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O Livro das Origens

Estátua colossa l de Chabaka, XXV d in astia. Museu Egípcio do Cairo (J E 36677)


O LIVRO DAS ORIGENS

A inscrição teológica
da pedra de Chabaka
Nota Prévia, Introdução, Texto e Desenhos de
Rogério Sousa

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


Serviço de Educação e Bolsas
Reservados todos os direitos de harmonia com a lei

Edição da
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
2011

Depósito Legal n.a 328462/11


ISBN: 978-972-31-1410-2
NOTA PRÉVIA
O texto que aqui apresentamos sob o título de «Livro
das Origens» é habitualmente conhecido na bibliografia
egiptológica pela designação de Teologia Menfita. Como
muitas outras expressões utilizadas no jargão técnico da
egiptologia esta designação merece ser revista e actuali-
zada. A primeira vez que o termo «menfita» foi evocado
a propósito deste texto foi no artigo de James Breasted,
intitulado «The Philosophy of a Memphite Priest»1 . No
entanto, a expressão «Teologia Menfita» só se viria a
impor com a publicação da tradução deste texto na obra
de Kurt Sethe, Dramatische Texte zu Altaegyptischen Myste-
rienspielen2. No entanto a designação usada pelo autor,
Denkmal Memphitischer Theologie, ou seja, «Monumento de
Teologia Menfita», não se reporta ao texto propriamente
dito, mas sim ao bloco onde está inscrito, a Pedra de
Chabaka. Desde então, porém, as publicações referem-se
ao texto simplesmente como Teologia Menfita 3•
Usada como título para designar esta composição, a
expressão «teologia menfita» tem o grande inconveniente
de ser demasiado imprecisa para ser satisfatória. Na rea-
lidade, a expressão «teologia menfita», por definição,

1 BREASTED, <<The Philosophy of a Memphite Priest>>, ZAS 39


(1901), pp. 39-54.
2 SETHE, Dramatische Texte zu Altaegyptischen Mysterienspielen, J. C.

Hinrich Sche Buchhandlung, Leipzig, 1928.


3 LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature, I, pp. 51-57.

7
abrange toda a reflexão teqlógica desenvolvida em torno
do culto menfita de Ptah. A expressão não deve, por isso,
ser aplicada exclusivamente a um único texto e deve ser
reservada para designar o edifício teológico construído no
âmbito da tradição menfita, à semelhança do que ocorre
com a expressão «teologia heliopolitana» ou «teologia
hermopolitana•>. Em boa verdade, o texto hieroglífico é
omisso quanto ao título da obra. Quando foi transposto
para a pedra, no reinado do faraó Chabaka (716-702 a.C.),
o segundo rei da XXV dinastia (747-656 a.C.) 4, o redactor
refere simplesmente a existência do «livro» ou do
«escrito» redigido pelos antepassados. Embora insinue
um paralelo com a conhecida narração bíblica da criação
do mundo, o título «Livro das Origens», que propomos
para designar esta obra egípcia, reflecte o espírito e a fina-
lidade do texto original cujo intuito era o de revelar o
drama que, na origem dos tempos, esteve subjacente à
criação do mundo e à fundação do Egipto. Os termos por
nós escolhidos para compor o título não são ocasionais.
A inscrição de apresentação refere-se explicitamente ao
texto como «um livro dos antepassados». Incluir a desig-
nação de «livro» no título torna mais clara a força e o pres-
tígio que a composição gozava como um todo. Pelo con-
trário o título Teologia Menfita inspira-se quase exclusiva-
mente no trecho narrativo da composição aplicando-se
mal à maior parte do livro composto por uma acção
dramática que de modo algum pode ser encarada como
um texto de reflexão teológica. Por outro lado, o termo
«origens» afigura-se particularmente ajustado pois remete
para o tempo primordial, sem precisar a proveniência
concreta dos mitos em causa. Evitamos assim a exclusiva

4 Trata-se de um período durante o qual os monarcas cuchitas (ori-

ginários de Kuch, o actual Sudão) dominaram parte do Egipto.

8
centração do texto no quadro da mitologia menfita, uma
vez que, embora a sua intencionalidade seja a de afirmar
o estatuto divino e político de Ptah (o deus tutelar de
Mênfis), a maior parte do texto recorre, quase por com-
pleto, ao quadro mitológico da vizinha cidade de
Heliópolis. Situar este documento apenas no quadro das
concepções teológicas menfitas é, portanto, redutor e não
traduz a «universalidade» que os antigos redactores cer-
tamente tinham em mente aquando da sua elaboração.
Naturalmente, temos que manter em mente que,
enquanto reconstrução, o nosso título constitui uma pro-
posta aberta e provisória. Em todo o caso, a designação
Teologia Menfita, encontrando-se em clara contradição com
o conteúdo e com as características literárias da composi-
ção, não será mais utilizada nestas páginas.
Na verdade, o texto patente na Pedra de Chabaka é o
herdeiro de uma longa e milenar tradição e reflecte como
nenhum outro a intensa reflexão teológica e política em
torno do problema da criação do mundo. Embora muitos
outros textos cosmogónicos alusivos à criação do mundo
tenham sido redigidos no antigo Egipto, grande parte
deles protagonizados por outras divindades criadoras, a
verdade é que o «Livro das Origens» é o único texto que
chegou até nós que, para além da enunciação de eventos
mitológicos (como é de regra nos textos cosmogónicos
egípcios), inclui também uma narrativa sequencial formu-
lada através de uma interpretação racional da criação do
mundo. Por essa razão, não é excessiva a comparação que
o título <<Livro das Origens>> insinua com o Génesis bíblico
pois partilha com esta obra uma visão unitária do acto
criador que se desdobra de um modo articulado e coe-
rente através da materialização progressiva do plano
divino. Os dois textos cosmogónicos têm ainda em
comum o facto de se basearem em referências míticas

9
antiquíssimas, integrando-as numa nova e racionalmente
articulada visão teológica. Graças à sua vigorosa e «uni-
versal» formulação teológica os dois textos exerceram um
impacto duradouro quer na cultura e na religiosidade do
povo que os redigiu, como na especulação filosófica e teo-
lógica de povos que com eles conviveram, originando um
caudal de reflexão que se foi actualizando e revestindo de
novas roupagens e interpretações. Importa ainda salientar
que ambas as composições foram sendo buriladas sensi-
velmente ao longo do mesmo período de tempo (séculos
XIII-VI a.C.) e que, apesar da aparente divergência de
horizontes religiosos, se apresentam como produtos afinal
bastante próximos de um caudal de reflexão comum.
Cada um destes textos a seu modo elaborava uma versão
unitária e compreensiva de deus e do mundo.
Ao escolhermos a designação de «Livro das Origens»
tivemos ainda em conta um outro aspecto, porventura
o mais decisivo, relacionado com a especificidade da
mensagem veiculada no texto. Nele perpassa a ideia de
um deus criador que literalmente «escreve» o mundo,
povoando-o de hieróglifos vivos que permanentemente
actualizam o seu pensamento primordial. Estabelece-se
assim uma equivalência entre «livro» e «mundo» que é
específica desta obra e que justamente merece ser desta-
cada na designação que a evoca.
Embora o impacto do «Livro das Origens» redigido
na Pedra de Chabaka seja comparativamente menos visí-
vel que o do Génesis bíblico, e que, por essa razão, seja-
mos tentados a considerá-lo mais longínquo dos nossos
próprios referenciais culturais, a verdade é que não só
ambas as obras exerceram uma influência tremenda no
desenvolvimento das ideias religiosas que desaguaram
no cristianismo, como na realidade o «Livro das Origens»
parece ter sido o veículo de ideias que tiveram um alcance

10
bem mais determinante na afirmação da mensagem cristã.
O Prólogo do Evangelho Segundo São João, um texto com
uma desconcertante afinidade com o texto cosmogónico
da Pedra de Chabaka, retoma o tema da criação pela pala-
vra divina no contexto do Novo Testamento, insinuando
um paralelismo simbólico com o Génesis que dá início ao
Antigo Testamento. Num certo sentido, a mensagem do
«Livro das Origens» afigura-se mais decisiva ainda do
que a do Génesis, na medida em que, aos olhos dos redac-
tores do Evangelho Segundo São João, a ideia de uma criação
do mundo pela Palavra afigurava-se suficientemente ino-
vadora para justificar a repetição do relato da criação,
agora entendida plenamente à luz da criação do logos.
Todos estes elementos justificam a publicação, pela
primeira vez em Portugal, quer da tradução integral do
texto, quer da própria versão hieroglífica, possibilitando
assim ao estudioso o acesso directo à fonte hieroglífica.
Devido à grande distância que nos separa dos redactores
desta composição colocámos um especial cuidado na con-
textualização do leitor contemporâneo. O comentário e o
enquadramento procuram explicitar a grandiosidade
desta obra que se filia numa tradição antiquíssima. Nos
apêndices, o leitor poderá ainda encontrar outras obras
literárias que revelam uma afinidade evidente com o
«Livro das Origens». Esta obra magistral, onde o drama
das origens é encenado e revelado, representa uma das
mais singulares e extraordinárias obras literárias que o
mundo antigo nos legou e cujo verdadeiro impacto na
espiritualidade do Ocidente está ainda largamente por
estimar.

11
INTRODUÇÃO
O «Livro das Origens» foi inscrito num bloco de
pedra negra de grandes dimensões (92 centímetros de
altura contra 132 centímetros de largura), actualmente
conhecido por Pedra de Chabaka, em virtude de ter sido
mandado erguer pelo faraó Chabaka (716-702 a.C.),
segundo rei da XXV dinastia (747-656 a.C.).
Originalmente o bloco foi colocado no templo de
Ptah, em Mênfis. Infelizmente as circunstâncias da sua
descoberta não são conhecidas mas é possível que o bloco
tenha sido encontrado em Alexandria, para onde pode ter
sido transferido no decurso da dinastia ptolemaica, em
virtude da sua extraordinária importância e valor ritual.
O que sabemos é que em 1805 este bloco monumental foi
oferecido ao Museu Britânico (n2 498) onde ainda aí se
conserva.
Chabaka não era um faraó egípcio. Na realidade fazia
parte de uma dinastia oriunda do país de Kuch, um vasto
território situado a montante das primeiras cataratas do
Nilo e que tradicionalmente era ocupado militarmente
pelo Egipto. Estava-se então num período de grande
declínio político do Egipto conhecido actualmente como o
Terceiro Período Intermediário (1069-664 a.C.). O grande
poderio militar que o Egipto conhecera no Império Novo
(1550-1069 a.C.) esboroara-se acarretando consigo, não só
a perda das regiões ocupadas na Ásia e na Núbia, como
a fragmentação política do território e até a ocupação
estrangeira, primeiro por governantes de origem IJ.ôia

15
(dinastias XXII-XXIII) e, posteriormente, pelos «faraós» de
Kush (XXV dinastia).
O «Livro das Origens» é, por si só, um monumento
literário de suma importância. Redigida em papiro, se
acreditarmos na inscrição dedicatória de Chabaka, esta
composição corria, já em plena XXV dinastia (747-656 a.C.),
um sério risco de deterioração. No momento em que foi
«encontrada» pelo faraó cuchita, entre os documentos
sagrados dos arquivos do deus Ptah, encontrava-se cor-
roída pela acção dos vermes. A obra era suficientemente
importante para originar, por parte de Chabaka, uma evi-
dente indignação pelo lamentável estado de conservação
do papiro e motivar a sua inscrição num bloco monumen~
tal. Este constitui o único suporte sobrevivente desta notá-
vel composição literária · cuja elaboração, ao que tudo
indica, se prolongou durante centenas de anos. Apesar de
grande parte da inscrição se ter perdido, é possível nesta
obra distinguir duas peças distintas. A mais extensa é
constituída por um texto mitológico de carácter teatral
onde se evoca a unificação do Alto e do Baixo Egipto, graças
à resolução do conflito mitológico que opunha Hórus, o
garante da ordem e modelo mítico do faraó, a Set, deus
que personificava o caos e a desordem. Indubitavelmente
esta composição é muito antiga e foi alvo de uma cons-
tante actualização ao longo do tempo. A outra parte da
composição, muito mais reduzida em extensão, é também
mais recente, sertdo constituída por um hino de louvor a
Ptah que evoca a criação do mundo através do pensa-
mento e da palavra. Numa ocasião indeterminada, com
toda a probabilidade ao longo do período ramséssida
(1295-1069 a.C.), os dois textos foram combinados origi-
nando assim uma composição única.
Na actualidade é sobretudo o hino de louvor a Ptah
que, em virtude da sua importância teológica, mais tem

16
recebido a atenção dos tradutores e comentadores que
normalmente relegam para segundo plano a peça que, no
fundo, possuía um maior peso na composição. Na tradu-
ção e comentário que aqui apresentamos ao leitor pro-
curamos dar a versão mais completa possível do texto,
uma vez que só desse modo se pode ter uma ideia bali-
zada sobre o seu real valor. Na realidade, para Chabaka, o
interesse da obra devia residir mais na peça de carácter
teatral do que no texto cosmogónico propriamente dito,
dado que o primeiro evocava a unificação do Alto e do
Baixo Egipto, um feito que os faraós cuchitas procuravam
a todo o custo alcançar e que nunca haviam verdadeira-
mente de o conseguir. Esta mensagem de teor político era,
portanto, um traço muito distintivo da obra que não se
pode descurar. Com a edição monumental do «Livro das
Origens» Chabaka procurava, desse modo, lançar o
Egipto numa nova era, afirmando-se na continuidade das
mais velhas tradições faraónicas que o texto actualizava e,
desse modo, justificar a sua acção política e militar.
Ao fazê-lo, Chabaka relançava o prestígio político de
Mênfis, a mais antiga capital do Egipto faraónico, fundada
no dealbar do III milénio antes de Cristo, segundo rezava
a tradição, por Ménes, o fundador mítico do Egipto. Apesar
de ter mantido sempre o estatuto de capital administrativa
das Duas Terras, o peso efectivo de Mênfis na vida política
e espiritual do Egipto declinou muito após o Império
Antigo (c. 2680-2160 a.C.), sobretudo em detrimento de
Tebas (ou Uaset, em egípcio), a capital dinástica dos faraós
do Império Novo (c. 1550-1069 a.C.) onde imperava a
figura tutelar do deus Amon. A Pedra de Chabaka vinha
relançar o prestígio político de Mênfis e o culto de Ptah.
Embora nem Chabaka, nem os seus sucessores cuchitas
tivessem beneficiado directamente com esta estratégia,
dado que foram repelidos pelo poder militar assírio para

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os seus territórios de origem, o certo é que o rasgo da sua
estratégia se impôs, a julgar pela importância crescente
que Mênfis não cessaria de deter até à invasão macedónica
e a subsequente fundação de Alexandria.
Não obstante esta preocupação política bem tangível,
o trecho cosmogónico também não deve ser visto como
um «apêndice». Do ponto de vista religioso, o «Livro das
Origens» estava imbuído de uma mensagem vigorosa.
A ideia de uma recriação do mundo, garantida graças à
união das Duas Terras, era um ideal caro à dinastia
cuchita e o arrojo teológico da noção cosmogónica que
divulgava, claramente formulada com um cunho de uni-
versalidade raro nos discursos teológicos do mundo pré-
-clássico, contribuía para fazer do intuito político de
Chabaka uma recriação cósmica, um renascimento do
Egipto. A noção de uma criação do mundo pelo pensa-
mento e pela palavra havia de ter um forte impacto na
espiritualidade helenística, também ela centrada numa
reflexão de teor teológico centrada na consciência e no
conhecimento do criador. A caracterização do logos divino,
o Verbo criador, tomar-se-ia com efeito um elemento cen-
tral na elaboração teológica do helenismo, quer através de
uma formulação filosófica pura, como acontecia nas cor-
rentes filosóficas de inspiração platónica, quer através da
sua aplicação a tradições místicas de sabor oriental, como
o hermetismo e o cristianismo.
O «Livro das Origens» documenta, portanto, uma
viragem que é tanto política como religiosa e que, apesar
de se enraizar profundamente nas mais antigas tradições
faraónicas, se tomaria, talvez precisamente por isso, no
portador de uma mensagem revolucionária na forma de
conceber deus, o mundo e o próprio homem que haveria
de perdurar até aos nossos dias.

18
A cidade de Mênfis e o templo de Ptah: uma introdução
geral

Sobretudo para o leitor não especializado, o «Livro


das Origens» não pode ser compreendido inteiramente
sem que algumas pinceladas sejam traçadas acerca do seu
contexto: a cidade de Mênfis e o templo de Ptah. No auge
da sua glória, Mênfis era uma das maiores cidades do
mundo antigo. Situada precisamente na confluência geo-
gráfica do delta (o Baixo Egipto) e do vale do Nilo (o Alto
Egipto), a cidade foi criada na alvorada da civilização
egípcia (c. 3000 a.C.) com o intuito de constituir a capital
política do Egipto unificado5.
O termo Mênfis deriva da expressão egípcia Men-
-nefer, (significa «estável e belo»), que designava o com-
plexo piramidal de Pepi I (2321-2287 a.C.) situado na
região meridional de Sakara. Com o tempo, a expressão
acabou por se estender ao bairro da cidade situado na pro-
ximidade destes edifícios e, por fim, à própria cidade. No
entanto, originalmente o nome da cidade era Ieneb Hedje,
o «Muro Branco», ou adoptando uma expressão menos
literal, a «Cidade Cintilante», uma expressão que se
reporta à muralha que envolvia o palácio real ou o núcleo
urbano primitivo6.

5 Oriundo da cidade de This, no Alto Egipto, Narmer terá sido pri-

meiro faraó a deter o controlo do Baixo Egipto, realizando sob o seu


comando a unificação das Duas Terras.
6 O termo Hedje não significa exactamente «branco», mas sim <<res-

plandecente», ou <<cintilante». No entanto, manteremos no nosso texto a


designação mais utilizada pela literatura egiptológica. Por outro lado, o
termo <<muralha>>também pode substituir a palavra << muro>>, ieneb, razão
pela qual a utilizaremos frequentemente ao longo da tradução do <<Livro
das Origens>>. O <<muro>> em questão era, sem dúvida, o palácio real, mas
a expressão também pode fazer alusão ao núcleo urbano primitivo.

19
Incrustado no cerne de um grande conjunto de palá-
cios, templos, mercados e oficinas, o templo de Ptah per-
maneceria, ao longo da história do Egipto, como um dos
principais templos do país7 . A importância do templo de
Ptah foi tal que, ainda hoje, o país do Nilo deve o seu nome
ao velho santuário do deus. Na verdade, o termo «Egipto»,
derivando da palavra grega Aegyptos, constitui uma cor-
ruptela do nome do antigo templo de Ptah, Hut ka Ptah, «A
morada do ka de Ptah». É surpreendente constatar que, mais
de cinco mil anos volvidos após a sua fundação, o templo
de Ptah se continue a confundir com o próprio país do Nilo,
o que nos dá uma ideia acerca da magnitude do impacto
causado pelo conteúdo do «Livro das Origens», sobretudo
entre os habitantes helenizados do Egipto tardio.
Se Ptah era o patrono de Mênfis, Sakara, a necrópole
construída na orla do deserto líbico era o domínio do deus
funerário SokarB. Ao contrário da cidade dos vivos, que
praticamente desapareceu sob os aluviões do rio, a necró-
pole menfita revela-nos ainda hoje algumas das mais
extraordinárias realizações do antigo Egipto, facto que
devemos tomar como indicador para ter uma ideia da
importância e do fausto da cidade hoje desaparecida.
Estendendo-se de Abu Roach, a norte de Guiza, até El-
-Lahun, à entrada do Faium, a necrópole menfita é a mais
extensa do mundo, possuindo monumentos de todas as
idades do Egipto antigo, desde a fundação da monarquia
egípcia (c. 3000 a.C.) até à Época Greco-Romana (332 a.C.-
-395 d.C.).
A localização dos cemitérios reais permite-nos também
vislumbrar a influência de uma outra cidade perdida do

7 HARVEY e HARTWIG, Gods of Ancient Memphis, p. 7.


8O nome de actual da necrópole menfita, Sakara, parece deste
modo derivar do próprio nome do deus Sokar.

20
Egipto: a extraordinária Heliópolis, o maior centro espiri-
tual do antigo Egipto9 . Apesar dos 30 quilómetros que as
separavam, as cidades de Mênfis e de Heliópolis consti-
tuíam duas facetas da mesma e interligada realidade. Se
Mênfis era o centro político, económico e administrativo
do Egipto, Heliópolis era o centro espiritual de onde irra-
diava o culto solar cujo impacto foi tremendo na espiri-
tualidade egípcia. É, por isso, natural que, embora inicial-
mente as tradições religiosas das duas cidades tivessem
evoluído quase independentemente10, ao longo do tempo
se tenha verificado uma progressiva aproximação teoló-
gica que acabou por se materializar em produções literá-
rias como o «Livro das Origens».
O sucesso para a ocupação de Mênfis · ao longo de
mais de 3500 anos prende-se com as invulgares caracte-
rísticas da sua localização geográfica, estrategicamente
situada entre o vale do Nilo e o delta. Assenhoreando-se
das potencialidades desta localização, os primeiros monar-
cas do Egipto unificado controlavam com facilidade o trá-
fego fluvial que fluía sem barreiras naturais significativas
desde Assuão às margens do Mediterrâneo. A «Balança
das Duas Terras», um epíteto comum de Mênfis, aludia
precisamente ao determinante papel político e religioso

9 Centrando-se inicialmente em Sakara e Dachur, numa relação

directa com a cidade de Mênfis, os monumentos funerários reais foram-


-se aproximando, na IV dinastia (2613-2494 a.C.), da zona de influência
de Heliópolis, culminando no complexo funerário de Djedefré (2566-
-2558 a.C.) localizado em Abu Roach. Curiosamente, após esta aproxima-
ção verifica-se um fenómeno inverso, primeiro com o regresso a Guiza,
depois o avanço para a necrópole meridional de Abusir (na V dinastia,
com algumas excepções) e finalmente para Sakara Sul (na VI dinastia).
10 Esta divergência pode explicar a quase total ausência de Ptah

nos «Textos das Pirâmides», composições elaboradas no contexto helio-


politano.

21
que a cidade desempenhava como símbolo da unificação
do Egipto. Este evento, envolto na névoa do mito, acabou
por assinalar o início «oficial» da história egípcia. Manéton,
o sacerdote egípcio que, sob o comando de Ptolemeu II
Filadelfo (283-246 a.C.), redigiu uma história da civiliza-
ção faraónica, refere que Ménes fundou a cidade des-
viando o curso do Nilo através de diques, o que conferia
ao acontecimento conotações cosmogónicas11 • O nome da
nova cidade, «Muro Branco», permite pensar que, desde
logo, o centro desta cidade fosse o próprio palácio real.
O templo de Ptah foi provavelmente também construído
nesta época, a julgar pela antiguidade do epíteto do deus
«O que está a sul do seu muro». O mesmo epíteto permite
também pensar que o templo do deus teria sido construído
a sul do palácio real e que, nessa época, ocuparia uma
posição secundária em relação à sede do poder político.
Beneficiando certamente com o tremendo impacto da
centralização da administração real no interior dos seus
muros, a cidade adquiriu desde logo um estatuto e escala
monumental. Reflexo dessa importância é o magnífico
cemitério de elite da I e II dinastias erguido em Sakara,
onde os faraós do Período Tinita ergueram grandiosas
mastabas em adobe12. Este é o primeiro e grandioso exem-
plo de arquitectura monumental faraónica que precedeu a

11
Historicamente não há qualquer referência ao rei Ménes. Os ves-
tígios arqueológicos identificam Narmer como o primeiro faraó a unifi-
car as Duas Terras. Dois utensílios encontrados no templo de Hieracôm-
polis, uma paleta e uma maça ritual, documentam o uso das duas coroas
pelo mesmo soberano. A tradição egípcia, no entanto, apenas conservou
o nome de Meni, várias vezes mencionado como o primeiro faraó.
12 O termo árabe «mastaba>> evoca estruturas funerárias que con-

sistem numa super-estrutura com a forma de um paralelepípedo e uma


infra-estrutura composta por um poço e uma camâra funerária escavada
na rocha.

22
construção das pirâmides 13 . No entanto, a estrutura mais
emblemática de Sakara é, ainda hoje, a pirâmide de
degraus de Djoser Netjererkhet. Trata-se de uma gran-
diosa construção que, para além da pirâmide e dos com-
plexos labirintos subterrâneos, possuía um conjunto
muito elaborado de estruturas arquitectónicas que imita-
vam elementos palacianos e rituais feitos em materiais
perecíveis. A própria muralha de calcário que envolvia
todo o recinto replicava provavelmente a forma do Muro
Branco, a muralha que envolvia o palácio real. Sintomá-
tica a respeito da diferença de horizontes que existia entre
a cidade dos mortos e a cidade dos vivos é a utilização dos
materiais. Enquanto a muralha palatina era feita em
adobe, a muralha da pirâmide era solidamente construída
em pedra, para durar eternamente .
. De acordo com uma sugestiva hipótese, embora cen-
trada num núcleo original, a cidade de Mênfis terá cres-
cido ou até deslocado o seu centro gravitacional sempre
que se verificava uma mudança no local escolhido pelo
faraó para a construção do seu complexo funerário real.
Assim, ao longo da IV dinastia, a cidade dos vivos ter-se-
-ia deslocado para norte, aproximando-se do planalto de
Guiza14. Já na V dinastia, quando a necrópole real se trans-

13 Conhecem-se, para a I e II dinastias, duas necrópoles reais, uma

em Sakara, a norte da pirâmide de Teti e outra, mais antiga, em Abido.


O debate permanece em aberto quanto ao significado de uma dupla
necrópole real e qual delas receberia efectivamente as múmias dos
monarcas. Sobre esta «polémica» ver SHAW, The Oxford History of
Ancient Egypt, pp. 69-76 e, para outro ponto de vista ver LAUER, <<Les
monuments des trois premiéres dynasties, mastabas et pyramides à
degrés>>, L 'Art Égyptien au temps des pyramides, pp. 34-51.
14 Em Guiza, por exemplo, sabemos que foi edificado um complexo

palaciano dotado de equipamentos civis que formava uma autêntica


cidade de pirâmide.

23
feriu para Abusir, idêntica deslocação se verificou do
palácio e do núcleo urbano adstrito à corte. Quando Pepi
I, da VI dinastia, escolheu a região de Sakara-sul para
construir a sua pirâmide, sabemos que o núcleo da cidade
também se deslocou, recebendo, por extensão de signifi-
cado, o nome dessa pirâmide, Men-nefer15.
À medida que os reinados se sucediam e os monu-
mentos reais se erguiam na orla do deserto, Mênfis
enriquecia-se com o potencial humano e material que
representavam estas vastas necrópoles. Para além das pirâ-
mides, cada um destes complexos reais possuía uma admi-
nistração, domínios agrícolas consideráveis e um nume-
roso conjunto de homens responsáveis pela manutenção
do culto funerário. Nas proximidades de cada um destes
complexos funcionava uma autêntica «cidade de pirâmide»
que albergava esta extensa e activa comunidade, cor:tsti-
tuindo assim núcleos populacionais semi-autónomos que,
com a sua presença, contribuíam para o vigor e o cresci-
mento de Mênfis. Esta autêntica megalópolis que alber-
gava a corte e a elite de um estado burocrático sem qual-
quer paralelo na Antiguidade Oriental do III milénio,
constituía o epicentro de um numeroso conjunto de cida-
des periféricas ligadas entre si por canais, criando uma
vasta extensão urbana, económica e religiosa.
Estava assim criado um fosso imenso que dividia a
macrocéfala Mênfis em relação ao resto do país, ainda
imerso, em alguns casos, num Neolítico mais ou menos

15 O próprio curso do Nilo ditou flutuações importantes no cresci-

mento da cidade, urna vez que, gradualmente, se foi afastando para


leste, tendência que actualmente aínda se mantém. À medida que o Nilo
se distanciou do núcleo antigo deixou atrás de si terreno livre que os
faraós do Império Novo não deixaram de aproveitar para implementar
o seu programa de expansão da cidade.

24
temperado pela presença da máquina burocrática real.
É claro que, neste contexto, o templo de Ptah era o princi-
pal santuário do país, apenas ultrapassado pelo da cidade
do Sol, Iunu16. Em virtude da relação que o clero de Ptah
mantinha na concepção e na construção das pirâmides e
nas estruturas sagradas envolventes, a cidade tomou-se o
principal centro artesanal do país, concentrando no seu
perímetro as oficinas e os artesãos que, inspirados pelas
directrizes do templo de Ptah, produziam as obras primas
do Império Antigo que hoje conhecemos e admiramos.
Nesse ponto, Mênfis contrastava com o resto do país onde
o nível artístico estava bem longe daquele que nivelava as
obras da capitat1 7 .
O templo de Ptah teve por isso, desde as épocas mais
recuadas, um contributo decisivo no florescimento artís-
tico que se verificou no Egipto18 • A sofisticação e a pureza
dos cânones artísticos do Império Antigo, tantas vezes
retomados (e até copiados) ao longo da história egípcia,
como aconteceu na XXV dinastia, deveram muito à acção
tutelar dos sacerdotes de Ptah sobre as artes e os ofícios.
Foi certamente no seio do culto de Ptah que foram criadas

16 QUIRKE, The Cult of Rn, pp. 90-95.


17 É a descentralização do poder, verificada a partir da V dinastia
que desencadeia um movimento dos artistas menfitas para as outras
regiões do Egipto, conduzindo a uma sofisticação progressiva da arte
elaborada pelos pequenos núcleos regionais. Sobre este fenómeno ver
SHAW, Oxford History of Ancient Egypt, pp. 120-125.
18 Foi no Império Antigo, no entanto, que a macrocefalia de Mênfis

mais se fez sentir, já que o esplendor artístico que irradiava de Mênfis


contrastava com o carácter rudimentar que, até ao eclodir do Império
Médio, caracterizava as tendências artísticas regionais. Apesar das vicis-
situdes do poder político acabarem por lançar alguma sombra sobre a
hegemonia de Mênfis, no que diz respeito à arte, os cânones aí elabora-
dos permaneceram sempre o modelo de pureza e de sofisticação.

25
as técnicas e compilados os símbolos e a linguagem ico-
nográfica que abundantemente se materializaram na arte
e na cultura material do antigo Egipto.
Por último, temos ainda que ter em mente que a defi-
nição divina de Ptah foi desenvolvida ao longo de um
extenso período de tempo. Reflexo disso é a diversidade
dos seus atributos e a heterogeneidade das suas formu-
lações divinas as quais, longe de se manterem estáticas,
foram sempre objecto de uma actualização. De uma
maneira geral, os deuses egípcios encarnavam fenómenos
cósmicos em acção. Encarado sob este prisma, Ptah perso-
nificou, desde sempre, a criatividade ctónica da terra e
constituía um elo de ligação entre a humanidade e as pro-
fundezas da terra, onde residiam as forças regeneradoras
do Nun, o oceano primordial.
Ptah encarnava, portanto, o poder emergente da terra,
o ímpeto criador que jazia nas profundezas do mundo e
que, pelo seu potendal de vida e fecundidade, nutria e
gerava as formas de vida. É sob o vulto desta divindade
cósmica que foi redigido o «Livro das Origens».

26
I. O LIVRO DAS ORIGENS
1. VERSÃO HIEROGLÍFICA E TRADUÇÃO

Embora a Pedra de Chabaka tivesse sido doada ao


Museu Britânico em 1805, a verdade é que passaria quase
um século até que as suas inscrições começassem a ser
decifradas e o seu valor fosse reconhecido.
O texto não só é muito difícil como se apresenta extre-
mamente deteriorado, pelo que a sua tradução não se
revelava promissora. A inscrição, de grandes dimensões
(92 centímetros de altura e 132 centímetros de largura) é
constituída por duas linhas horizontais de texto hieroglí-
fico e 62 colunas verticais 19 .
A inscrição tem a particularidade de apresentar um
sentido de leitura retrógado, isto é, a leitura inicia-se na
extremidade oposta àquela que é apontada pelos signos
animados20 . Assim, enquanto habitualmente a direcção da
escrita é indicada pelos elementos vivos da escrita, neste
caso a leitura é empreendida a partir da direcção oposta,
contrariando a orientação da inscrição cuchita (na linha 2)
que é redigida de acordo com a regra convencional.
Infelizmente apenas 23 colunas permanecem inteira-
mente legíveis. Podemos dizer com toda a propriedade
que o texto que chegou até aos nossos dias sobreviveu mila-
grosamente a três fases de destruição. A primeira deterio-
ração ocorreu ainda antes da sua redacção no bloco man-
dado talhar por Chabaka. Como é referido na própria ins-
crição, o texto redigido no bloco foi copiado a partir de um

29
exemplar que já nessa altura era muito antigo, pelo que se
apresentava muito deteriorado pela acção dos vermes (o
que aponta naturalmente para um suporte orgânico, como
o papiro). Embora recentemente se tenha vindo a questio-
nar cada vez mais a veracidade deste testemunho antigo,
a verdade é que as lacunas mantidas pelo redactor antigo
sugerem efectivamente que o documento original, prova-
velmente um rolo de papiro, apresentava um tipo de dete-
rioração compatível com a causa que é relatada no texto21 .
As lacunas afectam o topo e a base das colunas seguindo
um padrão de desgaste típico num objecto deste tipo, o
qual afecta sobretudo a extremidade do rolo situada no
exterior, tendendo, por outro lado, a preservar a extremi-
dade oposta que, regra geral, se mantém em bom estado
graças à acção protectora das sucessivas camadas de
papiro dispostas em torno de si. Além do mais, é junto aos
cantos superior e inferior das primeiras colunas que se
detectam as principais lacunas, outro dado que joga a
favor da veracidade da explicação avançada pelo próprio
redactor do texto, dado que o rolo era envolvido na região
central por um fio que o mantinha fechado, levando assim
a que as extremidades ficassem mais sujeitas ao desgaste.
Outras lacunas menores, como a da coluna 61, identi-
ficam pequenas manchas de deterioração compatíveis
com a causa referida pelo escriba para a deterioração do
documento: a acção dos vermes. Lacunas deste tipo, dis-
persas ao longo do texto corroboram, deste modo, a exis-
tência de pequenos buracos detectados no papiro original.
Uma segunda fase de destruição do texto atingiu o
monumento de Chabaka provavelmente após a expulsão
dos reis cuchitas do Egipto e traduziu-se no apagamento
do nome do faraó. Também o nome de Set foi criteriosa-
mente apagado sob a acção deste ou de algum outro cin-
zel censurador, testemunhando assim que a perseguição e

30
diabolização do culto de Set, o deus identificado com os
poderes letais do deserto, foi posterior à XXV dinastia.
Apesar destes incidentes, a mais ampla deterioração
do documento estava ainda para vir. Provavelmente após
a conquista islâmica toda a zona central da pedra foi apa-
gada devido à sua utilização como uma base de mó ou de
uma coluna. Marcas dessa· utilização inusitada são os
raios (com um comprimento variável mas que se situam
entre os 25 e os 38 centímetros) que convergem para um
buraco quadrangular situado no centro (aproximada-
mente com 12 centímetros de lado). O desgaste provocado
pela rotação da mó ou pelo cinzel do pedreiro traduziu-se
no desaparecimento total da inscrição num raio de 30 cen-
tímetros em torno da zona central, à excepção de poucos
sinais hieroglíficos que permaneceram incólumes junto ao
eixo da mó.
Apesar de todas estas vagas de destruição, o texto
que chegou até aos nossos dias é suficientemente signifi-
cativo para ser considerado como uma das obras mais
notáveis do pensamento egípcio. A versão que aqui apre-
sentamos tem em conta o texto hieroglífico apresentado
integralmente nas versões de James Breasted, Hermann
Junker e Kurt Sethe, bem como as respectivas traduções
em inglês e alemão, respectivamente22 • Embora não se
baseie na versão hieroglífica, a versão proposta por Miriam
Lichtheim também foi consultada, assim como outras ver-
sões, que apenas apresentam ou comentam a narrativa
cosmogónica, como é o caso das versões de John Wilson23
e de Erik Iversen24 .
Para respeitar o mais possível o texto original, a nossa
tradução apresenta, por vezes, alguma crueza que foi
mantida intencionalmente para evitar introduzir expres-
sões que dissimulassem a linguagem concreta do texto.
Noutros casos, porém, fomos forçados a abdicar de ser tão

31
literais e tivemos de introduzir algumas palavras para
ajudar à compreensão do texto. Isso deve-se, em grande
parte, ao carácter deflexivo da escrita hieroglífica aqui uti-
lizada25. Na tradução colocaremos entre parêntesis as
palavras que faltam, mas que se depreendem, e que são
necessárias para que o leitor contemporâneo compreenda
o sentido da frase. Indicaremos também as lacunas que o
texto apresenta através de três pontos colocados entre
parêntesis.

32
Para que seja mais facilmente compreensível para o
leitor, apresentamos o texto repartido em pequenas uni-
dades temáticas demarcadas por um título que, bem
entendido, não consta do texto original26 . Para maior faci-
lidade de leitura da inscrição hieroglífica, os signos foram
desenhados pelo autor de forma a exibirem alguns dos
seus traços distintivos (como olhos, penas, etc), muito
embora a inscrição original não apresente detalhes no
interior do contorno do signo. Porventura uma forma
mais correcta de apresentar o texto hieroglífico seria o de
conservar o interior dos signos com uma mancha uni-
forme, o que dificulta, por vezes, a identificação dos sig-
nos. Não obstante, para dar ao leitor uma indicação da
configuração efectiva dos signos hieroglíficos na Pedra de
Chabaka conservámos a primeira linha da inscrição sem
qualquer decoração interna dos signos.

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34
A titulatura de Chabaka27

(1) Que viva o Hórus, o que fecunda as Duas Terras28 ,


o das Duas Senhoras, o que fecunda as Duas Terras, o
Hórus de Ouro, o que fecunda as Duas Terras, o rei do
Alto e do Baixo Egipto, Neferkaré29, o filho de Ré,30
Chabaka, o amado de Ptah, que está a sul do seu muro31 •
Que viva eternamente, como Ré!

Que viva o Hórus, o que fecunda as Duas Terras, o


das Duas Senhoras, o que fecunda as Duas Terras, o Hórus
de Ouro, o que fecunda as Duas Terras, o rei do Alto e do
Baixo Egipto, Neferkaré, o filho de Ré, Chabaka, o amado
de Sokar, que está a sul do seu muro.
Que viva eternamente, como Ré! 32

35
36
Apresentação do texto

(2) Este livro foi copiado por ordem de sua majestade,


(de modo a ficar como) novo, na morada do seu pai, Ptah,
o que está a sul do seu muro. Foi a própria sua majestade
· que encontrou a obra dos seus antepassados. Ela estava
tão carcomida pelos vermes que não podia ser lida intei-
ramente do início ao fim 33 • (Sua majestade fez) aparecer a
cópia como uma (obra) nova, melhor do que era no início,
de acordo com o seu desejo34 . Que o seu nome permaneça
e os seus monumentos perdurem na morada do seu pai,
Ptah, o que está a sul do seu muro, por toda a eternidade35
como uma obra do filho de Ré, Chabaka, para o seu pai
Ptah-Tatenen. Que ele dê vida eternamente!

37
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38
A aclamação de Ptah, o soberano do mundo

(3) (O rei do Alto e do Baixo Egipto), Ptah é aquele


que é proclamado pelo grande nome (Tate)nen (o que está
a sul do seu muro, senhor da eternidade) .. .36
(4) (O que unifica) a terra do Alto Egipto e a terra do
Baixo Egipto. Este (soberano) unificador ergue-se37 como
rei do Alto Egipto e como rei do Baixo Egipto.
(5) o 000

(6) . . . Ele (foi) criado38 por Atum, o que gerou a


Enéade (e todos os deuses) 39 .

39
40
O julgamento de Hórus e Set

(7) (Geb) reuniu todos os deuses. Ele julgou40 Hórus e


Set;
(8) Ele terminou o seu litígio41 .
Ele deu a Set a realeza do Alto Egipto até aos confins
da terra do Sul. Ele (Set) introduziu-se em Su42 • E Geb deu
a Hórus a realeza do Baixo Egipto, até aos confins da terra
do Norte, o lugar (onde) o seu pai mergulhou43,
(9) em Pesecheti Taui44 • Hórus ergue-se sobre a (sua)
região e Set ergue-se sobre a (sua) região45 . Eles apazi-
guaram as Duas Terras em Aian46, a fronteira das Duas
Terras. As Duas Terras estão em Aian, a fronteira das Duas
Terras47.

41
42
(lOa) Palavras ditas por Geb para Set48:
«Vai para os confins do lugar onde nasceste»
(lOb) Set (responde):
«Ü Alto Egipto».
(lia) Palavras ditas por Geb para Hórus:
«Vai para os confins do lugar onde o teu pai
mergulhou»
(llb) Hórus (responde):
«Ü Baixo Egipto».
(12a) Palavras de Geb para Hórus e Set:
«Estais julgados»49 .
(12b) Resposta (provavelmente de Hórus e Set em
conjunto):
«Ü Baixo e o Alto Egipto50 ».

43
44
A investidura de Hórus como Rei do Alto e do Baixo
Egipto

(1 Oc) (Era) errado no coração de Geb 51 que a parte de


Hórus fosse como a parte de Set.
(llc) Então Geb deu a Hórus a sua herança,
(12c) (pois) ele era filho do seu primogénito52 .

45
46
(13.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Eu designei (13b) Hórus. Ele é o primogé-
nito».
(14.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Unicamente (para) (14b) Hórus, (dou) a
herança».
(15.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Para este herdeiro (15b) Hórus, a minha
herança».
(16.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Para o filho do (meu) filho, (16b) Hórus. Ele
é Uepuauet53, o (herdeiro) do Alto Egipto (. .. )».
(17.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Ele é o que abre o ventre (17b) Hórus, o que
abre os caminhos»54
(18.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Ü filho é nascido. (18b) Hórus, o que nasceu
como Uepuauet.»

47
48
A coroação de Hórus

(13c) (Então) Hórus ergueu-se à cabeça da terra. Ele é


o unificador desta terra, proclamado pelo grande nome:
Tatenen-Resienebef55, senhor da eternidade. Então germi-
naram
(14c) as grandes magas, a Senhora Branca e a Senhora
Vermelha, sobre a sua cabeça56, Ele é Hórus que se ergueu
como rei do Alto e do Baixo Egipto, soberano que unificou
as Duas Terras no Território da Muralha57. (Este) é o lugar
onde as Duas Terras se unificaram.
(15c) Então o junco e o papiro58 manifestaram-se nos
Dois Portais da morada de Ptah59. Hórus e Set estão apa-
ziguados e unidos fraternamente como dois irmãos60 .
Cessou o seu litígio61
(16c) no lugar(. .. ) estão unidos na morada de Ptah, a
«Balança das Duas Terras» onde o Alto e o Baixo Egipto
foram pesados. Esta é a terra (. ..)

49
50
O resgate de Osíris62

(17c) (. .. )de Osíris na Morada de Sokar63.


(18c) (. ..) Ísis e Néftis, (as senhoras) do pilar djed64
(19) pois Osíris mergulhou na sua água65 • Ísis (e Néftis)
içaram-no66 (. •• ) ele mergulhou.
(20a) Palavras ditas por Hórus a Ísis e a Néftis:
«Depressa, icem-no (... ) Elas trouxeram-no>>
(21a) Palavras ditas por Ísis e Néftis a Osíris:
«Nós trazemos-te(. ..)>>

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52
A fundação de Mênfis

(20b) .. . (Elas cuidaram dele) e trouxeram-no para


(terra. Ele entrou nos portais misteriosos na glória dos
senhores da eternidade) 67
(21b) (Então Osíris) veio para terra.
(22) Ele tornou-se Osíris na terra da Muralha Real, a
norte da terra que (o) fez saif68. (E o seu filho Hórus
ergueu-se como rei do Alto Egipto e do Baixo Egipto, no
abraço do seu pai Osíris e dos deuses que estão à frente e
atrás dele) 69 .
(23) Aí foi construída a Muralha ReaF0.

53
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54
A reconciliação entre Hórus e Set

(24a) Palavras ditas por Geb a Tot: ...

(27b) (. .. ) Ísis fez chegar (Hórus e Set) (...)


(28b) Palavras ditas por Ísis (a Hórus e Set):
«Vinde (. ..)»
(29b) Palavras ditas por Ísis (a Hórus e Set):
«Fizestes a paz .. . »
(30b) Palavras ditas por Ísis a Hórus e Set:
«A vossa vida será feliz quando ... » 71 •
(31b) Palavras ditas por Ísis a Hórus e Set:
«É ele que limpa as vossas lágrimas ...»

55
56
O despertar do deus criador

(48) Eis os deuses que se manifestaram em Ptah72 :


(49a) Ptah-no-grande-trono (. .. )
(SOa) Ptah-Nun, o pai que criou Aturn73 .
(Sla) Ptah-Naunet, a mãe que gerou Aturn74 •
(S2a) Ptah-o-Grande é o coração e a língua75 da Enéade76 .
(49b) (Ptah) ... .... que gerou os deuses.
(SOb) (Ptah) .. ... .. que gerou os deuses.
(Slb) (Ptah) ... ... .
(S2b) (Ptah) ...... (Neferturn) no nariz de Ré quotidia-
namente.

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58
O despertar de Ptah

(53) O coração manifestou-se sob a forma de Atum. A


língua manifestou-se sob a forma de Atum. O deus maior
é Ptah, (ele) entregou (a vida) a todos os deuses e aos seus
kau 77 através deste coração e desta língua.
(54) O coração foi onde Hórus se manifestou em Ptah,
a língua foi onde Tot se manifestou em Ptah78 • Então o
coração79 e a língua tornaram-se nos que têm poder sobre
todos os membros, segundo o ensinamento que surge80
em todo o corpo e em toda a boca de todos os deuses, de
todos os homens, de todo o gado, de todos os vermes e de
todas as coisas vivas, de acordo com o conhecimento (do
coração)81 que comanda todas as coisas que ele ama.

59
60
A criação dos deuses

(55) 82 A sua Enéade83 está diante dele: (eles) são o


coração84 e a palavra criadora de Atum, os dentes e os
lábios de Atum, o esperma e as mãos de Atum85 •
Na origem86, a Enéade de Atum formou-se a partir do
seu esperma e dos seus dedos. (Os deuses da) Enéade são
os dentes e os lábios desta boca que proclamou o nome de
todas as coisas. Dela saíram Chu e Tefnut.

61
62
(56) (Assim) nasceu a Enéade: A visão dos olhos, o
escutar das orelhas e o respirar da garganta ascendem87
diante do coração. Ele dá saída a todo conhecimento. A
língua repete o conhecimento do coração88 • (Deste modo)
ele gerou todos os deuses, e completou a sua Enéade89 • Na
verdade90, toda a palavra divina manifesta-se a partir do
conhecimento do
(57) coração e do comando da língua.

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64
A criação da vida

Ele criou os kau e enumerou91 as hemsut92 . (Eles) cria-


ram todo o alimento e todas as oferendas de acordo com a
sua palavra.
Para o que faz o que é amado ele dá vida e paz
Para o que faz o que é odiado ele dá morte e conde-
nação
Ele93 fez todos os trabalhos e todos os ofícios, as obras
feitas pelas mãos, o andamento das pernas e
(58) todo o movimento dos membros, de acordo com
o seu comando, a palavra que vem do conhecimento do
coração, (que) sai pela lingua e faz a duração de todas as
coisas. (Ele) manifestou a sua palavra94, concluiu a (sua)
obra e manifestou os deuses 95 . Ele é Ptah-Tatenen, o que
gerou os deuses.
Todas as coisas vieram dele, as provisões, os alimen-
tos para as
(59) oferendas divinas e todas as coisas boas. Ele é o
que revela a sabedoria96, o mais poderoso dos deuses. Ele
ficou verdadeiramente satisfeito. Ptah é o (deus) pode-
roso. A sua obra (abrange) todas as coisas e todas as pala-
vras divinas.

65
66
A criação do mundo

Em verdade, ele gerou os deuses, criou as cidades e


estabeleceu todas as regiões97.
Ele colocou os deuses nos seus santuários
(60), definiu as suas oferendas, fundou os seus tem-
plos e fez as imagens veneráveis. Elas são os corpos para
satisfazer os seus corações98 . Deste modo, os deuses entra-
ram nos seus corpos, feitos de todas as madeiras, de todas
as pedras, todas as espécies de argila, de todas as coisas
que germinam sobre si,
(61) Eles formaram-se no seio dele próprio99 .
Ele reuniu todos os deuses e todos os seus kau, satis-
feitos e unidos com o senhor das Duas Terras. (Ele mani-
festa-se como a deusa) do celeiro de Tatenen, «A do
grande trono», a que une o coração dos deuses na morada
de Ptah, a senhora de toda a vida, que faz viver as Duas
Terras através dela 100.

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68
O resgate de Osíris e a aclamação de Hórus como rei
universal

(62) Aconteceu que Osíris mergulhou nas suas águas.


Ísis e Néftis, içaram-no. Elas olharam por ele. Elas devota-
ram-se a ele.
Hórus comandou a Ísis e a Néftis, as (senhoras) do
pilar djed:
«Agarrai Osíris, ele vai mergulhar. »
(63) Elas deram a volta a tempo e arrastaram-no para
a margem. Ele está na terra. Ele entra nos portões miste-
riosos na glória dos senhores da eternidade, seguindo os
passos daquele que se ergue no horizonte, seguindo os
caminhos de Ré no seu grande trono.
(64) Foi protegido e escoltado em segurança pelos
seus companheiros diante dos deuses de Tatenen-Ptah,
senhor da duração. Osíris manifestou-se na terra da
Muralha Real, a norte da terra de onde viera.
O seu filho Hórus ergue-se como rei do Alto Egipto,
ergue-se como rei do Baixo Egipto, no abraço do seu pai
Osíris e dos deuses que estão à frente e atrás dele.

69
NOTAS

19 Entre as colunas 13 e 52, o texto apresenta-se dividido em duas

ou, por vezes, três partes. Por essa razão, a numeração dessas colunas
acrescenta as letras a, b ou c.
°
2 Como a escrita hieroglífica tanto podia ser redigida da esquerda

para a direita como na direcção inversa, de uma forma geral, o escriba


indicava o início do texto através dos signos animados (como aves,
répteis ou humanos): todos estão voltados para o início da inscrição. Na
Pedra de Chabaka os signos estão colocados de costas para o início do
texto, pelo que se trata de uma composição «retrógrada».
21 Lacunas resultantes desta primeira deterioração detectam-se nas

colunas 3-7. ·
22 BREASTED, <<The Philosophy of a Memphite Priest», ZAS 39

(1902), pp. 39-54. SETHE, Dramatische Texte zu Altaegyptischen Mysteriens-


pielen, J. C. Hinrich Sche Buchhandlung, Leipzig, 1928. ]UNKER, Die
politische Lehre von Memphis, Berlim, 1941. ]UNKER, Die Gõtterlehre
von Memphis, Berlim, 1940.
23 WILSON, <<The Memphite Theology of Creation••, em James Prit-

chard, The Ancient Near East: An Anthology ofTexts and Pictures, I, pp. 1-2.
24 IVERSEN, <<The cosmogony of the Shabaka Text>>, Studies in

Egyptology presented to Mi riam Lichtheim, I, pp. 485-493.


25 Trata-se de um fenómeno corrente na escrita hieroglífica que

consiste na orníssão de alguns elementos que fazem parte da normal


redacção de um texto, mas que, sobretudo na escrita em suporte monu-
mental, como é o caso, são normalmente ornítidos, exigindo assim um
grande esforço de reconstituição por parte do leitor contemporâneo.
26 Alguns excertos da tradução que aqui apresentamos podem

também ser encontrados em ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto,


pp. 25-27, onde primeiro foram publicados.
27
Na sua forma mais completa, a titulatura real é composta por
cinco nomes ou títulos: o nome de Hórus, que ~dentifica o rei na quali-
dade de Hórus vivo, o nome das Duas Senhoras que coloca a acção real
sob o signo da protecção de Nekhbet e Uadjit, as deusas tutelares do Alto
e do Baixo Egipto, respectivamente. Na inscrição hieroglífica, as deusas
são identificadas pelo abutre e pela cobra, os animais heráldicos das
Duas Terras. O título de Hórus de Ouro faz alusão à vitória de Hórus,

70
identificado com o rei, sobre Set (o hieróglifo nub, sobre o qual está
poisado o falcão Hórus, evocaria a região de Nubet, de onde Set era
originário). O nome de rei do Alto e do Baixo Egipto, inscrito no interior
de uma cartela (cuja forma é derivada do signo hieroglífico chen que
significa <<envolver», ou <<proteger») era um dos mais importantes de
toda a titulatura sintetizando poderosamente o programa politico-teoló-
gico do reinado. Por fim, o nome de filho de Ré, também envolto numa
cartela, era o único título que não era recebido na coroação do rei:
tratava-se do seu nome de nascimento e, apesar de secundário em
relação ao nome de rei do Alto e do Baixo Egipto, é em geral por este
nome, que, na bibliografia egiptológica, os faraós são mencionados.
28 A expressão lida no texto é Sebek Taui que significa <<Aquele

que fecunda as Duas Terras». Sebek, literalmente <<provocar a fertili-


dade», é também o nome do deus Sobek, habitualmente corporizado
no crocodilo.
29 Neferkaré significa <<Bondoso (ou belo) é o ka (<<poder de vida>>)

de Ré>>.
30 Algumas divindades solares constituem manifestações de dife-

rentes qualidades do astro. Enquanto Khepri corporiza o sol nascente e


Atum o sol poente, Ré é a divindade do sol do meio dia, com a plenitude
da sua força e do seu poder.
31 <<Ü que está a sul do seu muro>>, em Egípcio, resi-ieneb-ef, é um

título frequente de Ptah e alude provavelmente à sua posição geográfica


em relação ao Muro Branco, a cidade de Mênfis.
32 A titulatura é repetida simetricamente apenas com a referência a

Sokar, o deus da necrópole menfita. As versões da titulatura de Chabaka,


dispostas simetricamente, associam o faraó às principais divindades
tutelares da região menfita. Através de Ptah, o faraó associa-se com a
cidade dos vivos, ao passo que através de Sokar associa-se à necrópole,
à cidade dos mortos. Esta preocupação em envolver o faraó com as duas
facetas de Mênfis volta a detectar-se ao longo do texto e constitui uma
mensagem importante da obra.
33 Literalmente: <<Não podia ser conhecida (nen rekh en tuefJ no

início ao fim >>.


34 Literalmente: en mer, <<para o desejo>>. A expressão é ambígua e
tanto pode reportar-se à expressão anterior (melhorar o livro) como à
expressão seguinte (imortalizar o seu nome). Na versão de Lichtheim a
expressão é omitida.
35 Literalmente: au djet, <<expansão de eternidade>>.

71
36
A palavra proclamar, matj, <<proclamar>>, é de grande importância
para a datação do texto já que não é uma palavra comum no Império
Antigo. No dizer de Breasted, <<The only other occurrences of which are,
so far as I know, in the coronation inscriptions of Hatchepsut>>, em <<The
Philosophy of a Memphite Priest», ZÃS 39 (1901), p. 43. As expressões
redigidas entre parêntesis são uma reconstituição do texto a partir da
coluna 64 onde a mesma frase parece ser repetida.
37
O termo <<erguer>>, kha, possui conotações cósmicas: através dele
a coroação do faraó como rei do Alto e do Baixo Egipto era conotada com
o nascer do sol que, do mesmo modo, se erguia sobre o horizonte como
soberano da criação. Devido a esta identificação entre o faraó e o sol, a
coroação era conotada com a recriação do mundo e o faraó coroado cons-
tituía uma manifestação de glória do poder luminoso do sol. As conota-
ções solares desta expressão são mais explícitas na seguinte interpre-
tação, menos literal, da frase: <<Este (soberano) unificador brilha como
Rei do Alto Egipto e como Rei do Baixo Egipto».
38 O termo wttw, <<criar>>, é redigido com o determinativo que repre-

senta o falo. A criação aqui evocada remete-se, portanto, à actividade


sexual do deus primordial.
39
A palavra Pesedjet, <<Enéade>>, é aqui complementada com nove
signos hieroglíficos que evocam a palavra netjer, <<deus>>, aqui utilizados
como determinativos da Enéade. No entanto, os nove signos netjer
podem também ser lidos autonomamente como <<todos os deuses», sem
que esta leitura conflitue com a anterior.
40 O termo uep pode significar <<abrir>>, mas também <<separar» ou

ainda <<julgar>>. A expressão tem um forte carácter idiomático uma vez


que o julgamento aqui referido se traduz na divisão de bens tipicamente
conotada com o tribunal. Ver FAULKNER, Concise Dictionary of Middle
Egyptian, p. 59.
41 Embora o contexto se tenha perdido, pressupomos que <<ele>> se

trata aqui de Geb. Seguimos aqui integralmente a proposta de Lichtheim.


O termo chenet, <<litígio>>, remete para o vocabulário judicial usado nos
tribunais.
42 O termo besi, <<introdução>>, possui conotações religiosas e pode

ser traduzido como <<iniciação>>. <<Set iniciou-se em Su» é, portanto, uma


tradução alternativa. Na coluna 10• o texto especifica que Su é o lugar
onde Set nasceu.
43 Habitualmente a expressão é traduzida <<onde o seu pai se afogou».

Adoptamos aqui outra interpretação que prefere a tradução <<onde o seu

72
pai mergulhou», justificando que Osíris já estaria morto quando foi
lançado no Nilo. Ver GRIFFITHS, <<The frase her mu ef in the Memphite
Theology>>, ZAS 123 (1996), pp. 111-115. Daí decorre que o texto evoca a
recuperação do cadáver de Osíris das águas do Nilo e não a sua morte.
44
O nome desta localidade significa <<Divisão das Duas Terras>> e é
alusivo à sua função de fronteira . Do ponto de vista gráfico esta frase é
redigida com o recurso a um interessante jogo gráfico que se destina a
acentuar o dualismo político do país.
45 O termo <<erguer>>, aha, possui conotações políticas remetendo

para o domínio sobre uma região.


46 O nome de Aian é composto por um hieróglifo curioso que apre-

senta um peixe dentro de uma caverna, talvez uma alusão metafórica ao


cadáver de Osíris.
47 Verifica-se neste ponto do texto uma replicação aparentemente

desnecessária da frase. Esta replicação talvez reflicta a simetria gráfica


da frase anterior e pode ter sido novamente usada como um recurso para
acentuar o dualismo subjacente à repartição do Egipto.
48 O texto adquire agora características de uma composição teatral,

com indicação de personagens e respectivas falas.


49 Note-se a grande proximidade entre os termos <<julgar>> e <<sepa-

rar>>. Efectivamente Lichtheim prefere a tradução: <<I have separated


you>>. No entanto estamos perante a mesma palavra utilizada na coluna
7, uep, onde adoptámos o sentido de <<julgar>>. Por uma questão de coesão
interna manteremos aqui esse sentido, embora o outro sentido também
esteja subjacente. O sujeito do verbo é tjen, <<VÓS>> e não <<eU>>. Para dar
sentido à frase adoptámos a voz passiva, a qual, porém, não está indi-
cada no texto hieroglífico.
50 Note-se a inusitada inversão na enumeração das Duas Terras

onde regra geral o Sul é mencionado em primeiro lugar, ao contrário do


que aqui sucede. Trata-se provavelmente de uma inversão intencional
através da qual se destaca o papel de Hórus, por agora ser rei apenas do
Baixo Egipto.
51 Uma tradução menos literal seria: «Geb considerou em seu

coração, que era errado que a parte de Hórus fosse como a parte de Set>>.
52 Literalmente: uep khet ef, ou seja, <<O que abriu o seu corpo>> ou <<o

que abriu o seu ventre>>, expressão idiomática para designar <<filho


primogénito>>.
53 Trata-se de uma identificação entre Hórus e Uepuauet, uma

divindade representada habitualmente como um lobo. O seu nome

73
significa «O que abre os canúnhos>> e personifica o primogénito. Para
outras informações acerca desta divindade ver ARAÚJO, «Uepuauet>>,
em Dicionário do Antigo Egipto, p. 851.
54 <<O que abre o ventre>> é a designação do primogénito. A qualifi-

cação de Hórus como o «que abre os canúnhos>> baseia-se na identifi-


cação entre Hórus e Uepuauet, divindade que personifica o primogénito
real.
55 Trata-se da junção do nome do deus Tatenen, personificação da

colina primordial, com o epíteto de Ptah, Resi-ieneb-ef, «O que está a sul


do seu muro>>.
56 As grandes magas são as duas coroas reais, aqui designadas

como «senhoras••, portanto como divindades: Hedjet, «A Cintilante>>, é a


coroa branca do Alto Egipto, ao passo que Decheret, «A Vermelha >>, é a
coroa do Baixo Egipto. As coroas personificam as divindades tutelares
da monarquia.
57 Trata-se de uma nova alusão a Mênfis, a «Muralha cintilante>>.
58 O junco e o papiro são as plantas heráldicas do Alto e do Baixo

Egipto, respectivamente.
59 Trata-se provavelmente de uma alusão a um santuário duplo

existente no templo de Ptah, dedicado às divindades tutelares do Alto e


do Baixo Egipto.
60 O signo T22, aqui duas vezes usado, tem simultaneamente a

leitura de senu, «dois>>, e de senui, «dois irmãos>>, ou ainda sensen, «fra-


terno••. Na nossa tradução optámos por compilar todos estes sentidos,
uma vez que todos eles estariam provavelmente implícitos na escolha
dos hieróglifos em questão e que o termo «fraterno» não consegue, por
si só, expressar.
6! A palavra usada atum, também pode ser traduzida como
«realizar>>, «cumprir>> ou mesmo «deixar de existir». O significado da
expressão é muito amplo. Qualquer das traduções é possível: «Cumpriu-
-se o seu litígio••, ou a que adoptámos no texto, «cessou o seu litígio>>.
62 O texto evolui, agora fragmentariamente, para um novo topos,

explorando o tema do resgate do corpo de Osíris das águas do Nilo. O


texto é repetido nas últimas colunas da Pedra de Chabaka.
63 Sokar é o deus tutelar da necrópole menfita.
64 Literalmente: fsis, como pilar djed e Néftis como pilar djed. Trata-

-se de manifestações muito particulares das deusas que se associam a um


s.ímbolo osiriaco que, em Mênfis, está relacionado com o deus Ptah: o
pilar djed.

74
65
A expressão faz alusão à água de Ptah, ou seja, à água da região
de Mênfis, ver GRIFFITHS, «The frase her mu ef in the Memphite
Theology», ZAS 123 (1996), pp. 111-115.
66 O verbo utilizado maut pode ser interpretado como a actividade

característica das carpideiras num velório ou como a acção feita através


do recurso a um poste maut. Muitos tradutores têm optado pelo termo
«cuidar», ou <<velar>>. Atendendo ao contexto aquático, parece-nos que o
verbo diz respeito à acção de salvamento do cadáver de Osíris através do
recurso a um poste maut.
67 A reconstituição do texto é feita a partir das colunas 62-64, onde

o texto se volta a repetir.


68
O corpo de Osíris flutuou ao longo do rio, para norte, até ser
recolhido em Mênfis.
69 Nova porção de texto reconstituída a partir das colunas 62-64.
70
Para além de <<construir>>, o verbo qd pode também significar
<<envolver>> ou <<contornar>> (ver FAULKNER, A Concise Dictionnary of
Middle Egyptian, p. 282). <<Contornar a Muralha Real>> é urna tradução
possível para este trecho.
71
O termo nedjem significa <<doce>> ou <<suave>> e expressa a ideia de
felicidade.
n O termo kheper, <<manifestar>>, é decisivo para compreender a
formação destas divindades. O texto não evoca propriamente a criação
de novas divindades mas sim o aparecimento de novas <<manifestações>>
divinas da divindade primordial. Com estas oito manifestações de Ptah,
o redactor menfita formula urna <<Ógdoade menfita>>, inspirando-se
provavelmente no modelo hermopolitano.
73 Literalmente: <<O pai que fez Atum>>.
74
Na nossa versão utilizaremos diferenciadamente os vocábulos
<<gerar>> e <<criar>>. O termo <<gerar>>será utilizado para traduzir a palavra
més, ao passo que <<criar>> será utilizado para traduzir o termo ir que
significa literalmente <<fazer>>.
75 O coração é designado pelo termo hati o que contradiz a inter-

pretação habitual deste termo, conotado com a víscera cardíaca, sendo


normalmente o termo ib reservado para designar o coração no sentido de
consciência. Esta tendência, que se verifica na literatura sapiencial, não
se aplica nos textos religiosos, nem tão pouco nos textos anatómicos.
Quando tido no plano da consciência, o termo hati designa a vontade, a
consciência volitiva ou, se preferirmos, o desejo. Ver SOUSA, Iniciação e
Mistério no Antigo Egipto, pp. 147-153. Ver também idem, <<O simbolismo

75
dos amuletos cardíacos no antigo Egipto>>, Cadmo 20 (2010), pp. 113-139.
A língua, conotada com o poder da palavra, figura aqui corno a evocação
do princípio criador que se torna activo no mundo. Assim sendo, a
criação é espoletada pelo desejo do coração e concretizada pela palavra
enunciada pela língua.
76 Trata-se de uma alusão a toda a criação, evocada pela Enéade, a

totalidade dos deuses criados por Ptah. De acordo com o texto, o desejo
e a palavra criadores de Ptah estão contidos em todas as criaturas.
77 A frase tem urna forte afinidade gráfica com a coluna seguinte,

devido ao paralelismo entre Hórus e Tot e o coração e a língua, respecti-


vamente. Apesar disso, o resto da coluna 53 foi deixado em branco sem
que seja perceptível a razão para o desperdício de tão grande superfície
de escrita, sobretudo numa porção de texto tão carregada corno é esta.
Urna explicação para esta interrupção pode detectar-se no arranjo
gráfico da inscrição já que o início da coluna 54, tal corno a coluna 53,
parece jogar com o paralelismo gráfico produzido pela duplicação do
signo kheper. Através deste paralelismo gráfico tornava-se ainda mais
explicito o paralelismo semântico entre Hórus e o coração, por um lado,
e entre Tot e a língua, por outro.
78 A frase apresenta um paralelismo gráfico entre os termos <<Hórus>>

e <<Tot>>e os termos <<coração>> e <<língua>> que terrnínam a coluna anterior.


Por essa razão, para dar à nossa tradução a visibilidade dos conceitos
subjacentes optámos por repetir a alusão ao coração e à língua que está
omissa do texto hieroglífico. Os jogos gráficos da escrita hieroglífica, por
seu turno, tornavam bastante óbvia a dependência desta frase em
relação à anterior, razão pela qual os termos foram omitidos.
79 O termo aqui usado para designar o coração parece, à primeira

vista, ser a palavra ib. No entanto, este signo não é usado com o seu valor
fonético, mas sim corno deterrnínativo da palavra hati. Devido ao pouco
espaço disponível na inscrição, o termo hati foi redigido abreviadamente,
tal corno aconteceu com o termo <<língua>>.
80 Literalmente: Uentef em khenty, <<O que existe à dianteira >>. Trata-

-se de uma expressão idiomática equivalente a <<surgir>>. Certos tradu-


tores consideram Ptah o sujeito desta frase. Preferimos aqui considerar
que é o ensinamento (sebá) do coração o sujeito da oração.
81 O termo usado, kaat, <<conhecimento>>ou <<plano>>, é consistente-

mente associado ao coração, hati, ao longo do texto razão pela qual intro-
duzimos aqui a referência explicita ao coração. Esta clarificação ajuda-
-nos a entender que o texto faz aqui alusão a um conhecimento primor-
dial que emanou do coração do criador.

76
82 As colunas 53 e 54 centram-se na equivalência entre o coração e

a língua de Ptah com Atum, o deus solar heliopolitano. As colunas 55 e


56 apresentam agora a Enéade heliopolitana como obra do coração e da
língua de Ptah. A esta repartição temática não está fortuito o arranjo
gráfico dos signos. Repare-se que as colunas 53 e 54 começam com uma
dupla fileira de signos kheper (alusivos ao coração e à língua de Ptah) ao
passo que as colunas 55 e 56 se iniciam com o termo pesedjet, «Enéade».
Do ponto de vista gráfico as colunas 53 e 54 constituem uma transição
entre o universo criado (a Pesedjet heliopolitana das colunas 55 e 56) e o
mundo incriado inscrito na linha 48 (<<deuses que se manifestaram em
Ptah») e à qual as colunas 49-52 estão subordinadas. Estas considerações
de ordem gráfica alertam para o carácter sagrado da escrita nesta secção
do texto.
83
Trata-se da Enéade de Ptah. Os nove deuses de Heliópolis,
incluindo Atum, são aqui considerados emanações de Ptah.
84 Tal como em outras ocorrências do termo coração ao longo deste

trecho narrativo, não se trata aqui da palavra ib, mas sim do determina-
tivo da palavra hati, que foi utilizado devido ao pouco espaço disponível
na inscrição.
85 Parte do significado da frase depreende-se pelos jogos gráficos.

Não podendo socorrer-nos deste recurso tivemos necessidade de expli-


citar te.r mos que são omissos no texto hieroglífico.
86 Segue-se um termo obscuro, ipa. Sethe considera-o um erro do

escriba (SETHE, Dramatische texte, p. 58). Bilolo, por outro lado, consi-
dera-o uma forma derivada de pai, com o sentido «ter feito no passado»
(ver BILOLO, Le Createur et la Creation dans la Pensée Memphite et Amar-
nienne, p. 37, nota). Sobre esta forma ver GARDINER, Egyptian Grammar,
§ 484, p. 395. Na nossa tradução optámos por esta segunda interpretação
e traduzimos este termo pela expressão «na origem>>.
87 O termo usado, sar, significa literalmente «fazer ascender>> ou

«fazer erguer>>. O determinativo aqui utilizado é o da escada cósmica (0


41), evocativo dos lugares altos, o que contribui para cunhar a expressão
com uma ascensão para um lugar sagrado.
88 Esta sequência é fundamental para clarificar a representação do

coração neste texto. Sobretudo nos textos religiosos e mágicos a evocação


sequencial dos dois termos cardíacos traduz normalmente uma repar-
tição de atributos ou funções. Ao nível da consciência o termo ib está
normalmente conotado com a sabedoria, ao passo que o termo hati está
conotado com actividade volitiva e a consciência de si mesmo. Na

77
sequência da Pedra de Chabaka o dualismo cardíaco dos termos ib e hati
foi substituído pelo dualismo coração-língua. Do coração hati emana o
«conhecimento>> que é enunciado pela língua através da palavra. As refe-
rências ao coração representam-no como uma entidade singular, quer
seja evocado pelo determinativo ou pela redacção plena do termo hati. A
prevalência do termo hati é resultante da <<teologia da vontade» e assi-
nala o triunfo da piedade pessoal no domínio da espiritualidade egípcia.
O texto da Pedra de Chabaka consiste, ele próprio, na formulação plena
da teologia da vontade no plano cosmogónico.
89 A expressão joga com a semântica das palavras para criar uma
identificação entre Atum e a Enéade. A razão para esta identificação
prende-se com o significado do termo «Atum», «O que se completou».
Tem psedjet ef, que significa «completa a sua Enéade» ou «termina a sua
Enéade», pode assim ser visto como uma afirmação teológica mais
complexa, «Atum é a sua Enéade», estabelecendo uma identificação
entre o criador e a obra criada.
90 A partícula sek é utilizada como um equivalente de isetj, «verda-

deiramente», ou «em verdade», correspondendo a um arcaísmo da lingua-


gem típico do Império Antigo (ver GARDINER, Egyptian Grammar, § 230).
91 O verbo tjeni pode significar «enumerar» ou «distinguir>>. Em

qualquer dos casos está subjacente a ideia de organização, mais do que


a criação de algo que não existia previamente.
92 De um modo menos literal mas mais compreensivo podemos

dizer: «Ele criou os princípios masculinos (kau) e os princípios femininos


(hemsut) que nutrem e velam pela criação». Os kau são o poder vital
subjacente a qualquer criatura viva ou mesmo inerte (certos objectos
podem possuir um ka e o mesmo se passa com cidades e edifícios). As
hemsut, por outro lado, são frequentemente encaradas como o equiva-
lente feminino dos kau. O determinativo utilizado, repetido três vezes, é
o emblema da deusa Neit que simboliza a colina primordial e evoca a
associação de Neit à cheia. Assinala a protecção destas deusas sobre a
vida e o nascimento (ver KAPLONY, «Hemuseb>, Lexikon der Agypto/ogie,
II, col. 1117) também em SETHE, Dramatische Texte, pp. 61-64. Seguimos
aqui a versão mais literal de Sethe que conserva as designações egípcias
de ka e hemsut. Na versão de Lichtheim a autora prefere traduzir estes
termos por «faculties» e «qualities», respectivamente.
93 O pronome dependente su, «ele», aparece frequentemente neste

texto antes da forma s!l.m.f, frequente em textos mais arcaicos. Aqui está
outra característica arcaizante do texto.

78
94 Ao traduzir esta passagem tivemos em consideração o modus

operandi da criação de Ptah, baseado na palavra. <<Formar o que é dito>>,


«manifestar o discurso» são traduções mais literais, já que djed significa
«falar», ou «discurso». A maior parte dos autores, no entanto prefere
traduzir esta passagem como: «aconteceu ser dito (a respeito de Ptah)»
(WILSON, «The Memphite Theology of Creation>>, em James Pritchard,
The Ancient Near East: An Anthology of Texts and Pictures, I, p. 1.)
95 Através de um jogo de palavras centrado no termo kheper,

«formar>> ou «manifestar>>, a frase estabelece um paralelismo entre os


termos «deuses>> e «palavra>>, o que é muito revelador acerca da identifi-
cação que se fazia entre o poder da palavra e o poder divino.
96 O verbo gem, «encontrar>>, também autoriza a tradução «revela a

sabedoria» que aqui adoptámos. Tal como o hieróglifo denota pela


redacção da ave que revolve o solo com o bico (G 28), trata-se da acção
de revelar o que estava oculto, um atributo afinal próprio da revelação
da sabedoria.
97 O termo usado é sepaut, também traduzido por «regiões administra-

tivas>>, ou «províncias», correspondente ao grego nomoi (singular: nomos).


98 As imagens divinas, ou seja, as estátuas de culto, são aqui

evocadas como obra de Ptah. A identificação enraíza-se na tradição


menfita, já que efectivamente desde tempos remotos, Ptah era visto
como o deus que tutelava as actividades artesanais. A confecção de está-
tuas divinas estava assim sob a sua protecção. As estátuas de culto são
vistas como «os corpos para satisfazer os desejos>>, também em conso-
nãncia com a visão tradicional do culto divino que envolvia as estátuas
sagradas com os cuidados naturais para o corpo humano: lavar,
perfumar, vestir, alimentar, etc. Daí elas afigurarem-se como veículos
para satisfazer os «corações», ou «desejos>>.
99 Trata-se de uma alusão à origem dos materiais de que são feitas

as imagens divinas: todas as matérias-primas «brotam>> do corpo do


criador e são parte do seu próprio corpo. As estátuas de culto eram assim
vistas como emanações de Ptah, facto que aqui é ressalvado para eviden-
ciar o carácter universal de Ptah.
100 Esta frase é constituída por um conjunto de epítetos femininos

que qualificam Ptah como uma divindade andrógina. Não pudemos ser
tão minimalistas na tradução como é nosso hábito já que os termos utili-
zados são masculinos em português, mas femininos no original, como
«celeiro>>, «grande trono>>, pelo que tivemos de introduzir a referência à
«deusa », inexistente no texto.

79
2. COMENTÁRIO

O traço mais distintivo na estrutura do «Livro das


Origens» consiste na demarcação muito pronunciada de
duas composições literárias, uma constituída por uma
acção teatralizada, centrada no mito de Hórus, e outra de
carácter narrativo onde se entoa um hino de louvor a Ptah.
Para melhor compreender a sua especificidade vamos pois
analisar cada uma destas composições isoladamente.

2.1. A peça dramática

O julgamento de Hórus e Set

O texto inicia-se com a encenação das vicissitudes


que levaram à unificação das Duas Terras, o Alto e o Baixo
Egipto, sob a égide de um único monarca. Tal como numa
peça de teatro, as falas dos vários intervenientes na acção
estão claramente identificadas e encadeadas de modo a
serem interpretadas por vários «actores» que dariam voz
a personagens diferentes. Estes elementos formais indi-
cam que o texto constituía um «guião» para a celebração
de um ritual encenado no templo de Ptah para evocar o
evento mítico fundador de Mênfis: a unificação das Duas
Terras sob o comando de Hórus, o deus tutelar da realeza.
De modo um tanto paradoxal, embora a finalidade do
texto tenha sido a de explicar e fundamentar a importân-
cia política de Mênfis, é o pensamento teológico da cidade

81
de Heliópolis que, na realidade, predomina em toda a
composição, uma vez que a contenda entre Hórus e Set
constitui um importante ciclo mitológico da complexa
teologia heliopolitana. Para contextualizar as alusões do
texto a estes eventos míticos impõe-se uma breve descri-
ção do referido mito heliopolitano.
Modelo do rei bom e civilizador, Osíris foi assassi-
nado pelo invejoso irmão, Set, o deus da discórdia que
personificava os poderes letais do deserto. Na sequência
desse crime, Hórus, o filho e herdeiro de Osíris, teria de
afirmar a sua legitimidade no tribunal divino de
Heliópolis para reivindicar o seu direito a ocupar o trono
do Egipto. Desencadeou-se então a contenda que opôs
Hórus e Set, dado que o odioso assassino de Osíris se opu-
nha ferozmente às pretensões do herdeiro legítimo do
deposto rei divino do Egipto.1°1 Apesar de todos os obstá-
culos, Hórus viu enfim proclamada a sua legitimidade
para ser coroado rei das Duas Terras.
A contenda mítica que opunha Hórus e Set ilustrava
a fragilidade e a força da verdade que, apesar dos obstá-
culos e das intrigas, conseguia finalmente impor-se a
todos e garantir a reposição da justiça e da ordem natural
das coisas. Ao triunfar sobre Set, Hórus tornava-se a per-
sonificação do bem e era nessa qualidade que constituía o
paradigma do rei vivo. Ao seguir este arquétipo divino, o
faraó deveria assegurar a vitória do bem sobre o mal e
garantir o domínio da luz sobre as trevas. Em suma, o
mito ilustrava a vitória da vida sobre a morte e combi-
nava indissociavelmente a ordem cósmica com a ordem
política.

101 Sobre o conflito entre Hórus e Set ver GRIFFITHS, The Conflict of
Horus and Seth: From Egyptian and Classical sources, 1960.

82
Tendo este pano de fundo subjacente, o texto do
«Livro das Origens» descreve a trama em redor da resolu-
ção legal do conflito entre Hórus e Set. De facto, a disputa
entre estes deuses não foi resolvida pela força, mas sim
pela intervenção de um tribunal divino composto pela
Enéade heliopolitana, ao qual presidia Geb, o deus pri-
mevo da terra. Foi ele que convocou a Enéade (7).
A Enéade está evocada no texto através de nove sig-
nos netjer, «deus», o que, na escrita hieroglífica, também
pode significar «a totalidade dos deuses»102 . Esta identifi-
cação entre a Enéade e «todos os deuses» está sempre
latente ao longo do texto. Era portanto toda a comunidade
de deuses, presidida pelo deus da terra, Geb, que podia
deliberar sobre a herança que caberia aos dois litigantes.
Numa primeira fase, Geb optou por atribuir a Hórus
a região do Delta, o Baixo Egipto, e a Set todo o Vale do
Nilo, o Alto Egipto, baseando esta repartição na origem
geográfica dos litigantes (8). No entanto, após a primeira
deliberação, o velho deus da terra reconsiderou, parecendo-
-lhe injusto privar Hórus da totalidade da sua herança que
era o conjunto das Duas Terras. Geb corrigiu então a deci-
são inicial e atribuiu a Hórus o poder sobre o Norte e o Sul
(10c-14b).
Do ponto de vista simbólico, a reunião das Duas
Terras significou um novo começo para o mundo, uma
vez que erradicou a situação de injustiça que fora origi-
nada com o assassinato de Osíris. Ao repor a justiça e a
ordem natural das coisas, dava-se um novo início, todas

! 02 O plural era frequentemente feito com a repetição do sinal hie-


roglífico usado para redigir o singular do termo em questão. Se três sig-
nos bastavam para redigir <<deuses>>, nove constitui uma redundância
destinada a intensificar a associação entre a Enéade e toda a colectivi-
dade de deuses.

83
as possibilidades ficavam de novo em aberto. É por essa
razão que, ao subir ao trono, Hórus se identifica com
Tatenen, a manifestação primordial de Ptah (13c).
Com a subida ao trono de Hórus e a unificação das
Duas Terras dá-se um acontecimento extraordinário: as
duas coroas (a coroa branca do Alto Egipto e a coroa ver-
melha do Baixo Egipto) brotam magicamente da cabeça
de Hórus, ao mesmo tempo que o junco e o papiro (as
plantas heráldicas do Alto e do Baixo Egipto, respectiva-
mente) brotam da terra diante dos Dois Portais do templo
de Ptah. O aparecimento mágico destes símbolos assinala
que um «milagre>> ocorreu: Hórus, o rei do Egipto, redi-
mia o mundo através da reposição da justiça e da abolição
do mal e da morte. Corno resultado, o conflito que opunha
Hórus e Set cessou (16c).
Esta reconciliação traduziu-se na associação das duas
divindades rivais, Hórus e Set, ao exercício do poder real.
Embora envolto numa aura fortemente negativa, o deus
Set não foi diabolizado nem a sua confrontação com
Hórus foi considerada numa óptica estritamente mani-
queísta. Embora o rei se identificasse com Hórus, Set tam-
bém participava da acção real exercendo a sua acção malé-
fica contra os inimigos do Egipto103 . Até urna força letal
corno a de Set podia ser utilizada, desde que aplicada para
a defesa do Egipto. Não foi senão muito tardiamente (já ao
longo da Época Baixa) que Set começou a ser encarado

103
No entanto, na Época Baixa e sobretudo na Época Greco-Rornana,
as conotações negativas de Set acabaram por votá-lo a urna diabolização
que se traduziu numa autêntica perseguição ao seu nome e representa-
ções o que, por sinal, está bem documentado na Pedra de Chabaka. Com
efeito o hieróglifo utilizado para designar o deus foi criteriosamente apa-
gado ao longo do texto, incluindo as passagens aqui comentadas (ver
colunas 7, 8, 9 e 15).

84
como a encarnação do mal absoluto. Só então o seu culto
foi diabolizado e os seus vestígios apagados. Curiosa-
mente, a Pedra de Chabaka apresenta as marcas desta
perseguição tardia ao culto de Set pois o nome do deus foi
cuidadosamente martelado ao longo da inscrição.

A entronização de Osíris no mundo inferior

Depois da reconciliação entre Hórus e Set, o texto


evolui em seguida para a região mais danificada do bloco
e os poucos indícios que aí restaram do texto original
apontam para uma mudança temática. Os pequenos frag-
mentos de escrita hieroglífica preservados indicam que o
teor da acção continua a centrar-se em torno do mito
heliopolitano, mas desta feita a sua atenção desloca-se
para Osíris e para as circunstâncias do seu funeral. Devido
à destruição do texto, abordaremos separadamente cada
um dos fragmentos sobreviventes de modo a estimar o
seu conteúdo original. O primeiro destes fragmentos
evoca a necrópole menfita, a «morada de Sokar» (17c).
Nesta coluna Osíris é associado com o deus da necrópole
menfita, Sokar. Tal como nas colunas anteriores Hórus (o
modelo do rei vivo) tinha sido associado ao templo de
Ptah, traçava-se aqui a associação de Osíris (o arquétipo
do rei morto) à necrópole de Sokar. Hórus, o rei vivo,
sediava os seus poderes em Mênfis, ao passo que Osíris, o
rei morto, emanava o seu poder a partir de Sakara104 . As

104 A designação actual d esta região, Sakara, denota curiosamente

uma forte proximidade com o nome do deus Sokar. Embora o nome


desta região pareça derivar do nome de uma tribo que em tempos aí
vivia (os Beni Sokar), a hipótese de constituir uma reminiscência do
antigo nome do deus também não é de afastar. O nome da região na

85
duas facetas da realeza ficavam
assim ligadas a Ptah e Sokar, as
divindades locais de Mênfis.
Em seguida Ísis e N éftis são
evocadas na estranha qualidade de
manifestações do pilar djed:

(18c) (. .. ) Ísis e Néftis, (as


senhoras) do pilar djed.

Embora o pilar djed fosse um símbolo característico


da iconografia de Osíris, na região menfita este signo
foi também associado à manifestação luminosa de Ptah.
A invulgar associação destas deusas ao pilar djed enqua-
dra-se, portanto, no âmbito das conotações luminosas e
regeneradoras que este símbolo possuía no âmbito especí-
fico da tradição menfita 105. Assim, através da sua mani-

Antiguidade era Ro-Setau, expressão que se estendia a toda a necrópole,


de Dachur a Guiza.
lOS DJIK, «The Symbolism of the Djed Pillar>>, OMRO 66 (1986),
p . 16. Veja-se que a manifestação de Ísis, através do pilar se perfila na
continuidade da manifestação do próprio Ptah através do djed chepsés.
Trata-se, portanto, de um simbolismo regional conotado com o poder da
luz para assegurar a união entre os mundos. Provavelmente estes pilares
sagrados, tidos como manifestações de Ísis e Néftis, tinham uma exis-
tência concreta no complexo sagrado de Ptah e eram alvo de culto. As
fontes helenísticas referem que em Mênfis se erguia um pilar inscrito
com hinos de Ísis e cuja veneração, tanto por Egípcios como por Gregos
era grande. Ver WITT, Isis in the Ancient World, p. 102. Reflexo desta
manifestação menfita de Ísis como «Senhora da Luz>> pode detectar-se
ainda hoje nos cultos marianos da Virgem do Pilar, sendo provavelmente
o de Segóvia um dos seus maiores expoentes sobreviventes.

86
festação corno pilar, as deusas Ísis e
Néftis, são explicitamente enuncia-
das corno emanações do poder
luminoso de Mênfis para instaurar
a vida. Estabelecia-se assim um
jogo entre as margens férteis do
Nilo, personificadas nas deusas, e as
águas do rio conotadas com Osíris.
O resgate de Osíris joga portanto
com a relação simbólica entre a
terra fértil e as águas do Nilo, para
valorizar o poder de fertilidade da
região rnenfita. Este poder manifesta-se simbolicamente
no resgate, que estas deusas asseguram, do cadáver de
Osíris das águas do Nilo (19). A expressão «Üsíris mergu-
lhou na sua água» usada neste contexto tem sido habi-
tualmente traduzida corno «Üsíris afogou-se na sua
água». Esta distinção é importante na medida em que ao
invés de evocar o afogamento de Osíris, a passagem pode
fazer referência ao resgate do seu cadáver das águas do
Nilo106 e que, por causa disso, torna a região de Mênfis
especial. A expressão «na sua água» aponta para a água
de Ptah, ou seja, o leito do Nilo que percorre a região de
Mênfis. A intervenção das deusas permitiu, deste modo, o
resgate de Osíris e o seu enterramento na necrópole rnen-
fita (20b-21b).
As colunas 22 e 23 atribuem a fundação de Mênfis ao
facto de aí ter sido sepultado Osíris. A proximidade com o
túmulo do deus dos mortos justificava a eleição de Mênfis

106 Alguns autores preferem a expressão <<onde o seu pai mergu-

lhou>>, justificando que Osíris já estaria morto quando foi lançado no


Nilo, ver GRIFFITHS, <<The frase her mu ef in the Memphite Theology>>,
ZAS 123 (1996), pp. 111-115.

87
como sede do poder real e a elevação do seu estatuto a
capital das Duas Terras.
Entre as colunas 24 e 35 conservaram-se alguns hie-
róglifos perto da zona central que nos dão um vislumbre
acerca do tema abordado no texto hieroglífico perdido.
Dois discursos podem ser identificados: um deles é pro-
nunciado por Geb e dirigia-se a Tot, ao passo que o outro
é pronunciando por Ísis e era dirigido a Hórus e Set.
O tema da reconciliação parece ser retomado, já que a
deusa salienta os benefícios que a reconciliação trouxe
consigo. É portanto provável que, até à coluna 35, o tema
do texto continuasse a ser o da unificação do Egipto sob o
comando de Hórus.
Pelo menos partir da coluna 48 o texto é claramente
dominado pelo hino de louvor entoado a Ptah que se pro-
longa até à coluna 61. Então, na coluna 62, o texto mitoló-
gico é abruptamente retomado, curiosamente repetindo
um trecho que já havia sido redigido nas colunas 17c-23.
Graças a esta repetição podemos divisar o texto que
outrora ocupava estas lacunas. Ao resgatar Osíris das
águas, Ísis e Néftis, sob a forma luminosa de pilar, «tra-
zem-no para terra». É assim que Osíris «entra no palácio e
se reúne aos deuses de Tatenen». Este palácio não é senão
o monumento funerário de Osíris, o modelo mítico dos
complexos funerários reais, que o texto faz situar na
necrópole menfita. Seguindo o trajecto do Sol no mundo
subterrâneo, Osíris «entrou nos portões misteriosos» e
seguiu os «caminhos de Ré», ou seja, o caminho que o
deus Sol realiza no Além, ao longo da noite. Ao associar-
-se ao percurso do Sol, Osíris realiza, por fim, o seu domí-
nio sobre o mundo inferior, sobre o «Grande Trono», a
deusa da criação que simboliza o poder de fertilidade do
Egipto. O funeral de Osíris culmina, deste modo, numa
aclamação real que se desenrola no mundo inferior, onde

88
Osíris, o rei morto, sobe ao <<Grande Trono», o modelo
arquetípico do trono terreno. Uma vez entronizado sobre
a criação, Osíris, o rei morto, continua a velar pelo Egipto,
conferindo-lhe fertilidade e abundância de alimentos.
Se Hórus subia ao trono no templo de Ptah, fá-lo-ia
com a protecção de Osíris que presidia na necrópole men-
fita. Ficava assim estabelecida a continuidade do poder
real e a sua transmissão de pai para filho. O poder real
pressupunha, deste modo, a participação do rei morto
que, na sua pirâmide continuava a velar pela fertilidade
do Egipto. No plano espacial, a sede dos poderes do rei
morto manifestava-se em Pesecheti Ta ui (<<A Divisão das
Duas Terras»), o nome dado à região menfita onde se
situavam as necrópoles reais no Império Antigo. Cada um
dos túmulos reais afigurava-se assim como uma morada
de eternidade dos reis transformados em Osíris. Era sobre
estes veneráveis túmulos, evocativos da presença de
Osíris, que o poder do Hórus vivo se alicerçava 107 .
Por fim, em estreita aliança com o seu pai, Hórus é
apresentado em apoteose, identificado com o Sol nascente
que emerge sobre as Duas Terras para garantir a ordem
cósmica.

107 Esta identificação é fulcral para admitir a remota antiguidade

do texto dramático do <<Livro das Origens» uma vez que apenas no


Império Antigo é que os faraós se fizeram sepultar nesta região. O texto
dramático parece assim ter sido redigido num tempo em que a região
menfita era ainda utilizada como necrópole real, como foi o caso no
Império Antigo. Outros dados, no entanto, admitem que mesmo o texto
dramático terá sido alvo de uma reelaboração ao longo do Império
Novo, como é o caso da enumeração das deusas Ísis e Néftis na quali-
dade de pilar-djed, um motivo iconográfico que só se difundiu na região
menfita no Império Novo.

89
O seu filho Hórus ergueu-se como rei do Alto Egipto,
ergueu-se como rei do Baixo Egipto, no abraço do seu pai
Osíris e dos deuses que estão à frente e atrás dele.

O hieróglifo kha, <<erguer», utilizado também com o


sentido de «aparecer em brilho», representa o disco solar
ainda parcialmente oculto pelo horizonte, coberto por um
halo de luz. O termo «erguer» possui, portanto, claras
conotações com o nascer do Sol. É, sem dúvida, um por-
tentoso fínale para esta obra monumental e que resume
nesta imagem poderosa o essencial da sua mensagem
político-religiosa: o faraó, identificado com Hórus, era o
garante da ordem e o agente do criador no mundo. A evo-
cação de Hórus como rei do Alto e do Baixo Egipto traduz
simbolicamente o início de uma nova era. Através deste
jogo dualista estava também implícito o poder de Hórus
sobre toda a criação pois as Duas Terras simbolizavam
todo o universo criado: o rei do Alto e do Baixo Egipto era,
por extensão, o soberano de toda a criação. A manifesta-
ção triunfante de Hórus como rei do Alto e do Baixo
Egipto narrada pelo texto consiste, no fim de contas, na
tradução dramatizada do motivo iconográfico da união
das Duas Terras, o sema-taui, representada através do
enlace das plantas heráldicas de cada uma das regiões do
Egipto (o junco e o papiro).

90
R

Ramsés ITI sobre o sema-taui, o símbolo da união das Duas Terras. Os deuses
Hórus e Tot enlaçam as plantas heráldicas do Alto Egipto (o junco) e do Baixo
Egipto (o papiro), simbolizando a unj ficação das Duas Terras ga ra ntida pela
coroação do novo faraó. Veja-se a presença do disco solar sobre o faraó e as duas
serpentes coroadas com as coroas do Alto e do Baixo Egipto. Templo de Medinet
Habu. XX dinastia.

91
2.2. A narrativa cosmogónica

O mito teatralizado e a narrativa cosmogónica apre-


sentam uma descontinuidade evidente. Embora o con-
traste entre estas duas composições não seja tão claro no
início do texto cosmogónico, dado que se perdeu o texto
redigido nas colunas imediatamente anteriores, no final
desta composição é perfeitamente evidente a justaposição
directa e sem solução de continuidade com a peça mito-
lógica. As personagens míticas envolvidas, a forma e o
género literário utilizado, bem como a própria intenciona-
lidade de cada uma das composições, são profundamente
distintas numa e noutra parte do texto sobrevivente.
A mudança de personagens é o aspecto mais visível
deste contraste entre os dois textos: enquanto a peça dra-
mática se centrava na contenda entre Hórus e Set, o texto
cosmogónico centra-se agora em Ptah. O género literário
adoptado também é distinto. A acção dramática, típica da
encenação de um ritual, dá lugar a um hino de louvor que
narra a criação do mundo.

O despertar do deus criador

Até esta parte do texto, apenas duas alusões haviam


sido feitas ao deus menfita:

(1) (0 Rei do Alto e do Baixo Egipto) é Ptah, Aquele


que é proclamado pelo grande nome (Tate)nen>>.

(13c) Ele é o soberano unificador desta terra, procla-


mado pelo grande nome: Tatenen «O que está a sul do seu
muro>>, Senhor da Eternidade.

92
Embora em segundo plano no texto mitológico, o
perfil de Ptah como soberano último da criação já aí se
recortava. Na narrativa cosmogónica, porém, Ptah torna-
-se no verdadeiro protagonista da criação. No início, Ptah
é evocado sob a forma de uma Ógdoade, ou seja, uma
totalidade de oito deuses:

(48) Eis os deuses que se manifestaram em Ptah:


(49a) Ptah-no-grande-trono (... )
(SOa) Ptah-Nun, o pai que criou Atum.
(Sla) Ptah-Naunet, a mãe que gerou Atum.
(S2a) Ptah-o-Grande é o coração e a língua da Enéade.
(49b) (Ptah) ....... que gerou os deuses.
(SOb) (Ptah) ....... que gerou os deuses.
(Slb) (Ptah) ...... .
(S2b) (Ptah) ...... (Nefertum) no nariz de Ré quotidiana-
mente.

Das oito divindades desta Ógdoade menfita, apenas


se conservaram quatro. A primeira é denominada de
«Ptah-no-grande-trono». A expressão egípcia, Ptah em set
ueret qualifica Ptah como soberano da criação. O termo
trono, set, constitui, na verdade, o próprio nome da deusa
Ísis que, de facto, personificava o trono do Egipto sobre o
qual reinava o faraó. Este «grande trono» constituía, na
verdade, a criação108. A segunda e a terceira manifestação
de Ptah associam o demiurgo menfita a duas divindades
hermopolitanas, Nun e Naunet. Através da identificação
com este casal divino que personificava as águas do

108 O motivo do sema-taui, frequentemente representado nos tronos

faraónicos, evoca a união das Duas Terras e, por extensão de significado,


a criação do mundo. O trono sobre o qual reina o faraó seria, deste modo,
a própria criação.

93
oceano primordial, Ptah definia para si mesmo uma natu-
reza andrógina, manifestando-se simultaneamente como
macho e fêmea, pai e mãe do deus Sol.
A quarta manifestação de Ptah identifica o deus como
o coração e a língua da Enéade, ou seja, como a inteligên-
cia cósmica (coração) e o poder de realização (língua) de
todos os deuses (Enéade). Como sabemos, na tradição
menfita, o coração e a língua são os obreiros da criação e
são aqui atribuídos, não a Ptah, mas à sua obra, a Enéade
(a totalidade dos deuses). Através desta atribuição para-
doxal, procurava-se, desde logo, afirmar que a criação
estava, desde o início, contida no criador.
O intuito de caracterizar Ptah como um conjunto de
oito divindades prende-se com a intenção de o identificar
com a conhecida Ógdoade de Hermópolis que personifi-
cava as forças do caos primordial109 . Na verdade, esta
identificação fazia-se de um modo quase natural, uma vez
que Ptah era um deus do mundo inferior, da terra e das
forças telúricas da regeneração. Todos estes elementos,
estando presentes no ideário do caos primordial, foram o
ponto de partida para elaborar uma versão menfita da
Ógdoade hermopolitana.
Os elementos da Ógdoade menfita, como o texto
indica, «manifestaram-se» em Ptah. A frase em questão é
netjeru kheperu em Ptah. Decisiva para a tradução da frase
é a palavra kheper que pode significar «nascer», «manifes-
tar», mas também «formar». É uma palavra crucial ao
longo do relato cosmogónico e, em geral, tem um signifi-
cado distinto da criação que é resultante da obra do criador.

109
Entre os nomes da Ógdoade menfita detecta-se inclusive a pre-
sença das divindades hermopolitanas como é o caso de Nun e Naunet,
as personificações do oceano primordial de onde emergira o deus SoL

94
Esta, em geral, traduz-se pela utilização de dois outros
verbos, ir, «fazer», e més, que significa «nascer». Na nossa
versão distinguimos os dois verbos através dos termos
«criar» (por vezes também usamos a palavra «moldar»
para enfatizar o carácter manual da sua criação) e «gerar»,
respectivamente. No «Livro das Origens» cada um destes
termos (ir, més e kheper) parece possuir um significado
próprio que tentaremos especificar socorrendo-nos desta
definição da Ógdoade menfita. Aqui, Ptah-Nun «cria» (ir)
ao passo que Ptah-Naunet «gera» (més), o que sugere
uma associação da palavra més à criação no sentido femi-
nino e ventral (subjacente ao termo «gerar»), ao passo
que o termo ir evoca a criação no masculino, resultante de
uma obra, de um trabalho manual ou do exercício de um
ofício. No conjunto, estes dois termos evocam as possibi-
lidades de criação do próprio ser humano que tem a
capacidade de criar e recriar o mundo através da mão e
do ventre.
O termo kheper distingue-se dos anteriores já que não
pressupõe uma concepção nem um trabalho. A criação
formulada através do termo kheper evoca simplesmente a
manifestação de algo sob uma nova forma, a qual já podia
existir previamente sob uma outra configuração. O termo
kheperu traduz, deste modo, uma transformação, um pro-
cesso dinâmico de mudança. A frase netjeru kheperu em
Ptah pode assim ser traduzida: «os deuses manifestaram-
-se em Ptah». Nesta óptica, a criação do mundo começou
quando o deus abandonou o estado de inércia inicial e
adquiriu uma manifestação dinâmica: da unidade inicial,
Ptah manifesta-se como uma multiplicidade de deuses,
que constituem diferentes aspectos ou manifestações de si
mesmo. Deste modo, a realidade multifacetada do poli-
teísmo é radicalmente transformada numa visão de deus
no singular. Os deuses e o mundo emergem assim como

95
kheperu, transformações dinâmicas, de Ptah, manifes-
tando-o no plano da mudança e do devir.110
Todo o jogo da criação operada por Ptah se articula
em função destas noções. A mais decisiva para desenca-
dear toda a criação é a ideia de kheper, «manifestação»:

(53) O coração manifestou-se sob a forma de Atum.


A língua manifestou-se sob a forma de Atum. O deus maior
é Ptah, (Ele) fez confiar (a vida) a todos os deuses e aos
seus laJu.

Na visão da criação enunciada por esta frase é feita


uma importante revelação: Atum é uma manifestação
activa, criadora, do deus Ptah. O demiurgo menfita
preexistia e iniciou a criação atribuindo poder criador ao
seu coração e língua que então se manifestaram como
Atum, a manifestação activa e dinâmica de Ptah. Torna-se
agora explícita uma ideia que estava latente desde o início
do texto narrativo: o mundo foi criado através de uma
mudança de manifestação (kheper) de Ptah que, de um
estado ctónico, latente, inerte e indiferenciado, de súbito,
se manifestou como Atum, através do seu coração e da
sua língua, ou seja, através da sua consciência e através da
enunciação discursiva da palavra. Pensamento e palavra
revestem-se assim de uma faceta solar activa, dinâmica e
criadora. O processo de «transformação» de Ptah em
Atum consiste afinal num despertar cósmico, pois o deus,
que antes «dormia» numa inconsciência que conferia uni-
dade ao mundo incriado, «despertou» e tomou consciên-
cia de si mesmo quebrando essa unidade original.

110 O termo kheper, <<transformação>> surge em oposição a tem, <<com-


pletude>> e ambos constituem manifestações do deus Sol. O termo estava
portanto fortemente associado com uma conotação de mudança e d evir.

96
A criação

A criação inicia-se com o despertar do criador. Nesse


momento ele divisa a Enéade, isto é, as potências divinas
que existem em latência no seu próprio coração, ou seja,
na sua própria mente. Trata-se de uma passagem impor-
tantíssima para compreender o carácter intelectual da cria-
ção cósmica. As divindades são manifestações da própria
consciência divina (coração), pensamentos animados de
potência criadora (Hu) 111 , ou seja, de algum modo podem
ser vistos como hieróglifos, «palavras divinas». Esta versão
intelectualizada da criação é integrada numa longa tradi-
ção cosmogónica heliopolitana que formulava a criação
como resultante da nomeação (dentes e lábios) e da mas-
turbação (dedos e esperma) de Atum:

(55) (os deuses da Enéade) são o coração e a palavra


criadora (Hu) de Atum, os dentes e os lábios de Atum, o
esperma e as mãos de Atum.

Todas estas modalidades de criação são originárias


da tradição heliopolitana e todas elas são atributos de
Atum112• As passagens seguintes descrevem a criação dos
deuses. Embora constituam emanações do seu próprio
pensamento, Ptah dotou os deuses com poder de vida:

111 O deus Hu personificava o poder criador da palavra, mas tam-

bém significava «abundância>> e <<plenitude>>. Trata-se da personificação


do poder actuante da palavra e é frequentemente colocado em relação
dualista com Sia, a personificação da sabedoria, do pensamento criador.
112 É muito difundida a ideia errónea de atribuir à tradição rnenfita

a noção de urna criação pelo coração e pela língua de Ptah, recorrendo


para tal ao trecho cosrnogónico do «Livro das Origens>> que, corno
vemos, se socorre da tradição heliopolitana para formular a acção cria-
dora de Ptah.

97
O deus maior é Ptah, (Ele) fez confiar (a vida) a todos
os deuses e aos seus kau (54)

A palavra uedje pode significar «comando» ou


«ordem», mas também «compromisso» ou «confiar» 113•
Ao criar os deuses, Ptah dotou-os com autonomia e con-
fiou-lhes o poder da vida.
É neste contexto que surge a alusão a Hórus e Tot e se
estabelece o único ponto de convergência entre as duas
composições redigidas na Pedra de Chabaka:

(54) O seu coração é onde Hórus se manifesta em Ptah.


A sua língua é onde Tot se manifesta em Ptah.

O aspecto mais decisivo desta passagem é a associa-


ção estabelecida entre o coração e Hórus e entre a língua e
Tot. O coração, hati, pode dar-nos uma pista para com-
preender a razão para a associação de Hórus ao coração
do criador. Hati significa literalmente «o que está ao
comando» e designa aqui não tanto o coração físico, o
músculo cardíaco, mas sim a sede da vontade, de onde
emana a consciência do deus. A identificação de Hórus
com o desejo primordial do criador que está subjacente a
todo o universo criado vem, no texto cosmogónico, refor-
çar a caracterização de Hórus como soberano do mundo o
que, no texto mitológico, já tinha sido enunciado através
da unificação das Duas Terras. A leitura teológica e polí-
tica traçada por este paralelismo é límpida: o poder de
Hórus (e por consequência do faraó) sobre a criação decorre
do facto deste deus estàr na origem de todas as coisas.

113 Sublinhe-se que o verbo se apresenta no causativo, seudj, o qual

se poderá traduzir como <<fez confiar>>, ou <<fez comprometer».

98
Tal como no texto «teatral», a referência ao deus
Hórus na narrativa cosmogónica não está isenta de uma
leitura política. A associação de Hórus ao coração do cria-
dor indica que o faraó, enquanto manifestação terrena de
Hórus, é reconhecido como a manifestação viva do cora-
ção de Ptah: é ele «o que está ao comando» do grande
corpo da criação, veiculando e manifestando, através das
suas obras, o «plano» do criador. O faraó era assim defi-
nido como a personificação da consciência e do princípio
criador de Ptah. Se o faraó se identificava com o coração
de Ptah, uma vez que o coração de Ptah se manifesta em
todos os seres vivos, graças a esta identificação, também
o faraó se manifestava no coração de cada homem. Esta
dupla identificação tornava o faraó no modelo de perfei-
ção espiritual da vida humana, transformando a institui-
ção política da monarquia num modelo religioso de san-
tidade e de perfeição. A afirmação da realeza como um
ideal espiritual não deixava de ter um alcance político
pois implicava, não o esqueçamos, uma obediência dos
súbditos aos mandamentos reais. A conformidade com a
actuação real correspondia, portanto, ao respeito pela lei
divina. Reforçava-se assim uma característica arreigada
da ideologia real egípcia que estabelecia um elo indisso-
ciável entre o mundo natural, o mundo dos homens e o
faraó 114 •
A associação de Tot à língua do criador também é
imediata, dada a grande proximidade deste deus ao uni-
114 Neste aspecto não podemos concordar com Iversen que defende

uma ausência de preocupações políticas na composição que se consagra


inteiramente a expor uma síntese teológica (ver IVERSEN, <<The
Cosmogony of the Shabaka Text», Studies in Egyptology presented to
Miriam Lichtheim, I, p. 490). O enquadramento fornecido pelo texto dra-
mático, fortemente alusivo aos mitos que legitimam o poder faraónico,
não permite, no nosso entender, sustentar uma tal hipótese.

99
verso das palavras, do conhecimento e da escrita. No
entanto, para além deste laço estendem-se outras conota-
ções que nos parecem interessantes explorar. Set é fre-
quentemente substituído por Tot em representações onde
figura em complementaridade com Hórus. O posiciona-
mento dualista de Hórus-Tot no corpo do criador (cora-
ção-língua) parece-nos pois um desdobramento, no texto
cosmogónico, do posicionamento dualista estabelecido
entre Hórus e Set no texto «teatral». Esta equivalência
também não deixa de ter uma leitura de valor teológico-
-político: a união das Duas Terras (dualismo Hórus-Set)
equivalia à criação do mundo (dualismo Hórus-Tot).
Encarnando assim os poderes de Hórus e Tot para
harmonizar a criação, o coração e a língua de Ptah ini-
ciam, através da sua interacção dualista, a organização do
corpo cósmico de Ptah que, a partir daí se tornará na
matriz de todos os seres:

(54) (. .. ) Então o coração e a língua tornaram-se nos


que têm poder sobre todos os membros, segundo o ensina-
mento que surge em todo o corpo e em toda a boca de todos
os deuses, de todos os homens, de todo o gado, de todos os
vermes e de todas as coisas vivas, de acordo com o plano
(ialat) que comanda todas as coisas que ele ama.

O corpo do criador é organizado de acordo com uma


hierarquia, sobre a qual reina o pensamento e a palavra (o
coração e a língua) que são «os que têm poder sobre todos
os outros membros». A hierarquia cósmica é gerada a
partir de uma visão orgânica da criação (todos os seres
fazem parte de uma totalidade indissociável e harmo-
niosa) e pressupõe que uma mesma ordem natural pri-
mordial seja comum a todos os seres da criação, desde os
deuses até aos insignificantes vermes, «segundo o ensina-

100
menta (sebá)» que Ptah inscreveu no corpo das suas cria-
turas. Todas as coisas vivas possuem, deste modo, um
«ensinamento» que deus imprimiu no seu corpo e que as
comanda. Este ensinamento é, no fim de contas, a inteli-
gência da vida que emana do próprio cosmos, o corpo do
criador. É este plano (kaat) que dá unidade à criação, a
qual está ligada ao criador por um laço de amor (merut).
Embora discreta, esta alusão ao amor divino é decisiva,
como veremos, para compreender a ligação que cada ser
vivo mantém com deus.
Organizado o corpo de Ptah com uma ordem anató-
mica e fisiológica que constitui a matriz de todas as formas
de vida, o trabalho da criação é continuado através da
«animação» deste corpo. Trata-se de um verdadeiro des-
pertar: os sentidos começam a fazer afluir a informação
ao coração, o qual «faz sair» o conhecimento que, em
seguida, é formulado pela palavra 115:

115 Esta constitui uma das passagens mais espantosas do «Livro das
Origens>> que apresenta uma explicação para a origem do conhecimento:
não sendo inato nem revelado, o conhecimento é o resultado de uma
convergência das informações do mundo exterior que «sobem» ao cora-
ção por intermédio dos órgãos dos sentidos. Esta afirmação contrasta
com a existência de um plano (kaat) que deus imprimiu à criação de um
modo «inato». Este <<plano>> consiste, afinal, numa espécie de <<inteligên-
cia da vida », quase no sentido piagetiano do constructivismo genético,
um modo de funcionar da mente que orienta a relação do indivíduo com
o mundo. Se o conhecimento é adquirido, então o plano dado por deus
não pode senão ser um modus operandi, uma forma de funcionar, de orga-
nizar o funcionamento do corpo, numa palavra, o plano divino consiste
na própria inteligência da vida (o cientista contemporâneo falaria certa-
mente do código genético para evocar este <<plano>>). Trata-se da primeira
reflexão conhecida acerca da natureza e origem da consciência, um pro-
blema epistemológico fulcral na filosofia e na ciência. O problema não só
é levantado corno é apresentada uma << teoria »: a consciência é resultante

101
(56) (Assim) nasceu a Enéade: A visão dos olhos, o escu-
tar das orelhas e o respirar da garganta ascendem diante do
coração. Ele dá saída a todo conhecimento. A língua repete o
conhecimento do coração. (Deste modo) ele gerou todos os
deuses, e completou a sua Enéade. Na verdade, toda a pala-
vra divina manifesta-se a partir do conhecimento do (57)
coração e do comando da língua.

O conhecimento do coração enunciado pela língua


manifesta-se no mundo exterior sob a forma de deuses, ou
seja, através de potências actuantes no mundo. «Toda a
palavra divina manifesta-se a partir do conhecimento do
coração e do comando da língua». A frase é decisiva e possui
muitas implicações. Num jogo etimológico, o redactor usa
ambiguamente a expressão «palavra divina» que literal-
mente significa «hieróglifo». Naturalmente, neste contexto,
o redactor não se reporta exclusivamente aos hieróglifos
usados na escrita sagrada, referindo-se mais generica-
mente à palavra criadora como um «hieróglifo vivo», uma
«ideia» no sentido platónico do termo, que detém um
poder criador e se manifesta através das muitas formas de
vida que povoam a criação e o mundo. Mais interessante
é que os deuses são «palavras divinas» criadas por Ptah,
ou seja, são «hieróglifos» actuantes no mundo.
Mais do que a criação pelo coração e pela palavra,
que constitui uma formulação da teologia heliopolitana, é
a ideia da criação pela escrita <JUe constitui a verdadeira
inovação da teologia menfita. E realmente esta visão que

da interacção entre a informação proveniente dos sentidos e um «pro-


cessador central», o coração, que organiza e dá sentido à informação
recebida. Não há aqui qualquer vestígio de uma revelação inata: era atra-
vés do corpo e do funcionamento dos órgãos dos sentidos que o coração
(a mente) recebia a informação para agir.

102
faz o texto cosmogónico da Pedra de Chabaka profun-
damente inovador. Ptah é um deus que escreve e escreve
para criar o real. Ptah escreve através dos deuses e de
todas as formas de vida. Na verdade, a escrita hieroglífica
é constituída por elementos «vivos» retirados da natu-
reza. Subjacente estava também a identificação entre o
cosmos e um livro vivo que o criador redigiu com hieró-
glifos animados.
Nesta teologia da criação, o texto, o acto discursivo
do deus criador, precede e fundamenta o mundo das apa-
rências, imbuindo-o com significado, exactamente nos
mesmos moldes do platonismo. Os deuses são «nomes» e
fazem parte de um texto que se situa para além do mundo
das aparências e lhe dá sentido. Deste modo, antes de se
manifestarem como fenómenos cósmicos e muito antes
de se encarnarem nas estátuas dos templos, as divinda-
des são essencialmente <<ideias>>verbalizadas pela boca do
criador116•

A criação da vida

É somente a partir desta passagem que o texto se dis-


tancia do plano divino para narrar a criação da vida e das
actividades humanas.

(57) Ele criou os kau e enumerou as hemsut. (Eles) cria-


ram todo o alimento e todas as oferendas de acordo com a
sua palavra.

Os kau e as hemsut designam os princípios masculinos


(kau) e femininos (hemsut) que protegem a vida e garan-

116 Ver ASSMANN, The Search for God, p. 95.

103
tem o provento da criação. O ka, o poder de vida, tinha na
antropologia egípcia um papel importante na protecção
da vida e era representado como um duplo anímico, cujos
poderes derivavam do próprio corpo do indivíduo (era
para manter os poderes do ka que o corpo era preservado
e mumificado). As hemsut, em geral representadas como
vacas sagradas, são habitualmente consideradas o contra-
ponto feminino dos kau, responsáveis pela dádiva de ali-
mento e eram consideradas entidades que protegiam as
crianças e o nascimento117 . Esta passagem é, deste modo
alusiva ao nascimento das formas de vida e às potências
que as protegem e garantem o seu sustento.
Em seguida, enuncia-se um princípio «moral» que
resume o ideal de uma vida feliz:

Para o que faz o que é amado ele dá vida e paz


Para o que faz o que é odiado ele dá morte e condenação

Trata-se da evocação de uma espécie de «justiça natu-


ral» que decorre directamente das acções do indivíduo.
Em função das suas acções, o homem liga-se ou não ao
amor divino, atraindo as suas bênçãos ou o seu castigo.
Decorrente do amor ou do ódio que espalha à sua volta,
cada ser humano acabará por viver em paz ou sucumbir
sob os efeitos nocivos das suas próprias acções. Latente
estava também o conhecido tema do julgamento dos
mortos onde a psicostasia, a pesagem do coração, consti-

117 As hemsut ostentam um emblema semelhante ao que é usado

habitualmente por Neit, constituído por uma espécie de escudo cruzado


por duas flechas que desenham um X ou um V. Curiosamente este sinal
também era abundantemente desenhado sobre os amuletos cordiformes
da Época Baixa, auspiciando, deste modo, o nascimento para uma nova
vida.

104
tui o elemento central do procedimento judiciário que
analisa a integridade moral do defunto. O «Livro das
Origens» dá-nos uma explicação «funcional» para a psi-
costasia. Através das suas acções, o homem purifica ou
corrompe o seu coração. Se o homem realizar o «conheci-
mento do coração», deus manifesta-se nos seus actos e
engrandece-o. Caso contrário, se ignorar a sua própria
natureza divina, a sua conduta afastá-lo-á da maet, a
ordem cósmica, e advirá o castigo. A conduta estava, de
acordo com um ensinamento tradicional da sabedoria
egípcia, estreitamente interligada com a consciência e era
determinante para a transformação do homem numa
divindade, transformação essa que era crucial para asse-
gurar a vida do Além.
Era, pois, no agir do homem que a inteligência divina
se manifestava no seu coração, iluminando-o (no caso de
pautar a sua conduta pelo amor divino) ou corrompendo-
-o (no caso de fazer «o que deus detesta»). As conotações
morais do comportamento do homem são explicadas atra-
vés da capacidade do homem em se alinhar com o amor
divino e não através de uma reflexão sobre o bem e o mal,
ou sequer sobre a maet118 • Esta justiça «natural» era regida
por um princípio divino, o amor de deus, que aqui é des-
crito como uma força natural, imanente à vida, que residia
no coração do próprio homem. O coração mantinha um
elo entre o homem e o deus criador, um elo que o condu-
zia ao tempo primordial da criação do mundo. Através
deste elo, o amor divino, era garantida a regeneração do
coração humano e era aí que residia a sua felicidade.

118 Só por si, esta absorção da maet no contexto da relação com deus

reflecte bem a espiritualidade dominante do período ramséssida e cons-


titui precisamente um dos aspectos basilares d a piedade pessoal.

105
Para além do alcance da mensagem que difundia
acerca da consciência, o «Livro das Origens» define de
modo surpreendentemente concreto e preciso, o seu peso
na criação e na própria vida humana, constituindo um
«guia>> para a transformação espiritual e para a «felici-
dade>>. Este modelo de perfeição não estava desprovido
de uma leitura política, uma vez que via no faraó (Hórus)
o modelo terreno da consciência divina. A perfeição espi-
ritual do faraó encontra-se portanto «demotizada>> e ao
alcance de cada um. O caminho para a santidade residia
em «fazer o que o deus ama>> e em manifestar nas suas
obras a inteligência de Hórus, que era simultaneamente o
deus do coração e o faraó do Egipto.
Nas passagens seguintes o texto dedica uma grande
atenção ao trabalho humano. Os ofícios, os trabalhos, todas
as realizações humanas, prolongam a obra do criador no
mundo terreno:

Ele fez todos os trabalhos e todos os ofícios, as obras


feitas pelas mãos, o andamento das pernas e
(58) todo o movimento dos membros, de acordo com
o seu comando, a palavra que vem do conhecimento do
coração, (que) sai pela língua e faz a duração de todas as
coisas. (Ele) manifestou a ~ua palavra, concluiu a (sua) obra
e manifestou os deuses. Ele é Ptah-Tatenen, o que gerou os
deuses.
Todas as coisas vieram dele, as provisões, os alimentos
para as
(59) oferendas divinas e todas as coisas boas. Ele é o
que revela a sabedoria, o mais poderoso dos deuses. Ele
ficou verdadeiramente satisfeito. Ptah é o (deus) poderoso.
A sua obra (abrange) todas as coisas e todas as palavras
divinas.

106
O «conhecimento do coração» (kaat ib) faz «todas coi-
sas veneráveis». O coração do homem e a história indivi-
dual surgem como uma dimensão muito concreta e tangí-
vel da presença divina. O deus estava em acção na vida de
cada indivíduo e cada homem vivia em contacto directo
com o deus. Deste modo, a relação pessoal de deus com
cada homem surge como uma condição inerente à própria
natureza da vida. É, naturalmente, uma passagem forte-
mente imbuída pela piedade pessoal, a espiritualidade
dominante a partir do período ramséssida, cujo pilar basi-
lar consistia na importância reconhecida à relação pessoal
e íntima que deus estabelecia com cada homem.
Em seguida, também em jeito de apanhado, resume-
-se a obra da criação evocando novamente a formação dos
deuses, dos alimentos e de «todas as coisas boas». Através
da sua criação, Ptah «revelou» a sabedoria e o seu poder.
O termo gem, «encontrar» ou «revelar», é designado pelo
hieróglifo de uma ave pernalta (G 28 da lista de Gardiner)
representada em atitude de observação atenta do terreno
em busca de alimento. O termo pressupõe a revelação que
decorre da observação atenta da natureza. A revelação da
sabedoria de Ptah faz-se, portanto, da observação do seu
«livro», o livro do mundo.
À semelhança do Deus bíblico, no fim. da sua criação
«Ptah ficou verdadeiramente satisfeito com as suas
obras», as quais, sublinha novamente, englobam «todas as
coisas e todas as palavras divinas», ou seja, a sua satisfa-
ção abarca os elementos vivos, os «hieróglifos» que ele
próprio criou, e as «coisas» criadas pelo trabalho do homem.
A obra do criador estende-se, por isso, para a obra que
continua a realizar-se através da acção humana.

107
A criação do mundo

Depois da criação dos deuses, da natureza e do homem,


Ptah prossegue a criação através da fundação das institui-
ções político-religiosas que estruturam a vida económica,
social e espiritual das Duas Terras. É neste plano que
devemos situar a criação do mundo propriamente dito:

Em verdade, ele gerou os deuses, criou as cidades e


estabeleceu todas as regiões.
Ele colocou os deuses nos seus santuários
(60), definiu as suas oferendas, fundou os seus templos
e fez as imagens veneráveis. Elas são os corpos para satis-
fazer os seus corações. Deste modo, os deuses entraram nos
seus corpos, feitos de todas as madeiras, de todas as pedras,
todas as espécies de argila, de todas as coisas que germi-
nam sobre si,
(61) Eles formaram-se no seio dele próprio.

É deste novo fôlego criativo que surgem as cidades,


as sepaut (as unidades administrativas em que se dividia o
Egipto), e os templos que, no Egipto tardio, possuíam um
estatuto económico e simbólico muito significativo119, ao
ponto de todo·o país ser identificado como o «templo do
mundo». Esta imagem tardia do Egipto está fortemente

119 O templo era talvez a mais abrangente instituição egípcia, já que

constituía uma unidade de produção e de transformação de bens mate-


riais, um foco de poder local e um laço imprescindível com o palácio.
Não nos esqueçamos que nos períodos de enfraquecimento do poder
real, como é o caso do Terceiro Período Intermediário, ao qual pertence
a XXV dinastia, eram os templos que permaneciam como as unidades
regíonais que garantiam a estabilidade da vida e da economia das popu-
lações locais.

108
imbuída do profundo simbolismo do templo que repre-
sentava, através do seu plano arquitectónico, toda a estru-
tura do universo. Como representação do universo, o tem-
plo era uma imago caeli e constituía um microcosmos 120.
Estabelecida a equivalência entre a arquitectura do uni-
verso e a estrutura do templo, criar o templo equivalia,
deste modo, a criar o mundo.
A criação do templo é completada pela organização
do culto que aí se desenrola. O texto explora, deste modo,
a dimensão «local» e «cultual» do contacto com o divino:
o deus reside num local concreto, no templo que é a sua
morada, e irradia a sua influência para uma região, a sua
sepat, onde desenvolve um contacto privilegiado com as
pessoas que aí habitam e nascem121 . A evocação inicial das
províncias, as sepaut, destina-se, deste modo, a enfatizar o
carácter local das divindades que advinha da função do
templo de constituir um enclave do céu na terra. Através
do templo, os deuses tornavam-se literalmente «senhores

120
O templo era arquitectado de modo a constituir uma repre-
sentação do cosmos. Reflexo das crenças cosmológicas egípcias é, por
exemplo, o muro ondulante de tijolos que rodeava o templo simboli-
zando as águas do Nun que rodeavam a criação. Ao longo do trajecto
efectuado no templo, a subida do nível do chão e a altura cada vez
menor dos tectos aludiam à união entre a terra e o céu garantida nas
regiões mais interiores do edifício. À sucessão de pátios ensolarados e
câmaras cada vez mais escurecidas também não é estranha uma pers-
pectiva cosmológica. O jogo de luz e de sombras evocava a relação
complementar entre o Nun (evocado pela escuridão) e o Sol, ver
FARIAS, •<Ü templo no Antigo Egipto: Simbolismo e iconografia», Artis
1 (2002), pp. 17-30.
121 Para Assmann, três dimensões de contacto com o divino se
detectam na religião egípcia: o culto, o cosmos e o mito. As questões
formuladas pelo texto centram-se na dimensão cultual que se desen-
rola num templo, e é dedicado ao cuidado das imagens divinas, ver
ASSMANN, The Search for God, p. 17.

109
da terra», no sentido em que presidiam a uma região e
possuíam vastas propriedades agrícolas. Era também a
presença do deus no templo que justificava a noção de
«cidade». Designações como «a cidade de Tot», a «cidade
de Amon» ou «a cidade de Ptah» são inequivocamente
associadas a Hermópolis, Tebas e Mênfis e retratam bem
a noção egípcia da cidade como o centro nevrálgico do
território de um deus. Podemos mesmo dizer que se, no
Egipto, as cidades são «cidades de deus», também os deu-
ses são «deuses da cidade». Viver numa cidade pressupu-
nha, portanto, viver na proximidade de uma divindade e
desenvolver uma relação pessoal e íntima com ela 122 • Estas
alusões ao culto, ao templo e à organização do Egipto
demonstram, deste modo, que o céu está em contacto com
a terra e que, através da presença dos deuses nos templos,
cada homem é bafejado pela presença divina.
O texto dá uma atenção especial à criação das está-
tuas dos deuses, as «imagens veneráveis». Percebe-se aqui
porque é que uma estátua, fruto de um trabalho humano,
podia ser encarada como divina: ela era, em última aná-
lise, uma extensão do criador, pois deus também se mani-
festava através das acções humanas. Por essa razão, os
«deuses entraram nos seus corpos» feitos de madeira,
argila ou pedras. 123 A estátua dava forma ao deus, tal como,
na natureza, certos elementos do mundo físico, como o
vento, a água ou a luz do Sol, transmitiam o poder e a
força do deus. O cuidado colocado na descrição da criação
artesanal das estátuas divinas reflecte, sem dúvida, a tra-
dicional associação de Ptah aos artesãos e, de algum
modo, valoriza o seu estatuto como deus faber, o deus

122 Ver Idem, p . 19.


123 Também os materiais usados na confecção das estátuas tinham
essência divina pois <<cresciam>> no próprio corpo de Ptah: o seio da terra.

110
criador das formas 124 . Ao longo destas passagens, o «Livro
das Origens» traça, em suma, o contorno da trilogia que
define a dimensão «local>> da presença divina: cidade,
templo e estátua divina 125 . Esta valorização da dimensão
local do culto mostra que o «Livro das Origens>> deve ser
perspectivado no quadro de um programa de renovação
religiosa que procurava restaurar a santidade da terra e
dos seus santuários.
O texto cosmogónico termina com a reunião da
assembleia divina em tomo de Ptah, novamente qualifi-
cado como o soberano cósmico, o senhor supremo das
Duas Terras:

(61) Ele reuniu todos os deuses e todos os seus kau,


satisfeitos e unidos com o senhor das Duas Terras. (Ele
manifesta-se como a deusa) do celeiro de Tatenen, «A do
grande trono>>, a que une o coração dos deuses na morada
de Ptah, a senhora de toda a vida, que faz viver as Duas
Terras através dela.

A deusa denominada de «Grande Trono>> personifica,


já o vimos, a natureza e todo o cosmos. A sua evocação no
trecho final do hino cosmogónico parece assim constituir
o encerrar de um ciclo. Desta feita, a deusa que personifi-
cava a natureza é evocada para assinalar a fertilidade da
terra do Egipto confiada à posse do faraó e à <<morada de
Ptah>>, ou seja, ao templo menfita do deus. A divindade
«Grande Trono>> é ainda caracterizada com um outro epí-
teto, «celeiro de Tatenen>>, que, como o próprio texto refere,
qualifica a deusa da criação como «senhora da vida>>, que

124 Idem, P· 81.


125 Idem, p. 46.

111
dá e garante o alimento ao povo do Egipto. Com esta
alusão procurava-se demonstrar que era em Mênfis, no
interior do seu templo, que Ptah continuava a fecundar a
deusa da vida personificada no «Grande Trono» e assim
garantia o provento do Egipto. O estatuto do templo de
Ptah em Mênfis era assim justificado pelo seu poder para
garantir a fecundidade e a vida no Egipto.

2.3. Teologia e géneros literários

O contraste que se estabelece entre o texto «teatral»,


mitológico, e a narrativa cosmogónica encerra, na sua apa-
rente falta de continuidade, uma profunda complementa-
ridade simbólica e, provavelmente, ritual. Para além das
evidentes diferenças na forma de expressão literária, cada
um dos textos remete para um quadro religioso completa-
mente distinto.
Na secção dramática, seguramente a mais antiga, é o
universo da pluralidade dos deuses que é envolvido. Para
além de Geb, a Enéade (que representa toda a comuni-
dade de deuses) é envolvida na arbitragem da disputa
que divide Hórus e Set. Como todo o texto «teatral», esta
acção mítica é colocada no presente e reactualizada. Neste
texto, estamos perante a realidade que é acto e acto pres-
supõe actores e um labor colectivo, uma rede de constela-
ções divinas. Este é o quadro, por excelência, do poli-
teísmo que se expressa com toda a fluidez no género «tea-
tral». A perspectiva do cosmos associada a este tipo de
textos, longe de convergir para a unidade de deus, desdo-
bra-se numa multiplicidade de actores que estabelecem
entre si uma rede de relações que compõem um drama no
qual todos os deuses desempenham uma acção. Em suma,
na concepção do mundo que perpassa no texto dramático

112
do «Livro das Origens», o real é temporal e performativo,
é um processo vivo em permanente actualização 126 .
Em claro contraste com este universo constelativo de
deuses em interacção, a narrativa cosmogónica descreve a
experiência de deus no singular, o deus omnipotente dis-
tanciado do mundo127 . Tendo renunciado ao poder sobre
o mundo, a relação dos homens com o deus otiosus tem
que ser explicada, como efectivamente acontece ao longo
do texto, e a sua caracterização divina é transconstelativa:
não há constelação na qual o deus pode conviver e «socia-
lizar-se» com os outros deuses. Outra característica destas
composições consiste em estarem desprovidas de explica-
ções mitológicas. A criação é descrita como um despertar
do deus supremo e a sua relação com o mundo recorre a
imagens e a fenómenos da natureza. O papel do deus
supremo desafia as tradicionais constelações divinas, inte-
grando-as e absorvendo-as em si mesmo através da incor-
poração de características divinas de outros deuses. Neste
processo aditivo os aspectos multifacetados do mundo
divino são combinados e relacionados entre si através da
justaposição de predicados. Ficava assim mais evidente a
ideia da unidade divina e reforçava-se o conteúdo teoló-
gico da caracterização do deus supremo.
Os dois textos que compõem ·a totalidade do «Livro
das Origens» são portanto o resultado de duas tradições
literárias e religiosas muito distintas que se desenvolve-
ram de modo quase independente uma da outra. A com-
posição incorpora, deste modo, dois universos de vivên-
cia e de explicação do sagrado, respectivamente.
O texto mitológico, «teatral», é subsidiário de uma
tradição religiosa eminentemente cultual. O imaginário

126 ASSMANN, The Search for God in Ancient Egypt, p. 81.


127 Idem , P· 9.

113
politeísta, centrado no presente, que emana da ·c omposi-
ção dramática é característico dos textos cultuais, com
uma forte componente mágica. Como peça dramática, o
texto permitia a irrupção directa do divino no real através
das palavras. A extraordinária importância religiosa deste
tipo de textos prende-se, portanto, com o seu poder para
manifestarem a presença directa das divindades através
da linguagem, do texto interpretado e tornado real,
actuante 128. Os textos dramáticos estão, deste modo, forte-
mente enraizados no culto e são inseparáveis do ritual
divino, uma vez que o completam e complementam no
plano verbal. O discurso mitológico está tão estreitamente
interligado com o acto ritual que palavra e acção dramá-
tica se complementam para actualizar o mito. Esta res-
ponsabilidade em veicular a presença divina através das
palavras torna estes textos extremamente rígidos, uma
vez que a escolha das palavras não é feita ao acaso e
decorre quer da sua representação escrita (a forma do hie-
róglifo a que recorre), quer da sua substância (n som), e
constituem o resultado de uma manipulação da lingua-
gem de modo a viabilizar, através do discurso, a presença
dos deuses 129 . Toda a elaboração religiosa que se faz em
torno da busca da presença de deus (quer se procure a sua
presença no cosmos, nos mitos ou nos rituais) tem sub-
jacente uma <<teologia implícita», ou seja, uma represen-
tação sobre o divino que, não sendo intencionalizada
através de uma reflexão formal, transmite uma determi-
nada concepção sobre deus. Neste domínio, que é o das

128 As palavras permitem, no plano verbal, a manifestação do deus,

do mesmo modo corno os elementos da natureza veiculam a presença de


deus no cosmos, ou a estátua divina traduz a presença divina no culto
orquestrado no templo.
129 Idem, p. 87.

114
práticas cultuais e do rito, o carácter divino do mundo
revela-se na sua pluralidade. A personalidade de cada
deus é definida em constelações divinas e em esferas de
socialização. A teologia implícita, reflectida na compo-
nente dramática do «Livro das Origens» tem, por isso, um
carácter constelativo que dá conta da multiplicidade do
mundo divino e do seu carácter actuante e activo no
mundo.
Em clara oposição a esta perspectiva do sagrado, a
narrativa cosmogónica do «Livro das Origens» apresenta
. uma perspectiva de deus onde se divisa perfeitamente a
unicidade de deus. Neste e noutros aspectos, esta narra-
tiva apresenta uma forte afinidade com um movimento
literário e teológico onde o distanciamento em relação à
actividade religiosa é mais evidente. Estamos, a este nível,
no domínio da «teologia explícita», no qual os textos se
emancipam da acção cultual para a problematizar, criando
um campo discursivo novo130 . Este tipo de reflexão não
se fez, em primeiro lugar, nos textos religiosos propria-
mente ditos.

130 Esta problematização de deus no singular enraíza-se num movi-

mento literário e cultural que remonta ao Império Médio e propiciou o


aparecimento de novas formas de equacionar deus. De facto, a teologia
explícita é um fenómeno histórico que requer explicação, ao contrário da
teologia implícita, que é auto-evidente e não é mais do que o contacto
com o divino. A origem da teologia explícita dá-se no âmbito da litera-
tura sapiencial, onde emergiu o problema da relação de deus com o
mundo. Este problema foi, desde logo, formulado de modo não conste-
lativo, ou seja, não se focou em torno dos deuses, mas de deus no singu-
lar, em particular o criador do mundo, e problematizou a definição do
seu papel na invenção da ordem cósmica. Esta questão não se colocou no
horizonte do culto, mas no da sabedoria, no contexto do conhecimento
da ordem do criador e da possibilidade de viver em harmonia com ela;
ver idem, p. 192.

115
Foi no âmbito da literatura sapiencial que emergiu,
no Império Médio, o discurso que problematizava a rela-
ção do deus criador com a humanidade e a sua aparente
indiferença para com a existência do mal e da injustiça.
Nos textos que problematizam a teodiceia, é perfeita-
mente claro que estamos perante uma reflexão teológica
explícita, e que nesta reflexão a vontade divina emerge
como o tema central. Em vez do mundo representado
como acção de deuses repartidos por constelações poli-
teístas, a realidade é aqui descrita como o resultado da
vontade do criador. Surgia assim a caracterização de um .
deus supremo que, de um modo um tanto paradoxal, foi
adquirindo o contorno de um deus pessoal que era capaz
de revelar ao mundo a sua vontade e intervinha no fluxo
da história interpelando cada um dos seus adoradores no
seu íntimo, no seu coração131 . A caracterização teológica
do deus supremo é o motor para o desenvolvimento de
um discurso totalmente desligado das preocupações prá-
ticas do culto e, por isso, mais especulativo.
Esta corrente de pensamento não recorria ao repertó-
rio mítico tradicional, típico do pensamento politeísta,

13 1 No Império Novo, urna grande reviravolta política está na

origem da propulsão, a um nível sem precedentes, desta linha de refle-


xão teológica. Até aí detentor absoluto da prerrogativa de mediador
entre os deuses e o mundo, o papel do faraó foi seriamente fragilizado
no reinado de Hatchepsut, quando a rainha institucionalizou o oráculo
como um meio de expressão da vontade de deus. Criando a possibili-
dade do deus intervir directamente na história para manifestar a sua
vontade, Hatchepsut legitimou a sua usurpação do trono e quebrou para
sempre o equilíbrio de poder entre os sacerdotes e a coroa. Para além das
evidentes consequências políticas, este evento constituiu o início de um
fenómeno decisivo na vida religiosa dentro e fora do Egipto. O deus
supremo emergia como um deus pessoal que era capaz de revelar ao
mundo a sua vontade e intervinha no fluxo da história interpelando cada
um dos seus adoradores.

116
baseando-se, pelo contrário, nos fenómenos da realidade
visível. As suas principais preocupações incidiam sobre
fenómenos cósmicos como o Sol, o seu movimento e a
luz 132 . A mitologia constelativa politeísta foi, neste con-
texto, substituída por uma fenomenologia da visibilidade
do Sol e do mundo. A rejeição das imagens e símbolos
míticos expôs uma nova realidade que se traduziu numa
«filosofia natural»: o mundo passou a ser visto como um
conjunto infinito de fenómenos passíveis de se relaciona-
rem com o movimento do Sol e com a sua luz 133. A nova
teologia baseava-se num heliomorfismo do conceito
divino que favorece, ao contrário da teologia implícita,
uma perspectiva igualitária do contacto com o divino.
O deus revelava-se a todos os homens, aos «súbditos do
Sol» (a humanidade), manifestando o seu amor no cora-
ção das criaturas que o contemplavam. O universalismo
de deus repercutia-se necessariamente numa relação igua-
litária com deus e favorecia a piedade pessoal134.

132 ASSMANN, Solar Religion, pp. 201-204.


133 Idem, p. 205. Esta perspectivação da realidade a partir de uma
referência única, resumida ao Sol, reflectia evidentemente o carácter uni-
versal do poder imperial e a nova realidade política do império.
134 É curioso constatar que, embora a mesma imagem da influência

do deus sobre a criação fosse propagada durante a reforma de


Akhenaton, este faraó procurou demonstrar que constituía o único inter-
locutor capaz de compreender os desígnios de deus. A relação íntima e
exclusiva entre o deus Aton e Akhenaton explicava-se porque o rei era o
único que <<tinha o deus no seu coração». O fenómeno da piedade pes-
soal, encarado como a possibilidade de <<colocar o deus no coração>>
estava, na reforma de Amarna, reservado ao rei, o único que podia estar
verdadeiramente consciente da presença do deus. Este foi, sem dúvida,
um dos aspectos que ditaram o fracasso do culto de Aton, uma vez que
se opunha a uma tendência antagónica que estava há muito em marcha
e que constituía um dos fenómenos religiosos mais marcantes da espiri-

117
Para Jan Assmann, o relevo que atingiu a reflexão em
tomo dos deuses supremos começou a criar um contraste
cada vez mais gritante entre as práticas cultuais, essen-
cialmente politeístas, e a concepção teológica formulada
nos hinos, de uma divindade suprema, de carácter
«monoteísta». O que é verdadeiramente notável no «Livro
das Origens» é o facto destas visões antagónicas da convi-
vência com o sagrado se tenham articulado, certamente de
modo intencional, de modo a englobar na mesma compo-
sição estes modos de pensar deus e os deuses que perpas-
sam nas duas partes da composição. A sua justaposição
nesta composição revela, portanto, um grau de consciên-
cia bastante desenvolvido acerca da necessidade de arti-
cular a relação entre o um e o múltiplo.
Assim, a justaposição destes textos tinha provavel-
mente como intuito constituir uma súmula de duas tradi-
ções religiosas complementares. O texto dramático permi-
tia a actualização de um universo mítico, politeísta, intem-
poral e eternamente actuante através do ritual. É o mundo
dos netjeru, as potências divinas da natureza que se entre-
laçam para arquitectar a construção do real. A narrativa
cosmogónica, por outro lado, centrava-se no deus supremo,
reflectia uma visão de deus no singular e totalmente cen-
trada no contacto de deus com o mundo e na manifesta-
ção da sua vontade através da sua relação pessoal com
cada um dos seres vivos que criou.
Através do contraste brutal e literariamente inepto do
emparelhamento destes géneros literários distintos fica-
vam assim solidamente reunidas duas visões do mundo
que ao longo da história da humanidade viriam a consti-

tualidade egípcia: a difusão da piedade pessoal que assentava na possi-


bilidade, aberta a todos, de colocar o deus no coração.

118
tuir o mote para o confronto de religiões. Politeísmo e
«monoteísmo» emergente, que já haviam colidido no rei-
nado de Akhenaton, encontravam na Pedra de Chabaka
um equilíbrio momentâneo135.
Este equilíbrio era garantido e mantido graças à
representação política que unia os dois textos. Afinal, o
seu denominador comum é a visão de Hórus como sobe-
rano da criação. O texto teatral reactualiza o enquadra-
mento da sua acção mitológica convencional, ao passo
que o texto cosmogónico o define de modo inovador
como o coração de Ptah, que governa o mundo e preside
a todos os seres, numa palavra, a centelha divina de cada
criatura. É também provável que, na sua versão definitiva,
o «Livro das Origens» tivesse sido utilizado como suporte
de uma liturgia. O carácter «teatral>> que predomina em
toda a composição implica necessariamente uma repre-
sentação do texto. A ter existido, esta liturgia não pode ter
sido outra senão a da liturgia ritual da coroação de Hórus
encenada em dois tempos. A trama dramática envolvia
seguramente um grande elenco de actores e constituiria
certamente uma cerimónia de carácter «público>>, exoté-
rico, que se poderia desenrolar num dos pátios do templo
de Ptah. A narrativa cosmogónica, confundindo-se com
um hino de louvor ao deus supremo, sugere que a acção

t 35 A afirmação deste contraste tinha provavelmente como intuito


contribuir para exaltar a função do faraó na harmonização da acção com-
plementar destas diferentes visões de deus e dos deuses. As duas com-
posições podem mesmo afirmar-se como mais uma manifestação do
poder dualista do faraó, à semelhança das Duas Terras ou da coroa
dupla. Através da acção dramática, o faraó evocava o poder dos netjeru
para legitimar o seu poder num tempo sempre presente e num mundo
sempre actuante. Através da narrativa cosmogónica, os mistérios da
criação eram revelados diante do faraó que, desse modo, era identificado
com o coração do deus supremo encarnado em todas as criaturas vivas.

119
cerimonial passaria a desenrolar-se no interior do templo
de Ptah, onde o faraó, fundindo-se na pessoa divina de
Hórus, era conduzido ao santuário mais interior do templo
para contemplar a imagem secreta do deus e entoar o hino
que aclamava a obra criadora de Ptah.
Após esta cerimónia, o faraó seria então novamente
conduzido para o exterior do santuário, de onde emergia
cingido, como o texto refere, com todos os símbolos reais,
plenamente identificado com Hórus e com o Sol nascente.

2.4. Datação e composição

A datação do «Livro das Origens» é alvo de uma viva


controvérsia. A linguagem arcaizante utilizada pelo texto
alimentou a ideia de uma datação muito alta, que alguns
autores situaram num período indeterminado do Império
Antigo136 . Embora a Pedra de Chabaka refira explicita-
mente a antiguidade do texto, a ideia de uma redacção
elaborada no próprio reinado de Chabaka tem vindo a
ganhar terreno ultimamente, constituindo a suposta anti-
guidade do texto um artifício arquitectado por Chabaka
para conferir mais prestígio à inscrição. Teria sido este
intuito que teria levado à utilização de uma linguagem
arcaica, o que, de facto, correspondeu a uma tendência

136
Adolf Erman, por exemplo, apontava para a I dinastia, baseando-
-se na ênfase colocada no papel de Mênfis como a sede da monarquia e
factor de união entre as Duas Terras. Já François Daumas prefere situar
o texto em torno da m dinastia, ao passo que Siegfried Schott se inclina
para a IV dinastia. Hermann Junker e Siegfried Morenz defendem, por
outro lado a V dinastia (ver CARREIRA, «Teologia Menfita», Dicionário
do Antigo Egipto, p. 817). Já Breasted, sem arriscar uma data, considera o
texto <<a mais antiga formulação de uma Weltanschauung>>; ver BREAS-
TED, <<The Philosophy of a Memphite Priest>>, ZAS 39 (1902), p. 39.

120
o

Coroação de Ramsés II. Os deuses Hórus e Set colocam as duas coroas sobre o
faraó, simbolizando a unificação das Duas Terras. Templo de Hathor de Abu
Simbel. XIX dinastia.

121
cultural que marcou a expressão artística e literária da·
XXV dinastia cuchita que buscou nos modelos do Império
Antigo a inspiração para muitas das suas realizações.
Com este «regresso à origem» procurava-se purificar a
cultura egípcia das «contaminações» que a haviam des-
virtuado em resultado do longo período de domínio das
dinastias hbias, em relação às quais a dinastia cuchita se
procurava demarcar, afirmando-se na mais pura continui-
dade da tradição faraónica.
Embora estes argumentos sejam válidos, parece-nos
todavia excessivo considerar a obra como um produto da
XXV dinastia. Por mais convincente que seja a hipótese
adiantada, a verdade é que, tal como foi redigido no bloco,
o texto parece de facto apresentar omissões resultantes do
desgaste do seu suporte original137 . Por maior que fosse o
desejo do faraó cuchita em criar uma «falsificação» não
cremos que fosse ao ponto de introduzir intencionalmente
lacunas que impediam uma leitura escorreita do texto.
Este espírito, que hoje é corrente entre os falsificadores de
antiguidades, era perfeitamente desnecessário no antigo
Egipto. Na verdade, o reconhecimento formal da antigui-
dade do texto pelo faraó ou pelo templo teria sido sufi-
ciente para assegurar a sua veracidade. Note-se que os
casos que conhecemos de atribuição de um texto a um
antepassado remoto não apresentam tais lacunas. Tal é o

137 Efectivamente, as primeiras colunas da Pedra de Chabaka reve-

lam lacunas mantidas pelo escriba da Antiguidade que correspondem a


uma danificação pronunciada no suporte original do texto, muito pro-
vavelmente feito de um material orgânico. Como faltam as partes supe-
riores e inferiores destas colunas pressupomos que se trataria de um rolo
de papiro, já para não falar das pequenas lacunas que sugerem a pre-
sença de inúmeros buracos provocados pela acção dos vermes. A razão
apontada pelo escriba antigo parece, deste modo, ser corroborada pelas
lacunas que foram mantidas na transcrição do texto para a pedra.

122
caso, apenas para citar um exemplo, do capítulo 30 B do
«Livro dos Mortos», que o redactor da rubrica atribui a
um achado de Djedefhor, um príncipe da IV dinastia.
Também a direcção da escrita aponta pistas que não
abonam a favor de uma redacção coeva do «Livro das
Origens» e da Pedra de Chabaka. Ao contrário da ins-
crição cuchita (na linha 2), que é redigida de acordo com
a regra convencional, a direcção de leitura do «Livro das
Origens», contra a prática dominante na escrita hiero-
glífica, apresenta-se invertida. O escriba cinzelador que
viveu sob o reinado de Chabaka parece assim ter respei-
tado integralmente a estrutura do texto antigo, tal qual se
apresentava na época. Com efeito a direcção de escrita do
«Livro das Origens» pode indicar, corno aponta Breasted,
para uma redacção situada na XVIII dinastia, já que,
corno refere o autor, a inversão deste princípio da escrita
é relativamente frequente em inscrições monumentais
deste período, corno é o caso da inscrição da coroação de
Tutrnés III (1479 a.C.), em Karnak, e das inscrições de
Hatchepsut (1473-1459 a.C.) no seu templo funerário em
Deir el-Bahari138 .
Antes de avançarmos mais na discussão acerca da
datação desta obra, há que, em primeiro lugar, diferen-
ciar cada uma das composições que fazem parte do texto
e estimar a sua redacção separadamente. Pela sofistica-
ção das ideias que transmite, o trecho cosrnogónico é
seguramente mais recente do que a peça dramática. As
concepções cosmogónicas patentes no texto, apesar de
serem as mais evoluídas do pensamento egípcio e, por-
tanto, possivelmente as mais recentes, estão patentes em
textos anteriores, nomeadamente no Texto da Doação do

138 BREASTED, <<The Philosophy of a Memphite Priest••, ZAS 39


(1902), p. 43.

123
Papiro Harris P39 , redigido no reinado de Ramsés III. No
entanto, o cruzamento com outros dados de natureza
religiosa, como a identificação entre Ptah e Tatenen,
apontam o reinado de Ramsés II como a data mais antiga
admissível para a composição do texto cosmogónico.
Também os hinos deAmon redigidos neste período apre-
sentam evidências de uma inspiração directa nos textos
da tradição menfita, se não no trecho cosmogónico redi-
gido no «Livro das Origens», pelo menos nas ideias que
nele perpassam140 .
Quanto ao texto mitológico, o facto de este situar a
localização do túmulo de Osíris em Mênfis, e não em
Abido, como era tradicional, leva certos autores a situar
esta evocação no Império Novo 141 . Também a evocação
das deusas Ísis e Néftis na qualidade de pilar djed é exem-
plificativa dessa recriação tardia, uma vez que se tratam
de atributos que só se difundiram na região menfita no
Império Novo, não sendo retomados em períodos poste-
riores. Este aspecto, só por si, contribui decisivamente
para validar a tese de uma redacção final que não pode ser
posterior ao período ramséssida. De qualquer modo, a

139 Ver Apêndice 3.


140 Ver, por exemplo o Hino a Amon, da XIX dinastia, em A. BARUCQ
e F. DAUMAS, Hymnes et priéres de l 'Égypte ancienne, p. 216. Em certas
passagens, Amon é caracterizado como um deus artífice. Tal como Ptah,
Amon <<moldou as estátuas» e «fez as obras de arte>>. Trata-se, como
vimos, da caracterização mais antiga de Ptah que apresentava o deus
como o patrono dos artesãos. Noutros hinos, Amon é descrito com as
qualidades ctónicas e celestes de Ptah que afirmavam o deus menfita
como o pilar cósmico: «Ergueste a abóbada celeste e estendeste a terra
para alargar este país à tua imagem. A tua primeira forma foi a de Ré,
para iluminar as Duas Terras que criaste de acordo com o desejo do teu
coração, quando estavas sozinho>>.
141 Ver ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 349.

124
evocação do tribunal de Heliópolis, bem como a coroação
de Hórus, é convencional e pode ser bastante mais antiga,
recuando possivelmente ao Império Antigo.
Seja como for, os dados de cariz político também não
concorrem para corroborar uma datação cuchita da peça
mitológica. Encarada sob uma perspectiva política, a dis-
puta entre Hórus e Set poderia evocar o conflito entre
duas concepções opostas de sucessão real que marcaram
as prato-monarquias do Egipto Pré-dinástico (c. 5300-3000
a.C.). Ao invés das monarquias africanas, que privilegia-
vam a sucessão através do irmão mais velho do rei
defunto, a monarquia que caracterizou o Egipto faraónico
privilegiava a sucessão de pai para filho. São estas ten-
dências opostas que poderão estar reflectidas na disputa
entre Hórus (que personificava um novo modelo emer-
gente baseado na transmissão de poder de pai para filho)
e Set (que personificava a sucessão de irmão para irmão).
Esta interpretação é reforçada no nosso texto através da
atribuição do Alto Egipto a Sete do Baixo Egipto a Hórus.
Este dado vem, na nossa opinião, comprometer a ideia de
uma datação deste documento no ambiente político da
XXV dinastia. Sendo uma dinastia retintamente africana,
os reis desta linhagem obedeciam a uma sucessão real
baseada na passagem de poder de irmão para irmão. É o
caso de Chabaka que sucedeu ao irmão Pié, mas também
de Taharka que sucedeu ao irmão Chabataka (702-690
a.C.), ambos filhos de Pié. Estes reinados são finalmente
sucedidos pelo de Tanutamon (664-656 a.C.), filho de
Chabaka. Promover a redacção de um texto que .confli-
tuava com os fundamentos que orientavam a casa real
cuchita só se explica se o texto já existisse.

Por todas estas razões, não parecem existir elementos


no texto que desmintam substantivamente a afirmação

125
enunciada pelo próprio redactor cuchita que atribuía ao
documento uma grande antiguidade. De qualquer modo,
uma genuína veneração por um texto antigo insere-se per-
feitamente no espírito de restauração que tanto caracteri-
zou a XXV dinastia 142 .
O mais provável é que o «Livro das Origens» tenha
resultado de um longo percurso do pensamento e de
forma alguma pode atribuir-se a um único redactor, nem
tão pouco a uma única época. Mais difícil de apurar é o
momento em que as duas composições foram justapostas
no mesmo livro. Fosse qual fosse a intenção desta compo-
sição, a sofisticação literária não parece ter sido o princi-
pal objectivo deste redactor que não parece ter feito um
grande esforço em ligar as duas peças literárias que o
compõem, introduzindo o relato cosmogónico literal-
mente «no meio» do texto mitológico, como é possível
verificar pela forma abrupta como «irrompe>>na composi-
ção e pelas repetições, aparentemente desnecessárias,
patentes na peça dramática. Nesta perspectiva, parece
claro que originalmente a peça era unicamente constituída
pelo texto «teatral>>. Seria, sem dúvida, este trecho o mais
antigo que, por si só, deve ter sido altamente reveren-
ciado, a julgar pela reelaboração que sofreu no período
ramséssida. Foi provavelmente também nesta altura que
terá sido sentida a necessidade de actualizar este venerá-
vel texto à luz de novas noções religiosas.

142
Ao longo de todo o Terceiro Período Intermediário, os textos
religiosos raramente constituíram criações originais, perpetuando, pelo
contrário, tradições anteriores. O <<Livro das Origens>> não deverá cons-
tituir uma excepção; ver HERBIN, <<Un hymne à la lune croissante»,
BIFAO 82 (1982), p. 280.

126
3. ENQUADRAMENTO

3.1. Contexto político: a dinastia cuchita e a Pedra de


Chabaka

O território a montante da primeira catarata do Nilo,


situada nas imediações da actual cidade de Assuão, mar-
cava, na Antiguidade, o início da Núbia e da região de
Kuch que tradicionalmente, pelo menos nas épocas de
maior vigor do poder real, estavam sob o domínio faraó-
nico. Os interesses do Egipto nesta região centravam-se na
exploração do ouro143 e no controlo das rotas comerciais
com a África e o país de Punt, a região de onde eram ori-
ginários produtos preciosos usados no culto divino, como
o incenso e os perfumes. O controlo desta região meridio-
nal era, portanto, estratégico para a riqueza do Egipto,
razão pela qual, em todos os períodos de hegemonia faraó-
nica, se verificou uma forte presença militar egípcia na
Núbia. Esta presença, no entanto, não teve sempre o
mesmo carácter. Ao longo do Império Médio (2055-1650
a.C.), a ocupação egípcia traduziu-se por uma acção mus-
culada, essencialmente alicerçada na repressão e no exercí-
cio da força, que se reflectiu num vasto programa de cons-

143 A Núbia era a principal fonte de abastecimento neste metal pre-

cioso. O próprio nome da região, ainda hoje em vigor, deriva do vocá-


bulo <<ouro>>, nub.

127
trução de fortalezas estrategicamente situadas de modo a
assegurar não só a eficaz exploração destes territórios, bem
como o controlo das rotas caravaneiras e do tráfego flu-
vial144. O faraó que mais se destacou na ocupação militar
da Núbia foi Senuseret Ill (1870-1831 a.C.) que aí parece ter
revelado a sua faceta mais brutal: homens foram mortos,
mulheres e crianças escravizadas, os campos queimados e
os poços de água envenenados145 . Com a população núbia
controlada graças à forte presença militar, a ocupação egíp-
cia pouco mais transcendia o âmbito da exploração
mineira e do controlo do tráfego de mercadorias.
No Império Novo (1550-1069 a.C.), no entanto, apre-
sença faraónica assumiu um contorno mais subtil. A pre-
sença militar foi progressivamente sendo temperada por
uma influência de carácter cultural que foi garantida pela
construção de inúmeros templos, muitos deles dedicados
à deificação do próprio faraó. De facto, a partir do reinado
de Tutmés Ill (1479-1425 a.C.), que fundou o primeiro
templo real na Núbia 146, muitos outros faraós aí edifica-
ram edifícios religiosos complexos, muitos deles rupestres
como é o caso dos templos de Abu Simbel, com o intuito

144 São exemplos da edificação de estruturas militares ao longo do

Império Médio, as fortalezas de Kuban e de Aniba (ambas desaparecidas


sob as águas da albufeira Nasser), bem como as fortalezas de Buhen, Kor,
Dabenarti, Mirgissa, Askut, Chalfak, Uronarti, Kumma e Semna, ver
MANLEY, Atlas de I tgypte Ancienne, p. 51.
145 Ver SHAW, The Oxford History of Ancient Egypt, p. 166.
146
Tutmés ill parece ter sido o primeiro faraó a revelar interesse
pela construção de um templo escavado na rocha em território núbio.
Este templo, de dimensões muito reduzidas foi construído em EI-Lessia,
220 km a sul da primeira catarata do Nilo. Acerca deste templo ver DE5-
ROSCHE5-NOBLECOURT, Le Secret des temples de la Nubie, pp. 119-128.
O templo encontra-se actualmente exposto nas instalações do Museu
Egípcio de Turim.

128
de se associarem aos poderes regeneradores da cheia,
como foi o caso de Amen-hotep III (1390-1353 a.C.) e, em
particular, de Ramsés II (1279-1213 a.C.). Este segundo
tipo de ocupação, alicerçando-se na força da cultura e do
culto, promoveu uma «egipcianização» muito eficaz des-
tas populações e contribuiu para a difusão da religião e da
ética egípcias, criando assim uma população mais recep-
tiva e tolerante à sua presença.
Devido à dificuldade crescente em controlar a pres-
são sobre as fronteiras setentrionais do Delta, após o rei-
nado de Ramsés II, na XIX dinastia (1292-1186 a.C.), a
região da Núbia e de Kuch foi progressivamente ficando
entregue a si mesma. Desde Merenptah (1213-1203 a.C.), o
sucessor de Ramsés II, que o faraó era levado a concen-
trar-se em repelir as investidas de «hbios» e de asiáticos.
Esta ameaça crescente de investidas tomou-se de tal modo
premente que acabou por culminar na batalha que opôs
Ramsés III (1184-1153 a.C.) à coligação dos chamados
<<Povos do Mar». Assim, liberto da hegemonia egípcia, o
país de Kuch viu nascer uma dinastia autóctone com capi-
tal em Napata, onde se erguia, no sopé da montanha
sagrada de Gebel Barkal, o mais importante templo de
Amon construído a sul do Egipto. Enquanto esta dinastia
consolidava o seu poder, a norte, no início do Terceiro
Período Intermediário (1069-664 a.C.), o Egipto acabou
por se dividir: o clero de Amon-Ré, em Tebas, controlava
o Sul do Egipto, ao passo que o Delta era governado pelos
faraós da XXI dinastia (1069-945 a.C.), sediada em
Tânis 147 . Em breve, porém, o norte do Egipto seria <<reta-
lhado» numa poliarquia disseminada por capitais regio-

147 Sobre a situação política do Egipto na XXI dinastia ver ARAÚJO,

O Clero do deus Amon no Antigo Egipto, pp. 135-149 e ARAÚJO, Estatuetas


Funerárias Egfpcias da XXI dinastia, pp. 334-344.

129
nais como Saís, Leontopólis, Tânis e Bubastis, regidas por
soberanos de origem líbia, dando origem à XXII (945-712
a.C.), à XXIII (818-712 a. C) e XXIV (727-715 a.C.) dinastias.
Esta pulverização das estruturas de poder está provavel-
mente relacionada com a origem semi-nomádica dos
governantes «Hbios» que ajustaram a administração do
Egipto às suas próprias estruturas de poder. A descarac-
terização do poder real é sintomática e ilustra bem o
impacto da presença «hôia» noutros domínios: o equi-
pamento funerário tomou-se mais frugal, o «Livro dos
Mortos» deixou de ser reproduzido e os túmulos foram
parcamente cuidados148. Integrando nos usos políticos e
religiosos os seus próprios costumes originais, os gover-
nantes «hôios» originaram uma forte descaracterização da
cultura egípcia.
Quando Pié (747-716 a.C.), o rei de Kuch, marchou
sobre o Egipto, no ano 21 do seu reinado, não há dúvida
que estava movido pelo desejo de restaurar a velha ordem
faraónica no seu vizinho setentrional. Vencendo uma coli-
gação de quatro reis locais, Pié viu o seu controlo esten-
der-se à região sul do Egipto 149 . Foi, no entanto, Chabaka
(716-702 a.C.), irmão de Pié, quem consolidou a presença
cuchita no Egipto e relançou a recuperação dos valores
tradicionais da monarquia egípcia. O controlo militar de
Chabaka estendia-se desde o território ocupado pelos reis
da XXIV dinastia saíta até ao país de Kuch. Foi no seu rei-
nado pacífico que verdadeiramente se iniciou a campanha
de depuração cultural do Egipto, quer através da recupe-

148 SHAW, The Oxford History of Ancient Egypt, pp. 364-365.


149 A Estela da Vitória, hoje conservada no Museu Egípcio do Cairo,
relata este acontecimento. Originalmente foi colocada diante do templo
de Amon em Gebel Barkal e foi copiada em muitos templos do Egipto,
para assinalar o acontecimento.

130
ração de obras literárias em risco (como a Pedra de
Chabaka documenta), quer através de uma estratégia de
construção e valorização de -alguns do principais santuá-
rios do Egipto como Mênfis, Abido, Dendera e Tebas. Em
Tebas, até aí o santuário politicamente mais importante do
Egipto, Chabaka vai procurar assegurar o controlo do
poderoso templo de Amon-Ré, nomeando o seu filho,
Horemakhet, como sumo sacerdote deAmon e elegendo a
sua irmã, Amenirdis I, como divina adoradora de Amon.
Após um reinado de catorze anos, apenas ensom-
brado pela ameaça crescente do império neoassírio,
Chabaka foi sepultado na necrópole real de El-Kurru, em
Napata, adoptando os costumes funerários faraónicos. Foi
sucedido por dois dos seus sobrinhos, filhos de Pié,
Chebetku (702-690 a.C.), por vezes também referido como
Chabataka, e Taharka (690-664 a.C.). O seu reinado consti-
tuiu um período essencial para a consolidação do domínio
cuchita no Egipto. Para além da força militar, o faraó uti-
lizou amplamente aspectos de ordem religiosa para refor-
çar o seu poder político. A sua irmã Amenirdis, já o referi-
mos, foi empossada como esposa divina deAmon, a função
suprema do clero amoniano, constituindo um factor
importante de consolidação do poder real no contexto do
poderoso templo tebano deAmon-Ré.
É sintomático que tenha sido sob o impulso desta
dinastia estrangeira que o estudo da cultura do Império
Antigo (c. 2686-2160 a.C.), a idade de ouro da construção
das pirâmides, tenha sido impulsionado, iniciando-se
uma autêntica pesquisa destinada a identificar os elemen-
tos formais que conferiam ao «estilo egípcio>> a sua
pureza 150 . Da literatura à arquitectura, por toda a parte, as

150 As marcas de urna grelha reticulada, patentes em muitos monu-

mentos menfitas, atestam a busca do <<cânone» ideal. Tal é o caso do com-

131
realizações de Chabaka e da dinastia cuchita evidenciam
uma pesquisa intensa dos modelos antigos 151 • Até as titu-
laturas usadas pelos reis cuchitas, se basearam em formu-
lações copiadas directamente de grandes monarcas do
passado152. O próprio Chabaka se apropriou do nome de
coroação de Pepi II (c. 2278-2184 a.C.), Neferkaré, que se
notabilizou pela invejável duração do seu reinado (cerca

plexo funerário de Djoser Netjerirkhet (c. 2670-2650 a.C.), por exemplo,


onde uma galeria foi escavada para entrar nos subterrâneos e estudar os
relevos aí patentes.
151 O edifício de Taharka em Karnak evidencia o mesmo espírito
eclético dos reis cuchltas, revelando um estudo aturado da iconografia e
uma intencionalidade clara em articular simbolicamente o edifício com
todo o recinto de Karnak. Apesar das suas modestas dimensões, o edifí-
cio recuperava todos os elementos arquitectónicos do recinto de Karnak
(o templo de Arnon-Ré, o lago sagrado e o próprio templo de Mut). Ao
articular estes elementos com o mistério da regeneração de Arnon-Ré, o
edifício de Taharka concretizava uma síntese simbólica espantosa,
fazendo convergir crenças cosmogónicas (de índole solar e ctónica) com
as representações cósmicas da realeza, de modo a extrair um valor polí-
tico tremendo. O intuito desta articulação simbólica era claro e relacio-
nava-se com a principal empresa dos reis cuchltas: empreender um
regresso purificador à origem dos tempos, apagar as marcas de corrup-
ção introduzidas pelos soberanos de origem líbia e revitalizar o poder
faraónico. Esta preocupação em valorizar o papel religioso do faraó tinha
certamente como intuito preparar a reurrificação política do país e man-
ter afastadas as ameaças de invasão estrangeira. Neste aspecto, não há
dúvida que o valor do edifício de Taharka transcende largamente o
legado «artístico>> no sentido estrito, afirmando-se como um testemunho
da rara visão integradora da herança cultural faraónica que também
é detectável na Pedra de Chabaka, ver SOUSA, <<O edifício de Taharka
no lago sagrado de Karnak: Simbolismo e função ritual», em Arte Pré-
-Clássica, pp. 279-302.
15 2 É também o caso do nome de rei do Alto e do Baixo Egipto de

Pié (747-716 a.C.) que adoptou o nome Menkheperré da titulatura de


Tutmés ill (1479-1425 a.C.).

132
de 90 anos, segundo a tradição). Latente estava portanto o
desejo de um reinado igualmente duradouro para enrai-
zar firmemente a dinastia cuchita no solo do Egipto.
É curiosamente, a propósito desta «apropriação» do
nome de coroação de Pepi II que encontramos um dos pri-
meiros exemplos conhecidos de reacção à propaganda ofi-
cial de um soberano invasor. A mesma identificação que
Chabaka promovera entre si e o rei Pepi II motivou, com
intenções satíricas ou talvez simbólicas, a redacção de
uma composição alegórica em que, com a designação
ambígua de Neferkaré, o rei Chabaka foi envolvido num
enredo de teor homossexual. No conto As peripécias
nocturnas do rei Neferkaré, a narrativa relata os encontros
fortuitos entre o rei Neferkaré e o general Sisenet. A histó-
ria conta que o rei se dirigia todas as noites à casa do gene-
ral Sisenet na quarta hora da noite, permanecia na sua
companhia durante quatro horas, «fazendo com ele tudo
o que desejava», uma expressão proverbial para designar
um encontro amoroso de natureza sexual, e regressava ao
palácio quando ainda faltavam quatro horas para a alvo-
rada. O significado para a afirmação tão aberta de uma
aventura homossexual entre o faraó e um dos seus gene-
rais tem-se afigurado problemática, uma vez que, através
dos indícios que chegaram até aos nossos dias, a socie-
dade egípcia parece ter alimentado uma atitude em rela-
ção aos comportamentos homossexuais que hoje classifi-
caríamos de «homofóbica». Este argumento tem contri-
buído para reforçar o carácter satírico desta composição,
que assim concorria para divulgar veladamente um
<<boato» de carácter anedótico 153 .

153 Em DIJK, <<The nocturnal wanderings of king Neferkaré», p. 393.

Posener, por outro lado, não atribui ao conto qualquer valor simbólico
ou satírico; ver G. POSENER, << Le conte de Neferkaré et du general

133
A verdade é que o caso pode ser ainda mais complexo
pois, analisado em pormenor, o conteúdo do conto parece
revestir-se de um significado simbólico inesperado, pois
sugere uma identificação entre o passeio noctívago do
faraó e o percurso nocturno do Sol pelo mundo inferior,
durante o qual o astro se reunia ao corpo de Osíris, o deus
ctónico do interior da terra 154. Sabemos que esta união
entre os princípios antagónicos e complementares da
criação, o Sol e a Terra, constituía um dos mistérios mais
sagrados e venerados da religião egípcia 155 . Era pois este
momento secreto e nocturno, em que o deus solar se rege-

Siséné», Rd t 11 (1957), p . 136. Os defensores desta tese argumentam que


a presença da dinastia cuchita no trono do Egipto não podia deixar de
motivar uma forte resistência interna. Ao eleger Mênfis como sede do
poder real, os faraós cuchitas contribuíram para diminuír a importância
política do templo deAmon de Kamak que até aí permanecera, ao longo
de todo o Terceiro Período Intermediário, como um estado teocrático
perfeitamente autónomo. A prova de que este era um objectivo impor-
tante para Chabaka consiste na eleição, a partir do reinado deste
monarca, da esposa divina de Amon pela casa real. Escolhida entre as
princesas da dinastia cuchita, esta sacerdotisa eclipsaria, daí em diante,
a importância política do sumo sacerdote de Amon e garantia a proxi-
midade entre o soberano e o referido templo; ver SHAW, The Oxford
History of Ancient Egypt, p . 338. Este tipo de medidas pode ter sido muito
impopular entre o clero que teria reagido difundido um relato que com
certeza não seria abonatório para os egípcios daquele tempo acerca da
integridade do faraó.
154 Os argumentos a favor desta tese consistem na enumeração das

horas da noite que marcam o compasso do percurso real. A quarta hora


da noite, altura em que o rei inicia o caminho rumo à casa de Sisenet,
decalca a entrada do Sol no mundo inferior, bem como a sua permanên-
cia junto do cadáver de Osíris.
155
A expressão frequentemente redigida nos túmulos <<Ré repousa
em Osiris e Osíris repousa em Ré>>era a expressão desta união através
da qual Osíris era revivificado por Ré, tomando-se a sua manifestação
nocturna, ao passo que Ré renascia regenerado como resultado da sua
união.

134
nerava e retomava a recriação do mundo, que o conto
associava implicitamente ao rei Neferkaré. Dificilmente
este grande mistério da religião egípcia, a união miste-
riosa de Ré e de Osíris, poderia ter tido uma leitura satí-
rica, ainda que os seus intérpretes fossem, no plano narra-
tivo, o rei Neferkaré e o seu amante, o general Sisenet156 .
Independentemente da veracidade ou não da leitura
satírica do conto, a verdade é que uma vez mais nos depa-
ramos com a associação de Chabaka ao imaginário da
criação do mundo, desta vez através da sua identificação,
talvez de um modo mais literal que metafísico, com o
mais venerável mistério da criação. Este enquadramento
mostra que a temática da criação foi de tal modo asso-
ciada à dinastia cuchita para expressar o seu desejo de
depuração e recuperação do poder faraónico que, em sur-
dina, pode mesmo ter sido utilizada para a satirizar.
Todos estes elementos concorrem para integrar a
Pedra de Chabaka num contexto político claramente
orientado pela ideia de depuração, de um regresso à
pureza dos tempos antigos. Nesta perspectiva, o «Livro
das Origens» parece constituir um entre os muitos ele-
mentos actualmente conhecidos que contribuem para afir-
mar o panfleto político da dinastia cuchita: a presença dos
reis de Kuch no trono do Egipto justificava-se plenamente
pois, através dela, a civilização egípcia era profundamente
«depurada» e recuperada.
Este espírito de renovação cósmica, tão arreigado na
estratégia política dos reis de Kuch, imprimiu à cultura

156 A natureza sexual deste encontro é inquestionável. <<Depois de

sua majestade ter feito o que desejava com ele voltou ao palácio>>.
A mesma expressão foi usada em textos onde o teor sexual é perfeita-
mente claro. É o caso da união sexual entre o deus Amon e a rainha-mãe,
que motivou a concepção da rainha Hatchepsut.

135
deste período um olhar debruçado sobre o passado, em
busca de referências para uma depuração civilizacional
profunda. Este olhar «retrógrado» e claramente arcaizante
é detectável em muitos aspectos da acção governativa
destes monarcas, onde também se inclui a recuperação e
monumentalização do «Livro das Origens>>. O gesto pie-
doso do faraó, descrito na Pedra de Chabaka, para além
de reflectir uma profunda reverência para com o texto
sagrado, tem que ser integrado numa estratégia política
mais alargada que consistiu em relançar o carácter cós-
mico do poder real, através da recuperação das tradições
e rituais menfitas 157. A restauração do estatuto intelectual
e religioso de Mênfis permitia que a nova dinastia cuchita
fosse perspectivada como o renascimento do Império
Antigo. Neste aspecto o «Livro das Origens>> documenta
uma nova e muito intensa relação com o passado que,
para além de um significado religioso, adquire também
um estatuto político158 . Era a força de um passado reno-
vador, que devolvia a pureza de um tempo original e pre-
nhe de significado, que Chabaka invocava para esconjurar
todas as ameaças que, no interior e no exterior do Egipto,
comprometiam a prossecução do seu ambicioso projecto
de reunificação do país 159.

157 A linha introdutória do «Livro das Origens» testemunha o inte-

resse pessoal do rei Chabaka em conhecer os livros sagrados guardados


no templo de Ptah. O texto refere que foi o próprio rei a encontrar esse
escrito, sublinhando o seu envolvimento activo no esforço de conserva-
ção do livro que motivou a sua redacção minuciosa para a pedra. Para
além deste esforço pessoal temos forçosamente que reconhecer um inte-
resse estratégico e político subjacente à pesquisa efectuada nos arquivos
do templo.
158 ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 346.
159
Foram assim implantadas as bases para um fenómeno desti-
nado a ter continuidade na Época Baixa (664-332 a.C.), sobretudo na

136
3.2. Enquadramento teológico: As tradições cosmo-
gónicas de Heliópolis e de Hermópolis

Independentemente das questões políticas envolvi-


das na redacção na Pedra de Chabaka, o «Livro das
Origens» é, antes de mais, o testemunho de um laborioso
trabalho de síntese teológica entre tradições com prove-
niências diversas, o qual seguramente se prolongou por
mais de dois mil anos. A própria caracterização de Ptah
sofreu inúmeras mutações ao longo do tempo, reflectindo
um esforço contínuo para enriquecer e «actualizar» as
suas prerrogativas divinas. É encadeada neste trabalho de
actualização permanente da definição divina de Ptah que
devemos situar a tendência, que se detecta nos textos
apresentados neste volume, para estabelecer abordagens
sincretistas com outros cultos e tradições religiosas do
Egipto, sobretudo com Hermópolis e Heliópolis.
A proximidade entre estas tradições nada tem de
estranho. Na verdade, desde o Império Antigo, existiu
sempre uma grande convergência entre o clero de Ptah e
o culto solar de Heliópolis 160 . De qualquer modo, as tradi-
ções religiosas de Heliópolis e de Hermópolis exerceram
sempre, em todas as épocas da história egípcia, o papel de
modelo nacional, fornecendo o léxico, as imagens, os sím-
bolos e os arquétipos míticos que as diversas tradições

XXVI dinastia (664-525 a.C.) onde este aspecto alcançou a sua plena
maturidade através dos faraós saitas, os quais revelam o mesmo empe-
nho em empreender um regresso purificador às origens do Egipto.
160 O próprio culto dos templos solares dos reis da V dinastia, cons-

truídos em Abusir, em plena necrópole menfita, era desempenhado


pelos sacerdotes de Ptah que aí velavam para a execução dos rituais
associados a Ré; ver MAYSTRE, Les grands prêtres de Ptah de M emphis,
P· 44.

137
locais desenvolveram no seu contexto mitológico especí-
fico como sucedeu em Tebas, Esna, Mênfis ou Elefan-
tina 161 . Em Mênfis, esta convergência registou-se com as
tradições mais antigas e traduziu-se na associação de Ptah
à Ógdoade hermopolitana e à Enéade heliopolitana, res-
pectivamente162. A importância que estas colectividades
de deuses desempenharam na própria tradição menfita
exige, neste momento, um apontamento explicativo sobre
cada delas163 .

A Ógdoade hermopolitana

A cidade de Hermópolis, situada no Médio Egipto,


era conhecida no Egipto faraónico como Khemunu, «A
(cidade) dos Oito», aludindo à Ógdoade, o conjunto de
oito deuses que, de acordo com o mito local, criaram o
mundo no início dos tempos164 . Estas divindades forma-
vam quatro pares de casais, cada um deles associado a um

16 1Ver ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 348.


162 Ver ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 41.
163 Sobre as tradições cosmogónicas do Antigo Egipto ver SOUSA,
«Ü imaginário simbólico da criaçã•J do mundo no Antigo Egipto>>, em
Estudos de Homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias, II vol.,
pp. 313-334.
164 Esta cidade constituiu, durante todo o período histórico do Egipto,

um dos principais centros de culto do deus Tot (ou, Djehuti, como era
denominado em egípcio), cujos símbolos eram a íbis e o babuíno. Deus
da lua, Tot tutelava o calendário mas também os hieróglifos (medu-netjer,
em egípcio, ou seja, as <<palavras divinas>>). Senhor do conhecimento
sagrado, Tot foi comparado pelos Gregos a Hermes, razão pela qual atri-
buíram à cidade o nome de Hermópolis. Apesar da sua preponderância,
Tot não era referenciado na cosmogonia hermopolitana, a qual, pelo
contrário, destacava o papel de oito divindades primordiais, a Ógdoade
hermopolitana.

138
elemento particular do caos inicial: Nun e Naunet perso-
nificavam a água, Heh e Hauhet, o infinito, Kek e Kauket,
a escuridão e Amon e Amonet identificavam-se com o
insondável, o oculto 165 • Os elementos masculinos destas
divindades eram representados como rãs, ao passo que os
elementos femininos eram representados como serpentes.
Os animais utilizados na iconografia destes deuses acen-
tuavam o poder de procriação e de transformação da
cópula cósmica, através da qual desencadearam a criação
do mundo166 . Em resultado desta cópula colectiva nasceu,
das águas do oceano, o lótus primordial que guardava
em si o tesouro da criação: sob as pétalas da flor estava
Nefertum, o menino solar, que, à medida que a flor se
abriu, foi iluminando o mundo primordial imerso na
escuridão com o seu sorriso radioso.
A grandeza poética destas imagens não deve dissi-
mular o carácter tangível que elas possuíam aos olhos dos
teólogos hermopolitanos, pois a associação da flor de lótus
ao mundo renascido sob as águas do oceano primordial
era uma experiência bem concreta. De facto, quando a
terra negra e fértil era inteiramente coberta pela água da
cheia, o mundo parecia regressar ao seu estado de indife-
renciação original, ao tempo primordial da origem.
Depois, à medida que a água se retirava, começavam a

165 Esta caracterização do mundo anterior à criação lembra curio-

samente o relato bíblico: <<No princípio quando Deus criou os céus e a


terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito
de Deus movia-se sobre as águas» (Gn 1, 1-2).
166 É interessante constatar que, no seio de cada par, o nome femi-

nino seja sempre elaborado a partir do masculino correspondendo à


simples adição da partícula t que, em egípcio, constrói o feminino. Cada
par primordial constituía, portanto, uma unidade entre o princípio mas-
culino e o princípio feminino e cunhava a criação do mundo com fortes
conotações sexuais.

139
emergir pequenas colinas de terra, de onde brotavam os
primeiros botões de lótus anunciadores de um novo ciclo
de vida e de fertilidade na Terra Negra. Os símbolos her-
mopolitanos da origem do mundo enraízavam-se assim
nos próprios ciclos do Nilo.
Depois de fazer nascer a luz, sob a forma da criança
solar, a Ógdoade pôs em marcha a montagem do universo
e a instalação da ordem cósmica sobre a terra, criando a
idade de ouro do universo. É a força mística do imaginá-
rio cosmogónico associado à Ógdoade hermopolitana que
explica o interesse manifestado no «Livro das Origens»
em criar uma Ógdoade menfita, através da qual Ptah se
associava aos elementos anteriores à criação, entre os
quais figura o próprio Nun, a personificação do caos pri-
mordial, e também o seu contraponto feminino, Naunet.

A Enéade heliopolitana

Iunu, a cidade do culto solar, conhecida entre os


Gregos como Heliópolis, foi o maior centro religioso e cul-
tual do Egipto167. Neste contexto nasceu o mais difundido
mito cosmogónico egípcio que era protagonizado por um
conjunto de nove deuses, a Enéade (Pesedjet, em egípcio),
que personificava, por excelência, a relação entre o um e o
múltiplo, ou seja, entre o deus original e o mundo criado.

16 7No seu templo era venerado o deus solar nas suas três manifes-
tações: Ré, Khepri e Atum. Aí se cultuava também o benben, o monólito
ass?Ciado à colina primordial cuja extremidade coberta de ouro recebia
os primeiros raios de Sol em cada manhã. A teologia solar, aí concebida
desde a mais remota antiguidade, foi decisiva para a vida religiosa e
política do Egipto. A associação de Ré à monarquia consolidou-se na IV
dinastia e, apesar da ascensão deAmon e de Osíris, permaneceu sempre
uma divindade de alcance nacional.

140
Esta relação é sugerida através da numerologia sagrada.
O número um simbolizava o incriado, o mundo anterior à
criação, o mundo da não-existência 168. Era também o
número da unidade, no sentido em que remete para o
criador ainda consubstanciado no mundo. É o número da
inércia e da imobilidade. O número dois reportava-se ao
momento inaugural da criação, aquele em que o um ori-
ginal se desfez para criar a dualidade, os princípios com-
plementares, o masculino e o feminino que, através da sua
união, engendraram a multiplicidade dos seres. O três,
por seu lado, é o número da multiplicidade, da criação.
Dado que o nove se obtém através de três repetições do
número três, esta multiplicidade revestia-se de um signi-
ficado exponencial, enunciando a totalidade plena dos
elementos criados. Em última análise, a Enéade simboli-
zava a totalidade das divindades criadas que dão forma
ao cosmos. Em suma, do um ao nove, a Enéade conciliava
em si mesma a unidade fundamental de deus no singular
e a multiplicidade de deuses, típica do politeísmo.
À cabeça desta Enéade estava o rei da criação, Atum,
o velho deus Sol. O nome Atum, deriva do verbo tem e
tanto significa «completar» (ou «realizado»), como «não
existir». Deste modo, «aquele que se completou», ou «o
que deixou de existir», são traduções igualmente possí-
veis do seu nome169, o que significa que o criador resumia

168 Efectivamente, o caos não podia ser compreendido nem expli-

cado, pelo que a melhor forma de o descrever era através da negação, ou


seja, através do que <<não é>>. Foi assim que surgiu a noção da não-exis-
tência que caracterizava o caos: antes da criação não havia humanidade,
nem deuses, nem vida, nem morte: <<Ü rei foi concebido pelo seu pai Atum
antes do céu ter existido, antes da terra ter existido, antes da humani-
dade ter existido, antes dos deuses terem nascido, antes da própria
morte existir>> (<<Textos das Pirâmides»,§ 1466).
169 ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 9.

141
em si mesmo os extremos opostos: o tudo e o nada, o ser
e o não ser.
Era o deus Atum que estabelecia uma solução de con-
tinuidade entre o mito hermopolitano e o mito heliopoli-
tano, pois consistia na manifestação madura e «idosa» de
Nefertum, a criança solar criada pela Ógdoade. Na verdade,
o nome da criança solar significava simplesmente «Ü Jovem
Atum». Mais do que uma versão contraditória da criação,
estes mitos descreviam momentos diferentes da criação: a
Ógdoade criou Nefertum, a criança solar que, ao atingir a
maturidade, criou a Enéade, ou seja, toda a comunidade de
deuses que regem o funcionamento do cosmos.
De acordo com o mito, a criação de Atum iniciou-se
sobre pedra benben, o monólito sagrado de Heliópolis.
O monumento, que havia de inspirar a erecção dos obe-
liscos, assinalava este momento original que começou
com a masturbação de Atum. Ao ejacular, Atum originou
Chu170 (representado no fluxo de energia associado à liber-
tação do sémen) e Tefnut171 (identificada com o potencial
de vida do sémen) 172 . Parece consensual que este par

°
17 Chutem sido frequentemente associado ao <<ar» , ou ao <<sopro

de vida», ver VELDE, <<Some Aspects of God Shu>>, JEOL 26 (1979-1980),


pp. 23-28. A imagem da ejaculação é bastante interessante pois fornece
uma imagem visual do poder de projecção <<para cima>> deste sopro.
A imagem preconiza assim aquele que é o seu atnbuto mais comum
como deus da atmosfera: o poder de erguer o céu .
171
A deusa é frequentemente associada à humidade, muito embora
o seu âmbito não se esgote nesta associação. Na m aior parte das vezes
possui uma conotação vincadamente solar, personificando o Olho de Ré
e a iaret a serpente sagrada que protege a fronte do faraó e que os Gregos
chamarão de uraeus.
172
Devido à sua indispensável colaboração no processo criativo, a
mão do demiurgo acabou por merecer uma hipostização sob a forma da
deusa Iusaés que assim se tornava no princípio feminino subjacente à

142
primordial corporizava a diferenciação dualista dos prin-
cípios masculino e feminino que perpassa por toda a
criação173 . Chu simbolizava a luz, o princípio masculino
activo, ao passo que Tefnut, personificava a vida, o princí-
pio feminino passivo. A dualidade primordial associada à
diferenciação sexual continha em si, através da sua arti-
culação complementar, a possibilidade de criar todas as
coisas. A emergência de «duas coisas» assinalava, por-
tanto, o momento inaugural da criação, aquele em que o
demiurgo dividiu a totalidade primordial em dois princí-
pios antagónicos necessários para cunhar o cosmos com o
dinamismo necessário para assegurar a sua perpétua
transformação174 .
Muitos aspectos da iconografia real apresentam uma
configuração dualista precisamente com o intuito de iden-
tificarem o faraó com o próprio Atum. A coroa real, por
exemplo, é uma coroa dupla, a pa-sekhemti («As Duas
Poderosas»), composta através da sobreposição da coroa
branca, evocativa do Alto Egipto e do órgão sexual mas-
culino, com a coroa vermelha, evocativa do Baixo Egipto
e do órgão sexual feminino. Fazendo alusão à união

criação. Para a deusa Iusaés ver ARAÚJO, <<lusaés>>, Dicionário do Antigo


Egipto, p. 456. Outras versões perspectivavam a criação de Chu e Tefnut
através da saliva ou do suor de Atum. Evidentemente nenhuma destas
formas era considerada como uma verdadeira etiologia da criação.
Através das imagens corporais procurava-se explicar a transmissão da
<<matéria» de uma fonte una para a heterogeneidade do mundo exterior.
173 James Allen, no entanto, também reconhece neste par a diferen-

ciação entre a atmosfera superior (Chu) e a atmosfera do mundo inferior


(Tefnut); ver ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 9.
174 Nos tempos anteriores à criação <<não havia duas coisas>>

(<<Textos dos Sarcófagos>>, II, 396 b; m, 383 a.). Na numerologia sagrada


egípcia a unidade exprimia a inércia do caos anterior à criação, ao passo
que as «duas coisas>> exprimiam o início da criação.

143
sexual entre o princípio masculino (coroa branca) e femi-
nino (coroa vermelha), a coroa dupla era o símbolo, por
excelência, de Atum, a totalidade. Ao usá-la, o faraó do
Egipto identificava-se com o demiurgo heliopolitano e
chamava a si a responsabilidade pela recriação do mundo
através do equihbrio dinâmico que fazia reinar sobre as
Duas Terras e sobre toda a criação graças à harmoniosa e
fecunda articulação entre os dois princípios cósmicos
complementares175 .
Com a criação do casal primordial Chu e Tefnut,
Atum encheu o mundo com a plenitude da vida e da ver-
dade. O casal primogénito deu origem, por sua vez, a duas
outras divindades, Geb, o deus da terra, e Nut, a deusa do
céu, originando o referencial cósmico que enquadra a vida
humana 176 . Através do amplexo que se realizava diaria-
mente entre os seus corpos, Geb e Nut criaram também o
tempo e a alternância entre o dia e a noite. De dia, os seus
corpos afastavam-se sob a acção de Chu, o deus da luz,
que erguia para o alto o corpo de Nut para que o deus Sol
pudesse navegar na abóbada celeste. À noite, quando o
Sol entrava na Duat, os corpos de Geb e Nut uniam-se e
criavam a noite, permitindo assim aos homens a visão da
Via Láctea, que era afinal o corpo cintilante da deusa177 . O
mito heliopolitano refere que Chu, invejoso da união amo-

175 Também na titulatura real se manifestava o carácter dual do seu


poder: o título das Duas Senhoras, bem como o título de rei do Alto e do
Baixo Egipto, definiam o papel criativo do poder real; ver BONHÊME e
FORGEAU, Pharaon, pp. 102-110.
176 A deusa Nut, cujo nome significa «A que pertence à água», era

a personificação da água celeste que continha a essência de vida e per-


sonificava a pureza da vida divina.
177
Durante o dia, o deus solar percorria os céus na barca diurna, a
mandjet, e, à noite, atravessava o mundo subterrâneo, a Duat, na barca
nocturna, a meskenet. Em certas passagens dos textos funerários, trans-

144
rosa de Nut e Geb, separou os amantes divinos erguendo
o céu acima da terra. Mais tarde, quando Ré se cansou de
governar a terra, o deus Sol e as divindades abandonaram
o mundo terreno, deixando-o aos homens e ascenderam
ao céu, para longe da imperfeição humana. Nesta óptica,
Nut e Geb simbolizavam o fosso que separava o plano
humano (a terra) do mundo dos deuses (o céu), que estava
infinitamente longe e distante. No entanto, do mesmo
modo como o amor de Nut e Geb continuava a impeli-los
um para o outro, também entre os homens e os deuses con-
tinuava a existir um elo capaz de fazer descer o céu à terra
e manter as divindades em contacto com os homens. A
separação entre o céu e a terra não era, portanto, um dado
decorreote da ordem natural das coisas, mas uma conse-
quência da imperfeição humana. O deus Chu, o deus da
luz, personificava, deste modo, a ligação cósmica que
ainda era possível estabelecer com o mundo puro das
divindades.
Da união entre a deusa celeste com o deus da terra
nasceram dois pares de deuses: Osíris e Ísis, por um lado,
e Set e Néftis, por outro. Para além de personificarem os
elementos naturais que caracterizavam o cosmos nilótico,
estas divindades também reflectiam uma organização
política. Ísis, a deusa conotada com a terra fértil do Egipto,
personificava o trono da realeza, que simbolizava a natu-
reza e, por extensão, toda a criação, ao passo que Osíris,
identificado com o lodo fertilizador do Nilo, constituía o
modelo do faraó reinante. Set, protagonizando as forças

parece a ideia de que, à noite, o Sol era engolido por Nut e que o interior
do seu corpo podia ser identificado com a Duat. Noutras passagens,
porém, a Duat é posicionada no mundo inferior, sendo assim encarada
como uma emanação do deus Geb; ver WILKINSON, The complete Gods
of Ancient Egypt, p. 206.

145
do deserto, simbolizava o caos e a morte, numa palavra,
as forças hostis à vida e ao exercício da monarquia.
A oposição entre os elementos nilóticos da vida e as
condições desérticas que lhe são adversas inspirou certa-
mente o fratricídio de Osíris. Apesar de retalhado por Set,
o cadáver de Osíris foi recuperado por Ísis e Néftis, que
conseguiram ressuscitá-lo, tornando-o no rei do mundo
inferior. Um último elemento, exterior à Enéade, estabele-
cia um elo entre a criação do mundo e o plano humano e
político. Tratava-se de Hórus, o filho e herdeiro de Osíris,
que se tornou o paradigma do rei vivo.
Uma genealogia de cinco gerações divinas traçava
assim os fundamentos do poder político através de uma
corrente que fluía de «cima para baixo». Da fonte
suprema, Atum, emergiram os princípios cosmológicos,
Chu e Tefnut (o princípio masculino e o princípio femi-
nino) que regiam o funcionamento do cosmos. Deste
plano abstracto a criação prosseguiu para a criação do céu
e da terra, Geb e Nut (o plano dos homens e o plano das
divindades) e daqui para a criação do Egipto e dos arqué-
tipos divinos do comportamento humano (Osíris, Isis,
Néftis e Set). O herdeiro desta linhagem divina era Hórus,
o sucessor de Osíris e o modelo arquetípico do faraó.
O mito heliopolitano traçava assim os fundamentos reli-
giosos do poder político. O rei vivo, identificado com
Hórus, actualizava continuamente o velho mito da criação
e justificava a sua acção política no quadro da reposição
da ordem cósmica, a maet, a noção egípcia que evocava
a pureza da ordem cósmica no momento inaugural da
origem do mundo.
Esta responsabilidade era representada simbolica-
mente no culto divino através da oferenda ritual da deusa
Maet, com a qual se alimentavam as divindades. O signi-
ficado deste gesto, porém, vai muito para além da cir-

146
cunstância ritual e traduz a responsabilidade do faraó em
devolver a maet ao mundo terreno, devolvendo-lhe a
pureza que os deuses lhe haviam conferido na origem dos
tempos. A maet enchia o mundo com a vida, a plenitude, a
verdade e a abundância. O seu oposto, a isefet, que signi-
fica «ausência» ou «falta », manifestava-se na morte, na
escassez, na mentira e na corrupção. Se o mundo estava
repleto de «ausência», tal não correspondia ao seu estado
original. Pelo contrário, a morte e a injustiça eram sinto-
mas do esvaziamento de sentido do mundo que se dis-
tanciou da sua plenitude original. O sentido da criação
residia sempre na plenitude, na ordem, na justiça, em
suma, na maet178 . O bem estava, portanto, na ordem natu-
ral das coisas, ao passo que o mal não tinha uma existên-
cia absoluta, pois só se manifestava mediante o esvazia-
mento do bem. A ordem cósmica correspondia, portanto,
ao estado de graça, frágil e delicado, que o criador havia
instalado na criação no tempo da origem. A noção de um
equihôrio primordial permanentemente em risco respon-
sabilizava toda a humanidade, em especial o faraó, por
velar escrupulosamente para que a pureza e a harmonia
continuassem a vigorar sobre a terra. Era desse modo que
a humanidade podia «alimentar os deuses» e garantir a
sua permanência na terra, através do culto divino oficiado
nos templos.
A importância desta responsabilidade cósmica só é
compreensível se atendermos às crenças cosmológicas do
antigo Egipto. No antigo Egipto, a criação do mundo não
se fez acompanhar pelo desaparecimento do caos. De
facto, uma vez criada, a luz não fez desaparecer as trevas.
Pelo contrário, para lá do mundo vivo e luminoso conti-
nuava a predominar a escuridão, o silêncio e a inércia.

178 ASSMANN, Search for God, p. 4.

147
Esta região que envolvia o mundo era o Nun, a água pri-
mordiatl79, que sempre existiu e que um dia havia de
engolir de novo a criação180.
A razão pela qual o deus criador não anulou o caos
relaciona-se com o papel do Nun na conservação do
mundo181 • Efectivamente, o caos era necessário para garan-
tir o equilíbrio do mundo182, uma vez que a desejada
regeneração só era possível fora da criação 183. Para reju-
venescer era preciso sair da influência do tempo e mergu-
lhar no Nun, onde as forças que regiam o cosmos, como o

179 Na realidade Nun é uma vocalização copta que deriva da expres-


são egípcia nni, que significa «inerte». Nos textos egípcios, no entanto, a
palavra mais frequentemente utilizada para designar a região exterior ao
cosmos é nu, que significa <<água>> ou «água primordial». Este termo é
distinto do vocábulo mw que também significa «água».
180 O Nun formava um oceano infinito que se estendia acima do

céu e se prolongava para baixo da terra. Era da terra que brotava a água
que alimentava os rios e os oceanos; ver ALLEN, Genesis in Ancient
Egypt, p. 4.
181 O papel das águas do Nun é ambivalente, revestindo-se de um

significado negativo e positivo. Se, por um lado, o Nun era infinito, sem
forma, caótico e insondável (todas estas características personificavam o
caos que ameaçava a ordem cósmica), por outro, à semelhança da cheia
que fertilizava o solo do Egipto, as águas do Nun eram também a fonte
da regeneração do mundo, contendo, em potência, todas as possibilida-
des da criação; ver TOBIN, «Creation Myths», em Oxford Encyclopedia of
Ancient Egypt, II, p. 469.
182 CARREIRA, Filosofia antes dos Gregos, pp. 54-59.
183 O ritmo do cosmos estava, deste modo, indissociavelmente

ligado à relação que mantinha com o caos. Os dois grandes princípios da


ordem, o Sol e o Nilo, estavam intimamente relacionados com o oceano
primordial e, na verdade, não podiam existir sem ele. Com efeito, era no
mundo inferior, resíduo das forças do Nun, que o Sol efectuava secreta-
mente a sua regeneração quotidiana. Do mesmo modo, o Nilo, através
da cheia, trazia o potencial regenerador do Nun para garantir a fertili-
dade do Egipto.

148
tempo, não se faziam sentir. As imagens que representam
a serpente Uroboros enrolada sobre si mesma evocam a
função regeneradora do caos primordial, ao qual era
necessário regressar ciclicamente184 .
A vulnerabilidade do mundo face às forças do Nun
constituía também a base da forte carga política da cos-
mogonia heliopolitana. A criação estava sempre em aberto
e podia, em qualquer altura, ser absorvida pelo Nun. O
sofrimento, a injustiça, o crime, a guerra eram a manifes-
tação da isefet, o esvaziamento da ordem cósmica decor-
rente de um afastamento da plenitude e pureza original
que impelia o mundo de novo para o estado de caos185 .
Cabia ao faraó a tarefa de manter a maet envolvendo
a humanidade em tomo de um compromisso que unia os
homens ao criador e garantia a perenidade da criação186 .
O demiurgo fez a sua parte, mas cabia à humanidade
velar pela sua obra para que ela permanecesse intacta e
pura como no tempo original. Nesta responsabilidade
residia a principal função da monarquia. Além de exercer
uma acção conservadora, o faraó garantia a renovação do
mundo, pois, ao subir ao duplo trono do Egipto, o faraó
fazia emergir simbolicamente do caos as Duas Terras,

184 HORNUNG, L 11n et /e Multiple, pp. 136-150.


185 ASSMANN, The Search for God, p. 3.
186 A importância da realeza na manutenção da ordem cósmica
contrasta vivamente com o estatuto que a humanidade usufrui nas cos-
mogonias egípcias, as quais estão longe de conferir a centralidade patente
na versão hebraica. A tradição heliopolitana refere que Chu e Tefnut se
haviam perdido na ime.n sidão do cosmos, razão pela qual, em versões
posteriores, Ré enviou o seu divino Olho para os encontrar. Ao reencon-
trar a sua prole, Ré chorou e dessas lágrimas (remit) nasceu a humanidade
(rem) . Se a origem divina da humanidade está subjacente ao mito, a sua
criação parece mais resultante do acaso do que de uma intenção do
demiurgo em coroar a criação, como no caso do Antigo Testamento.

149
Representação cosmológica representando o Sol renascido (representado como
uma criança real sentada sobre o horizonte), envolvido pela erpente Uroboros,
que simboliza a Duat, sob os braços celestes da deusa Nut. Os leões do horizonte
representam os limites espaço-temporais do cosmos: O Oriente e o Ocidente,
mas também o Ontem e o Amanhã. A cabeça de animal representada na base do
Uroboros alude provavelmente ao sacrifício ritual de Set e evoca a vitória da luz
sobre as trevas. Papiro funerário de Heriuebk.het, XXI dinastia.

150
relançando-as numa nova era. Sempre retrospectiva, a
acção real colocava-se no momento inaugural da criação,
aquele em que «duas coisas» foram geradas a partir da
unidade inicial, informe e inerte. Através da sua assimila-
ção ao imaginário cosmogónico, a monarquia egípcia enri-
quecia-se assim com um sentido religioso que fazia parti-
cipar a ordem política na ordem cósmica.

A versão «intelectual» da criação

A versão sexual da criação através da masturbação de


Atum foi, com o tempo, complementada por uma pers-
pectiva mais «intelectual» da origem dos tempos que atri-
buía a criação do mundo ao coração de Atum, ou seja, à
sua consciência. Se pesquisarmos atentamente nos textos
religiosos de inspiração heliopolitana, detectamos que as
referências mais antigas acerca da criação do mundo
através do coração surgem na fórmula 75 dos «Textos dos
Sarcófagos>>. O texto refere o seguinte:

(... ) Ele concebeu-me (kemá) no seu coração, ele criou-


-me (ir) a partir do seu poder. Eu manifestei-me, em júbilo,
como deus que se manifesta a si mesmo. Este deus venerá-
vel dilatou-se, ele irradia o céu na sua beleza, os deuses não
conhecem o seu nome, as henmemet são a sua escolta. Eu
brotei das suas pernas, eu manifestei-me a partir das suas
mãos, elevei-me a partir do seu corpo. Ele concebeu-me
(kemá) no seu coração, ele criou-me (ir) pelo seu poder, pois
eu não nasci (. .. )187•

IS? TdS 75, versão francesa em BARGUET, Les Textes des Sarcophages,
pp. 462-466. Versão hieroglífica em BUCK, The Egyptians Coffin Texts, I,
pp. 336-345.

151
O texto explicita que o criador «concebeu» Chu no
seu coração. O termo usado, kemá, «conceber» ou «projec-
tar», também pode ser usado no sentido físico de «projec-
tar» e coaduna-se com o mito tradicional de Heliópolis
que relata a criação de Chu através da emissão dos fluidos
de Atum (esperma ou cuspo) 188. A concepção pelo coração
resultava, deste modo, da transposição para um plano
abstracto, da criação a partir do sémen de Atum189 • Esta-
belecendo uma correspondência entre o pénis e o coração
de Atum, os teólogos heliopolitanos abriram o caminho
para uma versão «filosófica» da criação. Se a criação atra-
vés da masturbação constituía o símbolo mítico para a
criação de Chu e Tefnut, corporizados na projecção do
sémen do demiurgo, a criação através do coração transfe-
ria este processo para um plano mais conceptual. A cons-
ciência do criador originava o pensamento e a palavra, Sia
e Hu, os quais eram identificados com o coração e a língua
de Atum, respectivamente 190.
Esta versão da criação do mundo projectava, no plano
das ideias, a actividade demiúrgica do criador, antes cen-
188 A conotação associada ao movimento subjacente ao termo

detecta-se também pelo uso do determinativo T-14, da lista de Gardiner;,


ver GARDINER, Egyptian Grammar, p. 546.
189 Também na fórmula 39 se refere que o coração <<faz os mem-

bros»: << (. .. ) Eu estarei no país dos vivos; o meu coração fará os meus
membros, as minhas carnes obedecer-me-ão, eles sustentar-me-ão.
Tomar-me-ei um ancião( ... )>>, TdS 39; versão francesa em BARGUET, Les
Textes des Sarcophages, p. 181.
190 Já no Império Médio estava consolidada a associação entre Hu

e Sia à língua e ao coração de Atum. A fórmula 80 dos <<Textos dos


Sarcófagos>> refere: <<articulo as cabeças por meio de Hu que está na
minha boca. Ver versão francesa em Idem, p . 473. Também a fórmula 689
documenta esta associação: (... )este N . comeu os deuses Heh e Hu, engo-
liu Sia, comeu Heka (. ..) Hu está no ventre de N., o Temível está no seu
coração, Sia está no seu coração>>; versão francesa em Idem, pp. 499-500.

152
trada no plano material, através da criação a partir da
manipulação do falo. Assim, partindo de um modelo cos-
mogónico inicial baseado no sexo e no corpo de Atum, a
teologia heliopolitana elaborou uma formulação da cria-
ção centrada no amor e na mente do demiurgo. Se inicial-
mente a sua obra criativa se manifestava através da ejacu-
lação, agora exprimia-se através da palavra. O sémen por-
tador da vida era agora enunciado como o pensamento do
criador. No modelo cosmogónico original, a ejaculação
manifestava os poderes de Tefnut e Chu (através do
sémen e do seu movimento, respectivamente), ao passo
que, na versão mental da criação, o pensamento e a pala-
vra eram o reflexo de Sia e Hu, a sabedoria divina e o
poder criativo, respectivamente. Embora possuísse uma
formulação abstracta, a versão cosmogónica da criação
pelo coração seguia, ponto por ponto, a versão cosmogó-
nica mais arcaica. De facto, mais do que uma visão nova
da origem do mundo, a criação pelo coração de Atum
transpunha a linguagem mitológica do velho mito para
um quadro de expressão mais «filosófico». Os conteúdos,
no entanto, eram rigorosamente os mesmos, mas expres-
sos com uma linguagem distinta.

Processo Órgão Órgão


criativo masculino feminino Obra criada

Versão Sémen Movimento


sexual (Vida) (luz)
Masturbação Falo Mão
da
Tefnut Chu
criação

Versão Consciência Coração Órgãos dos Pensamento


«mental» sentidos Sia
da Palavra criadora
criação Vocalização Língua Lábios
Hu

Correspondência entre a versão mental e sexual da criação na tradição heliopolitana.

153
É esta visão de um deus que cria o mundo através do
pensamento que é desenvolvida com mais destaque ao
longo do Império Novo, época em que se registou um
forte interesse em problematizar teologicamente a von-
tade do deus supremo e o seu poder para interferir na his-
tória e no mundo. Associada a esta reflexão que, sob a ins-
piração de Jan Assmann, denominámos de «teologia
explícita» emerge urna perspectiva da criação desmitolo-
gizada, centrada no coração do criador, que define o
mundo como vontade e ideia do deus. O deus criador da
vida toma-se então um deus pessoal que formula a sua
criação pela palavra, vontade e consciência.
A teologia da criação através da vontade e da palavra,
elegia o coração do deus solar, como a origem de todas as
coisas. Neste contexto o termo «coração» deve sempre ser
entendido no sentido anímico e não como urna evocação ao
músculo cardíaco propriamente dito. Tradicionalmente os
termos ib e hati eram usados para designar o coração o
qual, no antigo Egipto, era visto como urna entidade dual
envolvendo o músculo cardíaco (hati) e os condutores que
o ligavam ao corpo (ib). Tipicamente, o coração hati era
visto como a força motriz do corpo, mas também da von-
tade, ao passo que o coração ib era visto como um receptá-
culo onde a essência de vida circulava, mas também como
a sede da sabedoria que garantia a integração cósmica do
homem. Devido a estas conotações os termos cardíacos
tiveram urna valoração distinta ao longo do tempo na lite-
ratura egípcia. Nos textos sapienciais, que reflectiam sobre
a maet e a integração cósmica do indivíduo, é sobretudo
o coração ib que mais se destaca. No entanto, à medida
que a «teologia da vontade» foi ganhando peso, é o termo
hati, usado para designar o desejo do criador, que se foi
impondo. A visão antropológica patente na Pedra de
Chabaka deve ser entendida à luz desta tendência que se

154
agudiza a partir do período ramséssida. As referências ao
coração representam-no como uma entidade singular, o
coração hati, embora por vezes apenas seja redigido com o
auxílio do signo F34 que aqui é usado apenas como deter-
minativo. A antropologia patente no «Livro das Origens»
não pode, deste modo, ser vista como ilustrativa da visão
egípcia do coração e resulta da prevalência da «teologia
da vontade» que assinala em pleno o triunfo da piedade
pessoal no domínio da espiritualidade egípcia. O texto da
Pedra de Chabaka consiste, ele próprio, na formulação
plena da teologia da vontade no plano cosmogónico e
como tal, é herdeiro pleno da tradição solar heliopolitana.

3.3. A tradição cosmogónica menfita

Embora constitua uma das principais divindades


egípcias, muitos aspectos da natureza e do culto de Ptah
continuam insuficientemente conhecidos. A etimologia do
nome de Ptah, por exemplo, permanece obscura. A raiz
pth significa «moldar», ou «esculpir». No entanto, como
este uso da palavra é muito tardio, é possível que um tal
significado possa constituir uma derivação do nome do
deus, motivada pela associação de Ptah ao trabalho dos
artífices. A mesma raiz também pode significar «abrir»,
mas trata-se também de uma palavra tardia, talvez
mesmo resultante de uma influência semítica191 .
O que é sabido com segurança é que o culto de Ptah
começou por ter um carácter estritamente local, forte-
mente associado à região de Mênfis 192 . Apesar da impor-

19 1ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 71 (nota 132).


192 É talvez por essa razão que as alusões ao deus sejam tão raras
nos <<Textos das Pirâmides», os quais tiveram origem na vizinha cidade
d e Heliópolis, a cidade do culto solar. Conhecem-se apenas três fórmu-

155
tância óbvia do deus, ao longo do Império Antigo as fontes
escritas não ajudam a esclarecer a sua caracterização
divina. Apenas no Império Médio, nos «Textos dos Sarcó-
fagos», é que encontramos uma explicitação mais porme-
norizada sobre a sua natureza. Nesta época Ptah já era
reconhecido como um deus da terra, responsável pela
vida e crescimento das plantas, e também como o «rei dos
deuses», constituindo o modelo divino da monarquia.

A iconografia de Ptah

Um tanto surpreendentemente, tendo em conta a


grande antiguidade do seu culto, a representação de Ptah
nunca recorreu a elementos animais193. O deus é invaria-
velmente representado antropomorficamente numa ati-
tude mumiforrne que é atestada desde a I dinastia (c. 3000-
-2800 a.C.). Para alguns autores esta configuração mumi-
forme reflecte o carácter funerário de Ptah. No entanto,
talvez seja importante relativizar o peso dessa associação
e sublinhar que, durante o Império Antigo (c. 2686-2160
a.C.), as técnicas de mumificação mantinham a indepen-
dência dos braços, dos dedos e das pernas de modo a dar
à múmia o aspecto que o indivíduo tivera em vida. Para
acentuar este efeito, por vezes chegava-se mesmo a «vestir»

las que fazem alusão ao deus menfita: § 560, 566, 1482. A parcimónia nas
referências ao deus contrasta fortemente com o papel do seu culto, o
mais importante da capital. Esta ausência não se deverá tanto a supostas
rivalidades entre os templos de Mênfis e de Heliópolis, mas simples-
mente a uma linguagem teológica distinta. O aparecimento de Ptah, nos
textos heliopolitanos do Império Médio reflecte, por outro lado, o início
da convergência teológica entre os dois centros que atingiu a sua matu-
ridade no Império Novo.
193 A representação das divindades com formas animais antecede

as representações antropomórficas. ·

156
a múmia com peças de roupa: um saiote para os homens,
vestidos de missangas para as mulheres. Apenas no
Império Médio é que a mumificação passou a envolver
inteiramente o corpo de modo a conferir-lhe a típica con-
figuração de crisálida194 . Esta transformação das práticas
funerárias reflecte a grande diferença de horizontes que
separava as duas épocas no que diz respeito às crenças
funerárias. Enquanto que, no Império Antigo, a mumifi-
cação procurava conferir a aparência do corpo em vida, as
técnicas de mumificação aplicadas no Império Médio pro-
curavam conferir ao cadáver a fisionomia de um deus
imerso no interior da terra 195 . Encarada nesta perspectiva,
a múmia constituía uma representação: no Império Antigo
representava a recuperação da dignidade do defunto, ao
passo que a partir do Império Médio representava a sua
transformação num deus ctónico.
A configuração mumiforme adoptada por deuses
como Osíris e Ptah representa, portanto, a sua associação
ao Nun, o universo incriado e informe que se estende para
lá das fronteiras da criação, e evoca a sua condição como
divindades ctónicas, imersas no interior da terra. Esta
associação à terra e à fertilidade é reforçada, na represen-
tação de Ptah e de Osíris, pelo rosto pintado de verde,
outro elemento iconográfico que acentua a ligação às forças
regeneradoras da terra e ao crescimento da vegetação.

194 Com efeito as primeiras múmias eram enfaixadas de forma a

preservar a autonomia dos membros, sinal que a característica configu-


ração murniforme foi importada de um modelo divino e não o contrário;
ver IKRAM, OODSON, The Mummy in Ancient Egypt, p. 156.
1: 5 Uma vez que os membros representam a capacidade para agir,

o seu desaparecimento por baixo das camadas de ligaduras assinala um


estado letárgico em que esta capacidade não é necessária. São, portanto,
os deuses que residem no interior da terra, como Osíris, que as múmias
procuram imitar, ocultando os membros do cadáver.

157
Ptah, Papiro Harris I (XX
dinastia). São aqui bem
visíveis os principais atri-
butos de Ptah: atitude
<<mumiforme>>, a barba
real, toucado justo, colar
com o contrapeso distin-
tivo de Ptah. O pedestal
onde o deus está colocado
tem a forma do hieróglifo
mae, «verdade>>, ou <<jus-
tiça>>. A veste do deus está
coberta de penas alusivas
ao seu epíteto <<Senhor de
Maet>>. Empunha nas mãos
os ceptros uase (<<poder>>),
ankh («vida>>) e djed (<<esta-
bilidade>>).

158
Normalmente as representações de Ptah são de uma
notável sobriedade, não apresentando coroas nem touca-
dos. Como adorno o deus apenas usa uma calota muito
justa ao crânio que, em alguns casos, tem a cor azul. A
parcimónia decorrente desta representação acentua o
impacto estético do rosto do deus, fazendo assim justiça a
um dos seus mais celebrados epítetos, Nefer-her, <<Ü Belo
de Rosto»196 .

De extrema importância apesar da sua simplicidade,


o uso da barba real, direita e larga, e não da tradicional
barba curva e pontiaguda dos deuses, corresponde a uma
característica única entre as divindades masculinas que
sublinha o papel do deus como <<rei dos deuses» e modelo
divino da monarquia faraónica 197 . Um grande colar, seme-
lhante ao colar usekh, adorna o peito do deus, sendo equi-
librado pelo característico contrapeso dos colares egíp-
cios. Destacando-se do invólucro que manieta o corpo, as
mãos seguram um ceptro composto pela conjugação dos
símbolos uase, <<poder», djed, <<estabilidade» e, por vezes,
ankh, <<vida>>.

196 Este epíteto, que só este deus utiliza, qualifica-o como <<senhor
dos céus», cujo rosto é iluminad o pelos maaty, as duas luminárias celes-
tes. O epíteto <<Belo de Rosto» evoca assim o esplendor da face celeste d e
Ptah que irradia com o brilho d o sol e da lua. BERLANDINI, <<Ptah
Derniurge et l'exaltation du cieh•, RdE 46 (1995), pp. 31 -37. No entanto,
outros autores preferem a tradução <<Rosto misericordioso>>, baseando-se
no duplo sentido da palavra nefer, que pode significar <<bom>> como
<<belo >>.
197 Ao estatuto real d o deu s não seria certamente alheio o estatuto

político de Mênfis que bem ced o se tomou a capital do Egipto. Também


Atum, querendo d emonstrar o seu estatuto de soberano cósmico, pod e .
igualmente ser representado, embora excepcionalmente, com a barba
real.

159
à proa das suas embarcações. Para quem nunca viu estes
patecos, deixo esta indicação: é a imagem de um pigmeu 201 .

Estas representações do anão patéco podem enraizar-


-se na prática, que se perdeu depois do Império Antigo, de
empregar anões em actividades oficinais, sobretudo as
relacionadas com a metalurgia. Os anões patécos pode-
riam assim ser vistos corno divindades auxiliares de Ptah.
No entanto, também é possível que estes anões consti-
tuam a manifestação iconográfica de urna síntese religiosa
efectuada entre Ptah e o deus Bés, o propiciador dos nas-
cimentos. O nanismo de Ptah evocaria, à imagem do anão
Bés, a sua protecção sobre o nascimento do mundo, do
qual era simultaneamente pai e rnãe 202 .

A caracterização teológica de Ptah

A antiguidade do culto de Ptah e a importância do


seu culto levou a que a sua caracterização teológica tivesse
sido desenvolvida ao longo de um extenso período de
tempo. Reflexo disso é a diversidade dos seus atributos e
a heterogeneidade das suas formulações divinas. Embora
sem pretender aqui esgotar o terna, apresentamos em
seguida alguns dos principais pontos fortes da definição
divina do deus.

201 Em MONTET, < <Ptah Pateque et les Orfévres••, Révue Archaeolo-


gique 40 (1952), p. 5. A ligação de Ptah às forças telúri cas não escapou aos
visitantes Gregos, que facilmente identificaram Hefaisto, o seu deus sub-
terrâneo patrono dos metalúrgicos.
202 BERLANDINI, <<Ptah Demiurge et l'exaltation du cieh>, RdE 46

(1995), p. 24.

162
Ptah, a matriz da vida e o artífice do mundo

Fortemente associados à manifestação de certos ele-


~entos naturais, os deuses egípcios encarnavam fenóme-
nos cósmicos em acção. Encarado sob este prisma, Ptah
personificou, desde sempre, a criatividade ctónica da terra
e constituía um elo de ligação entre a humanidade e as
profundezas da terra, onde residiam as forças regenera-
doras do Nun.
A ligação de Ptah às forças regeneradoras da terra
facilitou alguns sincretismos, facilitados pela proximidade
de outros cultos que possuíam as mesmas conotações
ctónicas. Provavelmente a mais forte destas associações
foi com o deus Tatenen, cujo nome significa «A terra
erguida»203, aludindo à sua identificação com a colina pri-

203 Ta-tenen significa <


<Terra erguida>> e é uma divindade muito
conotada com a colina primordial. Muito associado aos poderes regene-
radores da terra, Tatenen personifica as forças que alimentam e prote-
gem a vida. Sobre o seu papel na criação ver RAYMOND, <<The Children
of Tatenen>>, ZAS 92 (1966), pp. 116-128. Todas as cosmogonias egípcias
convergem na ideia que foi do Nun que emergiu a colina primordial.
Baseando-se no fenómeno anual das cheias do Nilo que, à medida que se
retirava, deixava à vista pequenas elevações de terra, os teólogos egíp-
cios, concentraram nessa imagem todo o poder evocativo do início do
mundo. a maior parte das vezes a colina primordial consubstanciava-
-se ao próprio corpo do criador. Em Heliópolis, esta colina materializa-
se no benben o bétilo sagrado que inspirou a construção dos obeliscos e
das pirâmides, mas em Mênfis, ela era Tatenen, a <<terra erguida>>. Em
Hermópolis, onde também estava presente, a colina era simbolizada no
lótus primordial. De uma forma geral, a colina primordial ilustrava as
duas facetas latentes na Mónade inicial: por um lado possuía uma
dimensão ctónica, associada aos poderes generativos da terra, por outro,
revestia-se de uma dimensão solar, já que era desta colina que o deus sol,
sob a forma de uma criança, emergia e dava origem à primeira manhã
do mundo.

163
rnordial. Tal corno Ptah, Tatenen era um deus local origi-
nário de Mênfis e representava a potencialidade fecunda-
dora da terra. Esta identificação parece ter-se concretizado
a partir do reinado de Ramsés II (1550-1069 a.C.) e foi ful-
cral para propulsionar a caracterização teológica de Ptah
corno um deus criador.
Também com Sokar, o deus da vizinha necrópole de
Sakara204, Ptah foi assimilado, desta vez sob a forma corn-
pósita de Ptah-Sokar-Osíris. Embora esta tripla associação
seja comum apenas na Época Baixa, a ligação entre Ptah e
Sokar é bastante mais antiga e remonta, pelo menos, ao
Império Médio. Com este deus Ptah realizava urna união
entre dois princípios complementares. Ptah personificava
a cidade de Mênfis (a cidade dos vivos) e a terra fértil, ao
passo que Sokar era o deus da necrópole rnenfita, do
deserto e do Alérn205 . A tríade Ptah-Sokar-Osíris tinha,
deste modo, um alcance regional, exprimindo os três ele-
mentos que caracterizavam o «chão» de Mênfis (os três
deuses mencionados são divindades ctónicas do interior
da terra e em conjunto aludem à fertilidade que emana da
Duat para alimentar os vivos e regenerar os rnortos) 206 •
Outra das manifestações rnenfitas de Ptah era através
do touro sagrado Ápis que incarnava os seus poderes de

204 O actual nome da necrópole pode derivar de Sokar. No entanto


para alguns autores trata-se de uma outra influência, nesse caso do nome
de uma tribo instalada na região (Beni Sakar). Ver ARAÚJO, «Mênfis»,
Dicionário do Antigo Egipto, p. 558.
205 ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 41.
206 A associação a Osíris levou a que, gradualmente, o carácter

regional da tríade fosse secundarizado. As estatuetas de Ptah-Sokar-


-Osíris passaram então a representar genericamente a Duat, sem remete-
rem especificamente para a região menfita. Ver SOUSA, «A colecção
egípcia do Museu de História Natural da Universidade do Porto: A esta-
tueta de Ptah-Sokar-Osíris>>, Hist6ria 8 (2007), pp. 385-392.

164
fertilidade. O nome do touro sagrado deriva da palavra
hep «correr» ou «mensageiro», que é curiosamente idên-
tica à palavra que designa o deus da cheia, Hapi, que, por
sinal, também «corre>> no seu leito, fecundando os campos
com a inundação. Com conotações associadas à cheia,
o touro Ápis simbolizava a fecundidade e personificava
a potência sexual de Ptah e, por extensão, do próprio
faraó 207 • O touro era, por isso, encarado como a imagem
viva de Ptah, o seu ba, a manifestação do seu poder cria-
dor. Por ocasião da festa da renovação do poder real cele-
brada teoricamente após trinta anos de reinado, a festa
Sed, o poder do rei era colocado em paralelo com o do
touro através da corrida ritual que garantia precisamente
o rejuvenescimento destes poderes no soberano. Após a
sua morte, o animal era identificado com Osíris, sendo
então designado Usir-Hap, ou seja, o «Ápis defunto>>, o
qual, nos tempos helenísticos, deu origem à divindade
antropomórfica Serápis que se difundiu pelo Império
Romano como divino consorte de Ísis208 •

207 De acordo com Heródoto, o boi Ápis era escolhido, após a morte

do boi anterior, em função de sinais corporais. De cor negra, o touro


deveria possuir na testa um triângulo invertido, ao passo que na língua
seria suposto encontrar a silhueta de um escaravelho. No dorso deveria
ter as marcas de asas e a cauda deveria ter pêlo basto e dividido em duas
tiras (nas representações de Ápis, também é possível observar um padrão
reticular semelhante ao usado nas mortalhas de missangas). Após a
sua entronização, celebrada com grande festa, o touro vivia, com o seu
próprio harém de vacas, em aposentos especiais localizados a sul do
templo de Ptah, onde era adorado pelos fiéis. Para além de participar em
celebrações religiosas, o touro também emitia oráculos. Reunida em
torno de um pátio com duas entradas, a multidão encontrava uma res-
posta afirmativa ou negativa, em função da entrada escolhida pelo
touro. Ver ACÚRCIO, <<Ápis», Dicionário do Antigo Egipto, p. 84.
208 Seguia-se um cuidadoso processo de mumificação que ocorria

numa parte do templo de Ptah especialmente construída para o efeito.

165
Ptah encarnava, portanto, o poder emergente da terra,
o ímpeto criador que jaz nas profundezas do mundo e
que, pelo seu potencial de vida e fecundidade, nutre e
gera as formas de vida. O carácter ctónico do deus dava-
-lhe poderes sobre a germinação e o crescimento das plan-
tas, razão pela qual a sua função era, em primeiro lugar, a
de conferir a fertilidade à terra e assim garantir a vida que
pululava no vale do Nilo. Por essa razão era muitas vezes
associado à deusa denominada «Ü grande celeiro», para
exprimir o seu poder de fertilizar a terra e produzir o ali-
mento que dá sustento a todas as formas de vida209 . Com
um sentido equivalente, o epíteto «Ptah no Grande Trono»
aludia ao seu poder para fecundar a natureza e gerar
todas as formas de vida que assim estavam integradas

As enormes mesas de calcite onde essas operações eram realizadas ainda


hoje subsistem no sítio arqueológico de Mit-Rahina. A inumação de Ápis
tinha lugar no Serapeum, um grande labirinto subterrâneo construído, a
partir do reinado de Ramsés II, na parte norte de Sakara. As múmias dos
touros eram colocadas em grandes sarcófagos de pedra, alguns deles
pesando mais de 70 toneladas! O equipamento funerário destes animais
em nada difere do dos humanos mais privilegiados: as múmias eram
cobertas de amuletos e as vísceras eram colocadas em vasos «rematando-
-se o aparato fúnebre com estelas e estatuetas funerárias». ARAÚJO,
Estatuetas Funerárias, p. 542.
209 É certamente por essa razão que Ramsés II dedicou a Ptah o

templo de Gerf Hussein, a última das suas construções na Núbia e também


a últimas das estações da barca divina no percurso processional que se
estabelecia, por ocasião das celebrações das cheias, entre os templos de
Abu Simbel e a Primeira Catarata. Em relação muito estreita com as
cheias, o templo enfatizava o poder de Ptah para transformar o Nun em
fertilidade e em vida. Depois de celebrar, nos templos mais meridionais
da Núbia, o papel do sol e da água na fecundidade do Egipto, a barca
divina recolhia à gruta de Ptah, para invocar o poder criador do deus na
transformação da água em húmus fecundador que alimentava o Egipto.
DESROCHES-NOBLECOURT, Le secret des temples de la Nubie, p. 255.

166
num todo universal que constituía o próprio corpo cós-
mico de Ptah. O trono simbolizava, portanto, o cosmos
vivo sobre o qual Ptah e o faraó velavam amorosamente
por todas as criaturas. No âmbito da teologia rnenfita, o
deus ctónico constituía o modelo divino do faraó e perso-
nificava o soberano da criação.
Como divindade ctónica, Ptah era, em suma, enca-
rado como a matriz original de onde todas as formas de
vida foram concebidas. Esta qualidade era vista corno o
reflexo da faceta feminina de Ptah, urna vez que este
poder se traduzia numa gestação. Como deus da terra,
Ptah era o ventre que gerava todos os seres.

Ptah, o artífice do mundo

Embora pareça um traço distinto, o papel do deus


como patrono da actividade artesanal também emergiu a
partir do seu estatuto ctónico, uma vez que todas as maté-
rias-primas usadas nos ofícios emanavam do corpo de
Ptah: das pedras ao metal, da madeira ao marfim, directa
ou indirectamente todas as substâncias advinham do
corpo do deus. Como encarnação do poder criador da
matéria, Ptah era também, por extensão, o criador das
formas, o de~s faber 210 , um qeus fazedor da realidade que
transforma e sublima a matéria e inspira os artífices na
criação de técnicas que completam o trabalho da natureza.
Corno deus civilizador, Ptah unificava o homem e a natu-
reza e, no seu culto, a sociedade humana era vista corno
mais uma das suas emanações telúricas. O poder modela-
dor de Ptah, que se traduzia na sua afirmação como o artí-

210 Ver ASSMANN, The Search for God, p. 81.

167
fice do mundo, afirmava, por seu lado, a faceta masculina
do deus, em contraponto com o seu papel feminino cono-
tado com a gestação da vida.

Ptah, o pilar cósmico

Como vimos, Ptah possuía uma faceta andrógina: as


suas propriedades ctónicas conferiam-lhe a qualidade
maternal de gerar a vida, ao passo que o seu poder para
confeccionar o mundo através do trabalho artesanal lhe
conferia um estatuto masculino. O seu poder para gerar a
vida e moldar o mundo afirmava o estatuto de Ptah como
mãe e pai de todos os seres.
Embora sempre latente, a androginia de Ptah foi for-
mulada a partir do Império Novo através da definição do
deus como um pilar cósmico que reunia em si mesmo os
territórios limítrofes da criação: o céu e a terra. Deste modo,
Ptah absorveu na sua natureza divina o céu e a terra o que,
do ponto de vista teológico e simbólico, contribuiu para
vincar a sua natureza andrógina, uma vez que o céu (pet)
era uma entidade feminina (personificada na deusa Nut) e
a terra (ta) era masculina (personificada no deus Geb).
A combinação de aspectos femininos e masculinos é
eloquentemente ilustrada num processo críptico que foi
usado para escrever o seu nome. Ao invés de escrever o
nome do deus com os três signos unilíteros que são habi-
tualmente utilizados (pth) os sacerdotes ptolemaicos
recorreram, por vezes, a um subterfúgio que só a escrita
hieroglífica permite explorar: utilizando os símbolos do
céu (pet), da terra (ta) e do deus Heh, os escribas redigiram
criptograficamente o nome do deus baseando-se nas ini-
ciais dos signos céu (Pet), terra (Ta) e do pilar cósmico
(Heh).

168
[ ]

Como elemento de ligação entre o céu e a terra, o


deus conferia unidade ao mundo e assimilava-se à função
criadora de Chu. A sua obra criadora começou então a ser
descrita como uma elevação do céu, através da qual o
deus pôs em marcha o movimento das luminárias celes-
tes. A afirmação de Ptah como um deus cósmico fez-se
portanto através do recurso à identificação com Chu, o
deus da luz da tradição heliopolitana, o que fez ampliar o
poder cosmogónico de Ptah, que até aí se centrava no
poder criador da terra, projectando-o como um deus cós-
mico criador da luz e do Sol. A tradução iconográfica
deste poder consistiu na representação de Ptah como um
homem acocorado ou mesmo como um pilar djed.

169
Levantas para o alto a tua obra apenas com a tua
própria força elevando-te graças ao vigor do teu braço.
Estás sobre o mistério. O céu está acima de ti, a Duat está
em baixo211 .

Já no período ramséssida o papel de Ptah como sus-


tentáculo do céu tinha-se traduzido na criação de um
novo elemento arquitectónico, o djed chepsés, o «pilar vene-
rável»212, que se distingue do vulgar pilar djed pela asso-
ciação de duas aves ba 21 3 • Através do símbolo do djed
chepsés Ptah afirmava-se como um criador da luz que
garantia a contínua recriação dos ciclos cósmicos214 • Estes
pilares foram encontrados com alguma abundância na
necrópole de Mênfis mas são praticamente ausentes no
resto do Egipto, o que indica uma elaboração teológica a
partir do clero menfita do deus.

211 Papiro de Berlim 3048.


21 2 Um outro nome atribuído a estas estruturas arquitectónicas é
Ptah Nu n Uer, <<Ptah o Grande Nun», evocando assim a identificação de
Ptah e de Nun através da sua função comum, a de elevar o céu e a barca
solar que o percorre. A imagem final do <<Livro das Portas>>proporciona
justamente a evocação desse momento. A barca solar é erguida pelos
braços de Nun que emerge das águas primordiais. Também o Capítulo
16 do <<Livro dos Mortos>> refere que o sol é recebido <<vivo nos braços do
pilar djed quando entra na Duat e é erguído para o céu nos braços do
pilar djed quando se levanta a manhã>>. DJIK, <<The Symbolism of the
Djed Pillar>>, OMRO 66 (1986), pp. 14-15. Cf. ARAÚJO, <<Ptah>>, Dicionário
do Antigo Egipto, pp. 717-718.
213 A ave ba simboliza o poder divino patente na luz. É em geral um

atributo divino que também pode ser usado no contexto funerário para
representar a manifestação luminosa do defunto. BERLANDINI, <<Ptah
Demiurge et l'exaltation du ciel>>, RdE 46 (1995), p. 24. Kakosy vê nestes
bau a manifestação de Chu e Tefnut, também eles bau de Ré. Ver KAKOSY,
<<A Memphite triad>>, JEA 66 (1980), pp. 48-53. Também em DJIK, «The
Symbolism of the Djed Pillar>>, OMRO 66 (1986), pp. 7-17.
214 Ibidem, p . 16.

170
Constituindo uma expressiva manifestação da síntese
teológica que se verificou, sobretudo no Império Novo,
entre a tradição menfita e a heliopolitana, o «pilar de Ptah»
permitiu, em suma, afirmar o estatuto de Ptah como um
deus das origens que tudo alcança na sua própria defini-
ção: desde a escuridão ctónica da terra à luz das estrelas,
Ptah tomou-se a personificação da unidade primordial
do mundo. Embora consubstanciado com o Nun, Ptah era
agora o obreiro do Sol e o artífice do mundo. A sua silhueta
cósmica abrangia assim o mundo e o seu oposto, a criação
e o vasto oceano incriado e inerte. Ptah era tudo.
Esta tendência para a formulação universal do deus
primordial tomou-se cada vez mais expressiva ao longo
do Império Novo e levou inclusivamente à convergência
dos cultos das divindades primordiais mais importantes
do Egipto. A tríade divina formada por Amon-Ré-Ptah
agregava os poderes primordiais destas divindades esbo-
çando o início da formulação teológica de uma «trindade»
à maneira egípcia:

Três são todos os deuses: Amon, Ré e Ptah.


Nada se compara com eles.
O que esconde o seu nome é Amon215,
O seu rosto é Ré,
E Ptah é o seu corpo216.

Nesta tríade cada uma das divindades contribui com


um aspecto diferente para enriquecer a natureza da tríade
final: Amon-Ré-Ptah era insondável e oculto como o vento

215 O hino recorre a um jogo semântico proporcionado pelo signifi-

cado do nome deAmon, <<Oculto>>.


2 16 Hino de louvor, adaptado da versão inglesa em GRIFFITHS,
<<The frase her mu ef in the Memphite Theology», ZAS 100 (1974), p. 30.

171
(Amon), luminoso como o disco solar (Ré) e corpóreo
e fértil como a terra (Ptah). Estava assim em marcha a
criação de um movimento teológico que ainda hoje revela
a sua actualidade.

O culto de Ptah

O culto real

Em virtude da afinidade simbólica entre o rei do


Egipto e o soberano da criação, muitos monumentos reais
exaltam a ligação de Ptah ao faraó reinante. No templo-
-cenotáfio de Seti I, em Abido, o rei dedicou-lhe uma das
sete principais capelas veneradas no templo e associou-o
à Lista Real de Abido. Esta inscrição, que enumera a linha-
gem de reis que se sucedeu no trono do Egipto desde
os tempos da sua fundação, foi redigida diante de Ptah
para o homenagear como «rei dos deuses» e distinguir os
monarcas que, antes de Seti I, tinham seguido o modelo
divino da realeza preconizado por Ptah 217• Subjacente
estava também o desejo de colocar a dinastia emergente
no seguimento da longa linhagem real que seguia o
modelo da realeza divina inspirada no próprio Ptah, o rei
da criação218 .
Ramsés II, em particular, demonstrou um forte inte-
resse em se associar a Ptah, sobretudo nos seus monu-

217 Enquanto Ptah se afirma como ideal para a acção governativa

dos faraós do Egipto, os faraós que se desviaram deste ideal foram crite-
riosamente <<esquecidos» da lista real, como foi o caso da rainha
Hatchepsut, Akhenaton ou Tutankhamon.
218 Corroborando esta interpretação , o Papiro Renl de Turim faz de

Ptah o primeiro dos reis míticos do Egipto. Sucedeu-lhe Ré, depois Chu,
Geb, Osíris, Set, Hórus e outras divindades.

172
mentos da Núbia. Em Abu Simbel, o terramoto que des-
truiu o torso do colosso meridional (que ainda hoje jaz
por terra) foi entendido pelo faraó como uma manifesta-
ção de júbilo de Ptah-Tatenen, o deus telúrico da terra 219 .
A inscrição redigida para comemorar o acontecimento
documenta que o faraó viu o cataclismo como uma reve-
lação da paternidade de Ptah. Já na estela do casamento
(que celebra a união de Ramsés II com a princesa hitita), o
referido terramoto foi interpretado como um anúncio de
vitória que se soltou da própria terra em virtude dos
esponsais que iriam selar o acordo entre o Egipto e o Hati.
No relevo que acompanha a inscrição, o próprio faraó
identifica-se com Ptah, apresentado o toucado de plumas
típico de Tatenen.
Em Gerf Hussein, na proximidade da Primeira
Catarata do Nilo, Ramsés II dedicou um templo rupestre
ao deus Ptah, que aí presidia como divindade tutelar da
cheia do Nilo220 . A construção deste santuário, o mais
setentrional dos templos da Núbia, parece estar relacio-
nada com o papel do deus em dotar as águas da cheia com
o húmus fecundador que levaria a fertilidade ao Egipto e
constituía aparentemente o culminar de uma peregrina-
ção fluvial que o faraó iniciava em Abu Simbel, onde era
divinizado e associado aos poderes regeneradores do cos-
mos, para depois seguir um périplo sagrado pelos diver-

219 O próprio epíteto Tatenen («Terra erguida>>) convida a uma tal


interpretação. Uma inscrição evocativa do acontecimento foi redigida no
interior do templo, numa parede de consolidação erguida entre dois
pilares osiríacos meridionais, onde também se registaram alguns estra-
gos. DESRCX:HES-NOBLECOURT, Ramsés ll, p. 328.
220 Infelizmente, devido à rocha muito porosa da falésia em que

este hipogeu foi talhado, apenas alguns elementos do templo foram sal-
vos das águas da albufeira de Assuão. Idem, Le secret des temples de Nubie,
p. 253.

173

sos templos da Núbia, rumo à primeira catarata do Nilo.
Através desta navegação sagrada, Ramsés II associava-se
aos poderes que garantiam a vida e a fertilidade do Egipto
de modo a propiciar cheias benéficas. Todos estes elemen-
tos em conjunto mostram que, ao longo do reinado de
Ramsés II, a valorização do culto de Ptah se fez através de
vários eixos: através da sua afirmação como rei dos deuses,
como deus da cheia e da fecundidade e ainda como deus
criador.

O culto popular

Em virtude da sua acção tutelar sobre as actividades


artesanais, Ptah tornou-se um deus muito popular. Na
comunidade dos artífices reais de Deir el-Medina, os «ser-
vidores de Set-Maet» 221 possuíam uma ligação muito
estreita com o deus Ptah. Vários altares foram-lhe dedica-
dos na falésia que conduz ao Vale dos Reis, testemu-
nhando a devoção pessoal dos artesãos para com o deus
menfita. Esta devoção pessoal totalmente estranha a uma
instância oficial é tanto mais significativa quanto sabemos
que o culto das divindades egípcias não permitia, na
maior parte das situações, um contacto pessoal entre os
deuses e os fiéis. Normalmente a imagem divina era ina-
cessível ao olhar do público e encontrava-se encerrada
num relicário selado localizado na parte mais recôndita
do templo onde apenas o faraó ou o sumo sacerdote tinha
acesso. Em face do enorme distanciamento entre os deu-
ses e os homens, é surpreendente constatar a proximidade
que, pelo contrário, se estabelecia entre Ptah e os seus

221
Set-Maet era a designação egípcia da aldeia de Deir e!-Medina e
significava <<Ü Lugar da Verdade>>.

174
fiéis. Em Medinet Habu, por exemplo, no complexo fune-
rário de Ramsés III (1184-1153 a.C.), uma efígie monu-
mental de Ptah foi gravada no próprio torreão de entrada
do recinto, num local onde todos podiam passar e ver o
deus. A efígie de Ptah, elaborada com especial cuidado,
apresentava incrustações de pedras coloridas ao nível
dos olhos, as quais intensificavam sem dúvida o impacto
global da imagem. A inscrição que acompanha a efígie de
Ptah refere:

Ptah, o grande, o que está a sul do seu muro, o senhor


de Ankh-Taui222, o grande deus, a orelha que ouve as ora-
ções, o que habita na morada de milhões de anos Khene-
metneheh223.

Tudo indica, portanto, que esta efígie fosse objecto de


uma devoção popular dedicada por aqueles que, em vir-
tude da sua baixa condição social, não podiam entrar nas
regiões mais sagradas do templo. A dimensão deste culto
foi tal que chegou a originar a criação de um novo epíteto
para o designar: «Ptah, da Grande Porta» (Ptah en pa seba
aá) 224• Nas imediações de Deir el-Medina, abundantes
estelas com a efígie do deus confirmam a popularidade do
seu culto, especialmente entre os artesãos.
A relação pessoal que os fiéis mantinham com o deus
através destes cultos de carácter mais «intimista» também

222 Trata-se de uma região de Mênfis. Ankh-Taui significa «A vida

das Duas Terras».


223 Trata-se do nome do templo funerário de Ramsés m que signi-

fica <<Unido com a Eternidade>>.


224 DILS, <<Ptah-de-la-Grande-Porte: un aspect du fonctionnement

du temple de Medinet Habou», Sriba 4 (1995), pp. 68-73. Também em


Mênfis, o lugar da <<escuta das orações» evocava esta qualidade de Ptah.

175
transparece na literatura que documenta a invocação de
Ptah em situações que afligiam o coração:

Desço o rio de barco, para norte,


Impelido pelos remadores.
Com a minha esteira de junco aos ombros,
Dirijo-me para Mênfis,
Para dizer a Ptah, senhor de Maet:
<<Dá-me a minha amada esta noite! »225

Em suma, em virtude da sua acção tutelar sobre o tra-


balho, em particular sobre o trabalho artesanal, Ptah tor-
nou-se um deus amado pelas gentes do Egipto: propa-
gandeado pelos faraós, respeitado pelos ilustres era também
acarinhado pelos mais humildes que o viam como o pro-
tector do seu trabalho, do seu pão e que os ouvia no seu
íntimo. Por isso era qualificado como «a orelha que ouve»,
ou seja, o deus que atendia às necessidades de todos,
mesmo aos mais humildes.

O culto templário

Os sacerdotes de Ptah tiveram, desde o Império


Antigo, um papel decisivo no desenvolvimento das técni-
cas e dos ofícios utilizados na construção dos grandes pro-
jectos reais, quer ao nível da metalurgia, escultura ou até
arquitectura. Este envolvimento detecta-se na própria
designação do pontífice de Ptah, uer kherep hemu, expres-
são que pode ser traduzida como <<Ü grande dos chefes
dos artesãos»226 • A importância deste título entre os sacer-

225 Papiro Harris 500, I, 6. Em SOUSA, Doces Versos, p. 112.


226 MAYSTRE, Les grands prêtres de Ptah de Memphis, p. 13.

176
dotes de Ptah é ilustrativa do âmbito das suas responsabi-
lidades já que, aparentemente, não remetia para uma acti-
vidade cultual, mas sim para uma responsabilidade de
ordem secular. 227 Sobretudo ao longo do Império Antigo,
apesar da importância das suas funções cultuais e litúr-
gicas, os sacerdotes de Ptah eram sobretudo altos funcio-
nários cujo acesso às funções sacerdotais se enquadrava
no âmbito das suas responsabilidades profissionais. De
facto, até o acesso ao topo da hierarquia sacerdotal parece
ter decorrido de um percurso profissional e não tanto
em resultado de uma transferência do cargo de pai para
filho 228 •
Como era de regra nesta época mais recuada, os
sacerdotes não desenvolviam a sua actividade exclusiva-
mente em tomo do culto divino. Os sacerdotes de Ptah,
em particular, estavam profundamente ligados ao traba-
lho artesanal, uma vez que o deus era o patrono dos tra-
balhos e ofícios. A própria denominação do sumo sacer-
dote de Ptah prende-se, sem dúvida, com esta função
divina de Ptah229 • Nesta óptica, o «grande dos chefes dos
artesãos» prolongava a criação de Ptah, supervisionando
as actividades artesanais para que estas veiculassem os
cânones e os símbolos que mantinham a criação em har-
monia. A importância religiosa desta responsabilidade
aparentemente mundana reflectia-se, na prática, na cons-
trução das estátuas divinas, dos templos ou, mais impor-
tante ainda, dos complexos funerários reais. No Império
Antigo, efectivamente, a maior parte destes sacerdotes
desempenhava funções de direcção na construção dos

227 Ibidem.
228 Só na Época Baixa é que assistimos a uma autêntica <<dinastia>>
sacerdotal. Ver Idem, p. 17.
229 MONTET, Révue Archaeologique 40 (1952), p. 6.

177
grandes empreendimentos funerários do rei. Embora, nas
épocas seguintes, a construção dos túmulos reais não se
realizasse na região de Mênfis, os sacerdotes de Ptah con-
tinuaram a evidenciar a mesma afinidade com os ofícios.
A ligação dos sacerdotes de Ptah a recursos naturais
valiosos (sobretudo aos metais e ao ouro em particular), e
à sua transformação dotou-os com uma enorme autori-
dade. A envergadura das instalações portuárias da cidade,
o seu papel de entreposto comercial ligando as rotas
comerciais internas e internacionais e a abundância de
combustível tomaram-se factores decisivos para consoli-
dar a preponderância da cidade no sector da metalurgia.
Uma tal prevalência do trabalho do metal poderá estar na
base da ligação das divindades locais ao trabalho dos
metais, em especial ao ouro. Ptah, o deus tutelar dos arte-
sãos, revelava uma ligação particular pelo trabalho do
ouro, em especial sob a forma de anão patéco. Também
Tatenen, deus criador, era encarado como o proprietário
das riquezas auríferas 230 •
Detentores dos segredos da metalurgia e das técnicas
usadas para a transformàção das matérias-primas, estes
sacerdotes deram muitas vezes a estes segredos uma for-
mulação teológica. Com efeito, sabemos que muitas ope-
rações relacionadas com a confecção de estátuas ou a edi-
ficação de estruturas arquitectónicas tinham uma inter-
pretação religiosa. A fórmula 626 dos «Textos dos Sarcófa-
gos» refere, por exemplo, que Ptah «levanta os ângulos»
da câmara funerária. Ao «levantar os ângulos» de uma
construção os trabalhadores imitavam simbolicamente o
gesto do seu patrono, imprimindo aos «quatro cantos» do
edifício que criavam a mesma estabilidade que o criador

230 Em AUFRÉRE, L 11nivers Minéral, pp. 362-366.

178
deu ao grande edifício do universo através da erecção dos
quatro pilares cósmicos231 • Também é provável que o tra-
balho do ouro fosse particularmente imbuído de uma
carga mágica e «alquímica». O valor simbólico do ouro
estava intimamente ligado ao sol. O seu brilho evocava a
luz dos raios solares e a sua incorruptibilidade reflectia a
perenidade do astro, o que o levou a tornar-se o símbolo
da eternidade e da existência no Além. Autênticos alqui-
mistas avant la lettre os sacerdotes de Ptah trabalhavam o
ouro bem conscientes do poder simbólico e ritual do seu
trabalho, buscando através deste ofício imbuir as suas
obras com a centelha divina deste metal precioso.
Para além do seu envolvimento nas artes e ofícios, o
corpo sacerdotal de Ptah possuía um leque bastante alar-
gado de responsabilidades. Para além do culto prestado a
Ptah, os sacerdotes menfitas também se ocupavam do
culto de Sokar e de alguns cultos funerários reais celebra-
dos nos monumentos da necrópole de Ro-Setau232 . No
contexto destas funções, nos templos solares associados às
pirâmides de Abusir, estes sacerdotes também desem-
penharam funções relacionadas com o culto de Ré233.
Outra das responsabilidades cultuais destes sacerdotes
era, desde o Império Antigo, o culto de Ápis que se pro-
longou, embora com matizes diferentes, até à Época
Greco-Romana.
Outro aspecto singular do clero menfita é o facto de
ser regido por dois sumo pontífices. A razão para a dupli-
cação do cargo poderá ser encarada como uma reminis-
cência da duplicação das funções administrativas para o

231 BERLANDINI, <<Ptah Demiurge et l'exaltation du ciel», RdE 46


(1995), pp . 25-28.
232 Trata-se da grande necrópole menfita.
233 MAYSTRE, Les grands prêtres de Ptah de M emphis, p. 45.

179
Alto e para o Baixo Egipto, patente na administração real
da I e II dinastias.234 No entanto, também é possível que a
formulação dupla deste alto cargo estivesse relacionado
com o vigor do imaginário dualista associado a Mênfis e
ao culto de Ptah. O próprio <<Livro das Origens» refere a
formulação dualista do templo de Ptah, mencionando
dois portais sagrados:

(15c) Então o Junco e o Papiro235 apareceram nos Dois


Portais da Morada de Ptah236 . ( . . . ) estão unidos na Morada
de Ptah, a «Balança das Duas Terras>> onde o Alto e o Baixo
Egipto foram pesados.

A dupla formulação do pontificado menfita pode


assim estar relacionada com a própria estrutura simbólica
do templo que, de acordo com o mito, garantia a união
das Duas Terras.
Antes de terminar esta breve referência aos sacer-
dotes de Ptah, não podemos deixar de mencionar aquele
que foi talvez o seu mais emblemático pontífice, o prín-
cipe Khaemuaset, filho de Ramsés II e uma das perso-
nagens mais notáveis do seu reinado. Khaemuaset consti-
tui o modelo consumado do sábio e de certo modo perso-
nifica o perfil do sumo sacerdote de Ptah. A fama de
Khaemuaset como sábio e homem de letras perpetuou-se
no tempo e, em plena Época Baixa, o príncipe inspirou a
redacção de narrativas onde foi caracterizado justamente
pelo seu forte interesse em conhecer livros secretos.

234 Idem, p. 56.


235 O junco e o papiro são as plantas heráldicas do Alto e do Baixo
Egipto, respectivamente.
236 Trata-se provavelmente de urna alusão a um santuário duplo

dedicado às divindades tutelares d o Alto e do Baixo Egipto.

180
O Conto de Setna-Khaemuaset e Naneferkaptah começa da
seguinte forma:

«Ü príncipe Khaemuaset, filho do rei Ramsés II e


sumo sacerdote de Ptah, em Mênfis, era um mágico e um
escriba muito letrado que passava o seu tempo no estudo
de antigos monumentos e livros. Um dia ouviu falar da
existência de um livro mágico escrito pelo próprio deus Tot,
que estava guardado no túmulo de um príncipe chamado
Naneferkhaptah. Este tinha vivido há muito tempo e tinha
sido sepultado algures na vasta necrópole de Mênfis.
Depois de muito ter procurado, o príncipe Khaemuaset e o
seu irmão Inaros encontraram o túmulo de Naneferkhaptah
e entraram nele. Ele viu o livro mágico que irradiava uma
luz forte, e tentou levá-lo»237 •

O conto deu continuidade à grande fama que o prín-


cipe gozava como sábio e !iterado. Sabemos, com efeito,
que era um grande interessado pela cultura egípcia e que
deu uma grande atenção ao estudo e conservação dos
monumentos do passado faraónico, desenvolvendo um
importante programa de restauro nos antigos complexos
funerários reais. Foi, de facto, graças ao interesse de
Khaemuaset que muitos dos venerandos monumentos de
Sakara chegaram aos nossos dias. Foi também o príncipe
que inaugurou a construção do Serapeum, o túmulo colec-
tivo dos touros sagrados de Ptah, onde foram encontrados
os seus próprios restos mortais. O prestígio e a fama que
o príncipe usufruiu postumamente reflectem bem até que
ponto personificava na perfeição o ideal de sabedoria
difundido pelos sacerdotes de Ptah, um ideal que seria

237 Em ARAÚJO, Mitos e Lendas, p. 249.

181
vivido cada vez com mais intensidade à medida que o
Egipto caminhava para o seu próprio crepúsculo. A descri-
ção tardia de Khaemuaset como um mago em busca de um
livro oculto dotado de grandes poderes acusa já o gosto de
um misticismo esotérico de sabor gnóstico que irá marcar
a imagem do sábio na tradição hermética helenística.

182
4. O IMPACTO DO «LIVRO DAS ORIGENS»

A prevalência de Mênfis no Egipto tardio

Sendo a mais antiga capital do Egipto faraónico e


confundindo-se com a própria unificação das Duas Terras,
Mênfis surgia aos olhos dos faraós cuchitas como o local
mais emblemático da milenar tradição faraónica e o centro
de onde irradiara a cultura do Império Antigo (c. 2686-
-2160 a.C.), a idade de ouro da construção das pirâmides.
É notório o interesse dos faraós cuchitas pela pesquisa
empreendida na região menfita no sentido de identificar
os elementos formais que conferiam ao «estilo egípcio» a
sua pureza238 • Da literatura à arquitectura, por toda a
parte, as realizações de Chabaka e da dinastia cuchita
evidenciam uma pesquisa intensa dos modelos antigos 239 .
A Pedra de Chabaka surge portanto num contexto político
claramente orientado pela ideia de depuração, de um
regresso à pureza dos tempos antigos. Nesta perspectiva,

238 As marcas de uma grelha reticulada, patentes em muitos monu-

mentos menfitas, atestam a busca do <<cânone» ideal. Tal é o caso do com-


plexo funerário de Djoser Netjerirkhet (c. 2670-2650 a.C.), por exemplo,
onde uma galeria foi escavada para entrar nos subterrâneos e estudar os
relevos aí patentes.
239 Ver SOUSA, <<O edifício de Taharka no lago sagrado de Karnak:

Simbolismo e função ritual>>, em Arte Pré-Clássica, pp. 279-302.

183
o «Livro das Origens» parece constituir um entre os muitos
elementos actualmente conhecidos que contribuem para
afirmar o panfleto político da dinastia cuchita: a presença
dos reis de Kuch no trono do Egipto justificava-se plena-
mente pois, através dela, a civilização egípcia era profun-
damente «depurada» e recuperada.
Embora esta renovação não tivesse tido, do ponto de
vista político, os resultados que Chabaka pretendia, não
há dúvida que, do ponto de vista religioso, o programa
empreendido pelos reis de Kuch teve um impacto tre-
mendo e duradouro, influenciando a espiritualidade
dominante da Época Baixa (664-332 a.C.) e mesmo a do
próprio helenismo. Voltando a sua atenção para os centros
religiosos do Egipto, os monarcas de Kuch procuraram
revitalizá-los concedendo-lhes, como principal tributo, a
força das suas próprias tradições para afirmarem a sua
santidade. Este objectivo perpassa claramente no seu pro-
grama de construções nos grandes centros urbanos e reli-
giosos, como em Tebas e Mênfis, onde erigiram novos
templos com um simbolismo altamente complexo e inte-
grador das estruturas previamente existentes240 .
Em Mênfis as tradições religiosas locais relaciona-
vam-se com as cosmogonias ramséssidas de Ptah e com o
antigo papel de Mênfis enquanto «Balança das Duas
Terras» e sede do poder real. A monumentalização do
«Livro das Origens» enquadra-se assim no âmbito do pro-
grama político e religioso que, por um lado, almejava
reforçar o estatuto político da dinastia cuchita identifi-
cando Chabaka com o legítimo rei do Egipto, o Hórus
vivo, e por outro lado intentava devolver a aura religiosa
dos principais santuários do país. Ao fazê-lo, a dinastia

240 Ver a este respeito o programa de construções desenvolvido

pelo faraó Taharka no recinto de Karnak, em ibidem, pp. 279-302.

184
cuchita não estava a criar uma «moda» revivalista e esva-
ziada de conteúdo. Muito pelo contrário, através desta
inspiração no passado, procurou-se revitalizar o Egipto, e
os seus templos e lançá-los numa nova era. No entanto, ao
contrário do Império Novo, o propósito desta renovação
já não era o de acumular riqueza através das doações
reais aos templos, mas sim o de acumular «santidade» e
significado religioso. Com efeito, a Pedra de Chabaka não
assinala qualquer privilégio especial ao templo de Ptah.
A dádiva real situa-se no plano da interpretação do real e
da construção de sentido. Concomitantemente era anun-
ciada, nas linhas da Pedra de Chabaka, uma perspectiva
do mundo terreno que iria marcar decisivamente a espiri-
tualidade do Egipto tardio: a cidade era um lugar sagrado
e o Egipto a terra santa, a mais santa das terras, prefigu-
rando assim o estatuto de templum mundi que haveria de
deter na Época Greco-Romana241 .
É neste horizonte, em que templo e Egipto se confun-
dem, que o templo de Ptah de Mênfis parece ter emergido
como a sede do próprio Egipto. A Pedra de Chabaka repre-
senta, por isso, uma importante viragem na valorização
do papel político e religioso de Mênfis que, a partir de
então, voltará a ser a cidade mais importante do Egipto,
um estatuto que se manterá até à fundação de Alexandria.
Lembremos que um tal estatuto não era detido por Mênfis
desde a queda do Império Antigo, mais de mil anos antes.
Desde então Iti-taui, no Império Médio, e Tebas (Uaset) no
Império Novo, haveriam de deter uma importância polí-
tica e religiosa muito mais determinante do que Mênfis,
reduzida ao estatuto de capital administrativa das Duas
Terras.

241 ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 358.

185
A Pedra de Chabaka assinala, antes de mais, o relan-
çamento do estatuto político e religioso de Mênfis, restau~
rando o estatuto que a cidade havia detido ao longo do
Império Antigo e, desse modo, augurava um regresso aos
tempos áureos do Egipto. A verdade é que a cidade, em
especial o seu templo de Ptah, tornar-se-ia no núcleo duro
do Egipto, a ponto de levar os visitantes Gregos a atribuí-
rem o nome do templo de Ptah, Hutkaptah («A morada do
ka de Ptah>>), ao próprio Egipto, Aegyptos. A Terra Negra
identificava-se, doravante, com o templo de Ptah, que
dessa forma surgia como a perfeita expressão da noção do
Egipto como templo do mundo. Não pode haver melhor
testemunho acerca do sucesso obtido pelo empreendi-
mento de Chabaka que perdura até aos dias de hoje.

A formulação do logos divino

A centralidade que o estatuto de Mênfis havia con-


quistado foi também favorecida pela complexificação que
a sua tradição teológica atingiu, sobretudo a partir do
período ramséssida. Esta elaboração fez-se primeiramente
a partir do influxo das noções cosmogónicas heliopolita-
nas que guindaram a afirmação de Ptah como um deus
universal, onde as dimensões ctónicas e celestes foram
combinadas para o dotar com os atributos cósmicos da luz
e do Nun conduzindo progressivamente à formulação de
uma visão unitária da divindade que tudo abarcava em si
mesma. Sob o influxo das noções heliopolitanas, a visão
tradicional de Ptah, o deus fazedor de coisas, foi formu-
lada num plano mais abstracto resultando assim a sua
afirmação como o deus que escreve o mundo.
A singularidade da tradição menfita residia em for-
mular a criação como a emanação de um texto vivo, o

186
mundo, que reflectia o «plano» inscrito na mente divina.
A «palavra divina», o hieróglifo, tornava-se no obreiro da
criação e no intermediário entre a mente do criador e o
mundo criado. Nesta noção «hieroglífica» da criação, Ptah
não já não era apenas um deus que «moldava» os seres,
tornando-se num deus que escrevia o mundo através dos
seres. Nesta perspectiva, cada criatura viva era um «hie-
róglifo», a materialização de uma ideia divina. Tendo dis-
tribuído hieróglifos vivos pela natureza, Ptah escreveu o
«livro» da natureza onde estava encerrado o seu «plano».
Assim, ao olhar para a natureza e ao observar a vida, o
homem podia decifrar o código usado por deus para redi-
gir o grande texto vivo da criação e aceder às ideias puras
que emanaram directamente da sua consciência. Uma das
mais decisivas consequências daquela noção consiste pois
na concepção da criação como um texto vivo escrito pelo
criador, um texto que incluía todos os elementos naturais,
as plantas, os animais e os homens. Tidos como «hierógli-
fos», todos os elementos do real reflectem uma ideia divina
emanada da consciência do deus criador e inscrevem-se no
mundo como num livro, onde se encontra cifrado o grande
plano divino, anunciando assim a célebre máxima hermé-
tica, «o que está em baixo, é como o que está em cima».
Decalcando o criador, ao escrever, o homem imitava o
gesto de deus, espalhando os hieróglifos pelo papiro, pelas
superfícies de pedra, ou até pela paisagem242 . Ao confec-

242 De uma forma ou de outra, de um modo mais ou menos inten-

cional, toda a construção humana, mesmo as construções arquitectóni-


cas, podem ser vistas corno hieróglifos. A arquitectura sagrada não deixou
de explorar estas associações e transpôs intencionalmente para a pedra a
forma de certos hieróglifos. A pirâmid e, as colunas dos templos e as
esfinges compõem um <<texto>> hieroglífico que se funde na paisagem e
no cosmos egípcio.

187
cionar uma estátua ou um vaso, o artesão não estava
apenas a criar uma «obra de arte» ou um artefacto: na rea-
lidade estava a redigir, em três dimensões, os mesmos
hieróglifos que o escriba desenhava sobre o papiro. Na
perspectiva egípcia, toda a obra humana, mesmo a mais
simples, produzia hieróglifos que davam permanência e
continuidade à obra fundada pelo criador. É notório, por-
tanto, que Ptah atribuiu ao homem a responsabilidade de
cuidar da criação, o que consiste precisamente numa das
suas originalidades pois reconhece a importância do com-
portamento e do trabalho do homem, através do qual o
criador continuava a completar a criação e a agir sobre ela,
o que naturalmente deve ser entendido como uma forma
de manter o criador em constante interacção com o
mundo, já que o comportamento social, os ofícios e todas
as actividades humanas se inseriam no seu grande plano
divino. Por outro lado, a marca do criador nas obras
humanas devia-se ao poder, exclusivo dos homens, de
criar representações, ou seja, de criar manifestações mate-
riais de ideias abstractas. Dito de outro modo, quando um
escultor trabalhava a pedra «imprimia» na matéria bruta
a ideia patente na sua mente. Um bloco de pedra trans-
forma-se então sob a acção da mente de quem o trabalhou,
passando assim a constituir uma representação e a corpo-
rizar uma ideia, ou seja, tornava-se num «hieróglifo».
Portanto, através da escrita, o homem penetrava no
código da criação, o mesmo utilizado por deus, e dava-lhe
continuidade. É neste ponto que a tradição menfita trans-
cende totalmente os paradigmas que a precederam e é
provavelmente o carácter «hieroglífico» da criação menfita
que explica a importância dada à explicação do funciona-
mento da inteligência no próprio «Livro das Origens», ao
ponto de explicar, de uma forma lógica e racional, a cons-
trução do conhecimento. De facto, partindo de uma pers-

188
pectiva hieroglífica da criação, o referido texto debruça-se
sobre a origem e o funcionamento da consciência. O mundo
é visto como o resultado das ideias puras que emanavam
da consciência do criador e se materializaram nos deuses,
nos homens e em todas as criaturas vivas.
É esta visão da escrita hieroglífica como uma escrita
sagrada reservada apenas aos textos religiosos que os
autores gregos nos reportam. Sabemos hoje que esta ideia,
originalmente tida como errónea e resultante de uma defi-
ciente compreensão, transmite fielmente a imagem que,
na Época Baixa, os sacerdotes egípcios tinham do seu
próprio sistema de escrita243 e o respeito profundo que
tinham pelos textos antigos.
Nesta perspectiva, não há dúvida que, a Pedra de
Chabaka é um monumento de renovação cultural que
divisava o futuro. A visão da criação aí redigida moldou
os sistemas religiosos dos templos da Época Baixa. No
dizer de Assmann, a «trindade» do pensamento, palavra e
hieróglifo tomou-se, efectivamente, a base da atitude sacer-
dotal em relação ao saber, à escrita e à própria santidade e
parece ter transcendido o horizonte cultural do Egipto 244 •
As proclamadas viagens ao Egipto dos sábios Gregos
deixam entrever um influxo de ideias que, na verdade,
se detecta bem nas suas obras. Platão figura justamente
entre os sábios que primeiro souberam expressar numa
linguagem discursiva nova, a filosofia, um quadro de
interpretação do real que parece realmente ser originário
dos templos do Egipto tardio. Nos templos de Mênfis ou
rias arcadas de Atenas, o mundo visível (situado ao nível
das aparências) era visto como a manifestação de uma

243 ASSMANN, The Mind of Egypt, p. 355.


244 Idem , Egyptian Solar Religion, p. 174.

189
ideia divina essencial (onde se situa a sua verdadeira
natureza) 245 .
Este diálogo profícuo entre culturas havia de se inten-
sificar ainda mais a partir da ocupação Greco-Romana.
Este influxo faz-se, naturalmente, nas cidades autóctones
do Egipto, onde a elite sacerdotal não se furtou ao desafio
de formular as antigas tradições egípcias através de uma
linguagem filosófica universalizante, capaz de ser com-
preendida e respeitada por uma comunidade mais ampla
de sábios helenizados. É neste esforço de tradução, que
também irá caracterizar a comunidade judaica alexan-
drina, que podemos situar o nascimento do hermetismo,
que mais não é do que a helenização da tradição autóc-
tone. Com efeito, ainda hoje é possível detectar a origem
egípcia, e até menfita, de alguns dos aspectos mais carac-
terísticos da alquimia e do hermetismo. O carácter «arte-
sanal» da Grande Obra, que se traduz na criação da Pedra
Filosofal, afigura-se congruente com a íntima ligação de
Ptah aos ofícios, em especial, à ourivesaria. Esta associa-
ção poderá mesmo ter propulsionado a inspiração alquí-
mica da busca do «ouro» espiritual e da depuração da
matéria. Afinal, Mênfis permaneceu, na Época Greco-
-Romana como a mais importante cidade egípcia e é aí
que devemos situar o nascimento da alquimia. Também a
representação renascentista de Hermes Trimegisto, não
como um deus mas como um sábio, parece derivar direc-
tamente da representação tardia de Imhotep. Entretanto
divinizado, Imhotep afirmava-se no Egipto tardio como o
fiel depositário de um saber milenário, do mesmo modo
como Hermes Trimegisto figurava como o guardião de
um saber pré-diluviano.

245 Ibidem, p. 174.

190
O impacto da tradição inscrita na Pedra de Chabaka
parece, no entanto, ter transcendido, o âmbito de acti-
vidade dos templos auctótones. De facto, a Pedra de
Chabaka parece ter sido levada para Alexandria na Época
Greco-Rornana e, ao que tudo indica, foi aí que foi encon-
trada no século XIX. Urna tal apropriação justificava-se
plenamente se pensarmos que este monumento é, antes
de mais, um livro e que, impulsionada por Ptolerneu II e
III, estava então em curso urna activa política de aquisição
de todas as principais obras literárias então conhecidas.
É, portanto, urna forte probabilidade que a Pedra de
Chabaka figurasse entre o espólio da própria Biblioteca de
Alexandria.
E efectivamente, o conteúdo do livro de Pedra de
Chabaka justificava a sua aquisição pela biblioteca ale-
xandrina já que conferia antiguidade a um conjunto de
noções nucleares que se afirmavam cada vez mais agluti-
nadoras do complexo caldo rnulticultural que florescia em
Alexandria. Esta matriz filosófica comum cresce em torno
da formulação helenística do logos divino. Ora, a narrativa
cosrnogónica do «Livro das Origens» é estranhamente
próxima da doutrina do logos que se difundiu nas tradi-
ções místicas alexandrinas. De facto, a formulação da
criação corno urna emanação do pensamento do criador é
a pedra angular de um conjunto de sistemas de pensa-
mento que, no contexto do helenismo alexandrino, irão
evoluir separadamente sob a forma de diferentes corren-
tes místicas. Nascidos no mesmo contexto, o hermetismo,
a cabala, o gnosticismo e até o neo-platonismo, partilham
entre si a mesma perspectiva do logos divino e fundamen-
tam o seu misticismo numa busca interior que procura
libertar a centelha divina condensada na matéria. Da
Tábua de Esmeralda aos textos gnósticos de Nag Harnrnadi
cintilam ecos do <<Livro das Origens>>.

191
É sensivelmente a mesma VIsao que encontramos
numa corrente mística que emergiu na mesma matriz cul-
tural, o cristianismo. No magnífico Pr6logo do Evangelho
Segundo São João, onde o tema da criação do mundo é reto-
mado de modo inteiramente abstracto, estabelece-se preci-
samente uma equivalência entre Cristo e a Palavra (Logos):

No começo existia o Verbo;


o Verbo estava em Deus;
e o Verbo era Deus.
No princípio Ele estava em Deus.
Por Ele é que tudo começou a existir;
E sem Ele nada veio à existência.
Nele é que estava a Vida
De tudo o que veio a existir
E a Vida era a Luz dos homens.
(João 1:1,4)

Tal como no «Livro das Origens», o Pr6logo do evan-


gelho joanino apresenta uma elaboração conceptual e
«intelectual» da criação. Em comum, nos dois documen-
tos, é o facto da criação decorrer da mente divina 246 • No
texto joanino, Cristo identifica-se com o logos, ao passo
que no texto egípcio o pensamento criador de deus é per-
sonificado em Sia, o deus heliopolitano que encarnava a
sabedoria divina.
Já nos textos gnósticos, o Reino de Deus, cuja essên-
cia é espiritual, é elevado tão acima do plano humano que

246 A comparação entre a tradição menfita, onde a palavra divina


tem um peso decisivo na criação, com a noção grega de logos («palavra»,
ou ••verbo») tem sido, desde há muito, sublinhada por muitos autores,
como em BREASTED, ••The Philosophy of a Memphite Priest>>, ZAS 39
(1902), pp. 53-54.

192
é impossível ser conhecido pelo homem. Contudo, o modo
como essa impossibilidade é enunciada parece evocar o
velho texto menfita:

«(Vem) para que possa ensinar-te (segredos) que


pessoa alguma viu alguma vez. Porque existe um reino
magnífico e ilimitado, cuja extensão geração alguma de
anjos viu, (no qual) existe (um) grande (Espírito) invisível,
que olho algum de um anjo viu alguma vez, pensamento
algum do coração alguma vez entendeu, e que nunca foi chamado
por nome algum>> 247 •

É notório que a própria inefabilidade de Deus é for-


. mulada, nesta passagem, a partir do quadro conceptual
do «Livro das Origens». Para demonstrar a impossibi-
lidade de aceder totalmente ao conhecimento do pro-
fundo mistério de Deus, o texto elege o coração e a pala-
vra, dimensões que, no «Livro das Origens», são essen-
ciais para a formulação do conhecimento (de deus).
Estes dados dispersos, embora aqui reunidos sem
uma intenção demonstrativa, apontam inequivocamente
para a existência de um movimento intelectual que liga as
principais correntes do misticismo alexandrino, que ainda
hoje subsistem, à tradição espiritual menfita. A razão para
esta proximidade pode ser encontrada no próprio dina-
mismo cultural do Egipto do primeiro milénio antes de
Cristo e do papel que Mênfis então desempenhava como
capital multi-étnica, onde a convivência de tradições
originou sínteses teológicas de grande alcance. O «Livro
das Origens» e, mais de meio milénio depois, muitos dos
textos do misticismo helenista atestam esta «globalização>>

247 Evangelho de Judns, em KASSER, MEYER e WUERST, O Evan-


gelho de Judas, p. 39.

193
teológica à escala mediterrânica cujo centro de gravitação
se firmou em Alexandria, fazendo desaguar na Era cristã
um caudal de reflexão teológica cujas origens se perdiam
na noite dos tempos.

194
II. APÊNDICE:
HINOS E ORAÇÕES A PTAH
1. FÓRMULA 647 DOS «TEXTOS DOS SARCÓFAGOS»

Eu sou o que faz crescer a vegetação


O que faz enverdecer as margens do vale do Nilo.
Eu sou o senhor das terras altas,
O que faz enverdecer os vales das montanhas desérticas.
Eu sou o que está sobre os Núbios, os Asiáticos e os Líbios,
Pois os Nove Arcos foram reunidos diante de mim248,
E a totalidade foi-me dada pelo Sol, o senhor dos limites.
Eu sou «o que está a sul do seu muro>>249,
O soberano dos deuses,
Eu sou o rei do céu,
O que distribui os poderes de vida (lazu) 250,
. O que preside às Duas Terras,
O que distribui os poderes de vida (lazu),
O que concede o poder divino (ba) 251 ,

248 «Nove Arcos>> era a designação atribuída aos povos estrangeiros

que rodeavam o Egipto. A sua enumeração pretende assinalar o carácter


universal do poder de Ptah, como rei da criação.
249
«O que está a sul do seu muro>> é um epíteto de Ptah que é alu-
sivo à localização do seu templo menfita, situado a sul do palácio real.
250 O termo usado é kau, o plural de ka, o poder da vida, o <<duplo»

anímico que anima o corpo. O ka estava estreitamente associado às


necessidades vitais e era <<alimentado>> pelo poder de vida contido nos
alimentos. Tal como o corpo físico, o ka também tinha necessidades vitais
como a sede, a fome e o sexo.
251 O termo usado é bau, o plural de ba, o poder divino que se mani-

festava sobretudo após a morte através da faculdade de se reurJir ao per-

197
As diferentes formas (kheperu),
Os poderes de vida (kau) e os (eternos) nascimentos.
Eu sou o distribuidor dos poderes de vida (kau) .
Todos vivem de acordo com a minha acção.
Quando eu quero, eu faço com que eles existam
Ninguém entre eles me pode falar
A não ser aquele que me criou
Pois eu sou a palavra na sua boca
E o conhecimento no seu ventre.

curso do Sol. O poder divino era acumulado em vida através da sabedo-


ria e da prática de um comportamento justo.

198
2. HINO DE LOUVOR DE UMA ESTELA
RAMESSÉSSIDA

Eu louvo a tua perfeição


Ptah, o grande, o que está a sul do seu muro 252
Tatenen na sua cidade253
Deus venerável do primeiro tempo
Que fez a humanidade e criou os deuses
Ser primevo que lhes deu vida
Que lhes falou no seu coração,
Que os viu crescer
Que enunciou o que nunca aconteceu
E concebeu o que existe.
Nada cresceu sem ti
Tu que te manifestaste ao crescer o dia
Antecedente das coisas que determinaste
Estabeleceste as tuas leis no mundo
A Terra Negra está sob o teu comando,
Como na primeira vez.

252 <<Ü que está a sul do seu muro>


>é o epíteto de Ptah que faz alusão
à localização do seu templo, talvez situado a sul da fortaleza real, em
Mênfis.
253 Tatenen era uma divindade da região menfita que personificava

a colina primordial e estava associada com a criação do mundo. É a partir


da associação com Tatenen, documentada neste verso, que Ptah con-
quistou o estatuto de deus criador.

199
3. HINO DE LOUVOR A PTAH DO PAPIRO HARRIS I

Louvor a ti, tu és o grande, o antigo


Tatenen, o pai dos deuses,
O grande deus primordial
Que modelou os homens e gerou os deuses 254
O primeiro a existir, o que estava nas origens
Foste tu quem inaugurou a criação
Tudo veio depois de ti.
Fizeste o céu
Pois o teu coração o concebeu,
Elevaste-o acima da atmosfera e
Criaste a terra a partir de ti mesmo
Rodeaste-a do Nun primordial e do Muito Verde255
Fizeste a Duat para aí depositar os mortos256

254 A expressão insinua o carácter andrógino de Ptah através dos

termos ir, que traduzimos por «modelar» e més, <<gerar». Estes processos
de criação estão associados à criação artesanal, de carácter masculino, e
à gestação, de carácter feminino. Resulta assim que Ptah é proclamado
como pai e mãe de todos os seres. Note-se que os homens são feitos em
resultado de um trabalho, ao passo que os deuses são concebidos na
carne do deus.
255 O Nun era a personificação do oceano primordial, de onde a

criação emergiu na origem dos tempos sob a forma da colina primordial.


A <<Muito Verde» é a personificação do oceano.
256 A Duat era o mundo inferior, onde viviam os mortos e as divin-

dades do Além.

200
E permitiste a Ré navegar no mundo inferior para os revigorar25 7,
Como soberano da eternidade,
Vida, saúde e força,
Senhor da perenidade e senhor da vida,
Que fazes respirar as gargantas
Dás o ar às narinas
E permites que cada um viva dos seus alimentos
De acordo com o seu tempo de vida e o seu destino.
Os homens vivem daquilo que sai da tua boca.
Criaste as oferendas para cada um dos deuses.
Na tua manifestação de Nun-o-Grande
Senhor da eternidade, és tu que determina a duração da vida,
O sopro de vida para cada homem
És tu que conduzes o faraó ao seu trono
E lhe confere a realeza sobre as Duas Terras
(Vê), eu sou teu filho!

257 A cosmologia egípcia entendia que ao longo da noite o Sol descia

ao mundo inferior para se regenerar e iluminar os defuntos. O percurso


do Sol fazia-se através de urna barca celeste que de dia atravessava o céu
e que, de noite, percorria o mundo inferior.

201
4. SAUDAÇÃO A PTAH DO PAPIRO 3048 DO MUSEU
EGÍPCIO DE BERLIM

Para adorar Ptah, pai dos deuses, Tatenen, o primogénito dos deuses
primordiais, na alvorada. Palavras para enunciar:

Louvor a ti, Ptah, pai dos deuses,


Tatenen, o primeiro dos deuses primordiais,
Deus sagrado, de nobres formas,
O temível,
Que está no trono venerável,
A tua autoridade é grande.
As tuas realizações são grandiosas,
A tua força é descomunal,
Tudo abraças no teu poder.
Força divina, bem amada,
De belo rosto, de aparência luminosa,
Senhor das duas plumas258,
De toucado resplandecente,
Luminoso, tu fazes viver os deuses.
Brilhando e erguendo-te no horizonte
lluminas as Duas Terras com o teu encanto.
Senhor de luz,

258 As duas plumas referem-se ao toucado característico do deus

Tatenen, o deus que personifica a colina primordial e simboliza o início


da criação.

202
Brilhas, assim que te ergues, nos olhos dos que te contemplam e
Dispersas as (suas) trevas.
Disco solar resplandecente
Que percorres o céu distante e atravessas a Duat.
Estejas próximo ou distante
Não te deixas conhecer.
Tu és o poderoso, que reuniu a terra e o oceano primordial (...)
Que a ti mesmo te concebeste
Quando nada ainda havia
Do que estava para vir.
Moldaste a terra segundo o plano do teu coração
Dele surgiram as formas
Tu és o que trouxe ao mundo tudo o que existe
Criador que manifestou os seres.

203
II

Louvor a ti, Ptah-Tatenen!


Deus grande, cuja forma está oculta
O teu rosto revelou-se
Despertas em paz
Pai dos pais de todos os deuses.

Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o disco do céu
Que brilha para o que o criou
Que ilumina as Duas Terras com os seus raios,
e as inunda de paz.

Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que suporta a deusa do céu 259,
Ele é o pilar da terra260,
Que deu origem à existência sobre a terra,
e a inunda de paz.

Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se, o Khnum e a Mut que cuidaram dos deuses261,
O que engendrou cada um dos homens e os faz viver
inundados de paz.

259 Alusão à deusa Nut.


260 Alusão ao deus Geb, o deus da terra.
261 Khnum é o deus oleiro criador dos homens e Mut é a deusa da

maternidade. Através da associação a estes deuses, Ptah afirma-se como


d eus andrógino, pai e mãe de todas as criaturas.

204
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o Nun venerável que faz as oferendas
(... ) às plantas refrescadas
inundadas de paz.
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que fez a Muito Negra e a Muito Verde
E criou a cheia a partir do seu corpo,
e nos inunda de paz
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se em paz o que fundou as Duas Terras,
As montanhas e os desertos
E os fez reverdecer com a água que vem do céu
e nos inunda de paz.
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que criou o sopro de vida que anima as gargantas
Pelo hálito que emana da sua boca
e nos inunda de paz.
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que atravessa a eternidade e a duração
Senhor dos poderes de vida (kau),
que d á alimento àquele que ama
E o inunda de paz!
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que escuta os homens que oram
Diante de quem estremecem as Nebut
E choram (. .. ).

205
III

O faraó vem até à tua presença, 6, Ptah!


Ele vem até à tua presença, ó deus de muitas formas!
Louvor a ti, diante dos deuses primordiais que criaste
Depois de teres nascido corno corpo divino
Que modelou o seu próprio corpo
Quando ainda não havia o céu
Quando ainda não havia a terra
Quando ainda não havia a cheia
Formaste a terra
Uniste o mundo na tua carne
E enumeraste os teus ossos
Estavas sozinho
Ao fundar as Duas Terras
Nenhum pai te concebeu
Quando nasceste
Nenhuma mãe de ti cuidou
Foste o teu próprio modelador
O que nasceu provido de tudo
Ergueste-te sobre um mundo
Que estava informe
E assim se ergueu
Quando te manifestaste corno Tatenen,
O que reúne as Duas Terras.
O mundo que a tua boca concebeu
E que as tuas mãos criaram
Foi resgatado do Nun.
A obra das tuas mãos assemelha-se à tua perfeição,
O teu filho, antigo na sua manifestação,
Dissolve as trevas e a escuridão,
Com o fulgor dos seus olhos.
Dás alimento ao teu menino,
Ergues o céu segundo o seu desejo,

206
Sempre cada vez mais alto,
sempre cada vez mais longe.
Os rostos estavam felizes
Os olhos marcavam o tempo.
O teu menino ergue-se sobre a tua cabeça
e repousa nos teus braços
Tu leva-lo sobre as vias misteriosas.
As barcas divinas navegam continuamente sobre as nuvens 262
Graças ao vento que sopra da tua boca.
Os teus pés estão sobre a terra, a cabeça no céu longínquo.263
Tu és o «que está sobre a Duat>>,
E é assim que ergues para o alto a tua obra
Apenas com a tua própria força
Elevando-te graças ao vigor dos teus braços.
Estás sobre o mistério
O céu está acima de ti e a Duat debaixo de ti
A terra permanece sobre <<O que escondeste»
Nada sabemos do que nasceu do teu corpo
É a tua força que ergue as águas para o céu longínquo 264
A tua saliva é a nuvem que traz a chuva (. .. )
A água que tu espalhas corre nas montanhas
A tua água corre nas folhas das árvores
Dos países montanhosos
Círculo que envolve os Dois Rios do Céu
A Muito Verde e os confins de Nut.

262 A alusão às barcas divinas prende-se com a visão egípcia do per-

curso do sol no firmamento. O Sol percorria o céu numa barca divina,


acompanhado por um séquito de divindades.
263 Trata-se de uma descrição de Ptah como um pilar cósmico que

une a terra e o céu.


264 A partir deste verso começa uma enumeração do Nilo celeste, de

onde se acreditava ser originária a chuva, e uma <<viagem» pelas terras


estrangeiras: os países montanhosos, o mar, os Dois Rios do céu e <<os
países>>.

207
Os países são diferentes de acordo com o que criaste
Eles percorrem o caminho que lhes decretaste
Sem transgredir a via que abriste.
Ninguém vive sem ti
Pois do teu nariz é que sai o sopro da vida
E da tua boca é que sai a cheia.
A árvore de fruto inclina-se para ti.
Tu enverdeces a terra
Deuses e homens estão saciados (. .. )
Se te deitas, as trevas surgem
Pois são os teus olhos divinos que dão a claridade ao mundo
Brilhas nos teus olhos cintilantes (... )
As tuas luminárias percorrem as estrelas e visitam os países 265
Os teus olhos cumprem o seu percurso noite e dia
O teu olho direito é o disco solar
O teu olho esquerdo é a Lua.
Os teus seguidores são as Infatigáveis.
Os grandes exultam quando te vêm em todas as tuas belas
manifestações
A tua tripulação presta-te homenagem266
A Enéade dos teus deuses primordiais 267
Aclama o teu despertar
E rejubila-se quando pousas em <<Aquela que vive>>.

265 A atenção do redactor centra-se agora sobre os astros do céu: o

Sol, a Lua e as estrelas. As Infatigáveis eram constelações que não desa-


pareciam do céu ao longo de todo o ano.
266 A tripulação em causa é o conjunto dos deuses que acompanha

o criador na viagem pelo céu a bordo da barca divina. Depois de percor-


rer o firmamento, a barca divina prepara-se agora para entrar no interior
da terra. Aproxima-se, portanto, o pôr do Sol.
267 A Enéade evoca os nove deuses primordiais que, na tradição
heliopolitana, foram responsáveis pela criação do mundo. Neste con-
texto, a Enéade simboliza todos os deuses.

208
Eles exclamam: «Louvor!>>, sem parar
Tu abres os caminhos do céu e da terra
Quando entras na barca divina
Sempre que apareces glorioso
Ó mais nobre dos deuses 268.

Depois de afastar as trevas


Cuidas da Duat,269
conduzes os bau do Ocidente
(... ) e levantas os que estão diante das suas cavernas270
cuidas dos habitantes do Ocidente. 271
Derrubas os inimigos «daquele que enxuga as lágrimas>>
Silenciaste (o rugido) de Chemselet272
E deste o sopro da vida aos que te chamam.

268 Este belo hino é desenvolvido com uma estrutura perfeitamente

definida: primeiramente tece um louvor ao criador e descreve o


momento anterior à criação. Segue-se a criação do sol e a sepm:ação do
céu e a terra. Com a criação empreendida, o hino descreve a 'vida na
terra, no Egipto e nos confins das terras estrangeiras para passar em
seguida para a descrição das estrelas no céu. Segue-se, nos próximos ver-
sículos, a descrição da Duat, do mundo dos mortos que o sol percorre
durante a noite. O hino termina com um conjunto de proclamações rela-
tivas ao poder de Ptah sobre todas estas facetas da criação.
269 Começa aqui a descrição da Duat, o mundo inferior dos mortos,

como obra de Ptah.


270 Alusão aos túmulos da necrópole.
271 Os habitantes do Ocidente são os defuntos, pois era habitual-

mente na margem ocidental do Nilo que se estabeleciam as necrópoles.


2n Trata-se de uma deusa local da região de Mênfis, possivelmente

conotada com o mundo inferior. Foi frequentemente identificada com


Sekhmet a deusa leonina que, em Mênfis, desempenhava o papel de
divina consorte de Ptah. Não se sabe porque razão o silenciar de
Chemselet constitui um acto benéfico para os mortos. Em virtude da
identificação com a leoa Sekhmet partimos do pressuposto que Ptah
silenciou o rugido da deusa leonina e que este rugido seria motivo de
terror para os defuntos.

209
Os que estão na morada misteriosa são libertados
De cada vez que te contemplam como espírito dotado de formas
Os que te seguem veneram-te quando repousas no Ocidente.
Eles dizem: <<Aclamações ao que nos fez viver!
Que ele seja adorado! Que sejam feitos hinos
Ao deus que tomou perfeitas as nossas moradas! >>

IV

Vinde, cantemos hinos de louvor!


Ao deus que elevou o céu
E faz o seu disco navegar através do corpo de Nut273
Que guia o Sol através do corpo de Nut
No seu nome de Ré!

Vinde, cantemos hinos de louvor!


Ao deus que criou os deuses, os homens e todos os animais
Que criou todos os países, os rios e a Muito Verde,
No seu nome de modelador da terra!

Vinde, cantemos hinos de louvor!


Ao deus que fez jorrar o Nilo para fora da sua gruta,
Que faz reverdejar a árvore de fruto
Que criou o alimento do menino que nasce dele todos os dias,
No seu nome de Nun, o veneráveF74 !

273Nut é a deusa do céu.


274
Nun é a personificação do oceano primordial, das forças do caos
que rodeiam a criação. É a fonte da regeneração do mundo.

210
Vinde, cantemos hinos de louvor!
Ao deus que fez sair o Nun do céu
E faz sair a água das montanhas
Para dar vida aos outros povos,
No seu nome de criador da vida!

Vinde, cantemos hinos de louvor!


Ao deus que criou a Duat
E acalma os bau nas suas cavernas275
No seu nome de Rei das Duas Terras!

Vinde, cantemos hinos de louvor!


Rei da eternidade e da duração
Senhor da vida na llha dos Dois Machados
O que domina o deserto de Iugueret
No seu nome de rei da Duat.276

Vinde, cantemos hinos de louvor!


Ao deus (. ..) que nasceu
Que deu ordem às margens
Que domina os Hau-Nebut,
Castiga os que transgridem a sua ordem
No seu nome de o que dá ordem às margens.

Vinde, cantemos hinos de louvor!


Luz do dia, leão da noite,
Que se fecundou a si mesmo
Nas suas manifestações
No seu nome de o que se transforma!

275
Alusão aos mortos sepultados nos seus túmulos.
7
As localidades aqui evocadas fazem parte da topografia mitica
2 6

do Além.

211
Vmde, cantemos hinos de louvor!
Senhor da verdade,
Cuja ternura é profunda
Cuja potência é grande no seu nome de trono venerável
No seu nome de senhor de Maet277!

Ah, os caminhos abrem-se para ti!


Ah, o que estava fechado abriu-se para ti!
Para ti que te ergues como Ré!
Para ti que nasceste como Khepri!
Que estás entre os habitantes do horizonte!
Tu despertaste-os
Para que endireitem para ti os caminhos do Nun,
Quando chegares como o «muito venerável>>
Para cuidares da eternidade, para sempre!

v
Vinde!
Façamos gestos de alegria
Louvemos a sua imagem magnífica
Em todos os seus nomes perfeitos!

Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Menino que cresce dia a dia!

m Maet é a deusa da verdade e da justiça que personifica a ordem


cósmica. <<Senhor de Maet» é um epíteto muito comum de Ptah.

212
Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Ancião que se detém nas fronteiras da eternidade!

Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Ancião que percorre a eternidade!

Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica, ·
Em todos os seus nomes perfeitos!
O exausto que percorreu todos os seus caminhos!

Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
O que está muito alto e não pode ser alcançado!

Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Senhor da morada misteriosa que ele escondeu!

Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Deus oculto de natureza insondável!

213
Vmde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Ba do senhor da duração que continua a dar a vida a quem ama!

Vmde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Ao deus que dá ordem à criação sem que possa ser perturbado!

VI

Louvor a ti!
Os caminhos foram abertos para ti.
Os caminhos da eternidade foram abertos para ti.
O céu e a terra, a Duat e o Nun abriram-se para ti.
Tu cuidas dos que aí vivem,
Dás a vida, estabeleces a duração da vida de cada homem e de
cada divindade
Eles dizem: «Louvor a ti que nos puseste no mundo
E que criaste as nossas formas».

Festejemos com aclamações


O teu percurso nos céus.
A tua iaret enrola-se sobre o teu rosto278

278 A iaret é a serpente sagrada que se divisa sobre a testa do faraó,


mais tarde denominada uraeus na Época Greco-Romana. A serpente é
evocativa do poder luminoso, unicamente detido pelo faraó, para repe-
lir as forças da obscuridade e da treva. É, por excelência, uma prerroga-
tiva real que simboliza o poder do faraó para irradiar a luz e a ordem.

214
A (serpente) que coroa a tua testa é uma senhora poderosa
A tua tripulação aclama-te
O teu primogénito adora-te
Como o mais belo dos deuses,
Como o de manifestação agradável

O teu filho diz:


<<É glorioso o meu pai,
do qual saí.
Senhor dos homens,
Criou-me no Nun
E, para mim, elevou o céu e ergueu a terra.
Ele navega quotidianamente sobre o corpo de Nut
E conduz-me através dos caminhos misteriosos.
Ele faz-me passar através dos meus inimigos com segurança.
O seu desejo é que eu permaneça sempre livre do medo
Eles não se aproximarão de mim.>>

215
VII

Louvor a ti! Deus grande, senhor das faces!


Tu vives, a tua cabeça é a do carneiro279
De manifestações sagradas
Cuja pluma é alta
Senhor dos toucados
Nobre venerável que está no seu santuário.

Louvor a ti, Ptah!


Louvor aos deuses que nasceram do teu corpo!
Que grande és tu aos olhos dos deuses primordiais!
Tu comprazes-te com Maet
Que Tot elevou para ti.
És tu quem decide quem permanece entre os homens280
Ou permanece entre os deuses
És tu que dás a eternidade
És tu que dás a duração.
Os akhu são as testemunhas281
E os deuses possuem o peso da balança.

VIII

Temei-o e respeitai-o!
A este deus que agiu de acordo com os vossos desejos.

279 Trata-se possivelmente da evocação de Atum, cuja representa-


ção iconográfica é feita, por vezes, através da sua representação com
cabeça de carneiro.
280 Alusão ao poder de vida ou morte sobre cada homem.
281 O akh é o poder luminoso dos defuntos transfigurados. Os akhu

são, neste contexto, os elementos da assembleia divina que julgam o


defunto no tribunal dos mortos.

216
Difundi aclamações ao seu poder,
Deleitai-vos com os seus olhos
As suas palavras são a balança das Duas Terras.
O segredo é mantido sobre as suas obras
O seu nome venerável afasta as tempestades
Os rostos estão estampados de medo
Quando o seu ba aparece282.
É um mago poderoso entre os deuses
O seu renome é grande entre a Enéade
Ele controla tudo o que criou
O seu poder manifesta-se na sua obra
E provoca um estremecimento entre os deuses
A sua natureza secreta vem do seu nome misterioso (...)
Reuniu as Duas Terras com os seus cuidados
Deu ordem às Duas Margens
Ligou a cabeça ao corpo
Persegue o mal e destrói a mentira
Agradável é o sopro que sai (dele)
Para o que ele ama
Ele deu aos deuses as suas faces
Ele conciliou os Dois Senhores283
E reuniu os Arcos.
Ele apazigua a Venerável no seu furor284
E deu a majestade ao seu filho, Ré.
Ele protegeu os homens e os deuses pela grandeza do seu poder.

282 Contrastando com a aparição radiosa e benfazeja descrita nos


hinos anteriores, Ptah surge aqui como uma manifestação de poder
típica das divindades. A sua manifestação como ba, poder divino, desen-
cadeia o terror, o que é uma reacção típica perante uma divindade.
283 Alusão ao mítico conflito instaurador da justiça entre Hórus e

Set.
284 Alusão ao poder de Ptah para apaziguar Sekhmet, a sua divina

consorte, a deusa leoa que instala o terror e a morte e que se alimenta do


sangue dos homens.

217
5. TEXTO COSMOGÓNICO DO PAPIRO 13603
DO MUSEU EGÍPCIO DE BERLIM

<<(... ) eis que ele fez que os Oito se instalassem em


Hermópolis 285, e que se (tomassem vacas e touros) segundo a
sua própria natureza. Preto, verde (. .. ) eram as cores dos touros
e das vacas. E gritou na sua direcção: <<Que (os quatro touros) se
unam, que as quatro vacas se unam! Assim, os machos toma-
ram-se num grande touro negro e as fêmeas transformaram-se
numa vaca negra. (Os seus nomes) são Amon e Amonet. O touro
precipitou-se para a vaca tão rapidamente que o seu sémen caiu
à água no grande lago de Hermópolis, no lugar da flor de lótus.
(... ) A flor de lótus transformou-se numa criança com o dedo (na
boca. Na cabeça tem) uma coroa com uma serpente sagrada.

(... ) Ele é o pai dos deuses e também a mãe e o seu apelido


é <<A Mulher». Ele é o molde onde se verte toda a semente de
tudo o que saiu do Nun. É o grande Hapi, pai dos deuses, é Nun,
metade homem e metade mulher. Pela água é homem, pela terra
que se ergueu é mulher. Ele é o pai e a mãe. Ele fez a cevada a
partir do homem e o trigo a partir da mulher, fez as cheias que
vêem do Nun para (alimentar) os homens e dar-lhes vida. Ele
trouxe a água para os campos. Fez brotar a cevada e o trigo para
os dar aos deuses (...) assim foi feito o pão, do qual depende a
vida nas Duas Terras. Ele deu o trabalho aos homens e é assim
que eles vivem (...)>>.

285 Sobre as oito divindades primordiais de Hermópolis, ver supra

pp. 140-142.

218
6. ORAÇÕES A PTAH

Ptah, o meu coração está cheio de ti


O meu coração fica preenchido com o teu amor
Como um pequeno lago com os botões da flor de lótus.
Fiz a minha morada ao lado dos muros do teu templo
Como o servo que adora o seu senhor sobre a terra286.

II

Dar graças a Ptah, senhor de Maet,


Rei das Duas Terras,
De rosto misericordioso no seu grande trono,
O deus único entre a Enéade,
Amado do rei das Duas Terras,
Que ele dê vida, prosperidade, saúde,
Vivacidade, protecção e afecto.
Que os meus olhos possam ver Amon, em cada dia,
Como (um dom concedido a) a um justo,
Que colocou Amon no seu coração!
Assim fala o servidor de Set-Maet, Neferabu, justificado.287

286 O texto está patente numa estátua do período romano e é apre-


sentado, em língua francesa, por André Barucq e François Daumas; ver
BARUCQ & DAUMAS, Hymnes et Prieres, pp. 414-415).
71l7 Estela de Neferabu, Império Novo. Trata-se de um trabalhador
de Deir el-Medina, a aldeia onde viviam os trabalhadores que cons-

219
III

Sou um homem que deu um falso testemunho


Em nome de Ptah, o senhor da verdade.
(Por isso) fiquei cego em pleno dia.
Proclamarei o seu poder
A todo o que não o conheça, bem como ao que o conhece,
Aos pequenos e aos grandes.
<<Tomai atenção a Ptah, o senhor da verdade!
Vede, ele não deixa passar a falta de ninguém.
Livrai-vos de invocar em vão o nome de Ptah!
Vede, aquele que o pronunciou em vão,
Vede, está arruinado.»
Ele tomou-me igual aos animais da rua,
E fiquei à sua mercê.
Ele expôs-me aos homens e aos deuses.
Era como um homem
Que fez uma coisa abominável ao seu senhor.
Ptah é justo, o senhor da verdade, para comigo!
Ele deu-me uma lição.
Sê misericordioso comigo
Para ver a tua misericórdia!

Pelo servidor de Set-Maet, a ocidente de Tebas, Neferabu, justi-


ficado pelo deus grande288.

truíam os túmulos reais do Vale dos Reis. Nesta localidade o culto de


Ptah tinha bastante expressão. Adaptado da versão inglesa em LICHT-
HEIM, AEL, vol. II, pp. 109-110.
288 Trata-se de uma oração formulada por um aldeão de Deir el-

Medina (Set-Maet). O homem atribui a sua cegueira a um castigo de


Ptah, devido ao facto de ter jurado em falso, pelo nome do deus. A oração
foi redigida sobre a superfície posterior de uma esteJa conservada no
Museu Britânico (589A nossa tradução baseia-se na versão francesa de
BARUCQ & DA UMAS, Hymnes et Prieres, p. 409).

220
IV

Este humilde servo adora a tua beleza,


Ptah, o grande, o que está a sul do seu muro,
Tatenen que reside em Mênfis,
Deus primordial que modelou os homens e concebeu os deuses,
Deus primordial que deu à luz os homens,
O que ele disse no seu coração, foi criado e manifestou-se.
Ele enuncia o que ainda não existe
E renova o que já existe
Nada existe sem ele.
As coisas foram criadas quando ele se manifestou, em cada dia,
Segundo o que determinou.
Colocaste o país para seguir as tuas leis,
Como tu o criaste.
O Egipto permanece estável sob o teu comando,
Como na primeira vez289 •

289 Oração redigida numa esteJa privada conservada na glipoteca

Ny Carlsberg, em Copenhaga. O texto é apresentado em língua francesa


em Idem, p. 411.

221
7. COMENTÁRIOS

Fórmula 647 dos «Textos dos Sarcófagos>>

Esta fórmula é conhecida apenas numa única ocorrência;


tendo sido encontrada num sarcófago do Império Médio prove-
niente da região de Gebelein. O texto possui uma grande impor-
tância histórica pois consiste numa das primeiras referências
escritas referentes à caracterização teológica do Ptah, sendo, por
isso, muito útil para delinear a evolução da sua definição reli-
giosa ao longo do tempo. Os principais atributos da divindade
aqui descritos relacionam-se com as suas propriedades ctónicas,
ligadas à fertilidade.
Um indício da antiguidade desta fórmula consiste no facto
do texto ser enunciado na primeira pessoa. Textos deste tipo são
característicos de uma revela1;ão: deus revela-se ao mundo
através da fórmula mágica e enuncia os seus atributos divinos.
O discurso na primeira pessoa apresenta-nos, portanto, em con-
tacto directo com o deus que, desse modo, se dá a conhecer. Não
será esse o caso dos textos seguintes que são enunciados pelo
orante que descreve os atributos divinos em sua homenagem.
Nesta fórmula, Ptah já surge como o modelo divino da rea-
leza. Todos os atributos de Ptah aqui referidos são aplicados
igualmente ao rei, pelo que a caracterização do deus é a de um
soberano, <<rei dos deuses», mas não a de um criador. O poder de
Ptah, no entanto, deriva do Sol, o <<senhor dos limites>> que se

222
insinua como o próprio criador de Ptah. Em textos posteriores,
esta relação de paternidade será invertida.
O poder de Ptah estende-se a toda a terra, incluindo o
deserto e os países estrangeiros. O seu poder abarca também o
céu e manifesta-se no poder para dispensar a vida e os poderes
que lhe estão associados: o poder de se manifestar sob uma
forma (kheperu) o poder vital (kau), o poder divino (bau). É tam-
bém o deus que demarca o tempo de vida de cada criatura: esta-
belece o seu tempo para nascer e também para morrer. O texto
termina com uma revelação final muito bela: o deus consubstan-
cia-se com cada homem pois constitui «a palavra na sua boca e
o conhecimento no seu ventre>>. A versão que aqui apresentamos
é baseada na tradução inglesa proposta por James Allen290.

Hino de louvor de uma estela ramesséssida

Trata-se de uma estela privada, datada do reinado de


Ramsés ll, conservada actualmente em Copenhaga. Neste texto,
as qualidades demiúrgicas de Ptah já surgem bem definidas,
constituindo o aspecto central da sua caracterização. O texto
documenta a associação de Ptah ao deus Tatenen, de capital
importância para a afirmação do seu estatuto cosmogónico.
O deus já surge também como o criador dos deuses e dos
homens, pai e mãe de todas as criaturas e que estabelece com
elas uma relação pessoal, «falando-lhes no coração». É também
um deus que «concebe>> no pensamento o mundo que há-de vir
e que contém na sua consciência todas as potencialidades.
A nossa versão baseia-se na versão, em língua inglesa, pro-
posta por James Allen29 1 .

290 ALLEN, Genesis in A ncient Egypt, p. 39.


291 Ibidem, p. 39.

223
Hino de louvor a Ptah do Papiro Harris I

Este texto faz parte integrante de um longo documento no


qual Ramsés Iii se dirige a três divindades, Amon de Tebas, Ré
de Heliópolis e Ptah de Mênfis, e onde enumera as obras e as
doações atribuídas a estes templos, os três maiores do Egipto.
Este hino, em particular, é dirigido a Ptah e inicia a secção da
obra relativa às benfeitorias realizadas pelo faraó em favor do
seu templo menfita. Quanto ao conteúdo, o hino apresenta Ptah
como o grande criador do mundo, evidenciando já a sua assimi-
lação a Chu, ao deus heliopolitano da luz que desempenhava a
função mítica de ligar o céu e a terra, adquirindo, através desta
identificação, o carácter de uma divindade cósmica e celeste que
se reflecte na afirmação de Ptah como o pilar cósmico que eleva
o céu.
É notória a caracterização de Ptah como um deus andró-
gino, que é pai dos homens e mãe dos deuses. O seu poder uni-
versal estende-se a todas as dimensões do cosmos. Como é habi-
tual nos textos que descrevem o universo, o redactor começa por
se referir ao céu, depois à terra e ao oceano, e finalmente desce
ao mundo inferior, à Duat, a morada dos mortos. A última parte
do hino exalta o poder do deus para assegurar a vida e velar pelo
destino de cada criatura viva.
Baseámos a nossa versão na tradução em língua francesa
proposta por Pierre Grandet292 • O hino é encabeçado pela
seguinte introdução: «Palavras ditas por Usermaetré Meriamon,
deus grande, a seu pai, Ptah-o-Grande, o que está a sul do seu
muro, senhor de Ankhtaui, Tatenen, pai dos deuses, o das duas
plumas erguidas sobre a comamenta, o belo de rosto, que está no
Grande Trono.>>.

292 GRANDET, Papiro Harris I, pp. 284-285.

224
Saudação a Ptah do Papiro 3048 do Museu Egípcio
de Berlim

Apresentamos aqui um longo hino ritual escrito no Império


Novo, no reinado de Ramsés IX (XX dinastia). No entanto, foi
sobre um papiro datado da XXll dinastia, o Papiro 3048 conser-
vado em Berlim, que o texto chegou até aos nossos dias. Trata-se
de uma composição muito heterogénea que reúne vários hinos
ao jeito de uma compilação. Redigidos sem uma ordem apa-
rente, sucedem-se hinos de louvor e cantigas muito ritmadas que
provavelmente se destinavam a ser entoadas por coros ao longo
de celebrações religiosas. Enquanto alguns hinos parecem desti-
nar-se a acompanhar o nascer do Sol, outros parecem ter sido
recitados em liturgias relacionadas com o culto divino da estátua
do deus.
A análise do conteúdo permite-nos constatar que as noções
. cosmogónicas descritas no <<Livro das Origens» já aqui estão pre-
sentes. A identificação de Ptah com o deus Amon também está
patente, por exemplo, através da sua caracterização como «deus
oculto>> e «insondável>>293 • Também ao nível da teologia heliopo-
litana apresenta importantes influências, patente, por exemplo,
na ênfase do carácter solar de Ptah e na sua identificação com
Chu, o pilar cósmico. Ré, por outro lado, é apresentado como o
seu filho. A obra apresenta, portanto, um carácter fortemente
sincrético.
A estrofe I é redigida sob a forma de um hino solar que des-
creve a manifestação de Ptah como o deus Sol que se ergue pela
manhã. A grandeza da composição perpassa em cada uma das
suas linhas através da exaltação de Ptah com imagens do mundo

293 Muitos dos atributos e epítetos deAmon estão, com efeito, apli-

cados a Ptah, traindo assim a influência da teologia tebana onde, de


resto, se promoveu a síntese dos principais deuses imperiais: Amon, Ré
e Ptah.

225
natural conotadas com o poder da luz para instaurar a vida.
O hino começa por afirmar o carácter ctónico do deus, através
da identificação com Tatenen, para depois evoluir no sentido de
afirmar o estatuto real do deus através da identificação com o
trono do Egipto e com o Sol. O carácter heliomórfico do deus é
insinuado através da evocação do movimento do Sol através do
firmamento e através da sua exaltação como um deus distante
que é simultaneamente próximo e oculto.
A estrofe II foi composta sob a forma de uma ladainha for-
temente ritmada por versos repetitivos que sugerem a sua
entoação por um coro. Trata-se de uma exaltação à manifesta-
ção criadora de Ptah que «desperta>> do sono inicial para dar
origem à criação. Através do despertar do deus enumera-se a
sua própria obra da criação que consiste num tomar de cons-
ciência do mundo e de si mesmo. Naturalmente, são enfatiza-
das as associações do deus ao Nun, razão pela qual é afirmado
o seu carácter andrógino, nomeadamente através da identifi-
cação com Khnum, o deus criador cultuado em Elefantina que
moldou os homens através do barro, e com Mut, a deusa tebana
associada à maternidade. A alusão aos dois deuses que criam e
concebem os deuses, para além de conotar o deus com a andro-
ginia que lhe é característica, evoca igualmente os dois poderes
de criação: a criação «masculina>> através do exercício de um
ofício (o de oleiro, no caso do deus Khnum) e a criação «femi-
nina>> através da gestação. A evocação de Khnum e Mut pro-
curava dotar o deus com os atributos que faziam dele o pai e
mãe da criação.
A estrofe ill apresenta um dos mais belos textos cosmogó-
nicos da tradição menfita que chegou até aos nossos dias. O hino
desenvolve-se segundo uma estrutura complexa e cuidadosa-
mente repartida que rege e organiza a composição. Primeiro des-
creve a manifestação criadora de Ptah quando se manifestou a si
mesmo na origem do mundo. Ptah é glorificado como criador da
terra e dos deuses e designado como <<deus único>>, um tributo

226
frequente nas divindades demiúrgicas. Ptah é exaltado como
modelador e metalurgista, ao mesmo tempo que são feitas alu-
sões à criação pela boca (através da palavra) e pelas mãos (atra-
vés da masturbação), o que lembra a identificação estabelecida
entre a língua e os lábios de Ptah e o falo e as mãos de Atum,
também documentada no <<Livro das Origens». O hino evolui
em seguida para a criação do Sol que aqui é descrito como o filho
de Ptah. a obra que coroa a sua criação. Na companhia do menino
Sol, Ptah ergue-o no céu, assimilando-se à função de Chu, e leva-
-o a percorrer o firmamento. Inicia-se assim uma viagem náutica
pelo firmamento, ao longo da qual Ptah conduz o Sol pelos
domínios do universo: primeiro avistam os vários países (as
montanhas, o deserto, as constelações, as luminárias celestes)
para, no final do dia, se encaminharem para o mundo inferior,
para a Duat, onde visitam os mortos.
A estrofe IV consiste na repetição de um refrão sob múlti-
plas variações destinadas a qualificar Ptah como o obreiro da
criação. Também aqui se detecta uma evolução padronizada que
associa o deus aos diferentes elementos da criação, a começar
pelos elementos do mundo nilótico do Egipto, para depois
abraçar o deserto e evoluir para as regiões do Além. É também
uma composição que provavelmente se destinava a ser cantada.
De notar que cada unidade temática é desenvolvida em torno de
um nome divino que a delimita.
A estrofe V consiste também num refrão que vai sendo
repetido de modo a evocar os diferentes nomes de Ptah. Esta
nomeação define a grandiosidade do deus através de múlti-
plos vectores. A redacção de hinos baseados em nomes divinos
traduz a importância do nome na expressão e na revelação do
sagrado. Nomear consistia no meio mais directo para manifestar
a presença divina, o que também podia ser feito através de um
conto ou de um mito. A nomeação do deus no contexto do culto
parece mesmo ter sido a origem dos hinos religiosos mais com-
plexos, como os que temos apresentado até aqui. As referências

227
à imagem divina de Ptah sugerem que o texto fosse recitado
diante da estátua do deus.
A estrofe VI descreve novamente a manifestação de Ptah
como o soberano da criação. As referências à serpente iaret que
se ergue sobre a testa do deus confirmam o estatuto real do deus
que percorre o céu em navegação. Uma particularidade deste
texto é a de incluir uma invocação do próprio deus Sol, aqui
ainda menino, que se dirige a Ptah como seu pai.
A estrofe Vll qualifica Ptah como um juiz dos mortos, o
que, naturalmente o aproxima da função de Osíris como divin-
dade que preside à pesagem do coração e ao tribunal do Além.
Finalmente, como complemento à associação de Ptah à jus-
tiça, a estrofe Vlll descreve o deus como um justiceiro que actua
no mundo terreno e no mundo divino. Em conjunto, as estrofes
Vll e Vlll, descrevem Ptah como o deus que garante a aplicação
da justiça, maet, tanto no Além, como em todo o cosmos.
O hino termina com uma alusão ao rei Ramsés IX da XX
dinastia: «Vinde! Protegei o rei do Sul e do Norte, Ramsés IX,
como tu proteges os deuses que vivem neste país. Tu és o seu rei.
O teu poder exerce-se sobre todos os países. Tu estás estabele-
cido na realeza das Duas Terras. O poderoso que permanece no
seu poder. O seu poder permanece na sua obra. Tu és o rosto de
tudo o que existe, como Ré. (0 mundo) é a tua posse. A eterni-
dade pertence-te, é a tua propriedade, Setepenré!>>
A versão apresentada baseia-se na tradução proposta por
André Barucq e François Daumas294, em francês, e na versão em
língua inglesa, apresentada por James Allen29s.

294 BARUCQ e DAUMAS, Hymnes et Prieres, pp. 389-407.


295 ALLEN, Genesis in ancient Egypt, pp. 39-40.

228
Texto cosmogónico do Papiro 13603 do Museu
Egípcio de Berlim

O texto figura no Papiro 13603 do Museu Egípcio de Berlim


e contém uma cosmogonia redigida em demótico, datada pouco
antes do início da era cristã. Infelizmente o texto apresenta
muitas lacunas. O texto foi redigido por um sacerdote menfita
no século I a.C., cuja inspiração se revelou bastante edética,
recorrendo aos contributos das tradições hermopolitana, tebana
e heliopolitana. No início dos tempos, Ptah emergiu do Nun e
criou a Ógdoade de Hermópolis. Este grupo de deuses acabou
por gerar uma hipóstase de si própria na forma de um único
casal, Amon e Amonet, que aqui assumem a forma de bovinos,
numa evocação das forças sexuais fecundadoras personificadas
pelo touro Ápis de Mênfis.
A segunda parte do texto identifica a causa das cheias, atri-
buindo-a a Ptah. Como Ptah é simultaneamente identificado
com a água e com a terra, o autor reconhece nesta ambivalência
a mesma natureza hermafrodita que está patente em Hapi, a
divindade das cheias do Nilo, representado como um homem
pançudo com seios de mulher. Considera que a água é um prin-
cípio masculino (talvez por associação ao sémen fecundador) e a
terra é um elemento feminino (sem dúvida por aí se verificar a
germinação das sementes). Ficava assim estabelecida a imagem
sexual que explicava a fertilidade do solo, da qual dependia a
agricultura.
A nossa versão é baseada na tradução, em língua francesa,
apresentada por Jean Yoyotte296.

296 SAUNERON, YOYOTIE, «La Naissance du Monde selon

I' Égypte Ancienne», LA Naissance du Monde, pp. 58-67

229
Orações a Ptah

Os textos aqui coligidos são apresentados, em língua fran-


cesa, por André Barucq e François Daumas297 • Trata-se de peque-
nas composições de carácter privado que foram redigidas sobre
monumentos particulares, como estatuetas ou estelas. Contras-
tam assim vivamente com o carácter oficial das composições
anteriores. No entanto, nem por isso se revelam desprovidas de
um lirismo arrebatado e amoroso, o que é típico da espirituali-
dade tardia do Egipto do I milénio a.C.

297 BARUCQ e DAUMAS, Hymnes et Príeres, pp. 408-415.

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MDAIK - Mitteilung des Deutchen Archaologischen
Instituts abteilung Kairo, Cairo.
OBO- Orbis Biblicus et Orientalis, Friburgo, Gottingen.
OMRO - Oudheidkundige Medelingen vit het
Rijksmuseum van Oudheden te Leiden, Leiden.
RA- Revue Archéologique, Paris.
ZÁS - Zeitschrift fur Agyptische Sprache und
Altertumskunde, Berlim.

239
ÍNDICE

NOTA PRÉVIA ............................................................................. 5


INTRODUÇÃO. ............................................................................ 13
I. O «LIVRO DAS ORIGENS>> ................................................... 27
1. Versão hieroglífica e tradução.... ......................................... 29
2. Comentário............................................................................. 81
2.1. A peça dramática ............................................................ 81
2.2. A narrativa cosmogónica .............................................. 92
2.3. Teologia e géneros literários......................................... 112
2.4. Datação e composição ................................................... 120
3. Enquadramento..................................................................... 127
3.1. Contexto político: a dinastia cuchita e a Pedra de
Chabaka........................................................................... 127
3.2. Enquadramento teológico: As tradições
cosmogónicas de Heliópolis e de Hermópolis .......... 137
3.3. A tradição cosmogónica menfita.................................. 155
4. O impacto do <<Livro das Origens>> .................................... 183
II. APÊNDICE: HINOS E ORAÇÕES A PTAH ............................ 195
1. Fórmula 647 dos <<Textos dos Sarcófagos>> ........................ 197
2. Hino de louvor de uma estela ramesséssida .................... 199
3. Hino de louvor a Ptah do Papiro Harris ! ........................... 200
4. Saudação a Ptah do Papiro 3048 do Museu Egípcio de
Berlim ...................................................................................... 202
5. Texto cosmogónico do Papiro 13603 do Museu Egípcio
de Berlim................................................................................. 218
6. Orações a Ptah ....................................................................... 219
7. Comentários ........................................................................... 222
BIBLIOGRAFIA............................................................................ 231

241
Esta 1.• edição de O LIVRO DAS ORIGENS,
de Rogério de Sousa, foi composta e impressa
para a Fundação Calouste Gulbenkian nas
oficinas da Rainho & Neves, Lda. - Santa
Maria da Feira
A tiragem é de 500 exemplares

Dezembro de 2011

Depósito Legal n. 328462/11


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ISBN: 978-972-31-1410-2

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