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Pós-escrito sobre a industrialização europeia

O propósito das páginas que se seguem é oferecer um breve resu-


mo das minhas ideias sobre a história industrial da Europa, apon-
tar algumas incoerências, difíceis de evitar em pesquisas que se
estendem por muitos anos e cujos resultados são publicados se-
quencialmente, e, o que é mais importante, dizer algumas palavras
sobre as limitações dessa abordagem e sobre o tipo de proposta
capaz de ultrapassar essas limitações.
Na origem dessa abordagem estão duas observações básicas,
que podem ser formuladas da seguinte maneira: o mapa da Eu-
ropa oitocentista exibia um quadro desigual com respeito ao grau
de atraso econômico; mesmo assim, partindo de níveis muito di-
ferentes de atraso, vários países iniciaram processos de industria-
lização acelerada. Essas diferenças nos pontos de partida foram
cruciais para a natureza do desenvolvimento posterior. Depen-
dendo do grau de atraso econômico de um dado país, o curso e o
caráter de sua industrialização tenderam a variar em aspectos im-
portantes. Tais variações podem ser condensadas em seis breves
proposições:

1. Quanto mais atrasada era a economia do país, maior foi


a probabilidade de que sua industrialização começasse de for-
ma descontínua, com uma grande arrancada súbita, e avançasse
com uma taxa relativamente alta de aumento da produção ma-
nufatureira.'

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Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

2. Quanto mais atrasada era a economia do país, mais pronun-


ciada foi a ênfase de sua industrialização no grande porte das fá-
brica s e empresas.
3. Quanto mais atrasada era a economia do país, maior foi a
conc entração em bens de capital, em contraste com os bens de
cons umo.
4. Quanto mais atrasada era a economia do país, mais forte foi
a pressão sobre os níveis de consumo da população.
5. Quanto mais atrasada era a economia do país, maior foi o
papel desempenhado por fatores institucionais especiais, destina-
dos a aumentar o suprimento de capital para as indústrias nascen-
tes e » além disso, a lhes fornecer orientação empresarial menos
desc entralizada e mais informada; quanto mais atrasado era o
país, mais acentuadas foram a coercitividade e a abrangência des-
ses fatores.

6 - Quanto mais atrasado era o país, menor foi a probabilidade


de que sua agricultura desempenhasse algum papel ativo, ofere-
cendo às indústrias em crescimento as vantagens de um mercado
em expansão que estivesse baseado na produtividade crescente do
trabalho agrícola.

Como foi dito no ensaio “Reflexões sobre o conceito de “pré-


-requisitos' da industrialização moderna”, as diferenças nos níveis
de avanço econômico entre os diversos países ou grupos de países
europ eus, no século XIX, foram suficientemente grandes para per-
mitir dispor esses países ou grupos de países em uma escala de
graus crescentes de atraso, tornando operacionalmente útil esse
conceito de atraso. Fazer dois cortes nessa escala gera três grupos
de países, que podem ser brevemente descritos como avançados,
moderadamente atrasados e muito atrasados. Considerando que
algumas variações de nossas seis proposições também podem ser
concebidas como descontínuas, em vez de contínuas, o padrão
assume a forma de uma série de constructos de etapas. Esse resul-
tado prevalece especialmente nos fatores citados na proposição 5,

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Pós-escrito sobre a industrialização europeia

na qual as diferenças quantitativas são associadas a variações qua-


litativas, isto é, institucionais. Por exemplo, as relações que dizem
respeito às fontes de suprimento de capital, conforme o esboçado
em “O atraso econômico em perspectiva histórica”, podem ser ex-
pressas da seguinte maneira:
Etapas Área Área de Área de
avançada atraso moderado extremo atraso
I Fábricas Bancos Estado
N Fábricas Bancos
HI Fábricas

Essa tentativa de ver o curso da industrialização como um pro-


cesso esquemático, como que em etapas, difere essencialmente dos
vários esforços de “criação de etapas” cuja característica comum é
a suposição de que todas as economias, ao se deslocarem pelo tra-
jeto do progresso econômico, passam pelas mesmas etapas indivi-
duais. Nesse caso, a regularidade pode ser apresentada como uma
“lei? inescapável do desenvolvimento econômico.? Como alterna-
tiva, o elemento da necessidade pode ser disfarçado por observa-
ções bem-intencionadas, mas bem pouco significativas, sobre as
escolhas acessíveis à sociedade.” Todos esses esquemas são domi-
nados pela ideia de uniformidade. Por isso Rostow esforçou-se em
afirmar que o processo de industrialização se repete nos países,
arrastando-se em ritmo pentâmetro. Esperava-se que a Rússia,
como todos os demais países, acabasse sendo impelida pela “dinâ-
mica dos Buddenbrook” para a quinta etapa, a de “consumo de
massa” * Deixando de lado as alusões literárias equivocadas, em
princípio não há nada de errado, em uma margem bastante am-
pla, numa abordagem que se concentre nas semelhanças interes-
paciais do desenvolvimento industrial. A existência dessas seme-
lhanças é real.º Seu estudo gera simplicidades atraentes, mas o faz
ao preço de descartar alguns fatos persistentes, que o historiador
não pode desconhecer. Os que consideram que a essência da in-
dustrialização é a criação de empresas manufaturciras fortes e in-
Alexander Gerschen ômi o em perspectiva
Gersc kron | O atraso econômic iva histórica e outros ensaios

dentes só precisam o al a tabela anterior


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à Inglaterra. Essa posição nos impede
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da história, ou seja, de perceber a ind
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O que é a história dos exemplos de ind
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Central sem o papel dos bancos
nesse processo criada po
trialização russa da década de 189
0 sem o Ministério or
Essas foram ocorrências ?
importantes, que devem
atenção do historiador. Mas, c amar a
no presente contexto, Obs
diversos métodos de fin ervar o
anciamento do crescimen
ajuda-nos a compreende to ind ustria
r o problema crucial
do desenvolvimento dos Pré-requisitos
da indústria.

econômica, a cria ou ideológico


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eito de Pré-requisi-
204
Pós-escrito sobre a industrialização europeia

tos de modo que ele pudesse se enquadrar na abordagem geral


que tem por premissa a ideia de atraso relativo. Temo que, na mi-
nha obra, essa seja a área mais sujeita à acusação de incoerência.
Para citar um exemplo, fiz várias vezes a afirmação (em “O atraso
econômico em perspectiva histórica”, em “Rússia: padrões e pro-
blemas do desenvolvimento econômico, 1861-1958” e em “O de-
senvolvimento econômico na história intelectual russa do século
XIX?) de que abolir a servidão na Rússia era um pré-requisito ne-
cessário ou até absoluto para a industrialização.” O que eu preten-
dia dizer é que a emancipação dos camponeses russos, na década
de 1860, deu uma contribuição material para o processo subse-
quente de industrialização. Isso não está errado, mas deveria ter
sido possível expressar a mesma ideia sem mobilizar termos gran-
diloquentes e sem sentido. Deveria haver uma multa para o uso de
palavras como “necessário” ou “necessidade” em textos de história.
Ao examinarmos mais de perto o conceito de necessidade, tal
como ligado aos pré-requisitos do desenvolvimento industrial,
torna-se claro que é desprovido de sentido ou tende a ser tautoló-
gico: a industrialização é definida em termos de certas condições
que, em seguida, por uma virada imperceptível do pulso do autor,
metamorfoseiam-se em precondições históricas.
O recurso a tautologias e manipulações hábeis decorre de difi-
culdades empíricas muito reais, ou pelo menos tem servido para
disfarçá-las. Depois de nos convencermos de que, na Inglaterra,
era sensato considerar que certos fatores haviam condicionado
previamente a industrialização do país, a tendência foi e continua
a ser elevá-los à categoria de pré-requisitos presentes em todos os
processos de industrialização europeus. Infelizmente, essa tentati-
Ya era incompatível com duas observações empíricas: (1) alguns
fatores que tinham servido de pré-requisitos na Inglaterra não
estiveram presentes em países menos avançados ou, quando mui-
to, estiveram presentes em medida muito pequena; (2) nesses paí-
Ses, apesar da ausência de tais pré-requisitos, ocorreram grandes
arrancadas de desenvolvimento industrial.
RR.
kron | O atraso eco nômico em perspectiva histórica e outros ensaios
Alexander Gerschen

artadas,
ais observações não são ignoradas nem desc
Quando tais para
a pesquisa
como se tem 10 costume de fazer, elas orientam
o uso de quais recursos
uma nova questãc »: de que maneira e com
requisitos faltantes? Esta
os países atrasados substitu íram os pré-
ceito de
o

ta crucial, na qual se baseou “Reflexões sobre o con


co

pergun
“pré-requisitos” da industrialização moderna”, gerou respostas im-
õ

pré-requi-
portantes. Por um lado, parece que alguns dos supostos
ialização que
sitos não foram necessários em processos de industr
vez formula-
ocorreram em condições diferentes. Por outro, uma
variadas al-
da a pergunta, tornaram-se visíveis séries inteiras de
ternativas que puderam ser organizadas num padrão significativo,
conforme o grau de atraso econômico. Voltando mais uma vez
ao exemplo da tabela anterior, é fácil conceber que o capital for-
necido às primeiras fábricas, nos países avançados, proveio da ri-
queza previamente acumulada ou da reaplicação paulatina dos
lucros; ao mesmo tempo, a ação dos bancos e do governo nos paí-
ses menos avançados representou um conjunto de tentativas bem-
-sucedidas de criar, no curso da industrialização, condições não
criadas nos períodos “pré-industriais”, exatamente em decorrência
do atraso econômico das áreas em questão.
“Reflexões sobre o conceito de “pré-requisitos” da industrializa-
ção moderna” mostrou que a oferta de capital é apenas um dos
casos de substituição de pré-requisitos faltantes. Ao examinarmos
os vários padrões de substituição nos diferentes países, levando
em conta os efeitos da diminuição paulatina do atraso, ficamos
tentados a formular mais uma proposição geral. Quanto mais
atrasado era o país às vésperas de seu grande surto de desenvolvi-
mento industrial, maior foi a probabilidade de que os processos de
industrialização exibissem um quadro rico e complexo, propician-
do um curioso contraste com sua própria história pré-industrial,
que, não raro, foi relativamente estéril. Nos países avançados, ao
contrário, a riqueza da história econômica nos períodos pré-in-
dustriais possibilitou um curso relativamente simples e direto de
sua história industrial moderna.

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Pós-escrito sobre a industrialização europeia

Portanto, o conceito de pré-requisitos deve ser visto como par-


te integrante da abordagem geral da história industrial da Europa,
tal como eu a vejo. Ao mesmo tempo, é importante ter em mente
a natureza heurística do conceito. Não pretendo sugerir que os
países atrasados tenham praticado atos deliberados de “substi-
tuição” de algo que se evidenciara em países mais avançados.
Nos países menos desenvolvidos, é possível que os homens te-
nham simplesmente tateado e descoberto soluções compatíveis
com as condições de atraso existentes. Seria possível iniciar o es-
tudo dos processos de industrialização europeus pelo leste do
continente, em vez do oeste, e ver certos elementos da história
industrial inglesa como substitutos do modo alemão ou russo de
agir. Não seria uma forma muito boa de proceder, pois ignora-
ria a cronologia e seria flagrantemente artificial. Mas também há
certo artificialismo intrínseco na abordagem inversa: é arbitrário
escolher a Inglaterra como sede dos pré-requisitos. Mas essa é a
arbitrariedade do processo de conhecimento, que deve ser julgada
por seus frutos.
A principal vantagem de ver a história europeia a partir de pa-
drões regidos pelo grau vigente — e mutável — de atraso reside,
paradoxalmente, na oferta de um conjunto de previsibilidades, ao
mesmo tempo que isso impõe limitações à nossa capacidade pre-
ditiva. Prever não é profetizar. Na pesquisa histórica, prever signi-
fica examinar perguntas inteligentes, isto é, suficientemente espe-
cíficas, na medida em que se abordam novos materiais.
Quando realizei um estudo do desenvolvimento industrial
italiano, minha pesquisa foi predominantemente orientada pela
expectativa de encontrar bancos de investimento que desempe-
nhassem um papel central no processo. Esse padrão de substitui-
ção pôde ser “previsto” com base em estudos anteriores do cresci-
mento industrial de outros países da Europa Central, sobretudo a
Alemanha. Essa previsão foi corroborada pelo estudo do material
disponível nos arquivos. Caberia assinalar que nem a literatura da
época nem a bibliografia recente sobre o crescimento industrial
TT —
»

Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

italiano antes da Primeira Guerra Mundial avaliaram adequada-


mente a contribuição dos bancos à industrialização.
Como mostra o exemplo italiano, padrões de substituição des-
sa natureza podem espalhar-se de um país para outro de maneira
deliberada. Mas também é verdade que o conceito de substituição
tem por premissa a atividade criativa inovadora, ou seja, algo que
é intrinsecamente imprevisível a partir do nosso aparato normal
de pesquisa. Isso deve levantar o importante problema dos limites
a que está sujeita a presente abordagem. Mas há outras razões.
As hipóteses históricas não são proposições gerais ou univer-
sais. Não podem ser refutadas por uma única exceção. Testá-las
significa, sobretudo, tentar descobrir os limites do contexto em
que elas parecem ser razoavelmente válidas. Quando a pesquisa
esbarra nesses limites e os desvios das expectativas tornam-se sig-
nificativos, há duas maneiras de enfrentar a situação: ou a hipóte-
se é descartada — não necessariamente como “errada”, mas como
tendo esgotado seu valor explicativo — ou os desvios são sistema-
tizados e incorporados à hipótese, enriquecendo-a e estimulando
novas pesquisas. À hipótese desenvolvida pode vir a se distanciar
muito de sua origem. Em certo sentido, a abordagem geral, aqui
apresentada, pode ser vista como uma tentativa de sistematizar os
desvios do paradigma inglês, tendo no grau de atraso um conceito
organizador. Mas também essa abordagem pode e deve ser levada
até os limites de sua aplicabilidade.
O exame de certo conjunto de dados pode concorrer com a
abordagem histórica. Em vários ensaios meus, o atraso da econo-
mia russa teria determinado os elementos específicos da grande
arrancada industrial desse país na década de 1890. Afirmei, por
exemplo, que os russos deram preferência aos bens de capital, em
vez dos bens de consumo, por causa da importância da tecnologia
que os países muito atrasados podem tomar emprestada, aliada à
circunstância acidental de que o progresso tecnológico do período
imediatamente anterior tinha sido maior na produção de bens de
capital." Essa assimetria da estrutura industrial, natural em con-

208
Pós-escrito sobre a industrialização europeia

dições de atraso, teria sido apenas acentuada pelas medidas políti.


cas do governo russo.
É possível, contudo, fazer uma abordagem primordialmente
política da história industrial do período, considerando que a ên-
fase nos bens de capital decorreu das necessidades militares ime-
diatas do governo. Tal abordagem, que tem longos antecedentes
históricos, permitiria considerável elaboração. Porém, depois de
examinar a evolução industrial da Rússia não apenas na década
de 1890, mas também nos anos que antecederam a eclosão da
Primeira Guerra Mundial, apareceram razões muito consistentes
para considerar esse país como integrante de um padrão europeu
de desenvolvimento industrial. Julguei que a abordagem geral, tal
como apresentada aqui, oferecia uma explicação mais completa e
mais plausível do desenvolvimento total. Persiste o fato de que
alguns aspectos desse desenvolvimento — como certas fases da
construção de ferrovias, algumas técnicas de administração tribu-
tária ou decisões governamentais com respeito às comunas rurais
— seriam explicados de maneira mais natural em termos de um
conjunto de hipóteses políticas, em vez de econômicas.!? Esta deve
ser considerada uma limitação do esquema explicativo principal.
Outras limitações foram mencionadas em diferentes ensaios.
A presente abordagem versa sobre o desenvolvimento industrial
da Europa. Mas há limitações geográficas dentro da Europa. Ao
longo de todo o texto, usei países individualizados como unidades
de observação. Mas isto não quer dizer que o desenvolvimento
industrial de qualquer área europeia atrasada que se organize
como um Estado venha a se conformar às expectativas expostas
nas páginas anteriores. À economia de uma pequena nação sobe-
rana pode estar entrelaçada com a de um país mais avançado
a ponto de, na prática, se tornar parte integrante desta última.
Assim, sua evolução econômica pode ocorrer sem qualquer des-
continuidade grave, pois o caráter paulatino de seu crescimento
industrial espelha o curso dos acontecimentos no país maior. Na
ausência de algo que se assemelhe a uma grande arrancada, os

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Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e Outros ensaios

outros elementos específicos dos processos de industrialização em


condições de atraso também tendem a estar ausentes, Parece ser
esse o caso da Dinamarca, tal como mencionado em “O atraso
econômico em perspectiva histórica”,
O caso da industrialização búlgara merece ser mencionado
neste contexto, pois ilustra bem o fato de que a presente aborda-
gem não foi concebida para prever a ocorrência de um grande
surto de industrialização. A previsão — no sentido técnico do ter-
mo — possível está fadada a ser condicional. Se a Bulgária tivesse
passado por uma arrancada de desenvolvimento industrial, seria
natural buscar certos traços desta, inclusive alguns padrões de
substituição. Como a grande arrancada não se deu, tudo que nos-
sa abordagem pode fazer é atribuir essa falha à incapacidade ou à
falta de disposição do governo para descobrir e usar o padrão de
substituição apropriado. No caso da Bulgária, é plausível que o
padrão tenha consistido num esforço concentrado simultâneo dos
bancos e do governo. É útil sermos guiados para esses problemas
e formularmos algumas dessas suposições. No entanto, o valor
principal da experiência búlgara está no fato de ela sugerir forte-
mente a ideia de uma oportunidade perdida. Este parece ser o as-
pecto mais importante do problema das limitações.
Em “O atraso econômico em perspectiva histórica”, o período
que antecedeu a grande arrancada nos países atrasados foi descri-
to a partir de uma crescente tensão entre a situação econômica
vigente e a promessa oferecida pelo rápido desenvolvimento in-
dustrial. Essa acumulação de energias potenciais? não foi vista
como um processo gradual. Alguns acontecimentos políticos sig-
nificativos — como a unificação nacional, ou reformas judiciais
ou administrativas completas — puderam multiplicar repentina-
mente as oportunidades existentes! e, em certas ocasiões, desen-
cadear a grande arrancada. Ao mesmo tempo, o fluxo do progres-
so tecnológico dos países mais avançados continuou a enriquecer
O reservatório a que os países atrasados podiam recorrer em sua
busca de equipamento técnico e conhecimento. Em seus emprés-

210

o
Po
Pós-escrito sobre a industrialização europeia

timos tecnológicos, os países atrasados viriam a usar décadas ou


até séculos de progresso, a maior parte dele obtida occulto aevo
— no sereno decorrer do tempo. À luz desse processo, a tensão
precedente à grande arrancada parecia cada vez maior, e os países
atrasados eram vistos como capazes de acumular sistematicamen-
te as vantagens do atraso.
Essa visão do desenvolvimento precisa ser reconsiderada à luz
dos estudos sobre a Bulgária e sobre a Itália, sendo esses de espe-
cial relevância aqui. Em um ensaio específico, tentei esclarecer por
que a taxa de crescimento industrial da Itália durante 1896-1908
não se elevou a níveis ainda mais altos, o que teria sido razoável,
em vista do grau de atraso econômico do país na época. Na dis-
cussão desse problema, foi preciso atribuir certo peso às políticas
econômicas equivocadas do governo italiano, que insistiram em
privilegiar ramos menos promissores da atividade industrial, em
detrimento daqueles em que a vantagem comparativa do país era
maior. Mas também houve outros fatores. Em particular, sugeri
que a conclusão quase total da construção da malha ferroviária
antes do início da grande arrancada, em meados da década de
1890, exerceu um efeito amortecedor sobre a taxa de crescimento
posterior. A intensificação dos conflitos trabalhistas funcionou no
mesmo sentido. Segundo essa visão, o desenvolvimento industrial
italiano teve sua grande oportunidade na década de 1880, mas a
expansão havida nesses anos foi abortada, principalmente, porque
a Itália ainda não contava com modernos bancos de investimento.
Se essa concepção é correta, isso significa que a acumulação
de “vantagens do atraso”, pelo menos em certas ocasiões, pode
ter como paralelo uma acumulação de desvantagens do atraso.
Quando esta última avança em ritmo desigual, certos momen-
tos históricos do desenvolvimento de um país devem ser consi-
derados particularmente propícios à industrialização, como seus
Sternstunden [grandes momentos]. Modificando — e reduzindo
— a metáfora, o ônibus tido como condutor de um país durante
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e outros ensaios

seu grande surto de industrialização pode passar em horários es-


tranhos e é possível perdê-lo. Talvez o ônibus seguinte não seja
tão grande, conveniente ou veloz quanto o anterior. De qualquer
modo, a espera por ele pode ser bem longa. Em outras palavras,
tanto o momento quanto o caráter da grande arrancada de um
país podem ser afetados.
Não há dúvida de que as “oportunidades perdidas” podem cons-
tituir limitações reais a esta abordagem geral do desenvolvimento
industrial da Europa. Algumas dessas oportunidades desaparecem
de forma errática e imprevisível, pelo menos do ponto de vista dos
economistas. As múltiplas dificuldades e deficiências estruturais
do período entreguerras, num país como a Bulgária, são um bom
exemplo disso. Elas foram de natureza essencialmente política, ou
foram consequências de eventos políticos. Mas há outras situações
e outros fatores que tendem a se prestar melhor para estudos orga-
nizados e permitem que se tirem mais conclusões gerais.
Deslocar a atenção para o estudo das dificuldades e dos obstá-
culos que se acumulam com o aumento do grau de atraso econô-
mico pode levar à formação de um conceito mais geral de “pontos
nodais”, em que as vantagens do atraso atinjam níveis ótimos, para
além dos quais haja pelo menos um período limitado de promes-
sas diminuídas e deficiências crescentes. Esse estudo envolveria,
entre outras coisas, um exame muito mais minucioso das relações
existentes entre o ritmo do avanço tecnológico e as inovações do-
minantes, por um lado, e seu impacto nas economias de países
atrasados em processo de industrialização, por outro. Meus atuais
planos de pesquisa apontam nessa direção.
É possível que, como resultado dessas explorações adicionais,
os desvios da norma sejam novamente introduzidos num sistema
e que nossa abordagem da história industrial da Europa se torne
mais complexa e mais esclarecedora. Contudo, como já foi dito,
a natureza dos desvios talvez exija e até sugira um princípio or-
ganizador muito diferente das variações no grau de atraso. Isso

E
Pós-escrito sobre a industrialização europeia

significaria O fim de uma abordagem. Mas o adeus a ela seria


acompanhado de um sentimento de gratidão. O que mais se pode
esperar de uma hipótese histórica senão que ela estimule a pes-
quisa de modo a tornar-se o ponto de apoio de uma nova hipó-
tese e de novas pesquisas?

Notas
1. A “grande arrancada” tem estreita relação com a “decolagem” de W. W.
Rostow (The Stages of Economic Growth, Cambridge, Massachusetts, 1960,
cap. 4) [Etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não-comunista,
trad. Octavio Alves Velho, Rio de Janeiro, Zahar, 1961]. Os dois conceitos
frisam o componente de descontinuidade específica do desenvolvimento
econômico; entretanto, as grandes arrancadas restringem-se às áreas da ma-
nufatura e da mineração, ao passo que as decolagens se referem à produção
nacional. Infelizmente, no estado atual de nossas informações estatísticas
sobre o crescimento a longo prazo da renda nacional, praticamente não há
como estabelecer, muito menos testar, a hipótese da decolagem.
. Ver, por exemplo, Bruno Hildebrand, Die Nationalóôkonomie der Gegenwart
und Zukunft und andere gesammelte Schrifien, I (Jena, 1922), p. 357.
Ver Rostow, The Stages of Economic Growth, p. 118ss [Etapas do desenvolvi-
mento econômico, op. cit.].
Rostow, cap. 7 e p. 162. Numa gentileza à memória de Thomas Mann, con-
vém mencionar que Os Buddenbrook é um romance que versa sobre a de-
cadência biológica de uma família cuja vitalidade declina de geração para
geração.
Ver a discussão deste ponto em “O atraso econômico em perspectiva his-
us

tórica”
Rostow, cap. 3. O autor exclui expressamente de suas generalizações os Esta-
dos Unidos e os domínios britânicos, mas isso não tem qualquer interesse no
Presente contexto, que se restringe à história industrial da Europa.
Ibid.
Nesse sentido, a discussão do espírito empreendedor no desenvolvimento
económico, em “Atitudes sociais, espírito empreendedor e desenvolvimento
econômico”, pode ser considerada uma contribuição para o problema dos
Pré-requisitos do crescimento industrial.
Esses capítulos foram escritos antes de “Reflexões sobre o conceito de “pré-
=

“Tequisitos” da industrialização moderna”, onde o conceito de pré-requisito


É discutido de modo mais ordenado.

213
Alexander Gerschenkron | O atraso econômico em perspectiva histórica e Outros ensaios

10. Não admira, portanto, vermos Rostow, a certa altura (p. 49), Mist
urar com
muita liberdade condiçoes e precondiçoes do desenvolvimento industrial
n Ver os ensaios “O atraso econômico em perspectiva histórica” e “Rús
padrões e problemas do desenvolvimento econômico, 186]- 1958”
Hirschman, cu criHoje
e
tendo sido influenciado pelos estudos de Albert
ria que os bens de capital dotados de complexos “encadeamentos para à
frente” têm especial importância nos países muito atrasados, nos quais q
mercado interno é pequeno e a existência de circuitos ativos de “investi.
mento pelo investimento” pode ser de suma importância para sustentar
a
grande arrancada. Albert O. Hirschman, The Strategy of Economic
Develop-
ment (New Haven, 1958), cap. 6 [A estratégia do desenvolvimento econômico
,
trad. Laura Schalaepfer, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961]
12 Curiosamente, numa explicação desse tipo, seria preciso dar muito peso a
um fator que costuma ser negligenciado: as relações entre o Ministério da
Fazenda e o Ministério do Interior.
13. Recentemente, alegrei-me ao deparar com uma passagem, num pequeno
livro esquecido do grande sociólogo alemão Georg Simmel (Der Krieg und
die geistigen Entscheidungen, Munique/Leipzig, 1917, p. 22-23), que con-
tém uma concepção muito semelhante do desenvolvimento industrial ale-
mão. Simmel fala explicitamente da imensa acumulação de wirtschafiliche
Spannkráfte [tensões econômicas] que, durante muito tempo, não puderam
ser liberadas.
14. Ao se lidar com a visão otimista do futuro do mundo no século XIX, em
geral tinha-se menos disposição para considerar a contingência das reduções
da tensão resultante de guerras destrutivas ou da legislação anti-industrial.

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