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Física em Versos

Conference Paper · January 2013

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Carlos Magno Sampaio Emerson Izidoro


University of São Paulo Universidade Federal de São Paulo
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XX Simpósio Nacional de Ensino de Física – SNEF 2013 – São Paulo, SP 1

FÍSICA EM VERSOS

Carlos Magno Sampaio1, Emerson Izidoro dos Santos2


1
Programa Interunidades /Instituto de Física e Faculdade de Educação/Usp, magno@usp.br
2
Universidade de São Paulo/Estação Ciência/mson@usp.br

Resumo

Este artigo propõe ensinar física desenvolvendo atividades didáticas baseadas em


poesias e demonstrar como determinados conceitos científicos utilizados pelos poetas
podem ser identificados, extraídos e analisados, proporcionando uma forma diferente de
interpretação da que normalmente é feita pelos professores da área de literatura e língua
portuguesa. Aplicamos essas atividades em sala de aula para avaliar a possibilidade e a
eficácia na aprendizagem de conceitos, ao estímulo à leitura e às interações sociais que a
integração dessas áreas de cultura pode proporcionar e desencadear, uma vez que física e
poesia se apresentam distanciadas quando abordadas em sala de aula, mas que se nutrem
de elementos de uma cultura comum. Utilizamos um poema de Carlos Marighella e a
proposta de aproximação feita por Aragão (2010). As interações sociais que decorrem no
espaço escolar trazem muitos conhecimentos além dos disciplinares. Assim, a organização
e distribuição dos conteúdos acadêmicos, muitas vezes, deve se distinguir da tradição
escolar, em que há uma sequenciação linear, seguida de insistentes exercícios de
memorização mecânica do conteúdo, que para Freire (p.33) funciona para o preenchimento
de recipientes, concepção bancária da educação: Onde os alunos recebem depósitos, que
devem ser recebidos, guardados e arquivados. Destarte, se de um lado optamos por uma
pedagogia inspirada em Vigotski, por outro, distinguimos o método de ensino dos conteúdos
ensinados, isto é, usando tópicos comuns, tratados em qualquer curso de física o que difere
é a forma como são ensinados, trata-se de um método de aprendizagem com ideias
freirianas. O ponto de partida para a alfabetização que pretendemos, com base nessas
ideias, é que alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras.

Palavras-chave: Física, Poesia, Marighella

Introdução

“Somos os filhos da época, e a época é política.


Todas as coisas - minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite são coisas políticas.
Queiras ou não queiras, teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político, teus olhos, um brilho político.
O que dizes tem ressonância o que calas tem peso
de uma forma ou outra - político.
Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos sobre solo político.
Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já nao dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão”

Um dos textos que deveriam nortear o tema da redação da Fuvest em 2012:


“Participação política: indispensável ou superada?” era o poema “Os filhos da
época”, da eslava Wislawa Szymborska, Nobel de literatura em 1996. Nos versos,
através de uma linguagem poética ela enfatiza a onipresença da política na vida das
pessoas, retratada a partir da observação do eu –lírico em todos os tempos, em

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todos os momentos cotidianos – individuais ou coletivos, onde estão presentes


metáforas e figuras de Ciências como dia, noite; genes, ressonância e peso.
Chamamos a atenção para os últimos versos, que foram omitidos pela
comissão de vestibular. A associação que pretendia o poema com o tema proposto
da redação, vai mais além, se considerarmos que se vai “lá em cima” buscar a Lua e
que ela “não dá luar”. Do ponto de vista da Física, a condição de não poder ser vista
por nós aqui da Terra, corresponde a consideração de que o referencial é um
observador na Terra, que mesmo sabendo que a Lua está orbitando, também deve
saber que é só pode ser vista se refletir a luz proveniente do Sol, o que determina o
“luar”. Quando a lua apresenta a noite em sua face- chamada fase nova, O “luar”,
não pode ser visto. Em seu discurso por ocasião do recebimento do prêmio Nobel
em 1996, Szymborska afirmou que valoriza acima de tudo esta frase: “não sei”. Para
ela somente esta admissão de ignorância pode expandir os horizontes — tanto
interiores quanto exteriores. Pela inquietude de não saber, o cientista busca,
investiga e descobre novas leis. Com cada criação o poeta tenta responder a esse
desconhecimento, mas se dá conta de que a resposta é sempre insuficiente e tenta
de novo e de novo; a essas tentativas frustradas os historiadores da literatura vão
chamar de sua “obra”. (Szymborska, 2010: 407).
Tanto no poema "filhos da época" quanto em sua citação no Nobel: “pela
poesia que, com precisão irônica, permite que contextos históricos e biológicos
venham à tona, em fragmentos de realidade humana”, Szymborska pressupõe o
pensamento dialético de Lev S. Vigotski. Poemas apolíticos também são políticos.
Permita-nos, também são científicos, pois em sua totalidade, representam a cultura
(ZANETIC, 1989).

Física e poesia na interação social

Numa pedagogia de inspiração vigotskiana, sociocultural, a aprendizagem


não resulta da atividade em si, mas das interações sociais que será possível a ela
desencadear, é, portanto nosso objetivo fundamental, promover interações sociais
que permitam o ensino de determinado conteúdo em que seja propício e plausível o
entrelaçamento entre Física e poesia construindo uma interface.
Para tanto, essa vinculação entre a interface e a interação social será feita
por determinados conteúdos específicos, pois nem todos os conteúdos de Física
permitem uma interface com poesia e numa sequencia didática que não tem a
pretensão de verificar ou redescobrir princípios físicos como gravidade ou
conservação de energia nem tampouco modelos científicos, como o modelo
atômico, mas ilustrar e comparar esses princípios ou modelos científicos e promover
interações sociais que tornem as explicações mais interessantes, motivadoras e que
agreguem concepções de áreas diferentes de conhecimento, mas que devem
integrar uma mesma cultura, cultura essa que pode conceber a lua como objeto de
estudo de física, mas que também pode ser de poesia.
Comparar um poema com conteúdos teóricos de Física, quando o conteúdo
permite, implica comparar a qualidade das interações sociais desencadeadas por
ambas e além disso, questões que não pretendem criatividade do aluno e sim a
repetição de ideias predeterminadas que constituem argumentos de autoridade
científica e que, portanto, não permitem a formulação de hipóteses por parte dos
alunos. Não há investigação, não há descoberta, não há criatividade, afetividade,

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ideias ou opiniões, é a reprodução sistemática de conceitos, uma mentira, falácia


filosófica. (Granger, 2000)
A utilização de poemas em questões de vestibulares concorridos pronuncia
uma tendência e ao mesmo tempo um incentivo em aproveitar elementos comuns
entre física e poesia, que estão na crítica severa de Granger (2000): Criatividade,
afetividade, ideias e opiniões e para Bronowski, a imaginação, que “nos penetra de
formas diferentes na ciência e na poesia”. Na Ciência, ela organiza nossa
experiência em leis, sobre as quais baseamos nossas ações futuras. A poesia,
porém, é outro modo de conhecimento, em que comungamos com o poeta,
penetrando diretamente na sua experiência e na totalidade da experiência humana.

Uma prova em versos

Dentro ainda da preocupação de formação do aluno e potencializar sua


capacidade leitora e interpretativa, encontramos o material peculiar de Carlos
Marighella (1911-1969). Um dos importantes nomes associados à resistência da
ditadura militar, facilmente pode constituir um trabalho interdisciplinar de qualidade e
formação integral, cultural, num eixo temático Ciência, Tecnologia e Sociedade.
Em 1929, o então estudante Carlos Marighella, respondeu em versos a uma
questão da prova de Física realizada no Ginásio da Bahia. Sua prova ficou exposta
em um dos corredores do colégio até 1965, exemplo de inteligência e criatividade.
Os versos contidos neste poema de Marighella correspondem ao ponto
sorteado "Catóptrica, leis de reflexão e sua demonstração, espelhos, construções de
imagens e equações catóptricas", da cadeira de Física do 5º ano. O tema da prova
fora sorteado na sala de aula, antes do exame, um detalhe pouco conhecido (SILVA
JR, p.22). O poema em versos de Marighella foi utilizado por Aragão (2007, p.249-
250) como um exercício para interpretar, refletir e responder da seguinte forma:
a) O que você pode concluir sobre a leitura dos versos acima?
b) Faça a figura a que o aluno Carlos Marighella se refere em seu verso,
utilizando as letras por ele indicadas.
Apresentamos essa proposta a um grupo de alunos do ensino médio nos
perguntando se ela realmente atende a integração entre disciplinas e as áreas de
cultura por meio do desenvolvimento de habilidades escolares comuns, destacando
a leitura e interpretação de diferentes linguagens: textos narrativos, poéticos,
informativos de maneira eficaz?
Em principio, nos pareceu tratar-se de uma questão simples em que os
alunos resolveriam sem problemas, aplicando os conceitos de formação de imagem
e construção geométrica nos espelhos planos. Ocorre que o texto, que
apresentamos a seguir, não se trata de um poema, necessariamente, e sim de uma
forma criativa de responder a uma prova de física em versos, que é uma coisa
diferente.
Os alunos fizeram suas construções individualmente, depois socializaram
entre eles em pequenos grupos e depois o professor promoveu uma discussão,
comparou semelhanças e o resultado está apresentado, em etapas, na descrição de
Marighella:
Ginásio da Bahia aos 23, de 29 deste oitavo mês.

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Figura 1- imagem que provavelmente estava no enunciado


Doutor, a sério falo, me permita,
Em versos rabiscar a prova escrita.
Espelho é a superfície que produz, Quando polida, a reflexão da luz.
Há nos espelhos a considerar
Dois casos, quando a imagem se formar.
Caso primeiro: um ponto é que se tem;
Ao segundo um objeto é que convém.
Seja a figura abaixo que se vê,
o espelho seja a linha betacê.
O ponto P um ponto dado seja,
Como raio incidente R se veja.
O raio refletido vem depois
E o raio luminoso ao ponto 2.

Figura 2. Construção da imagem do ponto


Foi traçada em seguida uma normal
o ângulo I de incidência a R igual.
Olhando em direção de R segundo,
A imagem vê-se nítida no fundo,
No prolongado, luminoso raio,
Que o refletido encontra de soslaio.
Dois triângulos então o espelho faz,
Retângulos os dois, ambos iguais.
Iguais porque um cateto têm comum,
Dois ângulos iguais formando um.
Iguais também, porque seus complementos

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Iguais serão, conforme uns argumentos.


Quanto a graus, A+I possui noventa,
B+J outros tantos apresenta.
Por vértice opostos R e J
São iguais assim como R e I.
Mostrado e demonstrado o que é mister,
I é igual a J como se quer.
Os triângulos iguais viram-se acima,
L2, P2, iguais, isto se exprima.
IMAGEM DE UM PONTO
Atrás do espelho plano então se forma
A imagem, que é simétrica por norma.
IMAGEM DE UM OBJETO
Simétrica, direita e virtual,
E da mesma grandeza por final.
Melhor explicação ou mais segura
Encontra-se debaixo na figura.

Figura 3. Reconstrução da suposta resposta final à prova

Análise de resultados

A forma descritiva da poesia reteve muitas dúvidas na construção dos


alunos e a interpretação ficou prejudicada pelo tempo despendido para obter a
figura. Porém, na aplicação dessa proposta encontramos, ao contrário da atividade
teórica que recorre a enunciados verbais, cuja compreensão dificilmente é simples e
óbvia, mesmo para professores, uma vantagem desencadeada da riqueza da
interação social. Pela falta desses enunciados, que restringem as condições iniciais
para que haja procedimentos e respostas convergentes, o que obtivemos foi um
estimulo a questionamentos importantes, tanto em relação à Física quanto em
relação à poesia, pois não havia respostas rigorosamente corretas e sim as
inevitáveis incertezas. Buscamos as figuras originais para uma conferência, mas não
conseguimos, historicamente talvez seja uma lamentável frustração, mas a nós, não.
Dúvidas e contestações correm o risco de serem refutadas por argumentos de
autoridade, os alunos se abstém de participar. Isso fragiliza a interação social.

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Marighella foi propriamente um brasileiro que lutou (entre erros e acertos),


durante quatro décadas, pela construção de um Brasil muito distante do que temos
hoje. A forma criativa que ele adotou, foi uma manifestação subversiva ao sistema
em que estava inserido, tendo ocorrido vários episódios de explosão de criatividade
da figura histórica que o transformou num mito (SILVA JR., 1999; p.28, 44, 63). Não
teríamos assim, um cenário propício ainda mais abrangente possibilitando ainda
uma discussão sobre política, referente aos movimentos de resistência aos regimes
totalitários e de ditadura do qual Marighella vivenciou até seu assassinato, em 1969?

Considerações finais

Na referida atividade mediada, de física em versos, independentemente das


razões que levam a uma determinada resposta, foi unânime a participação dos
alunos, optando por uma ou outra possibilidade. Isso pode ser explicado pelo
envolvimento afetivo do aluno com a atividade, pois este, livre de argumentos de
autoridade, obtém resposta isenta, resultado de sua concepção e apropriação de
conhecimento, de sua cultura.
Infelizmente deixamos aqui apenas uma indicação de que poderíamos
utilizar o texto interdisciplinarmente com enfoque político, a exemplo do poema de
Szymborska. Mas esperamos que se considere que não é apenas um texto em que
se pode trabalhar com o aluno o período da ditadura militar e ressaltar pontos
importantes da história política do Brasil, esses elementos nem se encontram no
texto e sim na pessoa que escreveu o poema. É na figura de Carlos Marighella que
se pode trazer a tona o período e as mazelas da ditadura militar e o exemplo de
resistência à opressão os direitos de liberdade e expressão do cidadão. O cenário
em que Marighella viveu sua juventude é muito diferente do que se tem hoje em dia,
sendo de importância irrefutável a apresentação de situações como essa para os
jovens de hoje, valendo aqui mencionar e sugerir o documentário “Marighella”, que
estreou nos cinemas em 10 de agosto de 2012 e teve a direção de Isa Grinspum
Ferrazo, sua sobrinha.

Referências bibliográficas

ARAGÃO, H. M. C. A. Física: Ensino médio, 2º ano. Brasília: Cisbrasil – CIB,


2010. p. 262-263 (coleção RSE).
BRONOWSKI, Jacob. O olho visionário: ensaios sobre arte, literatura e
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FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 29ª Ed. São Paulo, SP: Paz e Terra;
2000.
Fundação Universitária para o Vestibular. Processo seletivo 2012. Prova de
redação 2ª fase, Caderno A. São Paulo: FUVEST, 2012, p.12
GRANGER, G. G. Imaginação Poética, Imaginação Científica. In: Discurso.
n.29. São Paulo: Discurso Editorial, 1998.

JOSÈ, E. B. Carlos Marighella: O inimigo número um da ditadura militar. São


Paulo: Sol e Chuva, 1997, p.128-129
MLA style: "The Nobel Prize in Literature 1996". Nobelprize.org. 10 abril
2012 http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1996/

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PAZ, Octávio. Signos em rotação. Perspectiva. São Paulo, 1990.


SILVA JR, Edson Teixeira. Carlos: a face oculta de Marighella.
Vassouras/RJ: Dissertação de Mestrado. Universidade Severino Sombra (USS),
1999.
VYGOTSKI, L. S. Pensamiento y lenguaje. In: Obras Escogidas. Madrid:
Visor/ Aprendizaje y Ministerio de Educación y Ciencia, Tomo II, 1992, pág. 9-348
ZANETIC, João. Física e arte: uma ponte entre duas culturas. Pro-Posições,
Vol. 17. No 1(49). jan/abr 2006.
______________. Física também é cultura. Tese de doutorado. São Paulo:
Faculdade de Educação da USP, 1989.

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