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CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIDADE DE ENSINO SUPERIOR DOM BOSCO

CURSO SUPERIOR EM PSICOLOGIA


PSICOLOGIA E NEUROCIÊNCIAS

PISTAS PARA UMA COMPREENSÃO NEUROCIENTÍFICA DA SÍNDROME


DE TOURETTE: possíveis causas e intervenções terapêuticas1
Luane Macedo Souza Pereira2
Dr. Jomar Diogo Costa Nunes3

RESUMO

Desde 1825, há registros da Síndrome de Tourette, com o caso da Marquesa de


Dampierre. Hoje, a ST é classificada no DSM-V como transtorno de tiques. Com este
artigo, objetiva-se compartilhar descobertas das neurociências, no tocante às
investigações de possíveis causas para a ST, bem como as possibilidades de tratamento.
A metodologia adotada dedica-se à pesquisa e revisão bibliográfica. Na fundamentação
teórica, busca-se trazer a visão psiquiátrica e descobertas da neurociência. Em seguida,
discute-se as principais abordagens clínicas e terapêuticas, bem como suas eficácias
prognósticas. Estende-se ainda a discussão para aspectos do desenvolvimento
psicossocial de crianças e adolescentes com ST, procurando pensar diversos contextos
para uma vida saudável, como convívio familiar, escolar e comunitário.

Palavras-chave: Síndrome de Tourette. Cognição. Neurociência. Desenvolvimento.


Intervenções. Psicoterapias. Psicossocial.

1. INTRODUÇÃO
O primeiro caso registrado de Síndrome de Tourette (ST) foi no ano de 1825,
da Marquesa de Dampierre, cujos sintomas foram descritos pelo médico francês Jean
Itard. Sessenta anos depois, Gilles de la Tourette, médico residente de Charcot no
Hospital da Salpêtrière, conseguiu agrupar outros casos à doença observando a

1
Paper para obtenção de aprovação na disciplina Psicologia e Neurociências.
2
Graduanda no 8º período de Psicologia no Centro Universitário Unidade de Ensino Dom Bosco.
3
Professor titular da disciplina Psicologia e Neurociências na UNDB.

1
semelhança na sintomatologia clínica. Com o tempo, a psiquiatria e as neurociências
puderam aprimorar as compreensões sobre a síndrome.
Hoje, a ST é classificada no DSM-V como transtorno de tiques. Os tiques
surgem ainda na infância de forma abrupta, recorrente e involuntária, e vão desde
movimentos mais simples e sons não articulados aos tiques mais complexos com
movimentos ou verbalizações coordenadas. Além de danos cognitivos, com frequência,
pessoas acometidas por essa síndrome, sofrem preconceitos e estigmatização social, o que
gera impactos em suas relações interpessoais, autoestima e saúde mental.
No Brasil, existe a Associação Solidária do Transtorno Obsessivo
Compulsivo e Síndrome de Tourette – ASTOC ST, que visa difundir conhecimento e
prestar acolhimento de forma gratuita a pessoas com TOC e ST. Essa associação se faz
necessária uma vez que há registros de mais de 150 mil casos por ano no país, no entanto,
a discussão sobre esse transtorno ainda é pouco difundida. Nesse sentido, com este artigo,
objetiva-se compartilhar descobertas das neurociências no tocante às investigações de
possíveis causas para a ST, bem como as possibilidades de tratamento.
A metodologia adotada aqui dedica-se à pesquisa e revisão bibliográfica em
artigos, revistas e sites. Na fundamentação teórica, busca-se primeiro trazer a visão
psiquiátrica sobre a ST, explicitando a definição, critérios diagnósticos, quadro clínico
etc. Depois, são convocados estudos da neurociência, nos quais buscar-se-á compreender
as bases biológicas da ST, implicações nas funções executivas e no desenvolvimento
cognitivo de pacientes diagnosticados.
Em seguida, discute-se as principais abordagens clínicas e terapêuticas baseadas
nas neurociências, psicologia e psicofarmacologia utilizadas no tratamento para a ST, e
também a eficácia prognóstica de cada uma. Estende-se ainda a discussão para quais as
funcionalidades possíveis a um desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes
com ST, procurando pensar diversos contextos para uma vida saudável, como convívio
familiar, escolar e comunitário.
Por fim, entende-se que a ST é um caso clínico raro, sobre o qual ainda não há
muitas certezas dentro de um universo de reflexões teóricas que estão tateando esse tema.
Dada a diversidade de produções científicas e a abrangência interdisciplinar e
multiprofissional que envolvem as discussões entono da ST, este trabalho é, portanto, um
esforço no desvelamento de pistas advindas dos estudos das neurociências, psiquiatria e
psicologia para compreensão do desenvolvimento da ST em indivíduos diagnosticados.

2
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Definição, quadro clínico e diagnóstico
A Síndrome de Tourette é um transtorno neuropsiquiátrico, classificada pelo
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) como um Transtorno
de Tique (TT). Dentro desse espectro, existem quatro categorias diagnósticas,
classificadas nesta ordem: transtorno de Tourette, Transtorno de Tique motor ou vocal
persistente (crônico), Transtorno de Tique Transitório, Outro Transtorno de Tique
Especificado e Transtorno de Tique não Especificado. As categorias são hierárquicas
pois, uma vez diagnosticado um transtorno de tique em um nível hierárquico, um
diagnóstico hierarquicamente inferior não pode ser feito (APA, 2013).
Um tique é um movimento motor ou sonoro repentino, rápido, recorrente e
não ritmado. Em geral, os tiques são involuntários, podendo ser suprimidos por períodos
curtos de tempo, associados frequentemente a alguma sensação somática que antecede o
tique (premonitória) e uma sensação de alívio após sua ocorrência. No caso da Síndrome
de Tourette, devem estar presentes tiques motores e sonoros persistentes por mais de um
ano, entre outros critérios diagnósticos, conforme a Tabela 1 (APA, 2013):

Tabela 1: Critérios Diagnósticos - Transtorno de Tourette 307.23 (F95.2)

A. Múltiplos tiques motores e um ou mais tiques vocais estiveram presentes em algum momento
durante o quadro, embora não necessariamente ao mesmo tempo.
B. Os tiques podem aumentar e diminuir em frequência, mas persistiram por mais de um ano
desde o início do primeiro tique.
C. O início ocorre antes dos 18 anos de idade.
D. A perturbação não é atribuível aos efeitos fisiológicos de uma substância (p. ex., cocaína) ou a
outra condição médica (p. ex., doença de Huntington, encefalite pós-viral).

Tiques são comuns na infância, a American Psychiatric Association admite


que até 20% das crianças em idade escolar irão apresentar tiques transitórios em algum
momento (APA, 2013). O início acontece tipicamente entre 4-6 anos de idade, chega a
um pico de gravidade pelos 10-12 anos, e vai ficando menos intenso na adolescência
(APA, 2013; MERCADANTE et al., 2004). Quanto à prevalência, a estimativa é que a
ST varie de 3 a 8 a cada 1.000 crianças em idade escolar, mais presente no sexo masculino,
com a proporção variando de 2:1 a 4:1 em relação ao feminino. Quando adultos, as taxas
caem para 1 em cada 1.000 homens e 1 em cada 10.000 mulheres (APA, 2013).

3
A vulnerabilidade para o desenvolvimento de comorbidades varia de acordo
com as idades de risco. Por exemplo, crianças de 10-12 anos com TT são mais propensas
a ter TDAH, TOC e transtorno de ansiedade de separação, enquanto que adolescentes e
adultos são mais propensos a ter o início de um transtorno depressivo maior, transtorno
por abuso de substância ou transtorno bipolar. Além disso, nota-se que mulheres com TT
persistentes podem ser mais propensas a sofrer de ansiedade e depressão (APA, 2013;
MERCADANTE et al., 2004; TEIXEIRA et al., 2010).
De acordo com Oliveira e Massano (2012, p. 212), o que mais estigmatiza os
indivíduos com esse transtorno são os tiques complexos motores que “incluem marcha
bizarra, pontapear, saltar, rotação corporal, arranhar, copropraxia (produção de gestos
obscenos), ecopraxia (imitação de gestos)”, e também os tiques complexos sonoros, que
envolvem “coprolalia (emissão de palavras obscenas), ecolalia (repetição de palavras) e
palilalia (repetição de uma frase ou palavra com velocidade crescente)”.
Além do considerável prejuízo social causado pela presença dos tiques,
Miranda (1999, apud TEIXEIRA et al., 2010, p. 496) observou um caso de
“desprendimento de retina devido a tiques distônicos cervicais e fratura de costelas devido
a tiques motores complexos, no qual o paciente golpeava severamente seu tórax”.
Segundo Teixeira e outros (2010), podem ocorrer também problemas ortopédicos
causados pela excessiva flexão dos joelhos ou por virar exageradamente o pescoço ou a
cabeça, e problemas cutâneos advindos do tique de beliscar-se.
Enfim, as pessoas acometidas da ST, por ter as primeiras manifestações logo
na infância e início da adolescência, podem sofrer danos em seu processo de
desenvolvimento cognitivo e psicossocial (OLIVEIRA e MASSANO, 2012). Nota-se,
uma perda em alguns processos das funções executivas e disfunções no Sistema Nervoso
Autônomo de indivíduos acometidos por esse transtorno, a respeito das quais ainda não
há consenso se são parte da patogênese ou consequências da evolução da ST. De todo
modo, são aspectos relevantes, e por esse motivo, o próximo item irá se ater a
especificidades no neurodesenvolvimento dessas pessoas.
2.2 Estudos da neurociência e as pistas para as causas da ST
A cognição social é o processo neurobiológico através do qual as pessoas são
capazes de interpretar e responder adequadamente aos signos. As estruturas anatômicas
implicadas nesse processo são: “a amígdala, o córtex pre-frontal ventromedial, a ínsula e
o córtex somatosensorial direito” (BUTMAN e ALEGRI, 2001, p. 275). Além destas, é

4
importante considerar o córtex frontal, os gânglios basais e o tálamo porquanto, de acordo
com Santos (2020), estes são cruciais para a coordenação e controle motor.
Circuitos neuronais paralelos, “que dirigem informação desde o córtex até
estruturas subcorticais (gânglios basais) e retornam ao córtex passando pelo tálamo”,
chamados circuitos córtico-estriato-tálamo-corticais (CETC), são responsáveis por
mediar a atividade motora, sensorial, emocional e cognitiva (TEIXEIRA et al. 2010, p.
494). Sendo assim, alguns autores concordam que a fisiopatologia da ST pode estar
relacionada a uma falha da ação inibitória nesses circuitos, que suprime impulsos
premonitórios para o movimento e se expressa como tiques (TEIXEIRA et al., 2010;
SANTOS, 2020; LOUREIRO et al., 2005; MERCADANTE et al., 2004).
Loureiro e outros (2005, p. 223) corroboram com essa ideia afirmando que
“no caso do corpo estriato não inibir a ação dos neurônios glutaminérgicos encontrados
no tálamo, projeções excitatórias seriam então enviadas do tálamo para o córtex”. E
assim, pacientes com ST ficam impossibilitados de “inibir o estímulo secundário ao
fenômeno sensório-premonitório, que resulta na ativação do circuito motor e no
desenvolvimento dos comportamentos motores e fônicos” (Peterson et al., 1999 apud
LOUREIRO, 2005, p. 223).
Revisando teorias e evidências das bases neurobiológicas do TOC e ST,
Mercadante e outros (2004) ressaltam que pacientes com ST “apresentam alterações
volumétricas no caudado, putâmen e globo pálido” (PETERSON B. et al., 1993 e
SINGER S. et al., 1993, apud MERCADANTE et al., 2004, p. 538) e reafirmam a
hipótese de que os tiques acontecem devido a uma falha na atividade inibitória exercida
por projeções GABAérgicas do striatum para o globo pálido.
Dessa forma, “se o corpo estriado não inibe os neurônios glutaminérgicos
situados no tálamo, isso implica uma liberação de projeções do tálamo para o córtex, as
quais são excitatórias” (PETERSON et al., 1999 apud. MERCADANTE et al., 2004, p.
539). Assim, mais uma vez conclui-se que pacientes com ST “seriam incapazes de inibir
estímulos secundários a fenômenos sensoriais premonitórios, induzindo a ativação do
circuito motor e o surgimento de comportamentos motores e fônicos” (LECKMAN et al.,
1999 apud. MERCADANTE et al., 2004, p. 539).
Loureiro e outros (2005) chamam atenção para aspectos neuroquímicos, uma
vez que diversas hipóteses sugerem a implicação do sistema dopaminérgico na
patogênese da ST, visto que “os neurolépticos, antagonistas da dopamina, são

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considerados efetivos no tratamento desta doença, por promover grande redução dos
tiques” enquanto que “os estimulantes como o metilfenidato, a cocaína, a pemolina e a L-
dopa causam exacerbação dos tiques” (LOUREIRO et al., p. 223). Alia-se a isso o fato
de que eventos estressantes, estimulantes ou que gerem ansiedade configuram os fatores
de risco temperamentais para indivíduos com ST, pois costumam piorar os tiques e, por
outro lado, atividades calmas e focadas podem oferecer melhoras (APA, 2013).
Além disso, há também estudos genéticos que vêm obtendo contribuições
significativas quanto a etiologia da ST (MERCADANTE et al., 2004; TEIXEIRA et al.,
2010; APA, 2013). Há evidências que sugerem que a ST seja “um distúrbio genético de
caráter autossômico dominante” (TEIXEIRA et al., 2010, p. 494), pois frequentemente
pacientes com tiques e manifestações obsessivo-compulsivas têm outros casos similares
na família.
É possível verificar também déficits nas funções executivas (FE) de
indivíduos acometidos pela ST. De acordo com Hamdan e Pereira (2009, p. 386), na
avaliação neuropsicológica, as FE dizem respeito a diversas funções cognitivas, tais
como: “atenção, concentração, seletividade de estímulos, capacidade de abstração,
planejamento, flexibilidade de controle mental, autocontrole e memória operacional”. E,
segundo os mesmos autores, déficits nas FE têm sido relacionadas a alterações dos lobos
frontais, onde estão incluídos o córtex motor e o córtex pré-frontal.
Isso que já vem sendo difundido na literatura foi possível confirmar numa
avaliação neuropsicológica mais recente no Brasil, realizada por Almeida e outras (2014)
no Rio de Janeiro, com um garoto de 14 anos diagnosticado com a ST, que apresentava
tiques sonoros e motores (estalido da língua e piscar de olhos). Com os resultados da
avaliação, as autoras notaram que embora houvesse uma preservação das habilidades de
abstração e flexibilidade do pensamento, formação de conceito e construção de
categorias, haviam déficits no controle dos impulsos e nas FE, precisamente, nas
habilidades de planejamento, execução e auto monitoramento. E é com base nessas
descobertas que se dão majoritariamente os tratamentos voltados a esses pacientes.

3. DISCUSSÃO DO TEMA
3.1 Avanços da Neurociência: intervenções terapêuticas na ST
Desde quando foi descrita pela primeira vez, a ST vem sendo cada vez mais
estudada pelas áreas da psiquiatria e neurociência, no entanto, sua causa ainda é
desconhecida e não há um método consensual de cura. Sabe-se que é estreita a relação
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entre as investigações das bases neurobiológicas da ST e as possibilidades de tratamento.
Desse modo, aqui pretende-se continuar a discussão acerca das descobertas das
neurociências para o tratamento dessa síndrome, com destaque para os métodos
psicoterapêuticos e psicofarmacológicos.
Para se chegar ao método adequado de tratamento da ST em cada paciente, é
preciso um diagnóstico bastante cuidadoso, posto que os sintomas, gravidade dos tiques
e comorbilidades variam consideravelmente de organismo para organismo. Embora não
dê para suprimir os sintomas completamente por meio de treinos, psicoterapias e
medicamentos, geralmente é possível diminuir a frequência e intensidade destes
(TEIXEIRA et al., 2010; SINGER H.S., 2010 apud OLIVEIRA e MASSANO, 2012).
De acordo com a bibliografia levantada, o tratamento se inicia com a
educação do paciente, familiares e de outros atores relevantes para o processo terapêutico,
explicitando o quadro clínico, comorbilidades, opções terapêuticas e metas a alcançar
(MERCADANTE e et al., 2004; TEIXEIRA et al., 2010; OLIVEIRA e MASSANO,
2012). A depender do caso, chega a nem ser necessário o uso de medicamentos ou
neurocirurgias mais invasivas. No geral, pacientes que apresentam quadros leves podem
ser atendidos apenas com acompanhamento de psicólogas/os (MERCADANTE e et al.,
2004; OLIVEIRA e MASSANO, 2012).
Dentre as abordagens psicoterapêuticas engajadas no tratamento da ST, a terapia
cognitivo-comportamental tem apresentado bons resultados. Essa abordagem procura
identificar pensamentos atuais do paciente, comportamentos problemáticos, fatores
precipitantes e os pensamentos que têm relação com seu afeto angustiante. Com isso, são
elaboradas respostas mais adaptativas aos pensamentos e comportamentos do indivíduo
(MERCADANTE e et al., 2004).
Considerando os sintomas que apresentam comprometimento das FE relatados
com mais frequência, Dawnson e Guare (2004, apud HAMDAN e PEREIRA, 2009)
sugerem que intervenções com crianças e adolescentes com déficit em FE se dedique ao
desenvolvimento de habilidades, como planejamento, organização e inibição de
respostas, baseadas nas abordagens terapêuticas da Análise do Comportamento, as quais
visam uma interação adequada entre a pessoa e os ambientes em seu entorno.
Visando associar estratégias dessas duas abordagens, Cicerone e outros (2000,
apud HAMDAN e PEREIRA, 2009) listaram alguns procedimentos específicos para
serem utilizados diante de déficits funcionais nas FE, a saber: treinamento em resolução

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de problemas com atividades diárias que motivem o cliente e sua família. Aqui, se ressalta
tanto intervenções nas variáveis ambientais como intervenções cognitivas que promovam
estratégias de auto regulação através do uso de autoinstruções verbais,
autoquestionamento e auto monitoramento.
Oliveira e Massano (2012) trazem também o conjunto de técnicas conhecido
como “reversão de hábitos”, que pode ser utilizado com as intervenções
psicoterapêuticas. Essas técnicas ajudam o paciente a perceber melhor os tiques e, assim,
poder criar estratégias comportamentais a fim de interromper sua expressão. No entanto,
questiona-se a validade prognóstica dessa terapêutica pois, numa média de 10 meses após
a suspensão da intervenção, é possível que os tiques retornem, e talvez ainda mais graves.
Considerando os elevados impactos dos efeitos colaterais, os autores
concordam que a abordagem farmacológica deve ser uma opção apenas quando os
benefícios com o uso das medicações forem entendidos como superiores aos efeitos
adversos (TEIXEIRA et al., 2010; MERCADANTE e et al., 2004; OLIVEIRA E
MASSANO, 2012). Oliveira e Massano (2012) definem dois níveis de tratamentos
psicofarmacológicos para a ST: o primeiro é com não neurolépticos (antipsicóticos), que
são menos agressivos, indicados para casos moderados; o segundo, com os antipsicóticos,
indicados para casos mais graves, todavia possuem intensos efeitos adversos.
Vale ressaltar que é crucial ponderar caso a caso, pois há graves implicações
no uso de alguns antipsicóticos, como o Haloperidol, que já foi bastante receitado a
paciente com ST, hoje bem menos haja vista os efeitos extrapiramidais que causa, como
a discinesia tardia, parkinson, sedação, disforia e hiperfagia com ganho de peso
(TEIXEIRA et al., 2010; LOUREIRO et al., 2005). A pimozida possui eficácia
semelhante ao haloperidol, sem o inconveniente dos efeitos extrapiramidais, porém
apresenta efeitos colaterais também graves, “envolvendo o sistema cardiovascular,
incluindo ainda sedação e disfunção cognitiva” (LOUREIRO et al., 2005, p. 225).
Em casos mais graves, descobriu-se a estimulação magnética transcraniana
repetitiva e estimulação cerebral profunda como alternativas terapêuticas eficazes
(TEIXEIRA et al, 2011). Em contrapartida, Oliveira e Massano (2012, p. 217) destacam
que tanto na neurocirurgia funcional, com base na estimulação cerebral profunda, quanto
na estimulação magnética transcraniana, há perdas consideráveis para o indivíduo, como
“sedação, ansiedade, alteração do humor”. Novamente, é importante ponderar se é válido
para o contexto do indivíduo se submeter a procedimentos muito invasivos como esses.

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Há técnicas psicoterapêuticas mais alternativas que vêm sedo convocadas
para o tratamento da ST, como “a exposição com prevenção de resposta, relaxamento e
biofeedback, mas as conclusões referentes à sua eficácia são ainda mais difíceis de
inferir” (OLIVEIRA E MASSANO, 2012, p. 216). Quanto às técnicas de relaxamento,
Santos (2020) explica que são válidas pois os sintomas relatados por pacientes com ST
geralmente apontam um desequilíbrio do Sistema Nervoso Autônomo (SNA), constituído
pelo sistema nervoso simpático – responsável pelo estado de prontidão e alerta em
situações de estresse – e o parassimpático, que levando o organismo a um estado de
relaxamento. Assim, enquanto que os sintomas da ST são agravados com eventos
estressores, as técnicas de relaxamento podem vir a diminuí-los.
Para Santos (2020), a Retroalimentação Biológica Biofeedback ou,
simplesmente, Biofeedback, também é um tratamento alternativo para modulação do
SNA. Através da leitura, armazenamento e amplificação de sinais fisiológicos emitidos
pelo indivíduo, que aparecem no computador em tempo real, a retroalimentação
possibilita que o indivíduo tome consciência das informações obtidas e possa aprimorar
seu comportamento com ajuda de treinamentos e autorregulação.
Ainda de acordo com Santos (2020, p. 10-11), alguns estudos relataram
melhorias em pacientes com ST através da técnica de Estimulação do Nervo Vago (ENV)
que “ao estimular eletricamente o nervo vago, modula diretamente sinais aferentes
interoceptivos, que são mensagens da periferia (...) para o sistema nervoso central”.
Santos (2020) adverte ainda que há alguns relatos de melhoria dos tiques em pacientes
tratados com “canabinóides, acupunctura, hipnose, suplementos dietéticos e/ou
medicamentos homeopáticos”, mas que igualmente ainda não há evidências suficientes
para recomendar qualquer destas intervenções como forma de tratamento da ST.
3.2 Sociedade e indivíduos com ST
Diante do que já foi discutido, cabe questionar quais seriam então as
funcionalidades possíveis ao indivíduo diagnosticado com ST? Mesmo após quase dois
séculos desde que a ST foi descrita pela primeira vez, ainda hoje, crianças e adolescentes
portadores de tiques, sobretudo os mais complexos, são frequentemente discriminados
tendo, entre outros danos, impasses em seu desenvolvimento psicossocial.
A maneira como a comunidade escolar, pares, familiares, colegas de trabalho,
entre outros, lidam com pessoas portadoras de tiques é determinante para que estas
possam se sentir mais seguras e capazes, características essenciais para que haja saúde

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mental. Além disso, Teixeira e outros (2010) ressaltam que a maioria dos pacientes não
necessita de um tratamento específico para os tiques, basta que as pessoas de seu contexto
psicossocial conheçam as suas condições para que consigam lidar de modo acolhedor e
respeitoso.
Importante chamar atenção também para o fato de que ainda há muitas
desigualdades sociais no Brasil, estruturadas no racismo, classes sociais e hierarquia de
gênero/sexualidade. É preciso, portanto, sempre pensar em quais contextos os pacientes
com ST estão inseridos, interseccionalizando as análises, pois, muito provavelmente, um
adolescente negro que tivesse um surto de copropraxia (produção de gestos obscenos) ou
coprolalia (emissão de palavras obscenas) em um lugar público do país seria julgado com
mais severidade que um adolescente branco4.
Vale lembrar que mesmo indivíduos com sintomas moderados ou graves são
capazes também de seguir com uma rotina (TEIXEIRA et al. 2010), aliás, não são os
sintomas que irão determinar a vida do sujeito, mas um conjunto de condições físicas,
cognitivas e psicossociais. É preciso, portanto, que a família e sociedade tenham cuidado
para não sujeitar o indivíduo com sintomas de tiques pois, assim como qualquer outro,
tem direito à sua singularidade, ou seja, a se constituir como sujeito.
No Brasil, a Associação Solidária do Transtorno Obsessivo Compulsivo e
Síndrome de Tourette – ASTOC ST promove grupos de apoio a para pessoas com TOC,
Síndrome de Tourette e seus familiares, visando acolher essas pessoas, suas angústias,
abrindo canais para trocas de experiências e compartilhamento de conhecimento. No site,
há ainda uma sessão destinada especialmente a professores, ensinando como lidar com
crianças com ST5.
Entende-se que, na maioria dos casos, os tiques não vão desaparecer por
completo mesmo com o tratamento, ou, pior, pode ser mais custoso para o sujeito se
submeter a tratamentos intensos, com risco, inclusive, de sofrer uma despersonalização
(TEIXEIRA et al., 2010; MERCADANTE e et al., 2004; OLIVEIRA E MASSANO,
2012). Dessa forma, os tiques podem ser entendidos como uma das características que
compõem aquele sujeito, como tantas outras características que tornam as pessoas
singulares, o que faz da sociedade um conjunto cada vez mais diverso e heterogêneo.

4
Ver discussão feita por Carla Akotirene no livro “Interseccionalidade”, 2019.
5
Disponível em: https://www.astocst.com.br/guia-para-professores/. Acesso em: 20.mai.2020.

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4. CONCLUSÃO
O ser humano é biopsicossocial e há vários fatores que influenciam no seu
desenvolvimento, como a maturação, hereditariedade e o ambiente. Desse modo, a
bibliografia levantada neste estudo aponta que possivelmente o surgimento da ST pode
ter múltiplas causas e, ainda assim, não há de todo um consenso de quais seriam estas.
Como já dito, foi possível reunir pistas que lançam luz para os estudos acerca
da Síndrome de Tourette e também para o aprimoramento de intervenções terapêuticas.
Os avanços das neurociências possibilitaram a exploração de diversos aspectos do
desenvolvimento humano fazendo notar que a intrincada apresentação de condições
motoras, psiquiátricas e psicossociais pede uma abordagem multidisciplinar, crítica e
abrangente com os pacientes portadores da ST.
Notou-se um cenário ainda escasso de estudos teóricos e estudos de caso
produzidos no Brasil, o que é indispensável para subsidiar a compreensão clínica de
brasileiros e brasileiras com ST, bem como a produção de materiais informativos para a
família, escola e sociedade em geral.
Por fim, o desenvolvimento afetivo e psicossocial está inerente ao
desenvolvimento cognitivo, sendo assim, ressalta-se que estar em grupos sociais que
acolham as diferenças é determinante para a promoção de saúde das pessoas em geral e,
em especial, indivíduos com tiques.

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REFERÊNCIAS

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