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Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca

Escola Secundária de Ponte da Barca


Cód. Agr.: 152626

O Fingimento artístico

Pessoa inscreve na sua poesia a reflexão sobre a própria poesia. Autopsicografia e Isto
apresentam uma poética do fingimento, oposta a uma poética da sinceridade, dado que a poesia, sendo
realizada com palavras, num processo racional, é uma operação intelectual. A poética do fingimento
opõe-se a uma poética tradicional, sentimental e romântica (representada pelo “coração”): o
“eu”poético não coincide com o “eu” do autor, nem é necessariamente a sua projeção.
A criação artística desenvolve-se mediante um processo intelectual que converte a matéria
original – emoções, sentimentos, sensações – em ideias e conceitos, ou seja, existe uma objetivação da
subjetividade, de modo a que esta possa ser trabalhada esteticamente.
Afirmar que “O poeta é um fingidor”, para lá da vertente provocatória e paródica, é afirmar uma
arte poética que assume a necessária componente intelectual de qualquer construção mental. “Fingir”
significa na sua origem latina (Fingère) modelar na argila, dar forma a qualquer substância plástica, dar
feição a, reproduzir os traços de, representar, imaginar, fingir, inventar. “Fingir” poeticamente não é
mentir, é, verdadeiramente, trabalhar pelo intelecto a matéria da poesia na sua dupla realidade, a da
inspiração e a da expressão. O poeta tem de se despersonalizar, de sair de si enquanto criatura
biográfica, e recriar a matéria sentida, vivida ou sonhada, procedendo à intelectualização dos
sentimentos. A oposição entre sinceridade e fingimento é, pois, uma falsa oposição, dado que cada uma
das atitudes se inscreve num diferente patamar, o da existência e o da criação, sendo, então, o poeta
sincero quando finge.

A dor de pensar

A poesia ortónima pessoana caracteriza-se por uma permanente atitude de autoanálise e


reflexão que radica numa sensação de estranheza do “eu” relativamente a si mesmo; daí, também, o
fingimento artístico, até porque, segundo Pessoa, “fingir é conhecer-se”. A perscrutação do “eu” e a
atitude autorreflexiva são frequentemente provocadas por estímulos sensoriais exteriores: a
contemplação da água, a audição de uma música, a reação à chuva, desencadeiam o sentido de
fragmentação do “eu” e a consequente busca de autoconhecimento.

A intelectualização dos sentimentos, atitude fundamental do poeta e condição essencial à


criação poética, é, contudo, geradora de dor: este processo, marcado pela lucidez, intensifica as
sensações de tédio, náusea e vacuidade existencial, de solidão e incapacidade de realização, de
inquietação e angústia existencial. O desdobramento do “eu” – o “eu” que sente e o “eu” que se sente
a pensar que sente – permite a autoanálise reflexiva e gera diversas antinomias: pensar / sentir,
consciência / inconsciência, “eu” / mundo. O verso “O que em mim sente, ‘stá pensando.” Sintetiza a
impossibilidade de sentir apenas, ou seja, de escapar à dor de pensar, uma vez que o pensamento

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conduz sempre à consciencialização, dado que é nele que “o poeta é fingidor”, isto é, que “finge a dor”,
o mesmo é dizer que intelectualiza a matéria poética.

Sonho e realidade

Pessoa procura fugir à dor de pensar através do sonho, ‘ato-estado-produto’ que permite, pelo
menos, a semi-inconsciência e o vislumbre de uma outra realidade, ideal, onde existe, ou poderá ou
poderia existir, um outro “eu”, havendo, porém, uma intransponível barreira que impossibilita a real
existência do “eu” ideal, sonhado: “Entre o sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / É o que eu
me suponho, / Corre um rio sem fim.” Por outro lado, constituindo uma evasão, (in)consciente ou
racional, da realidade, o sonho torna-se também ele fonte de angústia e dor, dado que a própria
realidade “já sonhada se desvirtua” porque, mesmo que apenas mental ou imaginariamente, ganhou
consistência e referente.

Assim, o sonho não altera a realidade, por vezes, nem sequer a transfigura, acentuando a
negatividade do presente e da realidade vivida. À semelhança de outras antinomias pessoanas, a
oposição entre o sonho e a realidade é geradora de angústia e revela a impossibilidade de felicidade.

A nostalgia da infância

A memória da infância constitui um outro modo de tentar fugir à dor de pensar. Tal como o
sonho, a memória da infância surge como espaço-tempo onde o apenas sentir e a inconsciência são
possíveis. Contudo, o sonho não modifica a realidade e a evocação da infância provoca uma angustiada
nostalgia, até porque evidencia o carácter disfórico e negativo do ser presente.

A infância surge idealizada, com contornos míticos, sendo o seu valor determinado pelo
presente: não existem certezas quanto à real felicidade vivida, o que importa é a perceção, no presente,
de que essa felicidade existiu realmente. Trata-se de uma (re)construção, muitas vezes operada por
intermédio da música, que visa simultaneamente a satisfação emocional, no presente, e a perpetuação
da própria memória, inscrita no passado. Assim, a evocação da infância é uma manifestação da temática
do tempo, perspetivado como desagregador da unidade e da felicidade para sempre perdidas.

A temática da nostalgia da infância conjuga-se com os outros traços fundamentais da poesia


ortónima: através da escrita poética enquanto análise autorreflexiva, a memória da infância gera a dor
de pensar porque potencia as antinomias pensar / sentir, razão/ coração, consciência / inconsciência,
entendidas numa oposição temporal presente / passado, sendo evidenciada a vertente destruidora da
passagem do tempo e o carácter transitório da felicidade e da vida.

In 12 Português – Preparar o exame 2020, Raiz Editora, pp. 197-198


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