Você está na página 1de 4

ANIVERSARIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 


Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 


Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família, 
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. 
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. 
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, 


O que fui de coração e parentesco. 
O que fui de serões de meia-província, 
O que fui de amarem-me e eu ser menino, 
O que fui - ai, meu Deus !, o que só hoje sei que fui... 
A que distância ! ... 
(Nem o acho ...) 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos !

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, 


Pondo grelado nas paredes... 
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lagrimas), 
O que sou hoje é terem vendido a casa, 
É terem morrido todos, 
É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio....

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... 


Que meu amor, como uma pessoa, este tempo ! 
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, 
Por uma viagem metafísica e carnal, 
Com uma dualidade de eu para mim... 
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui ... 
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, 
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado - , 
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração ! 


Não penses ! Deixa o pensar na cabeça ! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus ! 
Hoje já não faço anos. 
Duro. 
Somam-se-me dias. 
Serei velho quando o for. 
Mais nada. 
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira !...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos ! ...

(Poesias de Álvaro de Campos, ed. cit., pp.282-284.)

Sobre o heterônimo Álvaro de Campos (1890 - 1935?)

Álvaro de Campos representa a parte mais audaciosa de responsabilidade literária e extra-literária que Fernando Pessoa se permitiu. Seus poemas são marcados pela oralidade
e pela prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa, desprezando a rima ou métrica regular, e despejando seus versos em torrentes de incontrolável
desabafo. Tendo-lhe sido dada a faceta predominante da emoção impulsiva, encontramos em seus versos a expressão diretamente enunciada de seus sentimentos pessoais.

Como normalmente acontece com os poetas de carne e osso, o heterônimo Álvaro de Campos apresenta fases distintas em sua poesia. De início é influenciado pelo
decadentismo simbolista, depois pelo futurismo e por fim, amargurado, escreve poemas pessimistas e desiludidos. Aniversário pode-se enquadrar nesta última fase do poeta,
pois demonstra amargura e melancolia em relação ao passado e pessimismo em relação a existência.

O heterônimo Álvaro de Campos ainda vivia quando Fernando Pessoa faleceu, em 1935, mas a observação diacrônica de sua obra leva-nos a supor que este já usava em seus
últimos versos um tom de conformismo amargo em relação a sua própria existência, como também acontece no poema Aniversário.

Análise do poema

A não distribuição uniforme dos versos e a despreocupação com a distribuição rítmica dão ao poema um tom confessional, aproximando-o de um texto em prosa. As lembranças
relatadas no texto referem-se a uma data específica lembrada pelo eu-poético - o dia do aniversário. Esta data é a propulsora para outras recordações da infância e outras
angútias do eu-poético, servindo também como ponto de referencia temporal quando o eu-poético intercala-se e contrapõe-se entre o passado e o presente.

A época da infância no poema é marcada pela inocência, pois a criança ainda não tem noção do que se passa à sua volta: "Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa
nenhuma". A passagem da criança para o adulto é marcada por uma perda, pois ele percebe que a vida não tem mais sentido. O poeta hoje "é terem vendido a casa", ou seja, é
um vazio, que perdeu, inclusive, o bem mais precioso, a sensação de totalidade, de alegria, de aconchego dado pela vida em família na infância longínqua. Assim, a festa de
aniversário toma o aspecto simbólico de um ritual familiar e religioso, dentro do qual a criança se torna o centro de um mundo que a acolhe e protege carinhosamente.

"As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa", denota, com esta adjetivação uma característica comum a toda infância: o egocentrismo. No presente, não há
mais aniversários nem comemorações: resta ao poeta durar, porque o pensamento amargurado, critico e pessimista da vida o impede de ter a inocência de outrora. O tom
nostálgico e angustiado do poema dá a sensação de que o eu-poético vive uma introspecção conflitiva relembrando um passado supostamente mais feliz que o presente.

O trecho "serei velho quando o for. Nada mais." parece querer dar fim a este conflito interno. "Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira !..." conclui o tom
confessional do poema e enfatiza uma espécie de conformismo ríspido e amargurado com o presente melancólico e sem perspectiva em relação a vida. "O tempo em que
festejavam o dia dos meus anos !" é repetida muitas vezes no texto dando ênfase a importância da data na lembrança do eu-poético, servindo também para marcar a justa
contraposição entre passado e presente, respectivamente infância e fase adulta. O ultimo verso do poema sugere uma acomodação amargurada em relação ao passado.

Em "Eu era feliz e ninguém estava morto" pode-se notar novamente o conformismo com o presente que pode não ser o idealizado, mas que está alicerçado em um passado
inocente, de aspecto virginal, contrapondo-se com a atual falta de perspectivas e a desmotivação para a vida, onde ele diz: "Hoje já não faço anos. Duro." O eu-poético oraliza
um tom de amargura versificado de forma clara, coesa e coerente, marcando com precisão verbal os estados temporais e emocionais a que se refere no poema. Por se parecer
com uma "auto-confissão poética", pode-se afirmar que o eu-poético insere no texto características comuns às pessoas que estão prestes a deixar o mundo material, ou que
neste não sentem mais vontade de estar por muito mais tempo.

A reflexão conflitiva e melancólica sobre o passado, a amargura em relação ao presente e sensação de que o tempo passou e algo que deveria ser resgatado perdeu-se em um
passado longínquo, são características comuns em pessoas que encontram-se neste estágio da existência humana.
 
A não distribuição uniforme dos versos e a despreocupação com a distribuição rítmica dão ao poema um tom confessional, aproximando-o de um texto em prosa. As
lembranças relatadas no texto referem-se a uma data específica lembrada pelo eu-poético - o dia do aniversário. Esta data é a propulsora para outras recordações da infância
e outras angútias do eu-poético, servindo também como ponto de referencia temporal quando o eu-poético intercala-se e contrapõe-se entre o passado e o presente. A época
da infância no poema é marcada pela inocência, pois a criança ainda não tem noção do que se passa à sua volta: "Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma".
A passagem da criança para o adulto é marcada por uma perda, pois ele percebe que a vida não tem mais sentido. 

O poeta hoje "é terem vendido a casa", ou seja, é um vazio, que perdeu, inclusive, o bem mais precioso, a sensação de totalidade, de alegria, de aconchego dado pela vida
em família na infância longínqua. Assim, a festa de aniversário toma o aspecto simbólico de um ritual familiar e religioso, dentro do qual a criança se torna o centro de um
mundo que a acolhe e protege carinhosamente. "As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa", denota, com esta adjetivação uma característica comum a
toda infância: o egocentrismo. No presente, não há mais aniversários nem comemorações: resta ao poeta durar, porque o pensamento amargurado, critico e pessimista da
vida o impede de ter a inocência de outrora. O tom nostálgico e angustiado do poema dá a sensação de que o eu-poético vive uma introspecção conflitiva relembrando um
passado supostamente mais feliz que o presente. 

O trecho "serei velho quando o for. Nada mais." parece querer dar fim a este conflito interno. "Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira !..." conclui o tom
confessional do poema e enfatiza uma espécie de conformismo ríspido e amargurado com o presente melancólico e sem perspectiva em relação a vida. "O tempo em que
festejavam o dia dos meus anos !" é repetida muitas vezes no texto dando ênfase a importância da data na lembrança do eu-poético, servindo também para marcar a justa
contraposição entre passado e presente, respectivamente infância e fase adulta. O ultimo verso do poema sugere uma acomodação amargurada em relação ao passado. Em
"Eu era feliz e ninguém estava morto" pode-se notar novamente o conformismo com o presente que pode não ser o idealizado, mas que está alicerçado em um passado
inocente, de aspecto virginal, contrapondo-se com a atual falta de perspectivas e a desmotivação para a vida, onde ele diz: "Hoje já não faço anos. Duro.

" O eu-poético oraliza um tom de amargura versificado de forma clara, coesa e coerente, marcando com precisão verbal os estados temporais e emocionais a que se refere no
poema. Por se parecer com uma "auto-confissão poética", pode-se afirmar que o eu-poético insere no texto características comuns às pessoas que estão prestes a deixar o
mundo material, ou que neste não sentem mais vontade de estar por muito mais tempo. A reflexão conflitiva e melancólica sobre o passado, a amargura em relação ao
presente e sensação de que o tempo passou e algo que deveria ser resgatado perdeu-se em um passado longínquo, são características comuns em pessoas que encontram-
se neste estágio da existência humana.

Você também pode gostar