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Religião e poder nas sociedades primitivas: conversações com Pierre

Clastres

Elemento fundante das Sociedades Ocidentais, o poder – ou, em vista da


multiplicidade de significações que perpassam tal expressão, conforme é mais adequado
pontuarmos, de maneira plural, os poderes – serviu e serviram, desde a fundação das
primeiras Cidades-Estado na Antiga Grécia, enquanto objeto de análise à autores
relacionados aos mais diversos domínios do conhecimento. Nesse sentido, ao
empreendermos um abreviado percurso pelas linhas da História da Filosofia, da
Antropologia, da Sociologia e das Ciências da Religião, nos depararemos com
perspectivas que, uma vez relacionadas, acabariam por se invalidar mutuamente. Dito
de outro modo, a cada referência consultada, é bastante provável que obteremos
ponderações consideravelmente distintas quando o tema em questão concerne ao
conceito de poder. Entretanto, mesmo diante desta heterogeneidade de pontos de
vista, uma noção figura como possível item de intersecção entre as obras ora
mencionadas: a geometria piramidal – logo, hierárquica – do poder. Seja na pessoa do
Soberano, na representação do Estado ou do Parlamento, o fato é que a tradição
concebeu o poder nos moldes de uma estrutura verticalizada, onde a delimitação
fronteirística acerca daqueles que governam e daqueles que são governados é demasiada
clara e facilmente identificável. Mandatários – ainda que nomeados pelas vias do voto
direto, isto é, pelas vias democráticas – e subordinados: eis o diagrama sobre o qual, até
os dias contemporâneos, desenvolveram-se nossas orientações políticas, sociais
econômicas e religiosas.
Contanto, que não nos precipitemos. Precisamente por se tratar de uma ordem
estabelecida, o poder não possui quaisquer fundamentações imutáveis, apriorísticas,
estejam elas amparadas pela volição divina ou pelos arranjos ocasionais da natureza.
Valendo-se da investigação arqueogenealógica como instrumental investigativo, Michel
Foucault (1926-1984), inspirado por Nietzsche (1844-1900), colocará sob suspeita os
assim chamados discursos de verdade (e, por correspondência, seus respectivos
desdobramentos, a exemplo da autoridade irrefutável dos saberes, aos quais se incluem
os discursos científicos, pedagógicos, jurídicos e médicos, apenas para citarmos alguns
casos), fontes legitimadoras, dentro de uma lógica repleta de convenções,
arbitrariedades e rivalidades, do próprio exercício do poder, da governamentalidade.
Em resumo: datado, fabricado, constituído a partir da sobressalência de
determinadas formações discursivas sobre incalculáveis outras, o binômio saber-poder
poderia possuir um extenso número de configurações para além das presentes, ou,
simplesmente, em última instância, deixar de existir nos padrões históricos há muito
sedimentados nos mais variados segmentos sociais. Voltando-nos à esfera antropológica,
encontraremos no etnógrafo Pierre Clastres (1934-1977) uma concepção de poder
igualmente alternativa àquelas expostas até aqui. Também servindo-se do pensamento
nietzschiano e da interlocução crítica em relação aos trabalhos de Claude Lévi-Strauss
(1908-2009), Clastres, ao contrário de Foucault, realizou estudos de campo em meio às
comunidades indígenas dos Guayaki e dos Guaranis, bem como dos Yanomami e dos
Chulupi, agrupamento ocupante do Grand Chaco paraguaio e de parte do território
argentino. Dessas andanças, resultam suas descrições quanto às modalidades de poder –
para dizermos o mínimo – paradoxais, se comparadas aos mecanismos que sustentam o
modus operandi produtor de comportamentos assujeitados, obedientes, dos homens e
mulheres que compõem o maquinário de produção capitalista. Assim sendo, se podemos
incorrer em um equívoco imediato ao nos debruçarmos sobre os textos clastreanos, este
diz respeito à tentativa de buscarmos promover alguma espécie de transposição das
organizações por ele observadas ao contexto social de hoje: em nenhum momento, seu
propósito foi o de importar modelos substituíveis, passíveis de serem aplicados em
detrimento daqueles que, eventualmente, encontram-se em vigor.
O primeiro entendimento recusado por Clastres, na contramão das teorias
antropológicas clássicas, será o caráter evolucionista que posiciona as sociedades
modernas em um patamar de superioridade ontológica, isto é, em uma posição de
adiantamento valorativo, tendo por pressuposto a criação da escrita e o desenvolvimento
do aparelho estatal, face aos arranjos tribais dos povos originários:

Os povos sem escrita não são então menos adultos que as sociedades letradas.
Sua história é tão profunda quanto a nossa e, a não ser por racismo, não há
por que julgá-los incapazes de refletir sobre a sua própria experiência e de
dar a seus problemas as soluções apropriadas (CLASTRES, 1978, p.16).

Perdendo-se em tempos imemoriais, é plausível notarmos que, definitivamente,


aos grupos primitivos nada faltava: por desconhecerem o mundo das ideias platônicas, a
lógica aristotélica ou a revelação cristã, eles não representam algo menor , ao qual um
certo tipo de complemento pudesse ser incorporado para que degraus culturais fossem
galgados. Por outro lado, é também impensável idealizarmos, em grandes devaneios
utopistas, que o fator político inexistia no processo de funcionamento destas sociedades.
Se em nosso cotidiano a distribuição de funções é um procedimento imprescindível,
nada de tão diferente ocorria naqueles cenários, excetuando-se, porém, um aspecto
primordial: àqueles a quem eram outorgadas ocupações de chefia, era veementemente
vetada a possibilidade de repressão no trato com os demais membros do socius. Destaca
Clastres:

Se o poder político não é uma necessidade inerente à natureza humana [...]


em troca ele é uma necessidade inerente à vida social. Podemos pensar o
político sem a violência, mas não podemos pensar o social sem o político; em
outros termos, não existe sociedade sem o poder [...] o poder político como
coerção ou como violência é a marca das sociedade históricas, isto é, das
sociedades que trazem em si a causa da inovação, da mudança, da
historicidade [...] as sociedades com poder político não-coercitivo são as
sociedades sem história, as sociedades com poder político coercitivo são as
sociedades históricas (CLASTRES, 1978, pp.18-19).

No que toca ao âmbito religioso, os curandeiros (também nomeados de pajés,


xamãs ou sacerdotes) possuíam a função de salvaguardar, espiritual e fisicamente, o
cacique, os caçadores-guerreiros, as mulheres e as crianças, sem, todavia, situarem-se
como supostos porta-vozes terrenos das divindades sobrenaturais. A adoração a um
Deus transcendente, onipotente, onipresente e onisciente, apartado, portanto, do restante
do cosmo, soa então absolutamente estranha ao ritualismo ameríndio, em concordância
com a leitura social proporcionada por Clastres. Deus, segundo o descreveria Spinoza
(1632-1677) séculos depois, seria tão-somente uma outra forma de aludirmos à
Natureza. É certo, que este tipo de panteísmo – ou monismo – não era comum à todas as
aldeias, dada a disparidade entre suas crenças e cerimoniais: a saber, muitas delas
recorriam à transcendência para encontrar o divino, como no caso do grande Tupã e de
outras entidades. Notemos, contudo, que o papel de mediadores entre o céu e a terra ou
de porta-vozes das forças da floresta, a eles não outorga nenhuma condição privilegiada,
à qual fatalmente desaguaria na instituição de um clero, movimento que se estende na
mesma medida aos chefes. Ressalta Clastres:

Portanto, a tribo não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado.
O que significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhum
autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar ordem. O
chefe não é um comando, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de
obediência. O espaço de chefia não é o lugar do poder, e a figura (mal
denominada) do “chefe” selvagem não prefigura em nada aquela de um
futuro déspota. Certamente não é da chefia primitiva que se pode deduzir o
aparelho estatal em geral (CLASTRES, 1978, p.143).
Se, vez ou outra, em alguma circunstância específica, houvesse a tentativa de
sobreposição da vontade do chefe – risco do qual os indígenas não estavam isentos – à
coletividade com vistas à obtenção de benefícios pessoais, invertendo-se, pois, a
fórmula “...a tribo a serviço do chefe, e não mais o chefe a serviço da tribo”
(CLASTRES, 1978, p.146), esta empreitada não alcançaria prosperidade. Isto, porque,
em sua própria disposição interna, as sociedades tribais dispunham de meios para
garantir com que o indivíduo jamais prevalecesse perante o todo. A principiar, pela
esterilidade da palavra do chefe. Com efeito, sua eloquência não dispunha senão da
tarefa de agregar os componentes do grupo de acordo com as demandas locais:

Essencialmente encarregado de resolver os conflitos que podem surgir entre


indivíduos, famílias, linhagens etc., ele só dispõe, para restabelecer a ordem e
a concórdia, do prestígio que lhe reconhece a sociedade [...] Empreendimento
cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois a palavra do chefe não
tem força de lei [...] O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si
mesma o verdadeiro lugar do poder – que exerce como tal sua autoridade
sobre o chefe (CLASTRES, 1978, p.144).

No plano do neoliberalismo, onde o poder dilui-se e confunde-se com os micro-


organismos dos aparatos tecnológicos e seus algoritmos, produzindo assim a
subjetividade das massas através da transmissão dos axiomas do capital desde os
primeiros anos da infância – como já demonstrara Félix Guattari (1930-1992) 1 –
Clastres abre-nos horizontes de ponderação em torno de modos outros de organização
humana. Como frisamos, seu trabalho não possui a finalidade de localizar, nas
sociedades passadas, respostas modelares à problemas que são problemas deste tempo.
O que sucede, ao invés disso, é que seu olhar etnográfico permite – tendo por base as
relações de poder não-coercitivas das sociedades arcaicas – com que alarguemos nossos
campos de leituras interpretações e práticas, ferramentas estas imprescindíveis em um
mundo cujo colapso total se avizinha à passos colossais.

1
Cf. GUATTARI, Félix. “As creches e a iniciação”. In: GUATTARI, Félix. Revolução Molecular:
pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Belinha Rolnik. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp.50-55.

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