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A RELA-
ÇÃO ENTRE A COMPOSITORA E A TEORIA SOCIAL DO ESCÂNDALO.1
Maristela Rocha
Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ
Graduada em Comunicação Social, Jornalismo, pela UFJF
maristelarocha.rocha@gmail.com
1
II Colóquio Internacional de História da Arte e da Cultura (CIHAC) – “O artista e a sociedade” – UFJF, 2012. Publica-
do nos anais do congresso.
das festas sociais eram os valores essenciais, sobretudo na camada social à qual a menina
Francisca Edwiges obliquamente pertencia, apenas por mérito do pai, o militar Basileu.
Ressaltando o patriarcalismo da sociedade brasileira, Gylberto Freire, em Casa-Grande &
Senzala, explica que:
De dama a mulher livre, do sobrado a casa de porta e janela, sua reputação e posição
social induzia uma mulher facilmente à prostituição. Em geral desaparelhada para o
exercício de uma profissão, a recusa à carreira doméstica fazia com que se enqua-
drasse na outra única via possível de subsistência (DINIZ, 1991, p.91).
Outra barreira rompida pela transgressora Chiquinha Gonzaga pode ser registrada
pela repercussão do seu tango Corta-Jaca no Catete, executado pela irreverente Nair de
Teffé, também contestadora da submissão feminina. Durante uma recepção oferecida ao
corpo diplomático no Palácio do Catete, onde deveria prevalecer a música erudita, Nair de
Teffé, esposa do Presidente da República Marechal Hermes da Fonseca, interpretou a mú-
sica Corta-Jaca. Além de expressar o gosto musical, Nair de Teffé teve, também, o intuito
contestador a favor do maxixe, devido a repercussão negativa do gênero na sociedade de
então. Além disso, o violão era considerado um instrumento para músicos do sexo mascu-
lino.
E o contagiante maxixe desencadeou mesmo muita polêmica. Segundo a biógrafa
Dalva Lazaroni, a Igreja fazia apelos contra a dança e os ministros aproveitavam os ser-
mões e as aulas de catecismo para alertar sobre os “perigos do maxixe”: “- O maxixe não é
uma dança de família. Ao contrário, deve ser evitada pelas meninas e meninos que querem
crescer sadios e sem problemas mentais para o futuro. É uma dança que perverte” (In: LA-
ZARONI, 1999, p. 446).ii
Além da repercussão nacional, o maxixe foi o primeiro ritmo brasileiro a alcançar
sucesso na Europa, em especial pelo trabalho dos dançarinos Gaby e Antonio Lopes de
Almeida Dinis, o “Duque”. Dalva Lazaroni explica que, antes da reação negativa das bases
eclesiásticas, o então Ministro da Guerra, Marechal Hermes da Fonseca, declarara o maxi-
xe indigno de ser tocado pelas bandas militares de todo o Brasil e proibia que fosse execu-
tado em solenidades oficiais.
A interpretação do maxixe na Itália causou indignação no clero e até no Papa. La-
zaroni registra que a Igreja romana publicou uma bula papal, condenando o maxixe ao in-
ferno e amaldiçoando seus criadores:
Demônio, capeta, maxixe, mulher diabo, eram palavras que, quando ditas, vinham
acompanhadas de sinais da cruz e mãos postas e erguidas aos céus.
O pobre coitado do cardeal Arcoverde, do Rio de Janeiro, foi convocado às pressas
para dar maiores detalhes sobre o assunto que comprometia a família européia e co-
locava em risco a honra e os bons costumes mundiais.
De todas essas manifestações do clero, depois de longos debates, chegou-se a uma
conclusão: o maxixe era maldito, devia ser excomungado (LAZARONI, 1999,
p.452).iii
Segundo a museóloga e memorialista Cleusa de Souza Millan, na obra A memória
social de Chiquinha Gonzaga, a compositora sofreu a ação da censura, em sua longa traje-
tória musical, de uma forma direta e de uma forma indireta. Na época da Revolta da Arma-
da, por exemplo, quando a cidade do Rio de Janeiro foi bombardeada por navios revolto-
sos, ocasionando o estado de sítio, Chiquinha sofreu uma censura de forma direta. A can-
çoneta Aperte o botão, considerada ousada pelo governo Floriano Peixoto, foi apreendida,
a edição inutilizada e a autora recebeu ordem de prisão. Entretanto, devido ao seu paren-
tesco com pessoas ilustres, nada sofreu (MILLAN, 2000, p.16).
Além disso, Chiquinha foi censurada indiretamente ao longo do final da década de
1910 e no início de 1920, quando a 2ª Delegacia Auxiliar da Polícia do Distrito Federal e a
Comissão de Censura do Conservatório Musical de São Paulo censuraram parte dos textos
de peças teatrais musicadas pela maestrina. A memorialista ressalta que, como as músicas
se relacionavam, em cada cena, com os diálogos dos personagens censurados, é evidente
que também as músicas foram censuradas, sendo incorporadas mais tarde ao acervo do
DIP, durante o Estado Novo:
Esta moça para mim está morta! Morta para todos nós da família Neves Gonza-
ga! Seu nome está proibido de ser pronunciado, sob qualquer hipótese, por qual-
quer membro de nossa família. Quem quiser ser meu inimigo é só mencionar o
nome daquela... daquela... (DINIZ, 1991, p.256).
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i
O tio paterno e padrinho de batismo, o flautista Antonio Eliseu também influenciou na vida musical da futura maestrina. Por sinal, foi
esse tio quem apresentou, como surpresa à família, no Natal de 1858, a primeira composição da menina Chiquinha, então com 11 anos,
com letra do irmão Juca, de 9 anos, a loa Canção dos Pastores.
ii
Referimo-nos a um estilo de dança brasileira que utiliza o ritmo binário da polca e do tango, ou seja, no maxixe há uma predominância
da dança, da coreografia sobre a música. É caracterizado pelo caráter lascivo da dança, pela sincopação, pela vivacidade rítmica da
música, pela influência dos elementos do batuque e pela utilização da gíria carioca, quando cantado. Apenas no final do século XIX as
casas editoriais o consideraram um gênero musical, imprimindo as músicas com essa qualificação.
iii
A mulher a que se refere a citação é a própria Chiquinha Gonzaga.
iv
Após a desativação do DIP, o acervo de peças censuradas fez parte do Ministério da Indústria e Comércio (MIC) que, então, doou-o ao
Arquivo Nacional, onde está arrolado nas pastas SDA 021 (Peças Teatrais- Índice); SDA 022 (Peças Teatrais. 1) e SDA 022 A. (Peças
Teatrais. 2.).
v
O Passeio foi construído em 1783 e foi o grande ponto de encontro da população carioca nos séculos XVIII e XIX. Em seu interior, os
habitantes do Rio de Janeiro, bem como os turistas, podiam contemplar, além de variadas espécies da flora nacional, obras de arte, como
chafarizes e esculturas, confeccionadas por Mestre Valentim. No início do século XX, o Passeio passou a ser ornamentado por bustos de
personalidades brasileiras, esculpidos por variados artistas. O busto de Chiquinha foi esculpido em 1942.