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° 04 • Outubro/Dezembro 2008
Urbanismo e interesses públicos diferenciados
Direito Regional e Local n.° 04 • Outubro/Dezembro 2008
(8) Cfr. arts. 37.° a 39.° do Decreto-Lei n.° 555/99. (11) Foi, por isso, necessário prever na lei a possibilida-
(9) Cfr. arts. 13.°, 13.°-A e 13.°-B do Decreto-Lei n.° de de o particular se substituir à Câmara na relação com
555/99. aquelas entidades, promovendo directamente as consul-
(10) Sobre estes dois modelos alternativos de estrutura- tas, matéria que aliás sofreu recentemente um grande im-
ção dos procedimentos de licenciamento, vide o relatório pulso com a Lei n.° 60/2007 que estabeleceu no seu art.
do Conselho de Estado francês sobre a reforma da legisla- 13.°-B um regime de consultas prévias.
ção urbanística – Conseil d’Etat, L’urbanisme: pour un droit (12) Ver Decreto-Lei n.° 39/2008, de 7 de Março, e legis-
plus efficace. La documentation française, Paris, 1992. lação complementar.
Urbanismo e interesses públicos diferenciados
co os efeitos decorrentes da inserção no respecti- fundamentar uma decisão negativa vinculada (14).
vo procedimento administrativo de um subpro- Nalguns casos, até, a lei comina a violação daque-
cedimento decisório autónomo, tanto mais que las normas com a nulidade, como acontece com
normalmente são consultadas mais do que uma a violação de planos especiais de ordenamento
entidade e qualquer dessas consultas pode pre- do território (15), pelo que a invalidade formal
judicar o licenciamento da operação urbanística, do acto de licenciamento é consumida pela sua
ou a admissão da sua comunicação prévia. ilegalidade material, que além de ser insanável
É necessário, desde logo, clarificar os efeitos impede também a repetição do acto (16).
da falta de consulta ou de decisão das entida- Note-se, a este propósito, o absurdo que se
des consultadas, quer quanto à sequência da verifica nos casos em que a violação daquelas
tramitação do procedimento, quer sobretudo normas legais e regulamentares gera normal-
quanto à validade do acto final de licenciamen- mente a mera anulabilidade dos actos que com
to. É sobretudo necessário distinguir o regime elas não se conformem. Nesses casos, a falta de
de invalidade consoante a natureza do vício se- promoção da consulta ou de resposta à mesma
ja meramente formal – a ausência de consulta tem uma sanção mais forte do que teria a vio-
ou a falta do respectivo parecer, aprovação ou lação directa das normas cuja efectividade a
autorização – ou também substancial – em caso consulta visa salvaguardar. Só não é assim, na
de violação das normas legais e regulamentares prática, porque o legislador comina também com
que tutelam os interesses defendidos pelas enti- nulidade a desconformidade do acto de licencia-
dades consultadas. mento ou admissão de comunicação prévia com
Desde 1991, com um curto período de ex- os respectivos pareceres, aprovações e autoriza-
cepção no regime do licenciamento municipal ções das entidades externas. Significa isto, além
de obras particulares (13), que a legislação ur- do mais, que a inserção daquelas consultas no
banística portuguesa vem cominando com a âmbito do procedimento de controlo prévio da
nulidade os actos de licenciamento urbanístico operação urbanística tem como efeito automá-
praticados sem a prévia obtenção de pareceres, tico agravar o desvalor resultante da violação
aprovações ou autorizações legalmente exigí- das referidas normas (17).
veis, sobrevalorizando assim excessivamente a
preterição de uma formalidade cuja falta, por si
(14) A questão só não será líquida naqueles casos em
só, nada revela que justifique a radicalidade da que a aplicação das referidas normas legais e regulamen-
sanção imposta. tares envolva uma margem de livre apreciação e decisão
No entanto, a falta do «parecer» das entidades que apenas possa ser preenchida pela entidade consulta-
consultadas, em regra, não obstará à tutela dos da, em virtude do âmbito material das respectivas atribui-
ções e competências.
interesses materiais protegidos pela sua exigência
(15) É o caso, nomeadamente, dos planos de ordena-
legal, uma vez que o acto de licenciamento urba- mento dos parques naturais, cuja aplicação no âmbito de
nístico não deixará de ser inválido quando viole procedimentos de controlo prévio de operações urbanísti-
as normas legais e regulamentares que poderiam cas está a cargo das respectivas comissões directivas – cfr.
art. 68.°, alínea a), do Decreto-Lei n.° 555/99, na redacção
actual.
(13) O n.° 1 do art. 52.° do Decreto-Lei n.° 445/91, de 20 (16) O regime de nulidade de um acto de licenciamento
de Novembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto- que não foi precedido do parecer de uma entidade externa
-Lei n.° 250/94, de 15 de Outubro, sancionava com a mera não impede a renovação do acto se o parecer for entretanto
anulabilidade os actos de licenciamento que não fossem emitido, pelo que na prática a nulidade motivada por um
precedidos das consultas legalmente exigíveis. O referido vício de forma não é insanável.
diploma viria a vigorar, com esta redacção, até à entrada (17) Assim, por exemplo, a violação de uma disposi-
em vigor do Decreto-Lei n.° 555/99. ção do Regulamento de Segurança contra Incêndios gera
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Urbanismo e interesses públicos diferenciados
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pronunciar sobre a operação urbanística “em les casos em que, além de assegurar a referida
razão da sua localização”. É questionável, por função coordenadora, ela seja uma das entidades
exemplo, que nesse conceito se integrem todas encarregues de se pronunciar sobre a operação
as entidades encarregues da defesa de servidões urbanística em razão da localização, como su-
administrativas e outras restrições de utilidade cede em tão poucos casos.
pública, já que nem sempre o interesse público Por outro lado, e pelo contrário, porque é
que lhes está subjacente se define por referência claro que não é legalmente possível assegurar,
à localização da operação urbanística, podendo no âmbito de procedimentos de licenciamento
também atender ao seu tipo e natureza, ou à fi- urbanístico, a coordenação, articulação e com-
nalidade das suas construções (22). patibilização entre diferentes políticas públicas
Mas, principalmente, merece reserva a atri- sectoriais que apenas podem ser alcançadas no
buição às CCDR de uma função coordenadora âmbito do sistema de gestão territorial ou por
da intervenção de entidades da administração intervenção directa do legislador.
central nos procedimentos de controlo prévio Com efeito, não é possível reconduzir os in-
de operações urbanísticas, expressa através de teresses públicos diferenciados do Estado a um
único interesse público estadual, expresso nu-
uma “decisão global e vinculativa de toda a admi-
ma decisão global única e vinculativa de toda a
nistração central” (23).
administração central, porque aqueles interesses
Essa reserva é fundada em duas ordens dis-
relevam do procedimento na medida da sua ex-
tintas de razões.
pressão normativa e não da vontade da CCDR
Por um lado, porque não é claro que deva ser
ou da maioria das entidades consultadas.
atribuída esta função coordenadora e integrado-
Se, como se refere expressamente no n.° 6 do
ra de políticas públicas sectoriais diferenciadas
art. 13.°, aplicável a todas as consultas a entida-
– que porventura faria sentido numa estrutura
des externas, incluído as que são especialmente
autárquica regional legitimada democratica-
reguladas no art. 13.°-A, “os pareceres das entida-
mente – a um serviço desconcentrado de um mi-
des exteriores ao município só têm carácter vincula-
nistério encarregue de prosseguir directamente
tivo quando tal resulte de lei, desde que se fundamen-
algumas dessas políticas, nomeadamente, em
tem em condicionamentos legais ou regulamentares
matéria ambiental.
e sejam recebidos dentro do prazo”, como pode a
Não é, aliás, claro o papel das CCDR naque-
CCDR, individualmente ou através de uma con-
ferência decisória, exprimir uma opinião contra
(22) Basta pensar, por exemplo, que ao contrário do aqueles condicionamentos legais ou regulamen-
que sucede com obras realizadas em zona de protecção de
tares? Como podem, por exemplo, emitir uma
imóvel classificado, a intervenção do IGESPAR no âmbito
de obras nos próprios imóveis classificados ou em vias de
decisão favorável naqueles casos em que uma
classificação não é exigível em razão da sua localização, – mesmo que apenas uma – das entidades con-
mas sim dos interesses de protecção do património cultu- sultadas tenha exprimido uma posição negati-
ral nela implicados, relacionados com questões de estrutu- va fundada numa norma legal ou regulamentar
ra e de forma da edificação, que definem o valor artístico
imperativa, que obste ao licenciamento da ope-
ou arquitectónico do imóvel, independentemente da sua
localização. ração urbanística? E, inversamente, qual o valor
(23) Nos termos dos n.os 4 e do art. 13.°-A, aquela de- jurídico de uma decisão desfavorável que não
cisão é proferida pela CCDR territorialmente competente se fundamente num qualquer condicionamento
nos casos em que as posições das entidades consultadas
daquela natureza?
sejam convergentes. Se aquelas posições forem divergen-
Estas interrogações evidenciam que o le-
tes, a decisão passa a ser da competência conjunta de to-
das aquelas entidades através de uma conferência decisó- gislador confundiu os planos de actuação do
ria constituída de forma ad hoc. Estado.
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feita pela própria entidade consultada em fun- çadas no âmbito do sistema de gestão territorial
ção das circunstâncias do caso concreto, e não ou por intervenção directa do legislador.
representem uma vinculação legal estrita. Este equívoco legislativo acarreta graves
Dito por outras palavras, “quando a decisão consequências, quer para a celeridade da tra-
seja proferida em conferência decisória, os pareceres mitação daqueles procedimentos, quer para a
emitidos têm natureza não vinculativa” naqueles própria racionalidade do respectivo processo
casos em que consubstanciem actos opinativos de decisão.
em sentido próprio, ou decisões predominante- Para a celeridade da tramitação dos proce-
mente discricionárias da entidade consultada. dimentos, porque a intromissão das CCDR na
Mas não nos casos em que o próprio conteúdo fase de consultas representa uma carga buro-
do «parecer» está contido em lei ou regulamen- crática adicional, com a previsão de uma nova
to, e em que a perda da sua natureza vinculativa decisão interlocutória, precedida, em alguns
representaria uma degradação da força jurídica casos, da reunião e deliberação de um novo ór-
dessas disposições legais ou regulamentares. gão ad hoc.
Trata-se, no entanto, de uma solução que, em Para a racionalidade do respectivo processo
qualquer caso, deixa muito a desejar, porque im- de decisão, porque aquele regime introduz um
plica uma intromissão da conferência decisória, factor adicional de complexidade na gestão dos
e das diferentes entidades nela representadas, interesses públicos diferenciados do Estado, que
em domínios estranhos ao respectivo âmbito não deixará de se repercutir negativamente na
de atribuições e competências. Implica mesmo gestão das expectativas dos particulares, e, em
aceitar, ao arrepio de princípios gerais de orga- consequência, na tutela dos seus direitos subjec-
nização administrativa do Estado enraizados tivos e interesses legalmente protegidos.
na nossa tradição jurídica administrativa, uma Acresce que o saldo histórico do relaciona-
delegação tácita de competências das entidades mento entre as CCDR e as câmaras municipais,
consultas num órgão de uma pessoa colectiva no âmbito de procedimentos de licenciamento
ou ministério distinto. urbanístico, não oferece nenhuma garantia de
que aquela intervenção – que na maior parte
dos casos não estava anteriormente prevista a
IV. Conclusão nenhum título – não se fará com prejuízo dos
interesses urbanísticos próprios das populações
Ao prever a existência de uma decisão global locais de que os municípios são portadores.
e vinculativa de toda a administração central do O novo regime de consultas de entidades
Estado, o novo regime de consultas de entidades externas nos procedimentos de controlo prévio
externas nos procedimentos de controlo prévio das operações urbanísticas estabelecido pela Lei
das operações urbanísticas estabelecido pela Lei n.° 60/2007 constitui, por isso, uma clara regres-
n.° 60/2007 parte do pressuposto errado de que, são em relação ao regime anterior, contrarian-
naquele âmbito, é possível reconduzir os inte- do a sua ratio de simplificação administrativa
resses públicos diferenciados do Estado a um e aumentando de forma imprevisível os níveis
único interesse público estadual, exigindo que de insegurança jurídica dos particulares, e das
a CCDR territorialmente competente, ou uma próprias autarquias locais, contribuindo assim
conferência decisória de serviços constituída de para dificultar o funcionamento do sistema.
forma ad hoc, realize uma coordenação, articula-
ção e compatibilização entre diferentes políticas
públicas sectoriais que apenas podem ser alcan- Cláudio Monteiro