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José Aldazábal

GESTOS E SíMBOLOS

Tradução
Aida da Anunciação Machado

BIBLIOTECA
DOM I N ICAN OS
B. H orizonte
N•
·----
G ESTO E SIMBOLOS

queremos manifestar nossas atitudes penitenciais ou de oração recolhi-


da e intensa, não haveríamos de ter medo de fazer esses gestos com
clareza. Nessa relação mjsteriosa de fé com o Mistério de Cristo, que
celebramos em nossa liturgia, entra todo o nosso ser, e não apenas 22
nossa mente ou nosso coração.

A CINZA

cinza não é algo que nos agrade m wto. Seu símbolo não costuma
A despertar desejos em nós e tampouco nos impele demasiadamente
à meditação. Pode nos parecer até mesmo despropositai e antiquado.
Lembra-nos os restos de uma catástrofe ou de um incênillo (ou o incô-
modo provocado pelos fumantes que a acumulam nos lugares mais in-
convenientes).
É opo rtuno falar em cinza - um desmancha-prazeres - no meio
de uma sociedade que busca por todos os meios o bem-estar e a feli-
cidade?
Não obstante, entre os sinais característicos e gestos simbólkos
com que expressamos a trajetória da Quaresma à Páscoa (o jejum, a cor
roxa, o silêncio do aleluia, a via-sacra .. . ), a imposição desse símbolo na
Quarta-feira de Cinzas é um dos mais representativos e eloqüentes.

Cinza para todos os cristãos


Não é muito antiga a introdução do costume de todos os fiéis
receberem em sua fronte oú em sua cabeça o sinal da cinza.
Nos primeiros séculos, expressou-se com esse gesto o caminho
quaresmal dos "penitentes", ou seja, do grupo de pecadores q ue que- @
GESTOS E ~/.\1BOWS
A CJf\'ZA

riam receber a reconciliação no final da Quaresma, na Quinta-feira é-lhe recordado que este é precisamente seu fim: " . . . até voltares ao
Santa, no limiar da Páscoa. Vestidos com traje penitenciaJ e com a cinza solo, pois dele foste tirado. Sim, és pó e ao pó voltarás" (Gn 3,19).
que eles próprios se impunham na cabeça, apresentavam-se diante da O pó da terra é a origem e o destino do homem, em linguagem
comunidade, demonstrando assim sua vontade de conversão. metafórica e ao mesmo tempo m uito realista.
Foi por volta do século XJ que, desaparecida já a instituição dos pe- Isso nos enche a todos de humildade ("hum ildade" vem de humus,
nitentes como grupo, víu-se que o gesto da cinza era bom para todos, e terra):" ... os homens, todos, são apenas terra e cinza" (Sr 17,32). "Tudo
assim começou-se a reaJizar esse rito no começo da Quaresma, para todos caminha para um mesmo lugar, tudo vem do pó, e ao pó tudo retorna"
os cristãos. Assim, toda a comunidade se reconhecia pecadora e se sentia (Ecl 3,20), " morrem e voltam ao seu pó" (SI 104(103],29).
ajudada por esse gesto em sua atitude de conver ão quaresmaJ-pascal. Abraão, ao falar e suplicar a Deus (pelos habitantes de Sodoma e
Gomorra), sente-se humilde: "Vou ousar falar ao meu Senhor, eu que
Boa reforma não passo de pó e cinza" (G n 18,27).
Faz-nos bem lembrar, pelo menos uma vez ao ano, e precisamente
Na última reforma, reorganizou-se o rito da imposição da cin za no começo da Quaresma, que somos pó e ao pó voltaremos.
com ma ior expressividade e de um modo mais educativo. O homem é tudo: sua grandeza é inegável, como imagem de Deus
Já não se reaJiza no começo da celebração, ou independentemente e senhor da criação. Porém, ao mesmo tempo, não é nada. A fragilidade
dela, mas depois das leituras bíblicas e da homilia. E assim, a Palavra de da vida humana, sua caducidade, sua caminhada inexorável para a morte
Deus, q ue nesse dia nos convida à conversão, é que dá conteúdo e motivam constantemente pensamentos de meditação e de humildade.
sentido ao gesto simbólico da cinza. Convém não nos deixarmos extasiar nem adormecer pelos engodes de
Além disso, pode-se reaJizar o gesto de sua imposição até mesmo nossa vida p resente. Nossa experiência e a história que vamos vivendo,
fora da Eucaristia - portanto, também por parte de comunidades que muitas vezes lamentável e catastrófica, dão razão a essa cinza.
não têm sacerdote - mas sempre em um contexto de escuta da Palavra. O fa to de que a cinza que nos é imposta seja obtida ao queimarem-
Quis-se conservar nesta reforma a fórm ula clássica da imposição: se as palmas usadas na celebração do Domingo de Ramos do ano an-
"Lembra-te de que és pó e ao pó voltarás" (" memento homo quia pulvis terior - costume introduzido desde o século XII - tem por fim ser
es et in pulverem reverteris"), mas acrescentou-se outra: "Convertei-vos e também uma lembrança pedagógica: o que foi sinal de vitória e de vída,
crede no Evangelho'~ A primeira inspira-se em Gn 3,19. A segunda, em ramos de louro, transformou-se rapidam ente em cinza.
Me 1,15. Ambas e complementam: uma recorda a caducidade humana, É un1 exercício de humildade que se mostra muito saudável até
simbolizada no pó e na cinza, e a outra aponta a atitude interior da psicologicamente. Não em termos de angústia e, sim, de seriedade. E isso
conversão a Cri to e a seu Evangelho, a atitude própria da Quaresma. precisamente quando saímos da algazarra e do excessos do carnavaJ.

Somos transitórios e mortais


Sinal de penitência e conversão
QuaJ é a significação desse gesto da cinza?
A cinza no princípio da Quaresma pretende expressar também
O primeiro sentido que nos pode ser recordado pela cinza é nossa
outro sentimento muito relacionado com o anterior: a conversão, a
condição de sere frágeis e efêmeros.
tristeza pelo maJ que há em n ós e do qual queremos liber tar-nos em
A cinza nos lembra o que resta da queima ou da corrupção das
nosso caminho para a Páscoa.
coisas e das pessoa .
Além de transitórios, somos pecadores. As leituras que precedem o
Esse símbolo já é empregado na primeira página da Bíblia, onde
nos é narrado que "Deu modelou o homem com o pó apanhado do gesto na Quarta-feira de Cinzas (Jl 2; 2Cor 5 e Mt 6) constituem cha-
solo" (Gn 2,7). Isso é o que significa o nome de "Adão". E em segu ida madas prementes à conversão.
GFsro E IMBOLOS A Cl t>.'ZA

"Agora voltai a mim de todo o vosso coração" (Jl 2,12), "deixai-vos Páscoa, é bom que intensifique sua oração com gestos como este, que
reconciliar com Deus" (2Cor 5,20): essa é a mensagem que as leituras do é ao me mo tempo ato de humildade, de conversão e súplica ardente
dia proclamam. Trata-se de iniciar um "combate cristão contra as forças diante daq uele que tudo pode, inclusive encher de vida nova nossas
do mal" (o ração coleta). E todos nós temos experiência desse mal. Por existências.
essa razão têm sentido "estas cinzas que vamos impor em nossas cabeças
em sinal de penitência" (advertência do Missal antes da imposição). Cinza de ressurreição
Na Bíblia, o gesto simbólico da cinza é um dos mais usados para
expressar a atitude de penitência interior. A imposição da cinza não é um gesto meramente de lembrança da
morte, de nossa caducidade e de nosso pecado.
As más notícias (a morte de Eli, a de Saul) são trazidas por men -
Com ela começamos o caminho da Quaresma, que é caminho de
sageiros com vestes rasgadas e a cabeça coberta de terra ( 1Sm 4, 12; 2Sm
Páscoa. Não é, portanto, um dia isolado, um gesto masoquista. É sinal
1,2); as calamidades são afrontadas com o mesmo gesto: "Ao saber de
de começo: e todo começo supõe uma meta em ou tro extremo.
tudo o que se passara (a a meaça contra seu povo), Mordekai rasgou
Somos ch amados à vida. Somos convidados a participar da ressur-
suas vestes; revestiu-se de saco e ci nzas, saiu para o centro da cidade e
reição de C risto.
soltou um forte grito doloroso" (Est 4, 1); "Josué rasgou as vestes, caiu
Viemos do pó e nosso corpo mortal voltará ao pó. Isso, no entanto,
de rosto em terra diante da arca do Senhor até o anoitecer, ele e os
não constitui toda a nossa h istória nem todo o nosso destino.
anciãos de Israel, e jogaram pó sobre a cabeça" (Js 7,6). Israel chorava
As cinzas desse começo de Q uaresma são cinzas de ressurreição.
seu mal com saco e cinza: "Filha, meu povo, veste-te de saco, revolve-
Cinzas pascais. Recordam-nos que a vida é cruz, morte, renúncia, mas
te no pó! Observa o luto, como por um filho único, uma lamentação
ao mesmo tempo nos garantem que o programa pascal consiste em
amarga! Porque, d e repente, chega sobre nós o devastador" (Jr 6,26). A
deixar-se alcançar pela Vida Nova e Gloriosa do Senhor Jesus.
penitência se manifesta assim: " . .. Tenho horror de mim e retrato-me,
Como o barro de Adão, pelo sopro de Deus, converteu-se em ser
no pó e na cinza" (Jó 42,6). O exemplo típico é o de Nínive diante da
vivente, nosso barro de hoje, pela fo rça do Espírito que ressuscitou
pregação de Jonas: "e seus habitantes acreditaram em Deus. Eles procla- Jesus, está também destinado à vida de Páscoa.
m aram um jejum e se vest iram de sacos ... o rei cobriu-se de saco e
Das cinzas, Deus extrai vida. Como o grão de trigo que se afunda
sento u-se sobre a cinza" (Jn 3,5-6). na terra.
Por meio da Cruz, Jesus foi exaltado à Vida definitiva. Por meio da
Gesto de súplica intensa C ruz, o cristão é também incorporado à corrente de vida pascal de
Cristo. Por isso, Paulo nos anuncia que hoje é "um dia de graça e sal-
H á vezes em que a cinza aparece na Bíblia como expressão de uma vação" (segunda leitura).
oração intensa, mediante a qual quer-se pedir a Deus a salvação. A Quaresma se transforma, desde seu primeiro momento de cinza,
Judite pede a libertação de seu povo: "Judite prostrou-se, rosto em em "sacramento da Páscoa", em s inal pedagógico e eficaz de um êxodo,
terra, cobriu a cabeça com cinza e descobriu o pano de saco com o qual de uma "passagem" da morte p ara a vida. A cinza é o símbolo de que
se revestia ... E clamou ao Senhor em alta voz" (Jt 9,1). Todo o povo se participamos na Cruz de Cristo, de que "o homem é chamado a tomar
prostrou também diante de Deus, "cobriram suas cabeças com cinza e parte na dor de Deus até a morte do Filho Eterno n a Sexta-feira Santa"
desdobraram seus panos de saco d iante do Senhor" (Jt 4, 11 ). (João Pau lo II, Quaresma 1982), para com ele passar à vida: "para que
"Macabeu e seus homens, com a cabeça coberta de cinzas e os rins possam chegar com o coração limpo à celebração do mistério pascal de
cingidos de um cilício, imploravam a Deus ... " (2Mc 10,25). teu Filho" (primeira oração da bênção das cinzas); "assim poderemos
Q uando a comunidade cristã quer começar a "subida a Jerusalém", alcançar, à imagem de teu Filho Ressuscitado, a vida nova de teu reino"
unida a Cristo, e anseia ver-se libertada do mal e cheia da vida nova da (segunda oração da bênção das cinzas).
G ESTOS E Sl.\IBOW5

Para começar, cinza. Para terminar, água a cinza, traça o sinal da cruz: a Cruz foi, para Cristo, a passagem para
a nova existência de Ressuscitado.
A Quaresma começa com o gesto da cinza. Mas termina com a
água da Noite Pascal. c) Convém que o sacerdote presidente também imponha a cinza em
Cin za no princípio. Água de batismo no final. i mesmo, ante que nos fiéis. Ou que alguém entre estes se adiante,
Ambos os gestos têm uma unidade dinâmica. A cinza suja. A água, impondo-a em si próprio: ele é o primeiro que deve dar exemplo de
limpa. A cinza fala de destruição e morte. A água é a fonte da vida na que, como sinal visível de Cristo na comunidade, se incorpora a seu
Vigüia Pascal. caminho de Páscoa.
Essa relação já se encontrava no curioso rito das cinzas da vaca
d ) As duas fórmulas de imposição poderiam dizer-se alternativa-
vermelha, totalmente consumida pelo fogo, que serviam no AT para
mente, de modo que cada fiel escute as duas: com uma é convidado a
destacar o valor das águas lustrais nas quais se purificava simbolicamente
considerar sua fragil idade humana e, com a o u tra, a converter-se ao
toda impureza (Nm 19; também Hb 9,13 faz alusão a essas cinzas).
evangelho de Cristo, que é a atitude interior mais importante.
Nessa Noite de Páscoa, também acendemos fogo. Fogo que é luz,
renovação, vida ressu citada. Da cinza ao fogo vivo. A Quaresma come- e) Impor a cinza, ou também " fazer a cinza"? Em certos ambientes
ça com cinza e acaba com fogo e água. mais preparados, os fiéis não se contentaram com receber as cinzas
Do pessimismo de nossa caducidade, a cinza nos conduz à visão obtidas em algum lugar ecreto, mas as " fizeram" eles próprios, quei-
pascal. Tal como a Cruz de Cristo, com toda a sua carga de morte e mando ramos o u palmas, com toda a visualidade comunicativa que esse
fracasso, nos garante a páscoa da nova vida. gesto pode ter. Naturalmente, com a necessária antecedência {nas vés-
A linguagem com que a Quaresma quer nos fazer "entrar na Pás- peras ou no começo da celebração).
coa" é bastante diversificada: oraçõe , cantos, leituras bíblicas, jejum etc.
f) Mais ainda: alguns grupos consideraram que pode também ser
Todavia, um dos sinais mais pedagógicos é certamente essa "dramatiza-
expressivo "fabricar" es a cinza não nece ariamente das palmas do ano
ção" da cinza, que nos recorda no sa debilidade e nosso pecado, para
anterior - extremo este que não contém uma pedagogia mu ito próxi-
que deixemos que Deus aja em nós, nos incorpore à ressurreição de seu
ma - mas de outros elementos mais " nossos": algum símbolo do mal,
Filho e nos lave com a água batismal da Páscoa.
do pecado, da vacuidade da vida. .. Como na fogueira de são João
Isso não é deprimente. É simplesmente lembrar- nos que o fato de
queimamos os trastes velhos que queremos que desapareçam de nossas
viver neste mundo e de ser cristão é algo sério, que exige fortaleza, e que
casas, busca-se aqui também realçar o sentido da passagem do " homem
supõe uma luta contra o mal que há em nós e ao redor de nós.
velho" para o novo, queimando algo que pode ser símbolo do mal que
Trata-se de um rito antigo. Não, porém, antiquado. há em nossa vida.

g) Fez-se ainda outra experiência: realizar o gesto, não necessaria-


Sugestões práticas
mente com "cinzas': mas com "terra ou barro': É um símbolo que nos
a) Toda a celebração deve estar orientada para o principal: iniciar aproxima mais do relato do Gênesis e q ue em algum grupo pode se
a Quaresma com atitude interior de conversão para Cristo e para sua tornar sugestivo. Também porque foi realizado em relação com outro
Páscoa. Com toda a totalidade de "êxodo'~ de "deserto", de "subida a símbolo: o grão que morre e frutifica . Por exemplo, em algumas comu-
Jerusalém", para passar com Cristo do homem velho ao novo. nidades fez-se, além do rito da imposição sobre a cabeça, também o
gesto de lançar sementes em um formoso vaso. Durante a Quaresma foi
b ) O gesto da cinza, entre a homilia e a oração universal, deve ser para todos uma recordação visual - porque dentro de poucos dias já
feito com discrição e autenticidade. Com lentidão e certa abundância. brotava a planta - de que também em suas vidas algo novo, pascal,
Confere expre ividade ainda maior ao gesto simbólico aquele que, com deveria estar brotando.
G ESTOS E SIMBOW

h) O dia mais adequado é o prim eiro da Q uaresma, a Q uar ta-feira


de Cinzas. Todavia, é possível q ue em algumas comunidades paroquiais
não seja um dia muito propício para muitos fiéis.

Poder-se-ia realizar o rito - sempre no contexto de uma celebra-


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ção da Eucaristia o u da Palavra - em várias convocatórias, ao longo
desses "dias de cinza': até o sábado, por diversos grupos. O que é d uvi-
doso é a conveniência de transferi-lo para o do mingo: porque o dom in-
go, em si mesmo, não é um dia muito apropriado para um simbolo
pen itencial. E, além disso, porque o primeiro domingo da Q uaresma
tem já sua dinâmica própria, q ue não se fixa tanto em nossa penitência,
mas n o cam inho pascal a que Cristo, com suas tentações, dá início.

Ü JE JUM

m a das característkas do cristianism o é a importância dada pelo


U evan gelho ao comer e ao beber. Jesus aparece com freqüência par-
ticipando da alegria proporcionada pelas comidas: em Caná, na casa do
fariseu, de Zaqueu, de Mateus, de Lázaro ... Multiplica os pães e peixes.
Quando descreve o Reino, ele o faz com a linguagem do banquete ...
É um aspecto que chamou a atenção de muitos historiadores da
religião: a visão p ositiva que a fé cristã tem do comer e do beber. Basta
pensar que o sinal central de seu sacramen to principal, a Eucaristia, é
precisamente o comer e o beber.
E, não obstante, também o jejum entra nos valores e nos sinais
expressivos da fé cristã.
Não só a partir de um ponto de vista ascético, mas também com
base em u ma p ersp ectiva que p odemos den ominar "sacramen tal'~
Concretamente, durante a Q uaresma, entre os vários gestos simbó-
licos que ajudam a comunidade cristã a entrar no caminho do Mistério
Pascal (a cinza, o silêncio do aleluia, a centralidade da Cruz . . . ), está
também o do jejum, que se transformo u em sua característica mais
expressiva: a Q uaresm a é um tempo de jejum geral par a a Igreja em sua
preparação para a Páscoa.
Q ue sen tido tem hoje para nós o jej um? Pode ap resentar-se ainda
como um valor, para uma sociedade que convid a insistentemente à
satisfação e à comodidade? @
Q JE/L .\1

Quando jejuamos uas diver as fo rma , é um dos sinais univer ais que continua sendo
reconhecido como válido para expressar essa atitude interior.
Jejuar significa abster-se total ou parcialmente da comida ou da
bebida. Entende-se aqui que se faça por motivos religiosos e volunta-
riamente. O que significa o jejum na Bíblia?
A práxis atual - muito mais moderada que em outras épocas -
Na Bíblia, o jejum tem presença marcante entre as formas de ex-
é descrita pelo novo Código de Direito:
pressar nossas atitudes de fé.
a) a Quaresma começa, na quarta-feira de cinzas, com Jej um e
a) Muitas vezes significa a penitência e a expiação pelos pecados,
abstinência: o u seja, uma ó refeição no dia, e sem carne, como sinal
como no caso dos niniviLas que aceitaram a pregação de Jonas. Junta-
expressivo de que começamos o caminho de conversão para a Páscoa
mente com a cinza e as veste penitenciais, encontram os freqüentemen-
b) e termina na Sexta-feira Santa, também com jejum e abstinência te o jejum como sinal da tristeza e do arrependimento diante do mal,
q ue, louvavelmente, podem estender-se ao Sábado Santo: é a preparação próprio ou alheio.
imediata, ou melhor, o início litúrgico da grande Páscoa da Morte e
b ) Outras vezes, o jeju m tem por fim salientar a intensidade de uma
Re surreição do Senhor, o "jejum pascal"; este é o jejum mai antigo da
oração ou de uma intercessão. Para obter de Deus seu favor, não só se
comunidade cristã, com testemun hos já no éculo II (Tertuliano), e que
reza, mas também se expressa a urgência da petição oferecendo-lhe o
mais tarde foi se estendendo à quarentena que p recede a festa da Páscoa;
gesto do jejum. Como Moisés que, preocupado com seu povo, pôde
c) todas as sextas-feiras do ano ão considerada como penitenciais dizer-lhes: " ... durante quarenta dias e quarenta noite , não comi pão,
e, em princípio, estabelece-se para elas a abstinência, embora possa ser nem bebi água, por causa de todos os pecados que havíeis cometido,
substituída por outra forma de expressar a mesma atitude de conver- praticando o que é mau aos olhos do Senh or" (Dt 9,18). O u como a
são e recordação da Morte do Senhor: a oração, a caridade e outros comunidade apostólica, que se preparava na oração e no jejum antes de
meios de controle sobre si m esmo; impor as mãos sobre os missionários (At 13,2).

d) o jejum eucarístico, ou seja, o abster-se de comer e beber antes c) Um jejum de quarenta dias - o gesto de privar-se de alimento,
da comunhão eucarística constituj também um dos gestos que herda- unido ao número simbólico da quarentena - aparece várias vezes com
mos; ainda que no princípio não acreditaram fosse necessário, muito um significado claro de preparação para um grande acontecimento o u no
rapidamente desejou-se expressar com esse jejum o apreço singular pela início de uma mi ão arri cada: assim haveriam de ser entend idos os
comida eucarística e sua distinção do alimento o rdinário, a té chegar ao quarenta anos de peregrinação do povo israelita antes de entrar na Terra
jejum absolu to desde a meia-noite, conhecido há não muito tempo; foi Prometida, os quarenta dias de Moi és no monte antes de receber a Alian-
Pio XJ l quem , há 30 anos, moderou esse jejum, reduzindo-o primeiro ça e a Lei, o quarenta dias de Elias pelo deserto antes do encontro com
a Lrê:, horas e, a seguir, à prática ainda vigente de uma hora antes da Deus no monte Horeb, assim como o quarenta dias que Jesus pas a no
comunhão; o novo Código (cân. 919) descreve os matizes dessa prescri- deserto jejuando, ante de iniciar oficialmente sua missão de Messias.
ção, excluindo dela, por exemplo, os enferm os e idosos, assim com o a
água e os medicamentos. Não há nada de extraordinário no fato de que a Igreja, em sua
trajetória da Páscoa, tenha organizado muito rapidamente sua quaren-
Moderou-se, pois, o rigor antigo do jejum. Mas continua de pé, tena de jejum e conversão, para preparar os ânimos e as atitudes diante
como símbolo de algumas atitudes - tanto na Q uaresma como no do grande acontecimento da Vida Nova que Cristo lhe quer comunicar
restante do ano - que se consideram fundamentais em nosso caminho em cada Páscoa. Unindo a sim o sentido da penitência, da súplica ar-
de fé: a conversão, a relativização dos valores corporais .. . O jejum, em dente e da preparação diante do encontro com Deus.
GESTO. E l.\IBOLOS 0 /E/U/11

Nosso jejum cristão e seus valores recompensa" (prefácio da Quaresma). Ensina-nos, de algum modo, a
deixar um espaço vago dentro de nós, para estar mais abertos ao pró-
O fato de que sejamos convidados a jejuar - principalmente no ximo e a Deus.
tempo de Quaresma - não tem a intenção de ser um castigo, urna
autornortificação d isciplinar ou desprezo pelo corpo. c) É útil inclusive para a saúde de nosso corpo.
O sentido espiritual do jejum é o ma is importante. Mas tem tam-
a) Jejuando, queremos significar expressivamente que os valores bém conotações que afetam o próprio corpo humano, e que são agora
materiais não são absolutos. apreciadas até mesmo do ponto de vista sanitário e psicológico. Por
A sociedade hodierna nos ensina continuamente a absolutizar os exemplo, na cultura e n a sensibilidade religiosa da Índia, que atualmen-
valores que deleitam os sentidos, a buscá-los insistentemente. Um pro- te está exercendo não pouca influência no Ocidente.
grama de auto-afirmação e suficiência. Essa e outras culturas (como ocorre entre os muçulmanos, com
O jejum pretende ser uma voz profética introduzida em nossa vida seu mês de Ramadã) consideraram o jejum um meio de consegui r maior
para lembrar-nos de que tudo isso é bom, porém relativo; de que o equilíbrio interior no homem, uma desintoxicação bio lógica, que afeta
único absoluto é Deus; e de que os valo res sobrenaturajs não podem ser também notavelmente a pu rificação psicológica e a harmonia global da
descujdados. Que temos de estar abertos a eles: " ... de modo que, livres pessoa.
de todo afeto desordenado, vivamos as realidades temporais como O desequilíbrio orgânico (excesso de comida e de bebida, por exem -
primícias das realidades eternas" (segundo prefácio da Quaresma). plo) provoca também um desequilíbrio espi ritual no homem. Ao passo
Renunciar ao "pão" humano recorda-nos existencialmente que o q ue uma saudável privação de excessos favorece a liberdade interior e
"Pão" verdadeiro é Cristo e sua Palavra salvadora. Que a fome e a sede o melhor domínio de si mesmo.
q ue costumamos ter de tantas coisas sensíveis devem ceder em impo r- Uma oração antiga (do Sacramentário Veronense) dizia claramente
tância à fo me e à sede que, como cristãos, deveríamos sentir pelas que que o jej um havia sido instituído para a saúde da alma e do corpo:
são transcendentes. "a nimis corporibusque curandis salubriter institutum" ...
d ) O jejum nos abre para os outros.
b) O jejum nos torna mais livres.
Antes de tudo, o que economizamos jej uando pod e ser destinado
Privar-nos voluntariamente de algo q ue apetece a nossos sentidos
a ajudar as necessidades dos outros. O jejum, no programa da Q uares-
é fazer uma opção pessoal contra a espiral consumista que a sociedade
ma, é praticado em união com a caridade, e assim o en tendem as cam-
de hoje está nos impondo.
panhas de ajuda ao Terceiro Mundo aqueles países que as organizam
Pode ser um exercício de humildade, relativizando as coisas que nesse tempo quaresmaJJ . "pa ra os o utros,,.
. eJuar
mais im ediatamente apreciamos e experimentando até a debilidade e a Entretanto, afora essa concreção tão interessante, o jejum por si só
indigência de nossa natureza mortal. É uma ed ucação de nossa liberda- nos coloca em situação mais favorável para a solida riedade com os
de interior, ao saber ruzer "não". "O homem é ele próprio só quando demais. Ensina- nos a senti r em nós mesmos a debilid ade dos que se
consegue dizer a si mesm o: não. Não é a renúncia pela renúncia: mas vêem obrigados a jejuar por necessidade, e não só na Q uaresma, mas
para o melhor e mais equilibrado desenvolvimento de si mesm o, para d urante o ano inteiro. Faz-nos experimen tar o que pode ser a fome. O
melhor viver os valores superiores, para o domínio de si mesmo" (João jej um nos "ensina misericórdia': Torna- nos mais transparentes e d ispo-
Pa ulo II, catequese 21 de março de 1979). níveis para os o utros, menos cheios de nós mesmos. Por isso, o terceiro
O jejum é um sinal de que queremos ter domínio sobre nós mes- prefácio da Quaresma d iz: "Com nossas privações voluntárias nos en-
mos. De que queremos amadurecer, sentir-nos o rientados para as ver- sinas a reconhecer e agradecer teus dons, a dominar nosso afã de sufi-
dadeiras aberturas que devem marcar nossa eristência. "Com o jejum ciência e a repartir nossos bens com os necessitados, imitando assim tua
corporal refreias nossas paixões, elevas nosso espírito e nos dás força e generosidade".
0 JEJUM
GESTOS E SIMBOLOS

O jejum, com tudo o que abrange de uma relativa negação de si acontecimento sempre novo que pretende transformar nossa existência
mesmo, vai nos educando a corrigir todo egoísmo e auto-suficiência, e é a celebração da Páscoa, na qual Deus quer intervir em nossa vida,
a abrir-nos mais para Deus e para o próximo. incorporando-nos à nova existência de Cristo Ressuscitado.
São Francisco de Paula, fundador da ordem das monjas e dos Não é um jejum de tristeza. O Esposo continua estando conosco.
monges Mínimos, explicava-lhes em sua Regra (N, 29) os seguintes Todavia, jejuamos precisamente como um modo de expressar nosso
valores do jejum, que eles tão admiravelmente praticam em sua vida: eguimento de Cristo também em sua Cruz.
"O jejum corporal purifica a mente, eJeva o sentido, sujeita a carne ao
espírito, torna o coração contrito e humilhado, dissipa o que é sustento Jejuar com alegria
da concupiscência, apaga os ardores da luxúria e acende a tocha da
Alguns jejuam ou fazem dieta para emagrecer e estar em forma.
castidade".
Outros, fazem-no por prescrição médica. Ou por exigência de sua
e) Acima de tudo, porém, o jejum quaresmal é o sinal sacramental atividade esportiva.
de nossa entrada na Vida de Páscoa. Outros, por sugestão de espiritualidades orientais que buscam uma
Na trajetória quaresmal, nosso jejum tem um sentido mais profun- concentração e um equilíbrio da pessoa.
do que o meramente psicológico, pessoal, e o da abertura fraterna. Outros ainda, para dar a conhecer - com sua "greve de fome" -
Converte-se em sacramento de nossa comunhão com o Cristo Pascal. a decisão inquebrantável de conseguir um objetivo, ou chamar a aten-
O mistério que celebramos é Morte e Ressurreição. Por isso, nossa ção sobre suas reivindicações.
sintonia com ele é também morte - renúncia, jejum, acrifício - e E outros porque não têm o que comer. ..
ressurreição - aceitação da nova vida. ós, cristãos, realizamos esse gesto expressivo do jejum em alguns
Páscoa é sempre " passagem, trânsito, êxodo": portanto, supõe re- momentos determinados, como o da Quaresma, para expressar nossa
núncia ao antievangélico, que sempre nos ameaça, e adesão a um pro- vontade de conversão à Páscoa de Cristo.
grama novo de vida. Seu significado é demonstrado de muit~s maneiras No meio de uma sociedade que e timula o gasto e a satisfação de
em nosso caminho de Páscoa (na Vigilia, na celebração batismal, com todo tipo, nós, cristãos, fazemos um gesto de protesto: o jejum, que não
a dupla lista de renúncias e profissão de fé): uma destas maneiras, ao consiste tanto em um exercício corporal de ascética, mas pretende ser
longo de toda a quarentena, é o jejum, que afeta também nosso corpo, a linguagem simbó lica de uma atitude interior.
porque é o homem inteiro o destinado à salvação e o que é chamado É realizado com alegria, sem alardes de virtude, sem buscar o aplauso
a entrar na Páscoa sem demora. e a admiração dos homens: "Quando jejuardes, não tomeis um ar som-
O jej um se transforma no sinal exterior de nossa conversão, sim- brio, como fazem os hipócritas: eles assumem uma fisionom ia para
bolo de nossa luta contra o mal e o pecado, de nossa aceitação para mo trar claramente aos homens que estão jejuando ... " (Mt 6,16s).
incorporar-nos à C ruz de Cristo e sua Vida Pascal. E o fazemos inclusive com uma dimensão comunitária: toda uma
Assim, o jejum resulta em algo não só ascético, mas cultual, litúr- comunidade religiosa, ou paroquial, ou apostólica pode assumir durante
gico. Sobretudo na celebração da Sexta-feira e Sábado Santos - os dois a Quaresma um compromisso coletivo de jejum, em uma o u outra dire-
primeiros dias do Tríduo Pascal - o "jejum pascal" por excelência, pelo ção, e possível com conseqüências econômicas de ajuda aos mais neces-
qual entramos na celebração m esma da Páscoa, submergindo-nos co~s­ sitados. É um gesto q ue continuará sempre sendo educativo e pedagógi-
cientemente no movimento dinâmico da " passagem para a nova exis- co: que ao mesmo tempo nos ajuda a expressar nosso controle sobre nós
tência" com Cristo. mesmos (o "homem velho" continua crescendo mais velozmente que o
Nosso jej um quaresmal aproxima-se, em sua intenção e em sua novo) e a abrir- nos mais decididamente a Deus e a nossos irmãos.
lembrança, das "quarentenas de jejum" que vimos n a Bíblia e que têm
por fim preparar e iniciar os grandes encontros com Deus. Aqui, o

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