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Clastres
Os povos sem escrita não são então menos adultos que as sociedades letradas.
Sua história é tão profunda quanto a nossa e, a não ser por racismo, não há
por que julgá-los incapazes de refletir sobre a sua própria experiência e de
dar a seus problemas as soluções apropriadas (CLASTRES, 1978, p.16).
Portanto, a tribo não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado.
O que significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhum
autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar ordem. O
chefe não é um comando, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de
obediência. O espaço de chefia não é o lugar do poder, e a figura (mal
denominada) do “chefe” selvagem não prefigura em nada aquela de um
futuro déspota. Certamente não é da chefia primitiva que se pode deduzir o
aparelho estatal em geral (CLASTRES, 1978, p.143).
Se, vez ou outra, em alguma circunstância específica, houvesse a tentativa de
sobreposição da vontade do chefe – risco do qual os indígenas não estavam isentos – à
coletividade com vistas à obtenção de benefícios pessoais, invertendo-se, pois, a
fórmula “...a tribo a serviço do chefe, e não mais o chefe a serviço da tribo”
(CLASTRES, 1978, p.146), esta empreitada não alcançaria prosperidade. Isto, porque,
em sua própria disposição interna, as sociedades tribais dispunham de meios para
garantir com que o indivíduo jamais prevalecesse perante o todo. A principiar, pela
esterilidade da palavra do chefe. Com efeito, sua eloquência não dispunha senão da
tarefa de agregar os componentes do grupo de acordo com as demandas locais:
1
Cf. GUATTARI, Félix. “As creches e a iniciação”. In: GUATTARI, Félix. Revolução Molecular:
pulsações políticas do desejo. Tradução de Suely Belinha Rolnik. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp.50-55.