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Direito Regional e Local n.

° 04 • Outubro/Dezembro 2008

Urbanismo e interesses públicos


diferenciados
O novo regime de consultas a entidades externas nos procedimentos
de controlo prévio das operações urbanísticas

I. Planeamento municipal e interesses pú- público urbanístico quantas as políticas públi-


blicos diferenciados do Estado cas sectoriais com incidência sobre o território,
ainda que nenhuma delas com ele se confunda,
Os planos municipais de ordenamento do e todas devam ser por ele integradas, na medida
território projectam a sua disciplina sobre todo em que isso resulte num aproveitamento óptimo
o território do Município, cujo aproveitamen- dos solos urbanos (2).
to óptimo resulta da ponderação de múltiplos Cabe ao Direito do Urbanismo, essencial-
interesses, públicos e privados, e não apenas mente através de instrumentos de planeamen-
da contraposição clássica entre os direitos dos to, e no quadro do sistema de gestão territorial,
proprietários privados de terrenos e edifícios e estabelecer os mecanismos de ponderação dos
um interesse abstracto e omnipresente à ordem vários interesses inerentes ao aproveitamento
pública, hoje quase imperceptível na actividade urbanístico do território, por forma a garantir o
urbanística. correcto ordenamento da sua ocupação, utiliza-
Não existe, no quadro legislativo actual, um ção e transformação (3).
interesse público urbanístico uno e indivisível
que se possa extrair directamente da lei e con-
(2) Não interessarão à administração urbanística, por
trapor aos interesses privados dos cidadãos. exemplo, os problemas relativos ao abastecimento ener-
Aquele interesse é o resultado da ponderação de gético de um determinado aglomerado urbano, que re-
um conjunto díspar de interesses fragmentados, levam ou das atribuições específicas de outras entidades
públicas, ou do exercício de competências materialmente
distintos não apenas na sua materialidade como
diferenciadas. Mas já a decisão sobre a localização de uma
também na sua titularidade (1). central de energia eléctrica constitui inquestionavelmente
Existem, sim, diferentes perspectivas do in- uma decisão com relevância urbanística, na medida que
teresse público urbanístico, em que cada uma implica a afectação de uma parcela do território a um
fim específico, com eventual prejuízo de usos alternati-
das entidades que intervém no processo urba-
vos a que poderia ser afecta esta mesma parcela, ou com
no vê esse interesse comum pelo prisma do seu consequências negativas para o ordenamento do território
próprio interesse pessoal ou estatutário. Há, por urbano, globalmente considerado. Daí que a localização
isso, também, tantas perspectivas do interesse ideal da referida central, na perspectiva da política de
abastecimento energético do aglomerado, não coincida
necessariamente com a solução correcta do ponto de vista
urbanístico. Sobre
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esta matéria vide, em especial, Vicenzo
(1) Cfr. Pierre Moor, “La mise en oeuvre du droit de l’amé- Cerulli Irelli, “Pianificazione urbanistica e interesse dife-
nagement du territoire”, in Heinz Aemisegger, Alfred Kutler, renziati”, in Rivista trimestrale di diritto pubblico, 1985, n.° 2,
Pierre Moor e Alexander Ruch, Kommentar zum Bundesge- pp. 386 e segs.
setz über die Raumplanung (Commentaire de la loi fédérale sur (3) Cfr. arts. 5.°, alínea c), e 7.°, n.° 1, da Lei de Bases
l’aménagement du territoire), Zurique, 1999, pp. 84-99. da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo


Urbanismo e interesses públicos diferenciados

É assim através da ponderação de interesses II. A tutela de interesses públicos diferen-


que toda a actividade de planeamento pressupõe ciados no âmbito de procedimentos de controlo
que deverão ser dirimidos quaisquer conflitos prévio de operações urbanísticas
que possam surgir entre o Estado e as autar-
quias locais a propósito do aproveitamento ur- 2. De acordo com a lógica do sistema descrito,
banístico correcto de uma determinada parcela a tutela de interesses públicos diferenciados do
de território. Estado no âmbito de procedimentos de controlo
De facto, os planos municipais propõem-se prévio das operações urbanísticas resumir-se-ia
obter um aproveitamento óptimo dos solos, pe- a uma simples operação de subsunção, que se
lo que constituem um instrumento idóneo para esgota na verificação da conformidade do pro-
– directamente ou através da recepção das gran- jecto a realizar com o plano.
des opções de política de ordenamento do terri- Idealmente, o interesse público urbanístico
tório estabelecidas em instrumentos de gestão expresso pelo plano resultaria já da ponderação
territorial de âmbito regional ou nacional (4) – desses interesses públicos diferenciados, e da
assegurar a compatibilização de todos os inte- sua compatibilização recíproca, pelo que nada
resses que incidem na sua área de intervenção, mais restaria a dirimir em sede da aprovação
incluindo os interesses públicos sectoriais de que dos projectos das correspondentes operações
são portadores os entes públicos estaduais (5). urbanísticas.
Tais interesses, que na linha da doutrina ita- Na prática, porém, isso quase nunca aconte-
liana designamos por interesses públicos dife- ce, ou por falta de plano, ou falta de densidade
renciados do Estado, não se confundem com o do plano existente para acautelar interesses que
interesse público urbanístico em sentido estri- apenas as soluções de projecto permitem avaliar,
to, de âmbito local, e são ponderados na exacta ou porque o legislador entendeu dever excluir
medida em que se projectam sobre o território determinado interesse do âmbito da ponderação
municipal, para que os diversos usos possíveis feita no plano, atribuindo-lhe uma relevância
deste sejam compatibilizados com os interesses autónoma no procedimento de controlo prévio
próprios das respectivas populações (6). da respectiva operação urbanística, e consequen-
temente um valor jurídico reforçado.
Assim, em muitos casos, a nossa legislação
urbanística sujeita a realização de operações
urbanísticas à prévia obtenção de pareceres,
aprovações ou autorizações prévias de diferen-
tes serviços da administração central, directa ou
(LBPOTU), aprovada pela Lei n.° 48/98, de 11 de Agosto,
indirecta, do Estado, exigíveis ora em função
e arts. 8.° e segs. do Regime Jurídico dos Instrumentos de
Gestão Territorial (RJIGT), aprovado pelo Decreto-Lei n.° do tipo ou natureza das operações a realizar,
380/99, de 22 de Setembro. atendendo nomeadamente ao destino a dar às
(4) Cfr. art. 24.° do Decreto-Lei n.° 380/99. edificações e demais construções nela previstas,
(5) Neste sentido, os interesses urbanísticos tutelados
ora em função da sua localização (7).
pelo plano também se podem qualificar como interesses
gerais, por contraposição à especificidade material dos
múltiplos interesses públicos diferenciados que incidem
no território municipal – cfr. Vicenzo Cerulli Irelli, “Pia-
nificazione urbanistica e interesse diferenziati”, cit., pp. (7) Cfr. arts. 13.°, 13.°-A, 13.°-B, 15.° e 37.° a 39.° do De-
387-388. creto-Lei n.° 555/99, de 16 de Dezembro, com a redacção
(6) Cfr. Vicenzo Cerulli Irelli, “Pianificazione urbani- que actualmente lhe é dada pela Lei n.° 60/2007, de 4 de
stica e interesse diferenziati”, cit. Setembro.


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Essa intervenção da administração central que o necessário à apreciação dos projectos – o


pode constituir o objecto de um procedimento «guichet único» dificulta a comunicação entre o
autorizatório autónomo, se a complexidade do particular e a Administração, já que raramente
projecto ou da sua apreciação assim o justifica- o seu interlocutor é o titular do interesse que
rem (8), mas pode também ser feita incidental- condiciona a decisão (11). É frequente, até, que a
mente, no âmbito do próprio procedimento de câmara municipal decida contra os seus próprios
controlo prévio da correspondente operação interesses, vinculada por um parecer negativo
urbanística (9). ou pela recusa de uma aprovação ou autorização
No primeiro caso, temos um sistema de «gui- devida por uma entidade externa.
chets múltiplos», em que o particular tem de Acresce que não é possível tratar os “pare-
«correr todas as capelinhas», relacionando-se ceres, aprovações e autorizações” de entidades
com as diferentes entidades para obter de cada da Administração Central da mesma forma, sem
uma delas o acto permissivo ou autorizatório distinguir a natureza da intervenção e a relevân-
necessário para realizar a operação urbanística cia dos interesses envolvidos. Em alguns casos,
e desenvolver a actividade correspondente. No como por exemplo no licenciamento de empreen-
segundo caso, temos o sistema de «guichet úni- dimentos turísticos, em que está em causa a
co», em que o particular se relaciona com uma aprovação do projecto pelo Turismo de Portugal,
única entidade, em regra o Município, que por a consulta é quase mais importante do que o pró-
sua vez age como sua interlocutora perante as prio procedimento de licenciamento urbanístico,
restantes (10). já que aquela decisão pressupõe a verificação
do cumprimento dos requisitos específicos que
3. Nos últimos anos, temos assistido a uma a legislação turística impõe a este tipo de em-
progressiva municipalização dos procedimentos preendimentos, em geral mais exigentes do que
autorizatórios destinados a ponderar interesses as prescrições constantes dos planos municipais
diferenciados do Estado, no pressuposto de que de ordenamento do território aplicáveis (12).
o sistema de «guichet único» constitui um factor Isso explica que, na maior parte dos casos,
de simplificação administrativa e deve, por isso, não estamos perante um parecer – um acto me-
ser privilegiado. ramente opinativo – mas perante uma verda-
A experiência revela, contudo, que o «gui- deira e própria decisão proferida no âmbito de
chet único» não diminui, e até aumenta, a bu- um subprocedimento autónomo, cujo desfecho
rocracia, não sendo um sistema feliz em todas favorável constitui um pressuposto e um requi-
as circunstâncias. Além de criar um circuito sito de validade do acto de licenciamento, ou de
burocrático de circulação de informação entre qualquer outro acto de controlo prévio da ope-
entidades públicas – um vai e vem constante de ração urbanística.
ofícios e processos que consome mais tempo do Não é fácil, contudo, absorver no regime de
invalidade dos actos de licenciamento urbanísti-

(8) Cfr. arts. 37.° a 39.° do Decreto-Lei n.° 555/99. (11) Foi, por isso, necessário prever na lei a possibilida-
(9) Cfr. arts. 13.°, 13.°-A e 13.°-B do Decreto-Lei n.° de de o particular se substituir à Câmara na relação com
555/99. aquelas entidades, promovendo directamente as consul-
(10) Sobre estes dois modelos alternativos de estrutura- tas, matéria que aliás sofreu recentemente um grande im-
ção dos procedimentos de licenciamento, vide o relatório pulso com a Lei n.° 60/2007 que estabeleceu no seu art.
do Conselho de Estado francês sobre a reforma da legisla- 13.°-B um regime de consultas prévias.
ção urbanística – Conseil d’Etat, L’urbanisme: pour un droit (12) Ver Decreto-Lei n.° 39/2008, de 7 de Março, e legis-
plus efficace. La documentation française, Paris, 1992. lação complementar.


Urbanismo e interesses públicos diferenciados

co os efeitos decorrentes da inserção no respecti- fundamentar uma decisão negativa vinculada (14).
vo procedimento administrativo de um subpro- Nalguns casos, até, a lei comina a violação daque-
cedimento decisório autónomo, tanto mais que las normas com a nulidade, como acontece com
normalmente são consultadas mais do que uma a violação de planos especiais de ordenamento
entidade e qualquer dessas consultas pode pre- do território (15), pelo que a invalidade formal
judicar o licenciamento da operação urbanística, do acto de licenciamento é consumida pela sua
ou a admissão da sua comunicação prévia. ilegalidade material, que além de ser insanável
É necessário, desde logo, clarificar os efeitos impede também a repetição do acto (16).
da falta de consulta ou de decisão das entida- Note-se, a este propósito, o absurdo que se
des consultadas, quer quanto à sequência da verifica nos casos em que a violação daquelas
tramitação do procedimento, quer sobretudo normas legais e regulamentares gera normal-
quanto à validade do acto final de licenciamen- mente a mera anulabilidade dos actos que com
to. É sobretudo necessário distinguir o regime elas não se conformem. Nesses casos, a falta de
de invalidade consoante a natureza do vício se- promoção da consulta ou de resposta à mesma
ja meramente formal – a ausência de consulta tem uma sanção mais forte do que teria a vio-
ou a falta do respectivo parecer, aprovação ou lação directa das normas cuja efectividade a
autorização – ou também substancial – em caso consulta visa salvaguardar. Só não é assim, na
de violação das normas legais e regulamentares prática, porque o legislador comina também com
que tutelam os interesses defendidos pelas enti- nulidade a desconformidade do acto de licencia-
dades consultadas. mento ou admissão de comunicação prévia com
Desde 1991, com um curto período de ex- os respectivos pareceres, aprovações e autoriza-
cepção no regime do licenciamento municipal ções das entidades externas. Significa isto, além
de obras particulares (13), que a legislação ur- do mais, que a inserção daquelas consultas no
banística portuguesa vem cominando com a âmbito do procedimento de controlo prévio da
nulidade os actos de licenciamento urbanístico operação urbanística tem como efeito automá-
praticados sem a prévia obtenção de pareceres, tico agravar o desvalor resultante da violação
aprovações ou autorizações legalmente exigí- das referidas normas (17).
veis, sobrevalorizando assim excessivamente a
preterição de uma formalidade cuja falta, por si
(14) A questão só não será líquida naqueles casos em
só, nada revela que justifique a radicalidade da que a aplicação das referidas normas legais e regulamen-
sanção imposta. tares envolva uma margem de livre apreciação e decisão
No entanto, a falta do «parecer» das entidades que apenas possa ser preenchida pela entidade consulta-
consultadas, em regra, não obstará à tutela dos da, em virtude do âmbito material das respectivas atribui-
ções e competências.
interesses materiais protegidos pela sua exigência
(15) É o caso, nomeadamente, dos planos de ordena-
legal, uma vez que o acto de licenciamento urba- mento dos parques naturais, cuja aplicação no âmbito de
nístico não deixará de ser inválido quando viole procedimentos de controlo prévio de operações urbanísti-
as normas legais e regulamentares que poderiam cas está a cargo das respectivas comissões directivas – cfr.
art. 68.°, alínea a), do Decreto-Lei n.° 555/99, na redacção
actual.
(13) O n.° 1 do art. 52.° do Decreto-Lei n.° 445/91, de 20 (16) O regime de nulidade de um acto de licenciamento
de Novembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto- que não foi precedido do parecer de uma entidade externa
-Lei n.° 250/94, de 15 de Outubro, sancionava com a mera não impede a renovação do acto se o parecer for entretanto
anulabilidade os actos de licenciamento que não fossem emitido, pelo que na prática a nulidade motivada por um
precedidos das consultas legalmente exigíveis. O referido vício de forma não é insanável.
diploma viria a vigorar, com esta redacção, até à entrada (17) Assim, por exemplo, a violação de uma disposi-
em vigor do Decreto-Lei n.° 555/99. ção do Regulamento de Segurança contra Incêndios gera


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III. O novo regime de consultas a entida- sultas no âmbito de procedimentos de comuni-


des externas ao Município estabelecido pela cação prévia (18).
Lei n.° 60/2007 A exigência de consultas externas, no âmbito
de procedimentos de comunicação prévia, que
4. É neste quadro teórico, já de si problemá- é corroborada pela nova redacção do n.° 2 do
tico, que o novo regime de consultas a entida- art. 36.°, constitui uma alteração significativa
des externas ao Município definido pela Lei n.° em relação ao anterior procedimento de auto-
60/2007, de 4 de Setembro, deve ser analisado. rização, no âmbito do qual as mesmas estavam
Nessa análise devemos ter presente também expressamente dispensadas pela redacção inicial
que o móbil da reforma introduzida por aquele do n.° 2 do art. 28.°.
diploma no regime jurídico da urbanização e Não se compreende a razão de ser da exigên-
da edificação foi a simplificação dos procedi- cia de consultas a entidades externas em proce-
mentos de licenciamento urbanístico, ou mais dimentos de comunicação prévia. A dispensa de
genericamente dos procedimentos de controlo consultas a entidades externas em procedimen-
administrativo sobre a realização de operações tos de autorização assentava no pressuposto de
urbanísticas, pelo que, pelas razões que já apon- que aquela forma de procedimento era reserva-
támos, isso coloca o regime de consultas no cerne da para operações urbanísticas que já haviam
das suas preocupações. sido anteriormente objecto de apreciação no mo-
Para alcançar esse objectivo, a Lei n.° 60/2007 mento da aprovação dos respectivos planos de
introduziu no Decreto-Lei n.° 555/99 dois novos pormenor ou operações de loteamento urbano,
artigos – os arts. 13.°-A (Parecer, aprovação ou no âmbito do qual a generalidade das entidades
autorização de localização) e 13.°-B (Consultas interessadas já se havia pronunciado, ou para
prévias) –, tendo ainda procedido à alteração e operações com menor relevância urbanística,
à re-sistematização do anterior art. 19.°, sobre que não justificam um controlo com a mesma
consultas a entidades exteriores ao município intensidade.
no âmbito de procedimentos de licenciamento, Ora, o novo procedimento de comunicação
agora transformado em art. 13.° (Consultas a prévia é um sucedâneo do anterior procedimen-
entidades externas). to de autorização com o qual mantém mais pon-
A mudança da sistemática é, aliás, a primeira tos de contacto do que com o anterior procedi-
alteração digna de registo nesta matéria, já que, mento de comunicação prévia, nomeadamente
ao inserir o regime de consultas a entidades ex- ao nível do respectivo âmbito material de apli-
ternas na Subsecção I da Secção II, dedicada às cação, pelo que se mantêm no essencial válidos
disposições gerais das formas de procedimento,
a Lei n.° 60/2007 transformou aquele regime no
regime comum de consultas a entidades exter- (18) A sistemática do preceito, bem como o disposto no
nas, aplicável quer às consultas no âmbito de n.° 7 do art. 13.°, sugerem também que aquele artigo cons-
procedimentos de licenciamento, quer às con- titui o regime comum das consultas a entidades externas
em qualquer das fases do procedimento de licenciamento,
aplicando-se indistintamente, consoante se trate de licen-
ciamento de operações de loteamento urbano ou de obras
a mera anulabilidade do acto de licenciamento, quando de edificação, às consultas no âmbito da aprovação do
aplicada directamente pela Câmara Municipal, nomea- projecto de loteamento ou de arquitectura e às consultas
damente nos casos em que os bombeiros são um serviço no âmbito da aprovação dos projectos de obras de urbani-
municipal, mas pode gerar a sua nulidade, quando cons- zação ou das especialidades. E aplicando-se também, por
titua o fundamento de um parecer negativo emitido pelo remissão expressa do art. 15.°, aos respectivos pedidos de
Serviço Nacional de Bombeiros. informação prévia.


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os fundamentos daquela dispensa (19). Estado, pois, como veremos, a tramitação e a


Neste caso, até, as consultas externas têm decisão do procedimento saem da esfera muni-
maior impacto na tramitação e decisão do pro- cipal e passam a ser controladas pela Comissão
cedimento de comunicação prévia do que teriam de Coordenação e Desenvolvimento Regional
no de autorização, tendo em conta que, em con- (CCDR) territorialmente competente, através
dições normais, a admissão daquela comunica- do subprocedimento previsto no art. 13.°-A, cuja
ção não pressupõe qualquer acto de instrução, carga burocrática é, ela própria, maior do que a
e muito menos ainda uma decisão expressa do prevista na lei para o próprio procedimento de
presidente da câmara municipal. Neste contexto, comunicação prévia.
a exigência de consulta é no mínimo um factor Nessa medida, a Lei n.° 60/2007 constitui
de insegurança, já que, na falta de um acto de claramente uma regressão em relação ao regi-
rejeição da sua admissão no prazo de 20 dias, me anterior, contrariando assim a sua ratio de
permanece a dúvida sobre se aquelas eram ou simplificação administrativa.
não exigíveis, podendo ser, inclusive, um factor
de bloqueio, se for claro que essas consultas são 5. É precisamente o novo regime de consultas
de entidades da administração central, directa
exigíveis e as mesmas não forem promovidas (20).
ou indirecta, do Estado que suscita as maiores
Aquele impacto é ainda maior quando as
dificuldades interpretativas, e merece as maio-
consultas tenham de ser feitas a entidades da
res reservas.
administração central, directa ou indirecta, do
Merece reserva, desde logo, a epígrafe do art.
13.°-A – “Parecer, aprovação ou autorização de lo-
(19) Aquela dispensa revelou-se no entanto problemáti- calização” – que é susceptível de gerar confusão
ca em algumas situações em que a consulta se justifica em com o regime das operações urbanísticas cujo
função de detalhes de projecto que não podiam ter sido
projecto carece de aprovação da administração
objecto de apreciação no âmbito da aprovação dos respec-
tivos planos de pormenor ou operações de loteamento ur- central, previstos nos arts. 37.° a 39.°. Confron-
bano, como as relativas à protecção do património cultu- tando, no entanto, o corpo do n.° 1 do art. 13.°-
ral ou à segurança contra incêndios. Isso não impedia, no -A com o disposto nesses artigos, parece possí-
entanto, que naqueles casos em que a consulta se justifi- vel estabelecer a distinção entre os pareceres,
casse a mesma fosse prevista em legislação especial, como
aprovações e autorizações inseridos no âmbito
acontecia, por exemplo, na anterior legislação relativa a
empreendimentos turísticos, constante do Decreto-Lei n.° de procedimentos de controlo prévio de ope-
167/97, de 4 de Julho, com a redacção que lhe deu o Decre- rações urbanísticas e os que são emitidos num
to-Lei n.° 55/2002, de 11 de Março. procedimento prévio e autónomo em relação ao
(20) Como vimos, a Lei n.° 60/2007 manteve a possibi-
procedimento de licenciamento ou admissão de
lidade de o particular promover previamente as consultas,
mas não previu nenhum mecanismo que permita ultrapas-
comunicação prévia (21).
sar a inércia da Administração nos casos em que essas con- Merece também reserva a relativa indefini-
sultas são feitas no próprio procedimento. Não há sequer ção com que é delimitado o respectivo âmbito
um prazo estabelecido para o gestor do procedimento as de aplicação, já que não é inteiramente claro o
promover. Há apenas um prazo para a CCDR as promover
que se deva entender por entidade que se deva
quando alguma entidade da administração central se deva
pronunciar (art. 13.°-A, n.° 2), mas mesmo nesses casos não
há um prazo para a câmara remeter os elementos à CCDR (21) Estes procedimentos também não se confundem
(art. 13.°, n.° 2). E, em qualquer dos dois casos, a falta de com as consultas prévias previstas no art. 13.°-B, que sen-
promoção das consultas dentro de determinado prazo não do prévia não são no entanto autónomas do procedimento
tem como efeito automático o início da contagem do prazo de controlo prévio das operações urbanísticas a que res-
para as entidades se pronunciarem, que fica assim depen- peitam. Excepto quanto à iniciativa, aquelas consultas têm
dente da efectiva disponibilização do processo (arts. 13.°, a mesma natureza e efeitos das consultas a entidades ex-
n.° 4, e 13.°-A, n.° 3). ternas realizadas nos termos dos arts. 13.° e 13.°-A.


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pronunciar sobre a operação urbanística “em les casos em que, além de assegurar a referida
razão da sua localização”. É questionável, por função coordenadora, ela seja uma das entidades
exemplo, que nesse conceito se integrem todas encarregues de se pronunciar sobre a operação
as entidades encarregues da defesa de servidões urbanística em razão da localização, como su-
administrativas e outras restrições de utilidade cede em tão poucos casos.
pública, já que nem sempre o interesse público Por outro lado, e pelo contrário, porque é
que lhes está subjacente se define por referência claro que não é legalmente possível assegurar,
à localização da operação urbanística, podendo no âmbito de procedimentos de licenciamento
também atender ao seu tipo e natureza, ou à fi- urbanístico, a coordenação, articulação e com-
nalidade das suas construções (22). patibilização entre diferentes políticas públicas
Mas, principalmente, merece reserva a atri- sectoriais que apenas podem ser alcançadas no
buição às CCDR de uma função coordenadora âmbito do sistema de gestão territorial ou por
da intervenção de entidades da administração intervenção directa do legislador.
central nos procedimentos de controlo prévio Com efeito, não é possível reconduzir os in-
de operações urbanísticas, expressa através de teresses públicos diferenciados do Estado a um
único interesse público estadual, expresso nu-
uma “decisão global e vinculativa de toda a admi-
ma decisão global única e vinculativa de toda a
nistração central” (23).
administração central, porque aqueles interesses
Essa reserva é fundada em duas ordens dis-
relevam do procedimento na medida da sua ex-
tintas de razões.
pressão normativa e não da vontade da CCDR
Por um lado, porque não é claro que deva ser
ou da maioria das entidades consultadas.
atribuída esta função coordenadora e integrado-
Se, como se refere expressamente no n.° 6 do
ra de políticas públicas sectoriais diferenciadas
art. 13.°, aplicável a todas as consultas a entida-
– que porventura faria sentido numa estrutura
des externas, incluído as que são especialmente
autárquica regional legitimada democratica-
reguladas no art. 13.°-A, “os pareceres das entida-
mente – a um serviço desconcentrado de um mi-
des exteriores ao município só têm carácter vincula-
nistério encarregue de prosseguir directamente
tivo quando tal resulte de lei, desde que se fundamen-
algumas dessas políticas, nomeadamente, em
tem em condicionamentos legais ou regulamentares
matéria ambiental.
e sejam recebidos dentro do prazo”, como pode a
Não é, aliás, claro o papel das CCDR naque-
CCDR, individualmente ou através de uma con-
ferência decisória, exprimir uma opinião contra
(22) Basta pensar, por exemplo, que ao contrário do aqueles condicionamentos legais ou regulamen-
que sucede com obras realizadas em zona de protecção de
tares? Como podem, por exemplo, emitir uma
imóvel classificado, a intervenção do IGESPAR no âmbito
de obras nos próprios imóveis classificados ou em vias de
decisão favorável naqueles casos em que uma
classificação não é exigível em razão da sua localização, – mesmo que apenas uma – das entidades con-
mas sim dos interesses de protecção do património cultu- sultadas tenha exprimido uma posição negati-
ral nela implicados, relacionados com questões de estrutu- va fundada numa norma legal ou regulamentar
ra e de forma da edificação, que definem o valor artístico
imperativa, que obste ao licenciamento da ope-
ou arquitectónico do imóvel, independentemente da sua
localização. ração urbanística? E, inversamente, qual o valor
(23) Nos termos dos n.os 4 e do art. 13.°-A, aquela de- jurídico de uma decisão desfavorável que não
cisão é proferida pela CCDR territorialmente competente se fundamente num qualquer condicionamento
nos casos em que as posições das entidades consultadas
daquela natureza?
sejam convergentes. Se aquelas posições forem divergen-
Estas interrogações evidenciam que o le-
tes, a decisão passa a ser da competência conjunta de to-
das aquelas entidades através de uma conferência decisó- gislador confundiu os planos de actuação do
ria constituída de forma ad hoc. Estado.


Urbanismo e interesses públicos diferenciados

Como vimos anteriormente, é através dos todas as entidades consultadas se pronunciarem


instrumentos de gestão territorial, e não do li- favoravelmente, a «decisão» da CCDR não pode
cenciamento das respectivas operações urbanís- delas divergir – pelo menos não em termos que
ticas de execução, que o Estado deve procurar vinculem a câmara municipal a indeferir o pe-
assegurar a coordenação entre políticas públicas dido ou rejeitar a admissão da comunicação –,
com incidência territorial. excepto se essa decisão for fundada ela própria
Na elaboração dos instrumentos de gestão num condicionamento legal ou regulamentar,
territorial de âmbito regional ou nacional, o Es- nos termos do n.° 6 do art. 13.°. Se o parecer de
tado deve, por isso, dispor de uma margem de alguma delas for negativo, por exemplo, por-
liberdade suficientemente ampla para introduzir que a lei exige o respeito por uma servidão ad-
ordem e racionalidade no aproveitamento do ministrativa ou por uma restrição de utilidade
território e realizar a composição adequada dos pública, a mesma lei não consente qualquer ou-
interesses que sobre ele incidem. E deve dispor tra «decisão» que não inviabilize a realização da
também dos instrumentos jurídicos adequados operação urbanística em causa, pelo que é inútil
para reflectir essa composição de interesses no convocar uma conferência decisória.
planeamento municipal, dando-lhes projecção
Pretender que a decisão proferida em confe-
e eficácia jurídica externa.
rência decisória pode sobrepor-se ao valor ju-
Diversamente, no licenciamento das opera-
rídico dos pareceres emitidos por cada um dos
ções urbanísticas, ou na admissão da sua comu-
seus membros, retirando-lhe força vinculativa,
nicação prévia, aquilo que se pede às entidades
como sugere uma interpretação menos cuida-
da administração central consultadas não é que
da do n.° 9 do art. 13.°, é ignorar que a Cons-
exprimam uma opinião sobre se a sua realização
tituição não permite “a actos de outra natureza o
é ou não adequada à satisfação dos respectivos
poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,
interesses, mas que acautelem que essa realiza-
modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus
ção não os ofenda, sempre que eles sejam mere-
preceitos” (24).
cedores de uma protecção legal ou regulamentar
Ora, retirar a força vinculativa dos pareceres
específica.
emitidos não é uma mera operação de «desclas-
As entidades que se devem pronunciar so-
sificação» daqueles pareceres; é também, por
bre as operações urbanísticas em razão da sua
localização não dispõem da mesma margem de força do regime estabelecido no n.° 6 do referido
livre apreciação e decisão de que gozam as enti- art. 13.°, uma operação de «desvinculação» da
dades responsáveis pelo planeamento, pelo que operação urbanística das normas legais e regu-
não podem exigir ou transigir na composição lamentares que fundamentaram a sua emissão.
dos interesses públicos diferenciados do Estado É, por isso, manifestamente, uma operação in-
implicados na sua realização. Essa composição constitucional, e portanto inadmissível, sempre
é aquela que resulta dos instrumentos de ges- que dela resulte uma decisão global que não
tão territorial vinculativos para os particulares respeite aquelas vinculações.
e, na falta deles, ou mesmo para além deles, da Numa interpretação conforme à Constituição
hierarquia de interesses definida pelo próprio do n.° 9 do art. 13.°-A, aceita-se que deixem de
legislador. Não é a composição de interesses ter natureza vinculativa aqueles pareceres que
que a CCDR ou a conferência decisória logrem exprimem condicionamentos legais e regula-
alcançar no caso concreto. mentares abertos, i.e., cuja integração deva ser
Nesse contexto, não se vislumbra qual seja o
conteúdo «decisório» que a CCDR pode acres- (24) Cfr. art. 112.°, n.° 5, da Constituição da República
centar à pronúncia das entidades consultadas. Se Portuguesa.


Direito Regional e Local n.° 04 • Outubro/Dezembro 2008

feita pela própria entidade consultada em fun- çadas no âmbito do sistema de gestão territorial
ção das circunstâncias do caso concreto, e não ou por intervenção directa do legislador.
representem uma vinculação legal estrita. Este equívoco legislativo acarreta graves
Dito por outras palavras, “quando a decisão consequências, quer para a celeridade da tra-
seja proferida em conferência decisória, os pareceres mitação daqueles procedimentos, quer para a
emitidos têm natureza não vinculativa” naqueles própria racionalidade do respectivo processo
casos em que consubstanciem actos opinativos de decisão.
em sentido próprio, ou decisões predominante- Para a celeridade da tramitação dos proce-
mente discricionárias da entidade consultada. dimentos, porque a intromissão das CCDR na
Mas não nos casos em que o próprio conteúdo fase de consultas representa uma carga buro-
do «parecer» está contido em lei ou regulamen- crática adicional, com a previsão de uma nova
to, e em que a perda da sua natureza vinculativa decisão interlocutória, precedida, em alguns
representaria uma degradação da força jurídica casos, da reunião e deliberação de um novo ór-
dessas disposições legais ou regulamentares. gão ad hoc.
Trata-se, no entanto, de uma solução que, em Para a racionalidade do respectivo processo
qualquer caso, deixa muito a desejar, porque im- de decisão, porque aquele regime introduz um
plica uma intromissão da conferência decisória, factor adicional de complexidade na gestão dos
e das diferentes entidades nela representadas, interesses públicos diferenciados do Estado, que
em domínios estranhos ao respectivo âmbito não deixará de se repercutir negativamente na
de atribuições e competências. Implica mesmo gestão das expectativas dos particulares, e, em
aceitar, ao arrepio de princípios gerais de orga- consequência, na tutela dos seus direitos subjec-
nização administrativa do Estado enraizados tivos e interesses legalmente protegidos.
na nossa tradição jurídica administrativa, uma Acresce que o saldo histórico do relaciona-
delegação tácita de competências das entidades mento entre as CCDR e as câmaras municipais,
consultas num órgão de uma pessoa colectiva no âmbito de procedimentos de licenciamento
ou ministério distinto. urbanístico, não oferece nenhuma garantia de
que aquela intervenção – que na maior parte
dos casos não estava anteriormente prevista a
IV. Conclusão nenhum título – não se fará com prejuízo dos
interesses urbanísticos próprios das populações
Ao prever a existência de uma decisão global locais de que os municípios são portadores.
e vinculativa de toda a administração central do O novo regime de consultas de entidades
Estado, o novo regime de consultas de entidades externas nos procedimentos de controlo prévio
externas nos procedimentos de controlo prévio das operações urbanísticas estabelecido pela Lei
das operações urbanísticas estabelecido pela Lei n.° 60/2007 constitui, por isso, uma clara regres-
n.° 60/2007 parte do pressuposto errado de que, são em relação ao regime anterior, contrarian-
naquele âmbito, é possível reconduzir os inte- do a sua ratio de simplificação administrativa
resses públicos diferenciados do Estado a um e aumentando de forma imprevisível os níveis
único interesse público estadual, exigindo que de insegurança jurídica dos particulares, e das
a CCDR territorialmente competente, ou uma próprias autarquias locais, contribuindo assim
conferência decisória de serviços constituída de para dificultar o funcionamento do sistema.
forma ad hoc, realize uma coordenação, articula-
ção e compatibilização entre diferentes políticas
públicas sectoriais que apenas podem ser alcan- Cláudio Monteiro

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