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0 atraso econômico em perspectiva histórica

Talvez valha a pena explicar a opção por fazer uma


abordagem
histórica dos problemas atuais. Ao contrário de muitos
de seus
predecessores, os historiadores modernos já não anunc
iam ao
mundo o que acontecerá ou o que idealmente deveria
acontecer.
Tornamo-nos modestos. Era fatal que o fervor profético
desapa-
recesse junto da confiança infantil em uma compreensão
perfeita
do passado, cujo fluxo seria determinado por uma lei
histórica
de excepcional simplicidade e generalidade. Entre a asserti
va de
Sêneca sobre a absoluta certeza de nosso conhecimento
do passa-
do e a descrição que Goethe fez da história como um livro eterna-
mente trancado a sete chaves, entre 0 omnia certa sunt de um
e O
ignorabimus do outro, o moderno relativismo histórico move-se
com cautela. Os historiadores modernos reconhecem plena
mente
que a compreensão do passado — o que o passado em si, forços
a-
mente, significa — está em perpétua mudança, conforme a ênfase,
O interesse e o ponto de vista do historiador. Já não se busca uma
determinação ubíqua e invariável do curso dos eventos human
os,
como a do curso dos planetas. A necessidade férrea dos proces
-
sos históricos foi descartada. Mas, junto ao que John Stuart
Mill
chamou de “escravidão das circunstâncias antecedentes” demo-
liram-se as grandes pontes entre passado e futuro nas quais
a
Mente oitocentista transitava, segura e confia
nte.
Significa isso que a história não pode dar nenhuma contribui-
São para compreendermos os problemas atuais? A investigação

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2"
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

histórica consiste, em essência, em aplicar ao material empírico


vários conjuntos de generalizações hipotéticas e testar o encaixe
resultante, na esperança de que, dessa maneira, certas uniformi.
dades, situações típicas e relações entre fatores individuais dessas
situações possam ser comprovadas. Nada disso se presta a extra-
polações fáceis. Tudo que se pode almejar é extrair, do imenso
reservatório do passado, conjuntos de perguntas inteligentes que
possam ser formuladas a temas atuais. A importância dessa con-
tribuição não deve ser exagerada, mas também não deve ser subes-
timada. A qualidade de nossa compreensão dos problemas de hoje
depende, em grande parte, da abrangência do nosso quadro de
referência. A insularidade limita a compreensão. Mas a insulari-
dade no pensar não é apanágio de nenhuma área especial. Além
disso, é não apenas um problema espacial, mas também temporal.
Em política econômica, as decisões dizem respeito a combinações
de diversos fatores relevantes. E a contribuição do historiador
consiste em apontar para fatores potencialmente relevantes e para
combinações potencialmente significativas entre eles, as quais não
poderiam ser percebidas com facilidade numa esfera de experiên-
cia mais restrita. Estas são as perguntas. As respostas são outra
história. Nenhuma experiência passada, por mais rica que seja, €
nenhuma pesquisa histórica, por mais minuciosa que se mostre,
podem poupar a geração que está viva da tarefa de encontrar suas
próprias respostas e moldar criativamente seu futuro. Por isso
nossos comentários só pretendem apontar algumas relações que
existiram no passado e cuja consideração nas discussões atuais
pode revelar-se útil.

Os elementos do atraso

Muito do que pensamos sobre a industrialização de países atrasa-


dos decorre, consciente ou inconscientemente, da imponente ger
neralização marxista: a história dos países industrializa dos mais
adiantados traça a rota do desenvolvimento das nações mais à tra-
sadas. “O país com a indústria mais desenvolvida apresenta ao

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atá
O atraso econômico em perspectiva histórica

menos desenvolvido a imagem do futuro deste último”! Em sen-


tido lato, essa generalização tem validade. Faz sentido dizer que a
Alemanha, entre meados e o final do século XIX, seguiu a via que
a Inglaterra começara a trilhar num momento anterior. Mas é pre-
ciso tomar cuidado para não aceitar tal generalização com um
entusiasmo excessivo. Ela contém uma meia verdade que tende a
ocultar a existência da outra metade: em aspectos importantíssi-
mos, o desenvolvimento de um país atrasado, em virtude de seu
próprio atraso, pode ser muito diferente do desenvolvimento de
um país adiantado.
Eis a principal proposição deste ensaio: em diversos casos his-
tóricos importantes, os processos de industrialização, ao serem
finalmente lançados em países atrasados, exibiram diferenças con-
sideráveis, se comparados às nações mais adiantadas. Isso ocor-
reu não só no tocante à velocidade do desenvolvimento (a taxa de
crescimento industrial), mas também às estruturas produtivas e
organizacionais da indústria que emergiu desses processos. Em
considerável medida, tais diferenças na velocidade e no caráter do
desenvolvimento industrial resultam da ação de instrumentos ins-
titucionais com pouco ou nenhum equivalente nos países indus-
triais avançados. Além disso, o clima intelectual em que se dá a
industrialização — seu “espírito” ou “ideologia” — difere bastante
entre países adiantados e atrasados. Por último, o grau em que
esses atributos ocorrem em cada caso parece variar na proporção
direta do grau de atraso e das potencialidades industriais naturais
dos países em questão.
Comecemos por descrever, em termos gerais, alguns compo-
nentes básicos dos processos de industrialização dos países atrasa-
dos, sintetizados a partir das informações históricas disponíveis
sobre o desenvolvimento econômico dos países europeus” no sé-
culo XIX e até o início da Primeira Guerra Mundial. Feito isso,
com base em exemplos, haverá mais a dizer sobre os efeitos do que
poderíamos chamar de “atraso relativo” no curso do desenvolvi-
mento industrial de países individuais.

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Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

A situação típica dos países atrasados, antes do início de pro.


cessos consideráveis de industrialização, caracteriza-se pela tensão
entre o estado real das atividades econômicas do país e os obstá-
lado, e pela gran-
culos ao seu desenvolvimento industrial, por um
de promessa inerente a esse desenvolvimento, por outro. À exten-
são d as oportunidades apresentadas pela industrializ
ação varia,é
is de cada país. Além
claro, conforme a dotação de recursos natura
el — e, portanto,
do mais, nenhuma industrialização parece possív
certos obstá-
não existe qualquer “tensão” — enquanto persistem
a servidão dos campone-
culos institucionais importantes, como
ses ou a ausência de unificação política. Pre
sumindo-se uma do-
ndo-se que os grandes
tação suficiente de recursos naturais e supo
pode-se dizer que
bloqueios à industrialização sejam removidos,
ização variam na propor-
as oportunidades inerentes à industrial
ização parece tão mais
ção direta do atraso do país. A industrial
de inovações tecnológicas
promissora quanto maior é a reserva
avançado. A tecnologia
que o país atrasado pode tirar do mais
izou tantas vezes e com
tomada de empréstimo, que Veblen enfat
s para assegurar uma
tanto acerto, foi um dos fatores primordiai
de países atrasados que ini-
alta velocidade no desenvo lvimento
e uma tendência a desde-
ciam a industrialização. Sempre houv
originalidade. Os enge-
nhar dos países atrasados por sua falta de
XVI acusaram 08 ingleses
nheiros de mineração alemães do século
ses retribuíram essas acl-
de imitar os métodos alemães, e os ingle
própria época, já se
sações nas décadas de 1850 e 1860. Em nossa
da Rússia Soviética foi
disse que o desenvolvimento industrial
retrucaran 1 fazendo
totalmente bascado na imitação, e os russos
afirmações extravagantes. Todas essas superficialidades ten dem
o passar do tem
po
com
a obscurecer a realidade básica de que,
naria estrangetra
a possibilidade de grandes importações de maqui
antes de
e know-how estrangeiro, com as oportunidades concomit
vez mais a distância entre 3
industrialização rápida, ampliou cada
na economia dos paises atrasados
potencialidades c as realidades

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O atraso econômico em perspectiva histórica

As perspectivas de industrialização dos países subdesenvolvi-


dos são frequentemente julgadas de forma adversa, em termos do
baixo custo da mão de obra, comparado aos bens de capital, e da
consequente dificuldade de substituir a mão de obra abundante
pelo capital escasso. Às vezes, ao contrário, afirma-se que a mão de
obra barata dos países atrasados dá uma enorme ajuda aos proces-
sos de industrialização. A situação real, no entanto, é mais comple-
xa do que pode parecer com base em modelos simples. Na realida-
de, as condições variam de uma indústria a outra e de país a país.
Mas o fato preponderante a ser considerado é que a mão de obra
industrial — no sentido de um grupo estável, confiável e discipli-
nado, que tenha cortado o cordão umbilical que o ligava à terra e
se adaptado ao trabalho em fábricas — não é abundante, mas ex-
tremamente escassa nos países atrasados. À criação de uma força
de trabalho industrial que mereça esse nome é um processo difícil
e demorado. A história da indústria russa fornece exemplos notá-
veis disso. Muitos operários fabris alemães do século XIX tinham
sido criados na disciplina rigorosa das propriedades de um Junker,
o que os tornava mais aptos a aceitar os rigores das normas das
fábricas. Mesmo assim, as dificuldades foram enormes. Já no final
do século, escritores alemães como Schulze-Gaevernitz lançavam
olhares de admiração e inveja para o outro lado do canal da Man-
cha, para o operário industrial inglês, “o homem do futuro [...]
nascido e educado para a máquina [...) [que] não tem igual no
passado”, Em nossa época, relatos vindos de indústrias da Índia
repetem, de forma ampliada, as aflições da industrialização euro-
peia no passado, no que diz respeito à oferta de mão de obra.
Até onde houve industrialização, foi sobretudo com a aplicação
das técnicas mais modernas e eficientes que os países atrasados
puderam ter esperança de lograr êxito, particularmente nos casos
em que sua industrialização se deu em situações de concorrência
Com países adiantados. As vantagens inerentes ao uso do equipa-
mento tecnologicamente superior não foram prejudicadas, mas
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reforçadas por economizarem mão de obra. Isso parece explicar q


tendência de os países atrasados se concentrarem, em uma etapa
relativamente inicial de sua industrialização, em promover os ra.
re.
mos de atividades industriais em que o progresso tecnológico
cente foi especialmente rápido, ao passo que Os países mais adian-
de suas
tados hesitaram mais em fazer modernizações contínuas
ou impor
fábricas, seja por inércia, seja por não quererem exigir
os sacrifícios implícitos num grande programa de investimento,
é a impossibili-
É claro que há limites para essa política. Um deles
produção em
dade de os países atrasados a estenderem a linhas de
muito especiais.
que sejam necessárias habilidades tecnológicas
demoraram a assimilar
Tais países (mas não os Estados Unidos)
a produção das máquinas-ferramenta modernas. Mas um ramo
exemplo da ten-
como a produção de ferro e aço fornece um bom
s. É instruti-
dência a introduzir a maioria das inovações moderna
m-se su-
vo ver, por exemplo, que os altos-fornos alemães tornara
rnos da
periores aos ingleses muito depressa, enquanto 08 altos-fo
no pro-
região ainda mais atrasada da Rússia meridional estavam
alemães
cesso de suplantar em equipamento os seus equivalentes
à superior idade
nos primeiros anos do século XX. Inversamente,
desafiada pela
inglesa na produção de tecidos de algodão não foi
Alemanha nem por qualquer outro país no século XIX.
rnos que
Em medida considerável (como no caso dos altos-fo
aumentos
acabamos de citar), o uso de técnicas modernas exigiu
ênfase na dimen-
no tamanho médio das fábricas no século XIX. A
dos
são física, nesse sentido, está presente na história da maioria
países
países do continente europeu. Mas a industrialização dos
atrasados da Europa revela uma tendência para a grandeza em
outro sentido. O uso da expressão “revolução industrial” foi ex-
inarmos
posto a inúmeras restrições justificáveis. Mas, se determ
que revolução industrial denota tão somente casos de au mentos
á-
súbitos e consideráveis da taxa de crescimento industrial, em Y
rios casos importantes o desenvolvimento industrial começou
dessa maneira repentina e irruptiva, isto é, “revolucionária”.

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O atraso econômico em perspectiva histórica

A descontinuidade não foi acidental. Provavelmente, o período


de estagnação (no sentido “fisiocrático” de um período de baixo
índice de crescimento) só pode terminar, e os processos de indus-
trialização só podem começar, quando o movimento de industria-
lização tem a possibilidade de avançar, digamos, numa frente am-
pla, começando simultaneamente em muitas linhas de atividades
econômicas. Em parte, isso resulta da existência de complementa-
ridades e indivisibilidades no processo econômico. Não é possível
construir ferrovias se, ao mesmo tempo, não forem abertas minas
de carvão; e construir meia ferrovia não adianta, caso se pretenda
ligar um centro interiorano a uma cidade portuária. Os frutos do
progresso industrial em certos ramos são recebidos como econo-
mias externas por outros ramos da indústria, cujo progresso, por
sua vez, traz benefícios para os primeiros. Ao examinar a história
econômica da Europa no século XIX, tem-se a forte impressão de
que só quando o desenvolvimento industrial pôde começar em
larga escala é que a tensão entre as condições de pré-industrializa-
ção e os benefícios esperados da industrialização tornou-se sufi-
cientemente intensa para superar os obstáculos existentes e liberar
as forças geradoras do progresso industrial.
Esse aspecto do desenvolvimento pode ser concebido nos ter-
mos da relação que Toynbee estabeleceu entre desafio e resposta.
Sua observação geral de que, com muita frequência, os pequenos
desafios não produzem nenhuma resposta, e de que o volume da
reação começa a aumentar com muita rapidez (pelo menos até
certo ponto) na medida em que aumenta o volume do desafio,
parece bastante aplicável aqui. O desafio — ou seja, a “tensão” —
tem que ser considerável, antes que se materialize uma resposta
em termos de desenvolvimento industrial.
O esboço precedente teve o propósito de listar alguns fatores
básicos que, historicamente, foram peculiares às situações econô-
micas de países atrasados e geraram maior velocidade de cresci-
mento e estruturas produtivas diferentes na indústria. Nos países
atrasados, o efeito desses fatores básicos foi muito reforçado pelo

73

o
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

uso de certos instrumentos institucionais e pela aceitação de ideo-


logias específicas a favor da industrialização. Nas seções seguintes
discutiremos alguns desses fatores e seu modo de operação em
vários níveis de atraso.

Os bancos

A história do Segundo Império na França oferece exemplos notá-


veis desses processos. A chegada de Napoleão III ao poder pôs fim
a um longo período de relativa estagnação econômica, que tivera
início com a restauração dos Bourbon e, em certo sentido e até
certo ponto, resultara das políticas industriais adotadas por Na-
poleão I. Com a redução de tarifas aduaneiras e a eliminação de
proibições de importação, que culminou no tratado de Cobden-
-Chevalier de 1860, o governo francês destruiu a estufa em que a
indústria francesa fora mantida por décadas e a expôs à atmosfera
estimulante da concorrência internacional. Com a abolição dos
lucros monopolistas da produção (estagnada) de carvão e de ferro,
a indústria francesa finalmente obteve acesso lucrativo a matérias-
-primas industriais básicas.
Em certa medida, o desenvolvimento industrial da França no
reinado de Napoleão III deve ser atribuído a esse esforço resoluto
de desatar a camisa de força em que governos fracos e grupos de
interesse fortes haviam aprisionado a economia francesa. Todavia,
junto dessas políticas de governo — essencialmente, mas não
exclusivamente negativas —, a indústria francesa recebeu outro
poderoso impulso positivo, com o desenvolvimento da atividade
bancária no governo de Napoleão III.
Poucas vezes a importância desse fenômeno foi plenamente
reconhecida. Tampouco ele foi compreendido de maneira ade-
quada, ou seja, como oriundo de condições específicas de uma
economia relativamente atrasada. Em particular, a história do
Crédit Mobilier, dos irmãos Pereire, costuma ser considerada dra-
mática, mas insignificante. Com muita frequência — por exemplo,
nos poderosos romances de Emile Zola — a importância desses

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O atraso econômico em perspectiva histórica

eventos fica submersa na descrição da febre especulativa, da cor-


rupção e da imoralidade que os acompanharam. Porém, é mais
correto destacar que os bancos de investimento tiveram um papel
decisivo na história econômica da França e de parte significativa
do continente europeu.
Ao fazer tal afirmação, temos em mente, é claro, os efeitos ime-
diatos da criação de organizações/ destinadas a financiar a constru-
ção de milhares de quilômetros de ferrovias, a abertura de minas,
a edificação de fábricas, a escavação de canais, a criação de portos
e a modernização de cidades! Os empreendimentos dos Pereire e
de alguns outros fizeram tudo isso na França e além das fronteiras
do país, em vastas áreas que se estendiam da Espanha à Rússia.
Essa mudança colossal do panorama econômico ocorreu poucos
anos depois de um grande estadista e grande historiador da mo-
narquia de julho ter garantido ao país que não havia necessidade
de reduzir as tarifas sobre o ferro, pois a produção francesa, prote-
gida, era perfeitamente capaz de atender às necessidades das ferro-
vias, com base em sua estimativa de que seriam construídos 25 a
30 novos quilômetros por ano.
As realizações econômicas efetivas de um punhado de homens
de grande vigor empresarial foram acompanhadas por seu efeito
no ambiente. Desde o começo, o Crédit Mobilier engajou-se num
conflito violentíssimo com os representantes das “velhas riquezas”
da atividade bancária francesa, notadamente os Rothschild. Esse
conflito debilitou as forças da instituição e foi o principal respon-
sável por seu colapso posterior, em 1867. Mas raras vezes se perce-
be que, no decorrer desse conflito, as “novas riquezas” consegui-
ram forçar a velha riqueza a adotar as políticas de seus adversários.
Na política bancária, a limitação das antigas fortunas que ope-
ravam com empréstimos ao governo e faziam transações com
divisas não póde ser mantida, diante da nova concorrência. Os
Rothschild só conseguiram impedir os Pereire de criar o Credit-
-Anstalt austríaco porque se dispuseram, cles mesmos, a criar O
banco e dirigilo não como uma organização bancária antiquada,

75
o DON
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à cons.
mas como um crédit mobilier, ou seja, um banco dedicado
no país.
trução de ferrovias e à industrialização
Essa conversão das velhas fortunas ao credo da nova riqueza
Empreen.
mostra os efeitos de maior alcance do Crédit Mobilier.
existido na Bélgica, na
dimentos ocasionais dessa natureza haviam
Alemanha e na própria França. Mas, a partir da segunda metade
Pereire que in-
do século XIX, foi o enorme efeito irruptivo dos
de bancária no con-
fluenciou profundamente a história da ativida
de
tinente europeu. Em vários países, foi considerável o número
, mais
bancos criados à imagem do banco dos Pereire. No entanto
cria-
importantes do que essas imitações servis foram a adaptação
a um novo
tiva da ideia básica dos Pereire e a incorporação dela
e na maio-
tipo de banco — o banco universal, que, na Alemanha
nte de ins-
ria dos países do continente, tornou-se à forma domina
crédit mobi-
tituição bancária. A diferença entre os bancos do tipo
avançado da
lier e os bancos comerciais do país industrializado
essencial-
época (a Inglaterra) era completa. Entre o banco inglês,
de curto prazo, e
mente concebido para servir de fonte de capital
de investimen-
um banco projetado para financiar as necessidades
sca. Os bancos ale-
to de longo prazo havia uma diferença gigante
do banco univer-
mães, que podem ser tomados como protótipos
crédit mobilier com
sal, combinaram com sucesso a ideia básica do
as atividades de curto prazo dos bancos comerciais.
ições financeiras inf-
Como resultado, eles se tornaram institu
carteira indus-
nitamente mais sólidas que o Crédit Mobilier, cuja
o que O tor-
trial era inchada e ultrapassava muito o seu capital,
para
nava dependente da evolução favorável da bolsa de valores
austríacos € italia-
prosseguir suas atividades. Os bancos alemães,
industriais.
nos estabeleceram estreitas relações com as empresas
dizia o provérbio, acompanhava uma
Um banco alemão, como
à liquidação,
empresa industrial do berço à sepultura, da fundação
o recur
passando por todas as vicissitudes de sua existência. Com
de curto prazo,
so dos créditos em conta corrente — formalmente
instituição de conse-
mas na realidade de longo prazo — e coma

76

E”.
O atraso econômico em perspectiva histórica

lhos de supervisão, elevados à posição de órgãos mais poderosos


das organizações empresariais, os bancos adquiriram extraordiná-
ria ascendência sobre as firmas industriais. Ela se estendeu muito
além da esfera do controle financeiro, enveredando pelas decisões
empresariais e administrativas.
Não podemos entrar nos detalhes de tal evolução. Trata-se so-
mente de relacionar sua origem e seus efeitos com o tema em exa-
me(A industrialização da Inglaterra tinha avançado sem apoio
substancial dos bancos a investimentos de longo prazo. O caráter
mais gradativo do processo de industrialização e a acumulação
mais considerável de capital — a partir, primeiro, dos ganhos do
comércio e da agricultura modernizada e, depois, da própria in-
dústria — eliminaram a pressão para que se desenvolvesse qual-
quer dispositivo institucional especial voltado a fornecer capital
de longo prazo à indústria) Em contraste, num país relativamente
atrasado, o capital é escasso e disperso, a desconfiança em relação
às atividades industriais é considerável e, por último, há maior
pressão pela grandeza, por causa do alcance do movimento de
industrialização, do maior tamanho médio das fábricas e da con-
centração dos processos de industrialização em ramos cuja relação
capital/produto é relativamente alta. A isso se deve acrescentar a
escassez de talento empresarial nos países atrasados.
A pressão dessas circunstâncias deu origem a um desenvolvi-
mento divergente da atividade bancária em grandes áreas do con-
tinente europeu, em contraste com a Inglaterra. Os bancos de in-
vestimento continentais ligados à indústria foram instrumentos
específicos de industrialização nos países atrasados. Aqui se situa
9 locus histórico e geográfico das teorias do desenvolvimento eco-
nómico que atribuem um papel central aos processos de poupan-
ça forçada, induzidos pelas atividades bancárias de
criação de di-
nheiro. Mas, como constataremos, o uso desses instrumentos
não
deve ser considerado específico dos países atrasados em geral, e
sim dos países cujo atraso não ultrapassa certos limites. Mesmo
Nestes últimos, durante um bom tempo, os bancos se engajaram

77

Mm
ica e outros S ensaj ios
E.
econômico em perspectiva histór
Alexander Gerschenkron | O atraso

nas simples arrenu cadação6 e redistri buição dos


primordialmente ch . =: nui a ste.
a, € claro, não dimi
cursos disponive is. Essa circunstânci
U-

idades bancária s dura nte os perí


prema importância de «sas ativ
O-

lizaçã o, com sua esca ssez aflit iva


dos que antece deram a industria
end ime nto s industriais.
de capital para os em pre as tendências
fora m imensos. Todas
Os efeitos dessas políticas
industrial dos países atra-
básicas inerentes ao desenvolvimento
s pelas atitudes intencionais
sados foram reforçadas e ampliada sentiram-se
dessa evolução, Os bancos
dos bancos. Desde o início outras,
produção, em detrimento de
atraídos por certas linhas de eira Guerra
ha até a eclosão da Prim
Se considerarmos a Aleman ferro e aço, a en-
carvão, a fabricação de
Mundial, a mineração de centro da
química pesada estiveram no
genharia geral e elétrica e a de artigos de
ães. As indústrias têxtil,
atividade dos bancos alem interesse de-
eram-se Na periferia do
couro e de alimentos mantiv da,
moderna, foi à indústria pesa
les. Para usar uma terminologia
atenção.
não à leve, que se dedicou utura produti-
não se restringiram à estr
— Além disso, os efeitos cional. As
va da indústria. Estendera m-se à sua estrutura organiza
rápi-
XIX foram marcadas por uma
últimas três décadas do século que também
es bancárias, processo
da concentração das atividad , po-
l da Mancha. Na Grã-Bretanha
ocorreu do outro lado do cana bancos e a
dada a natu reza dife rent e das relações entre OS
rém, nvolvi-
acompanhado por um dese
indústria, o processo não foi
mento similar na indústria. mo-
O impulso demonstrado pelo
“Na Alemanha foi diferente. plena-
indústria alemã só pode ser
vimento de cartelização da país, As
mente explicado como resulta
do da fusão dos bancos do
tiveram os bancos em po siçã
o de controle
fusões bancárias man fratri-
se recusavam à tolerar lutas
de empresas rivais. Os bancos tuni-
cebiam rapidamente às opor
Per
cidas entre seus afilhados.
dee mpresas industriais.
dades lucrativas da cartelização e da fusão mesmo
O tamanho continuou a crescer. Ao
médio das fábricas unca
aram-se mais do que P
tempo, os interesses dos bancos volt

78

T————l
oo|
O atraso econômico em perspectiva histórica

para os ramos da indústria em que havia muitas oportunidades de


cartelização.
Assim, a Alemanha tirou pleno proveito de haver chegado rela-
tivamente tarde ao desenvolvimento industrial, isto é, de ter sido
precedida pela Inglaterra. A economia industrial alemã, por causa
dos métodos que usou no processo de emparelhamento, desenvol-
veu-se em moldes diferentes da inglesa.

O Estado

A experiência alemã pode ser generalizada: ocorrências similares


deram-se na Áustria — ou, melhor, nas partes ocidentais do Im-
pério Austro-Húngaro —, na Itália, na Suíça, na França, na Bélgica
e em outras nações, embora houvesse diferenças entre os diversos
países. Mas ela não pode ser generalizada para todo o continente
europeu, por duas razões: (1) pela existência de alguns países atra-
sados, nos quais não podemos descobrir traços comparáveis de
“desenvolvimento industrial e (2) pela existência de países em que
os elementos básicos do atraso apareciam de forma tão acentuada,
que levaram ao uso de instrumentos institucionais de industria-
lização essencialmente diferentes.
Não é preciso dizer muito sobre o primeiro tipo de país. O de-
senvolvimento industrial da Dinamarca pode servir de exemplo.
Esse país ainda era bastante atrasado no início da segunda metade
do século XIX, mas, mesmo assim, não experimentou nenhum
surto repentino de industrialização e nenhuma ênfase peculiar na
indústria pesada. As razões disso devem ser buscadas na escassez
de recursos naturais e nas enormes oportunidades agrícolas que
eram inerentes à proximidade do mercado inglês. À reação pecu-
liar não se materializou por causa da ausência do desafio.
A Rússia pode ser considerada o exemplo mais claro do segun-
do tipo de país. Ali, o grande surto de industrialização moderna
chegou em meados da década de 1880, ou seja, mais de três déca-
das após o início da industrialização acelerada na Alemanha. Além
disso, e ainda mais importante, o nível de desenvolvimento econô-

79
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e Outros ensaios

mico da Rússia, no ponto de partida, era incomparavelmente ia


ferior ao de países como a Alemanha e a Áustria.
A principal razão do imenso atraso econômic
o da Rússia foi
a permanência da servidão até 1861. Em certo sentido, esse fato
pode ser atribuído à ação de um curioso mecanismo de atraso eco.
nômico. Convém introduzir algumas palavras explicativas. No
de-
correr de seu processo de expansão territorial — que, ao longo
de alguns séculos, projetou o pequeno ducado de Moscou
sobre a
gigantesca massa terrestre da Rússia moderna — o país se envolveu Í
|
i
cada vez mais em choques militares com o Ocidente. Isso revelou
um conflito interno entre as tarefas “modernas” do
governo russo,
no sentido contemporâneo da palavra, e uma atrasadíssima eco-
nomia nacional, que deveria ser a base das
políticas militares,
Como resultado, o desenvolvimento econômico
da Rússia, em di-
versas conjunturas importantes, assumiu a
forma de Uma série
peculiar de sequências: (1) movido por interesses militares,
o Esta-
do assumiu o papel de principal agente impulsionador
do progres-
so econômico da nação; (2) o fato de o desenvolvimento
econômi-
co depender das exigências militares conferiu um caráter
irregular
ao seu curso: ele seguia em ritmo acelerado sempre que as necessi-
dades militares eram prementes e reduzia a velocidade
quando as
pressões militares relaxavam; (3) por causa desse progresso
econô-
mico aos arrancos, sempre que se tornava necessário um aumento
expressivo das atividades econômicas, um fardo colossal
recaía
sobre os ombros das gerações cujo período de vida coincidia com
as fases de desenvolvimento intensificado; (4) para cobrar os
enor-
mes sacrifícios que exigia, o governo tinha de submeter à popula-
ção a severas medidas de opressão, para que ela não se esquivasse
dos ônus impostos, fugindo para as regiões fronteiriças
do sudeste
e do leste; (5) por causa das exigências governamentais, havia
grande probabilidade de os períodos de desenvolvimento acelera-
do darem lugar a estagnações prolongadas, pois o esforço
imenso
ia além dos limites da resistência física
d a população; longos perio-
dos de estagnação econômica eram a consequência
inevitável.

80

o dd
O atraso econômico em perspectiva histórica

As sequências que acabamos de mencionar representam, de


maneira esquemática, um padrão de desenvolvimento econômico
russo em séculos passados que se coaduna melhor com o período
das reformas do reinado de Pedro, o Grande, mas cuja aplicabili-
dade não se restringe àquele período.
O que deve impressionar o observador desse desenvolvimento
é seu curso paradoxal. Enquanto tentava, como fez no reinado
de Pedro, o Grande, adotar técnicas ocidentais, aumentar a produ-
ção e elevar as qualificações da população para níveis que se apro-
ximassem mais de perto dos observados no Ocidente, a Rússia,
por causa desse esforço, às vezes se distanciava mais do Ocidente
em outros aspectos. Manter a servidão dos camponeses foi o ou-
tro lado da moeda desses processos de ocidentalização. Pedro,
o Grande não instituiu a servidão no país, mas, mais do que qual-
quer outro, conseguiu torná-la efetiva. Quando, em períodos pos-
teriores, em parte por causa do ponto (2) e em parte por causa
do ponto (5) expostos acima, o Estado deixou de promover ati-
vamente o desenvolvimento econômico e a nobreza se emanci-
pou de suas obrigações de prestar serviços ao governo, a servidão
dos camponeses se desconectou do desenvolvimento econômico.
O que antes fora uma obrigação indireta para com o Estado tor-
nou-se pura obrigação para com a nobreza. Nessas condições,
tornou-se, sem termos de comparação, o mais importante fator de
atraso do desenvolvimento econômico da Rússia.
Talvez os leitores de Toynbee queiram ver esse processo, que se
encerrou com a emancipação do campesinato, como uma expres-
são da sequência de “retirada e retorno”. Ou talvez prefiram, justi-
ficadamente, colocá-lo na categoria das “civilizações retardadas”
Seja como for, o mecanismo de desafio-resposta é útil para pen-
sarmos as sequências dessa natureza. Convém notar, porém, que o
problema não é simplesmente a relação quantitativa entre o tama-
nho do desafio e o da resposta. O ponto crucial é que o tamanho
do desafio altera a qualidade da resposta e, ao fazê-lo, não apenas
injeta poderosos fatores de atraso no processo econômico, como

81
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica
e outros Ensaios

também produz consequências não econômicas indesejáveis, Nas


observações finais deste ensaio voltaremos a esse aspecto, que é
de suma importância para o problema atual da industrialização
dos países atrasados.
Retomando a industrialização russa nas décadas de 1880 e
1890, é lícito dizer que, em certo sentido, ela pode ser vista como
uma recorrência de um padrão anterior de desenvolvimento eco-
nômico do país. O papel do Estado distingue com muita clareza a
industrialização russa e suas equivalentes alemã ou austríaca,
A emancipação dos camponeses, apesar de suas múltiplas def;.
ciências, era um pré-requisito absoluto para a industrialização,
uma ação negativa do Estado, destinada a remover obstáculos que
ele mesmo havia criado. Nesse sentido, era plenamente compará-
vel a atos como as reformas agrárias da Alemanha ou as já men-
cionadas políticas de Napoleão III. Similarmente, as grandes re-
formas judiciais e administrativas da década de 1860 tiveram
o
objetivo de criar uma estrutura adequada ao desenvolvimento
industrial, não de promovê-lo diretamente.
Diferentemente do caso da Europa Ocidental, atos desse tipo
não levaram a um surto de atividades no país; durante quase 1/4
de século após a emancipação, a taxa de crescimento industrial se
manteve relativamente baixa. A grande ascensão da indústria veio
a partir de meados da década de 1880, quando a construção de
ferrovias pelo Estado assumiu proporções sem precedentes e se
tornou a grande alavanca de uma política de industrialização ace-
lerada.)Por meio de múltiplos recursos — como encomendas pre-
ferenciais a produtores nacionais de material para as ferrovias, pre-
ços elevados, subsídios, créditos e garantias de lucro para as novas
empresas industriais —, o governo conseguiu manter até o fim do
século uma taxa de crescimento elevada e ascendente. Ao mesmo
tempo, o sistema tributário russo foi reorganizado para assegurar
o financiamento das políticas de industrialização, enquanto a esta-
bilização do rublo e a introdução do padrão ouro garantiram à
participação estrangeira no desenvolvimento da indústria russa.

82

A
=".
O atraso econômico em perspectiva histórica

Os elementos básicos de uma economia atrasada, no cômputo


foram os mesmos na Rússia da década de 1890 e na Ale-
geral,
manha da década de 1850. Mas as diferenças quantitativas foram
assombrosas. Tamanha era a escassez de capital na Rússia, que
nenhum sistema bancário conseguiria atrair recursos suficientes
para fin anciar uma industrialização em larga escala; os padrões
de honestidade nos negócios eram tão desastrosamente baixos,
e tão grande era a desconfiança geral do público, que nenhum
banco conseguiria atrair nem mesmo as pequenas reservas de ca-
pital disponíveis, e nenhum poderia engajar-se com sucesso em
políticas de crédito de longo prazo, numa economia em que a fa-
lência fraudulenta era uma prática comercial generalizada..A ofer-
ta de capital para as necessidades da industrialização exigia a ação
compulsória do governo, o qual, por meio de suas políticas tribu-
tárias, loogrou direcionar a renda do consumo para o investimento.
"O governo desempenhou o papel de agensmovens da inndustriali-
zação com eficiência muito aquém da perfeita.A corrupção e a
incompetência da burocracia foram enormes, e o desperdício que
acompanhou esse processo foi colossal. No fim das contas, porém,
é inegável que as políticas adotadas por Vyshnegradski e Witte
obtiveram grande sucesso. Não apenas em suas origens, mas tam-
bém em seus efeitos, as políticas seguidas pelo governo russo na
última década do século XIX assemelharam-se de perto às dos
bancos da Europa Central. O Estado russo não evidenciou qual-
quer interesse pela “indústria leve”. Toda a sua atenção centrou-se
na produção de materiais industriais básicos e de máquinas e
equipamentos. Tal como os bancos da Alemanha, a burocracia
russa estava preponderantemente interessada em empreendimen-
tos de larga escala e em fusões e políticas coordenadas entre as
empresas industriais que ela favorecia, ou que havia ajudado a
criar. Boa parte do interesse do governo na industrialização decor-
reu de suas políticas militares, mas elas apenas reforçaram e acen-
tuaram as tendências básicas da industrialização em condições de
atraso econômico.

83
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

Para enfatizar essas uniformidades básicas e os instrumentos


institucionais usados, podemos comparar as políticas adotadas
pelas duas metades da monarquia austro-húngara dentro de um
mesmo corpo político. A parte austríaca da monarquia era atrasa.
da em relação à Alemanha, mas sempre foi muito mais adiantada
que sua correspondente húngara. Por conseguinte, os bancos pu.
deram dedicar-se com sucesso à promoção de atividades indus-
triais na Áustria propriamente dita, enquanto do outro lado dos
montes Leitha, na Hungria, as atividades bancárias revelaram-se
totalmente insuficientes. Mais ou menos na virada do século, o
governo húngaro embarcou em políticas vigorosas de industriali-
zação, demonstrando considerável interesse em desenvolver a in-
dústria têxtil. Porém, sob a pressão do que os franceses gostam de
chamar de “lógica das coisas”, os subsídios do governo foram cada
vez mais desviados da indústria têxtil para a promoção da indús-
tria pesada.

As gradações do atraso
Voltando ao paradigma russo-germânico básico, o que dissemos
nos parágrafos anteriores não esgota os paralelos entre os dois
países. Permanece a questão dos efeitos dos processos de indus-
trialização bem-sucedidos, isto é, da diminuição gradual do atraso.
Na virada do século, se não um pouco antes, as mudanças na
relação entre os bancos e a indústria ficaram evidentes na Alema-
nha. Na medida em que as jovens indústrias atingiram a idade
adulta, a ascendência original dos bancos sobre as empresas in-
dustriais não mais pôde ser mantida. Esse processo de libertação
da indústria, após décadas de tutela, expressou-se de diversas ma-
neiras. Cada vez mais, as empresas industriais transformaram à
ligação com um único banco numa cooperação com diversas ns-
tituições bancárias. Na medida em que se tornavam economica-
mente soberanos, os ex-protetorados industriais passavam a alte-
rar suas alianças com os bancos. Muitos gigantes industriais, como
a indústria da engenharia elétrica, que não poderiam ter-se desen

84
O atraso econômico em perspectiva histórica

volvido sem a ajuda e a ousadia empresarial dos bancos, come-


çaram a criar suas próprias casas bancárias. A histórica situação
de escassez de capital dos bancos alemães já não estava presente.
A Alemanha tornara-se um país industrial desenvolvido. Mas os
traços específicos de um processo de industrialização em condi-
ções de atraso permaneceram, assim como a estreita relação entre
os bancos e a indústria, embora a relação senhor/escravo tenha

nha sido invertida.


Na Rússia, o magnífico período de desenvolvimento industrial
da década de 1890 foi abreviado pela depressão de 1900 e pelos
anos subsequentes de guerra e agitação civil. No entanto, quando
a Rússia emergiu dos anos revolucionários de 1905-1906 e tornou
a-alcançar uma-alta.taxa de crescimento industrial entre 1907 e
1914, o processo de industrialização tinha sofrido enormes mo-
«dificações.À construção de ferrovias pelo governo prosseguia,
mas em escala muito menor, tanto em termos absolutos quanto,
principalmente, em relação ao aumento da produção industrial.
Alguns incrementos de gastos militares não puderam nem de lon-
ge compensar a menor importância da construção de ferrovias.
É inescapável a conclusão de que, naquele último período de in-
dustrialização num governo pré-revolucionário, a importância do
Estado foi muito reduzida.
Ao mesmo tempo, o padrão tradicional do desenvolvimento
econômico russo, felizmente, prosseguiu. O retraimento das ati-
vidades do governo não levou à estagnação, mas à continuação
do desenvolvimento industrial. A indústria russa havia chegado a
um estágio em que podia jogar fora as muletas do apoio governa-
mental e começar a caminhar com independência — se bem que
com muito menos independência do que a indústria da Alemanha
contemporânea, pois, pelo menos até certo ponto, o papel do go-
verno que se retraía foi assumido pelos bancos.
Uma grande transformação havia ocorrido com respeito aos
bancos nos cinquenta anos decorridos desde a emancipação. Ban-

85

mm
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

cos comerciais haviam sido criados. Como foi o governo que exer.
ceu a função dos bancos industriais, as instituições bancárias rus-
sas, exatamente por causa do atraso do país, foram Organizadas
como “bancos de depósito”, com isso se assemelhando muito ao
tipo de sistema bancário da Inglaterra. Todavia, na medida em
que o desenvolvimento industrial avançou em ritmo acelerado e
a acumulação de capital aumentou, as normas do comportamento
empresarial ocidentalizaram-se cada vez mais. O paralisante cl;-
ma de desconfiança começou a desaparecer e foram lançadas as
bases de um tipo diferente de banco. Aos poucos, os bancos de
depósito de Moscou foram ofuscados pelo desenvolvimento dos
bancos de São Petersburgo, dirigidos conforme princípios ca-
racterísticos não do sistema bancário inglês, mas do alemão. Em
suma, depois de o atraso econômico da Rússia ter sido reduzido
por processos de industrialização patrocinados pelo Estado, tor-
nou-se viável usar um instrumento de industrialização diferente,
adequado ao novo “estágio de atraso”

ideologias da industrialização atrasada


Antes de extrairmos algumas conclusões gerais, cabe mencionar
um último aspecto diferencial da industrialização em condições
de atraso econômico. Até aqui, importantes diferenças no caráter
do desenvolvimento industrial e em seus veículos institucionais
foram relacionadas com situações e graus de atraso. Resta dizer
algumas palavras sobre o clima ideológico em que essa industria-
lização ocorreu.
Mais uma vez, podemos voltar à instrutiva história da indus-
trialização francesa com Napoleão III. Os homens que chegaram a
posições de influência econômica e financeira quando Napoleão
subiu ao poder não eram indivíduos isolados. Pertenciam a um
grupo muito bem definido. Não eram bonapartistas, mas socialis-
tas sansimonianos. É surpreendente, à primeira vista, o fato de um
homem como Isaac Pereire — que deve ter contribuído mais do
que qualquer outra pessoa para a disseminação do sistema capita-

86

O”
O atraso econômico em perspectiva histórica

lista moderno na França — ter sido e ter continuado a ser, até o


fim da vida, um ardoroso admirador das doutrinas sansimonia-
nas. Isso se torna menos surpreendente ao considerarmos algumas
relações pertinentes.
Pode-se argumentar que Saint-Simon, na realidade, estava longe
de ser socialista; que, em sua visão da sociedade industrial, mal dis-
tinguia entre trabalhadores e patrões; e que considerava que a for-
ma política apropriada para a sociedade do futuro era uma espécie
de Estado corporativo em que os “líderes da indústria” exerceriam
altas funções políticas. Tais argumentos, entretanto, não explica-
riam muita coisa. Saint-Simon tinha profundo interesse pelo que
chamava de “classes mais numerosas e mais sofredoras”. E o mais
importante: as doutrinas sansimonianas, tal como ampliadas e re-
definidas pelos seguidores do mestre (particularmente Bazard),
incorporaram inúmeras ideias socialistas, inclusive a abolição da
herança e o estabelecimento de um sistema de planejamento con-
cebido para orientar e desenvolver a economia do país. Foi essa
interpretação das doutrinas que os irmãos Pereire aceitaram.
É mais relevante apontar a ênfase depositada por Saint-Simon
e seus seguidores na industrialização e na grandiosa tarefa que eles
haviam atribuído aos bancos, como instrumento de organização
e desenvolvimento da economia. Isso foi um bom atrativo para
os criadores do Crédit Mobilier, que gostavam de pensar em sua
instituição como um “banco para uma força superior” e em si
mesmos como “missionários”, em vez de banqueiros. A ênfase
de Saint-Simon no papel a ser cumprido pelos bancos revelava
um discernimento realmente admirável — e completamente “não
utópico” — dos problemas desse desenvolvimento. Isso é tão ver-
dadeiro quanto o fato de que as ideias sansimonianas influíram
decisivamente no curso dos acontecimentos econômicos, dentro e
fora da França. Mas persiste a pergunta: por que a roupagem so-
Cialista recobriu uma ideia essencialmente capitalista? E por que a
forma socialista foi aquela tão prontamente aceita pelos maiores
empresários capitalistas que a França já tivera?

87

e
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

Mais uma vez, parece que a resposta deve ser dada em termo
das condições básicas do atraso. Saint-Simon, amigo de J, B, Say
política do laissez-faire. Chevalie,
nunca foi avesso às ideias da
coautor do tratado de comércio franco-britânico de 1860, que in.
troduziu o grande período do livre-comércio europeu, tinha sido
um ardoroso sansimoniano. Nas condições francesas, no entanto
a ideologia do laissez-faire era totalmente inadequada como veícu.
lo espiritual de um programa de industrialização.
Para romper as barreiras da estagnação num país atrasado, in-
flamar a imaginação dos homens e pôr suas energias a serviço do
desenvolvimento econômico, é necessário um remédio mais forte
que a promessa de uma alocação melhor dos recursos, ou até de
uma redução no preço do pão. Nessas circunstâncias, até o clássico
empresário ousado e inovador, o homem de negócios, precisa de
um estímulo mais poderoso que a perspectiva de lucros altos.
É preciso ter fé para remover as montanhas de rotina e precon-
ceito — fé, nas palavras de Saint-Simon, em que a era dourada não
está no passado, mas no futuro da humanidade. Não foi à toa que
Saint-Simon dedicou os últimos anos de vida à formulação de um
novo credo, o novo cristianismo, e levou Auguste Comte a romper
com ele por causa dessa “traição à verdadeira ciência”. O que havia
bastado na Inglaterra não bastava na França.
Pouco antes de morrer, Saint-Simon exortou Rouget de Lisle,
o idoso autor da Marselhesa, a compor um novo hino, uma “Mar-
selhesa industrial”, Rouget de Lisle o atendeu. No novo hino, 0
homem que antes conclamara os “enfants de la patrie” [filhos da
pátria] a travar uma guerra impiedosa contra os tiranos e suas
coortes mercenárias dirigiu-se aos “enfants de Vindustrie” [filhos
da indústria] — os “verdadeiros nobres” —, que garantiriam à
“felicidade de todos” ao disseminarem as artes industriais e sub-
meterem o mundo às pacíficas “leis da indústria”,
Não se tem notícia de que Ricardo haja inspirado alguém à
transformar o “Deus Salve o Rei” em “Deus Salve a Indústria”
Ninguém gostaria de reduzir a força da eloquência apaixonad a de

88

aa
O atraso econômico em perspectiva histórica

John Bright, mas, em um país adiantado, os argumentos racionais


a favor das políticas de industrialização não precisavam ser com-
plementados por um fervor quase religioso. Buckle não se enga-
nou muito quando, em uma famosa passagem de sua História,
escreveu que a conversão da opinião pública inglesa ao livre-co-
mércio havia sido conquistada pela força de uma lógica irrefutá-
vel. Num país atrasado, o esforço grande e repentino de industria-
lização clama por um New Deal das emoções. Os que executam a
importante transformação, assim como aqueles a quem ela impõe
seu ônus, devem sentir, nas palavras de Matthew Arnold, que
[...] limpando o palco,
Dispersando o passado,
Chega a nova era!”

Uma industrialização capitalista feita sob os auspícios de ideolo-


gias socialistas pode ser, afinal, um fenômeno menos surpreen-
dente do que pareceria à primeira vista.
De modo semelhante, as teorias da industrialização de Fried-
rich List — um homem que tinha tido fortes laços pessoais com
Saint-Simon — podem ser basicamente concebidas como uma
tentativa de traduzir a mensagem inspiradora do sansimonismo
numa linguagem que pudesse ser aceita no meio alemão, onde a
falta de uma revolução política anterior e de uma unificação na-
cional precoce tornava o sentimento nacionalista uma ideologia
muito mais adequada para a industrialização.
Depois do que acabamos de expor, talvez não pareça espantoso
que o marxismo tenha exercido uma função muito parecida na
industrialização russa da década de 1890. Nada conciliava mais
a intelectualidade russa com o advento do capitalismo no país e
com a destruição de sua antiga confiança no mir e no artel do
que um sistema de ideias que apresentava a industrialização ca-
Pitalista como resultado de uma lei férrea do desenvolvimento

* Do poema “Bacchanalia; Or, The New Age” 1867. [N.T.]

89
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensai ios

histórico. Essa ligação explica, em grande parte, o poder exercid,


Rússia, quando este se estende,
pelo pensamento marxista na o
sentido, até Milyukoy,
a homens como Struve e, em certo
Weltanschauung [visão de mundo] era totalmente alheia às ideia,
do socialismo marxista. Nas condições do atraso “absoluto” russo
era necessária uma ideologia muito mais poderosa do que n;
França ou na Alemanha para azeitar as engrenagens intelectuais
e emocionais da industrialização. As gradações institucionais do
atraso parecem encontrar sua contrapartida nas reflexões huma.
nas sobre o atraso e a maneira pela qual se pode aboli-lo.

Conclusões

A história da industrialização europeia no século XIX permite


propor alguns pontos de vista que talvez sejam úteis para a apre-
ciação dos problemas atuais.
1. Se o caráter de evolução aos arrancos da industrialização no
continente europeu, durante o século XIX, for concebido como
resultado das situações pré-industriais específicas de países atrasa-
dos, e se entendermos que as pressões pela industrialização em
fácil
alta velocidade são inerentes a tais situações, torna-se mais
entendermos por que os governos desses países frequentemente
expressam desejos nesse sentido. Lemas como “Fábricas já!”, que
desempenharam tão importante papel nas discussões da carta da
Organização Internacional do Comércio, talvez então se afigurem
menos absurdos.
2. Similarmente, as tendências dos países atrasados a concen-
trar grande parte de seus esforços na introdução da tecnologia
mais moderna e mais dispendiosa, sua ênfase em fábricas de gran-
de porte e seu interesse em desenvolver indústrias de bens de ca-
pital não precisam ser vistos, necessariamente, como simples de-
corrência da busca de prestígio e como megalomania econômica.
3. Os países avançados tendem a avaliar de maneira errônea
as políticas de industrialização de seus irmãos menos afortunados,
pois, em todos os casos de industrialização, imitar a evolução dos

90

E”
O atraso econômico em perspectiva histórica

países adiantados é uma tendência que aparece combinada com


elementos diferentes, determinados localmente. Se nem sempre
é fácil para as nações avançadas aceitar a imitação, é ainda mais
difícil compreender esses elementos distintos. Isto se aplica em
particular aos instrumentos institucionais usados no desenvol-
vimento da indústria, e mais ainda às ideologias que os acom-
panham. Uma revisão histórica permite ressaltar o sentimento de
importância dos elementos nativos na industrialização dos países
atrasados.
Destruindo o que Bertrand Russell certa vez chamou de “dog-
matismo dos não viajados”, uma jornada pelo século XIX pode
ajudar a formular uma visão mais ampla e esclarecida dos proble-
mas pertinentes e a substituir as ideias absolutas do que é “certo”
e “errado” por uma abordagem mais flexível e relativista.
Não estamos sugerindo aqui, é claro, que as atuais políticas
concernentes às áreas atrasadas devam ser formuladas com base
na experiência geral do século XIX, sem levar em conta, em cada
caso individual, o grau de dotação de recursos naturais, as dificul-
dades climáticas, a força dos obstáculos institucionais à industria-
lização, o padrão do comércio exterior e outros fatores pertinen-
tes. Porém, o que é ainda mais importante é que, por mais úteis
que sejam as “lições” do século XIX, elas não podem ser aplicadas
adequadamente sem que se compreenda o ambiente do século XX,
o qual, de muitas maneiras, acrescentou aspectos novos e relevan-
tes aos problemas em questão.
Uma vez que o atual problema da industrialização de regiões
atrasadas concerne predominantemente a países não europeus,
existe a questão de saber como o desenvolvimento cultural especí-
fico, no período pré-industrial, influencia o potencial para a in-
dustrialização. A pesquisa antropológica desses padrões culturais
tem chegado a conclusões bastante pessimistas, mas talvez elas
Careçam de uma perspectiva dinâmica. De qualquer modo, não
lidam com a mutabilidade dos fatores individuais envolvidos. Ao
Mesmo tempo, a experiência russa passada mostra a rapidez com

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Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

que, nas últimas décadas do século XIX, um padrão de vida ques


opunha vigorosamente aos valores industriais, e tendia aconside,
rar qualquer atividade econômica não agrícola como antinatura]
e pecaminosa, começou a dar lugar a atitudes muito diferentes
Em particular, a rápida emergência de empresários nativos deve
dar o que pensar aos que tanto enfatizam a incapacitante Carência
de qualidades empresariais nas civilizações atrasadas. Mas existem
outros problemas.
Em extensas áreas atrasadas, o próprio fato de o desenvolvi.
mento industrial haver demorado criou, ao lado das oportunida-
des sem precedentes de progresso tecnológico, grandes obstáculos
à industrialização. O progresso industrial é árduo e dispendioso; o
progresso médico é mais barato e mais fácil de alcançar. Na medi-
da em que este último precedeu o primeiro em um intervalo con-
siderável de tempo e resultou numa assombrosa superpopulação,
as revoluções industriais puderam ser derrotadas por contrarrevo-
luções malthusianas.
Em estreita relação com o que foi dito até aqui, porém com
efeitos imensamente mais relevantes, está o fato de que os grandes
atrasos na industrialização tendem a dar tempo para que as ten-
sões sociais cresçam e assumam proporções sinistras. Como um
exemplo leve, podemos citar o caso do México, onde os bancos
estabelecidos têm relutado em cooperar com atividades de indus-
trialização patrocinadas por um governo de cujos matizes radicais
eles desconfiam. Mas o verdadeiro exemplo de peso, que ofusca
todos os demais em alcance e importância, é, naturalmente, o da
Rússia soviética.
Se o que foi dito nas páginas anteriores tem validade, não há
dúvida de que a industrialização soviética contém todos os ele-
mentos básicos que foram comuns à industrialização dos paises
atrasados no século XIX. A ênfase na indústria pesada e nas fábri
cas gigantescas não é peculiar à Rússia soviética, mas nela os tra
ços comuns aos processos de industrialização foram ampliados €
distorcidos de forma desproporcional.

92

E”
0. É
O atraso econômico em perspectiva histórica

O problema é político e econômico. O governo soviético pode


ser descrito como um produto do atraso econômico do país. Se a
servidão tivesse sido abolida por Catarina, a Grande, ou na época
da insurreição decembrista de 1825, a insatisfação dos campone-
ses, força propulsora e garantia do sucesso da Revolução Russa,
nunca teria assumido proporções desastrosas, e o desenvolvimen-
to econômico do país teria avançado de maneira muito mais pau-
latina. Eis aí uma “suposição histórica” bem fundamentada: uma
revolução industrial atrasada foi responsável por uma revolução
política em cujo curso o poder caiu nas mãos de um governo di-
tatorial, ao qual, no longo prazo, a vasta maioria da população se
opôs. Uma coisa é tal governo chegar ao poder num momento de
grande crise, outra é manter esse poder por longo tempo. Sejam
quais forem a força do exército e a ubiquidade da polícia secreta,
seria ingênuo acreditar que esses instrumentos de opressão física
possam ser suficientes. Um governo desse tipo só pode manter-se
no poder se conseguir fazer o povo acreditar que está desempe-
nhando uma importante função social, que não poderia ser cum-
prida na sua ausência.
A industrialização proporcionou essa função ao governo so-
viético. Todos os fatores básicos da situação do país pressionaram
nessa direção. Ao retornar a um padrão de desenvolvimento eco-
nômico que deveria ter-se restringido a um período há muito ul-
trapassado, ao substituir a servidão pela coletivização e ao empur-
tar a taxa de investimento para cima até o limite de resistência da
população, o governo soviético fez o que nenhum governo que
dependesse do consentimento dos governados poderia ter feito.
É inegável que essas políticas, depois de atravessarem um período
de lutas violentas, resultaram num atrito permanente e cotidiano
entre o governo e a população. No entanto, por paradoxal que
pareça, tais políticas asseguraram, ao mesmo tempo, uma ampla
aceitação do povo. Se todas as forças da população puderem man-
ter-se engajadas nos processos de industrialização, e se essa in-
dustrialização puder ser justificada pela promessa de felicidade e

93
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

abundância para as futuras gerações e — o que é muito mais im.


portante — pela ameaça de agressão militar externa, o poder do
governo ditatorial não será seriamente questionado. É fácil produ.
zir a confirmação de uma guerra ameaçadora, como mostra a his.
tória da Guerra Fria. O atraso econômico, a industrialização ace.
lerada, o exercício implacável do poder ditatorial e o perigo da
guerra entrelaçaram-se de forma inextricável na Rússia soviética,
Este não é o lugar para nos estendermos mais sobre isso,
O problema aqui não é a Rússia soviética, mas as atitudes dos paí.
ses atrasados diante da industrialização. Se a experiência soviética
tem algo a ensinar, é sua demonstração ad oculos dos terríveis pe-
rigos inerentes ao atraso econômico em nossa época. Não existem
largas vias expressas através dos parques do progresso industrial,
A estrada pode levar do atraso à ditadura e da ditadura à guerra.
Na situação de um “mundo bipolar”, essa sequência sinistra é mo-
dificada e ampliada pela imitação deliberada das políticas soviéti-
cas por outros países atrasados e pela incorporação destes, volun-
tária ou involuntariamente, à órbita soviética.
É possível, portanto, extrair conclusões da experiência histórica
de ambos os séculos. A lição primordial do século XX é que os
problemas das nações atrasadas não pertencem exclusivamente a
elas; são problemas também dos países adiantados. Não apenas
a Rússia, mas o mundo inteiro paga o preço por não ter havido a
emancipação dos camponeses russos e o início em tempo hábil
das políticas de industrialização. Os países avançados não podem
se dar ao luxo de ignorar o atraso econômico. Mas a lição do sécu-
lo XIX é que as políticas dos países atrasados tendem a não lograr
êxito quando ignoram as peculiaridades básicas do atraso econô-
mico. Somente ao reconhecermos com franqueza a existência e à
força delas, e ao tentarmos desenvolver plenamente o que Keynes
certa vez chamou de “possibilidades das coisas”, em vez de sufo-
cá-las, é que a experiência do século XIX poderá ser usada parê
evitar a ameaça representada por sua sucessora.

94

E”
O atraso econômico em perspectiva histórica

Notas
da economia polí-
l. Karl Marx, Das Kapital (1º ed.), prefácio [O capital: crítica
tica, livro primeiro: o processo de produção do capital, v. 1, trad. Reginaldo
Sant Anna, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 24º ed., 2006; O capital:
erítica da economia política, livro segundo: o processo de circulação do capital,
v ALII ibid., 9º ed., 2003; O capital: crítica da economia política, livro tercei-
ro: o processo global de produção capitalista, v. IV-VI, ibid., 2008].
“ Teria sido extremamente desejável transcender a experiência europeia, in-
q

cluindo pelo menos algumas referências à industrialização do Japão. Infe-


lizmente, a ignorância do autor sobre a história econômica japonesa impe-
diu-o de ampliar dessa maneira o âmbito de suas observações. Entretanto,
convém encaminhar o leitor ao excelente estudo de Henry Rosovsky, Capital
Formation in Japan, 1868-1940 (Glencoe, Illinois, 1961), que discute expli-
citamente minha abordagem no caso da história industrial do Japão.

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