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Resumo
A fusão entre Igreja e Estado, decorrente do padroado, favoreceu a atuação leiga no
âmbito da religião e, assim, as associações religiosas tiveram papel fundamental na vida
social, política e religiosa da colônia. Os soberanos portugueses, ao estimularem a criação das
irmandades, eximiam-se de subsidiar a construção, a ornamentação e a manutenção das
igrejas, além de se livrarem dos encargos da assistência social à população. Ao longo do texto,
procuramos demonstrar que as irmandades eram, além de um importante símbolo de prestígio
social e poder, um espaço de sociabilidade, caridade e devoção.
Palavras-chave
irmandade; Minas Gerais; São Miguel e Almas
Abstract:
The fusion of church and state, due to the patronage favored the action lay in the realm
of religion, and thus religious associations have an important role in social, political and
religious colony. The Portuguese monarchs, by stimulating the creation of brotherhoods,
eximiam to subsidize the construction, decoration and maintenance of churches, and get rid of
the burden of social assistance to the population. Throughout the text, we demonstrate that the
brotherhoods were also an important symbol of social prestige and power, a space of
sociability, charity and devotion.
Key-Words:
brotherhood; Minas Gerais; San Miguel and Souls
Introdução
O nosso objeto de estudo é a irmandade de São Miguel e Almas, erigida em 1716, na
antiga vila de São João del Rei, originada em função da corrida do ouro no interior da colônia.
Nosso estudo visa conhecer o papel desempenhado pelos irmãos no espaço colonial a fim de
perceber seu envolvimento com a produção dos cultos católicos, com os símbolos sagrados, o
*
Mestranda em História Universidade Federal de Juiz de Fora. Este trabalho faz parte da pesquisa que venho
desenvolvendo no mestrado, relacionada à temática da religiosidade e às irmandades mineiras no século XVIII,
em especial a de São Miguel e Almas de São João del Rei, voltada para o culto às almas do Purgatório.
Financiado pela Capes (DS).
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perfil social dos sodalícios presentes naquelas associações religiosas, suas relações com os
poderes locais, suas sociabilidade e religiosidade.
As associações religiosas tiveram papel fundamental na vida social, política e religiosa
da Colônia. Na Capitania de Minas, a atuação leiga no âmbito da religião foi favorecida pela
fusão entre Igreja e Estado instituída pelo Padroado1. Os soberanos portugueses, ao
estimularem a criação das irmandades, eximiam-se de subsidiar a construção, a ornamentação
e a manutenção das igrejas, além de se livrarem dos encargos da assistência social à
população, os quais também ficavam a cargos das irmandades (SALLES, 2007: 23). A
associação entre indivíduos que compartilhavam expectativas afetivas, materiais e espirituais
em torno de uma mesma devoção religiosa é que garantia a seus membros socorro nos
momentos de doença, ruína financeira, prisão, viuvez; amparo espiritual através da prestação
dos cuidados necessários nos últimos momentos de vida como também após a morte,
garantindo o sepultamento digno em território sagrado e assegurando, através dos sufrágios, a
rápida passagem da alma pelo purgatório em direção ao paraíso (Idem: 122).
A irmandade de São Miguel e Almas era composta majoritariamente por portugueses
do norte da metrópole. Ali tinha assento homens brancos, de profissões várias, entre os quais
portadores de inúmeras patentes militares e grande parte ocupando cargos na Câmara da vila.
Podemos perceber que as irmandades que conferem maior prestígio a seus associados são
sempre congregações cujos membros fazem parte da elite política, econômica e social
daquelas localidades.
As entidades de brancos, mais poderosas economicamente, chegaram a funcionar
como casas bancárias, emprestando dinheiro a juro, até para o governo (SALLES, 2007: 23-
24). A irmandade de São Miguel e Almas da vila de São João del Rei é um exemplo de
irmandade que emprestava dinheiro a juros. Em 1782 a irmandade emprestou a juros de cinco
por cento ao ano a quantia de um conto e seiscentos mil réis, parte do dinheiro que constituía
1
O Padroado foi uma instituição tipicamente ibérica, e pode ser definido como um conjunto de direitos, deveres
e privilégios, concedidos pelo papa aos reis portugueses que tornaram-se administradores com plenos poderes
dos territórios recém-descobertos, para neles implantarem a fé cristã, acumulando, assim, as funções de chefe de
Estado e da Igreja nas terras d’além-mar. Mediante essa titulação, a coroa lusitana podia criar novas dioceses e
indicar os bispos e vigários, como também arbitrar os litígios no seio da esfera eclesiástica e entre a esfera
eclesiástica e a civil assim como cobrar o dízimo eclesiástico que era incorporado ao Erário Régio. Em
contrapartida, os reis tinham o dever de prover as missões dos eclesiásticos seculares e regulares, construir e
manter os templos religiosos provendo-os dos materiais necessários para a execução do culto religioso (BOXER,
2002: 227).
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o patrimônio da Capela das Almas, instituída na igreja matriz, ao Guarda Mor Antônio José
da Silva Britto2.
Em Os leigos e o poder, Caio Boschi (1986) relaciona 35 irmandades sob a invocação
de São Miguel e Almas existentes na Capitania de Minas, montante que as coloca em terceiro
lugar, em termos de vocação institucionalizada, sobrepujada primeiramente pelas irmandades
do Rosário dos Pretos e, em segundo, pelas do Santíssimo Sacramento (Idem: 187). Essa
relação atesta, no plano da religiosidade, a popularidade atingida por este culto.
2
São João del Rei: Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del Rei. Livro de Eleição, Posse e Deliberações
de Mesa da Irmandade de São Miguel e Almas. cx. 01, nº 05. 1775-1828.
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Ordens que detinha o encargo de controlar as irmandades por regulamentação condensada nas
Ordenações do Reino, as quais prescreviam
3
Regimento do Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens, parágrafo 16, 23 de Agosto de 1608.
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Contudo, é importante ressaltarmos que tal fato não pode ser visto de forma absoluta, e
sim como uma tendência. Encontramos também, no início do século XIX, alguns pardos na
Irmandade de São Miguel e Almas, o que torna complexa a sistematização deste quadro4.
Na primeira década do século XVIII, a administração portuguesa, a fim de controlar a
região, promulgou legislação limitando a circulação de eclesiásticos e proibindo o
estabelecimento de ordens primeiras na região mineradora, fato este que ajudou a imprimir
uma certa peculiaridade à vida das associações em Minas e de alguma forma permite entender
o grande envolvimento dos leigos no nos assuntos religiosos e na promoção dos cultos. Além
do intuito de controlar o contrabando, soma-se o fato de os eclesiásticos serem considerados
desestabilizadores do sistema por seu envolvimento em rebeliões e os eclesiásticos regulares
não se subordinarem à Coroa, mas à sua própria hierarquia, levaram a Coroa a decretar uma
série de medidas, visando manter afastado de Minas o clero regular (BORGES, 2005: 57).
Mesmo considerando estes impedimentos, a Coroa não procurou afastar totalmente de
Minas o trabalho missionário. Enquanto, por um lado, proibia a instalação das Ordens
Primeiras e ordenava sua expulsão, por outro orientava os bispos do Rio de Janeiro e da Bahia
a enviarem eclesiásticos para criar paróquias e ministrar os sacramentos (BOSCHI, 1986,
p.80). Esta política restritiva, embora endereçada principalmente às ordens primeiras, não
4
São João del Rei: Arquivo Eclesiástico da Diocese de São João del Rei. Livro de Entrada de Irmãos da
Irmandade de São Miguel e Almas. cx. 02, nº 11. 1780-1905.
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deixava de lado o clero secular que, para se estabelecer na Capitania, precisava de uma
licença de permanência para celebrar os cultos do calendário litúrgico (BORGES, 2005: 58).
Dessa forma, o envolvimento dos leigos nos assuntos religiosos foi considerável.
Limitadas as ações da Igreja Católica pela Coroa Portuguesa, as irmandades foram as
promotoras dos ofícios e das celebrações, dentro e fora dos templos, também por elas
edificados e mantidos.
Sérgio da Mata (1997: 41-57), a baixa freqüência dos fiéis à comunhão podia não significar
uma “subvalorização da eucaristia no Setecentos, mas antes a sua hipervalorização”. Isto
porque o colono podia deixar de comungar por temor ao sagrado, por medo dos castigos e
também pelo receio de não corresponder ao modelo de cristão exigido pela Igreja.
Assim, não era por constituir a missa um valor salvífico em si para o fiel que este se
dispensava de frequentar a comunhão diária; ela era tão importante que exigia uma grande
preparação.
Conclusão
Enfatizamos que o fenômeno religioso era para aqueles irmãos uma questão central.
Durante vários anos vão se dedicar à organização do templo e à preparação dos cultos; eram
eles que cuidavam de tudo o que fosse necessário aos cultos: santos óleos, velas, paramentos,
imagens e até o pagamento de músicos e sermonistas requeridos pelas principais festividades
religiosas do calendário litúrgico católico. A filiação a uma ou mais irmandades significava
participação, envolvimento. Assim, as irmandades eram, além de um importante símbolo de
prestígio social e poder, um espaço de sociabilidade, caridade e devoção.
Referências
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solidariedade em Minas Gerais: séculos XVIII e XIX. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em
Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.
BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português 1415-1825. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
CAMPOS, Adalgisa A. A terceira devoção do setecentos mineiro: o culto a São Miguel e
Almas. Tese de Doutorado. São Paulo, USP, 1994.
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Aires: Katz Editores, 2007.
LIMA, Lana Lage da Gama. A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil
Colonial. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1990.
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