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Aspecto cívico da Religião Helenica

(Elaborado por A. Demétrios H.S R.)

Religião cívica é um termo cunhado na modernidade e que o aplicam à religião étnica


helênica. Este modelo interpretativo nos serve para compreender a dinâmica da
religiosidade helênica e do quanto ela participava da vida cotidiana dos antigos.

Jean-Pierre Vernant em “Mito e Religião na Grécia Antiga” nos esclarece:

(...)Entre o religioso e o social, o doméstico e o cívico, portanto, não há oposição nem corte
nítido, assim como entre sobrenatural e natural, divino e mundano. A religião grega não
constitui um setor à parte, fechado em seus limites e superpondo-se à vida familiar,
profissional, política ou de lazer, sem confundir-se com ela. Se é cabível falar, quanto à
Grécia arcaica e clássica, de "religião cívica", é porque ali o religioso está incluído no social
e, reciprocamente, o social, em todos os seus níveis e na diversidade dos seus aspectos, é
penetrado de ponta a ponta pelo religioso.

(...) Segunda consequência. Dizer que o político está impregnado de religioso é reconhecer,
ao mesmo tempo, que o próprio religioso está ligado ao político. Toda magistratura tem um
caráter sagrado, mas todo sacerdócio tem algo de autoridade pública. Se os deuses são da
cidade, e se não existe cidade sem divindades políades que velam, interna e externamente,
por sua salvação, é a assembléia do povo que comanda a economia das hierá, das coisas
sagradas, dos assuntos dos deuses, assim como os dos homens. Ela fixa os calendários
religiosos, edita leis sagradas, decide sobre a organização das festas, sobre o regulamento
dos santuários, sobre os sacrifícios a fazer, sobre os deuses novos a acolher e sobre as
honras que lhes são devidas. Uma vez que não há cidade sem deuses, os deuses cívicos,
em contrapartida, precisam de cidades que os reconheçam, que os adotem e os façam
seus. De certo modo eles necessitam, como escreve MarceI Detienne', tomar-se cidadãos
para serem plenamente deuses.

(...)Entre os séculos XI e VIII, no período em que se implantam mudanças técnicas,


econômicas e demográficas que conduzem à "revolução estrutural" de que fala o
arqueólogo inglês A. Snodgrass e da qual se originou a cidade-Estado, o próprio sistema
religioso é profundamente reorganizado em estreita conexão com as formas novas de vida
social representadas pela cidade, a pólís. No quadro de uma religião que, doravante, é
essencialmente cívica, crenças e cultos, remodelados, satisfazem uma exigência dupla e
complementar. Primeiro, respondem ao particularismo de cada grupo humano que, como
Cidade ligada a um território definido, se coloca sob o patrocínio de deuses que lhe são
próprios e que lhe conferem sua fisionomia religiosa singular. De fato, toda cidade tem sua
ou suas divindades políades cuja função é cimentar o corpo dos cidadãos para fazer dele
uma comunidade autêntica, unir num todo único o conjunto do espaço cívico, com seu
centro urbano e sua chôra, sua zona rural, velar, enfim, pela integridade do Estado -
homens e território - diante das outras cidades. Mas, em segundo lugar, trata -se também,
pelo desenvolvimento de uma literatura épica desligada de qualquer raiz local, pela
edificação de grandes santuários comuns, pela instituição dos Jogos e das pane gírias
pan-helênicas, de instaurar ou de fortalecer no plano religioso tradições lendárias, ciclos de
festas e um panteão igualmente reconhecidos por toda a Hélade.
Para complementar, compartilho a definição e exemplos de um excelente artigo de uma
politeísta helênica, Alexandra Oliveira, em seu site www.helenos.com sobre o assunto:
(...)“Vamos pelo método socrático de definir as coisas antes de falar delas. Aqui escolhi usar
um pouco da definição de um teórico que não é da antiguidade para a expressão "religião
cívica" - até porque na antiguidade provavelmente não se falava nesses termos. Rousseau,
em 'O Contrato Social', define religião cívica como um cimento social que unifica o estado e
o provém de uma autoridade sacra. Isso incluiria deidades, vida após a morte, recompensa
da virtude e punição do vício, e exclusão da intolerância religiosa. Tendo definido isso,
vejamos por que falamos do helenismo como uma religião cívica. Quando tratamos da
religião grega antiga, podemos abordá-la de duas formas: pelas suas origens ou pelo seu
caráter cultural, de comunidade cívica. Os estudiosos dizem que a religião helênica foi
estruturada junto com a pólis. Tudo o que havia antes (da pólis) foi reinterpretado e
traduzido para caber no esquema das cidades.
Eis algumas coisas que demonstram essa interação: ₪ As procissões religiosas da época
incluíam funcionários públicos de diversas categorias da sociedade, para que todos
ficassem representados; ₪ As peças do festival da Dionísia eram compostas de temas civis
ou com mitos de deuses da cidade onde estavam sendo encenadas; ₪ O fogo de Héstia da
cidade ficava no prutaneion (escritório) do magistrado, e diante desse fogo é que o
Conselho recebia os embaixadores estrangeiros, seguindo o princípio da xenia
(hospitalidade); ₪ A refeição que conselheiros e embaixadores compartilhavam incluía uma
thusia (sacrifício) e estabelecia - no 'comer junto' - laços entre os mortais e com os deuses;
₪ O Tesouro não era público, desde o ano 447 ele ficava no Parthenon, sob proteção e
posse de Atena. …”
(...)O que difere da ideia de um estado religioso de hoje - quando esperamos mais o estado
laico, que no nosso caso é melhor - é que naquela época não existia isso de a religião
atrapalhar a cidade em prol de um grupo dominante (hoje os 'cristãos'); o que existia era
uma religião que reunia as classes sociais em torno de um culto local comum. Além disso,
se mesmo em Rousseau (que é mais 'atual') se incluía a questão da "exclusão da
intolerância religiosa", parece que os antigos faziam isso com mais propriedade do que os
modernos.”

Outro conceito,mais recente, proposto por Christiane Sourvinou-Inwood se chama “religião


da pólis” ou “religião políada”. Significa que a unidade política chamada Pólis seria a
organizadora das práticas e crenças religiosas de todo o seu espaço territorial e simbólico.
Pois, já que a religião antiga não possuia dogmas nem autoridades sacerdotais como
acontece nos monoteísmos, qual/quem seria o regulador? A pólis, segundo esse modelo
interpretativo.
(...)A pólis era elemento fundamental, era o quadro fundamental da religião grega. Cada
pólis era um sistema religiosa incluso em um sistema mais complexo…”
(...) “ a pólis grega organizava a religião e era por ela organizada. o ritual reforça a
solidariedade do grupo e esse processo possui um papel fundamental no estabelecimento e
na preservação da identidade cívica, cultural e religiosa.”
Apesar de não ser aceito em sua integridade porque há casos de cultos e associações
cultuais não dirigidas pela Pólis diretamente, é um ótimo conceito para nos ajudar a
entender o pensamento e práticas religiosas de nossos antepassados de tradição.
Referências Bibliográficas:

Kindt, Julia. “Polis religion - a critical appreciation.”


https://journals.openedition.org/kernos/1765#ftn2 Acesso em 07 jan 2022.
Oliveira, Alexandra. “Helenismo como religião cívica”.
https://www.helenos.com.br/post/o-helenismo-como-religi%C3%A3o-c%C3%ADvica .
Acesso em 06 jan 2022.
Vernant, Jean-Pierre. “Mito e Religião na Grécia Antiga”. Tradução de Joana Angélica
DÁvila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.
Zaidman, Louise Bruit. Os gregos e seus deuses. Tradução de Mariana Paolozzi Sérvulo da
Cunha. São Paulo: Edições Loyola, 2010.

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