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Calouste O Livro Das Origens Pedra de Chabaka-Min
Calouste O Livro Das Origens Pedra de Chabaka-Min
A inscrição teológica
da pedra de Chabaka
Nota Prévia, Introdução, Texto e Desenhos de
Rogério Sousa
Edição da
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
2011
7
abrange toda a reflexão teqlógica desenvolvida em torno
do culto menfita de Ptah. A expressão não deve, por isso,
ser aplicada exclusivamente a um único texto e deve ser
reservada para designar o edifício teológico construído no
âmbito da tradição menfita, à semelhança do que ocorre
com a expressão «teologia heliopolitana» ou «teologia
hermopolitana•>. Em boa verdade, o texto hieroglífico é
omisso quanto ao título da obra. Quando foi transposto
para a pedra, no reinado do faraó Chabaka (716-702 a.C.),
o segundo rei da XXV dinastia (747-656 a.C.) 4, o redactor
refere simplesmente a existência do «livro» ou do
«escrito» redigido pelos antepassados. Embora insinue
um paralelo com a conhecida narração bíblica da criação
do mundo, o título «Livro das Origens», que propomos
para designar esta obra egípcia, reflecte o espírito e a fina-
lidade do texto original cujo intuito era o de revelar o
drama que, na origem dos tempos, esteve subjacente à
criação do mundo e à fundação do Egipto. Os termos por
nós escolhidos para compor o título não são ocasionais.
A inscrição de apresentação refere-se explicitamente ao
texto como «um livro dos antepassados». Incluir a desig-
nação de «livro» no título torna mais clara a força e o pres-
tígio que a composição gozava como um todo. Pelo con-
trário o título Teologia Menfita inspira-se quase exclusiva-
mente no trecho narrativo da composição aplicando-se
mal à maior parte do livro composto por uma acção
dramática que de modo algum pode ser encarada como
um texto de reflexão teológica. Por outro lado, o termo
«origens» afigura-se particularmente ajustado pois remete
para o tempo primordial, sem precisar a proveniência
concreta dos mitos em causa. Evitamos assim a exclusiva
8
centração do texto no quadro da mitologia menfita, uma
vez que, embora a sua intencionalidade seja a de afirmar
o estatuto divino e político de Ptah (o deus tutelar de
Mênfis), a maior parte do texto recorre, quase por com-
pleto, ao quadro mitológico da vizinha cidade de
Heliópolis. Situar este documento apenas no quadro das
concepções teológicas menfitas é, portanto, redutor e não
traduz a «universalidade» que os antigos redactores cer-
tamente tinham em mente aquando da sua elaboração.
Naturalmente, temos que manter em mente que,
enquanto reconstrução, o nosso título constitui uma pro-
posta aberta e provisória. Em todo o caso, a designação
Teologia Menfita, encontrando-se em clara contradição com
o conteúdo e com as características literárias da composi-
ção, não será mais utilizada nestas páginas.
Na verdade, o texto patente na Pedra de Chabaka é o
herdeiro de uma longa e milenar tradição e reflecte como
nenhum outro a intensa reflexão teológica e política em
torno do problema da criação do mundo. Embora muitos
outros textos cosmogónicos alusivos à criação do mundo
tenham sido redigidos no antigo Egipto, grande parte
deles protagonizados por outras divindades criadoras, a
verdade é que o «Livro das Origens» é o único texto que
chegou até nós que, para além da enunciação de eventos
mitológicos (como é de regra nos textos cosmogónicos
egípcios), inclui também uma narrativa sequencial formu-
lada através de uma interpretação racional da criação do
mundo. Por essa razão, não é excessiva a comparação que
o título <<Livro das Origens>> insinua com o Génesis bíblico
pois partilha com esta obra uma visão unitária do acto
criador que se desdobra de um modo articulado e coe-
rente através da materialização progressiva do plano
divino. Os dois textos cosmogónicos têm ainda em
comum o facto de se basearem em referências míticas
9
antiquíssimas, integrando-as numa nova e racionalmente
articulada visão teológica. Graças à sua vigorosa e «uni-
versal» formulação teológica os dois textos exerceram um
impacto duradouro quer na cultura e na religiosidade do
povo que os redigiu, como na especulação filosófica e teo-
lógica de povos que com eles conviveram, originando um
caudal de reflexão que se foi actualizando e revestindo de
novas roupagens e interpretações. Importa ainda salientar
que ambas as composições foram sendo buriladas sensi-
velmente ao longo do mesmo período de tempo (séculos
XIII-VI a.C.) e que, apesar da aparente divergência de
horizontes religiosos, se apresentam como produtos afinal
bastante próximos de um caudal de reflexão comum.
Cada um destes textos a seu modo elaborava uma versão
unitária e compreensiva de deus e do mundo.
Ao escolhermos a designação de «Livro das Origens»
tivemos ainda em conta um outro aspecto, porventura
o mais decisivo, relacionado com a especificidade da
mensagem veiculada no texto. Nele perpassa a ideia de
um deus criador que literalmente «escreve» o mundo,
povoando-o de hieróglifos vivos que permanentemente
actualizam o seu pensamento primordial. Estabelece-se
assim uma equivalência entre «livro» e «mundo» que é
específica desta obra e que justamente merece ser desta-
cada na designação que a evoca.
Embora o impacto do «Livro das Origens» redigido
na Pedra de Chabaka seja comparativamente menos visí-
vel que o do Génesis bíblico, e que, por essa razão, seja-
mos tentados a considerá-lo mais longínquo dos nossos
próprios referenciais culturais, a verdade é que não só
ambas as obras exerceram uma influência tremenda no
desenvolvimento das ideias religiosas que desaguaram
no cristianismo, como na realidade o «Livro das Origens»
parece ter sido o veículo de ideias que tiveram um alcance
10
bem mais determinante na afirmação da mensagem cristã.
O Prólogo do Evangelho Segundo São João, um texto com
uma desconcertante afinidade com o texto cosmogónico
da Pedra de Chabaka, retoma o tema da criação pela pala-
vra divina no contexto do Novo Testamento, insinuando
um paralelismo simbólico com o Génesis que dá início ao
Antigo Testamento. Num certo sentido, a mensagem do
«Livro das Origens» afigura-se mais decisiva ainda do
que a do Génesis, na medida em que, aos olhos dos redac-
tores do Evangelho Segundo São João, a ideia de uma criação
do mundo pela Palavra afigurava-se suficientemente ino-
vadora para justificar a repetição do relato da criação,
agora entendida plenamente à luz da criação do logos.
Todos estes elementos justificam a publicação, pela
primeira vez em Portugal, quer da tradução integral do
texto, quer da própria versão hieroglífica, possibilitando
assim ao estudioso o acesso directo à fonte hieroglífica.
Devido à grande distância que nos separa dos redactores
desta composição colocámos um especial cuidado na con-
textualização do leitor contemporâneo. O comentário e o
enquadramento procuram explicitar a grandiosidade
desta obra que se filia numa tradição antiquíssima. Nos
apêndices, o leitor poderá ainda encontrar outras obras
literárias que revelam uma afinidade evidente com o
«Livro das Origens». Esta obra magistral, onde o drama
das origens é encenado e revelado, representa uma das
mais singulares e extraordinárias obras literárias que o
mundo antigo nos legou e cujo verdadeiro impacto na
espiritualidade do Ocidente está ainda largamente por
estimar.
11
INTRODUÇÃO
O «Livro das Origens» foi inscrito num bloco de
pedra negra de grandes dimensões (92 centímetros de
altura contra 132 centímetros de largura), actualmente
conhecido por Pedra de Chabaka, em virtude de ter sido
mandado erguer pelo faraó Chabaka (716-702 a.C.),
segundo rei da XXV dinastia (747-656 a.C.).
Originalmente o bloco foi colocado no templo de
Ptah, em Mênfis. Infelizmente as circunstâncias da sua
descoberta não são conhecidas mas é possível que o bloco
tenha sido encontrado em Alexandria, para onde pode ter
sido transferido no decurso da dinastia ptolemaica, em
virtude da sua extraordinária importância e valor ritual.
O que sabemos é que em 1805 este bloco monumental foi
oferecido ao Museu Britânico (n2 498) onde ainda aí se
conserva.
Chabaka não era um faraó egípcio. Na realidade fazia
parte de uma dinastia oriunda do país de Kuch, um vasto
território situado a montante das primeiras cataratas do
Nilo e que tradicionalmente era ocupado militarmente
pelo Egipto. Estava-se então num período de grande
declínio político do Egipto conhecido actualmente como o
Terceiro Período Intermediário (1069-664 a.C.). O grande
poderio militar que o Egipto conhecera no Império Novo
(1550-1069 a.C.) esboroara-se acarretando consigo, não só
a perda das regiões ocupadas na Ásia e na Núbia, como
a fragmentação política do território e até a ocupação
estrangeira, primeiro por governantes de origem IJ.ôia
15
(dinastias XXII-XXIII) e, posteriormente, pelos «faraós» de
Kush (XXV dinastia).
O «Livro das Origens» é, por si só, um monumento
literário de suma importância. Redigida em papiro, se
acreditarmos na inscrição dedicatória de Chabaka, esta
composição corria, já em plena XXV dinastia (747-656 a.C.),
um sério risco de deterioração. No momento em que foi
«encontrada» pelo faraó cuchita, entre os documentos
sagrados dos arquivos do deus Ptah, encontrava-se cor-
roída pela acção dos vermes. A obra era suficientemente
importante para originar, por parte de Chabaka, uma evi-
dente indignação pelo lamentável estado de conservação
do papiro e motivar a sua inscrição num bloco monumen~
tal. Este constitui o único suporte sobrevivente desta notá-
vel composição literária · cuja elaboração, ao que tudo
indica, se prolongou durante centenas de anos. Apesar de
grande parte da inscrição se ter perdido, é possível nesta
obra distinguir duas peças distintas. A mais extensa é
constituída por um texto mitológico de carácter teatral
onde se evoca a unificação do Alto e do Baixo Egipto, graças
à resolução do conflito mitológico que opunha Hórus, o
garante da ordem e modelo mítico do faraó, a Set, deus
que personificava o caos e a desordem. Indubitavelmente
esta composição é muito antiga e foi alvo de uma cons-
tante actualização ao longo do tempo. A outra parte da
composição, muito mais reduzida em extensão, é também
mais recente, sertdo constituída por um hino de louvor a
Ptah que evoca a criação do mundo através do pensa-
mento e da palavra. Numa ocasião indeterminada, com
toda a probabilidade ao longo do período ramséssida
(1295-1069 a.C.), os dois textos foram combinados origi-
nando assim uma composição única.
Na actualidade é sobretudo o hino de louvor a Ptah
que, em virtude da sua importância teológica, mais tem
16
recebido a atenção dos tradutores e comentadores que
normalmente relegam para segundo plano a peça que, no
fundo, possuía um maior peso na composição. Na tradu-
ção e comentário que aqui apresentamos ao leitor pro-
curamos dar a versão mais completa possível do texto,
uma vez que só desse modo se pode ter uma ideia bali-
zada sobre o seu real valor. Na realidade, para Chabaka, o
interesse da obra devia residir mais na peça de carácter
teatral do que no texto cosmogónico propriamente dito,
dado que o primeiro evocava a unificação do Alto e do
Baixo Egipto, um feito que os faraós cuchitas procuravam
a todo o custo alcançar e que nunca haviam verdadeira-
mente de o conseguir. Esta mensagem de teor político era,
portanto, um traço muito distintivo da obra que não se
pode descurar. Com a edição monumental do «Livro das
Origens» Chabaka procurava, desse modo, lançar o
Egipto numa nova era, afirmando-se na continuidade das
mais velhas tradições faraónicas que o texto actualizava e,
desse modo, justificar a sua acção política e militar.
Ao fazê-lo, Chabaka relançava o prestígio político de
Mênfis, a mais antiga capital do Egipto faraónico, fundada
no dealbar do III milénio antes de Cristo, segundo rezava
a tradição, por Ménes, o fundador mítico do Egipto. Apesar
de ter mantido sempre o estatuto de capital administrativa
das Duas Terras, o peso efectivo de Mênfis na vida política
e espiritual do Egipto declinou muito após o Império
Antigo (c. 2680-2160 a.C.), sobretudo em detrimento de
Tebas (ou Uaset, em egípcio), a capital dinástica dos faraós
do Império Novo (c. 1550-1069 a.C.) onde imperava a
figura tutelar do deus Amon. A Pedra de Chabaka vinha
relançar o prestígio político de Mênfis e o culto de Ptah.
Embora nem Chabaka, nem os seus sucessores cuchitas
tivessem beneficiado directamente com esta estratégia,
dado que foram repelidos pelo poder militar assírio para
17
os seus territórios de origem, o certo é que o rasgo da sua
estratégia se impôs, a julgar pela importância crescente
que Mênfis não cessaria de deter até à invasão macedónica
e a subsequente fundação de Alexandria.
Não obstante esta preocupação política bem tangível,
o trecho cosmogónico também não deve ser visto como
um «apêndice». Do ponto de vista religioso, o «Livro das
Origens» estava imbuído de uma mensagem vigorosa.
A ideia de uma recriação do mundo, garantida graças à
união das Duas Terras, era um ideal caro à dinastia
cuchita e o arrojo teológico da noção cosmogónica que
divulgava, claramente formulada com um cunho de uni-
versalidade raro nos discursos teológicos do mundo pré-
-clássico, contribuía para fazer do intuito político de
Chabaka uma recriação cósmica, um renascimento do
Egipto. A noção de uma criação do mundo pelo pensa-
mento e pela palavra havia de ter um forte impacto na
espiritualidade helenística, também ela centrada numa
reflexão de teor teológico centrada na consciência e no
conhecimento do criador. A caracterização do logos divino,
o Verbo criador, tomar-se-ia com efeito um elemento cen-
tral na elaboração teológica do helenismo, quer através de
uma formulação filosófica pura, como acontecia nas cor-
rentes filosóficas de inspiração platónica, quer através da
sua aplicação a tradições místicas de sabor oriental, como
o hermetismo e o cristianismo.
O «Livro das Origens» documenta, portanto, uma
viragem que é tanto política como religiosa e que, apesar
de se enraizar profundamente nas mais antigas tradições
faraónicas, se tomaria, talvez precisamente por isso, no
portador de uma mensagem revolucionária na forma de
conceber deus, o mundo e o próprio homem que haveria
de perdurar até aos nossos dias.
18
A cidade de Mênfis e o templo de Ptah: uma introdução
geral
19
Incrustado no cerne de um grande conjunto de palá-
cios, templos, mercados e oficinas, o templo de Ptah per-
maneceria, ao longo da história do Egipto, como um dos
principais templos do país7 . A importância do templo de
Ptah foi tal que, ainda hoje, o país do Nilo deve o seu nome
ao velho santuário do deus. Na verdade, o termo «Egipto»,
derivando da palavra grega Aegyptos, constitui uma cor-
ruptela do nome do antigo templo de Ptah, Hut ka Ptah, «A
morada do ka de Ptah». É surpreendente constatar que, mais
de cinco mil anos volvidos após a sua fundação, o templo
de Ptah se continue a confundir com o próprio país do Nilo,
o que nos dá uma ideia acerca da magnitude do impacto
causado pelo conteúdo do «Livro das Origens», sobretudo
entre os habitantes helenizados do Egipto tardio.
Se Ptah era o patrono de Mênfis, Sakara, a necrópole
construída na orla do deserto líbico era o domínio do deus
funerário SokarB. Ao contrário da cidade dos vivos, que
praticamente desapareceu sob os aluviões do rio, a necró-
pole menfita revela-nos ainda hoje algumas das mais
extraordinárias realizações do antigo Egipto, facto que
devemos tomar como indicador para ter uma ideia da
importância e do fausto da cidade hoje desaparecida.
Estendendo-se de Abu Roach, a norte de Guiza, até El-
-Lahun, à entrada do Faium, a necrópole menfita é a mais
extensa do mundo, possuindo monumentos de todas as
idades do Egipto antigo, desde a fundação da monarquia
egípcia (c. 3000 a.C.) até à Época Greco-Romana (332 a.C.-
-395 d.C.).
A localização dos cemitérios reais permite-nos também
vislumbrar a influência de uma outra cidade perdida do
20
Egipto: a extraordinária Heliópolis, o maior centro espiri-
tual do antigo Egipto9 . Apesar dos 30 quilómetros que as
separavam, as cidades de Mênfis e de Heliópolis consti-
tuíam duas facetas da mesma e interligada realidade. Se
Mênfis era o centro político, económico e administrativo
do Egipto, Heliópolis era o centro espiritual de onde irra-
diava o culto solar cujo impacto foi tremendo na espiri-
tualidade egípcia. É, por isso, natural que, embora inicial-
mente as tradições religiosas das duas cidades tivessem
evoluído quase independentemente10, ao longo do tempo
se tenha verificado uma progressiva aproximação teoló-
gica que acabou por se materializar em produções literá-
rias como o «Livro das Origens».
O sucesso para a ocupação de Mênfis · ao longo de
mais de 3500 anos prende-se com as invulgares caracte-
rísticas da sua localização geográfica, estrategicamente
situada entre o vale do Nilo e o delta. Assenhoreando-se
das potencialidades desta localização, os primeiros monar-
cas do Egipto unificado controlavam com facilidade o trá-
fego fluvial que fluía sem barreiras naturais significativas
desde Assuão às margens do Mediterrâneo. A «Balança
das Duas Terras», um epíteto comum de Mênfis, aludia
precisamente ao determinante papel político e religioso
21
que a cidade desempenhava como símbolo da unificação
do Egipto. Este evento, envolto na névoa do mito, acabou
por assinalar o início «oficial» da história egípcia. Manéton,
o sacerdote egípcio que, sob o comando de Ptolemeu II
Filadelfo (283-246 a.C.), redigiu uma história da civiliza-
ção faraónica, refere que Ménes fundou a cidade des-
viando o curso do Nilo através de diques, o que conferia
ao acontecimento conotações cosmogónicas11 • O nome da
nova cidade, «Muro Branco», permite pensar que, desde
logo, o centro desta cidade fosse o próprio palácio real.
O templo de Ptah foi provavelmente também construído
nesta época, a julgar pela antiguidade do epíteto do deus
«O que está a sul do seu muro». O mesmo epíteto permite
também pensar que o templo do deus teria sido construído
a sul do palácio real e que, nessa época, ocuparia uma
posição secundária em relação à sede do poder político.
Beneficiando certamente com o tremendo impacto da
centralização da administração real no interior dos seus
muros, a cidade adquiriu desde logo um estatuto e escala
monumental. Reflexo dessa importância é o magnífico
cemitério de elite da I e II dinastias erguido em Sakara,
onde os faraós do Período Tinita ergueram grandiosas
mastabas em adobe12. Este é o primeiro e grandioso exem-
plo de arquitectura monumental faraónica que precedeu a
11
Historicamente não há qualquer referência ao rei Ménes. Os ves-
tígios arqueológicos identificam Narmer como o primeiro faraó a unifi-
car as Duas Terras. Dois utensílios encontrados no templo de Hieracôm-
polis, uma paleta e uma maça ritual, documentam o uso das duas coroas
pelo mesmo soberano. A tradição egípcia, no entanto, apenas conservou
o nome de Meni, várias vezes mencionado como o primeiro faraó.
12 O termo árabe «mastaba>> evoca estruturas funerárias que con-
22
construção das pirâmides 13 . No entanto, a estrutura mais
emblemática de Sakara é, ainda hoje, a pirâmide de
degraus de Djoser Netjererkhet. Trata-se de uma gran-
diosa construção que, para além da pirâmide e dos com-
plexos labirintos subterrâneos, possuía um conjunto
muito elaborado de estruturas arquitectónicas que imita-
vam elementos palacianos e rituais feitos em materiais
perecíveis. A própria muralha de calcário que envolvia
todo o recinto replicava provavelmente a forma do Muro
Branco, a muralha que envolvia o palácio real. Sintomá-
tica a respeito da diferença de horizontes que existia entre
a cidade dos mortos e a cidade dos vivos é a utilização dos
materiais. Enquanto a muralha palatina era feita em
adobe, a muralha da pirâmide era solidamente construída
em pedra, para durar eternamente .
. De acordo com uma sugestiva hipótese, embora cen-
trada num núcleo original, a cidade de Mênfis terá cres-
cido ou até deslocado o seu centro gravitacional sempre
que se verificava uma mudança no local escolhido pelo
faraó para a construção do seu complexo funerário real.
Assim, ao longo da IV dinastia, a cidade dos vivos ter-se-
-ia deslocado para norte, aproximando-se do planalto de
Guiza14. Já na V dinastia, quando a necrópole real se trans-
23
feriu para Abusir, idêntica deslocação se verificou do
palácio e do núcleo urbano adstrito à corte. Quando Pepi
I, da VI dinastia, escolheu a região de Sakara-sul para
construir a sua pirâmide, sabemos que o núcleo da cidade
também se deslocou, recebendo, por extensão de signifi-
cado, o nome dessa pirâmide, Men-nefer15.
À medida que os reinados se sucediam e os monu-
mentos reais se erguiam na orla do deserto, Mênfis
enriquecia-se com o potencial humano e material que
representavam estas vastas necrópoles. Para além das pirâ-
mides, cada um destes complexos reais possuía uma admi-
nistração, domínios agrícolas consideráveis e um nume-
roso conjunto de homens responsáveis pela manutenção
do culto funerário. Nas proximidades de cada um destes
complexos funcionava uma autêntica «cidade de pirâmide»
que albergava esta extensa e activa comunidade, cor:tsti-
tuindo assim núcleos populacionais semi-autónomos que,
com a sua presença, contribuíam para o vigor e o cresci-
mento de Mênfis. Esta autêntica megalópolis que alber-
gava a corte e a elite de um estado burocrático sem qual-
quer paralelo na Antiguidade Oriental do III milénio,
constituía o epicentro de um numeroso conjunto de cida-
des periféricas ligadas entre si por canais, criando uma
vasta extensão urbana, económica e religiosa.
Estava assim criado um fosso imenso que dividia a
macrocéfala Mênfis em relação ao resto do país, ainda
imerso, em alguns casos, num Neolítico mais ou menos
24
temperado pela presença da máquina burocrática real.
É claro que, neste contexto, o templo de Ptah era o princi-
pal santuário do país, apenas ultrapassado pelo da cidade
do Sol, Iunu16. Em virtude da relação que o clero de Ptah
mantinha na concepção e na construção das pirâmides e
nas estruturas sagradas envolventes, a cidade tomou-se o
principal centro artesanal do país, concentrando no seu
perímetro as oficinas e os artesãos que, inspirados pelas
directrizes do templo de Ptah, produziam as obras primas
do Império Antigo que hoje conhecemos e admiramos.
Nesse ponto, Mênfis contrastava com o resto do país onde
o nível artístico estava bem longe daquele que nivelava as
obras da capitat1 7 .
O templo de Ptah teve por isso, desde as épocas mais
recuadas, um contributo decisivo no florescimento artís-
tico que se verificou no Egipto18 • A sofisticação e a pureza
dos cânones artísticos do Império Antigo, tantas vezes
retomados (e até copiados) ao longo da história egípcia,
como aconteceu na XXV dinastia, deveram muito à acção
tutelar dos sacerdotes de Ptah sobre as artes e os ofícios.
Foi certamente no seio do culto de Ptah que foram criadas
25
as técnicas e compilados os símbolos e a linguagem ico-
nográfica que abundantemente se materializaram na arte
e na cultura material do antigo Egipto.
Por último, temos ainda que ter em mente que a defi-
nição divina de Ptah foi desenvolvida ao longo de um
extenso período de tempo. Reflexo disso é a diversidade
dos seus atributos e a heterogeneidade das suas formu-
lações divinas as quais, longe de se manterem estáticas,
foram sempre objecto de uma actualização. De uma
maneira geral, os deuses egípcios encarnavam fenómenos
cósmicos em acção. Encarado sob este prisma, Ptah perso-
nificou, desde sempre, a criatividade ctónica da terra e
constituía um elo de ligação entre a humanidade e as pro-
fundezas da terra, onde residiam as forças regeneradoras
do Nun, o oceano primordial.
Ptah encarnava, portanto, o poder emergente da terra,
o ímpeto criador que jazia nas profundezas do mundo e
que, pelo seu potendal de vida e fecundidade, nutria e
gerava as formas de vida. É sob o vulto desta divindade
cósmica que foi redigido o «Livro das Origens».
26
I. O LIVRO DAS ORIGENS
1. VERSÃO HIEROGLÍFICA E TRADUÇÃO
29
exemplar que já nessa altura era muito antigo, pelo que se
apresentava muito deteriorado pela acção dos vermes (o
que aponta naturalmente para um suporte orgânico, como
o papiro). Embora recentemente se tenha vindo a questio-
nar cada vez mais a veracidade deste testemunho antigo,
a verdade é que as lacunas mantidas pelo redactor antigo
sugerem efectivamente que o documento original, prova-
velmente um rolo de papiro, apresentava um tipo de dete-
rioração compatível com a causa que é relatada no texto21 .
As lacunas afectam o topo e a base das colunas seguindo
um padrão de desgaste típico num objecto deste tipo, o
qual afecta sobretudo a extremidade do rolo situada no
exterior, tendendo, por outro lado, a preservar a extremi-
dade oposta que, regra geral, se mantém em bom estado
graças à acção protectora das sucessivas camadas de
papiro dispostas em torno de si. Além do mais, é junto aos
cantos superior e inferior das primeiras colunas que se
detectam as principais lacunas, outro dado que joga a
favor da veracidade da explicação avançada pelo próprio
redactor do texto, dado que o rolo era envolvido na região
central por um fio que o mantinha fechado, levando assim
a que as extremidades ficassem mais sujeitas ao desgaste.
Outras lacunas menores, como a da coluna 61, identi-
ficam pequenas manchas de deterioração compatíveis
com a causa referida pelo escriba para a deterioração do
documento: a acção dos vermes. Lacunas deste tipo, dis-
persas ao longo do texto corroboram, deste modo, a exis-
tência de pequenos buracos detectados no papiro original.
Uma segunda fase de destruição do texto atingiu o
monumento de Chabaka provavelmente após a expulsão
dos reis cuchitas do Egipto e traduziu-se no apagamento
do nome do faraó. Também o nome de Set foi criteriosa-
mente apagado sob a acção deste ou de algum outro cin-
zel censurador, testemunhando assim que a perseguição e
30
diabolização do culto de Set, o deus identificado com os
poderes letais do deserto, foi posterior à XXV dinastia.
Apesar destes incidentes, a mais ampla deterioração
do documento estava ainda para vir. Provavelmente após
a conquista islâmica toda a zona central da pedra foi apa-
gada devido à sua utilização como uma base de mó ou de
uma coluna. Marcas dessa· utilização inusitada são os
raios (com um comprimento variável mas que se situam
entre os 25 e os 38 centímetros) que convergem para um
buraco quadrangular situado no centro (aproximada-
mente com 12 centímetros de lado). O desgaste provocado
pela rotação da mó ou pelo cinzel do pedreiro traduziu-se
no desaparecimento total da inscrição num raio de 30 cen-
tímetros em torno da zona central, à excepção de poucos
sinais hieroglíficos que permaneceram incólumes junto ao
eixo da mó.
Apesar de todas estas vagas de destruição, o texto
que chegou até aos nossos dias é suficientemente signifi-
cativo para ser considerado como uma das obras mais
notáveis do pensamento egípcio. A versão que aqui apre-
sentamos tem em conta o texto hieroglífico apresentado
integralmente nas versões de James Breasted, Hermann
Junker e Kurt Sethe, bem como as respectivas traduções
em inglês e alemão, respectivamente22 • Embora não se
baseie na versão hieroglífica, a versão proposta por Miriam
Lichtheim também foi consultada, assim como outras ver-
sões, que apenas apresentam ou comentam a narrativa
cosmogónica, como é o caso das versões de John Wilson23
e de Erik Iversen24 .
Para respeitar o mais possível o texto original, a nossa
tradução apresenta, por vezes, alguma crueza que foi
mantida intencionalmente para evitar introduzir expres-
sões que dissimulassem a linguagem concreta do texto.
Noutros casos, porém, fomos forçados a abdicar de ser tão
31
literais e tivemos de introduzir algumas palavras para
ajudar à compreensão do texto. Isso deve-se, em grande
parte, ao carácter deflexivo da escrita hieroglífica aqui uti-
lizada25. Na tradução colocaremos entre parêntesis as
palavras que faltam, mas que se depreendem, e que são
necessárias para que o leitor contemporâneo compreenda
o sentido da frase. Indicaremos também as lacunas que o
texto apresenta através de três pontos colocados entre
parêntesis.
32
Para que seja mais facilmente compreensível para o
leitor, apresentamos o texto repartido em pequenas uni-
dades temáticas demarcadas por um título que, bem
entendido, não consta do texto original26 . Para maior faci-
lidade de leitura da inscrição hieroglífica, os signos foram
desenhados pelo autor de forma a exibirem alguns dos
seus traços distintivos (como olhos, penas, etc), muito
embora a inscrição original não apresente detalhes no
interior do contorno do signo. Porventura uma forma
mais correcta de apresentar o texto hieroglífico seria o de
conservar o interior dos signos com uma mancha uni-
forme, o que dificulta, por vezes, a identificação dos sig-
nos. Não obstante, para dar ao leitor uma indicação da
configuração efectiva dos signos hieroglíficos na Pedra de
Chabaka conservámos a primeira linha da inscrição sem
qualquer decoração interna dos signos.
33
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A titulatura de Chabaka27
35
36
Apresentação do texto
37
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38
A aclamação de Ptah, o soberano do mundo
39
40
O julgamento de Hórus e Set
41
42
(lOa) Palavras ditas por Geb para Set48:
«Vai para os confins do lugar onde nasceste»
(lOb) Set (responde):
«Ü Alto Egipto».
(lia) Palavras ditas por Geb para Hórus:
«Vai para os confins do lugar onde o teu pai
mergulhou»
(llb) Hórus (responde):
«Ü Baixo Egipto».
(12a) Palavras de Geb para Hórus e Set:
«Estais julgados»49 .
(12b) Resposta (provavelmente de Hórus e Set em
conjunto):
«Ü Baixo e o Alto Egipto50 ».
43
44
A investidura de Hórus como Rei do Alto e do Baixo
Egipto
45
46
(13.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Eu designei (13b) Hórus. Ele é o primogé-
nito».
(14.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Unicamente (para) (14b) Hórus, (dou) a
herança».
(15.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Para este herdeiro (15b) Hórus, a minha
herança».
(16.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Para o filho do (meu) filho, (16b) Hórus. Ele
é Uepuauet53, o (herdeiro) do Alto Egipto (. .. )».
(17.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Ele é o que abre o ventre (17b) Hórus, o que
abre os caminhos»54
(18.ª) Palavras de Geb para a Enéade:
«Ü filho é nascido. (18b) Hórus, o que nasceu
como Uepuauet.»
47
48
A coroação de Hórus
49
50
O resgate de Osíris62
51
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A fundação de Mênfis
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A reconciliação entre Hórus e Set
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O despertar do deus criador
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O despertar de Ptah
59
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A criação dos deuses
61
62
(56) (Assim) nasceu a Enéade: A visão dos olhos, o
escutar das orelhas e o respirar da garganta ascendem87
diante do coração. Ele dá saída a todo conhecimento. A
língua repete o conhecimento do coração88 • (Deste modo)
ele gerou todos os deuses, e completou a sua Enéade89 • Na
verdade90, toda a palavra divina manifesta-se a partir do
conhecimento do
(57) coração e do comando da língua.
63
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A criação da vida
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A criação do mundo
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68
O resgate de Osíris e a aclamação de Hórus como rei
universal
69
NOTAS
ou, por vezes, três partes. Por essa razão, a numeração dessas colunas
acrescenta as letras a, b ou c.
°
2 Como a escrita hieroglífica tanto podia ser redigida da esquerda
colunas 3-7. ·
22 BREASTED, <<The Philosophy of a Memphite Priest», ZAS 39
chard, The Ancient Near East: An Anthology ofTexts and Pictures, I, pp. 1-2.
24 IVERSEN, <<The cosmogony of the Shabaka Text>>, Studies in
70
identificado com o rei, sobre Set (o hieróglifo nub, sobre o qual está
poisado o falcão Hórus, evocaria a região de Nubet, de onde Set era
originário). O nome de rei do Alto e do Baixo Egipto, inscrito no interior
de uma cartela (cuja forma é derivada do signo hieroglífico chen que
significa <<envolver», ou <<proteger») era um dos mais importantes de
toda a titulatura sintetizando poderosamente o programa politico-teoló-
gico do reinado. Por fim, o nome de filho de Ré, também envolto numa
cartela, era o único título que não era recebido na coroação do rei:
tratava-se do seu nome de nascimento e, apesar de secundário em
relação ao nome de rei do Alto e do Baixo Egipto, é em geral por este
nome, que, na bibliografia egiptológica, os faraós são mencionados.
28 A expressão lida no texto é Sebek Taui que significa <<Aquele
de Ré>>.
30 Algumas divindades solares constituem manifestações de dife-
71
36
A palavra proclamar, matj, <<proclamar>>, é de grande importância
para a datação do texto já que não é uma palavra comum no Império
Antigo. No dizer de Breasted, <<The only other occurrences of which are,
so far as I know, in the coronation inscriptions of Hatchepsut>>, em <<The
Philosophy of a Memphite Priest», ZÃS 39 (1901), p. 43. As expressões
redigidas entre parêntesis são uma reconstituição do texto a partir da
coluna 64 onde a mesma frase parece ser repetida.
37
O termo <<erguer>>, kha, possui conotações cósmicas: através dele
a coroação do faraó como rei do Alto e do Baixo Egipto era conotada com
o nascer do sol que, do mesmo modo, se erguia sobre o horizonte como
soberano da criação. Devido a esta identificação entre o faraó e o sol, a
coroação era conotada com a recriação do mundo e o faraó coroado cons-
tituía uma manifestação de glória do poder luminoso do sol. As conota-
ções solares desta expressão são mais explícitas na seguinte interpre-
tação, menos literal, da frase: <<Este (soberano) unificador brilha como
Rei do Alto Egipto e como Rei do Baixo Egipto».
38 O termo wttw, <<criar>>, é redigido com o determinativo que repre-
72
pai mergulhou», justificando que Osíris já estaria morto quando foi
lançado no Nilo. Ver GRIFFITHS, <<The frase her mu ef in the Memphite
Theology>>, ZAS 123 (1996), pp. 111-115. Daí decorre que o texto evoca a
recuperação do cadáver de Osíris das águas do Nilo e não a sua morte.
44
O nome desta localidade significa <<Divisão das Duas Terras>> e é
alusivo à sua função de fronteira . Do ponto de vista gráfico esta frase é
redigida com o recurso a um interessante jogo gráfico que se destina a
acentuar o dualismo político do país.
45 O termo <<erguer>>, aha, possui conotações políticas remetendo
coração, que era errado que a parte de Hórus fosse como a parte de Set>>.
52 Literalmente: uep khet ef, ou seja, <<O que abriu o seu corpo>> ou <<o
73
significa «O que abre os canúnhos>> e personifica o primogénito. Para
outras informações acerca desta divindade ver ARAÚJO, «Uepuauet>>,
em Dicionário do Antigo Egipto, p. 851.
54 <<O que abre o ventre>> é a designação do primogénito. A qualifi-
Egipto, respectivamente.
59 Trata-se provavelmente de uma alusão a um santuário duplo
74
65
A expressão faz alusão à água de Ptah, ou seja, à água da região
de Mênfis, ver GRIFFITHS, «The frase her mu ef in the Memphite
Theology», ZAS 123 (1996), pp. 111-115.
66 O verbo utilizado maut pode ser interpretado como a actividade
75
dos amuletos cardíacos no antigo Egipto>>, Cadmo 20 (2010), pp. 113-139.
A língua, conotada com o poder da palavra, figura aqui corno a evocação
do princípio criador que se torna activo no mundo. Assim sendo, a
criação é espoletada pelo desejo do coração e concretizada pela palavra
enunciada pela língua.
76 Trata-se de uma alusão a toda a criação, evocada pela Enéade, a
totalidade dos deuses criados por Ptah. De acordo com o texto, o desejo
e a palavra criadores de Ptah estão contidos em todas as criaturas.
77 A frase tem urna forte afinidade gráfica com a coluna seguinte,
vista, ser a palavra ib. No entanto, este signo não é usado com o seu valor
fonético, mas sim corno deterrnínativo da palavra hati. Devido ao pouco
espaço disponível na inscrição, o termo hati foi redigido abreviadamente,
tal corno aconteceu com o termo <<língua>>.
80 Literalmente: Uentef em khenty, <<O que existe à dianteira >>. Trata-
mente associado ao coração, hati, ao longo do texto razão pela qual intro-
duzimos aqui a referência explicita ao coração. Esta clarificação ajuda-
-nos a entender que o texto faz aqui alusão a um conhecimento primor-
dial que emanou do coração do criador.
76
82 As colunas 53 e 54 centram-se na equivalência entre o coração e
trecho narrativo, não se trata aqui da palavra ib, mas sim do determina-
tivo da palavra hati, que foi utilizado devido ao pouco espaço disponível
na inscrição.
85 Parte do significado da frase depreende-se pelos jogos gráficos.
escriba (SETHE, Dramatische texte, p. 58). Bilolo, por outro lado, consi-
dera-o uma forma derivada de pai, com o sentido «ter feito no passado»
(ver BILOLO, Le Createur et la Creation dans la Pensée Memphite et Amar-
nienne, p. 37, nota). Sobre esta forma ver GARDINER, Egyptian Grammar,
§ 484, p. 395. Na nossa tradução optámos por esta segunda interpretação
e traduzimos este termo pela expressão «na origem>>.
87 O termo usado, sar, significa literalmente «fazer ascender>> ou
77
sequência da Pedra de Chabaka o dualismo cardíaco dos termos ib e hati
foi substituído pelo dualismo coração-língua. Do coração hati emana o
«conhecimento>> que é enunciado pela língua através da palavra. As refe-
rências ao coração representam-no como uma entidade singular, quer
seja evocado pelo determinativo ou pela redacção plena do termo hati. A
prevalência do termo hati é resultante da <<teologia da vontade» e assi-
nala o triunfo da piedade pessoal no domínio da espiritualidade egípcia.
O texto da Pedra de Chabaka consiste, ele próprio, na formulação plena
da teologia da vontade no plano cosmogónico.
89 A expressão joga com a semântica das palavras para criar uma
identificação entre Atum e a Enéade. A razão para esta identificação
prende-se com o significado do termo «Atum», «O que se completou».
Tem psedjet ef, que significa «completa a sua Enéade» ou «termina a sua
Enéade», pode assim ser visto como uma afirmação teológica mais
complexa, «Atum é a sua Enéade», estabelecendo uma identificação
entre o criador e a obra criada.
90 A partícula sek é utilizada como um equivalente de isetj, «verda-
texto antes da forma s!l.m.f, frequente em textos mais arcaicos. Aqui está
outra característica arcaizante do texto.
78
94 Ao traduzir esta passagem tivemos em consideração o modus
que qualificam Ptah como uma divindade andrógina. Não pudemos ser
tão minimalistas na tradução como é nosso hábito já que os termos utili-
zados são masculinos em português, mas femininos no original, como
«celeiro>>, «grande trono>>, pelo que tivemos de introduzir a referência à
«deusa », inexistente no texto.
79
2. COMENTÁRIO
81
de Heliópolis que, na realidade, predomina em toda a
composição, uma vez que a contenda entre Hórus e Set
constitui um importante ciclo mitológico da complexa
teologia heliopolitana. Para contextualizar as alusões do
texto a estes eventos míticos impõe-se uma breve descri-
ção do referido mito heliopolitano.
Modelo do rei bom e civilizador, Osíris foi assassi-
nado pelo invejoso irmão, Set, o deus da discórdia que
personificava os poderes letais do deserto. Na sequência
desse crime, Hórus, o filho e herdeiro de Osíris, teria de
afirmar a sua legitimidade no tribunal divino de
Heliópolis para reivindicar o seu direito a ocupar o trono
do Egipto. Desencadeou-se então a contenda que opôs
Hórus e Set, dado que o odioso assassino de Osíris se opu-
nha ferozmente às pretensões do herdeiro legítimo do
deposto rei divino do Egipto.1°1 Apesar de todos os obstá-
culos, Hórus viu enfim proclamada a sua legitimidade
para ser coroado rei das Duas Terras.
A contenda mítica que opunha Hórus e Set ilustrava
a fragilidade e a força da verdade que, apesar dos obstá-
culos e das intrigas, conseguia finalmente impor-se a
todos e garantir a reposição da justiça e da ordem natural
das coisas. Ao triunfar sobre Set, Hórus tornava-se a per-
sonificação do bem e era nessa qualidade que constituía o
paradigma do rei vivo. Ao seguir este arquétipo divino, o
faraó deveria assegurar a vitória do bem sobre o mal e
garantir o domínio da luz sobre as trevas. Em suma, o
mito ilustrava a vitória da vida sobre a morte e combi-
nava indissociavelmente a ordem cósmica com a ordem
política.
101 Sobre o conflito entre Hórus e Set ver GRIFFITHS, The Conflict of
Horus and Seth: From Egyptian and Classical sources, 1960.
82
Tendo este pano de fundo subjacente, o texto do
«Livro das Origens» descreve a trama em redor da resolu-
ção legal do conflito entre Hórus e Set. De facto, a disputa
entre estes deuses não foi resolvida pela força, mas sim
pela intervenção de um tribunal divino composto pela
Enéade heliopolitana, ao qual presidia Geb, o deus pri-
mevo da terra. Foi ele que convocou a Enéade (7).
A Enéade está evocada no texto através de nove sig-
nos netjer, «deus», o que, na escrita hieroglífica, também
pode significar «a totalidade dos deuses»102 . Esta identifi-
cação entre a Enéade e «todos os deuses» está sempre
latente ao longo do texto. Era portanto toda a comunidade
de deuses, presidida pelo deus da terra, Geb, que podia
deliberar sobre a herança que caberia aos dois litigantes.
Numa primeira fase, Geb optou por atribuir a Hórus
a região do Delta, o Baixo Egipto, e a Set todo o Vale do
Nilo, o Alto Egipto, baseando esta repartição na origem
geográfica dos litigantes (8). No entanto, após a primeira
deliberação, o velho deus da terra reconsiderou, parecendo-
-lhe injusto privar Hórus da totalidade da sua herança que
era o conjunto das Duas Terras. Geb corrigiu então a deci-
são inicial e atribuiu a Hórus o poder sobre o Norte e o Sul
(10c-14b).
Do ponto de vista simbólico, a reunião das Duas
Terras significou um novo começo para o mundo, uma
vez que erradicou a situação de injustiça que fora origi-
nada com o assassinato de Osíris. Ao repor a justiça e a
ordem natural das coisas, dava-se um novo início, todas
83
as possibilidades ficavam de novo em aberto. É por essa
razão que, ao subir ao trono, Hórus se identifica com
Tatenen, a manifestação primordial de Ptah (13c).
Com a subida ao trono de Hórus e a unificação das
Duas Terras dá-se um acontecimento extraordinário: as
duas coroas (a coroa branca do Alto Egipto e a coroa ver-
melha do Baixo Egipto) brotam magicamente da cabeça
de Hórus, ao mesmo tempo que o junco e o papiro (as
plantas heráldicas do Alto e do Baixo Egipto, respectiva-
mente) brotam da terra diante dos Dois Portais do templo
de Ptah. O aparecimento mágico destes símbolos assinala
que um «milagre>> ocorreu: Hórus, o rei do Egipto, redi-
mia o mundo através da reposição da justiça e da abolição
do mal e da morte. Corno resultado, o conflito que opunha
Hórus e Set cessou (16c).
Esta reconciliação traduziu-se na associação das duas
divindades rivais, Hórus e Set, ao exercício do poder real.
Embora envolto numa aura fortemente negativa, o deus
Set não foi diabolizado nem a sua confrontação com
Hórus foi considerada numa óptica estritamente mani-
queísta. Embora o rei se identificasse com Hórus, Set tam-
bém participava da acção real exercendo a sua acção malé-
fica contra os inimigos do Egipto103 . Até urna força letal
corno a de Set podia ser utilizada, desde que aplicada para
a defesa do Egipto. Não foi senão muito tardiamente (já ao
longo da Época Baixa) que Set começou a ser encarado
103
No entanto, na Época Baixa e sobretudo na Época Greco-Rornana,
as conotações negativas de Set acabaram por votá-lo a urna diabolização
que se traduziu numa autêntica perseguição ao seu nome e representa-
ções o que, por sinal, está bem documentado na Pedra de Chabaka. Com
efeito o hieróglifo utilizado para designar o deus foi criteriosamente apa-
gado ao longo do texto, incluindo as passagens aqui comentadas (ver
colunas 7, 8, 9 e 15).
84
como a encarnação do mal absoluto. Só então o seu culto
foi diabolizado e os seus vestígios apagados. Curiosa-
mente, a Pedra de Chabaka apresenta as marcas desta
perseguição tardia ao culto de Set pois o nome do deus foi
cuidadosamente martelado ao longo da inscrição.
85
duas facetas da realeza ficavam
assim ligadas a Ptah e Sokar, as
divindades locais de Mênfis.
Em seguida Ísis e N éftis são
evocadas na estranha qualidade de
manifestações do pilar djed:
86
festação corno pilar, as deusas Ísis e
Néftis, são explicitamente enuncia-
das corno emanações do poder
luminoso de Mênfis para instaurar
a vida. Estabelecia-se assim um
jogo entre as margens férteis do
Nilo, personificadas nas deusas, e as
águas do rio conotadas com Osíris.
O resgate de Osíris joga portanto
com a relação simbólica entre a
terra fértil e as águas do Nilo, para
valorizar o poder de fertilidade da
região rnenfita. Este poder manifesta-se simbolicamente
no resgate, que estas deusas asseguram, do cadáver de
Osíris das águas do Nilo (19). A expressão «Üsíris mergu-
lhou na sua água» usada neste contexto tem sido habi-
tualmente traduzida corno «Üsíris afogou-se na sua
água». Esta distinção é importante na medida em que ao
invés de evocar o afogamento de Osíris, a passagem pode
fazer referência ao resgate do seu cadáver das águas do
Nilo106 e que, por causa disso, torna a região de Mênfis
especial. A expressão «na sua água» aponta para a água
de Ptah, ou seja, o leito do Nilo que percorre a região de
Mênfis. A intervenção das deusas permitiu, deste modo, o
resgate de Osíris e o seu enterramento na necrópole rnen-
fita (20b-21b).
As colunas 22 e 23 atribuem a fundação de Mênfis ao
facto de aí ter sido sepultado Osíris. A proximidade com o
túmulo do deus dos mortos justificava a eleição de Mênfis
87
como sede do poder real e a elevação do seu estatuto a
capital das Duas Terras.
Entre as colunas 24 e 35 conservaram-se alguns hie-
róglifos perto da zona central que nos dão um vislumbre
acerca do tema abordado no texto hieroglífico perdido.
Dois discursos podem ser identificados: um deles é pro-
nunciado por Geb e dirigia-se a Tot, ao passo que o outro
é pronunciando por Ísis e era dirigido a Hórus e Set.
O tema da reconciliação parece ser retomado, já que a
deusa salienta os benefícios que a reconciliação trouxe
consigo. É portanto provável que, até à coluna 35, o tema
do texto continuasse a ser o da unificação do Egipto sob o
comando de Hórus.
Pelo menos partir da coluna 48 o texto é claramente
dominado pelo hino de louvor entoado a Ptah que se pro-
longa até à coluna 61. Então, na coluna 62, o texto mitoló-
gico é abruptamente retomado, curiosamente repetindo
um trecho que já havia sido redigido nas colunas 17c-23.
Graças a esta repetição podemos divisar o texto que
outrora ocupava estas lacunas. Ao resgatar Osíris das
águas, Ísis e Néftis, sob a forma luminosa de pilar, «tra-
zem-no para terra». É assim que Osíris «entra no palácio e
se reúne aos deuses de Tatenen». Este palácio não é senão
o monumento funerário de Osíris, o modelo mítico dos
complexos funerários reais, que o texto faz situar na
necrópole menfita. Seguindo o trajecto do Sol no mundo
subterrâneo, Osíris «entrou nos portões misteriosos» e
seguiu os «caminhos de Ré», ou seja, o caminho que o
deus Sol realiza no Além, ao longo da noite. Ao associar-
-se ao percurso do Sol, Osíris realiza, por fim, o seu domí-
nio sobre o mundo inferior, sobre o «Grande Trono», a
deusa da criação que simboliza o poder de fertilidade do
Egipto. O funeral de Osíris culmina, deste modo, numa
aclamação real que se desenrola no mundo inferior, onde
88
Osíris, o rei morto, sobe ao <<Grande Trono», o modelo
arquetípico do trono terreno. Uma vez entronizado sobre
a criação, Osíris, o rei morto, continua a velar pelo Egipto,
conferindo-lhe fertilidade e abundância de alimentos.
Se Hórus subia ao trono no templo de Ptah, fá-lo-ia
com a protecção de Osíris que presidia na necrópole men-
fita. Ficava assim estabelecida a continuidade do poder
real e a sua transmissão de pai para filho. O poder real
pressupunha, deste modo, a participação do rei morto
que, na sua pirâmide continuava a velar pela fertilidade
do Egipto. No plano espacial, a sede dos poderes do rei
morto manifestava-se em Pesecheti Ta ui (<<A Divisão das
Duas Terras»), o nome dado à região menfita onde se
situavam as necrópoles reais no Império Antigo. Cada um
dos túmulos reais afigurava-se assim como uma morada
de eternidade dos reis transformados em Osíris. Era sobre
estes veneráveis túmulos, evocativos da presença de
Osíris, que o poder do Hórus vivo se alicerçava 107 .
Por fim, em estreita aliança com o seu pai, Hórus é
apresentado em apoteose, identificado com o Sol nascente
que emerge sobre as Duas Terras para garantir a ordem
cósmica.
89
O seu filho Hórus ergueu-se como rei do Alto Egipto,
ergueu-se como rei do Baixo Egipto, no abraço do seu pai
Osíris e dos deuses que estão à frente e atrás dele.
90
R
Ramsés ITI sobre o sema-taui, o símbolo da união das Duas Terras. Os deuses
Hórus e Tot enlaçam as plantas heráldicas do Alto Egipto (o junco) e do Baixo
Egipto (o papiro), simbolizando a unj ficação das Duas Terras ga ra ntida pela
coroação do novo faraó. Veja-se a presença do disco solar sobre o faraó e as duas
serpentes coroadas com as coroas do Alto e do Baixo Egipto. Templo de Medinet
Habu. XX dinastia.
91
2.2. A narrativa cosmogónica
92
Embora em segundo plano no texto mitológico, o
perfil de Ptah como soberano último da criação já aí se
recortava. Na narrativa cosmogónica, porém, Ptah torna-
-se no verdadeiro protagonista da criação. No início, Ptah
é evocado sob a forma de uma Ógdoade, ou seja, uma
totalidade de oito deuses:
93
oceano primordial, Ptah definia para si mesmo uma natu-
reza andrógina, manifestando-se simultaneamente como
macho e fêmea, pai e mãe do deus Sol.
A quarta manifestação de Ptah identifica o deus como
o coração e a língua da Enéade, ou seja, como a inteligên-
cia cósmica (coração) e o poder de realização (língua) de
todos os deuses (Enéade). Como sabemos, na tradição
menfita, o coração e a língua são os obreiros da criação e
são aqui atribuídos, não a Ptah, mas à sua obra, a Enéade
(a totalidade dos deuses). Através desta atribuição para-
doxal, procurava-se, desde logo, afirmar que a criação
estava, desde o início, contida no criador.
O intuito de caracterizar Ptah como um conjunto de
oito divindades prende-se com a intenção de o identificar
com a conhecida Ógdoade de Hermópolis que personifi-
cava as forças do caos primordial109 . Na verdade, esta
identificação fazia-se de um modo quase natural, uma vez
que Ptah era um deus do mundo inferior, da terra e das
forças telúricas da regeneração. Todos estes elementos,
estando presentes no ideário do caos primordial, foram o
ponto de partida para elaborar uma versão menfita da
Ógdoade hermopolitana.
Os elementos da Ógdoade menfita, como o texto
indica, «manifestaram-se» em Ptah. A frase em questão é
netjeru kheperu em Ptah. Decisiva para a tradução da frase
é a palavra kheper que pode significar «nascer», «manifes-
tar», mas também «formar». É uma palavra crucial ao
longo do relato cosmogónico e, em geral, tem um signifi-
cado distinto da criação que é resultante da obra do criador.
109
Entre os nomes da Ógdoade menfita detecta-se inclusive a pre-
sença das divindades hermopolitanas como é o caso de Nun e Naunet,
as personificações do oceano primordial de onde emergira o deus SoL
94
Esta, em geral, traduz-se pela utilização de dois outros
verbos, ir, «fazer», e més, que significa «nascer». Na nossa
versão distinguimos os dois verbos através dos termos
«criar» (por vezes também usamos a palavra «moldar»
para enfatizar o carácter manual da sua criação) e «gerar»,
respectivamente. No «Livro das Origens» cada um destes
termos (ir, més e kheper) parece possuir um significado
próprio que tentaremos especificar socorrendo-nos desta
definição da Ógdoade menfita. Aqui, Ptah-Nun «cria» (ir)
ao passo que Ptah-Naunet «gera» (més), o que sugere
uma associação da palavra més à criação no sentido femi-
nino e ventral (subjacente ao termo «gerar»), ao passo
que o termo ir evoca a criação no masculino, resultante de
uma obra, de um trabalho manual ou do exercício de um
ofício. No conjunto, estes dois termos evocam as possibi-
lidades de criação do próprio ser humano que tem a
capacidade de criar e recriar o mundo através da mão e
do ventre.
O termo kheper distingue-se dos anteriores já que não
pressupõe uma concepção nem um trabalho. A criação
formulada através do termo kheper evoca simplesmente a
manifestação de algo sob uma nova forma, a qual já podia
existir previamente sob uma outra configuração. O termo
kheperu traduz, deste modo, uma transformação, um pro-
cesso dinâmico de mudança. A frase netjeru kheperu em
Ptah pode assim ser traduzida: «os deuses manifestaram-
-se em Ptah». Nesta óptica, a criação do mundo começou
quando o deus abandonou o estado de inércia inicial e
adquiriu uma manifestação dinâmica: da unidade inicial,
Ptah manifesta-se como uma multiplicidade de deuses,
que constituem diferentes aspectos ou manifestações de si
mesmo. Deste modo, a realidade multifacetada do poli-
teísmo é radicalmente transformada numa visão de deus
no singular. Os deuses e o mundo emergem assim como
95
kheperu, transformações dinâmicas, de Ptah, manifes-
tando-o no plano da mudança e do devir.110
Todo o jogo da criação operada por Ptah se articula
em função destas noções. A mais decisiva para desenca-
dear toda a criação é a ideia de kheper, «manifestação»:
96
A criação
97
O deus maior é Ptah, (Ele) fez confiar (a vida) a todos
os deuses e aos seus kau (54)
98
Tal como no texto «teatral», a referência ao deus
Hórus na narrativa cosmogónica não está isenta de uma
leitura política. A associação de Hórus ao coração do cria-
dor indica que o faraó, enquanto manifestação terrena de
Hórus, é reconhecido como a manifestação viva do cora-
ção de Ptah: é ele «o que está ao comando» do grande
corpo da criação, veiculando e manifestando, através das
suas obras, o «plano» do criador. O faraó era assim defi-
nido como a personificação da consciência e do princípio
criador de Ptah. Se o faraó se identificava com o coração
de Ptah, uma vez que o coração de Ptah se manifesta em
todos os seres vivos, graças a esta identificação, também
o faraó se manifestava no coração de cada homem. Esta
dupla identificação tornava o faraó no modelo de perfei-
ção espiritual da vida humana, transformando a institui-
ção política da monarquia num modelo religioso de san-
tidade e de perfeição. A afirmação da realeza como um
ideal espiritual não deixava de ter um alcance político
pois implicava, não o esqueçamos, uma obediência dos
súbditos aos mandamentos reais. A conformidade com a
actuação real correspondia, portanto, ao respeito pela lei
divina. Reforçava-se assim uma característica arreigada
da ideologia real egípcia que estabelecia um elo indisso-
ciável entre o mundo natural, o mundo dos homens e o
faraó 114 •
A associação de Tot à língua do criador também é
imediata, dada a grande proximidade deste deus ao uni-
114 Neste aspecto não podemos concordar com Iversen que defende
99
verso das palavras, do conhecimento e da escrita. No
entanto, para além deste laço estendem-se outras conota-
ções que nos parecem interessantes explorar. Set é fre-
quentemente substituído por Tot em representações onde
figura em complementaridade com Hórus. O posiciona-
mento dualista de Hórus-Tot no corpo do criador (cora-
ção-língua) parece-nos pois um desdobramento, no texto
cosmogónico, do posicionamento dualista estabelecido
entre Hórus e Set no texto «teatral». Esta equivalência
também não deixa de ter uma leitura de valor teológico-
-político: a união das Duas Terras (dualismo Hórus-Set)
equivalia à criação do mundo (dualismo Hórus-Tot).
Encarnando assim os poderes de Hórus e Tot para
harmonizar a criação, o coração e a língua de Ptah ini-
ciam, através da sua interacção dualista, a organização do
corpo cósmico de Ptah que, a partir daí se tornará na
matriz de todos os seres:
100
menta (sebá)» que Ptah inscreveu no corpo das suas cria-
turas. Todas as coisas vivas possuem, deste modo, um
«ensinamento» que deus imprimiu no seu corpo e que as
comanda. Este ensinamento é, no fim de contas, a inteli-
gência da vida que emana do próprio cosmos, o corpo do
criador. É este plano (kaat) que dá unidade à criação, a
qual está ligada ao criador por um laço de amor (merut).
Embora discreta, esta alusão ao amor divino é decisiva,
como veremos, para compreender a ligação que cada ser
vivo mantém com deus.
Organizado o corpo de Ptah com uma ordem anató-
mica e fisiológica que constitui a matriz de todas as formas
de vida, o trabalho da criação é continuado através da
«animação» deste corpo. Trata-se de um verdadeiro des-
pertar: os sentidos começam a fazer afluir a informação
ao coração, o qual «faz sair» o conhecimento que, em
seguida, é formulado pela palavra 115:
115 Esta constitui uma das passagens mais espantosas do «Livro das
Origens>> que apresenta uma explicação para a origem do conhecimento:
não sendo inato nem revelado, o conhecimento é o resultado de uma
convergência das informações do mundo exterior que «sobem» ao cora-
ção por intermédio dos órgãos dos sentidos. Esta afirmação contrasta
com a existência de um plano (kaat) que deus imprimiu à criação de um
modo «inato». Este <<plano>> consiste, afinal, numa espécie de <<inteligên-
cia da vida », quase no sentido piagetiano do constructivismo genético,
um modo de funcionar da mente que orienta a relação do indivíduo com
o mundo. Se o conhecimento é adquirido, então o plano dado por deus
não pode senão ser um modus operandi, uma forma de funcionar, de orga-
nizar o funcionamento do corpo, numa palavra, o plano divino consiste
na própria inteligência da vida (o cientista contemporâneo falaria certa-
mente do código genético para evocar este <<plano>>). Trata-se da primeira
reflexão conhecida acerca da natureza e origem da consciência, um pro-
blema epistemológico fulcral na filosofia e na ciência. O problema não só
é levantado corno é apresentada uma << teoria »: a consciência é resultante
101
(56) (Assim) nasceu a Enéade: A visão dos olhos, o escu-
tar das orelhas e o respirar da garganta ascendem diante do
coração. Ele dá saída a todo conhecimento. A língua repete o
conhecimento do coração. (Deste modo) ele gerou todos os
deuses, e completou a sua Enéade. Na verdade, toda a pala-
vra divina manifesta-se a partir do conhecimento do (57)
coração e do comando da língua.
102
faz o texto cosmogónico da Pedra de Chabaka profun-
damente inovador. Ptah é um deus que escreve e escreve
para criar o real. Ptah escreve através dos deuses e de
todas as formas de vida. Na verdade, a escrita hieroglífica
é constituída por elementos «vivos» retirados da natu-
reza. Subjacente estava também a identificação entre o
cosmos e um livro vivo que o criador redigiu com hieró-
glifos animados.
Nesta teologia da criação, o texto, o acto discursivo
do deus criador, precede e fundamenta o mundo das apa-
rências, imbuindo-o com significado, exactamente nos
mesmos moldes do platonismo. Os deuses são «nomes» e
fazem parte de um texto que se situa para além do mundo
das aparências e lhe dá sentido. Deste modo, antes de se
manifestarem como fenómenos cósmicos e muito antes
de se encarnarem nas estátuas dos templos, as divinda-
des são essencialmente <<ideias>>verbalizadas pela boca do
criador116•
A criação da vida
103
tem o provento da criação. O ka, o poder de vida, tinha na
antropologia egípcia um papel importante na protecção
da vida e era representado como um duplo anímico, cujos
poderes derivavam do próprio corpo do indivíduo (era
para manter os poderes do ka que o corpo era preservado
e mumificado). As hemsut, em geral representadas como
vacas sagradas, são habitualmente consideradas o contra-
ponto feminino dos kau, responsáveis pela dádiva de ali-
mento e eram consideradas entidades que protegiam as
crianças e o nascimento117 . Esta passagem é, deste modo
alusiva ao nascimento das formas de vida e às potências
que as protegem e garantem o seu sustento.
Em seguida, enuncia-se um princípio «moral» que
resume o ideal de uma vida feliz:
104
tui o elemento central do procedimento judiciário que
analisa a integridade moral do defunto. O «Livro das
Origens» dá-nos uma explicação «funcional» para a psi-
costasia. Através das suas acções, o homem purifica ou
corrompe o seu coração. Se o homem realizar o «conheci-
mento do coração», deus manifesta-se nos seus actos e
engrandece-o. Caso contrário, se ignorar a sua própria
natureza divina, a sua conduta afastá-lo-á da maet, a
ordem cósmica, e advirá o castigo. A conduta estava, de
acordo com um ensinamento tradicional da sabedoria
egípcia, estreitamente interligada com a consciência e era
determinante para a transformação do homem numa
divindade, transformação essa que era crucial para asse-
gurar a vida do Além.
Era, pois, no agir do homem que a inteligência divina
se manifestava no seu coração, iluminando-o (no caso de
pautar a sua conduta pelo amor divino) ou corrompendo-
-o (no caso de fazer «o que deus detesta»). As conotações
morais do comportamento do homem são explicadas atra-
vés da capacidade do homem em se alinhar com o amor
divino e não através de uma reflexão sobre o bem e o mal,
ou sequer sobre a maet118 • Esta justiça «natural» era regida
por um princípio divino, o amor de deus, que aqui é des-
crito como uma força natural, imanente à vida, que residia
no coração do próprio homem. O coração mantinha um
elo entre o homem e o deus criador, um elo que o condu-
zia ao tempo primordial da criação do mundo. Através
deste elo, o amor divino, era garantida a regeneração do
coração humano e era aí que residia a sua felicidade.
118 Só por si, esta absorção da maet no contexto da relação com deus
105
Para além do alcance da mensagem que difundia
acerca da consciência, o «Livro das Origens» define de
modo surpreendentemente concreto e preciso, o seu peso
na criação e na própria vida humana, constituindo um
«guia>> para a transformação espiritual e para a «felici-
dade>>. Este modelo de perfeição não estava desprovido
de uma leitura política, uma vez que via no faraó (Hórus)
o modelo terreno da consciência divina. A perfeição espi-
ritual do faraó encontra-se portanto «demotizada>> e ao
alcance de cada um. O caminho para a santidade residia
em «fazer o que o deus ama>> e em manifestar nas suas
obras a inteligência de Hórus, que era simultaneamente o
deus do coração e o faraó do Egipto.
Nas passagens seguintes o texto dedica uma grande
atenção ao trabalho humano. Os ofícios, os trabalhos, todas
as realizações humanas, prolongam a obra do criador no
mundo terreno:
106
O «conhecimento do coração» (kaat ib) faz «todas coi-
sas veneráveis». O coração do homem e a história indivi-
dual surgem como uma dimensão muito concreta e tangí-
vel da presença divina. O deus estava em acção na vida de
cada indivíduo e cada homem vivia em contacto directo
com o deus. Deste modo, a relação pessoal de deus com
cada homem surge como uma condição inerente à própria
natureza da vida. É, naturalmente, uma passagem forte-
mente imbuída pela piedade pessoal, a espiritualidade
dominante a partir do período ramséssida, cujo pilar basi-
lar consistia na importância reconhecida à relação pessoal
e íntima que deus estabelecia com cada homem.
Em seguida, também em jeito de apanhado, resume-
-se a obra da criação evocando novamente a formação dos
deuses, dos alimentos e de «todas as coisas boas». Através
da sua criação, Ptah «revelou» a sabedoria e o seu poder.
O termo gem, «encontrar» ou «revelar», é designado pelo
hieróglifo de uma ave pernalta (G 28 da lista de Gardiner)
representada em atitude de observação atenta do terreno
em busca de alimento. O termo pressupõe a revelação que
decorre da observação atenta da natureza. A revelação da
sabedoria de Ptah faz-se, portanto, da observação do seu
«livro», o livro do mundo.
À semelhança do Deus bíblico, no fim. da sua criação
«Ptah ficou verdadeiramente satisfeito com as suas
obras», as quais, sublinha novamente, englobam «todas as
coisas e todas as palavras divinas», ou seja, a sua satisfa-
ção abarca os elementos vivos, os «hieróglifos» que ele
próprio criou, e as «coisas» criadas pelo trabalho do homem.
A obra do criador estende-se, por isso, para a obra que
continua a realizar-se através da acção humana.
107
A criação do mundo
108
imbuída do profundo simbolismo do templo que repre-
sentava, através do seu plano arquitectónico, toda a estru-
tura do universo. Como representação do universo, o tem-
plo era uma imago caeli e constituía um microcosmos 120.
Estabelecida a equivalência entre a arquitectura do uni-
verso e a estrutura do templo, criar o templo equivalia,
deste modo, a criar o mundo.
A criação do templo é completada pela organização
do culto que aí se desenrola. O texto explora, deste modo,
a dimensão «local» e «cultual» do contacto com o divino:
o deus reside num local concreto, no templo que é a sua
morada, e irradia a sua influência para uma região, a sua
sepat, onde desenvolve um contacto privilegiado com as
pessoas que aí habitam e nascem121 . A evocação inicial das
províncias, as sepaut, destina-se, deste modo, a enfatizar o
carácter local das divindades que advinha da função do
templo de constituir um enclave do céu na terra. Através
do templo, os deuses tornavam-se literalmente «senhores
120
O templo era arquitectado de modo a constituir uma repre-
sentação do cosmos. Reflexo das crenças cosmológicas egípcias é, por
exemplo, o muro ondulante de tijolos que rodeava o templo simboli-
zando as águas do Nun que rodeavam a criação. Ao longo do trajecto
efectuado no templo, a subida do nível do chão e a altura cada vez
menor dos tectos aludiam à união entre a terra e o céu garantida nas
regiões mais interiores do edifício. À sucessão de pátios ensolarados e
câmaras cada vez mais escurecidas também não é estranha uma pers-
pectiva cosmológica. O jogo de luz e de sombras evocava a relação
complementar entre o Nun (evocado pela escuridão) e o Sol, ver
FARIAS, •<Ü templo no Antigo Egipto: Simbolismo e iconografia», Artis
1 (2002), pp. 17-30.
121 Para Assmann, três dimensões de contacto com o divino se
detectam na religião egípcia: o culto, o cosmos e o mito. As questões
formuladas pelo texto centram-se na dimensão cultual que se desen-
rola num templo, e é dedicado ao cuidado das imagens divinas, ver
ASSMANN, The Search for God, p. 17.
109
da terra», no sentido em que presidiam a uma região e
possuíam vastas propriedades agrícolas. Era também a
presença do deus no templo que justificava a noção de
«cidade». Designações como «a cidade de Tot», a «cidade
de Amon» ou «a cidade de Ptah» são inequivocamente
associadas a Hermópolis, Tebas e Mênfis e retratam bem
a noção egípcia da cidade como o centro nevrálgico do
território de um deus. Podemos mesmo dizer que se, no
Egipto, as cidades são «cidades de deus», também os deu-
ses são «deuses da cidade». Viver numa cidade pressupu-
nha, portanto, viver na proximidade de uma divindade e
desenvolver uma relação pessoal e íntima com ela 122 • Estas
alusões ao culto, ao templo e à organização do Egipto
demonstram, deste modo, que o céu está em contacto com
a terra e que, através da presença dos deuses nos templos,
cada homem é bafejado pela presença divina.
O texto dá uma atenção especial à criação das está-
tuas dos deuses, as «imagens veneráveis». Percebe-se aqui
porque é que uma estátua, fruto de um trabalho humano,
podia ser encarada como divina: ela era, em última aná-
lise, uma extensão do criador, pois deus também se mani-
festava através das acções humanas. Por essa razão, os
«deuses entraram nos seus corpos» feitos de madeira,
argila ou pedras. 123 A estátua dava forma ao deus, tal como,
na natureza, certos elementos do mundo físico, como o
vento, a água ou a luz do Sol, transmitiam o poder e a
força do deus. O cuidado colocado na descrição da criação
artesanal das estátuas divinas reflecte, sem dúvida, a tra-
dicional associação de Ptah aos artesãos e, de algum
modo, valoriza o seu estatuto como deus faber, o deus
110
criador das formas 124 . Ao longo destas passagens, o «Livro
das Origens» traça, em suma, o contorno da trilogia que
define a dimensão «local>> da presença divina: cidade,
templo e estátua divina 125 . Esta valorização da dimensão
local do culto mostra que o «Livro das Origens>> deve ser
perspectivado no quadro de um programa de renovação
religiosa que procurava restaurar a santidade da terra e
dos seus santuários.
O texto cosmogónico termina com a reunião da
assembleia divina em tomo de Ptah, novamente qualifi-
cado como o soberano cósmico, o senhor supremo das
Duas Terras:
111
dá e garante o alimento ao povo do Egipto. Com esta
alusão procurava-se demonstrar que era em Mênfis, no
interior do seu templo, que Ptah continuava a fecundar a
deusa da vida personificada no «Grande Trono» e assim
garantia o provento do Egipto. O estatuto do templo de
Ptah em Mênfis era assim justificado pelo seu poder para
garantir a fecundidade e a vida no Egipto.
112
do «Livro das Origens», o real é temporal e performativo,
é um processo vivo em permanente actualização 126 .
Em claro contraste com este universo constelativo de
deuses em interacção, a narrativa cosmogónica descreve a
experiência de deus no singular, o deus omnipotente dis-
tanciado do mundo127 . Tendo renunciado ao poder sobre
o mundo, a relação dos homens com o deus otiosus tem
que ser explicada, como efectivamente acontece ao longo
do texto, e a sua caracterização divina é transconstelativa:
não há constelação na qual o deus pode conviver e «socia-
lizar-se» com os outros deuses. Outra característica destas
composições consiste em estarem desprovidas de explica-
ções mitológicas. A criação é descrita como um despertar
do deus supremo e a sua relação com o mundo recorre a
imagens e a fenómenos da natureza. O papel do deus
supremo desafia as tradicionais constelações divinas, inte-
grando-as e absorvendo-as em si mesmo através da incor-
poração de características divinas de outros deuses. Neste
processo aditivo os aspectos multifacetados do mundo
divino são combinados e relacionados entre si através da
justaposição de predicados. Ficava assim mais evidente a
ideia da unidade divina e reforçava-se o conteúdo teoló-
gico da caracterização do deus supremo.
Os dois textos que compõem ·a totalidade do «Livro
das Origens» são portanto o resultado de duas tradições
literárias e religiosas muito distintas que se desenvolve-
ram de modo quase independente uma da outra. A com-
posição incorpora, deste modo, dois universos de vivên-
cia e de explicação do sagrado, respectivamente.
O texto mitológico, «teatral», é subsidiário de uma
tradição religiosa eminentemente cultual. O imaginário
113
politeísta, centrado no presente, que emana da ·c omposi-
ção dramática é característico dos textos cultuais, com
uma forte componente mágica. Como peça dramática, o
texto permitia a irrupção directa do divino no real através
das palavras. A extraordinária importância religiosa deste
tipo de textos prende-se, portanto, com o seu poder para
manifestarem a presença directa das divindades através
da linguagem, do texto interpretado e tornado real,
actuante 128. Os textos dramáticos estão, deste modo, forte-
mente enraizados no culto e são inseparáveis do ritual
divino, uma vez que o completam e complementam no
plano verbal. O discurso mitológico está tão estreitamente
interligado com o acto ritual que palavra e acção dramá-
tica se complementam para actualizar o mito. Esta res-
ponsabilidade em veicular a presença divina através das
palavras torna estes textos extremamente rígidos, uma
vez que a escolha das palavras não é feita ao acaso e
decorre quer da sua representação escrita (a forma do hie-
róglifo a que recorre), quer da sua substância (n som), e
constituem o resultado de uma manipulação da lingua-
gem de modo a viabilizar, através do discurso, a presença
dos deuses 129 . Toda a elaboração religiosa que se faz em
torno da busca da presença de deus (quer se procure a sua
presença no cosmos, nos mitos ou nos rituais) tem sub-
jacente uma <<teologia implícita», ou seja, uma represen-
tação sobre o divino que, não sendo intencionalizada
através de uma reflexão formal, transmite uma determi-
nada concepção sobre deus. Neste domínio, que é o das
114
práticas cultuais e do rito, o carácter divino do mundo
revela-se na sua pluralidade. A personalidade de cada
deus é definida em constelações divinas e em esferas de
socialização. A teologia implícita, reflectida na compo-
nente dramática do «Livro das Origens» tem, por isso, um
carácter constelativo que dá conta da multiplicidade do
mundo divino e do seu carácter actuante e activo no
mundo.
Em clara oposição a esta perspectiva do sagrado, a
narrativa cosmogónica do «Livro das Origens» apresenta
. uma perspectiva de deus onde se divisa perfeitamente a
unicidade de deus. Neste e noutros aspectos, esta narra-
tiva apresenta uma forte afinidade com um movimento
literário e teológico onde o distanciamento em relação à
actividade religiosa é mais evidente. Estamos, a este nível,
no domínio da «teologia explícita», no qual os textos se
emancipam da acção cultual para a problematizar, criando
um campo discursivo novo130 . Este tipo de reflexão não
se fez, em primeiro lugar, nos textos religiosos propria-
mente ditos.
115
Foi no âmbito da literatura sapiencial que emergiu,
no Império Médio, o discurso que problematizava a rela-
ção do deus criador com a humanidade e a sua aparente
indiferença para com a existência do mal e da injustiça.
Nos textos que problematizam a teodiceia, é perfeita-
mente claro que estamos perante uma reflexão teológica
explícita, e que nesta reflexão a vontade divina emerge
como o tema central. Em vez do mundo representado
como acção de deuses repartidos por constelações poli-
teístas, a realidade é aqui descrita como o resultado da
vontade do criador. Surgia assim a caracterização de um .
deus supremo que, de um modo um tanto paradoxal, foi
adquirindo o contorno de um deus pessoal que era capaz
de revelar ao mundo a sua vontade e intervinha no fluxo
da história interpelando cada um dos seus adoradores no
seu íntimo, no seu coração131 . A caracterização teológica
do deus supremo é o motor para o desenvolvimento de
um discurso totalmente desligado das preocupações prá-
ticas do culto e, por isso, mais especulativo.
Esta corrente de pensamento não recorria ao repertó-
rio mítico tradicional, típico do pensamento politeísta,
116
baseando-se, pelo contrário, nos fenómenos da realidade
visível. As suas principais preocupações incidiam sobre
fenómenos cósmicos como o Sol, o seu movimento e a
luz 132 . A mitologia constelativa politeísta foi, neste con-
texto, substituída por uma fenomenologia da visibilidade
do Sol e do mundo. A rejeição das imagens e símbolos
míticos expôs uma nova realidade que se traduziu numa
«filosofia natural»: o mundo passou a ser visto como um
conjunto infinito de fenómenos passíveis de se relaciona-
rem com o movimento do Sol e com a sua luz 133. A nova
teologia baseava-se num heliomorfismo do conceito
divino que favorece, ao contrário da teologia implícita,
uma perspectiva igualitária do contacto com o divino.
O deus revelava-se a todos os homens, aos «súbditos do
Sol» (a humanidade), manifestando o seu amor no cora-
ção das criaturas que o contemplavam. O universalismo
de deus repercutia-se necessariamente numa relação igua-
litária com deus e favorecia a piedade pessoal134.
117
Para Jan Assmann, o relevo que atingiu a reflexão em
tomo dos deuses supremos começou a criar um contraste
cada vez mais gritante entre as práticas cultuais, essen-
cialmente politeístas, e a concepção teológica formulada
nos hinos, de uma divindade suprema, de carácter
«monoteísta». O que é verdadeiramente notável no «Livro
das Origens» é o facto destas visões antagónicas da convi-
vência com o sagrado se tenham articulado, certamente de
modo intencional, de modo a englobar na mesma compo-
sição estes modos de pensar deus e os deuses que perpas-
sam nas duas partes da composição. A sua justaposição
nesta composição revela, portanto, um grau de consciên-
cia bastante desenvolvido acerca da necessidade de arti-
cular a relação entre o um e o múltiplo.
Assim, a justaposição destes textos tinha provavel-
mente como intuito constituir uma súmula de duas tradi-
ções religiosas complementares. O texto dramático permi-
tia a actualização de um universo mítico, politeísta, intem-
poral e eternamente actuante através do ritual. É o mundo
dos netjeru, as potências divinas da natureza que se entre-
laçam para arquitectar a construção do real. A narrativa
cosmogónica, por outro lado, centrava-se no deus supremo,
reflectia uma visão de deus no singular e totalmente cen-
trada no contacto de deus com o mundo e na manifesta-
ção da sua vontade através da sua relação pessoal com
cada um dos seres vivos que criou.
Através do contraste brutal e literariamente inepto do
emparelhamento destes géneros literários distintos fica-
vam assim solidamente reunidas duas visões do mundo
que ao longo da história da humanidade viriam a consti-
118
tuir o mote para o confronto de religiões. Politeísmo e
«monoteísmo» emergente, que já haviam colidido no rei-
nado de Akhenaton, encontravam na Pedra de Chabaka
um equilíbrio momentâneo135.
Este equilíbrio era garantido e mantido graças à
representação política que unia os dois textos. Afinal, o
seu denominador comum é a visão de Hórus como sobe-
rano da criação. O texto teatral reactualiza o enquadra-
mento da sua acção mitológica convencional, ao passo
que o texto cosmogónico o define de modo inovador
como o coração de Ptah, que governa o mundo e preside
a todos os seres, numa palavra, a centelha divina de cada
criatura. É também provável que, na sua versão definitiva,
o «Livro das Origens» tivesse sido utilizado como suporte
de uma liturgia. O carácter «teatral>> que predomina em
toda a composição implica necessariamente uma repre-
sentação do texto. A ter existido, esta liturgia não pode ter
sido outra senão a da liturgia ritual da coroação de Hórus
encenada em dois tempos. A trama dramática envolvia
seguramente um grande elenco de actores e constituiria
certamente uma cerimónia de carácter «público>>, exoté-
rico, que se poderia desenrolar num dos pátios do templo
de Ptah. A narrativa cosmogónica, confundindo-se com
um hino de louvor ao deus supremo, sugere que a acção
119
cerimonial passaria a desenrolar-se no interior do templo
de Ptah, onde o faraó, fundindo-se na pessoa divina de
Hórus, era conduzido ao santuário mais interior do templo
para contemplar a imagem secreta do deus e entoar o hino
que aclamava a obra criadora de Ptah.
Após esta cerimónia, o faraó seria então novamente
conduzido para o exterior do santuário, de onde emergia
cingido, como o texto refere, com todos os símbolos reais,
plenamente identificado com Hórus e com o Sol nascente.
136
Adolf Erman, por exemplo, apontava para a I dinastia, baseando-
-se na ênfase colocada no papel de Mênfis como a sede da monarquia e
factor de união entre as Duas Terras. Já François Daumas prefere situar
o texto em torno da m dinastia, ao passo que Siegfried Schott se inclina
para a IV dinastia. Hermann Junker e Siegfried Morenz defendem, por
outro lado a V dinastia (ver CARREIRA, «Teologia Menfita», Dicionário
do Antigo Egipto, p. 817). Já Breasted, sem arriscar uma data, considera o
texto <<a mais antiga formulação de uma Weltanschauung>>; ver BREAS-
TED, <<The Philosophy of a Memphite Priest>>, ZAS 39 (1902), p. 39.
120
o
Coroação de Ramsés II. Os deuses Hórus e Set colocam as duas coroas sobre o
faraó, simbolizando a unificação das Duas Terras. Templo de Hathor de Abu
Simbel. XIX dinastia.
121
cultural que marcou a expressão artística e literária da·
XXV dinastia cuchita que buscou nos modelos do Império
Antigo a inspiração para muitas das suas realizações.
Com este «regresso à origem» procurava-se purificar a
cultura egípcia das «contaminações» que a haviam des-
virtuado em resultado do longo período de domínio das
dinastias hbias, em relação às quais a dinastia cuchita se
procurava demarcar, afirmando-se na mais pura continui-
dade da tradição faraónica.
Embora estes argumentos sejam válidos, parece-nos
todavia excessivo considerar a obra como um produto da
XXV dinastia. Por mais convincente que seja a hipótese
adiantada, a verdade é que, tal como foi redigido no bloco,
o texto parece de facto apresentar omissões resultantes do
desgaste do seu suporte original137 . Por maior que fosse o
desejo do faraó cuchita em criar uma «falsificação» não
cremos que fosse ao ponto de introduzir intencionalmente
lacunas que impediam uma leitura escorreita do texto.
Este espírito, que hoje é corrente entre os falsificadores de
antiguidades, era perfeitamente desnecessário no antigo
Egipto. Na verdade, o reconhecimento formal da antigui-
dade do texto pelo faraó ou pelo templo teria sido sufi-
ciente para assegurar a sua veracidade. Note-se que os
casos que conhecemos de atribuição de um texto a um
antepassado remoto não apresentam tais lacunas. Tal é o
122
caso, apenas para citar um exemplo, do capítulo 30 B do
«Livro dos Mortos», que o redactor da rubrica atribui a
um achado de Djedefhor, um príncipe da IV dinastia.
Também a direcção da escrita aponta pistas que não
abonam a favor de uma redacção coeva do «Livro das
Origens» e da Pedra de Chabaka. Ao contrário da ins-
crição cuchita (na linha 2), que é redigida de acordo com
a regra convencional, a direcção de leitura do «Livro das
Origens», contra a prática dominante na escrita hiero-
glífica, apresenta-se invertida. O escriba cinzelador que
viveu sob o reinado de Chabaka parece assim ter respei-
tado integralmente a estrutura do texto antigo, tal qual se
apresentava na época. Com efeito a direcção de escrita do
«Livro das Origens» pode indicar, corno aponta Breasted,
para uma redacção situada na XVIII dinastia, já que,
corno refere o autor, a inversão deste princípio da escrita
é relativamente frequente em inscrições monumentais
deste período, corno é o caso da inscrição da coroação de
Tutrnés III (1479 a.C.), em Karnak, e das inscrições de
Hatchepsut (1473-1459 a.C.) no seu templo funerário em
Deir el-Bahari138 .
Antes de avançarmos mais na discussão acerca da
datação desta obra, há que, em primeiro lugar, diferen-
ciar cada uma das composições que fazem parte do texto
e estimar a sua redacção separadamente. Pela sofistica-
ção das ideias que transmite, o trecho cosrnogónico é
seguramente mais recente do que a peça dramática. As
concepções cosmogónicas patentes no texto, apesar de
serem as mais evoluídas do pensamento egípcio e, por-
tanto, possivelmente as mais recentes, estão patentes em
textos anteriores, nomeadamente no Texto da Doação do
123
Papiro Harris P39 , redigido no reinado de Ramsés III. No
entanto, o cruzamento com outros dados de natureza
religiosa, como a identificação entre Ptah e Tatenen,
apontam o reinado de Ramsés II como a data mais antiga
admissível para a composição do texto cosmogónico.
Também os hinos deAmon redigidos neste período apre-
sentam evidências de uma inspiração directa nos textos
da tradição menfita, se não no trecho cosmogónico redi-
gido no «Livro das Origens», pelo menos nas ideias que
nele perpassam140 .
Quanto ao texto mitológico, o facto de este situar a
localização do túmulo de Osíris em Mênfis, e não em
Abido, como era tradicional, leva certos autores a situar
esta evocação no Império Novo 141 . Também a evocação
das deusas Ísis e Néftis na qualidade de pilar djed é exem-
plificativa dessa recriação tardia, uma vez que se tratam
de atributos que só se difundiram na região menfita no
Império Novo, não sendo retomados em períodos poste-
riores. Este aspecto, só por si, contribui decisivamente
para validar a tese de uma redacção final que não pode ser
posterior ao período ramséssida. De qualquer modo, a
124
evocação do tribunal de Heliópolis, bem como a coroação
de Hórus, é convencional e pode ser bastante mais antiga,
recuando possivelmente ao Império Antigo.
Seja como for, os dados de cariz político também não
concorrem para corroborar uma datação cuchita da peça
mitológica. Encarada sob uma perspectiva política, a dis-
puta entre Hórus e Set poderia evocar o conflito entre
duas concepções opostas de sucessão real que marcaram
as prato-monarquias do Egipto Pré-dinástico (c. 5300-3000
a.C.). Ao invés das monarquias africanas, que privilegia-
vam a sucessão através do irmão mais velho do rei
defunto, a monarquia que caracterizou o Egipto faraónico
privilegiava a sucessão de pai para filho. São estas ten-
dências opostas que poderão estar reflectidas na disputa
entre Hórus (que personificava um novo modelo emer-
gente baseado na transmissão de poder de pai para filho)
e Set (que personificava a sucessão de irmão para irmão).
Esta interpretação é reforçada no nosso texto através da
atribuição do Alto Egipto a Sete do Baixo Egipto a Hórus.
Este dado vem, na nossa opinião, comprometer a ideia de
uma datação deste documento no ambiente político da
XXV dinastia. Sendo uma dinastia retintamente africana,
os reis desta linhagem obedeciam a uma sucessão real
baseada na passagem de poder de irmão para irmão. É o
caso de Chabaka que sucedeu ao irmão Pié, mas também
de Taharka que sucedeu ao irmão Chabataka (702-690
a.C.), ambos filhos de Pié. Estes reinados são finalmente
sucedidos pelo de Tanutamon (664-656 a.C.), filho de
Chabaka. Promover a redacção de um texto que .confli-
tuava com os fundamentos que orientavam a casa real
cuchita só se explica se o texto já existisse.
125
enunciada pelo próprio redactor cuchita que atribuía ao
documento uma grande antiguidade. De qualquer modo,
uma genuína veneração por um texto antigo insere-se per-
feitamente no espírito de restauração que tanto caracteri-
zou a XXV dinastia 142 .
O mais provável é que o «Livro das Origens» tenha
resultado de um longo percurso do pensamento e de
forma alguma pode atribuir-se a um único redactor, nem
tão pouco a uma única época. Mais difícil de apurar é o
momento em que as duas composições foram justapostas
no mesmo livro. Fosse qual fosse a intenção desta compo-
sição, a sofisticação literária não parece ter sido o princi-
pal objectivo deste redactor que não parece ter feito um
grande esforço em ligar as duas peças literárias que o
compõem, introduzindo o relato cosmogónico literal-
mente «no meio» do texto mitológico, como é possível
verificar pela forma abrupta como «irrompe>>na composi-
ção e pelas repetições, aparentemente desnecessárias,
patentes na peça dramática. Nesta perspectiva, parece
claro que originalmente a peça era unicamente constituída
pelo texto «teatral>>. Seria, sem dúvida, este trecho o mais
antigo que, por si só, deve ter sido altamente reveren-
ciado, a julgar pela reelaboração que sofreu no período
ramséssida. Foi provavelmente também nesta altura que
terá sido sentida a necessidade de actualizar este venerá-
vel texto à luz de novas noções religiosas.
142
Ao longo de todo o Terceiro Período Intermediário, os textos
religiosos raramente constituíram criações originais, perpetuando, pelo
contrário, tradições anteriores. O <<Livro das Origens>> não deverá cons-
tituir uma excepção; ver HERBIN, <<Un hymne à la lune croissante»,
BIFAO 82 (1982), p. 280.
126
3. ENQUADRAMENTO
127
trução de fortalezas estrategicamente situadas de modo a
assegurar não só a eficaz exploração destes territórios, bem
como o controlo das rotas caravaneiras e do tráfego flu-
vial144. O faraó que mais se destacou na ocupação militar
da Núbia foi Senuseret Ill (1870-1831 a.C.) que aí parece ter
revelado a sua faceta mais brutal: homens foram mortos,
mulheres e crianças escravizadas, os campos queimados e
os poços de água envenenados145 . Com a população núbia
controlada graças à forte presença militar, a ocupação egíp-
cia pouco mais transcendia o âmbito da exploração
mineira e do controlo do tráfego de mercadorias.
No Império Novo (1550-1069 a.C.), no entanto, apre-
sença faraónica assumiu um contorno mais subtil. A pre-
sença militar foi progressivamente sendo temperada por
uma influência de carácter cultural que foi garantida pela
construção de inúmeros templos, muitos deles dedicados
à deificação do próprio faraó. De facto, a partir do reinado
de Tutmés Ill (1479-1425 a.C.), que fundou o primeiro
templo real na Núbia 146, muitos outros faraós aí edifica-
ram edifícios religiosos complexos, muitos deles rupestres
como é o caso dos templos de Abu Simbel, com o intuito
128
de se associarem aos poderes regeneradores da cheia,
como foi o caso de Amen-hotep III (1390-1353 a.C.) e, em
particular, de Ramsés II (1279-1213 a.C.). Este segundo
tipo de ocupação, alicerçando-se na força da cultura e do
culto, promoveu uma «egipcianização» muito eficaz des-
tas populações e contribuiu para a difusão da religião e da
ética egípcias, criando assim uma população mais recep-
tiva e tolerante à sua presença.
Devido à dificuldade crescente em controlar a pres-
são sobre as fronteiras setentrionais do Delta, após o rei-
nado de Ramsés II, na XIX dinastia (1292-1186 a.C.), a
região da Núbia e de Kuch foi progressivamente ficando
entregue a si mesma. Desde Merenptah (1213-1203 a.C.), o
sucessor de Ramsés II, que o faraó era levado a concen-
trar-se em repelir as investidas de «hbios» e de asiáticos.
Esta ameaça crescente de investidas tomou-se de tal modo
premente que acabou por culminar na batalha que opôs
Ramsés III (1184-1153 a.C.) à coligação dos chamados
<<Povos do Mar». Assim, liberto da hegemonia egípcia, o
país de Kuch viu nascer uma dinastia autóctone com capi-
tal em Napata, onde se erguia, no sopé da montanha
sagrada de Gebel Barkal, o mais importante templo de
Amon construído a sul do Egipto. Enquanto esta dinastia
consolidava o seu poder, a norte, no início do Terceiro
Período Intermediário (1069-664 a.C.), o Egipto acabou
por se dividir: o clero de Amon-Ré, em Tebas, controlava
o Sul do Egipto, ao passo que o Delta era governado pelos
faraós da XXI dinastia (1069-945 a.C.), sediada em
Tânis 147 . Em breve, porém, o norte do Egipto seria <<reta-
lhado» numa poliarquia disseminada por capitais regio-
129
nais como Saís, Leontopólis, Tânis e Bubastis, regidas por
soberanos de origem líbia, dando origem à XXII (945-712
a.C.), à XXIII (818-712 a. C) e XXIV (727-715 a.C.) dinastias.
Esta pulverização das estruturas de poder está provavel-
mente relacionada com a origem semi-nomádica dos
governantes «Hbios» que ajustaram a administração do
Egipto às suas próprias estruturas de poder. A descarac-
terização do poder real é sintomática e ilustra bem o
impacto da presença «hôia» noutros domínios: o equi-
pamento funerário tomou-se mais frugal, o «Livro dos
Mortos» deixou de ser reproduzido e os túmulos foram
parcamente cuidados148. Integrando nos usos políticos e
religiosos os seus próprios costumes originais, os gover-
nantes «hôios» originaram uma forte descaracterização da
cultura egípcia.
Quando Pié (747-716 a.C.), o rei de Kuch, marchou
sobre o Egipto, no ano 21 do seu reinado, não há dúvida
que estava movido pelo desejo de restaurar a velha ordem
faraónica no seu vizinho setentrional. Vencendo uma coli-
gação de quatro reis locais, Pié viu o seu controlo esten-
der-se à região sul do Egipto 149 . Foi, no entanto, Chabaka
(716-702 a.C.), irmão de Pié, quem consolidou a presença
cuchita no Egipto e relançou a recuperação dos valores
tradicionais da monarquia egípcia. O controlo militar de
Chabaka estendia-se desde o território ocupado pelos reis
da XXIV dinastia saíta até ao país de Kuch. Foi no seu rei-
nado pacífico que verdadeiramente se iniciou a campanha
de depuração cultural do Egipto, quer através da recupe-
130
ração de obras literárias em risco (como a Pedra de
Chabaka documenta), quer através de uma estratégia de
construção e valorização de -alguns do principais santuá-
rios do Egipto como Mênfis, Abido, Dendera e Tebas. Em
Tebas, até aí o santuário politicamente mais importante do
Egipto, Chabaka vai procurar assegurar o controlo do
poderoso templo de Amon-Ré, nomeando o seu filho,
Horemakhet, como sumo sacerdote deAmon e elegendo a
sua irmã, Amenirdis I, como divina adoradora de Amon.
Após um reinado de catorze anos, apenas ensom-
brado pela ameaça crescente do império neoassírio,
Chabaka foi sepultado na necrópole real de El-Kurru, em
Napata, adoptando os costumes funerários faraónicos. Foi
sucedido por dois dos seus sobrinhos, filhos de Pié,
Chebetku (702-690 a.C.), por vezes também referido como
Chabataka, e Taharka (690-664 a.C.). O seu reinado consti-
tuiu um período essencial para a consolidação do domínio
cuchita no Egipto. Para além da força militar, o faraó uti-
lizou amplamente aspectos de ordem religiosa para refor-
çar o seu poder político. A sua irmã Amenirdis, já o referi-
mos, foi empossada como esposa divina deAmon, a função
suprema do clero amoniano, constituindo um factor
importante de consolidação do poder real no contexto do
poderoso templo tebano deAmon-Ré.
É sintomático que tenha sido sob o impulso desta
dinastia estrangeira que o estudo da cultura do Império
Antigo (c. 2686-2160 a.C.), a idade de ouro da construção
das pirâmides, tenha sido impulsionado, iniciando-se
uma autêntica pesquisa destinada a identificar os elemen-
tos formais que conferiam ao «estilo egípcio>> a sua
pureza 150 . Da literatura à arquitectura, por toda a parte, as
131
realizações de Chabaka e da dinastia cuchita evidenciam
uma pesquisa intensa dos modelos antigos 151 • Até as titu-
laturas usadas pelos reis cuchitas, se basearam em formu-
lações copiadas directamente de grandes monarcas do
passado152. O próprio Chabaka se apropriou do nome de
coroação de Pepi II (c. 2278-2184 a.C.), Neferkaré, que se
notabilizou pela invejável duração do seu reinado (cerca
132
de 90 anos, segundo a tradição). Latente estava portanto o
desejo de um reinado igualmente duradouro para enrai-
zar firmemente a dinastia cuchita no solo do Egipto.
É curiosamente, a propósito desta «apropriação» do
nome de coroação de Pepi II que encontramos um dos pri-
meiros exemplos conhecidos de reacção à propaganda ofi-
cial de um soberano invasor. A mesma identificação que
Chabaka promovera entre si e o rei Pepi II motivou, com
intenções satíricas ou talvez simbólicas, a redacção de
uma composição alegórica em que, com a designação
ambígua de Neferkaré, o rei Chabaka foi envolvido num
enredo de teor homossexual. No conto As peripécias
nocturnas do rei Neferkaré, a narrativa relata os encontros
fortuitos entre o rei Neferkaré e o general Sisenet. A histó-
ria conta que o rei se dirigia todas as noites à casa do gene-
ral Sisenet na quarta hora da noite, permanecia na sua
companhia durante quatro horas, «fazendo com ele tudo
o que desejava», uma expressão proverbial para designar
um encontro amoroso de natureza sexual, e regressava ao
palácio quando ainda faltavam quatro horas para a alvo-
rada. O significado para a afirmação tão aberta de uma
aventura homossexual entre o faraó e um dos seus gene-
rais tem-se afigurado problemática, uma vez que, através
dos indícios que chegaram até aos nossos dias, a socie-
dade egípcia parece ter alimentado uma atitude em rela-
ção aos comportamentos homossexuais que hoje classifi-
caríamos de «homofóbica». Este argumento tem contri-
buído para reforçar o carácter satírico desta composição,
que assim concorria para divulgar veladamente um
<<boato» de carácter anedótico 153 .
Posener, por outro lado, não atribui ao conto qualquer valor simbólico
ou satírico; ver G. POSENER, << Le conte de Neferkaré et du general
133
A verdade é que o caso pode ser ainda mais complexo
pois, analisado em pormenor, o conteúdo do conto parece
revestir-se de um significado simbólico inesperado, pois
sugere uma identificação entre o passeio noctívago do
faraó e o percurso nocturno do Sol pelo mundo inferior,
durante o qual o astro se reunia ao corpo de Osíris, o deus
ctónico do interior da terra 154. Sabemos que esta união
entre os princípios antagónicos e complementares da
criação, o Sol e a Terra, constituía um dos mistérios mais
sagrados e venerados da religião egípcia 155 . Era pois este
momento secreto e nocturno, em que o deus solar se rege-
134
nerava e retomava a recriação do mundo, que o conto
associava implicitamente ao rei Neferkaré. Dificilmente
este grande mistério da religião egípcia, a união miste-
riosa de Ré e de Osíris, poderia ter tido uma leitura satí-
rica, ainda que os seus intérpretes fossem, no plano narra-
tivo, o rei Neferkaré e o seu amante, o general Sisenet156 .
Independentemente da veracidade ou não da leitura
satírica do conto, a verdade é que uma vez mais nos depa-
ramos com a associação de Chabaka ao imaginário da
criação do mundo, desta vez através da sua identificação,
talvez de um modo mais literal que metafísico, com o
mais venerável mistério da criação. Este enquadramento
mostra que a temática da criação foi de tal modo asso-
ciada à dinastia cuchita para expressar o seu desejo de
depuração e recuperação do poder faraónico que, em sur-
dina, pode mesmo ter sido utilizada para a satirizar.
Todos estes elementos concorrem para integrar a
Pedra de Chabaka num contexto político claramente
orientado pela ideia de depuração, de um regresso à
pureza dos tempos antigos. Nesta perspectiva, o «Livro
das Origens» parece constituir um entre os muitos ele-
mentos actualmente conhecidos que contribuem para afir-
mar o panfleto político da dinastia cuchita: a presença dos
reis de Kuch no trono do Egipto justificava-se plenamente
pois, através dela, a civilização egípcia era profundamente
«depurada» e recuperada.
Este espírito de renovação cósmica, tão arreigado na
estratégia política dos reis de Kuch, imprimiu à cultura
sua majestade ter feito o que desejava com ele voltou ao palácio>>.
A mesma expressão foi usada em textos onde o teor sexual é perfeita-
mente claro. É o caso da união sexual entre o deus Amon e a rainha-mãe,
que motivou a concepção da rainha Hatchepsut.
135
deste período um olhar debruçado sobre o passado, em
busca de referências para uma depuração civilizacional
profunda. Este olhar «retrógrado» e claramente arcaizante
é detectável em muitos aspectos da acção governativa
destes monarcas, onde também se inclui a recuperação e
monumentalização do «Livro das Origens>>. O gesto pie-
doso do faraó, descrito na Pedra de Chabaka, para além
de reflectir uma profunda reverência para com o texto
sagrado, tem que ser integrado numa estratégia política
mais alargada que consistiu em relançar o carácter cós-
mico do poder real, através da recuperação das tradições
e rituais menfitas 157. A restauração do estatuto intelectual
e religioso de Mênfis permitia que a nova dinastia cuchita
fosse perspectivada como o renascimento do Império
Antigo. Neste aspecto o «Livro das Origens>> documenta
uma nova e muito intensa relação com o passado que,
para além de um significado religioso, adquire também
um estatuto político158 . Era a força de um passado reno-
vador, que devolvia a pureza de um tempo original e pre-
nhe de significado, que Chabaka invocava para esconjurar
todas as ameaças que, no interior e no exterior do Egipto,
comprometiam a prossecução do seu ambicioso projecto
de reunificação do país 159.
136
3.2. Enquadramento teológico: As tradições cosmo-
gónicas de Heliópolis e de Hermópolis
XXVI dinastia (664-525 a.C.) onde este aspecto alcançou a sua plena
maturidade através dos faraós saitas, os quais revelam o mesmo empe-
nho em empreender um regresso purificador às origens do Egipto.
160 O próprio culto dos templos solares dos reis da V dinastia, cons-
137
locais desenvolveram no seu contexto mitológico especí-
fico como sucedeu em Tebas, Esna, Mênfis ou Elefan-
tina 161 . Em Mênfis, esta convergência registou-se com as
tradições mais antigas e traduziu-se na associação de Ptah
à Ógdoade hermopolitana e à Enéade heliopolitana, res-
pectivamente162. A importância que estas colectividades
de deuses desempenharam na própria tradição menfita
exige, neste momento, um apontamento explicativo sobre
cada delas163 .
A Ógdoade hermopolitana
um dos principais centros de culto do deus Tot (ou, Djehuti, como era
denominado em egípcio), cujos símbolos eram a íbis e o babuíno. Deus
da lua, Tot tutelava o calendário mas também os hieróglifos (medu-netjer,
em egípcio, ou seja, as <<palavras divinas>>). Senhor do conhecimento
sagrado, Tot foi comparado pelos Gregos a Hermes, razão pela qual atri-
buíram à cidade o nome de Hermópolis. Apesar da sua preponderância,
Tot não era referenciado na cosmogonia hermopolitana, a qual, pelo
contrário, destacava o papel de oito divindades primordiais, a Ógdoade
hermopolitana.
138
elemento particular do caos inicial: Nun e Naunet perso-
nificavam a água, Heh e Hauhet, o infinito, Kek e Kauket,
a escuridão e Amon e Amonet identificavam-se com o
insondável, o oculto 165 • Os elementos masculinos destas
divindades eram representados como rãs, ao passo que os
elementos femininos eram representados como serpentes.
Os animais utilizados na iconografia destes deuses acen-
tuavam o poder de procriação e de transformação da
cópula cósmica, através da qual desencadearam a criação
do mundo166 . Em resultado desta cópula colectiva nasceu,
das águas do oceano, o lótus primordial que guardava
em si o tesouro da criação: sob as pétalas da flor estava
Nefertum, o menino solar, que, à medida que a flor se
abriu, foi iluminando o mundo primordial imerso na
escuridão com o seu sorriso radioso.
A grandeza poética destas imagens não deve dissi-
mular o carácter tangível que elas possuíam aos olhos dos
teólogos hermopolitanos, pois a associação da flor de lótus
ao mundo renascido sob as águas do oceano primordial
era uma experiência bem concreta. De facto, quando a
terra negra e fértil era inteiramente coberta pela água da
cheia, o mundo parecia regressar ao seu estado de indife-
renciação original, ao tempo primordial da origem.
Depois, à medida que a água se retirava, começavam a
139
emergir pequenas colinas de terra, de onde brotavam os
primeiros botões de lótus anunciadores de um novo ciclo
de vida e de fertilidade na Terra Negra. Os símbolos her-
mopolitanos da origem do mundo enraízavam-se assim
nos próprios ciclos do Nilo.
Depois de fazer nascer a luz, sob a forma da criança
solar, a Ógdoade pôs em marcha a montagem do universo
e a instalação da ordem cósmica sobre a terra, criando a
idade de ouro do universo. É a força mística do imaginá-
rio cosmogónico associado à Ógdoade hermopolitana que
explica o interesse manifestado no «Livro das Origens»
em criar uma Ógdoade menfita, através da qual Ptah se
associava aos elementos anteriores à criação, entre os
quais figura o próprio Nun, a personificação do caos pri-
mordial, e também o seu contraponto feminino, Naunet.
A Enéade heliopolitana
16 7No seu templo era venerado o deus solar nas suas três manifes-
tações: Ré, Khepri e Atum. Aí se cultuava também o benben, o monólito
ass?Ciado à colina primordial cuja extremidade coberta de ouro recebia
os primeiros raios de Sol em cada manhã. A teologia solar, aí concebida
desde a mais remota antiguidade, foi decisiva para a vida religiosa e
política do Egipto. A associação de Ré à monarquia consolidou-se na IV
dinastia e, apesar da ascensão deAmon e de Osíris, permaneceu sempre
uma divindade de alcance nacional.
140
Esta relação é sugerida através da numerologia sagrada.
O número um simbolizava o incriado, o mundo anterior à
criação, o mundo da não-existência 168. Era também o
número da unidade, no sentido em que remete para o
criador ainda consubstanciado no mundo. É o número da
inércia e da imobilidade. O número dois reportava-se ao
momento inaugural da criação, aquele em que o um ori-
ginal se desfez para criar a dualidade, os princípios com-
plementares, o masculino e o feminino que, através da sua
união, engendraram a multiplicidade dos seres. O três,
por seu lado, é o número da multiplicidade, da criação.
Dado que o nove se obtém através de três repetições do
número três, esta multiplicidade revestia-se de um signi-
ficado exponencial, enunciando a totalidade plena dos
elementos criados. Em última análise, a Enéade simboli-
zava a totalidade das divindades criadas que dão forma
ao cosmos. Em suma, do um ao nove, a Enéade conciliava
em si mesma a unidade fundamental de deus no singular
e a multiplicidade de deuses, típica do politeísmo.
À cabeça desta Enéade estava o rei da criação, Atum,
o velho deus Sol. O nome Atum, deriva do verbo tem e
tanto significa «completar» (ou «realizado»), como «não
existir». Deste modo, «aquele que se completou», ou «o
que deixou de existir», são traduções igualmente possí-
veis do seu nome169, o que significa que o criador resumia
141
em si mesmo os extremos opostos: o tudo e o nada, o ser
e o não ser.
Era o deus Atum que estabelecia uma solução de con-
tinuidade entre o mito hermopolitano e o mito heliopoli-
tano, pois consistia na manifestação madura e «idosa» de
Nefertum, a criança solar criada pela Ógdoade. Na verdade,
o nome da criança solar significava simplesmente «Ü Jovem
Atum». Mais do que uma versão contraditória da criação,
estes mitos descreviam momentos diferentes da criação: a
Ógdoade criou Nefertum, a criança solar que, ao atingir a
maturidade, criou a Enéade, ou seja, toda a comunidade de
deuses que regem o funcionamento do cosmos.
De acordo com o mito, a criação de Atum iniciou-se
sobre pedra benben, o monólito sagrado de Heliópolis.
O monumento, que havia de inspirar a erecção dos obe-
liscos, assinalava este momento original que começou
com a masturbação de Atum. Ao ejacular, Atum originou
Chu170 (representado no fluxo de energia associado à liber-
tação do sémen) e Tefnut171 (identificada com o potencial
de vida do sémen) 172 . Parece consensual que este par
°
17 Chutem sido frequentemente associado ao <<ar» , ou ao <<sopro
142
primordial corporizava a diferenciação dualista dos prin-
cípios masculino e feminino que perpassa por toda a
criação173 . Chu simbolizava a luz, o princípio masculino
activo, ao passo que Tefnut, personificava a vida, o princí-
pio feminino passivo. A dualidade primordial associada à
diferenciação sexual continha em si, através da sua arti-
culação complementar, a possibilidade de criar todas as
coisas. A emergência de «duas coisas» assinalava, por-
tanto, o momento inaugural da criação, aquele em que o
demiurgo dividiu a totalidade primordial em dois princí-
pios antagónicos necessários para cunhar o cosmos com o
dinamismo necessário para assegurar a sua perpétua
transformação174 .
Muitos aspectos da iconografia real apresentam uma
configuração dualista precisamente com o intuito de iden-
tificarem o faraó com o próprio Atum. A coroa real, por
exemplo, é uma coroa dupla, a pa-sekhemti («As Duas
Poderosas»), composta através da sobreposição da coroa
branca, evocativa do Alto Egipto e do órgão sexual mas-
culino, com a coroa vermelha, evocativa do Baixo Egipto
e do órgão sexual feminino. Fazendo alusão à união
143
sexual entre o princípio masculino (coroa branca) e femi-
nino (coroa vermelha), a coroa dupla era o símbolo, por
excelência, de Atum, a totalidade. Ao usá-la, o faraó do
Egipto identificava-se com o demiurgo heliopolitano e
chamava a si a responsabilidade pela recriação do mundo
através do equihbrio dinâmico que fazia reinar sobre as
Duas Terras e sobre toda a criação graças à harmoniosa e
fecunda articulação entre os dois princípios cósmicos
complementares175 .
Com a criação do casal primordial Chu e Tefnut,
Atum encheu o mundo com a plenitude da vida e da ver-
dade. O casal primogénito deu origem, por sua vez, a duas
outras divindades, Geb, o deus da terra, e Nut, a deusa do
céu, originando o referencial cósmico que enquadra a vida
humana 176 . Através do amplexo que se realizava diaria-
mente entre os seus corpos, Geb e Nut criaram também o
tempo e a alternância entre o dia e a noite. De dia, os seus
corpos afastavam-se sob a acção de Chu, o deus da luz,
que erguia para o alto o corpo de Nut para que o deus Sol
pudesse navegar na abóbada celeste. À noite, quando o
Sol entrava na Duat, os corpos de Geb e Nut uniam-se e
criavam a noite, permitindo assim aos homens a visão da
Via Láctea, que era afinal o corpo cintilante da deusa177 . O
mito heliopolitano refere que Chu, invejoso da união amo-
144
rosa de Nut e Geb, separou os amantes divinos erguendo
o céu acima da terra. Mais tarde, quando Ré se cansou de
governar a terra, o deus Sol e as divindades abandonaram
o mundo terreno, deixando-o aos homens e ascenderam
ao céu, para longe da imperfeição humana. Nesta óptica,
Nut e Geb simbolizavam o fosso que separava o plano
humano (a terra) do mundo dos deuses (o céu), que estava
infinitamente longe e distante. No entanto, do mesmo
modo como o amor de Nut e Geb continuava a impeli-los
um para o outro, também entre os homens e os deuses con-
tinuava a existir um elo capaz de fazer descer o céu à terra
e manter as divindades em contacto com os homens. A
separação entre o céu e a terra não era, portanto, um dado
decorreote da ordem natural das coisas, mas uma conse-
quência da imperfeição humana. O deus Chu, o deus da
luz, personificava, deste modo, a ligação cósmica que
ainda era possível estabelecer com o mundo puro das
divindades.
Da união entre a deusa celeste com o deus da terra
nasceram dois pares de deuses: Osíris e Ísis, por um lado,
e Set e Néftis, por outro. Para além de personificarem os
elementos naturais que caracterizavam o cosmos nilótico,
estas divindades também reflectiam uma organização
política. Ísis, a deusa conotada com a terra fértil do Egipto,
personificava o trono da realeza, que simbolizava a natu-
reza e, por extensão, toda a criação, ao passo que Osíris,
identificado com o lodo fertilizador do Nilo, constituía o
modelo do faraó reinante. Set, protagonizando as forças
parece a ideia de que, à noite, o Sol era engolido por Nut e que o interior
do seu corpo podia ser identificado com a Duat. Noutras passagens,
porém, a Duat é posicionada no mundo inferior, sendo assim encarada
como uma emanação do deus Geb; ver WILKINSON, The complete Gods
of Ancient Egypt, p. 206.
145
do deserto, simbolizava o caos e a morte, numa palavra,
as forças hostis à vida e ao exercício da monarquia.
A oposição entre os elementos nilóticos da vida e as
condições desérticas que lhe são adversas inspirou certa-
mente o fratricídio de Osíris. Apesar de retalhado por Set,
o cadáver de Osíris foi recuperado por Ísis e Néftis, que
conseguiram ressuscitá-lo, tornando-o no rei do mundo
inferior. Um último elemento, exterior à Enéade, estabele-
cia um elo entre a criação do mundo e o plano humano e
político. Tratava-se de Hórus, o filho e herdeiro de Osíris,
que se tornou o paradigma do rei vivo.
Uma genealogia de cinco gerações divinas traçava
assim os fundamentos do poder político através de uma
corrente que fluía de «cima para baixo». Da fonte
suprema, Atum, emergiram os princípios cosmológicos,
Chu e Tefnut (o princípio masculino e o princípio femi-
nino) que regiam o funcionamento do cosmos. Deste
plano abstracto a criação prosseguiu para a criação do céu
e da terra, Geb e Nut (o plano dos homens e o plano das
divindades) e daqui para a criação do Egipto e dos arqué-
tipos divinos do comportamento humano (Osíris, Isis,
Néftis e Set). O herdeiro desta linhagem divina era Hórus,
o sucessor de Osíris e o modelo arquetípico do faraó.
O mito heliopolitano traçava assim os fundamentos reli-
giosos do poder político. O rei vivo, identificado com
Hórus, actualizava continuamente o velho mito da criação
e justificava a sua acção política no quadro da reposição
da ordem cósmica, a maet, a noção egípcia que evocava
a pureza da ordem cósmica no momento inaugural da
origem do mundo.
Esta responsabilidade era representada simbolica-
mente no culto divino através da oferenda ritual da deusa
Maet, com a qual se alimentavam as divindades. O signi-
ficado deste gesto, porém, vai muito para além da cir-
146
cunstância ritual e traduz a responsabilidade do faraó em
devolver a maet ao mundo terreno, devolvendo-lhe a
pureza que os deuses lhe haviam conferido na origem dos
tempos. A maet enchia o mundo com a vida, a plenitude, a
verdade e a abundância. O seu oposto, a isefet, que signi-
fica «ausência» ou «falta », manifestava-se na morte, na
escassez, na mentira e na corrupção. Se o mundo estava
repleto de «ausência», tal não correspondia ao seu estado
original. Pelo contrário, a morte e a injustiça eram sinto-
mas do esvaziamento de sentido do mundo que se dis-
tanciou da sua plenitude original. O sentido da criação
residia sempre na plenitude, na ordem, na justiça, em
suma, na maet178 . O bem estava, portanto, na ordem natu-
ral das coisas, ao passo que o mal não tinha uma existên-
cia absoluta, pois só se manifestava mediante o esvazia-
mento do bem. A ordem cósmica correspondia, portanto,
ao estado de graça, frágil e delicado, que o criador havia
instalado na criação no tempo da origem. A noção de um
equihôrio primordial permanentemente em risco respon-
sabilizava toda a humanidade, em especial o faraó, por
velar escrupulosamente para que a pureza e a harmonia
continuassem a vigorar sobre a terra. Era desse modo que
a humanidade podia «alimentar os deuses» e garantir a
sua permanência na terra, através do culto divino oficiado
nos templos.
A importância desta responsabilidade cósmica só é
compreensível se atendermos às crenças cosmológicas do
antigo Egipto. No antigo Egipto, a criação do mundo não
se fez acompanhar pelo desaparecimento do caos. De
facto, uma vez criada, a luz não fez desaparecer as trevas.
Pelo contrário, para lá do mundo vivo e luminoso conti-
nuava a predominar a escuridão, o silêncio e a inércia.
147
Esta região que envolvia o mundo era o Nun, a água pri-
mordiatl79, que sempre existiu e que um dia havia de
engolir de novo a criação180.
A razão pela qual o deus criador não anulou o caos
relaciona-se com o papel do Nun na conservação do
mundo181 • Efectivamente, o caos era necessário para garan-
tir o equilíbrio do mundo182, uma vez que a desejada
regeneração só era possível fora da criação 183. Para reju-
venescer era preciso sair da influência do tempo e mergu-
lhar no Nun, onde as forças que regiam o cosmos, como o
céu e se prolongava para baixo da terra. Era da terra que brotava a água
que alimentava os rios e os oceanos; ver ALLEN, Genesis in Ancient
Egypt, p. 4.
181 O papel das águas do Nun é ambivalente, revestindo-se de um
significado negativo e positivo. Se, por um lado, o Nun era infinito, sem
forma, caótico e insondável (todas estas características personificavam o
caos que ameaçava a ordem cósmica), por outro, à semelhança da cheia
que fertilizava o solo do Egipto, as águas do Nun eram também a fonte
da regeneração do mundo, contendo, em potência, todas as possibilida-
des da criação; ver TOBIN, «Creation Myths», em Oxford Encyclopedia of
Ancient Egypt, II, p. 469.
182 CARREIRA, Filosofia antes dos Gregos, pp. 54-59.
183 O ritmo do cosmos estava, deste modo, indissociavelmente
148
tempo, não se faziam sentir. As imagens que representam
a serpente Uroboros enrolada sobre si mesma evocam a
função regeneradora do caos primordial, ao qual era
necessário regressar ciclicamente184 .
A vulnerabilidade do mundo face às forças do Nun
constituía também a base da forte carga política da cos-
mogonia heliopolitana. A criação estava sempre em aberto
e podia, em qualquer altura, ser absorvida pelo Nun. O
sofrimento, a injustiça, o crime, a guerra eram a manifes-
tação da isefet, o esvaziamento da ordem cósmica decor-
rente de um afastamento da plenitude e pureza original
que impelia o mundo de novo para o estado de caos185 .
Cabia ao faraó a tarefa de manter a maet envolvendo
a humanidade em tomo de um compromisso que unia os
homens ao criador e garantia a perenidade da criação186 .
O demiurgo fez a sua parte, mas cabia à humanidade
velar pela sua obra para que ela permanecesse intacta e
pura como no tempo original. Nesta responsabilidade
residia a principal função da monarquia. Além de exercer
uma acção conservadora, o faraó garantia a renovação do
mundo, pois, ao subir ao duplo trono do Egipto, o faraó
fazia emergir simbolicamente do caos as Duas Terras,
149
Representação cosmológica representando o Sol renascido (representado como
uma criança real sentada sobre o horizonte), envolvido pela erpente Uroboros,
que simboliza a Duat, sob os braços celestes da deusa Nut. Os leões do horizonte
representam os limites espaço-temporais do cosmos: O Oriente e o Ocidente,
mas também o Ontem e o Amanhã. A cabeça de animal representada na base do
Uroboros alude provavelmente ao sacrifício ritual de Set e evoca a vitória da luz
sobre as trevas. Papiro funerário de Heriuebk.het, XXI dinastia.
150
relançando-as numa nova era. Sempre retrospectiva, a
acção real colocava-se no momento inaugural da criação,
aquele em que «duas coisas» foram geradas a partir da
unidade inicial, informe e inerte. Através da sua assimila-
ção ao imaginário cosmogónico, a monarquia egípcia enri-
quecia-se assim com um sentido religioso que fazia parti-
cipar a ordem política na ordem cósmica.
IS? TdS 75, versão francesa em BARGUET, Les Textes des Sarcophages,
pp. 462-466. Versão hieroglífica em BUCK, The Egyptians Coffin Texts, I,
pp. 336-345.
151
O texto explicita que o criador «concebeu» Chu no
seu coração. O termo usado, kemá, «conceber» ou «projec-
tar», também pode ser usado no sentido físico de «projec-
tar» e coaduna-se com o mito tradicional de Heliópolis
que relata a criação de Chu através da emissão dos fluidos
de Atum (esperma ou cuspo) 188. A concepção pelo coração
resultava, deste modo, da transposição para um plano
abstracto, da criação a partir do sémen de Atum189 • Esta-
belecendo uma correspondência entre o pénis e o coração
de Atum, os teólogos heliopolitanos abriram o caminho
para uma versão «filosófica» da criação. Se a criação atra-
vés da masturbação constituía o símbolo mítico para a
criação de Chu e Tefnut, corporizados na projecção do
sémen do demiurgo, a criação através do coração transfe-
ria este processo para um plano mais conceptual. A cons-
ciência do criador originava o pensamento e a palavra, Sia
e Hu, os quais eram identificados com o coração e a língua
de Atum, respectivamente 190.
Esta versão da criação do mundo projectava, no plano
das ideias, a actividade demiúrgica do criador, antes cen-
188 A conotação associada ao movimento subjacente ao termo
bros»: << (. .. ) Eu estarei no país dos vivos; o meu coração fará os meus
membros, as minhas carnes obedecer-me-ão, eles sustentar-me-ão.
Tomar-me-ei um ancião( ... )>>, TdS 39; versão francesa em BARGUET, Les
Textes des Sarcophages, p. 181.
190 Já no Império Médio estava consolidada a associação entre Hu
152
trada no plano material, através da criação a partir da
manipulação do falo. Assim, partindo de um modelo cos-
mogónico inicial baseado no sexo e no corpo de Atum, a
teologia heliopolitana elaborou uma formulação da cria-
ção centrada no amor e na mente do demiurgo. Se inicial-
mente a sua obra criativa se manifestava através da ejacu-
lação, agora exprimia-se através da palavra. O sémen por-
tador da vida era agora enunciado como o pensamento do
criador. No modelo cosmogónico original, a ejaculação
manifestava os poderes de Tefnut e Chu (através do
sémen e do seu movimento, respectivamente), ao passo
que, na versão mental da criação, o pensamento e a pala-
vra eram o reflexo de Sia e Hu, a sabedoria divina e o
poder criativo, respectivamente. Embora possuísse uma
formulação abstracta, a versão cosmogónica da criação
pelo coração seguia, ponto por ponto, a versão cosmogó-
nica mais arcaica. De facto, mais do que uma visão nova
da origem do mundo, a criação pelo coração de Atum
transpunha a linguagem mitológica do velho mito para
um quadro de expressão mais «filosófico». Os conteúdos,
no entanto, eram rigorosamente os mesmos, mas expres-
sos com uma linguagem distinta.
153
É esta visão de um deus que cria o mundo através do
pensamento que é desenvolvida com mais destaque ao
longo do Império Novo, época em que se registou um
forte interesse em problematizar teologicamente a von-
tade do deus supremo e o seu poder para interferir na his-
tória e no mundo. Associada a esta reflexão que, sob a ins-
piração de Jan Assmann, denominámos de «teologia
explícita» emerge urna perspectiva da criação desmitolo-
gizada, centrada no coração do criador, que define o
mundo como vontade e ideia do deus. O deus criador da
vida toma-se então um deus pessoal que formula a sua
criação pela palavra, vontade e consciência.
A teologia da criação através da vontade e da palavra,
elegia o coração do deus solar, como a origem de todas as
coisas. Neste contexto o termo «coração» deve sempre ser
entendido no sentido anímico e não como urna evocação ao
músculo cardíaco propriamente dito. Tradicionalmente os
termos ib e hati eram usados para designar o coração o
qual, no antigo Egipto, era visto como urna entidade dual
envolvendo o músculo cardíaco (hati) e os condutores que
o ligavam ao corpo (ib). Tipicamente, o coração hati era
visto como a força motriz do corpo, mas também da von-
tade, ao passo que o coração ib era visto como um receptá-
culo onde a essência de vida circulava, mas também como
a sede da sabedoria que garantia a integração cósmica do
homem. Devido a estas conotações os termos cardíacos
tiveram urna valoração distinta ao longo do tempo na lite-
ratura egípcia. Nos textos sapienciais, que reflectiam sobre
a maet e a integração cósmica do indivíduo, é sobretudo
o coração ib que mais se destaca. No entanto, à medida
que a «teologia da vontade» foi ganhando peso, é o termo
hati, usado para designar o desejo do criador, que se foi
impondo. A visão antropológica patente na Pedra de
Chabaka deve ser entendida à luz desta tendência que se
154
agudiza a partir do período ramséssida. As referências ao
coração representam-no como uma entidade singular, o
coração hati, embora por vezes apenas seja redigido com o
auxílio do signo F34 que aqui é usado apenas como deter-
minativo. A antropologia patente no «Livro das Origens»
não pode, deste modo, ser vista como ilustrativa da visão
egípcia do coração e resulta da prevalência da «teologia
da vontade» que assinala em pleno o triunfo da piedade
pessoal no domínio da espiritualidade egípcia. O texto da
Pedra de Chabaka consiste, ele próprio, na formulação
plena da teologia da vontade no plano cosmogónico e
como tal, é herdeiro pleno da tradição solar heliopolitana.
155
tância óbvia do deus, ao longo do Império Antigo as fontes
escritas não ajudam a esclarecer a sua caracterização
divina. Apenas no Império Médio, nos «Textos dos Sarcó-
fagos», é que encontramos uma explicitação mais porme-
norizada sobre a sua natureza. Nesta época Ptah já era
reconhecido como um deus da terra, responsável pela
vida e crescimento das plantas, e também como o «rei dos
deuses», constituindo o modelo divino da monarquia.
A iconografia de Ptah
las que fazem alusão ao deus menfita: § 560, 566, 1482. A parcimónia nas
referências ao deus contrasta fortemente com o papel do seu culto, o
mais importante da capital. Esta ausência não se deverá tanto a supostas
rivalidades entre os templos de Mênfis e de Heliópolis, mas simples-
mente a uma linguagem teológica distinta. O aparecimento de Ptah, nos
textos heliopolitanos do Império Médio reflecte, por outro lado, o início
da convergência teológica entre os dois centros que atingiu a sua matu-
ridade no Império Novo.
193 A representação das divindades com formas animais antecede
as representações antropomórficas. ·
156
a múmia com peças de roupa: um saiote para os homens,
vestidos de missangas para as mulheres. Apenas no
Império Médio é que a mumificação passou a envolver
inteiramente o corpo de modo a conferir-lhe a típica con-
figuração de crisálida194 . Esta transformação das práticas
funerárias reflecte a grande diferença de horizontes que
separava as duas épocas no que diz respeito às crenças
funerárias. Enquanto que, no Império Antigo, a mumifi-
cação procurava conferir a aparência do corpo em vida, as
técnicas de mumificação aplicadas no Império Médio pro-
curavam conferir ao cadáver a fisionomia de um deus
imerso no interior da terra 195 . Encarada nesta perspectiva,
a múmia constituía uma representação: no Império Antigo
representava a recuperação da dignidade do defunto, ao
passo que a partir do Império Médio representava a sua
transformação num deus ctónico.
A configuração mumiforme adoptada por deuses
como Osíris e Ptah representa, portanto, a sua associação
ao Nun, o universo incriado e informe que se estende para
lá das fronteiras da criação, e evoca a sua condição como
divindades ctónicas, imersas no interior da terra. Esta
associação à terra e à fertilidade é reforçada, na represen-
tação de Ptah e de Osíris, pelo rosto pintado de verde,
outro elemento iconográfico que acentua a ligação às forças
regeneradoras da terra e ao crescimento da vegetação.
157
Ptah, Papiro Harris I (XX
dinastia). São aqui bem
visíveis os principais atri-
butos de Ptah: atitude
<<mumiforme>>, a barba
real, toucado justo, colar
com o contrapeso distin-
tivo de Ptah. O pedestal
onde o deus está colocado
tem a forma do hieróglifo
mae, «verdade>>, ou <<jus-
tiça>>. A veste do deus está
coberta de penas alusivas
ao seu epíteto <<Senhor de
Maet>>. Empunha nas mãos
os ceptros uase (<<poder>>),
ankh («vida>>) e djed (<<esta-
bilidade>>).
158
Normalmente as representações de Ptah são de uma
notável sobriedade, não apresentando coroas nem touca-
dos. Como adorno o deus apenas usa uma calota muito
justa ao crânio que, em alguns casos, tem a cor azul. A
parcimónia decorrente desta representação acentua o
impacto estético do rosto do deus, fazendo assim justiça a
um dos seus mais celebrados epítetos, Nefer-her, <<Ü Belo
de Rosto»196 .
196 Este epíteto, que só este deus utiliza, qualifica-o como <<senhor
dos céus», cujo rosto é iluminad o pelos maaty, as duas luminárias celes-
tes. O epíteto <<Belo de Rosto» evoca assim o esplendor da face celeste d e
Ptah que irradia com o brilho d o sol e da lua. BERLANDINI, <<Ptah
Derniurge et l'exaltation du cieh•, RdE 46 (1995), pp. 31 -37. No entanto,
outros autores preferem a tradução <<Rosto misericordioso>>, baseando-se
no duplo sentido da palavra nefer, que pode significar <<bom>> como
<<belo >>.
197 Ao estatuto real d o deu s não seria certamente alheio o estatuto
159
à proa das suas embarcações. Para quem nunca viu estes
patecos, deixo esta indicação: é a imagem de um pigmeu 201 .
(1995), p. 24.
162
Ptah, a matriz da vida e o artífice do mundo
163
rnordial. Tal corno Ptah, Tatenen era um deus local origi-
nário de Mênfis e representava a potencialidade fecunda-
dora da terra. Esta identificação parece ter-se concretizado
a partir do reinado de Ramsés II (1550-1069 a.C.) e foi ful-
cral para propulsionar a caracterização teológica de Ptah
corno um deus criador.
Também com Sokar, o deus da vizinha necrópole de
Sakara204, Ptah foi assimilado, desta vez sob a forma corn-
pósita de Ptah-Sokar-Osíris. Embora esta tripla associação
seja comum apenas na Época Baixa, a ligação entre Ptah e
Sokar é bastante mais antiga e remonta, pelo menos, ao
Império Médio. Com este deus Ptah realizava urna união
entre dois princípios complementares. Ptah personificava
a cidade de Mênfis (a cidade dos vivos) e a terra fértil, ao
passo que Sokar era o deus da necrópole rnenfita, do
deserto e do Alérn205 . A tríade Ptah-Sokar-Osíris tinha,
deste modo, um alcance regional, exprimindo os três ele-
mentos que caracterizavam o «chão» de Mênfis (os três
deuses mencionados são divindades ctónicas do interior
da terra e em conjunto aludem à fertilidade que emana da
Duat para alimentar os vivos e regenerar os rnortos) 206 •
Outra das manifestações rnenfitas de Ptah era através
do touro sagrado Ápis que incarnava os seus poderes de
164
fertilidade. O nome do touro sagrado deriva da palavra
hep «correr» ou «mensageiro», que é curiosamente idên-
tica à palavra que designa o deus da cheia, Hapi, que, por
sinal, também «corre>> no seu leito, fecundando os campos
com a inundação. Com conotações associadas à cheia,
o touro Ápis simbolizava a fecundidade e personificava
a potência sexual de Ptah e, por extensão, do próprio
faraó 207 • O touro era, por isso, encarado como a imagem
viva de Ptah, o seu ba, a manifestação do seu poder cria-
dor. Por ocasião da festa da renovação do poder real cele-
brada teoricamente após trinta anos de reinado, a festa
Sed, o poder do rei era colocado em paralelo com o do
touro através da corrida ritual que garantia precisamente
o rejuvenescimento destes poderes no soberano. Após a
sua morte, o animal era identificado com Osíris, sendo
então designado Usir-Hap, ou seja, o «Ápis defunto>>, o
qual, nos tempos helenísticos, deu origem à divindade
antropomórfica Serápis que se difundiu pelo Império
Romano como divino consorte de Ísis208 •
207 De acordo com Heródoto, o boi Ápis era escolhido, após a morte
165
Ptah encarnava, portanto, o poder emergente da terra,
o ímpeto criador que jaz nas profundezas do mundo e
que, pelo seu potencial de vida e fecundidade, nutre e
gera as formas de vida. O carácter ctónico do deus dava-
-lhe poderes sobre a germinação e o crescimento das plan-
tas, razão pela qual a sua função era, em primeiro lugar, a
de conferir a fertilidade à terra e assim garantir a vida que
pululava no vale do Nilo. Por essa razão era muitas vezes
associado à deusa denominada «Ü grande celeiro», para
exprimir o seu poder de fertilizar a terra e produzir o ali-
mento que dá sustento a todas as formas de vida209 . Com
um sentido equivalente, o epíteto «Ptah no Grande Trono»
aludia ao seu poder para fecundar a natureza e gerar
todas as formas de vida que assim estavam integradas
166
num todo universal que constituía o próprio corpo cós-
mico de Ptah. O trono simbolizava, portanto, o cosmos
vivo sobre o qual Ptah e o faraó velavam amorosamente
por todas as criaturas. No âmbito da teologia rnenfita, o
deus ctónico constituía o modelo divino do faraó e perso-
nificava o soberano da criação.
Como divindade ctónica, Ptah era, em suma, enca-
rado como a matriz original de onde todas as formas de
vida foram concebidas. Esta qualidade era vista corno o
reflexo da faceta feminina de Ptah, urna vez que este
poder se traduzia numa gestação. Como deus da terra,
Ptah era o ventre que gerava todos os seres.
167
fice do mundo, afirmava, por seu lado, a faceta masculina
do deus, em contraponto com o seu papel feminino cono-
tado com a gestação da vida.
168
[ ]
169
Levantas para o alto a tua obra apenas com a tua
própria força elevando-te graças ao vigor do teu braço.
Estás sobre o mistério. O céu está acima de ti, a Duat está
em baixo211 .
atributo divino que também pode ser usado no contexto funerário para
representar a manifestação luminosa do defunto. BERLANDINI, <<Ptah
Demiurge et l'exaltation du ciel>>, RdE 46 (1995), p. 24. Kakosy vê nestes
bau a manifestação de Chu e Tefnut, também eles bau de Ré. Ver KAKOSY,
<<A Memphite triad>>, JEA 66 (1980), pp. 48-53. Também em DJIK, «The
Symbolism of the Djed Pillar>>, OMRO 66 (1986), pp. 7-17.
214 Ibidem, p . 16.
170
Constituindo uma expressiva manifestação da síntese
teológica que se verificou, sobretudo no Império Novo,
entre a tradição menfita e a heliopolitana, o «pilar de Ptah»
permitiu, em suma, afirmar o estatuto de Ptah como um
deus das origens que tudo alcança na sua própria defini-
ção: desde a escuridão ctónica da terra à luz das estrelas,
Ptah tomou-se a personificação da unidade primordial
do mundo. Embora consubstanciado com o Nun, Ptah era
agora o obreiro do Sol e o artífice do mundo. A sua silhueta
cósmica abrangia assim o mundo e o seu oposto, a criação
e o vasto oceano incriado e inerte. Ptah era tudo.
Esta tendência para a formulação universal do deus
primordial tomou-se cada vez mais expressiva ao longo
do Império Novo e levou inclusivamente à convergência
dos cultos das divindades primordiais mais importantes
do Egipto. A tríade divina formada por Amon-Ré-Ptah
agregava os poderes primordiais destas divindades esbo-
çando o início da formulação teológica de uma «trindade»
à maneira egípcia:
171
(Amon), luminoso como o disco solar (Ré) e corpóreo
e fértil como a terra (Ptah). Estava assim em marcha a
criação de um movimento teológico que ainda hoje revela
a sua actualidade.
O culto de Ptah
O culto real
dos faraós do Egipto, os faraós que se desviaram deste ideal foram crite-
riosamente <<esquecidos» da lista real, como foi o caso da rainha
Hatchepsut, Akhenaton ou Tutankhamon.
218 Corroborando esta interpretação , o Papiro Renl de Turim faz de
Ptah o primeiro dos reis míticos do Egipto. Sucedeu-lhe Ré, depois Chu,
Geb, Osíris, Set, Hórus e outras divindades.
172
mentos da Núbia. Em Abu Simbel, o terramoto que des-
truiu o torso do colosso meridional (que ainda hoje jaz
por terra) foi entendido pelo faraó como uma manifesta-
ção de júbilo de Ptah-Tatenen, o deus telúrico da terra 219 .
A inscrição redigida para comemorar o acontecimento
documenta que o faraó viu o cataclismo como uma reve-
lação da paternidade de Ptah. Já na estela do casamento
(que celebra a união de Ramsés II com a princesa hitita), o
referido terramoto foi interpretado como um anúncio de
vitória que se soltou da própria terra em virtude dos
esponsais que iriam selar o acordo entre o Egipto e o Hati.
No relevo que acompanha a inscrição, o próprio faraó
identifica-se com Ptah, apresentado o toucado de plumas
típico de Tatenen.
Em Gerf Hussein, na proximidade da Primeira
Catarata do Nilo, Ramsés II dedicou um templo rupestre
ao deus Ptah, que aí presidia como divindade tutelar da
cheia do Nilo220 . A construção deste santuário, o mais
setentrional dos templos da Núbia, parece estar relacio-
nada com o papel do deus em dotar as águas da cheia com
o húmus fecundador que levaria a fertilidade ao Egipto e
constituía aparentemente o culminar de uma peregrina-
ção fluvial que o faraó iniciava em Abu Simbel, onde era
divinizado e associado aos poderes regeneradores do cos-
mos, para depois seguir um périplo sagrado pelos diver-
este hipogeu foi talhado, apenas alguns elementos do templo foram sal-
vos das águas da albufeira de Assuão. Idem, Le secret des temples de Nubie,
p. 253.
173
•
sos templos da Núbia, rumo à primeira catarata do Nilo.
Através desta navegação sagrada, Ramsés II associava-se
aos poderes que garantiam a vida e a fertilidade do Egipto
de modo a propiciar cheias benéficas. Todos estes elemen-
tos em conjunto mostram que, ao longo do reinado de
Ramsés II, a valorização do culto de Ptah se fez através de
vários eixos: através da sua afirmação como rei dos deuses,
como deus da cheia e da fecundidade e ainda como deus
criador.
O culto popular
221
Set-Maet era a designação egípcia da aldeia de Deir e!-Medina e
significava <<Ü Lugar da Verdade>>.
174
fiéis. Em Medinet Habu, por exemplo, no complexo fune-
rário de Ramsés III (1184-1153 a.C.), uma efígie monu-
mental de Ptah foi gravada no próprio torreão de entrada
do recinto, num local onde todos podiam passar e ver o
deus. A efígie de Ptah, elaborada com especial cuidado,
apresentava incrustações de pedras coloridas ao nível
dos olhos, as quais intensificavam sem dúvida o impacto
global da imagem. A inscrição que acompanha a efígie de
Ptah refere:
175
transparece na literatura que documenta a invocação de
Ptah em situações que afligiam o coração:
O culto templário
176
dotes de Ptah é ilustrativa do âmbito das suas responsabi-
lidades já que, aparentemente, não remetia para uma acti-
vidade cultual, mas sim para uma responsabilidade de
ordem secular. 227 Sobretudo ao longo do Império Antigo,
apesar da importância das suas funções cultuais e litúr-
gicas, os sacerdotes de Ptah eram sobretudo altos funcio-
nários cujo acesso às funções sacerdotais se enquadrava
no âmbito das suas responsabilidades profissionais. De
facto, até o acesso ao topo da hierarquia sacerdotal parece
ter decorrido de um percurso profissional e não tanto
em resultado de uma transferência do cargo de pai para
filho 228 •
Como era de regra nesta época mais recuada, os
sacerdotes não desenvolviam a sua actividade exclusiva-
mente em tomo do culto divino. Os sacerdotes de Ptah,
em particular, estavam profundamente ligados ao traba-
lho artesanal, uma vez que o deus era o patrono dos tra-
balhos e ofícios. A própria denominação do sumo sacer-
dote de Ptah prende-se, sem dúvida, com esta função
divina de Ptah229 • Nesta óptica, o «grande dos chefes dos
artesãos» prolongava a criação de Ptah, supervisionando
as actividades artesanais para que estas veiculassem os
cânones e os símbolos que mantinham a criação em har-
monia. A importância religiosa desta responsabilidade
aparentemente mundana reflectia-se, na prática, na cons-
trução das estátuas divinas, dos templos ou, mais impor-
tante ainda, dos complexos funerários reais. No Império
Antigo, efectivamente, a maior parte destes sacerdotes
desempenhava funções de direcção na construção dos
227 Ibidem.
228 Só na Época Baixa é que assistimos a uma autêntica <<dinastia>>
sacerdotal. Ver Idem, p. 17.
229 MONTET, Révue Archaeologique 40 (1952), p. 6.
177
grandes empreendimentos funerários do rei. Embora, nas
épocas seguintes, a construção dos túmulos reais não se
realizasse na região de Mênfis, os sacerdotes de Ptah con-
tinuaram a evidenciar a mesma afinidade com os ofícios.
A ligação dos sacerdotes de Ptah a recursos naturais
valiosos (sobretudo aos metais e ao ouro em particular), e
à sua transformação dotou-os com uma enorme autori-
dade. A envergadura das instalações portuárias da cidade,
o seu papel de entreposto comercial ligando as rotas
comerciais internas e internacionais e a abundância de
combustível tomaram-se factores decisivos para consoli-
dar a preponderância da cidade no sector da metalurgia.
Uma tal prevalência do trabalho do metal poderá estar na
base da ligação das divindades locais ao trabalho dos
metais, em especial ao ouro. Ptah, o deus tutelar dos arte-
sãos, revelava uma ligação particular pelo trabalho do
ouro, em especial sob a forma de anão patéco. Também
Tatenen, deus criador, era encarado como o proprietário
das riquezas auríferas 230 •
Detentores dos segredos da metalurgia e das técnicas
usadas para a transformàção das matérias-primas, estes
sacerdotes deram muitas vezes a estes segredos uma for-
mulação teológica. Com efeito, sabemos que muitas ope-
rações relacionadas com a confecção de estátuas ou a edi-
ficação de estruturas arquitectónicas tinham uma inter-
pretação religiosa. A fórmula 626 dos «Textos dos Sarcófa-
gos» refere, por exemplo, que Ptah «levanta os ângulos»
da câmara funerária. Ao «levantar os ângulos» de uma
construção os trabalhadores imitavam simbolicamente o
gesto do seu patrono, imprimindo aos «quatro cantos» do
edifício que criavam a mesma estabilidade que o criador
178
deu ao grande edifício do universo através da erecção dos
quatro pilares cósmicos231 • Também é provável que o tra-
balho do ouro fosse particularmente imbuído de uma
carga mágica e «alquímica». O valor simbólico do ouro
estava intimamente ligado ao sol. O seu brilho evocava a
luz dos raios solares e a sua incorruptibilidade reflectia a
perenidade do astro, o que o levou a tornar-se o símbolo
da eternidade e da existência no Além. Autênticos alqui-
mistas avant la lettre os sacerdotes de Ptah trabalhavam o
ouro bem conscientes do poder simbólico e ritual do seu
trabalho, buscando através deste ofício imbuir as suas
obras com a centelha divina deste metal precioso.
Para além do seu envolvimento nas artes e ofícios, o
corpo sacerdotal de Ptah possuía um leque bastante alar-
gado de responsabilidades. Para além do culto prestado a
Ptah, os sacerdotes menfitas também se ocupavam do
culto de Sokar e de alguns cultos funerários reais celebra-
dos nos monumentos da necrópole de Ro-Setau232 . No
contexto destas funções, nos templos solares associados às
pirâmides de Abusir, estes sacerdotes também desem-
penharam funções relacionadas com o culto de Ré233.
Outra das responsabilidades cultuais destes sacerdotes
era, desde o Império Antigo, o culto de Ápis que se pro-
longou, embora com matizes diferentes, até à Época
Greco-Romana.
Outro aspecto singular do clero menfita é o facto de
ser regido por dois sumo pontífices. A razão para a dupli-
cação do cargo poderá ser encarada como uma reminis-
cência da duplicação das funções administrativas para o
179
Alto e para o Baixo Egipto, patente na administração real
da I e II dinastias.234 No entanto, também é possível que a
formulação dupla deste alto cargo estivesse relacionado
com o vigor do imaginário dualista associado a Mênfis e
ao culto de Ptah. O próprio <<Livro das Origens» refere a
formulação dualista do templo de Ptah, mencionando
dois portais sagrados:
180
O Conto de Setna-Khaemuaset e Naneferkaptah começa da
seguinte forma:
181
vivido cada vez com mais intensidade à medida que o
Egipto caminhava para o seu próprio crepúsculo. A descri-
ção tardia de Khaemuaset como um mago em busca de um
livro oculto dotado de grandes poderes acusa já o gosto de
um misticismo esotérico de sabor gnóstico que irá marcar
a imagem do sábio na tradição hermética helenística.
182
4. O IMPACTO DO «LIVRO DAS ORIGENS»
183
o «Livro das Origens» parece constituir um entre os muitos
elementos actualmente conhecidos que contribuem para
afirmar o panfleto político da dinastia cuchita: a presença
dos reis de Kuch no trono do Egipto justificava-se plena-
mente pois, através dela, a civilização egípcia era profun-
damente «depurada» e recuperada.
Embora esta renovação não tivesse tido, do ponto de
vista político, os resultados que Chabaka pretendia, não
há dúvida que, do ponto de vista religioso, o programa
empreendido pelos reis de Kuch teve um impacto tre-
mendo e duradouro, influenciando a espiritualidade
dominante da Época Baixa (664-332 a.C.) e mesmo a do
próprio helenismo. Voltando a sua atenção para os centros
religiosos do Egipto, os monarcas de Kuch procuraram
revitalizá-los concedendo-lhes, como principal tributo, a
força das suas próprias tradições para afirmarem a sua
santidade. Este objectivo perpassa claramente no seu pro-
grama de construções nos grandes centros urbanos e reli-
giosos, como em Tebas e Mênfis, onde erigiram novos
templos com um simbolismo altamente complexo e inte-
grador das estruturas previamente existentes240 .
Em Mênfis as tradições religiosas locais relaciona-
vam-se com as cosmogonias ramséssidas de Ptah e com o
antigo papel de Mênfis enquanto «Balança das Duas
Terras» e sede do poder real. A monumentalização do
«Livro das Origens» enquadra-se assim no âmbito do pro-
grama político e religioso que, por um lado, almejava
reforçar o estatuto político da dinastia cuchita identifi-
cando Chabaka com o legítimo rei do Egipto, o Hórus
vivo, e por outro lado intentava devolver a aura religiosa
dos principais santuários do país. Ao fazê-lo, a dinastia
184
cuchita não estava a criar uma «moda» revivalista e esva-
ziada de conteúdo. Muito pelo contrário, através desta
inspiração no passado, procurou-se revitalizar o Egipto, e
os seus templos e lançá-los numa nova era. No entanto, ao
contrário do Império Novo, o propósito desta renovação
já não era o de acumular riqueza através das doações
reais aos templos, mas sim o de acumular «santidade» e
significado religioso. Com efeito, a Pedra de Chabaka não
assinala qualquer privilégio especial ao templo de Ptah.
A dádiva real situa-se no plano da interpretação do real e
da construção de sentido. Concomitantemente era anun-
ciada, nas linhas da Pedra de Chabaka, uma perspectiva
do mundo terreno que iria marcar decisivamente a espiri-
tualidade do Egipto tardio: a cidade era um lugar sagrado
e o Egipto a terra santa, a mais santa das terras, prefigu-
rando assim o estatuto de templum mundi que haveria de
deter na Época Greco-Romana241 .
É neste horizonte, em que templo e Egipto se confun-
dem, que o templo de Ptah de Mênfis parece ter emergido
como a sede do próprio Egipto. A Pedra de Chabaka repre-
senta, por isso, uma importante viragem na valorização
do papel político e religioso de Mênfis que, a partir de
então, voltará a ser a cidade mais importante do Egipto,
um estatuto que se manterá até à fundação de Alexandria.
Lembremos que um tal estatuto não era detido por Mênfis
desde a queda do Império Antigo, mais de mil anos antes.
Desde então Iti-taui, no Império Médio, e Tebas (Uaset) no
Império Novo, haveriam de deter uma importância polí-
tica e religiosa muito mais determinante do que Mênfis,
reduzida ao estatuto de capital administrativa das Duas
Terras.
185
A Pedra de Chabaka assinala, antes de mais, o relan-
çamento do estatuto político e religioso de Mênfis, restau~
rando o estatuto que a cidade havia detido ao longo do
Império Antigo e, desse modo, augurava um regresso aos
tempos áureos do Egipto. A verdade é que a cidade, em
especial o seu templo de Ptah, tornar-se-ia no núcleo duro
do Egipto, a ponto de levar os visitantes Gregos a atribuí-
rem o nome do templo de Ptah, Hutkaptah («A morada do
ka de Ptah>>), ao próprio Egipto, Aegyptos. A Terra Negra
identificava-se, doravante, com o templo de Ptah, que
dessa forma surgia como a perfeita expressão da noção do
Egipto como templo do mundo. Não pode haver melhor
testemunho acerca do sucesso obtido pelo empreendi-
mento de Chabaka que perdura até aos dias de hoje.
186
mundo, que reflectia o «plano» inscrito na mente divina.
A «palavra divina», o hieróglifo, tornava-se no obreiro da
criação e no intermediário entre a mente do criador e o
mundo criado. Nesta noção «hieroglífica» da criação, Ptah
não já não era apenas um deus que «moldava» os seres,
tornando-se num deus que escrevia o mundo através dos
seres. Nesta perspectiva, cada criatura viva era um «hie-
róglifo», a materialização de uma ideia divina. Tendo dis-
tribuído hieróglifos vivos pela natureza, Ptah escreveu o
«livro» da natureza onde estava encerrado o seu «plano».
Assim, ao olhar para a natureza e ao observar a vida, o
homem podia decifrar o código usado por deus para redi-
gir o grande texto vivo da criação e aceder às ideias puras
que emanaram directamente da sua consciência. Uma das
mais decisivas consequências daquela noção consiste pois
na concepção da criação como um texto vivo escrito pelo
criador, um texto que incluía todos os elementos naturais,
as plantas, os animais e os homens. Tidos como «hierógli-
fos», todos os elementos do real reflectem uma ideia divina
emanada da consciência do deus criador e inscrevem-se no
mundo como num livro, onde se encontra cifrado o grande
plano divino, anunciando assim a célebre máxima hermé-
tica, «o que está em baixo, é como o que está em cima».
Decalcando o criador, ao escrever, o homem imitava o
gesto de deus, espalhando os hieróglifos pelo papiro, pelas
superfícies de pedra, ou até pela paisagem242 . Ao confec-
187
cionar uma estátua ou um vaso, o artesão não estava
apenas a criar uma «obra de arte» ou um artefacto: na rea-
lidade estava a redigir, em três dimensões, os mesmos
hieróglifos que o escriba desenhava sobre o papiro. Na
perspectiva egípcia, toda a obra humana, mesmo a mais
simples, produzia hieróglifos que davam permanência e
continuidade à obra fundada pelo criador. É notório, por-
tanto, que Ptah atribuiu ao homem a responsabilidade de
cuidar da criação, o que consiste precisamente numa das
suas originalidades pois reconhece a importância do com-
portamento e do trabalho do homem, através do qual o
criador continuava a completar a criação e a agir sobre ela,
o que naturalmente deve ser entendido como uma forma
de manter o criador em constante interacção com o
mundo, já que o comportamento social, os ofícios e todas
as actividades humanas se inseriam no seu grande plano
divino. Por outro lado, a marca do criador nas obras
humanas devia-se ao poder, exclusivo dos homens, de
criar representações, ou seja, de criar manifestações mate-
riais de ideias abstractas. Dito de outro modo, quando um
escultor trabalhava a pedra «imprimia» na matéria bruta
a ideia patente na sua mente. Um bloco de pedra trans-
forma-se então sob a acção da mente de quem o trabalhou,
passando assim a constituir uma representação e a corpo-
rizar uma ideia, ou seja, tornava-se num «hieróglifo».
Portanto, através da escrita, o homem penetrava no
código da criação, o mesmo utilizado por deus, e dava-lhe
continuidade. É neste ponto que a tradição menfita trans-
cende totalmente os paradigmas que a precederam e é
provavelmente o carácter «hieroglífico» da criação menfita
que explica a importância dada à explicação do funciona-
mento da inteligência no próprio «Livro das Origens», ao
ponto de explicar, de uma forma lógica e racional, a cons-
trução do conhecimento. De facto, partindo de uma pers-
188
pectiva hieroglífica da criação, o referido texto debruça-se
sobre a origem e o funcionamento da consciência. O mundo
é visto como o resultado das ideias puras que emanavam
da consciência do criador e se materializaram nos deuses,
nos homens e em todas as criaturas vivas.
É esta visão da escrita hieroglífica como uma escrita
sagrada reservada apenas aos textos religiosos que os
autores gregos nos reportam. Sabemos hoje que esta ideia,
originalmente tida como errónea e resultante de uma defi-
ciente compreensão, transmite fielmente a imagem que,
na Época Baixa, os sacerdotes egípcios tinham do seu
próprio sistema de escrita243 e o respeito profundo que
tinham pelos textos antigos.
Nesta perspectiva, não há dúvida que, a Pedra de
Chabaka é um monumento de renovação cultural que
divisava o futuro. A visão da criação aí redigida moldou
os sistemas religiosos dos templos da Época Baixa. No
dizer de Assmann, a «trindade» do pensamento, palavra e
hieróglifo tomou-se, efectivamente, a base da atitude sacer-
dotal em relação ao saber, à escrita e à própria santidade e
parece ter transcendido o horizonte cultural do Egipto 244 •
As proclamadas viagens ao Egipto dos sábios Gregos
deixam entrever um influxo de ideias que, na verdade,
se detecta bem nas suas obras. Platão figura justamente
entre os sábios que primeiro souberam expressar numa
linguagem discursiva nova, a filosofia, um quadro de
interpretação do real que parece realmente ser originário
dos templos do Egipto tardio. Nos templos de Mênfis ou
rias arcadas de Atenas, o mundo visível (situado ao nível
das aparências) era visto como a manifestação de uma
189
ideia divina essencial (onde se situa a sua verdadeira
natureza) 245 .
Este diálogo profícuo entre culturas havia de se inten-
sificar ainda mais a partir da ocupação Greco-Romana.
Este influxo faz-se, naturalmente, nas cidades autóctones
do Egipto, onde a elite sacerdotal não se furtou ao desafio
de formular as antigas tradições egípcias através de uma
linguagem filosófica universalizante, capaz de ser com-
preendida e respeitada por uma comunidade mais ampla
de sábios helenizados. É neste esforço de tradução, que
também irá caracterizar a comunidade judaica alexan-
drina, que podemos situar o nascimento do hermetismo,
que mais não é do que a helenização da tradição autóc-
tone. Com efeito, ainda hoje é possível detectar a origem
egípcia, e até menfita, de alguns dos aspectos mais carac-
terísticos da alquimia e do hermetismo. O carácter «arte-
sanal» da Grande Obra, que se traduz na criação da Pedra
Filosofal, afigura-se congruente com a íntima ligação de
Ptah aos ofícios, em especial, à ourivesaria. Esta associa-
ção poderá mesmo ter propulsionado a inspiração alquí-
mica da busca do «ouro» espiritual e da depuração da
matéria. Afinal, Mênfis permaneceu, na Época Greco-
-Romana como a mais importante cidade egípcia e é aí
que devemos situar o nascimento da alquimia. Também a
representação renascentista de Hermes Trimegisto, não
como um deus mas como um sábio, parece derivar direc-
tamente da representação tardia de Imhotep. Entretanto
divinizado, Imhotep afirmava-se no Egipto tardio como o
fiel depositário de um saber milenário, do mesmo modo
como Hermes Trimegisto figurava como o guardião de
um saber pré-diluviano.
190
O impacto da tradição inscrita na Pedra de Chabaka
parece, no entanto, ter transcendido, o âmbito de acti-
vidade dos templos auctótones. De facto, a Pedra de
Chabaka parece ter sido levada para Alexandria na Época
Greco-Rornana e, ao que tudo indica, foi aí que foi encon-
trada no século XIX. Urna tal apropriação justificava-se
plenamente se pensarmos que este monumento é, antes
de mais, um livro e que, impulsionada por Ptolerneu II e
III, estava então em curso urna activa política de aquisição
de todas as principais obras literárias então conhecidas.
É, portanto, urna forte probabilidade que a Pedra de
Chabaka figurasse entre o espólio da própria Biblioteca de
Alexandria.
E efectivamente, o conteúdo do livro de Pedra de
Chabaka justificava a sua aquisição pela biblioteca ale-
xandrina já que conferia antiguidade a um conjunto de
noções nucleares que se afirmavam cada vez mais agluti-
nadoras do complexo caldo rnulticultural que florescia em
Alexandria. Esta matriz filosófica comum cresce em torno
da formulação helenística do logos divino. Ora, a narrativa
cosrnogónica do «Livro das Origens» é estranhamente
próxima da doutrina do logos que se difundiu nas tradi-
ções místicas alexandrinas. De facto, a formulação da
criação corno urna emanação do pensamento do criador é
a pedra angular de um conjunto de sistemas de pensa-
mento que, no contexto do helenismo alexandrino, irão
evoluir separadamente sob a forma de diferentes corren-
tes místicas. Nascidos no mesmo contexto, o hermetismo,
a cabala, o gnosticismo e até o neo-platonismo, partilham
entre si a mesma perspectiva do logos divino e fundamen-
tam o seu misticismo numa busca interior que procura
libertar a centelha divina condensada na matéria. Da
Tábua de Esmeralda aos textos gnósticos de Nag Harnrnadi
cintilam ecos do <<Livro das Origens>>.
191
É sensivelmente a mesma VIsao que encontramos
numa corrente mística que emergiu na mesma matriz cul-
tural, o cristianismo. No magnífico Pr6logo do Evangelho
Segundo São João, onde o tema da criação do mundo é reto-
mado de modo inteiramente abstracto, estabelece-se preci-
samente uma equivalência entre Cristo e a Palavra (Logos):
192
é impossível ser conhecido pelo homem. Contudo, o modo
como essa impossibilidade é enunciada parece evocar o
velho texto menfita:
193
teológica à escala mediterrânica cujo centro de gravitação
se firmou em Alexandria, fazendo desaguar na Era cristã
um caudal de reflexão teológica cujas origens se perdiam
na noite dos tempos.
194
II. APÊNDICE:
HINOS E ORAÇÕES A PTAH
1. FÓRMULA 647 DOS «TEXTOS DOS SARCÓFAGOS»
197
As diferentes formas (kheperu),
Os poderes de vida (kau) e os (eternos) nascimentos.
Eu sou o distribuidor dos poderes de vida (kau) .
Todos vivem de acordo com a minha acção.
Quando eu quero, eu faço com que eles existam
Ninguém entre eles me pode falar
A não ser aquele que me criou
Pois eu sou a palavra na sua boca
E o conhecimento no seu ventre.
198
2. HINO DE LOUVOR DE UMA ESTELA
RAMESSÉSSIDA
199
3. HINO DE LOUVOR A PTAH DO PAPIRO HARRIS I
termos ir, que traduzimos por «modelar» e més, <<gerar». Estes processos
de criação estão associados à criação artesanal, de carácter masculino, e
à gestação, de carácter feminino. Resulta assim que Ptah é proclamado
como pai e mãe de todos os seres. Note-se que os homens são feitos em
resultado de um trabalho, ao passo que os deuses são concebidos na
carne do deus.
255 O Nun era a personificação do oceano primordial, de onde a
dades do Além.
200
E permitiste a Ré navegar no mundo inferior para os revigorar25 7,
Como soberano da eternidade,
Vida, saúde e força,
Senhor da perenidade e senhor da vida,
Que fazes respirar as gargantas
Dás o ar às narinas
E permites que cada um viva dos seus alimentos
De acordo com o seu tempo de vida e o seu destino.
Os homens vivem daquilo que sai da tua boca.
Criaste as oferendas para cada um dos deuses.
Na tua manifestação de Nun-o-Grande
Senhor da eternidade, és tu que determina a duração da vida,
O sopro de vida para cada homem
És tu que conduzes o faraó ao seu trono
E lhe confere a realeza sobre as Duas Terras
(Vê), eu sou teu filho!
201
4. SAUDAÇÃO A PTAH DO PAPIRO 3048 DO MUSEU
EGÍPCIO DE BERLIM
Para adorar Ptah, pai dos deuses, Tatenen, o primogénito dos deuses
primordiais, na alvorada. Palavras para enunciar:
202
Brilhas, assim que te ergues, nos olhos dos que te contemplam e
Dispersas as (suas) trevas.
Disco solar resplandecente
Que percorres o céu distante e atravessas a Duat.
Estejas próximo ou distante
Não te deixas conhecer.
Tu és o poderoso, que reuniu a terra e o oceano primordial (...)
Que a ti mesmo te concebeste
Quando nada ainda havia
Do que estava para vir.
Moldaste a terra segundo o plano do teu coração
Dele surgiram as formas
Tu és o que trouxe ao mundo tudo o que existe
Criador que manifestou os seres.
203
II
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o disco do céu
Que brilha para o que o criou
Que ilumina as Duas Terras com os seus raios,
e as inunda de paz.
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que suporta a deusa do céu 259,
Ele é o pilar da terra260,
Que deu origem à existência sobre a terra,
e a inunda de paz.
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se, o Khnum e a Mut que cuidaram dos deuses261,
O que engendrou cada um dos homens e os faz viver
inundados de paz.
204
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o Nun venerável que faz as oferendas
(... ) às plantas refrescadas
inundadas de paz.
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que fez a Muito Negra e a Muito Verde
E criou a cheia a partir do seu corpo,
e nos inunda de paz
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se em paz o que fundou as Duas Terras,
As montanhas e os desertos
E os fez reverdecer com a água que vem do céu
e nos inunda de paz.
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que criou o sopro de vida que anima as gargantas
Pelo hálito que emana da sua boca
e nos inunda de paz.
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que atravessa a eternidade e a duração
Senhor dos poderes de vida (kau),
que d á alimento àquele que ama
E o inunda de paz!
Desperta, tranquilo
Acorda em paz.
Ergue-se o que escuta os homens que oram
Diante de quem estremecem as Nebut
E choram (. .. ).
205
III
206
Sempre cada vez mais alto,
sempre cada vez mais longe.
Os rostos estavam felizes
Os olhos marcavam o tempo.
O teu menino ergue-se sobre a tua cabeça
e repousa nos teus braços
Tu leva-lo sobre as vias misteriosas.
As barcas divinas navegam continuamente sobre as nuvens 262
Graças ao vento que sopra da tua boca.
Os teus pés estão sobre a terra, a cabeça no céu longínquo.263
Tu és o «que está sobre a Duat>>,
E é assim que ergues para o alto a tua obra
Apenas com a tua própria força
Elevando-te graças ao vigor dos teus braços.
Estás sobre o mistério
O céu está acima de ti e a Duat debaixo de ti
A terra permanece sobre <<O que escondeste»
Nada sabemos do que nasceu do teu corpo
É a tua força que ergue as águas para o céu longínquo 264
A tua saliva é a nuvem que traz a chuva (. .. )
A água que tu espalhas corre nas montanhas
A tua água corre nas folhas das árvores
Dos países montanhosos
Círculo que envolve os Dois Rios do Céu
A Muito Verde e os confins de Nut.
207
Os países são diferentes de acordo com o que criaste
Eles percorrem o caminho que lhes decretaste
Sem transgredir a via que abriste.
Ninguém vive sem ti
Pois do teu nariz é que sai o sopro da vida
E da tua boca é que sai a cheia.
A árvore de fruto inclina-se para ti.
Tu enverdeces a terra
Deuses e homens estão saciados (. .. )
Se te deitas, as trevas surgem
Pois são os teus olhos divinos que dão a claridade ao mundo
Brilhas nos teus olhos cintilantes (... )
As tuas luminárias percorrem as estrelas e visitam os países 265
Os teus olhos cumprem o seu percurso noite e dia
O teu olho direito é o disco solar
O teu olho esquerdo é a Lua.
Os teus seguidores são as Infatigáveis.
Os grandes exultam quando te vêm em todas as tuas belas
manifestações
A tua tripulação presta-te homenagem266
A Enéade dos teus deuses primordiais 267
Aclama o teu despertar
E rejubila-se quando pousas em <<Aquela que vive>>.
208
Eles exclamam: «Louvor!>>, sem parar
Tu abres os caminhos do céu e da terra
Quando entras na barca divina
Sempre que apareces glorioso
Ó mais nobre dos deuses 268.
209
Os que estão na morada misteriosa são libertados
De cada vez que te contemplam como espírito dotado de formas
Os que te seguem veneram-te quando repousas no Ocidente.
Eles dizem: <<Aclamações ao que nos fez viver!
Que ele seja adorado! Que sejam feitos hinos
Ao deus que tomou perfeitas as nossas moradas! >>
IV
210
Vinde, cantemos hinos de louvor!
Ao deus que fez sair o Nun do céu
E faz sair a água das montanhas
Para dar vida aos outros povos,
No seu nome de criador da vida!
275
Alusão aos mortos sepultados nos seus túmulos.
7
As localidades aqui evocadas fazem parte da topografia mitica
2 6
do Além.
211
Vmde, cantemos hinos de louvor!
Senhor da verdade,
Cuja ternura é profunda
Cuja potência é grande no seu nome de trono venerável
No seu nome de senhor de Maet277!
v
Vinde!
Façamos gestos de alegria
Louvemos a sua imagem magnífica
Em todos os seus nomes perfeitos!
Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Menino que cresce dia a dia!
212
Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Ancião que se detém nas fronteiras da eternidade!
Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Ancião que percorre a eternidade!
Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica, ·
Em todos os seus nomes perfeitos!
O exausto que percorreu todos os seus caminhos!
Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
O que está muito alto e não pode ser alcançado!
Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Senhor da morada misteriosa que ele escondeu!
Vinde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Deus oculto de natureza insondável!
213
Vmde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Ba do senhor da duração que continua a dar a vida a quem ama!
Vmde!
Façamos gestos de alegria,
Louvemos a sua imagem magnífica,
Em todos os seus nomes perfeitos!
Ao deus que dá ordem à criação sem que possa ser perturbado!
VI
Louvor a ti!
Os caminhos foram abertos para ti.
Os caminhos da eternidade foram abertos para ti.
O céu e a terra, a Duat e o Nun abriram-se para ti.
Tu cuidas dos que aí vivem,
Dás a vida, estabeleces a duração da vida de cada homem e de
cada divindade
Eles dizem: «Louvor a ti que nos puseste no mundo
E que criaste as nossas formas».
214
A (serpente) que coroa a tua testa é uma senhora poderosa
A tua tripulação aclama-te
O teu primogénito adora-te
Como o mais belo dos deuses,
Como o de manifestação agradável
215
VII
VIII
Temei-o e respeitai-o!
A este deus que agiu de acordo com os vossos desejos.
216
Difundi aclamações ao seu poder,
Deleitai-vos com os seus olhos
As suas palavras são a balança das Duas Terras.
O segredo é mantido sobre as suas obras
O seu nome venerável afasta as tempestades
Os rostos estão estampados de medo
Quando o seu ba aparece282.
É um mago poderoso entre os deuses
O seu renome é grande entre a Enéade
Ele controla tudo o que criou
O seu poder manifesta-se na sua obra
E provoca um estremecimento entre os deuses
A sua natureza secreta vem do seu nome misterioso (...)
Reuniu as Duas Terras com os seus cuidados
Deu ordem às Duas Margens
Ligou a cabeça ao corpo
Persegue o mal e destrói a mentira
Agradável é o sopro que sai (dele)
Para o que ele ama
Ele deu aos deuses as suas faces
Ele conciliou os Dois Senhores283
E reuniu os Arcos.
Ele apazigua a Venerável no seu furor284
E deu a majestade ao seu filho, Ré.
Ele protegeu os homens e os deuses pela grandeza do seu poder.
Set.
284 Alusão ao poder de Ptah para apaziguar Sekhmet, a sua divina
217
5. TEXTO COSMOGÓNICO DO PAPIRO 13603
DO MUSEU EGÍPCIO DE BERLIM
pp. 140-142.
218
6. ORAÇÕES A PTAH
II
219
III
220
IV
221
7. COMENTÁRIOS
222
insinua como o próprio criador de Ptah. Em textos posteriores,
esta relação de paternidade será invertida.
O poder de Ptah estende-se a toda a terra, incluindo o
deserto e os países estrangeiros. O seu poder abarca também o
céu e manifesta-se no poder para dispensar a vida e os poderes
que lhe estão associados: o poder de se manifestar sob uma
forma (kheperu) o poder vital (kau), o poder divino (bau). É tam-
bém o deus que demarca o tempo de vida de cada criatura: esta-
belece o seu tempo para nascer e também para morrer. O texto
termina com uma revelação final muito bela: o deus consubstan-
cia-se com cada homem pois constitui «a palavra na sua boca e
o conhecimento no seu ventre>>. A versão que aqui apresentamos
é baseada na tradução inglesa proposta por James Allen290.
223
Hino de louvor a Ptah do Papiro Harris I
224
Saudação a Ptah do Papiro 3048 do Museu Egípcio
de Berlim
293 Muitos dos atributos e epítetos deAmon estão, com efeito, apli-
225
natural conotadas com o poder da luz para instaurar a vida.
O hino começa por afirmar o carácter ctónico do deus, através
da identificação com Tatenen, para depois evoluir no sentido de
afirmar o estatuto real do deus através da identificação com o
trono do Egipto e com o Sol. O carácter heliomórfico do deus é
insinuado através da evocação do movimento do Sol através do
firmamento e através da sua exaltação como um deus distante
que é simultaneamente próximo e oculto.
A estrofe II foi composta sob a forma de uma ladainha for-
temente ritmada por versos repetitivos que sugerem a sua
entoação por um coro. Trata-se de uma exaltação à manifesta-
ção criadora de Ptah que «desperta>> do sono inicial para dar
origem à criação. Através do despertar do deus enumera-se a
sua própria obra da criação que consiste num tomar de cons-
ciência do mundo e de si mesmo. Naturalmente, são enfatiza-
das as associações do deus ao Nun, razão pela qual é afirmado
o seu carácter andrógino, nomeadamente através da identifi-
cação com Khnum, o deus criador cultuado em Elefantina que
moldou os homens através do barro, e com Mut, a deusa tebana
associada à maternidade. A alusão aos dois deuses que criam e
concebem os deuses, para além de conotar o deus com a andro-
ginia que lhe é característica, evoca igualmente os dois poderes
de criação: a criação «masculina>> através do exercício de um
ofício (o de oleiro, no caso do deus Khnum) e a criação «femi-
nina>> através da gestação. A evocação de Khnum e Mut pro-
curava dotar o deus com os atributos que faziam dele o pai e
mãe da criação.
A estrofe ill apresenta um dos mais belos textos cosmogó-
nicos da tradição menfita que chegou até aos nossos dias. O hino
desenvolve-se segundo uma estrutura complexa e cuidadosa-
mente repartida que rege e organiza a composição. Primeiro des-
creve a manifestação criadora de Ptah quando se manifestou a si
mesmo na origem do mundo. Ptah é glorificado como criador da
terra e dos deuses e designado como <<deus único>>, um tributo
226
frequente nas divindades demiúrgicas. Ptah é exaltado como
modelador e metalurgista, ao mesmo tempo que são feitas alu-
sões à criação pela boca (através da palavra) e pelas mãos (atra-
vés da masturbação), o que lembra a identificação estabelecida
entre a língua e os lábios de Ptah e o falo e as mãos de Atum,
também documentada no <<Livro das Origens». O hino evolui
em seguida para a criação do Sol que aqui é descrito como o filho
de Ptah. a obra que coroa a sua criação. Na companhia do menino
Sol, Ptah ergue-o no céu, assimilando-se à função de Chu, e leva-
-o a percorrer o firmamento. Inicia-se assim uma viagem náutica
pelo firmamento, ao longo da qual Ptah conduz o Sol pelos
domínios do universo: primeiro avistam os vários países (as
montanhas, o deserto, as constelações, as luminárias celestes)
para, no final do dia, se encaminharem para o mundo inferior,
para a Duat, onde visitam os mortos.
A estrofe IV consiste na repetição de um refrão sob múlti-
plas variações destinadas a qualificar Ptah como o obreiro da
criação. Também aqui se detecta uma evolução padronizada que
associa o deus aos diferentes elementos da criação, a começar
pelos elementos do mundo nilótico do Egipto, para depois
abraçar o deserto e evoluir para as regiões do Além. É também
uma composição que provavelmente se destinava a ser cantada.
De notar que cada unidade temática é desenvolvida em torno de
um nome divino que a delimita.
A estrofe V consiste também num refrão que vai sendo
repetido de modo a evocar os diferentes nomes de Ptah. Esta
nomeação define a grandiosidade do deus através de múlti-
plos vectores. A redacção de hinos baseados em nomes divinos
traduz a importância do nome na expressão e na revelação do
sagrado. Nomear consistia no meio mais directo para manifestar
a presença divina, o que também podia ser feito através de um
conto ou de um mito. A nomeação do deus no contexto do culto
parece mesmo ter sido a origem dos hinos religiosos mais com-
plexos, como os que temos apresentado até aqui. As referências
227
à imagem divina de Ptah sugerem que o texto fosse recitado
diante da estátua do deus.
A estrofe VI descreve novamente a manifestação de Ptah
como o soberano da criação. As referências à serpente iaret que
se ergue sobre a testa do deus confirmam o estatuto real do deus
que percorre o céu em navegação. Uma particularidade deste
texto é a de incluir uma invocação do próprio deus Sol, aqui
ainda menino, que se dirige a Ptah como seu pai.
A estrofe Vll qualifica Ptah como um juiz dos mortos, o
que, naturalmente o aproxima da função de Osíris como divin-
dade que preside à pesagem do coração e ao tribunal do Além.
Finalmente, como complemento à associação de Ptah à jus-
tiça, a estrofe Vlll descreve o deus como um justiceiro que actua
no mundo terreno e no mundo divino. Em conjunto, as estrofes
Vll e Vlll, descrevem Ptah como o deus que garante a aplicação
da justiça, maet, tanto no Além, como em todo o cosmos.
O hino termina com uma alusão ao rei Ramsés IX da XX
dinastia: «Vinde! Protegei o rei do Sul e do Norte, Ramsés IX,
como tu proteges os deuses que vivem neste país. Tu és o seu rei.
O teu poder exerce-se sobre todos os países. Tu estás estabele-
cido na realeza das Duas Terras. O poderoso que permanece no
seu poder. O seu poder permanece na sua obra. Tu és o rosto de
tudo o que existe, como Ré. (0 mundo) é a tua posse. A eterni-
dade pertence-te, é a tua propriedade, Setepenré!>>
A versão apresentada baseia-se na tradução proposta por
André Barucq e François Daumas294, em francês, e na versão em
língua inglesa, apresentada por James Allen29s.
228
Texto cosmogónico do Papiro 13603 do Museu
Egípcio de Berlim
229
Orações a Ptah
230
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238
ABREVIATURAS
239
ÍNDICE
241
Esta 1.• edição de O LIVRO DAS ORIGENS,
de Rogério de Sousa, foi composta e impressa
para a Fundação Calouste Gulbenkian nas
oficinas da Rainho & Neves, Lda. - Santa
Maria da Feira
A tiragem é de 500 exemplares
Dezembro de 2011
ISBN: 978-972-31-1410-2