazem amigos com ninguém.
- É claro que não estamos cansadas! - disse a Zé, indignada. - Alguma vez me
ouviste dizer que estava cansada, Júlio?
- Está bem, está bem, era apenas uma atenção da minha parte - disse o Júlio. -
Vá, vamos continuar.
O caminho era mais longo do que estavam à espera. Estava a ficar escuro quando
chegaram à cancela que conduzia ao acampamento das roulotes. Saltaram por cima
dela e caminharam lentamente até ao seu canto. E de repente, pararam e ficaram a olhar.
Olharam em volta e fitaram novamente. As duas roulotes tinham desaparecido! Podiam
ver os sítios onde tinham estado e onde tinham feito a sua fogueira. Mas as roulotes não
estavam lá!
- Bom! - exclamou o Júlio, atónito. - Isto é o máximo! Estamos a sonhar? Não vejo
sinal das nossas roulotes em lado algum!
- Sim, mas, para onde teriam ido? - disse a Ana, quase praguejando com a
surpresa. - Quero dizer, não tinham cavalos que as levassem para outro lado! Não
poderiam ter ido por si próprias.
Os trilhos das rodas seguiam pelo acampamento abaixo e iam até ao portão. Este
estava fechado, mas deveria ter sido aberto para as duas roulotes passarem, porque
havia marcas na relva junto ao portão, marcas que passavam por ele e se perdiam no
caminho.
- Que vamos fazer? - perguntou a Ana. - Desapareceram! Não temos onde dormir.
Oh, Júlio. que vamos fazer?
O Júlio não sabia o que fazer! Parecia que alguém roubara as duas roulotes e as
levara para um lado qualquer.
- Acho que é melhor telefonarmos à Polícia - disse ele. - Eles procurarão as nossas
roulotes e prenderão os ladrões. Mas isso não nos irá ajudar muito para esta noite!
Temos de encontrar um sítio onde dormir.
- Acho que deveríamos falar com um ou dois artistas de circo - disse o David. -
Mesmo que nada tenham a ver com o roubo, podem ter visto alguém levar as roulotes.
- Sim, acho que tens razão - disse o Júlio. - Eles devem saber o que aconteceu.
Zé, fica aqui com a Ana, para o caso dos artistas de circo serem mal-educados. Vamos
levar o Tim, poderá ser-nos útil!
A Zé não poderia ficar para trás, mas viu que a Ana queria! Por isso, ficou com
ela, seguindo os dois rapazes com os olhos enquanto eles voltavam a subir a colina,
seguidos de perto pelo Tim.
- Não vamos ao homem das cobras - disse o David. - Ele pode estar a brincar com
as cobras na roulote!
- Que jogo será possível fazer com cobras? - disse o Júlio. - Ou estás a pensar
em saltar à corda?
- Que piada - disse o David, educadamente. - Olha, está alguém junto da nossa
fogueira, acho que é o Bufflo. Não, é o Alfredo. Bem, nós sabemos que não é tão feroz
como parece. Vamos abordá-lo sobre as roulotes.
Foram até ao grande engolidor de fogo, que estava sentado a fumar junto à
fogueira. Ele não os ouvira a aproximar-se e deu um salto quando o Júlio lhe dirigiu a
palavra.
- Senhor Alfredo - começou o Júlio -, pode dizer-nos para onde foram as nossas
roulotes? Quando chegámos, vimos que tinham desaparecido.
- Assim parece - disse o Júlio. - Bom, vamos tentar o homem de borracha. Vamos.
Mas é o último que vamos tentar.
- Vocês sabem muitas coisas - disse o homem de borracha, numa voz muito
aborrecida. - As vossas roulotes não foram roubadas. Vou mostrar-lhes onde estão.
Desceu com leveza os degraus da roulote e caminhou à frente dos dois rapazes
na escuridão. Atravessou a colina relvada, dirigindo-se para onde tinham estado as
roulotes dos jovens.
- Para onde está a levar-nos? - disse o Júlio. - Nós sabemos que as roulotes não
estão aí! Por favor, não se porte como um idiota, já estamos fartos disto!
O homem nada disse, mas continuou. Os rapazes e o Tim nada podiam fazer
senão segui-lo. O Tim não estava a gostar nada daquilo. Continuava num rosnar baixo
e contínuo, como uma trovoada distante. O homem de borracha nem reparou. O Júlio
perguntou-se se ele não teria medo de cães porque eles não conseguiam morder
borracha!
- Bom - disse o Júlio, surpreendido. - Quem teve a ideia de pôr as nossas roulotes
aqui, no acampamento ao lado?
- Agora não permitimos miúdos connosco - disse o homem de borracha. - Foi por
isso que atrelamos os cavalos às vossas roulotes e as levamos pelo portão até ao
acampamento vizinho. E aqui estão elas. Pensamos que viriam ainda de dia e que as
veriam.
- Bem, é agradável ver que de repente você pode ser mais conversador - disse o
Júlio. - Pára de rosnar, Tim. Está tudo bem. Encontramos as nossas roulotes!
- Então foi isso que aconteceu - disse ele. - Apenas uma vingança por parte dos
artistas de circo, que nos quiseram castigar por aquilo que aqueles miúdos horríveis
fizeram aos canários. Foi uma estupidez terem aberto as gaiolas, metade deles deve ter
morrido. Não gosto de ver os pássaros em gaiolas, mas os canários não podem viver
nesta região, a menos que alguém trate deles. É cruel deixá-los em liberdade e morrerem
à fome.
- Concordo contigo - disse o David. Desciam agora pela colina até a uma abertura
na sebe através da qual as roulotes deviam ter sido puxadas colina acima. A Zé e a Ana
iriam ficar muito aliviadas ao saber que eles tinham encontrado as roulotes!
- Os artistas de circo têm mesmo azar com crianças - disse ele. - Ao que parece,
tiveram um homem que trabalhava com canários cantores, com quem dava um
espectáculo, e uma noite os miúdos libertaram os canários todos. Por isso, metade deles
morreu. E agora os artistas de circo não querem crianças ao pé deles.
- Acho que o homem das cobras tem medo que nós soltemos as cobras dele -
disse o David, com uma risada de troça. - Bom, ainda bem que encontrámos as roulotes.
Estava com a sensação que hoje teríamos de passar a noite num monte de feno!
- Vamos fazer uma fogueira e cozinhar qualquer coisa - disse o Júlio. - Estou
esfomeado depois de todas estas mudanças.
- Eu não - disse a Ana. - Detesto sentir que os artistas de circo não são nossos
amigos. É parvo da parte deles, não estamos habituados a isto.
- Sim, estão a portar-se como crianças - disse o Júlio. - Alguém lhes fez algo muito
desagradável, por isso estão em birra, e esperam por uma oportunidade para se
desforrar. E depois há alguém que lança a Polícia no encalço deles, não se esqueçam.
E imaginem que estejam muito sensíveis de momento.
- Bom, é uma pena - disse a Zé, vendo o David acender uma fogueira. - Contava
divertir-me com eles. Acham que o dono da quinta vai importar-se por estarmos aqui?
- Oh, não pensei nisso - disse o Júlio. - Se calhar não podemos acampar neste
sítio. Espero que não tenhamos um fazendeiro zangado e aos gritos pela manhã !
- Oh, e estamos tão longe do ribeiro, agora - disse a Ana. - Fica do outro lado do
acampamento onde estávamos, e precisamos mesmo de água.
- Temos de passar sem ela esta noite - disse o David com firmeza. - Não quero
que o meu escalpe seja arrancado pelo Bufflo nem ter uma corda atada às pernas,
atirada pelo homem das cordas, nem uma cobra atrás de mim. Aposto que eles irão ficar
à espreita para quando formos buscar água. Isto é tudo um grande disparate.
- O sono é bom conselheiro - disse, por fim, o Júlio. - Não se preocupem, meninas.
Encontraremos uma saída para o nosso problema. Somos óptimos a sair de dificuldades.
Desistir, nunca!
- E o outro lema é “deixar dormir os cães que dormem” - disse o David, numa
grande careta. - Ele detesta ser acordado quando está a fazer uma boa soneca, a sonhar
com milhões de coelhos para apanhar!
- Bom, por falar em sonecas, e que tal irmos até aos nossos beliches? - disse o
Júlio, num bocejo. - Fizemos um longo passeio hoje e estou cansado. Vou deitar-me no
beliche e ler.
Todos acharam que era uma ideia excelente. Arrumaram a louça do jantar e as
raparigas deram as boas-noites aos rapazes. Foram para a roulote com o Tim.
- Espero que estas férias não sejam um fracasso - disse a Ana, enquanto se
deitava no beliche.
- Quem lhes deu autorização para acamparem aqui? - disse a cara, parecendo
negra como uma nuvem de trovoada.
- Pois bem, não podem ficar - disse o dono da quinta. - Eu não alugo este
acampamento. Uso-o para as minhas vacas. Terão de se ir embora hoje, ou porei as
vossas roulotes na estrada.
- Ai, credo - disse a Ana. - Detesto este tipo de coisas. Estávamos a divertir-nos
tanto antes dos artistas de circo terem chegado. Mas parece impossível fazer com que
sejam nossos amigos.
- Sim, parece - disse o Júlio. - Agora nem sei se quero ser amigo deles. Prefiro
dar as férias por terminadas e ir para casa do que termos sempre sarilhos à nossa volta!
Eu e o David vamos falar com os artistas de circo depois do pequeno-almoço.
O pequeno-almoço foi tão solene quanto o jantar. O Júlio estava muito silencioso.
Estava a pensar no que iria dizer às pessoas simpáticas do acampamento do lado.
- Tens de levar o Tim contigo - disse a Zé, dando voz ao que todos estavam a
pensar.
O Júlio e o David partiram com o Tim às oito e meia. Todas as pessoas já estavam
levantadas e a tratarem das suas vidas e o fumo das suas fogueiras erguia-se no ar da
manhã.
Ouviu-se um murmúrio furioso por parte da multidão atenta. O Tim rosnou mais
alto. Um ou dois artistas de circo recuaram apressadamente quando o ouviram.
CRAQUE! O Júlio deu um grande pulo, pois alguns cabelos do topo da cabeça
tinham sido cortados pela ponta do chicote. A multidão voltou a rir-se às bandeiras
despregadas. O Tim arreganhou os dentes e rosnou. O David agarrou na coleira do cão.
- Tornem a fazer isso e não conseguirei manter o cão preso! - exclamou ele, em
tom de aviso.
O Júlio ficou ali de pé, sem saber o que fazer de seguida. Não suportava a ideia
de dar meia volta e fugir acompanhado pela troça dos outros. Estava tão furioso que não
conseguia dizer o que quer que fosse.
E depois algo aconteceu. Algo tão totalmente inesperado que ninguém fez nada,
a não ser deixar acontecer.
Uma figura arrapazada subiu a correr a colina relvada. Alguém muito parecido
com a Zé, de cabelo curto encaracolado e uma cara cheia de sardas. Contudo, alguém
vestido com uma saia verde curta e não jeans, como a Zé. Vinha a correr, a gritar a
plenos pulmões.
- Oh, é a João! João! A rapariga cigana que uma vez participou connosco numa
aventura! Júlio, é a João!
Sim, não havia dúvidas. Era a João! Vinha disparada, com as faces a brilhar de
alegria, e disparou excitada em direcção do David. Sempre gostara mais dele.
- David! Não sabia que estavas aqui! Júlio! Os outros também estão aqui? Oh,
Tim, querido Tim! David estás acampado aqui? Oh, isto é demasiado fantástico para ser
verdade!
- Bem - disse a João. - Eu também tenho férias de escola como vocês, e pensei
ir visitar-vos ao Casal Kirrin. Por isso, lá fui. Mas já todos tinham partido. Foi ontem.
- Bem, depois não quis voltar logo para casa - disse a João. - Por isso, pensei em
fazer uma visita ao meu tio - irmão da minha mãe - e eu sabia que ele estava acampado
por aqui, por isso vim à boleia todo o caminho, e cheguei ontem à noite.
- Estou espantado - disse o Júlio. - E quem é o teu tio, se é que se pode saber?
- Claro que não - disse o David, pensando que ninguém jamais poderia esquecer
aquela miudinha selvagem, com as suas maneiras tresloucadas e a sua forte afeição.
Foi então que pela primeira vez a João se apercebeu que algo se passava! Que
fazia aquela multidão em torno do Júlio e do David? Olhou em volta e sentiu
imediatamente que os artistas de circo estavam de pé atrás com os dois rapazes...
embora a principal expressão nos seus rostos fosse agora de espanto! Perguntavam-se
como é que a João conheceria aqueles rapazes. Como poderia ela ser tão simpática com
eles? Estavam confusos e baralhados.
- Tio Alfredo, onde estás? - perguntou a João, olhando em volta. - Ah, aí estás!
Tio, estes são os meus melhores amigos. E as raparigas também, estejam lá onde
estiverem. Contar-lhes-ei tudo sobre eles e foram amáveis para comigo! Vou contar a
todos!
- Bem - disse o Júlio, sentindo-se muito embaraçado com o que a João acabava
de revelar -, diz-lhes, João, e eu vou já dar a notícia à Zé e à Ana. Elas vão ficar
surpreendidas ao saber que estás cá. E que o Alfredo é teu tio!
Os dois rapazes e o cão viraram-se para partir. A pequena multidão abriu-se para
dar passagem. Fechou-se novamente em torno da entusiasmada João, que falava em
voz tão alta que os rapazes a podiam ouvir enquanto atravessavam o acampamen-to.
- Bom, bom, bom! - exclamou o David, enquanto passaram através da sebe. - Que
coisa espantosa! Mal quis acreditar quando a João apareceu, não achas? Espero que a
Zé não se vá importar. Ela sempre teve muitos ciúmes da João e das coisas que ela faz.
- Bem, imaginem a própria João aqui! - disse a Ana, sorrindo. - Oh, Júlio, foi óptimo
ela ter aparecido. Não gostei nem um pouco do Bufflo a agitar o chicote para ti. Podia
ter-te tirado o cabelo todo!
- Oh, foram apenas alguns cabelos - disse o Júlio. - Mas foi um choque para mim.
Acho que os artistas de circo também foram apanhados de surpresa quando a João
apareceu como um pequeno furacão, a gritar a plenos pulmões e se atirou ao pobre
David. Quase o atirou ao chão!
- Tal como os dois cientistas - disse o Júlio, com uma careta. - Céus, ainda não
quero acreditar! A João era a última pessoa que esperava ver aqui.
- Sim, tinha-me esquecido que a mãe da João trabalhava num circo - disse o Júlio.
- Ela devia conhecer as pessoas de todo o país! Que estará ela a contar-lhes sobre nós?
- Deve estar a tecer elogios ao David - disse a Zé. - Ela sempre pôs o David nos
píncaros da lua. Talvez os artistas de circo não sejam tão desagradáveis connosco
quando souberem que a João gosta muito de nós.
- Bem, estamos metidos numa alhada - disse o David. - Não podemos ficar neste
acampamento, ou o dono da quinta virá ter connosco novamente. E não acredito que a
gente da feira nos empreste os cavalos. E sem cavalos não conseguimos sair deste
acampamento!
- Mas teríamos de lhe pagar e não vejo por que o devamos fazer - disse o Júlio. -
Apesar de tudo, não temos culpa das nossas roulotes terem vindo para aqui.
- Acho que este local é horrível e hostil - disse a Ana. - E não quero ficar aqui nem
mais um dia.
- Sim, e não acredito, trás dois cavalos com ela! - gritou o David. - Boa, João! Ela
traz os cavalos do Alfredo!
10
Os quatro, com o Tim atrás deles, foram a correr ter com a João. Ela riu-se
abertamente para todos.
- Olá, Ana! Olá, Zé! Que bom encontrar-vos novamente. Grande surpresa!
- Foi fácil - disse a João. - Bastou-me contar tudo ao tio Fred, a maravilha que
vocês são, e o que fizeram por mim. E qual não é o meu espanto ao saber que eles vos
tinham expulsado do vosso acampamento! Descontrolei-me! Disse-lhes o que pensava
deles, tratarem os meus melhores amigos daquela forma!
- Não me ouviste? - perguntou a João. - Eu gritei a plenos pulmões com tio Fred
e depois com a mulher dele, a tia Anita, ela também gritou com ele. E depois gritamos
as duas com toda a gente.
- Deve ter sido uma discussão - disse o Júlio. - E o resultado disso foi que levaste
a tua avante e trouxeste os cavalos para levarmos as nossas roulotes, João?
- Bem, a tia Anita disse-me que tinham levado as vossas roulotes para o
acampamento do lado e as deixaram lá e que não vos iam emprestar os cavalos para as
trazer de volta, eu disse-lhes umas quantas coisas - disse a João. - Eu disse... não, é
melhor não vos dizer o que lhes disse... não fui muito educada.
- Aposto que não - disse o David, que já tivera uma curta experiência da língua
desabrida da João no ano anterior.
- E quando lhes disse que quando o meu pai foi para a prisão vocês me arranjaram
um lar com alguém simpático que cuida de mim, eles pediram desculpas por vos terem
tratado tão mal - disse a João. - E por isso disse ao tio Fred que ia buscar dois cavalos
e levar as vossas roulotes de volta para o acampamento.
- Ah, sim - disse a João. - Por isso vamos atrelá-los, Júlio, e regressar
imediatamente. Não é o dono da quinta que aí vem?
- Então sempre conseguiram os cavalos, hem? - disse ele. - Vejo que sim. A
contarem-me tretas sobre estarem aqui encavalados e não conseguirem sair!
- Vá - disse a João, agarrando nas rédeas do cavalo que puxava a roulote das
raparigas. - Vamos, vamos!
O Alfredo voltou-se e tirou algumas molas da sua grande boca. Parecia muito
envergonhado.
- Deixem-nos à solta - disse ele. Hesitou antes de voltar a pôr as molas na boca.
- Não sabíamos que eram amigos da minha sobrinha - disse ele. - Ela contou-nos tudo
sobre vocês. Deverias ter-nos dito que a conheciam.
- E como poderia ele tê-lo feito se não sabia que ela era tua sobrinha? - gritou a
mulher do Alfredo, da porta da roulote. - Fred, tu não tens miolos, nem um pouco.
Ahhhhh! Agora deixaste cair a minha melhor blusa ao chão!
- O Alfredo lamenta ter levado as vossas roulotes - disse ela. - Não lamentas,
Fred?
- Bom, foste tu quem... - começou o Alfredo, com uma expressão de espanto. Mas
não pôde acabar. A sua minúscula esposa deu-lhe um violento empurrão e voltou a falar,
com as palavras a atropelarem-se umas às outras.
- Não faças caso deste grandalhão mau! Ele não tem miolos. Só sabe engolir fogo
e isso é pouca coisa! Agora a João, essa sim, essa tem miolos. Bem, não estão contentes
por estarem de volta ao vosso espaço?
- Ouviste, Fred, viste o que fizeste? Correste com estes miúdos tão simpáticos! -
gritou a mulher do Alfredo. - Estes rapazes têm maneiras, uma coisa que nem sabes o
que é, Fred.
O Fred tirou umas molas da boca para dar uma resposta indignada, mas a mulher
dele deu um guincho de repente e correu para a roulote.
- Ah! Vai deixar queimar o bolo! Não tem miolos aquela mulher! Miolos nenhuns!
O Júlio e o David deram meia volta para se irem embora. Alfredo falou-lhes em
voz baixa.
- Agora podem ficar aqui neste acampamento. Vocês são amigos da João. Isso é
suficiente.
- Pode ser - disse o Júlio. - Mas receio que não seja suficiente para nós. Vamos
embora amanhã.
Os rapazes voltaram para junto das roulotes. A João sentou-se na relva com a Zé
e a Ana, contando entusiasmada a sua vida com uma família muito simpática.
- Mas não me deixam usar jeans ou ser um rapaz - terminou com tristeza. - É por
isso que trago uma saia. Podes emprestar-me uns jeans, Zé?
- Não, não posso - disse a Zé, com firmeza. A João já estava muito parecida com
ela, sem usar jeans. - Bem, pareces ter começado uma nova vida, João. Já sabes ler e
escrever?
- Quase - disse a João, e desviou o olhar. Achava as lições muito difíceis, pois
nunca andara numa escola quando vivia com o pai, que era cigano. Voltou a olhá-los
com olhos brilhantes.
- Não lhe disseste que vinhas para aqui? - perguntou o David. - Isso não foi muito
simpático, João.
- Não pensei nisso - disse a João. - Manda-lhe um cartão por mim, David.
- Posso ficar convosco? - perguntou ela. - Não dormirei nas roulotes, enrosco-me
por baixo. Eu fazia sempre isso quando o tempo estava bom e vivia com o meu pai na
roulote dele. Seria uma mudança para mim não viver numa casa. Gosto de imensas
coisas nas casas, mas gosto mais de dormir no chão ao ar livre.
- Bom, poderias ficar connosco se nós próprios ficássemos - disse o Júlio. - Mas
não estou muito inclinado a fazê-lo, por termos tido uma recepção tão antipática por parte
de todos.
- Vou dizer a todos que sejam amáveis para convosco - disse a João
imediatamente, e levantou-se como se fizesse menção de ir obrigar toda a gente a ser
amável.
- Ok - disse o Júlio. Olhou para o relógio. - Vamos festejar a chegada da João com
uns gelados. E julgo que vocês duas tenham compras a fazer, não têm?
- Sim - respondeu a Ana e foi buscar os sacos das compras. Começaram a descer
a colina, os cinco e o Tim. Quando passaram pelo homem das cobras, ele
cumprimentou-os alegremente.
Depois da má vontade que os jovens tinham visto nos artistas de circo até então,
aquela reacção foi uma surpresa. A Ana sorriu, mas os rapazes e a Zé limitaram-se a
acenar com a cabeça e a prosseguir. Não eram tão prontos a perdoar como a Ana!
Passaram pelo homem de borracha, que tinha vindo buscar água. Atrás dele vinha o
homem das cobras. Ambos acenaram com a cabeça e o homem de borracha, de olhar
triste, chegou mesmo a fazer um meio sorriso. Depois viram o Bufflo, a praticar o seu
chicote - craque-craque-craque! Aproximou-se deles.
- Obrigado - disse o Júlio, educada mas secamente. - Mas é provável que nos
vamos embora amanhã.
- Já não posso - disse o Júlio de imediato, passando a mão sobre a parte de cima
da cabeça onde o Bufflo lhe tinha cortado alguns cabelos eriçados.
- Oh, oh! - riu o Bufflo e depois parou abruptamente receando ter sido ofensivo. O
Júlio sorriu-lhe. Ele gostava bastante do Bufflo, com a sua cabeleira amarela e fala
arrastada.
- Bom, mas não ficamos - disse o Júlio, secamente. - Estou quase decidido, mas
vamos esperar até amanhã. É uma questão de orgulho próprio. Vocês, as raparigas, não
percebem bem como eu me sinto em relação a toda a situação.
- Talvez vocês tenham ido um pouco longe demais - disse-lhes ela em tom
reprovador. - Ela é mesmo uma mulherzinha simpática. Honestamente, agora não me
importaria de ficar.
- Partiremos amanhã - disse ele. - A menos que algo de inesperado nos aconteça
e nos faça ficar. E tal não irá acontecer.
Mas o Júlio enganava-se. Algo inesperado iria acontecer. Algo muito estranho.
11
- Não consigo comer mais - disse a Zé. - Aquele bolo era muito pesado. Acho que
nem consigo levantar-me e arrumar a louça, por isso, não o surgiras, Ana.
- Eu, não - disse a Ana. - Temos muito tempo. Está a ser uma noite de sonho.
Vamos ficar sentados um pouco. Lá vai aquele melro, de novo. Ele tem um tema diferente
sempre que canta.
- Lá está ele novamente - disse o David. - Se ele não cantar aquilo, grita
"pinque-pinque-pinque" como se estivesse a música gravada no cérebro. Olhem para ele
ali, não é uma beleza?
Era, sem dúvida. Voou até à relva para junto dos miúdos e começou a apanhar
os pedacinhos de comida, tendo chegado a aventurar-se no joelho da Ana uma vez. Ela
ficou imóvel, realmente encantada. O Tim rosnou e o tentilhão levantou voo.
- Tim, meu tonto - disse a Zé. - Com ciúmes de um tentilhão! Oh, David vês
aquelas garças a voar em direcção ao pântano na parte leste da colina do castelo?
- Sim, quatro garças! Céus, têm umas pernas compridíssimas, não têm? Estão a
chapinhar, felicíssimas, de um lado para o outro. Agora uma delas está a tentar apanhar
alguma coisa com o longo bico. Que terá apanhado? Sim, é uma rã. Consigo ver-lhe as
patas de trás!
Mas era. Era realmente excelente, demasiado bom para a Zé, que não era muito
cuidadosa com objectos valiosos. Ela foi a tempo de ver as pernas da pobre rã a
desaparecerem no bico longo e forte da garça. Foi então que algo assustou os pássaros
e todos levantaram voo.
- Como batem as asas lentamente - disse o David. - Aposto que devem bater as
asas mais lentamente do que qualquer outro pássaro. Passa-me os binóculos outra vez,
Zé. Vou dar uma olhadela aos corvos. Há centenas deles a voar novamente sobre o
castelo. O passeio da noite, suponho eu.
Xaque-Xaque-Xaque!
O David viu alguns voarem para a única torre completa do castelo. Baixou os
binóculos para os acompanhar. Um corvo voou até ao parapeito da fresta junto ao topo
da torre, e o David seguiu o seu voo. Pousou durante meio segundo no parapeito e
levantou voo quando se assustou.
E depois o David viu algo que fez o seu coração dar um pulo de repente. Os
binóculos estavam apontados para o parapeito e ele viu lá algo completamente
surpreendente! Ficou a olhar como se não acreditasse no que os seus olhos viam.
- Júlio! Vê com os binóculos. Aponta para o parapeito perto do topo da única torre
que está completa, e diz-me se vês o mesmo que eu. Depressa!
Surpreendido, o Júlio estendeu a mão para agarrar os binóculos. Que teria o David
visto? O Júlio levou os binóculos aos olhos e focou-os na janela para a qual o David
estivera a olhar. Olhou atentamente.
- Sim. Vejo, vejo. Que coisa extraordinária. Acho que deve ser um efeito de luz.
Por aquela altura, as raparigas já estavam num estado de curiosidade tal que não
conseguiram resistir mais. A Zé arrancou os binóculos ao Júlio.
- Deixa-me ver! - disse ela furiosa. Apontou-os para a janela. Olhou, olhou e tornou
a olhar.
- É para rir? - perguntou ela. - Não vejo nada de especial. Nada, a não ser uma
janela vazia!
- David! Se não nos dizes o que viste, mandamos-te pela colina abaixo - disse a
Zé, zangada. - Estás a pregar-nos alguma partida? Que viste, afinal?
- Bom - disse o David, olhando para o Júlio. - Vi uma cara. Uma cara não muito
longe da janela, a olhar para fora. Que viste tu, Júlio?
- Uma cara? - disseram a Zé, a Ana e a João ao mesmo tempo. - Que queres
dizer?
- Bem... o que acabei de dizer - respondeu o David. - Uma cara... com olhos, nariz
e boca. Mas ninguém mora no castelo.
- Não, não pode ter sido um visitante, tenho a certeza. O castelo fecha às cinco e
meia e já passa das seis. Parecia uma cara... hum... uma cara desesperada.
- Sim, também tive essa sensação - disse o David. - Bem, é muito estranho, não
é, Júlio? Deve haver uma explicação qualquer razoável para o que vimos mas não
consigo deixar de pensar que há algo estranho.
- Sim, reparei - disse o Júlio. - Eram muito pronunciadas, não eram? Isso fez
lembrar algo à Zé.
- Não reconheci a semelhança - disse ele -, mas afinal a distância ainda é grande.
Só conseguimos ver a cara à janela de tão longe porque os binóculos da Zé são
extraordinariamente bons. Na verdade, deve haver uma explicação normal. Só que nós
estávamos tão espantados que aquilo nos pareceu estranho.
- Quem me dera ter visto a cara - suspirou a Zé. - Afinal, os binóculos são meus,
e não cheguei a ver a cara.
- Ah, sim, pensámos em partir, não foi? - disse o Júlio, que com a excitação se
esquecera por completo da sua própria ideia. - Bom, é melhor não irmos embora sem
termos explorado o castelo primeiro, e encontrarmos a explicação para a cara.
- Pois, claro - disse a Zé. - Imagine-se, vermos uma coisa daquelas e irmos
embora sem descobrir nada sobre ela, não é possível.
- Seja como for, eu vou ficar - anunciou a João. - Se forem, posso ficar com o meu
tio Alfredo, e avisar-vos se a cara voltar a aparecer... se a Zé me deixar ficar com os
binóculos dela.
- Mas eu não vou deixar - disse a Zé, com grande determinação. - Se eu me for
embora, os meus binóculos irão comigo. Mas eu não me vou embora. Agora vais ficar,
não vais, Júlio?
- Sim, vamos ficar e descobrir mais sobra aquela cara - disse o Júlio. -
Sinceramente, estou terrivelmente confuso. Eh, quem vem lá?
- João? Estás aí? - perguntou ele. - A tua tia está a convidar-te para jantar, a ti, e
a todos os teus amigos. Venham.
Houve uma pausa. A Ana olhou ansiosamente para o Júlio. Iria ele continuar a
portar-se soberba e orgulhosamente? Ela esperava que não.
- Obrigado - disse o Júlio, por fim. - Aceitamos com todo o gosto. Quer que vamos
já?
- Sim, seria óptimo - disse o Alfredo, com uma pequena vénia. - Eu como fogo
para vocês. Querem?
Os cinco jovens ficaram aliviados. Depois do grande lanche, ainda não tinham
apetite para a refeição que cheirava tão bem e que estava na panela! Sentaram-se junto
à fogueira.
- Vai mesmo comer fogo para nós? - perguntou a Ana. - Como faz isso?
- Eu também não quero que tenha bolhas na sua boca - acrescentou a Ana.
- Eu sou óptimo engolidor de fogo - assegurou-lhe ele. - Os bons nunca ficam com
bolhas na boca. Agora, sentem-se e fiquem sossegados e eu vou buscar as minhas
tochas e engolir fogo para vocês verem.
- Um verdadeiro círculo familiar! - disse ele. - Agora vejam, vou engolir fogo para
vocês!
12
- As tochas - disse a mulher dele, orgulhosamente. - Ele engole o fogo das tochas!
Alfredo disse algo ao homem das cobras, mergulhando as suas duas tochas na
bacia. Ainda não estavam acesas, e para os jovens pareciam ganchos muito grandes,
com uma bola de algodão presa à parte curva. O homem das cobras inclinou-se para a
frente e tirou um pauzinho a arder do fogo. Com um gesto rápido atirou-o para a bacia.
Acendeu imediatamente o petróleo, e as chamas elevaram-se na escuridão.
Então, o Alfredo atirou a cabeça para trás - para trás, cada vez mais para trás... e
para trás - e abriu a boca enorme. Meteu uma das tochas acesas lá dentro, e fechou a
boca, de modo que as bochechas brilharam com um vermelho estranho e inacreditável
devido às chamas dentro da boca. A Ana soltou um gritinho e Zé abriu a boca de espanto.
Os dois rapazes sustiveram a respiração. Só a João assistia a tudo aquilo com
descontracção. Vira o tio fazer aquilo muitas vezes.
- Ah, gostaram de me ver engolir fogo? - disse ele, e apagou as tochas. A bacia
já não estava a arder e agora só a luz da fogueira iluminava o cenário.
- Quem? Eu? nem pensar! - riu-se o Alfredo. - A princípio, talvez, há muitos, muitos
anos, quando comecei. Mas agora, não. Seria uma vergonha queimar a boca. Deixaria
tombar a cabeça de vergonha e desapareceria.
- Mas como consegue não queimar a boca? - perguntou o David, baralhado.
O Alfredo recusou-se a dar qualquer explicação. Isso era parte do mistério da sua
actuação e ele não iria revelá-lo.
- Não. Eu não vou queimar-me - disse a João. - Já te vi fazer esse número muitas
vezes e sei como o fazes. Já experimentei.
- Oh, Alfredo - disse a mulher -, não vais fazer nada disso. Eu trato da João se ela
começar a fazer disparates. Quanto a comer fogo, bem, se há mais alguém que o vai
fazer, sou eu, a tua mulher.
- Tu não vais comer fogo - disse o Alfredo, obstinado, receando que a sua mulher
tempestuosa o tentasse fazer.
- Deixa-a à solta - disse o homem das cobras. - Ela volta para mim. Ela quer dar
um passeio.
A cobra deslizou pela João acima e depois começou a deslizar pelas costas dela.
- Agora não deixes que ela te enrole a cauda - avisou o homem das cobras. - Já
te avisei.
- Vou usá-la ao pescoço - disse a João e começou a puxar o longo corpo da cobra
até a ter em volta do pescoço como um lenço. A Zé assistia àquilo com uma admiração
contrariada. A Ana afastou-se o mais possível da João. Os rapazes olhavam espantados
com um novo respeito pela rapariguinha nómada.
Alguém começou a tocar uma doce melodia numa guitarra. Era Skippy, a mulher
do Bufflo. Murmurava uma cançoneta triste que tinha uma parte coral alegre, a que os
artistas de circo se juntaram. Agora praticamente todo o acampamento estava ali
reunido.
- Ah, minha beleza - disse o homenzinho curioso deixando a cobra deslizar entre
as suas mãos, com os anéis a vibrarem vigorosamente à medida que se deslocava. -
Gostas de música, minha linda?
- Ele fugiu com a cauda baixa quando viu a cobra - disse a João. - Eu vi-o
afastar-se. Tim, anda cá! Está tudo bem! Tim, Tim!
- Que está dentro da sua panela? - perguntou o David, aceitando uma segunda
dose. - Nunca provei um guisado tão bom na minha vida.
- Galinha, pato, carne de vaca, coelho, lebre, ouriço cacheiro, cebola, nabos. -
começou a mulher do Alfredo. - Pus tudo aquilo que me veio à mão. Vai cozinhando e
eu vou mexendo. Uns dias leva perdiz, outros dias leva faisão.
- Tem tento na língua, mulher - rugiu o Alfredo, que sabia muito bem que os
proprietários das redondezas podiam fazer perguntas quanto a algumas coisas que
estavam naquele guisado.
- Uauf! - fez o Tim ao levar com algumas gotas deliciosas do cozinhado no nariz,
e lambendo-as em seguida. - Uauf! - Levantou-se e foi em direcção à colher, ansiando
por mais.
- Oh, tia Anita, dá uma colher de guisado ao Tim - pediu a João e, para grande
alegria do Tim, recebeu um prato cheio só para ele. Ele mal podia acreditar!
- Muito obrigado por um jantar tão agradável - disse o Júlio, percebendo que
chegara o momento de partir. Levantou-se e os outros seguiram-lhe o exemplo.
- E obrigada por ter comido fogo para nós, Alfredo - disse a Zé. - O espectáculo
não parece ter-lhe tirado o apetite!
- Ora - disse o Alfredo, como se tal coisa nunca lhe tivesse ocorrido. – João, se
quiseres ficar connosco esta noite, serás bem-vinda.
- Só preciso de uma manta velha, tia Anita - disse a João. - Vou dormir debaixo
da roulote da Zé.
- Podes dormir no chão lá dentro, se quiseres - disse a Zé. Mas a João abanou a
cabeça.
- Não. Já estou farta de dormir dentro de casa. Quero dormir ao relento. Debaixo
da roulote será bom. Os nómadas costumam dormir assim quando o tempo está bom.
- Foi uma noite muito interessante - disse o David. - Eu gostei. Gostei dos teus
tios, João.
A João ficou encantada. Gostava sempre de ouvir elogios do David. Foi para
debaixo da roulote das raparigas e enrolou-se numa manta. A sua mãe adoptiva com
quem vivera durante alguns meses ensinara-a a lavar os dentes e a lavar e pentear o
cabelo, mas tudo isso era esquecido agora que ela voltava à vida de nómada.
- Graças à João - disse a Ana. A Zé nada disse. não gostava da ideia de ficar a
dever favores à João. Acabou os preparativos para se ir deitar e foi para o beliche.
- Quem me dera ter visto aquela cara à janela. - disse ela. - Pergunto-me quem
seria, e por que razão estaria ali, a olhar para o exterior.
- Acho que não me apetece falar de caras à janela agora - disse a Ana,
enfiando-se no beliche. - Vamos mudar de assunto. - Apagou a lanterna e aninhou-se.
Conversaram durante alguns minutos, e foi então que a Zé ouviu um som vindo do
exterior da roulote. Que seria aquilo? O Tim levantou a cabeça e soltou um pequeno
uivo.
A Zé olhou para a janela à sua frente. Uma estrela solitária brilhava através da
vidraça, e depois algo apareceu à frente da estrela, escondeu a estrela e foi de encontro
ao vidro da janela. O Tim rosnou novamente, mas não muito alto. Seria algo que ele
conhecia?
- Não estou a dormir - disse a voz da Ana, e sentou-se, assustada. - Que cara?
Onde? não estás a pregar-me uma partida, pois não?
- Não, está ali, olha! - disse a Zé, e apontou a lanterna para a janela. Uma cara
longa, grande e escura olhava para o interior e a Ana soltou um guincho. Depois uma
gargalhada.
13
Ruma ao castelo
- Vamos ao castelo assim que abrir - disse o David. – Mas lembrem-se, nada de
falar de caras à janela, ouviste, João? Tu é que não consegues ficar calada às vezes.
A João disparou.
- Está bem, comedora de fogo - disse o David numa careta. Olhou para o relógio.
- Ainda é muito cedo para irmos.
- Eu vou ajudar o senhor Slither com as cobras - disse a João. - Alguém quer vir?
- Não me importo de ir ver, mas não me agrada a forma como andam em cima
das pessoas - disse o David.
Dirigiram-se todos para a roulote do homem das cobras excepto a Ana, que disse
que preferia arrumar a louça do pequeno-almoço. O homem das cobras tinha cobras fora
da caixa.
- Está a dar-lhes lustro - disse a Zé, sentando-se ao pé dele. - Vejam como ele
põe os corpos delas a brilhar.
- Vá, João. Limpa a Beauty por mim - disse o senhor Slither. - O produto está
naquele frasco além. Ela está outra vez com aquelas incómodas traças por baixo das
escamas. Limpa-a com o produto para a livrar das pestes.
A João parecia saber o que fazer. Agarrou um pano, embebeu a ponta no líquido
amarelo do frasco e começou a aplicá-lo suavemente numa das cobras, deixando a loção
infiltrar-se nas escamas. A Zé, para não ficar ultrapassada, ofereceu-se para ajudar a
polir a outra cobra.
- Então agarra nela - disse o senhor Slither, e estendeu a cobra à Zé. Depois
levantou-se e foi para a roulote dele. A Zé não estava exactamente à espera disso. A
cobra ficou junto aos joelhos dela e depois começou a enrolar-se à volta do corpo.
- Queremos vê-lo a arrancar qualquer coisa com o chicote - disse o David. - Acho
que o faz muito bem.
- Sim - disse o David. O Bufflo fitou-as, fez girar o chicote uma ou duas vezes,
levantou-o e fê-lo estalar. Como por magia, as folhas de cima desapareceram do arbusto.
Os rapazes assistiam, espantados.
O Júlio hesitou. Mas o David meteu a mão ao bolso e tirou um lápis vermelho.
Estendeu a mão, com o lápis entre o indicador e o polegar. O Bufflo olhou para ele com
os olhos semicerrados como a medir a distância. Ergueu o chicote. Craque! A ponta do
chicote enrolou-se em torno do lápis e arrancou-o da mão do David. Voou pelo ar, e o
Bufflo alcançou com a mão e apanhou-o!
- Muito bem! - exclamou o David, cheio de admiração. - Isso leva muito tempo a
aprender?
- Uns vinte anos, mais ou menos - respondeu o Bufflo. - Mas a pessoa tem de
começar de muito jovem com, digamos, três anos. Foi o meu pai que me ensinou, e se
eu não aprendia depressa, ele arrancava-me a pele das orelhas com a ponta do chicote!
- Também sei atirar facas. - disse o Bufflo, orgulhoso da admiração dos rapazes.
- Encosto a Skippy a um painel de madeira e atiro-lhe facas em volta, de forma que
quando no fim ela se afasta do painel, a silhueta dela está toda delineada com facas.
Querem ver?
- Bem, não, agora, não - disse o Júlio olhando para o relógio. - Vamos ao castelo.
Já o foi visitar, Bufflo?
- Não. Quem é que vai andar a perder tempo num castelo em ruínas? - disse o
Bufflo, zombeteiro. - Eu, não.
Foi para a sua roulote, fazendo laços com a corda pelo caminho com tanta
desenvoltura que o David não pôde deixar de sentir alguma inveja. Que pena ele não ter
aprendido a fazer aquelas coisas quando era mais pequeno. Agora receava nunca mais
poder vir a ser realmente bom naquilo. Era demasiado velho!
- Zé! João! É altura de irmos - chamou o Júlio. - Pousem essas cobras e venham
daí. Ana! Estás pronta?
O senhor Slither foi recolher as suas cobras. Elas escorregaram sobre seu corpo,
delicadas, e ele passou-lhes a mão sobre o corpo macio e brilhante.
- Tenho de lavar as mãos antes de ir - disse a Zé. - Cheiram a cobra. Vens, João?
A João não via realmente necessidade de lavar as mãos, mas foi com a Zé ao
ribeiro e lavaram as mãos. A Zé secou as mãos num lenço muito sujo e a João fez o
mesmo na ponta da saia, muito mais suja. Olhou com inveja os jeans da Zé. Que pena
ter de usar saias!
Não fecharam as roulotes à chave. O Júlio tinha agora a certeza que os artistas
de circo estavam de boa fé para com eles e não lhes roubariam nada ou permitiriam que
outros o fizessem. Todos desceram a encosta, com o Tim alegremente aos saltos, com
a impressão que os ia levar a passear.
Subiram o caminho e chegaram à pequena torre na qual estava a porta que dava
para a entrada do castelo, então, viram uma velha com o ar de bruxa. Se ela tivesse
olhos verdes, a Ana tê-la-ia tido na conta de uma descendente de bruxa! Mas ela tinha
os olhos pretos como contas de um rosário. Era desdentada e, por isso, tornava-se difícil
perceber o que dizia.
- Não podem entrar com o cão - disse a velha, resmungando de tal forma que não
conseguiram perceber nada. Apontou para o cão e repetiu a mesma coisa, sempre a
abanar a cabeça.
- Oh, não podemos mesmo entrar com o cão? - perguntou a Zé. - Ele não faz mal
nenhum.
- Está bem. Vamos deixá-lo cá fora, então - disse a Zé, zangada. - Que regra tão
parva! Tim, fica aqui, não nos demoramos.
O Tim desceu a cauda. Ele não aprovava aquilo. Mas sabia que não podia entrar
em certos sítios, como igrejas, e julgava que aquilo devia ser uma igreja enorme, o tipo
de sítio onde a Zé desaparecia tantas vezes ao domingo. Deitou-se a um canto
ensolarado. Os cinco entraram pela cancela giratória. Abriram a porta e entraram no pátio
do castelo. A porta fechou-se atrás deles.
- Esperem, devíamos ter um guia - disse o Júlio. - Quero saber algo sobre aquela
torre.
- Seria uma história excelente se fosse escrita como deve de ser - disse o Júlio. –
Vejam o mapa. Aqui são as masmorras.
- Outrora foi um castelo muito forte e poderoso - disse o Júlio olhando para o
mapa. - Esta muralha existe desde o início, e o próprio castelo foi construído no meio de
um grande terreiro que o rodeia. Diz aqui que as muralhas do castelo têm dois metros e
meio de espessura. Dois metros e meio de espessura! Não admira que se tenha
conservado na sua quase totalidade.
- Existiam quatro torres, é claro - disse o Júlio, ainda de nariz colado ao guia. - Diz
aqui que três delas estão praticamente em ruínas, mas que a quarta está em boas
condições, embora a escada de pedra que conduz ao topo tenha caído.
- Então, pronto. Não poderias ter visto uma cara naquela janela - disse a Zé,
olhando para a quarta torre. - Se a escada ruiu, ninguém consegue subir.
- Hum. Vamos ver até que ponto ruiu - disse o Júlio. - Pode ser perigoso para o
público e talvez encontremos um aviso a dizer-nos para não entrar, mas é provável que
se possa subir em alguns pontos.
Deambularam pelo terreiro que rodeava o castelo. Estava cheio com as grandes
pedras brancas que tinham caído das paredes do próprio castelo. De um dos lados, ruíra
uma parede, e os jovens podiam ver o interior do castelo, escuro e ameaçador. Deram a
volta à volta do castelo novamente.
- Vamos entrar pela porta principal, se é que se pode chamar porta àquela grande
arcada de pedra - disse o Júlio. - Não conseguem imaginar cavaleiros a cavalgarem por
este terreiro, impacientes por partir para torneios, com os cascos dos cavalos sempre a
bater no chão?
- Não usavam vidros naquele tempo - disse o David. - Aposto que ficavam
contentes pelo facto da abertura das janelas ser tão pequena nos dias mais frios e
ventosos. Brrrrrr! Isto deve ter sido um sítio terrivelmente frio para se viver.
- O chão costumava ser coberto com capachos, e havia tapeçarias nas paredes -
disse a Ana lembrando-se de uma lição de história. – Júlio, vamos procurar agora a tal
escada para aquela torre. Vamos lá! Estou ansiosa por descobrir se há de facto uma
cara naquela torre!
14
O castelo Faynights
- Suponho que os paus que estão neste pátio devem ter sido deixados cair por
eles - disse o Júlio. - Eles fazem os seus ninhos a partir de pauzinhos, devem deixar cair
mais do que aquilo que usam! Vejam só aquela pilha!
Estavam de pé junto ao grande arco que dava entrada para o castelo. A Ana
estava impaciente.
Foram até à torre mais próxima, mas era quase impossível perceber que aquilo
fora uma torre. Era somente uma grande pilha de pedras caídas umas sobre as outras.
Foram até à única torre em bom estado. Contavam encontrar alguns vestígios de uma
escada de pedra, mas para grande desapontamento deles, nem conseguiam olhar para
o interior da torre! Uma das paredes interiores ruíra e a parede estava empilhada,
completamente bloqueada. Não havia sinais de escada. Ou tinham caído ou estava
tapada pelas pedras da parede em ruínas.
O Júlio estava espantado. Parecia óbvio que ninguém conseguiria subir à torre a
partir do interior, então, como seria possível ter visto uma cara na janela da torre?
Começou a sentir-se muito intrigado. Seria uma cara verdadeira? Se não, o que seria?
- Vamos perguntar à velha se há alguma forma de subir até à torre - disse o Júlio.
- Ela deve saber.
- Por favor, pode dizer-nos se existe alguma maneira de ir até àquela torre? -
perguntou o Júlio.
A velha respondeu algo, mas era difícil compreender o que dizia. Contudo, dado
que abanou a cabeça vigorosamente, parecia evidente que não havia forma de chegar
até à torre. Que estranho!
- Sim - disse a velha. - Vieram dois homens. Passaram todo o dia aqui na passada
quinta feira. Perguntem à Sociedade o que querem saber, a mim, não. Eu só recebo o
dinheiro.
- Seja como for, ela já nos disse o que queríamos saber - disse o Júlio. - Vamos
telefonar à tal Sociedade e perguntar-lhes se nos podem fornecer mais dados sobre o
castelo. É possível que existam passagens secretas e coisas que não aparecem
descritas neste guia.
- Que fixe! - disse a Zé, entusiasmada. - Sugiro que vamos àquela torre e olhemos
por fora. Talvez a possamos escalar a partir daí.
Foram lá ver, mas não era escalável. Embora as pedras em que estivessem
construídas fossem suficientemente irregulares para formarem apoios para as mãos e
para os pés seria demasiado perigoso para uma pessoa tentar subir, mesmo para a ágil
João. Fosse como fosse, não era possível dizer quais das pedras estavam soltas e a
desfazer-se até o trepador se ter firmado, e depois cairia por ali abaixo. Mesmo assim, a
João estava disposta a tentar.
- Talvez eu consiga - disse ela, tirando um dos sapatos.
- Uauf! - fez o Tim, tentando explicar. Correu para a torre, saltou sobre os blocos
de pedra caídos e deteve-se junto a um pequeno espaço entre três ou quatro pedras.
- Uauf! - fez ele de novo e tocando com a pata numa das pedras.
- Ele veio por ali - disse a Zé e empurrou uma grande pedra, sem a conseguir
mover nem um milímetro. - Não sei como é que o Tim se conseguiu espremer para
passar por aquela fenda. Não parece suficientemente grande para um coelho passar.
Certamente nenhum de nós consegue entrar!
- Sim, foi isso - disse o David. - Sabemos que as pedras têm dois metros e meio
de espessura, e por isso ele deve ter encontrado um sítio onde um espaço se tenha
partido na base e ter forçado a entrada. Mas, haverá uma abertura com dois metros e
meio de espessura?
Aquilo era realmente confuso. Todos olharam para o Tim e ele abanou a cauda,
cheio de expectativas. Depois ladrou alto e deu alguns saltos como se quisesse brincar.
A porta do pátio abriu-se de repente e a velha apareceu.
- Como é que esse cão apareceu aqui? - perguntou ela. - Ele tem de se ir embora,
já!
- Não - respondeu a velha. - Nem um. Devem ter deixado o cão entrar quando eu
não estava a olhar. Ele tem de sair. E vocês também. Já cá estão há muito tempo.
- É melhor irmos - disse o Júlio. - Já vimos o que havia para ver. Tudo o que nos
é permitido ver. Estou certo de que existe uma forma de subir até àquela torre embora a
escada esteja em ruínas. Vou telefonar para a Sociedade de Preservação de
Monumentos Antigos e pedir que me ponham em contacto com os fulanos que
examinaram o castelo a semana passada. Devem ser especialistas.
- Sim. Eles devem ter um mapa completo - disse o David. - Passagens secretas,
catacumbas, salas escondidas e tudo, se é que existem!
- Que grande desperdício - disse a Ana. - Comeu quatro da última vez, mais de
que qualquer um de nós.
Foi até aos correios para telefonar e os outros dirigiram-se à leitaria. A lojista
gordinha recebeu-os com grande regozijo. Tinha-os na conta dos melhores clientes, e,
de facto, eram. Iam no segundo doughnut quando o Júlio chegou.
Parou para agarrar num doughnut e deu-lhe uma dentada. Os outros esperaram
pacientemente enquanto ele mastigava.
- Disseram que não tinham. A última vez que visitaram o Castelo Faynights foi há
dois anos.
- Pois, foi o que eu disse - respondeu o Júlio, dando outra dentada. - E isso é que
foi estranho, disseram-me que não sabiam do que eu estava a falar e que ninguém da
Sociedade lá tinha ido, acabando por perguntar quem era eu afinal.
- Então havia mesmo uma cara verdadeira naquela janela da torre e existe uma
forma de lá chegar - disse a Ana.
- Exacto - disse o Júlio. - Sei que parece muito rebuscado, mas acho que há
hipótese dos dois cientistas terem lá ido. Não sei se leram o jornal, mas um deles, o
Jeffrey Pottersham, escreveu um livro sobre ruínas famosas. Ele sabe tudo sobre o
castelo de Faynights, porque é muito conhecido. Se eles quiserem esconder-se num sítio
qualquer até que as coisas se acalmassem e fugir depois para o estrangeiro.
- Sim, foi o que pensei também - disse o Júlio. - Acho que vou telefonar ao tio
Alberto e contar-lhe tudo isto. Vou descrever-lhe a cara o melhor que puder. Pressinto
que o assunto é demasiado importante para ser tratado só por nós. Aqueles homens
podem estar a guardar segredos extremamente importantes.
- É mais uma aventura! - disse a João, numa expressão séria mas com os olhos
a brilhar. – Oh, ainda bem que estou convosco!
15
Um dia interessante
- Acho que vou apanhar a camioneta até a aldeia seguinte - disse o Júlio. - É
demasiado fácil escutar o que se diz nesta cabina. Prefiro ir a uma outra cabina da rua,
em que ninguém ouça o que estou a dizer.
- Está bem. Vai - disse o David. - Vamos fazer umas compras e voltar para as
caravanas. Pergunto-me o que irá dizer o tio Alberto.
O Júlio foi para a paragem das camionetas. Os outros entraram nas poucas lojas
da aldeia e fizeram as suas compras. Tomate, alface, mostarda e agriões, pãezinhos,
bolos de frutos, latas de frutos e muitas garrafas de leite.
- É uma mudança radical vê-los tão simpáticos - disse a Zé, satisfeita. - Que
fiquem assim durante muito tempo. Lá está o homem das cobras, o senhor Slither, mas
não trás as cobras.
- Teria a aldeia toda por sua conta, se as tivesse trazido! - disse a Ana. - Que
comprará ele para alimentar as cobras?
- Não, não contes - disse a Ana, apressadamente. - não quero saber. Olhem, lá
está a Skippy.
A Skippy acenou alegremente. Levava sacos cheios até cima. Sem dúvida que os
artistas de circo se tratavam bem.
- Bem, vão gastando enquanto o têm - disse a João. - Nunca poupam. Atravessam
fases boas e outras muito más. Devem ter tido imenso sucesso no último espectáculo,
parecem todos muito ricos.
O homem de borracha esgueirou-se várias vezes pelo espaço entre os raios das
rodas da sua caravana, uma proeza notável. Dobrou-se para trás e torceu os braços e
as pernas de tal forma que ficou a parecer-se mais com um polvo de quatro tentáculos
do que com um ser humano. Ofereceu-se para ensinar o David a fazê-lo, mas o David
nem sequer conseguia dobrar-se para trás. Ficou desapontado porque não deixou de
pensar como seria fantástico fazer aquele truque no pátio da escola.
O senhor Slither contou-lhes coisas muito interessantes sobre cobras e concluiu
com informações sobre cobras venenosas.
- Bom, há que observar a língua bifurcada - disse o senhor Slither, com seriedade.
- Sabem que elas deitam a língua de fora fazendo-a tremer e abanar?
- Bem, tenham muito cuidado se uma cobra venenosa imobilizar a língua - disse
o senhor Slither, em tom solene. - Não lhe toquem. Mas se a língua estiver a tremer,
façam deslizar os braços pelo corpo da cobra e ela deixar-se-á agarrar.
- Muito obrigado - disse o David. - Sempre que agarrar uma cobra venenosa vou
fazer exactamente assim.
Estavam ali alguns artistas de circo de que os jovens pouco sabiam. Daca, a
dançarina de sapateado, que calçou as suas botas altas e faz sapateado no degrau de
cima da sua roulote. Pearl, que era acrobata e conseguia andar numa corda, aterrando
sempre em segurança, e outros que faziam parte do espectáculo apenas como
ajudantes. A João não conhecia todos, mas integrara-se tão bem que os jovens
começaram a perguntar-se se alguma vez ela voltaria para a sua mãe adoptiva.
- Ela é exactamente como eles agora - disse a Zé. - Alegre e suja, descuidada e
generosa, perigosa mas trabalhadora! O Bufflo pratica com o laço durante horas mas
também está sem fazer nada durante horas, são pessoas estranhas mas gosto muito
delas.
Os outros concordaram com ela. Almoçaram sem o Júlio pois ele ainda não
regressara. Por que estaria a demorar-se tanto? Tinha apenas de telefonar ao tio, mais
nada. Por fim, o Júlio regressou.
- Desculpem-me o atraso - disse ele -, mas primeiro não me atenderam, por isso
tive de esperar para o caso da tia Clara e o tio Alberto terem saído e fui almoçar enquanto
esperava. Depois voltei a telefonar e a tia Clara atendeu-me, mas o tio Alberto tinha ido
a Londres e só volta à noite.
- Sim, tive tempo de contar à tia Clara - disse o Júlio. - Ela disse-me que repetiria
tudo ao tio Alberto quando ele chegasse. É uma pena não ter podido falar com ele para
ficar a saber o que pensa sobre o assunto. Pedi à tia Clara para ele me escrever o mais
depressa possível.
- Vai buscar os binóculos, Zé - disse ele. - Podemos dar uma espreitadela à janela.
Foi por esta altura que vimos a cara da outra vez.
A Zé foi buscá-los. Mas não os passou logo ao Júlio. Olhou por eles e observou a
janela. A princípio, não viu nada. E foi então que, de repente, apareceu uma cara à janela.
A Zé ficou tão espantada que soltou um grito.
- Bom, então ontem não foi imaginação nossa - disse o Júlio. - Existe, de facto. E
onde há uma cara, há geralmente um corpo. Hum, algum de vocês reparou que a cara
tinha uma expressão... hum... desesperada?
- Também pensei o mesmo ontem - disse o David. - Acham que o fulano, seja lá
quem for, está prisioneiro?
- Assim parece - disse o Júlio. - Mas como é que ele foi ali parar? Não há dúvida
de que é um lugar excelente para o esconder. Ninguém se lembraria de um esconderijo
daqueles, e não fosse o facto de nos termos posto a observar os corvos por uns óptimos
binóculos, nunca o teríamos descoberto. Era uma possibilidade em mil de o vermos.
- Num milhão - disse o David. - Olha, Júlio, acho que devemos ir até ao castelo e
gritar ao sujeito, pode ser que ele possa gritar ou atirar-nos uma mensagem.
- Ele já o teria feito se pudesse - disse o Júlio. - Quanto a gritar, ele teria de se
debruçar daquela janela de paredes grossas para se fazer ouvir. Lembrem-se de que ele
está mesmo na parte de trás, e a fresta é muito profunda.
- Não podemos ir tentar descobrir alguma coisa? - perguntou a Zé, que estava
ansiosa por acção. - Afinal de contas, o Tim entrou por um lado, e é possível que
consigamos entrar também.
- É uma boa ideia - disse o Júlio. - O Tim de facto encontrou forma de entrar e
esse pode ser o caminho que leva ao topo da torre.
- Não iremos ter problemas - disse o Júlio. - Só vamos explorar, e não acho nem
por um minuto que iremos encontrar muito porque tenho a certeza de que não iremos
conseguir subir até à torre. Mas espero que todos se sintam como eu, não podemos
deixar o mistério da cara por resolver, temos de fazer algo quanto a isso, nem que seja
só andar à volta das velhas muralhas à noite.
- Sim, é exactamente o que eu acho - disse a Zé. - Nem conseguiria dormir esta
noite, aposto. Júlio, isto não é excitante?
- Muito - respondeu o Júlio. - Ainda bem que afinal não nos fomos embora hoje!
Teríamos ido se não tivéssemos visto aquela cara à janela.
- É uma pena ele não fazerem destas refeições na escola - disse o David. - não
dá trabalho nenhum a fazer e é muito saboroso. Júlio, já está na hora de irmos?
- Sim - disse o Júlio. - Vistam umas camisolas quentes, e vamos! Rumo a uma
noite de verdadeira aventura!
16
Caminhos secretos
Esperaram até a Lua se esconder por detrás de uma nuvem e depois, movendo-se
como sombras, desceram a encosta o mais depressa que puderam. Passaram por cima
da cancela e percorreram a encosta até ao castelo mas, quando chegaram à pequena
torre onde estava a cancela giratória, viraram à direita e contornaram o sopé das grandes
e espessas muralhas. Era difícil andar ali, porque a inclinação da encosta era muito
grande. O Tim foi com eles, excitado com aquele passeio inesperado.
- Agora, Tim, presta atenção, queremos que nos mostres como entraste - disse a
Zé. - Estás a ouvir, Tim? Entra, Tim, entra por onde entraste esta manhã.
O Tim abanou a longa cauda, arfou e deixou a língua dependurada como sempre
fazia quando queria mostrar que estava a ser o mais útil que podia. Correu à frente, a
farejar. Foi então que parou de repente e olhou para trás. Soltou um pequeno uivo. Os
outros apressaram-se a seguir no seu encalço. Por azar, a Lua escondeu-se por detrás
de uma nuvem. O Júlio sacou de uma lanterna e acendeu-a na direcção do Tim. O cão
ficou ali, parecendo muito satisfeito.
- Bom, porque estás tão contente, Tim? - disse o Júlio confuso. - Não há aqui
buraco algum. Não foi por aí que entraste certamente. Que estás a tentar mostrar-nos?
- Eh! Para onde foi ele? - perguntou o Júlio, atónito. Levantou a luz da lanterna. -
Olhem! Falta ali uma pedra, um grande bloco. E o Tim entrou por lá.
- Lá está o bloco, caído na encosta - disse o David, apontando para uma grande
pedra branca, quase cúbica. - Mas como é que o Tim entrou, Júlio? Esta parede é
imensamente grossa, e mesmo que uma das pedras tenha caído, deve haver muitas
mais por detrás!
- Bem, isto é interessante! - exclamou ele. - A parede aqui é oca. O Tim meteu-se
pelo espaço vazio!
- Está aqui - respondeu o Júlio. - Dá-me ideia que, quando esta enorme muralha
foi construída, deixaram um espaço cá dentro, ou para economizar pedras ou para fazer
uma passagem secreta, não sei bem. E essa pedra que caiu deixou à mostra um espaço
vazio. Vamos explorá-lo?
- Sim - disse ele -, é uma espécie de passagem. Mas é pequena. Vamos ter de
nos dobrar para entrar. Ana, podes vir a seguir que eu ajudo-te.
- Cheira um bocado a bafio - disse o Júlio. - Mas se for realmente uma passagem,
deve haver aberturas algures para meter o ar fresco. Isso mesmo Ana, segura-te a mim.
João, vem a seguir, depois a Zé, e depois o David.
A Ana agarrou-se fortemente ao blusão do Júlio. Ela não estava a gostar muito
daquilo, mas não ficaria de fora, nem por nada. O Júlio parou de repente e todos
chocaram com o da frente.
- Aqui há degraus! - gritou o Júlio. - Há degraus muito, muito íngremes que vão a
descer, quase como uma escada de mão de pedra. Tenham atenção, todos.
- Aposto que não estamos muito distantes daquela torre - disse o David. - Quero
dizer, espero que isto conduza à torre.
Ninguém sabia dizer onde aquilo iria dar! Fosse como fosse, parecia ir a direito, e
a cerca de vinte e cinco metros da entrada o Júlio voltou a parar.
- Degraus para cima, novamente! - disse ele. - Tão íngremes como os outros.
Acho que estamos a subir para o interior das muralhas do castelo. Talvez isto seja uma
passagem secreta para uma das antigas salas do castelo.
- Olhem! Olhem para isto! Isto é uma sala secreta. Como costumava haver nos
sítios antigos, para o caso de haver necessidade de alguém se esconder - explicou o
Júlio. - Estamos dentro de uma das próprias paredes do castelo. Talvez esta seja a
parede de um antigo quarto!
- E cá está um jarro velho que tinha água dentro - disse a Zé. - E uma adaga.
Quem se teria escondido aqui. E há quanto tempo?
O David apontou a lanterna para ver se descobria mais alguma coisa. Soltou uma
exclamação repentina e manteve a lanterna apontada para um canto do quarto.
- Não seria melhor termos cuidado? - disse o David, baixando a voz. - Quero dizer,
seja quem for que cá esteve pode muito bem andar por perto.
- Sim, talvez seja melhor voltarmos - disse o Júlio, pensando nas raparigas.
Quando chegaram ao cimo, depararam com uma porta pequena, muito estreita.
Tinha uma grande argola de ferro antiga, que servia de puxador. O Júlio ficou quieto,
hesitante. Deveria abri-la ou não? Ficou parado durante meio minuto, tentando
decidir-se.
O Júlio olhou lá para dentro, esperando ver um quarto, mas, em vez de um quarto,
deparou-se com uma pequena galeria que parecia contornar o interior da torre. O luar
entrava através da fresta que servia de janela e o Júlio só conseguiu perceber que devia
estar a olhar do cimo de uma galeria para a escuridão de um salão no segundo ou
terceiro piso da torre. Talvez o terceiro. Puxou a Ana para fora e os outros três
seguiram-se-lhe. Tudo estava em profundo silêncio. O Júlio sussurrou aos outros:
- Viemos parar a uma galeria, que dá para um dos salões do interior da torre. Pode
bem ser um quarto do segundo andar porque sabemos que o tecto do segundo andar
ruiu. Ou talvez seja o terceiro andar.
O seu murmúrio percorreu a galeria e regressou a eles. Falara mais alto do que o
Júlio. Isto fê-los dar um salto.
- Há aqui uma porta trancada do meu lado. Parece que chegámos perto da cara.
Diz à Zé para mandar o Tim vir ter connosco.
17
Grandes sustos
O Tim fez força para a frente, mas o Júlio tinha a mão na coleira dele. Subiu a
escada de pedra que era muito íngreme e estreita. Os outros seguiram-no sem fazer
qualquer barulho. Todos, excepto a João, tinham ténis calçados; ela estava descalça. O
Tim foi quem mais barulho fez, porque as unhas batiam na pedra. Havia outra porta no
topo. Atrás dela, ouviu-se um ruído curioso, gutural e rosnado. O Tim rosnou surdamente.
A princípio, o Júlio não conseguiu perceber que ruído era aquele. Então, de repente,
percebeu. “É alguém a ressonar! Bom, estamos com sorte. Posso dar uma espreitadela
e ver quem é. Devemos estar no cimo da torre agora”.
A porta à sua frente não estava trancada. Empurrou-a e olhou lá para dentro,
ainda com a mão na coleira do Tim. O luar entrava pela estreita janela e incidia sobre a
cara do homem adormecido. O Júlio fitou-o num espanto crescente. Aquelas
sobrancelhas! Sim, era aquele o homem da cara que aparecia à janela!
- Quem és tu? - disse ele. - Como vieste aqui ter, e quem são aqueles ali nas
sombras?
- Lemos as notícias sobre si nos jornais - disse o Júlio. - E vimos a sua fotografia.
Não pudemos deixar de reparar nas suas sobrancelhas, até as conseguimos ver pelos
binóculos.
- Foi com os nossos binóculos - disse o Júlio. - são óptimos. Foi bom ter
conseguido chegar à janela. De outra forma, nunca o teríamos visto.
- Júlio, ouvi um barulho - disse a João, de repente. Ela tinha ouvidos de gato, e
era capaz de captar o mais leve ruído.
Esgueirou-se pela porta e pela escada íngreme. Chegou à porta do fundo, a que
dava para a galeria. Sim. Vinha aí alguém! Caminhava pela galeria. A João pensou
rapidamente. Se ela regressasse disparada escadas acima para avisar os outros, o
recém-chegado poderia subir e seriam apanhados. Ele poderia trancar a porta no topo e
teria seis prisioneiros em vez de um! Decidiu acocorar-se no chão da galeria atrás da
porta que conduzia ao cimo.
E então com o coração aos pulos, pensou: “Oh, não! Ele vai descer as escadas
para vir ter comigo. Oh, não, não venhas, Júlio, não venhas!”
Mas o Júlio desceu. E atrás dele, vinha Terry-Kane e o David, com as raparigas e
o Tim, a caminho da saída. O estranho que estava à porta ficou ainda mais baralhado ao
ouvir vozes e passos. Fechou a porta de repente e empurrou a grossa tranca. Os passos
nas escadas pararam, assustados.
“Oh, oh”, pensou o Júlio, então o outro cientista também lá estava - o Jeffrey
Pottersham. Ele deveria ter raptado Terry-Kane. Que teria acontecido à João? O homem
deixou-se ficar à porta como se não soubesse o que fazer. A João agachou-se na galeria
e prestou a maior atenção. O homem voltou a falar.
- Podem voltar para a torre, todos vós - disse Pottersham. - Eu vou aguardar novas
ordens. Parece que vamos ter que levar esses miúdos connosco, Terry-Kane. eles irão
arrepender-se de ter visto a tua cara à janela. Eles não irão gostar da vida que vão levar
no sítio para onde vamos!
Pottersham deu meia volta e tomou o caminho de regresso. A João adivinhou que
ele conhecia o mesmo caminho que eles tinham descoberto. Esperou até concluir que a
costa estava livre e depois correu novamente para a porta. Martelou a porta com os
punhos.
Como resposta, ouviu um grito do cimo das escadas por detrás da porta, e depois
o David desceu a correr.
- Oh, não. E nós não conseguimos passar-te uma das nossas - disse o David. -
então é melhor esperares até ser dia, João. Podes perder-te nessas passagens escuras.
Sim, espera até de manhã.
- Não. Espera até ser dia! - disse o Júlio, temendo que a João se perdesse
naquelas passagens escuras e desaparecesse para sempre! Talvez ela fosse para as
catacumbas! Que pensamento terrível!
- Está bem - disse a João. - Vou esperar até ser dia. Vou ficar agachada aqui na
galeria. Está quentinho aqui.
- Vai ser muito difícil! - disse o David. - Nós vamos voltar para o quarto lá em cima,
João. Chama-nos se precisares. Que alívio estares livre.
A João agachou-se na galeria, mas não conseguiu adormecer. O chão era muito
duro e a pedra muito, muito fria. De repente, pensou no pequeno quarto onde vira o jarro,
a adaga e o papel de chocolate. Seria um sítio muito melhor para dormir. Poderia
deitar-se no catre! Levantou-se e planeou o caminho. Bastava-lhe contornar a galeria até
chegar a uma pequena porta que abria para a escada de caracol que ia da galeria até
ao pequeno quarto escondido. Percorreu o caminho com muito cuidado. Tacteou a argola
de ferro, girou-a e abriu a porta. Estava muito escuro e não conseguia ver nada à sua
frente. Deu um passo cauteloso. Estaria no cimo da escada de caracol? Assim era.
Esticou os braços, tocando nas paredes de pedra da curiosa e pequena escada e desceu
muito lentamente, degrau a degrau. “Oh, céus. estarei a ir no bom caminho? Os degraus
parecem não ter fim!”, pensou a João. “Não estou a gostar nada disto, mas tenho de
continuar!”
18
- Oh, oh! Tu deves ser a João - disse a voz de Pottersham. - Pensei que só
poderias ser tu quando um dos miúdos gritou por ti! Pensei que andarias por aqui. Julguei
que viesses para aqui e sentei-me no catre à tua espera.
De repente, a João baixou a cara e mordeu-lhe a mão. Ele soltou um grito e largou
a presa. A João estava quase a libertar-se quando o homem a deixou cair para o chão
para cuidar da mão. A João tentou chegar à porta do quarto, mas novamente o homem
foi mais rápido e ela viu-se presa de novo.
- Vou amarrar-te - disse o homem, furioso. - Vou amarrar-te com cordas de tal
forma que não serás capaz de te mexer! E vou deixar-te aqui no escuro até voltar.
Agarrou uma corda que trazia à cintura e começou a amarrar a João com tal vigor
que ela mal conseguia mexer-se. Tinha as mãos atrás das costas e as pernas atadas
nos joelhos e tornozelos. Rolou pelo chão, chamando ao homem todos os nomes que
conhecia.
A João ouviu os passos perderem-se ao longe. Ficou zangada consigo própria por
não ter adivinhado que ele podia estar ali deitado à sua espera. Agora não podia ir pedir
ajuda para os outros. Na verdade, estava ainda pior do que eles pois estava amarrada e
eles não. Pobre João! Adormeceu, exausta pela excitação da noite e pela sua luta feroz.
Encostou-se contra a parede, sentindo-se tão desconfortável que estava sempre a
acordar. E então ocorreu-lhe uma ideia. Lembrou-se do homem das cordas, todo
amarrado em metros e metros de cordas com nós. Tinha-o visto libertar-se muitas vezes.
Poderia algum daqueles truques ajudá-la agora?
Rebolou pelo chão até sentir a adaga por debaixo dela. Pôs-se de costas e tentou
agarrá-la com o indicador e o polegar, e por fim conseguiu agarrá-la. Sentou-se,
inclinou-se para a frente e tentou forçar a adaga ferrugenta para cima e para baixo na
corda que lhe amarrava as mãos por detrás das costas. Mal a conseguia mover porque
as suas mãos ainda estavam fortemente amarradas. Mas não desistiu. Ficou tão
cansada que teve de desistir durante algum tempo. Depois, voltou a tentar e, em seguida,
voltou a descansar. À terceira vez, teve sorte. De repente, a corda partiu-se! Puxou as
mãos com força, achou-as mais soltas e tentou desatar um nó.
A João levou muito tempo a libertar as mãos, mas, por fim, acabou por conseguir.
A princípio, não conseguiu libertar as pernas porque tinha as mãos a tremer. Mas depois
de um longo descanso, conseguiu desatar os nós apertados e soltou as pernas.
- Ainda bem que aprendi alguns truques com o homem das cordas - disse ela. -
Se não os soubesse, não conseguiria libertar-me!
Tentou adivinhar que horas seriam. É claro que naquele quarto estava escuro
como breu. Levantou-se e ficou surpreendida ao reparar que as pernas lhe tremiam.
Subiu a tremer alguns degraus e depois voltou a sentar-se. Mas pouco depois as suas
pernas recompuseram-se e mais uma vez se pôs de pé.
“Agora tenho de encontrar a saída!”, pensou ela. “Como gostaria de ter uma
lanterna!”
Chegava agora à pequena passagem onde teve de se dobrar pela cintura, aquela
que passava pelo centro das espessas muralhas exteriores. A João soltou um suspiro
de alívio. Decerto que em breve chegaria ao ponto em que a pedra caíra e poderia ver a
luz do dia! Viu a luz do dia antes de chegar ao local onde faltava a pedra.
Viu-a algures à sua frente, uma manchinha enevoada que a princípio não
conseguiu identificar. Depois, sim. “A luz do dia! Ah, até que enfim!”
Foi tropeçando até que chegou lá e subiu até à abertura onde a pedra caíra. Ficou
ali sentada, gozando a luz do Sol. Era brilhante, quente e reconfortante. Depois da
escuridão das passagens, a João sentia-se bastante estonteada. Então de repente,
percebeu que o Sol ia muito alto! Meu Deus, já deveria ser de tarde!
Olhou cuidadosamente para fora da abertura da muralha. Agora que estava tão
perto da liberdade não queria ser apanhada por alguém que estivesse à espera dela!
Não havia ninguém. A João saltou pela abertura e correu pela encosta abaixo. Desceu
com agilidade, aos saltos até chegar à estrada. Atravessou-a e dirigiu-se ao
acampamento das roulotes.
Estava prestes a passar por cima da cancela quando parou. O Júlio tinha-lhe dito
que deveria ir à Polícia. Mas a João, tal como os outros ciganos, tinha medo da Polícia.
Nunca nenhum nómada pedira ajuda à Polícia. A João tremeu ao pensar que tinha de
falar com um deles.
“Não. Vou ter com o tio Fred”, pensou ela. “Ele saberá o que fazer. Vou contar-lhe
tudo.”
Ia a subir pelo acampamento quando viu um estranho. Quem seria? Seria aquele
homem horrível que a amarrara? Não o tinha visto à luz do dia e receava que fosse ele.
Reparou que falava insistentemente com alguns artistas de circo. Eles escutavam-no
educadamente, mas a João percebeu que eles o achavam um louco. Aproximou-se um
pouco mais e descobriu que ele perguntava onde é que o Júlio e os outros estavam.
Estava a ficar furioso com os artistas de circo que lhe asseguravam que não sabiam onde
estavam os jovens.
Ficou escondida até ele se ir embora pela encosta abaixo, com a cara vermelha
e a gritar que ia chamar a Polícia. A João saiu do esconderijo e as pessoas juntaram-se
imediatamente à volta dela.
- Onde estiveste? Onde estão os outros? Aquele homem queria saber tudo sobre
vocês. Parecia louco!
- É um malandro - disse a João. - Vou contar-vos tudo sobre ele, e onde estão os
outros. Temos de os ir salvar!
- Aquele homem que se foi agora embora, disse que era um... um cientista - disse
a Skippy, tropeçando naquela palavra pouco conhecida.
- Vamos salvá-los! - disse ele. - Isto não é trabalho para a Polícia. É trabalho para
nós.
E na verdade, lá vinha ele a subir, apressado, pelo acampamento para vir fazer
mais perguntas!
19
O “cientista”, tal como a Skippy persistia em chamar-lhe, foi posto numa roulote
vazia, de janelas e portas fechadas porque gritava muito alto. Quando o homem das
cordas abriu a porta e meteu lá dentro uma das suas pitões, o cientista parou
imediatamente de gritar. O homem das cobras voltou a abrir a porta e a sua pitão deslizou
novamente para fora. Mas o homem na caravana aprendera a lição. Não tornou a emitir
nem mais um som! Depois todos se juntaram para conferenciar. Não havia pressa porque
fora decidido que só iriam agir depois de anoitecer.
- Se os formos salvar à luz do dia, a Polícia aparecerá - disse o Alfredo. - Eles irão
interferir, não irão acreditar numa só palavra. Eles nunca acreditam.
- Ah! - exclamou o Bufflo, girando de imediato sobre si mesmo. - Não nos disseste
isso antes! Ele tem a chave? Então vou tirar-lha!
- Não pensei nisso - disse a João, vendo o Bufflo a subir os degraus da roulote.
- Ele não tem chave nenhuma com ele - disse ele. - Diz que nunca teve. Diz que
somos doidos e que vai chamar a Polícia.
- Ele vai ter dificuldades em chamar a Polícia agora - disse a mulher do Alfredo,
dando uma pequena gargalhada. - Talvez ele tenha deitado a chave fora, ou dado a um
amigo.
- Bom, então está decidido que vamos poder passar pela porta que dá para o
quarto da torre - disse o homem das cobras que parecia ter uma visão mais global da
situação do que os outros. - Certo. Há outro caminho para o quarto?
- Só pela janela. - disse a João. - Aquela fresta, estão a ver? É claro que é
demasiado alta para qualquer escada de mão. Seja como for, temos de entrar primeiro
no pátio para passarmos por cima da alta muralha do castelo.
- Isso é fácil - disse o homem de borracha. - Consigo subir qualquer parede. Mas
talvez não a uma torre tão alta.
- Oh, sim, é maior do que pensas - disse a João. - É muito profunda, as paredes
são muito grossas. Embora ache que não são tão grossas em cima como em baixo. Mas,
Bufflo, como é que alguém consegue chegar à janela?
- Consegue-se - disse o Bufflo. - não é assim tão difícil! Podes emprestar-nos uma
corda com cavilhas? - perguntou ele ao homem das cordas.
- Sim - disse o Jekky. A João conhecia aquele tipo de corda. Era uma corda grossa
com pequenos paus atravessados a distâncias regulares, para servirem de apoio para
os pés.
- Mas como vais fazer subir a corda? - perguntou a Zé, confusa.
- Mal escureça partiremos - disse o Bufflo. - Tu não vens connosco, João. Isto é
trabalho para homens.
- É claro que vou! - disse a João, espantada por alguém achar que não iria. - São
meus amigos, não são? Claro que vou!
- Não, não vais! - disse o Bufflo, e imediatamente a João decidiu que iria
desaparecer antes dos homens partirem e esconder-se em qualquer lado para que os
pudesse seguir.
- Já não tens nada a ver com o assunto - disseram eles e correram com ela quando
ela se recusou a obedecer-lhes.
O Bufflo trazia também o seu chicote, embora ninguém percebesse muito bem
para quê. Fosse como fosse, o Bufflo andava sempre com um chicote; fazia parte dele,
por isso ninguém lhe pediu explicações. Atrás deles, como uma pequena sombra,
deslizava a João. Que iriam eles fazer? Ela tinha estado a observar a janela da torre nas
últimas duas horas e quando escureceu viu uma luz, uma luz a acender e a apagar.
“Deve ser o Júlio ou o David a fazerem sinais”, pensou. “Devem estar admirados
por eu não os ter ido socorrer. Não sabem que fui capturada e amarrada! Terei algo para
lhes contar quando estivermos juntos novamente!”
O pequeno grupo passou por cima da cancela, para a estrada e subiu o caminho
para o castelo. Chegaram à muralha. O homem de borracha subiu para a muralha e
pareceu correr literalmente por ela a cima, rolou por cima do topo, e desapareceu!
- Já lá está - disse o Bufflo. - O que faz ser feito de borracha! Não acredito que
alguma vez se magoe!
Ouviram um assobio baixo do outro lado da muralha. O Bufflo desenrolou uma
corda fina da cintura, atou-a a uma pedra e atirou-a por cima da muralha. A corda foi
puxada pela pedra, por cima da muralha, como se fosse um verme longo e fino. Ouviram
a pedra a cair no chão do outro lado. Um assobio discreto avisou-os de que o homem de
borracha já a tinha. Depois, o Bufflo desatou a corda com cavilha da cintura, e os outros
esticaram-na entre eles, fazendo fila. Uma das pontas foi atada à corda fina cuja outra
extremidade prendia a pedra.
A João assistia. Sim, era uma boa ideia. Uma forma fácil e eficaz de transpor a
alta e espessa muralha. Mas não iria ser tão fácil fazer a corda com cavilhas subir até à
fresta. Ouviu-se outro assobio. O Bufflo largou a corda com cavilhas: esta estendeu-se
ao longo do seu lado da muralha. Deu-lhe um puxão. Estava firme. Parecia evidente que
o homem de borracha a tinha amarrado a qualquer coisa. Era seguro subir. Poderia
suportar o peso de qualquer pessoa sem escorregar pela muralha abaixo.
O Bufflo subiu em primeiro lugar, usando as cavilhas como apoios para os pés e
elevando-se pela corda. Cada um deles trepou rapidamente a corda. A João esperou
que o último começasse a subir a corda e depois saltou, ela também para a corda. Lá foi
ela como um gato e aterrou ao lado do Bufflo. Ele ficou espantado e deu-lhe um puxão
de orelhas. A João escapuliu-se e pôs-se de lado, a observar. Ficou a pensar como
tencionariam os homens alcançar a janela superior da alta torre. Talvez ela pudesse
ajudar.
Os quatro homens ficaram imóveis ao luar, a olhar para a torre. Falavam baixo,
enquanto o homem de borracha desatava a corda fina da corda com cavilhas e a
enrolava em anéis. A corda com cavilhas foi deixada na muralha.
A João conteve a respiração. Teria aquele homem horrível... qual era mesmo o
nome dele... Pottersham... combinado com os seus horríveis amigos irem buscar o
senhor Terry-Kane e os jovens naquela noite para os levar para a costa? Talvez já
tivessem alugado um barco de pesca ao Joseph, o velho pescador, e desapareceriam
para sempre sem deixar rasto!
“Ele vai dar-me um puxão de orelhas assim que me aproximar”, pensou a João,
esfregando a orelha esquerda, que ainda doía do puxão do Bufflo. “Eles não me irão
ouvir, eu sei. Mas vou tentar.”
- Não, Bufflo, não! Não atires a corda lá para cima. Vais magoar alguém! Não,
Bufflo, não!
- Desaparece daqui - disse o Bufflo, zangado, e levantou a mão para lhe bater.
Ela recuou. Contornou o grupo e foi ter com o tio.
- Tio Fred - disse ela, implorando. - Escuta, eu ouço vozes... acho que aqueles...
- Paras com isso, João? Queres uma boa tareia? Estás a portar-te como uma
mosca teimosa!
- Escuta, João, se queres ser útil, segura na Beleza. Daqui a pouco só vai
atrapalhar.
Ele pôs a grande cobra sobre os ombros dela e a Beleza assobiou com força.
Começou a enrolar-se à volta da João e ela agarrou-lhe a cauda. Ela gostava da Beleza,
mas naquele momento não estava com disposição para ela.
Recuou para ver o que o Bufflo ia fazer. Ela sabia-o, é claro, e o coração batia-lhe
desenfreado no peito. Ele ia atirar a faca através daquela fresta, algo que seguramente
só o Bufflo, com a sua pontaria infalível, conseguia fazer!
“Mas se ele conseguir passá-la pela janela, pode espetar-se num dos quatro que
estão lá em cima... ou no senhor Terry-Kane”, pensou ela, em pânico. “Pode magoar o
David... ou o Tim! Oh, quem me dera que o Bufflo não fizesse aquilo.”
Tornou a ouvir vozes ao longe. Desta vez vindas do outro lado da muralha! Os
homens iam seguir aquelas passagens secretas e iriam ter ao quarto da torre! A João
sabia que eles iriam fazê-lo! Eles estariam ali antes do Bufflo e dos outros concluírem o
seu plano de fuga. Imaginou os quatro jovens a serem arrastados escadas abaixo com
o Terry-Kane. Será que o Tim iria defendê-los? Iria, mas os homens iriam certamente
impedi-lo. Eles sabiam que havia ali um cão, pois o Tim ladrara na noite anterior.
“Oh, céus!”, pensou a João desesperada. “Tenho de fazer qualquer coisa. Mas o
quê?”
20
Grande excitação
De repente, a João tomou uma decisão. Iria seguir os homens através daquelas
passagens, e ver se conseguia avisar os outros gritando-lhes quando se aproximasse o
suficiente do quarto da torre. O Bufflo e os outros chegariam demasiado tarde para os
salvar.
A João correu para a muralha. Subiu pela corda com cavilhas que lá estava e
desceu pelo outro lado como um relâmpago. Encaminhou-se para o local onde faltava a
pedra na parede.
Beleza, a pitão, estava espantada por se ver atirada ao chão, mesmo antes da
João correr para a muralha. Não estava habituada a que a tratassem daquela forma. Ali
ficou, a enrolar-se e a desenrolar-se. Aonde teria ido aquela rapariga simpática. A Beleza
gostava da João, a rapariga sabia tratar dela. Deslizou atrás dela. Também ela subiu e
desceu a muralha facilmente, embora não precisasse da corda com cavilhas como a
João. Continuou a deslizar rapidamente atrás dela. Era incrível a velocidade que atingia
quando queria ser realmente rápida.
- Beleza! Ainda te vais meter em sarilhos com o senhor Slither, por teres vindo
atrás de mim. Volta para trás! Pára de te enrolar à minha volta, tenho coisas importantes
a fazer.
Mas a Beleza não era como o Tim. Só obedecia quando achava que o devia fazer
e daquela vez não o iria fazer.
- Está bem, vem comigo se quiseres - disse a João, por fim, depois de ter
empurrado a grande cobra em vão. - Acho que me irás fazer companhia. Pára de
assobiar dessa maneira, Beleza. Pareces uma máquina a vapor!
Abriu-a lentamente. Claro que do outro lado estava escuro como breu, mas a João
sabia que estava prestes a encontrar a pequena galeria. De repente, a Beleza subiu por
ela acima e enrolou-se ternamente em volta dela. A João não conseguiu fazer com que
a cobra se desenrolasse e passou a pequena galeria com a Beleza firmemente agarrada
a ela.
O Bufflo estava prestes a fazer uso da sua habilidade para atirar facas, mas de
uma forma diferente da habitual! Ia atirar a faca ao ar e fazê-la curvar para entrar na
fresta no topo da torre! O Bufflo era um especialista a atirar facas, ou melhor, a atirar
fosse o que fosse. Ficou ali no pátio a olhar para a janela. Semicerrou os olhos, avaliando
a distância e fixando a direcção no seu cérebro. De súbito, a Lua escondeu-se e ele
baixou a mão. Não podia atirar com precisão no escuro!
A Lua voltou a aparecer novamente, muito brilhante. O Bufflo não perdeu mais
tempo. Mais uma vez, fez pontaria com os olhos semicerrados. E então a faca disparou
alto no ar, brilhando e deixando para trás uma longa cauda de corda muito fina.
Bateu no peitoril da fresta e caiu para trás. O Bufflo apanhou-a com habilidade. O
luar mostrava bem que a faca não era afiada. O Bufflo tinha limado a ponta, que estava
bastante redonda. A João não precisava de se preocupar com o facto de alguém na torre
se poder magoar com uma adaga afiada!
Mais uma vez o Bufflo fez pontaria, e mais uma vez a faca foi por ali acima, veloz
como uma andorinha, com um brilho de prata à medida que subia. Daquela vez passou
totalmente pela janela, deslizou pelo friso de pedra dentro do quarto e caiu no chão com
grande ruído. Provocou uma enorme surpresa lá dentro. O senhor Terry-Kane, os jovens
e o Tim estavam todos amontoados a um canto para se aquecerem. Tinham fome e frio.
Ninguém lhes trouxera comida e não tinham com que se agasalhar excepto uma manta
que pertencia a Terry-Kane. Tinham passado todo o dia no quarto da torre, espreitando
por vezes pela janela, outras vezes gritando a plenos pulmões. Mas ninguém os ouvira
ou vira.
- Porque é que a João não traz ajuda? - tinham-se perguntado várias vezes
naquele dia tão longo. Ignoravam que a pobre João passara horas a tentar libertar-se
das cordas em volta das pernas e pulsos.
Tinham olhado pela janela para o campo na colina oposta onde os artistas de circo
andavam nos seus afazeres, parecendo formigas na encosta distante. Estaria lá a João?
A distância era demasiado longa para poderem distinguir fosse quem fosse. Quando
escureceu, o Júlio acendera e apagara a sua lanterna por diversas vezes à janela. Depois
com frio e sentindo-se mal, tinham-se amontoado, com o Tim a lamber todos à vez, não
entendendo muito bem por que razão tinham de estar naquele quartinho.
- O Tim deve estar com tanta sede - disse a Zé. - Ele está sempre a lamber a
boca, como costuma fazer quando quer beber água.
Estavam meio adormecidos quando a faca irrompeu no quarto. O Tim deu logo
um salto e ladrou desenfreadamente. Ficou a olhar para a faca que luzia ao luar e ladrava
sem parar.
- Uma faca! - disse a Zé, apanhando-a. - A ponta foi limada. Que significará isto?
E por que terá um fio atado?
- Tem cuidado, não vá outra faca entrar por aqui dentro - avisou Terry-Kane.
- Isso não vai acontecer - disse o Júlio. - Isso deve ter a ver com a João. Ela não
foi à Polícia. Foi pedir ajuda aos artistas de circo. Tenho a certeza de que esta é a faca
do Bufflo.
- Vou até à janela - disse o Júlio. - Vou olhar para o pátio. Segura-me nas pernas,
David.
- Estou a ver quatro pessoas lá em baixo no pátio - disse o Júlio. - Oh, óptimo. um
é o Alfredo, outro é o Bufflo e não consigo perceber quem são os outros dois. Eh, aqui!
- Puxa a corda! - gritou o Bufflo. Atara agora a ponta da segunda corda com
cavilhas à corda fina e ele e os outros levantaram-na para que ela pudesse deslizar
facilmente pela parede. O Júlio deslizou novamente para o interior do quarto. Estava
muito empolgado.
- Este fio na faca vai pela muralha abaixo e está atado a uma corda mais grossa
- disse ele. - Vou puxá-la, e depois há-de aparecer uma corda por onde poderemos
descer!
Puxou o fio e cada vez mais o fio foi aparecendo, vindo da janela. Então, o Júlio
sentiu algo mais pesado e percebeu que a corda mais grossa vinha a subir. Agora teria
de puxar mais lentamente. O David ajudou-o.
- Uma escada com cavilhas - disse ele. - As pessoas das feiras e dos circos
fazem-nas. São mais leves e mais fáceis de manejar do que as escadas de corda. Temos
de atar a ponta a algo bastante forte, para que possa aguentar o nosso peso.
A Ana olhou assustada para a corda com cavilhas. Não lhe agradava nada a ideia
de descer por aquilo, oscilando enquanto descia a alta muralha de pedra da torre. Mas
os outros olharam para ela com prazer e entusiasmo - era uma fuga -, uma corda boa e
forte para descer e sair daquele horrível quarto frio.
Terry-Kane olhou em volta em busca de algo onde pudesse prender a corda. Num
dos lados da parede havia uma enorme argola de ferro, embutida na pedra. Ninguém
sabia qual fora em tempos a sua utilidade, mas certamente iria servir naquela situação.
- Até aguentaria com doze pessoas ao mesmo tempo! - disse ele. - Vou eu
primeiro? Depois poderei ajudar todos a descer se estiver lá em baixo. O senhor e o
David podem ajudar as raparigas quando elas descerem.
- Vamos embrulhá-lo na manta, amarrá-lo com firmeza e descê-lo pela corda mais
fina - disse o David. - Embora mais fina, aguenta bem com ele.
21
No quarto da torre
A porta escancarou-se e um homem parou à entrada, arquejante. Atrás dele,
vinham três outros.
- Se soltares esse cão, dou-lhe um tiro - disse ele, e como que por magia apareceu
uma pistola na sua mão direita.
- Júlio, agarra-o também. Ele ainda se atira ao homem de tão furioso que está.
O Júlio acorreu a ajudá-la. Entre eles conseguiram arrastar o cão furioso para um
canto, onde a Zé tentou em vão acalmá-lo. Estava com medo que lhe dessem um tiro.
- Não temos tempo a perder. Vamos levar-te a ti, Terry-Kane, e a um dos miúdos.
Poderemos usá-lo como refém se houver muita confusão em torno do teu
desaparecimento. Vamos levar este - e agarrou no David. O David deu-lhe
imediatamente um soco no queixo, dando graças por ter aprendido boxe na escola. Mas
de repente, foi parar ao chão! Aqueles homens não estavam ali para aturar disparates.
Estavam com muita pressa!
- E quanto aos outros miúdos? - perguntou. - Não vão deixá-los fechados neste
quarto, pois não?
- Sempre foste um... um... - começou Terry-Kane e depois abaixou-se para evitar
um soco.
- Eh! Que se passa aqui? - gritou ele, e deslizou para dentro do quarto, parecendo
muito deslocado com a sua cabeleira amarela, camisola aos quadrados coloridos e
chicote!
- BUFFLO! - gritaram os quatro rapazes, e o Tim mudou o seu latido feroz para
um de boas-vindas. Terry-Kane estava boquiaberto, com os braços ainda presos atrás
das costas.
- Afaste essa coisa - disse ele, na sua voz arrastada. - Deveria saber que não se
anda com pistolas na mão quando há jovens por perto. Vá... afaste isso!
Terry-Kane estava de boca aberta. Que belo truque... mas que perigoso! A pistola
poderia ter disparado. Agora a bola fora parar ao lado contrário, pois era Bufflo quem
tinha a pistola e não Pottersham. E este último parecia realmente muito pálido. Ficou
pasmado a olhar como se não soubesse o que fazer de seguida.
- Parece que temos de chamar a Polícia, afinal de contas - observou Bufflo, numa
entoação muito normal, como se aquele tipo de situações fosse frequente. - Podes soltar
o cão, se quiseres, Júlio.
- Soltem o cão! - rugiu ele. Mas era demasiado tarde. Quando o Tim chegou à
porta, já a tinham fechado, e a tranca foi colocada em posição do outro lado! Ouviram-se
passos apressados deslizando e tropeçando pelas escadas de pedra na escuridão.
- Sim. Mas sem nós - disse Terry-Kane, deixando que o David lhe desamarrasse
as pernas. - Talvez tenham escapado por aquelas passagens. E agora temos mesmo de
fazer o truque da corda pela parede da torre, uma vez que a porta está trancada!
- Vamos lá então - disse o Júlio. - Vamos embora antes que mais alguma coisa
aconteça.
Foi até à janela, passou para o friso exterior e agarrou a corda. Foi muito fácil
descer, embora não fosse agradável olhar para baixo, para o pátio. Parecia muito
distante. A Ana foi a seguir, muito amedrontada, mas sem o mostrar. Era muito boa
trepadora, por isso não achou a corda muito difícil. Ficou muito, muito contente quando,
por fim, aterrou em segurança ao lado do Júlio. Depois chegou a Zé com algumas
novidades.
- Não consigo perceber o que aconteceu aos quatro homens - disse ela. - Eles
pareceram continuar a andar, a vaguear, e gritaram como doidos. Parece que andam
aos círculos naquela galeria que ladeia as paredes do salão da torre.
- O Tim vem a descer agora - disse a Zé. - Envolvi-o naquela manta e atei-a muito
bem. O David vai descê-lo agora. Reforçámos a corda para nos certificarmos de que
suportaria o seu peso. Olhem, lá vem ele! Pobre Tim! Ele não faz ideia do que se está a
passar.
- O Tim já deveria de estar habituado a este tipo de coisas - disse o Júlio. - Já teve
muito disto nas aventuras que partilhou connosco, cão lindo! Aposto que vai ficar feliz
quando se vir em solo firme.
E assim foi. Deixou que a Zé o tirasse da manta e depois experimentou dar uns
passos para se certificar de que pisava solo firme. Saltou alegremente para a Zé, muito
contente por estar novamente no exterior.
- Lá vem o David - disse o Júlio. A corda com cavilhas oscilou um pouco e o Alfredo
foi segurá-la para que ficasse mais estável. Ele, o homem de borracha e o senhor Slither
estavam agora extremamente preocupados com tudo e mais alguma coisa, tão
preocupados que mal disseram uma palavra ao Júlio, à Zé e à Ana.
De repente, tinham dado falta da João e da cobra! O homem das cobras não se
ralava com a João, mas estava muito preocupado com a sua preciosa e querida pitão!
Já tinha andado à procura dela no pátio.
Terry-Kane desceu a seguir e, por fim, o Bufflo, que pareceu deslizar de uma
forma admirável, sem sequer usar as cavilhas. Saltou para o chão, ao lado deles,
sorrindo.
- Vai uma confusão tremenda lá em cima! - disse ele. - Só se ouvem gritos, berros
e tropeções. Que acham que se passa com aqueles fulanos? Vamos conseguir
apanhá-los facilmente se formos à abertura da parede. Acho que eles devem estar
prestes a sair. Vamos!
22
Gritou. A princípio, pensou que era um homem que ali estava à espera dele, que
lhe tinha saltado para as pernas, mas agora sabia que não era um homem. Homem
nenhum saltava daquela forma! Um dos homens apontou a lanterna para baixo para ver
o que se passava com Pottersham. O que viu fê-lo gritar e quase deixar cair a lanterna.
- Uma cobra! A maior cobra que alguma vez vi! Apanhou-te, Pottersham!
- Para onde foi aquela coisa horrível? - perguntou Pottersham. - Quase me desfez
as pernas! Depressa, vamos embora antes que ela volte. De onde terá vindo?
Deram alguns passos, mas a cobra estava deitada à espera deles! Fê-los cair
enrolando-se e desenrolando-se nas pernas deles e depois começou a enrolar-se em
torno da cintura de um dos homens. Então começaram a ouvir-se gritos e urros! Se
alguma vez existiram verdadeiramente homens assustados, aqueles quatro eram um
excelente exemplo. Fossem para onde fossem, aquela cobra parecia estar sempre
presente, enrolando-se, desenrolando-se, rastejando, apertando!
É claro que tinha sido a João que tinha posto a cobra no encalço dos homens. A
João ficara na galeria enquanto toda aquela confusão se passava em cima, com a Beleza
em volta do pescoço. A rapariga tentou em vão perceber o que se passava. E depois
ouvira uma porta a bater, a tranca a ser colocada e passos de homem a descerem
rapidamente os degraus de pedra! Julgou que seriam os quatro cujas vozes ouvira antes,
à noite, os homens que tinham ido pela passagem.
- Beleza! Agora é a tua vez de fazer alguma coisa - disse a João e tirou a cobra
dos ombros. A cobra deslizou pela João abaixo e fluiu para o chão num movimento
gracioso. Deslizou na direcção dos homens, que estavam naquele momento a sair da
galeria. Depois disso, a pitão divertiu-se imenso. Quanto mais os homens gritavam, mais
a enorme cobra ficava excitada.
A João estava encolhida a um canto, a rir tanto que as lágrimas lhe corriam pela
cara abaixo. Ela sabia que a cobra era inofensiva a menos que desse um forte apertão
a um dos homens.
“Oh, não, lá se foi mais um!”, pensou ela, quando ouviu cair um dos homens que
a Beleza fizera tropeçar. “E mais outro! Eu vou morrer a rir! Ela nunca se porta assim
normalmente. Deve estar a divertir-se imenso!”
- Vamos para o quarto da torre! - gritou Pottersham. - Não volto para aquelas
passagens escuras com cobras atrás de mim. Deve haver dúzias de cobras lá. Vamos
ser mordidos!
A João deu uma gargalhada. Dúzias delas! Provavelmente a Beleza parecia uma
dúzia de cobras aos olhos dos homens espantados que caíam uns por cima dos outros
na escuridão. Mas a Beleza não mordia, não era venenosa.
Os homens lá conseguiram subir até ao quarto da torre e deixar a cobra para trás.
A Beleza estava farta de brincadeiras e foi ter com a João, quando esta a chamou. Pô-la
ao pescoço e pôs-se à escuta. A porta do quarto da torre batera com estrondo. A João
subiu os degraus, tacteou a tranca na escuridão e puxou-a suave e lentamente. A partir
daquele momento, a menos que os homens se aventurassem a descer pela escada com
cavilhas, que ela imaginava que Bufflo tinha colocado contra a muralha para salvar os
outros, estavam bem encurralados. E se descessem pela corda encontrariam certamente
pessoas lá em baixo à espera deles.
- Vá lá, Beleza, vamos embora - disse a João e desceu os degraus, desejando ter
uma lanterna. Lembrou-se da pequena lanterna que fora deixada no quarto secreto, e
ficou mais animada. Ela poderia usá-la naquelas passagens escuras. Óptimo!
A Beleza rastejou à frente dela. Ela sabia muito bem o caminho. Chegaram ao
pequeno quarto e a João apanhou a lanterna, agradecida. Olhou para baixo para a
grande pitão e esta ficou a olhar para a rapariga com olhos brilhantes que não
pestanejavam. O seu comprido corpo enrolava-se e desenrolava-se, castanho e brilhante
à luz da lanterna.
- É a João! João, onde tens estado? E, ouve, se me mordes assim vou dar cabo
de ti!
- Não há tempo para te contar a história agora - disse o Bufflo, vigiando a abertura
da parede. - E quanto àqueles fulanos? Estamos à espera deles aqui. Ouviste alguma
coisa deles?
- Ah, sim. Eu segui-os. Oh, Bufflo, foi tão engraçado. - disse a João, e começou a
rir. O Bufflo abanou-a mas ela não conseguia parar de rir. E quem vinha a deslizar através
da abertura se não a Beleza?
- Eu não sou má - disse a João, indignada. - A Beleza quis vir comigo e veio e, oh,
ela meteu-se com aqueles homens, e... - E mais uma vez irrompeu em gargalhadas. O
David sorriu, imitando-a. A João ficava muito engraçada quando não conseguia parar de
rir.
- Conta-nos o que sabes sobre esses homens - ordenou ele. - Eles vêm por aqui?
Onde estão?
- Ah, os homens - disse a João, limpando os olhos e tentando parar de rir. - Estão
bem. A Beleza correu com eles para o quarto da torre e eu tranquei-os. Ainda lá estão,
espero. A menos que se atrevam a descer pela corda com cavilhas, o que aposto que
não o farão.
- Acho que seria uma boa ideia chamar a Polícia agora - disse com Terry-Kane,
começando a pensar que deveria estar numa espécie de sonho extraordinário, com
escadas com cavilhas e chicotes e cobras a surgirem de forma tão esquisita. - Aquele
fulano, o Pottersham, é perigoso. É um traidor e tem de ser apanhado antes de revelar
tudo o que sabe sobre o trabalho que eu e ele temos estado a desenvolver.
- Certo - respondeu o Bufflo. - Temos também outro fulano preso numa roulote
vazia.
- Mas então ele não fugiu? - perguntou a Zé, surpreendida. - Pensei que
Pottersham que está lá em cima agora no quarto da torre fosse o que fechamos na
caravana.
23
Divertiram-se muito
- Júlio - disse o tio Alberto, muito ferido na sua dignidade e também muito zangado.
- Tenho de te pedir que vás chamar a Polícia. Saltaram-me para cima e trancaram-me
nesta roulote sem qualquer motivo.
- Por que não nos disseste que ele era o pai da Zé? - perguntou ele.
- Eu não sabia quem era - respondeu a João. - Nunca o tinha visto e, seja como
for, pensei que...
- Não interessa o que pensaste - disse o tio Alberto, olhando com desagrado para
a miúda suja. - Insisto para que chamem a Polícia.
- Terry-Kane? Onde é que ele está? Que aconteceu? Foi encontrado?
- Sim. É uma história muito longa - disse o Júlio. - Tudo começou quando vimos
uma cara à janela. Eu telefonei à tia Clara e ela disse-me que lhe daria o recado assim
que regressasse de Londres. Bom, afinal era o senhor Terry-Kane à janela!
- Foi o que eu pensei! Bem disse à Clara que tinha a sensação de que era ele! -
disse o tio. - Foi por isso que vim o mais depressa que pude... mas nenhum de vocês
estava cá. Que vos aconteceu?
- Bem, isso é apenas uma parte da história, tio - disse o Júlio, pacientemente. -
Mas o tio importa-se que vamos comer qualquer coisa? Estamos praticamente a morrer
de fome... não comemos nada desde ontem.
A mulher ficou com a panela praticamente vazia. O Tim estava rodeado de pratos
de restos e grandes ossos trazidos por todos os elementos do acampamento! Quase a
todo o minuto, alguém surgia da escuridão e trazia um prato com uma coisa ou outra
para os jovens esfomeados, ou para o Tim.
Por fim, já não conseguiam comer mais e o Júlio começou a contar a sua
extraordinária história. O David retomou-a e a Zé acrescentou mais umas coisas. A João
estava constantemente a interromper e até mesmo o Tim chegou a ladrar um pouco. Só
a Ana ficou calada. Estava encostada ao tio, a dormir.
- Nunca ouvi uma história destas na minha vida - dizia continuamente o tio Alberto.
- Nunca! Curioso aquele indivíduo Pottersham raptar daquela forma o Terry-Kane. Eu
sabia que Terry-Kane era uma pessoa de bem; ele não deixaria ficar mal o seu país.
Agora, o Pottersham? Nunca gostei dele. Bom, continuem.
Os artistas de circo estavam tão entusiasmados quanto o tio Alberto com aquela
história. Aproximaram-se cada vez mais à medida que ia sendo narrada a aventura pelas
passagens secretas, o quarto secreto, as escadas de pedra e o resto. Ficaram muito
excitados quando souberam a forma como o Bufflo aparecera no quarto da torre e sacara
a pistola de Pottersham. O tio Alberto atirou a cabeça para trás e riu de alegria quando
ouviu esta parte.
- Que susto aquele indivíduo deve ter apanhado! - disse ele. - Gostaria de ter visto
a expressão da cara dele. Bem, bem nunca ouvi uma história dessas na minha vida!
E depois foi a vez de a João contar a forma como seguira os quatro homens pelas
passagens secretas e tinha posto a Beleza no seu encalço. Desatou novamente às
gargalhadas enquanto contava a sua história e pouco depois todos os artistas de circo
estavam a rir-se de simpatia, oscilando a cabeça de um lado para o outro, com lágrimas
a escorrerem-lhe pela cara.
Apenas o tio Alberto pareceu muito solene nesta parte. Lembrou-se da forma
como se sentira quando, por causa da sua gritaria, os artistas de circo tinham posto a
pitão na caravana e quase lhe pregaram um susto de morte.
- Senhor Slither, vá buscar a Beleza, por favor - pediu a João. - Ela devia ouvir a
parte dela na história. Portou-se lindamente. Divertiu-se imenso. Tenho a certeza de que
se riria às gargalhadas se as cobras se pudessem rir.
O pobre tio Alberto não quis objectar quando o homem das cobras foi buscar a
sua querida Vitor. Na realidade, até trouxe as duas e fizeram-lhes uma festa como nunca
lhes tinham feito. Deram-lhes pancadinhas e as cobras foram acariciadas de uma forma
que ambas pareceram adorar.
- Deixem-me agarrar na Beleza, senhor Slither - disse por fim a João e pô-la em
volta do pescoço como um longo e brilhante lenço.
O tio Alberto parecia que ia vomitar. Decerto se teria levantado e ido embora não
fora o facto da sua sobrinha preferida Ana estar a dormir a sono solto no seu ombro.
“Que amigos invulgares tem a Zé”, pensou ele. “Devem ser pessoas boas, mas
sinceramente! Com chicotes, facas e cobras, tenho de admitir que tudo isto é muito
invulgar.”
- Meu querido amigo - disse o tio Alberto. - Estou tão contente por estares bem.
Disse a toda a gente que não eras um traidor e que jamais poderias sê-lo! Fui a Londres
e disse-lhes. Estou contente por estares bem.
- Bom, estou, graças a estes jovens - disse Terry-Kane, que parecia exausto. -
Julgo que já te tenham contado toda a extraordinária e invulgar história da cara da janela.
- Sim, é tudo tão extraordinário que não acreditaria se o lesse num livro - disse o
tio Alberto. - E contudo, tudo foi verdade! Meu querido amigo, deves estar muito cansado.
- E estou - disse o Terry-Kane -, mas não me vou deitar e adormecer sem aqueles
patifes estarem atrás das grades - o Pottersham e os seus belos amigos! Importas-te
que te deixe por uns instantes e volte ao castelo? Temos realmente de apanhar aqueles
fulanos. Vim aqui perguntar se um dos miúdos podia vir connosco porque, ao que sei, é
preciso percorrer todo o tipo de passagens e galerias e escadas em espiral e sabe-se lá
o que mais.
- Mas não foi por esse caminho quando Pottersham o levou para lá a primeira vez
e o escondeu naquele quarto? - perguntou o David, surpreendido.
- Sim, devo ter ido - disse o Terry-Kane. - Mas estava de olhos vendados e meio
drogado com algo que me deram a beber... não faço ideia do caminho. É claro que o
Pottersham conhecia o caminho de cor; ele escreveu livros sobre castelos antigos e não
há quem conheça melhor castelos do que ele. E fez bem uso desse conhecimento esta
semana.
- Leva o Tim - disse a Zé, num gesto muito generoso, uma vez que em
circunstâncias normais nunca deixaria ir o Tim com a João.
- Não levo nada - disse a João. - Eu ficarei bem com os três polícias fortes! Desde
que não venham atrás de mim, gosto deles!
Na verdade, não gostava, mas não resistiu a gabar-se um pouco. Partiu com o
Terry-Kane e os três polícias, a pavonear-se um bocado e sentindo-se uma heroína.
Todos os outros recolheram às suas roulotes, estafados. O tio Alberto sentou-se junto à
fogueira e ficou à espera da chegada de Pottersham e dos seus três amigos.
- Boa noite - disse o Júlio às raparigas. - Gostaria de esperar pelo grupo, incluindo
o homem de borracha e o Alfredo, mas daqui a pouco adormeço em pé. Não foi um jantar
magnífico?
Todos dormiram até muito tarde no dia seguinte. A João voltou muito antes dos
outros acordarem, tremendamente ansiosa por lhes contar a captura de Pottersham e
dos outros e a forma como eles tinham caminhado até à esquadra, com ela atrás deles
durante todo o tempo. Mas a mulher do Alfredo não a deixou acordar os quatro jovens.
- Olá, tio Alberto! Olá, João! - disseram os outros, e pouco depois ouviram as
últimas notícias da boca da João, que estava muito orgulhosa por ter participado no
desfecho.
- Mas eles não ofereceram qualquer resistência - disse ela, muito desapontada. -
Acho que a Beleza lhes tirou a agressividade toda ontem à noite e renderam-se sem
dizer uma palavra.
- Vou actuar para si - anunciou ele ao tio Alberto. - Quer ver-me a comer fogo?
O tio Alberto ficou a olhar para ele como se o homem tivesse enlouquecido de
vez.
- Oh! não, obrigado. Prefiro não o ver a comer fogo - disse o tio Alberto, educada
mas firmemente.
O Alfredo ficou muito desapontado. Queria fazer uma óptima actuação para
aquele homem se redimir pelo facto de o ter trancado na roulote. Afastou-se tristemente,
com a mulher a gritar atrás dele.
- Seu pateta! Quem quer ver alguém a comer fogo? Tu não tens miolos. És um
homem muito grande e pateta. Deixa de comer fogo!
Depois, meteu-se na roulote e o tio Alberto seguiu-a com o olhar, espantado com
o seu acesso repentino.
- Oh, não, pai - disse a Zé, horrorizada. - Ir para casa agora que mal nos
instalámos! Claro que não. Nenhum de nós quer ir, não é, Júlio? - perguntou ela, olhando
para ele implorando.
- A Zé tem razão, tio. Mal nos começámos a divertir. Acho que todos concordamos
com isso.
- Sim, - disseram todos, e o Tim bateu com força com a cauda no chão e soltou
um sonoro uauf!
- Muito bem - disse o tio Alberto, levantando-se. - Tenho de ir, então. Vou apanhar
a camioneta à paragem. Venham comigo.
- Adeus - disse ele. - Que recado dou à tua mãe, Zé? Ela está a contar ouvir
qualquer coisa dos cinco.
Fim
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