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religioso impõem uma distinção clara entre ambos. Imaginária a expressão auri sacra fames. tornem, aos poucos, mais fáceis de serem percebidas.
Assim como o religioso, o poder político deve necessaria-
Em princípio, o poder político não se reduz ao religioso –
mente adquirir uma expressão material e espacial. Do
embora, freqüentemente, se revista de atributos reli- Nas Minas, como nas antigas civilizações, o poder político Tudo não passa de uma grande loteria, e é verdade que
contrário, ele permaneceria no plano da mera virtuali-
giosos –, assim como a religião não se reduzirá nunca a é, por assim dizer, o complemento de uma instituição aqueles mesmos homens que levantaram uma rude
dade, e teríamos boas razões para colocar em dúvida sua
“relações de poder”. Um fato interessante a observar é imaginária (religiosa) da sociedade. Se digo “imaginária”, capela estarão prontos a abandoná-la ao primeiro sinal
efetividade. Com o levantamento do pelourinho e da casa
que há sociedades que desconhecem o primeiro, mas não é porque quero me referir a algo distinto do poder de escassez ou de notícias promissoras vindas d'outra
de câmara e cadeia, o poder político faz muito mais que
o segundo: de sociedades “contra o sagrado” não se tem eclesiástico-institucional. Este, sabidamente, enfrentou parte. Pouco importa: o homem não concebe a existên-
anunciar sua presença: ele interfere poderosamente na
notícia. Historicamente, o religioso antecede o político, de não poucas resistências, não poucas dificuldades, cia numa extensão destituída de significado. Ele não se
forma de percepção espacial que havia predominado
modo que, em sua tarefa comum – ordenar o cosmo tanto inclusive de ordem “política”. Entre nós, chegou ainda reconhece num espaço que é apenas signo, cuja diferen-
até aquele momento, pois na paisagem do espaço
no nível “extra-social” quanto “intra-social” –, observam-se mais tarde que a ordenação político-jurídica. Como ciação é puramente matemática. Ele tem de construir
protourbano o templo reinava absoluto.
as mesmas formas em um e outro. Isso não seria possível mostrou Caio Boschi, na Minas antiga o religioso se fez para si um sentido e com ele investir no chão em que
se não houvesse uma homologia natural entre ambos. presente não apenas antes do Estado, mas antes da vive. Somente assim se constitui o que Bollnow chamou
própria Igreja. Veio por força e obra dos aventureiros, dos de “espaço vivido”2.
Simbologia
Daí porque não se pode evitar certo espanto quando nos comerciantes, das prostitutas, dos militares, dos mestres
damos conta de que, num passado não muito distante, de ofício, dos “desclassificados”.
Pode-se imaginar o impacto gerado pela instalação da
tenha havido quem acreditasse na fábula de sociedades O político
câmara. Ela representa um salto qualitativo para a
complexas, como são as nossas, abrindo mão seja do Somente um cacoete institucionalista nos levaria a procu- povoação. O próprio termo arraial, que antes vigorava,
religioso, seja do político. Se há, e creio que deve haver, rar junto aos especialistas do sagrado, como ermitães, A esse investimento de sentido positivamente religioso, e denotava uma sedentarização não completamente atingi-
algo como uma “ingenuidade sociológica”, essa terá capelães, padres, gente de batina, os protagonistas da do qual a capela é a expressão material mais eloqüente, da. Elevada ao status de vila, os habitantes percebem-na
sido, de longe, a maior de todas. Nem mesmo um vida religiosa mineira no setecentos. Foi a partir daquela segue-se um outro. Independentemente da causa ou con- como já pertencente a um estágio superior de “civili-
weberiano fundamentalista há de insistir, hoje, na fé singela, magnificamente descrita por Gilberto Freyre, e junto de causas que está por detrás do surgimento do zação”. Para tanto, concorre, nesse segundo momento, a
tese do “desencantamento do mundo”. Já do sonhado tantas vezes atravessada de representações e práticas embrião urbano, o crescimento do arraial e, sobretudo, os existência de uma outra modalidade de espaço sagrado: o
adeus ao poder político, a experiência recente e de uma rituais estranhas ao catolicismo oficial, que se formou o interesses metropolitanos passam a exigir a presença de espaço sagrado político. Não se trata de uma metáfora:
dramaticidade ímpar – a de um país como o Iraque – primeiro amálgama da vida social nas Minas. Não raro, uma forma mais eficaz de controle social: o poder polí- problemas concretos de pesquisa não se resolvem com
mostra que a alternativa de nossa geração não é mais foi a partir desta fé individual, e que forçosamente havia tico. Seu advento implica, como ressalta a historiografia, metáforas. Este espaço, na sua manifestação mais estrita,
“socialismo ou barbárie”. A alternativa continua sendo a de ter sua expressão coletiva, que muitas das povoações uma inflexão de primeira ordem. De fato, nos primórdios é constituído pela casa de câmara e cadeia, o largo que
mesma para a qual chamara a atenção o velho Hobbes: começaram a surgir: a necessidade premente dos sacra- da capitania, a religião só estava em condições de atuar se estende diante delas e o pelourinho, símbolo definitivo
Estado ou barbárie. mentos (“meios de salvação”), a capela que surge pelo no nível das disposições internas de cada um. da tênue autonomia de que desfruta a comuna.
rica da evolução dos nossos arraias e vilas setecentistas o estudo da toponímia urbana de nossas vilas ainda na
deveria, em princípio, seguir o programa traçado por sua infância, de maneira a recuperar os extratos toponí-
Aroldo de Azevedo já em meados da década de 1950. micos mais antigos e, ainda, avaliar os padrões então
Isso em termos estritamente metodológicos. predominantes. Até quando esses padrões foram manti-
dos, por quais foram substituídos e, acima de tudo, por
Para tanto, a documentação relativa à décima urbana tem quê? Pois àquela semantização inicial, tanto de origem
muito a oferecer. Ela nos mostra o número de imóveis e religiosa quanto política, segue-se outra, cada vez mais
seus respectivos valores, avaliados “na forma da lei”; “especializada”, tão logo o espaço urbano se expande e
identificam quais deles são habitados por seus proprie- se diferencia estruturalmente3.
tários e quais estão alugados – e por quanto – a terceiros;
quais se encontram “destruídos”; e, claro, o valor da Quem quer que se interesse pela história da urbanização
respectiva décima a ser paga. O que se pode extrair daí no Brasil colonial deve estar atento não só ao que se
não é pouco. Como as listas se organizam a partir da dis- pode e deve extrair das décimas urbanas. Além de um
posição das casas e demais edificações ao longo das alargamento das possibilidades no plano propriamente
diversas ruas – presumidamente das mais “centrais” para documental, resta ainda muito a fazer. Eu enumeraria
as “periféricas” –, temos condições de avaliar o padrão de pelo menos três tarefas urgentes: é preciso intensificar
urbanização predominante: por exemplo, se há concen- radicalmente o diálogo interdisciplinar, afinar e sofisticar
tração de casas de maior valor, e portanto pertencentes a o aparato teórico disponível (nossa história urbana padece
gente de posses, em tal ou qual setor do espaço da vila. ainda do que Koselleck chamou de Theoriebedürftigkeit)
Sérgio da Mata é doutor em História pela Universidade de
e, enfim, retomar – com as devidas correções – o projeto Colônia, Alemanha, professor adjunto do Departamento de
de uma grande morfologia histórica do urbano, tal como História da Universidade Federal de Ouro Preto, autor do
O mesmo vale para as demais camadas da população. livro Chão de Deus. Catolicismo popular, espaço e proto-
Com isso é possível fazer uma leitura da projeção espacial foi esboçada por Azevedo. urbanização em Minas Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX,
Berlim, WVB, 2002, e de diversos artigos sobre história da
das hierarquias sociais existentes. Um maior número de
religião e da protourbanização em Minas Gerais, teoria da
casas alugadas pode indicar não apenas a existência de Em sua fenomenologia do espaço urbano brasileiro, história e historiografia alemã.
formas alternativas de renda, mas em especial a valori- Vilém Flusser definiu a cidade como “um lugar no qual a
zação decorrente dos primórdios – creio que se deve usar natureza foi, em alto grau, tornada habitável. Cidades são
o termo com todo o cuidado – de uma “especulação imo- natureza dominada, e por isso elas são habitáveis. São
biliária”. Uma piora no nível de conservação dos imóveis, natureza vencida, e é como vencedor que eu moro nelas”4.
constatada numa perspectiva diacrônica, e um maior Não obstante a historiografia dessa vitória já ter um longo Detalhe do desenho a nanquim da fachada posterior do edifício da Câmara de
Ouro Preto. Fundo Obras Públicas – 018, doc. 4, map. 4/4. Arquivo Público Mineiro.
número de casas abandonadas demonstrariam uma perda trajeto atrás de si, esperamos ainda por sua revolução.
Antônio Marques Pinto Números 10. Dita do Capitão Antônio José Moreira por Números 21. Dita de Valério Crioulo alugada a Francisco Números 32. Dita de Teodoro Antônio Leonor alugada a
ele ocupada, avaliada na forma da lei em três mil e seis- José de Santana que jurou pagar de renda por cada um ano Brígida Maria que jurou pagar cinco mil e quatrocentos de
Manuel Corrêa de Azevedo centos réis de renda por cada um ano de que vem a sete mil e duzentos de que vem a Décima seiscentos e renda por cada um ano de que vem a Décima quatrocen-
Décima trezentos e vinte e quatro réis $324 quarenta e oito réis $648 tos e oitenta e seis réis $486
João Corrêa
Números 11. Dita da capela da Santíssima Trindade alu- Números 22. Dita do Alferes Félix de Faria Lobato, Números 33. Dita de José Francisco das Chagas em que
Cláudio Pereira Viana gada a Domingos José Vieira que jurou pagar de renda por destruída $ habita, avaliada na forma da lei em cinco mil e quatrocen-