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CONSTRUÇÃO CRÍTICA

Eng. Civil Fernando Henrique Sabbatini


Professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo
Coordenador do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico em Construção Civil da USP

Fonte: Revista TECHNE– Edição 99–Junho 2005 / Pág. 24

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As deformações lentas e as conseqüentes patologias, como rompimento de alvenarias e fissuras


em revestimentos, vêm preocupando construtoras de todo o país. Um dos principais estudiosos do
assunto, Fernando Henrique Sabbatini, define como epidêmico o período entre 1994 e 2001. O
prejuízo para a imagem das construtoras e os transtornos causados aos usuários de apartamentos
foram enormes. Sabbatini já fez cerca de 80 diagnósticos sobre casos como esses e diz ter
resolvido os problemas com ações preventivas de escoramento e procedimentos de execução de
alvenarias. Para o pesquisador, porém, a principal causa ainda não foi atacada. Segundo ele, o
concreto teria se tornado uma incógnita e precisa ser melhor estudado. O material, acredita
Sabbatini, evoluiu muito rápido, mas suas características foram alteradas, de tal modo que não se
conhece seu comportamento. Sabatini conclama o meio técnico, em especial a ABCP, entidade
fomentadora do desenvolvimento das tecnologias à base de cimento Portland, a fazer um esforço
para solucionar os problemas. Sugere uma ampla pesquisa, com diversas instituições, sobre como
especificar o concreto e evitar os efeitos da deformação lenta nas novas construções.

Quando começaram a ser observados os primeiros problemas de deformações estruturais ?

R : O primeiro problema desse tipo, de que tenho notícia, foi em 1985; há 20 anos. Mas até 1993 /
1994, eram casos esporádicos. Algum tempo depois, os episódios começaram a tornar-se
freqüentes. Como consultor, tenho dezenas de laudos e pareceres sobre mais de 80 edifícios com
problemas sérios de estouro de alvenaria e patologia em revestimentos, por causa da deformação
excessiva. Em 1997, fiz as primeiras apresentações, sobre o assunto, na Abece (Associação
Brasileira de Engenharia e Consultoria Estrutural), no Instituto de Engenharia e no Secovi.

O que pode estar causando esses problemas ?

R : Acredito que há uma incompatibilidade, um divórcio, entre a estrutura e a alvenaria. Assim que a
parede é encunhada, os dois sistemas se casam e passam a trabalhar conjuntamente, em relativo
equilíbrio. No entanto, se as movimentações diferidas no tempo (deformação lenta, fluência) forem
excessivas, pode ocorrer uma ruptura desse equilíbrio. O fenômeno adquiriu amplitude epidêmica,
porque as estruturas, de maneira geral, tornaram-se muito mais deformáveis, induzindo tensões
nas vedações, de uma magnitude tal, que as alvenarias não têm condições de absorver.

Existe alguma relação entre racionalização do processo construtivo e as deformações estruturais ?

R : A racionalização tem um limite e esse limite foi ultrapassado poucos anos após o Plano Real,
pois o custo de produção passou a ser um fator essencial para o sucesso dos empreendimentos.
Nós, na universidade, incentivamos muito os conceitos de racionalização e conseguimos colaborar
para que as estruturas e as alvenarias passassem a ser executadas com maior precisão
dimensional. Dessa forma, passou a ser possível executar revestimentos de pequena espessura.
Em paralelo, a evolução acentuada dos métodos de cálculo estrutural possibilitou o
dimensionamento de estruturas mais esbeltas. Tudo isto trouxe um alívio de cargas muito grande
nas edificações, pela redução do volume de materiais empregados. O lado ruim é que as estruturas
tornaram-se mais deformáveis e as vedações mais suscetíveis às patologias.

São 20 anos desde as primeiras patologias.


patologias. Os pontos mais problemáticos já foram identificados?

R: O fenômeno não é resultado do uso indevido de um material ou de um único subsistema. È


preciso fazer um diagnóstico, correto, do problema patológico, para encontrar a solução. Dos mais
de 80 casos de ruptura de alvenarias e revestimentos que avaliei, todos eram resultado de
deformação lenta excessiva das estruturas. Trata-se de uma conjugação de muitos fatores, mas um
dentre todos pode ser considerado o ponto-chave : a cura do concreto. A cura bem feita ajuda a
reduzir, muito, o potencial de deformação.
Como o senhor chegou a essa conclusão ?

R: Identificamos, na prática, o problema. Implantamos procedimentos de cura em obras já


parcialmente executadas. Nos pavimentos superiores, onde foi feita uma cura cuidadosa, não
ocorreram problemas ou foram de pequena amplitude. Nos demais andares, nos quais não foram
tomados os mesmos cuidados, ocorreram rupturas de grande amplitude nas paredes. Outro fator
importante é o período em que a estrutura permanece escorada. Hoje, muitas construtoras mantêm
os escoramentos por um tempo muito maior, algumas até 28 dias, empregando 3 a 4 jogos de
escoras permanentes. È evidente que, em alguns casos, a maneira de executar a alvenaria e o
revestimento colaboram para agravar o problema. É preciso atualizar esses procedimentos.

Pode-
Pode-se afirmar que o problema está equacionado ?

R: Ainda não. Temos uma incógnita para resolver: o concreto. Nessa busca de redução de custos,
ocorreram mudanças significativas na dosagem dos concretos estruturais, nos últimos 12 a 15
anos. Sob o aspecto de custo, essas mudanças foram muito positivas, mas o desempenho global do
material endurecido ficou prejudicado. Os fornecedores conseguiram desenvolver um “novo”
concreto, que utiliza agregados finos como a areia rosa e o pó-de-pedra, com teores de cimento
muito menores. Esse concreto atende o requisito de especificação de resistência, mas é diferente.

O concreto mudou ?

R: A tecnologia permitiu desenvolver um concreto com baixo teor de cimento e com teores de
“clínquer” muito menores que os usados até então. Essas alterações podem ocasionar problemas
de deformações excessivas em peças que trabalham à flexão e dimensionadas no estádio 2, devido
às micro fissurações resultantes. Apesar de atender à resistência à compressão especificada, o
que pode ser comprovado nos ensaios, esse concreto – que tem menos cimento e uma outra matriz
– pode ser mais suscetível à deformação lenta, em peças fletidas. Houve também um aumento do
teor de argamassa no concreto, pela necessidade de bombear o material e transformá-lo. O quanto
essa e outras alterações interferem na deformação lenta, é uma incógnita.

Porque só agora se conhece o problema ?

R: Quando o concreto exibe baixo módulo de elasticidade, o problema pode ser identificado mais
facilmente, pois pode provocar deformação instantânea excessiva. Então, a partir do momento em
que se ensaia o módulo e se impõe um valor mínimo, consegue-se evitar deformações elásticas
inadequadas, Mas a deformação diferida no tempo, conhecida como deformação lenta, continua
atuando e seus efeitos se somam. O equilíbrio é alcançado apenas cinco a seis anos depois da
entregue a obra. Por isso o efeito não pode ser avaliado em curto prazo.

Os problemas só vêm depois


depois ?

R: Exato. As alvenarias podem apresentar fissuras ou até romper, porque não suportam toda a
deformação induzida pela estrutura, ao longo do tempo. Os revestimentos também podem se soltar
ou fissurar, como resultado da deformação induzida na alvenaria sob tensão. Se forem mais rígidos
que a alvenaria, como argamassas industrializadas, a chance de isso ocorrer é elevada. As
deformações também podem provocar danos na impermeabilização, tubulações e esquadrias.

Que medidas podem minimizar esses efeitos


efeitos tardios ?

R: Depende muito dos fornecedores de concreto. Eles continuam dosando o material sem
considerar a deformação lenta potencial como uma das variáveis. Esse fenômeno não é avaliado,
experimentalmente, no processo de dosagem. As construtoras sérias sofrem muito com isso, pois
quando as patologias acontecem, precisam assumir a responsabilidade e arcar com os prejuízos,
por causa da imagem.
Não existe controle dessa dosagem ?

R : As construtoras não têm controle do material que recebem, pelo menos das propriedades, que
não são avaliadas no recebimento. Quando se compra concreto, especifica-se, apenas, a
resistência à compressão e o módulo de deformação (que avalia a deformação instantânea
potencial), mas não se estabelece um parâmetro que limite a deformação lenta. Portanto, é
necessário avaliar, previamente, essa característica. E a liderança, nesse processo, tem que ser
assumida por todo o setor envolvido na produção do concreto. O “novo” concreto, com CP III e
agregados finos, pode ser muito bom como pode ser uma bomba-relógio. A única certeza é que o
desempenho futuro é uma incógnita.

Existem iniciativas para estudar e tentar solucionar o problema ?

R : Recentemente, seis grandes construtoras, de São Paulo, contrataram um estudo prospectivo


junto à Escola Politécnica da USP, que foi conduzido pelo professor Antonio Figueiredo e contou
com a minha colaboração e com a do professor Ricardo França. O objetivo era avaliar qual a
amplitude de deformação de vigas feitas com esses concretos, após 120 dias do carregamento
inicial. Para identificar se os concretos comprados com a mesma especificação de resistência à
compressão ( 30 MPa ) apresentavam a mesma deformação lenta, seis caminhões betoneira foram
encaminhados para a POLI, no mesmo dia, e o concreto foi empregado na moldagem de vigas
idênticas. Teoricamente, se comparadas com base apenas no parâmetro “resistência”, as vigas
moldadas com esses concretos deveriam apresentar flechas muito similares. Obviamente, isso não
aconteceu. As deflexões instantâneas foram similares, mas as flechas finais foram muito diferentes.
No extremo, um dos concretos apresentou uma flecha cerca de 80% maior que o menos fletido.

Quer dizer que só a resistência não é suficiente para prever a deformação lenta ?

R : Correto. O problema é : como o construtor pode se precaver contra os problemas se não tem
nenhuma informação à respeito das deformações ? Se eu conheço qual será a deflexão final de uma
viga, posso mudar algumas configurações na alvenaria, como o encunhamento; ou posso empregar
uma argamassa mais flexível nos revestimentos. Ou seja: dispomos de mecanismos para controlar
o fenômeno e evitar problemas, desde que consigamos prever o que vai acontecer.

Além dessa iniciativa, algo mais foi feito ?

R: O professor Francisco Graziano, associado a outros professores da Politécnica da USP, propôs


à ABCP um amplo estudo para avaliar a fluência dos concretos empregados nas estruturas
reticuladas de edifícios. Mas a entidade entendeu que isso não era prioritário. Mesmo assim, o
grupo contratou consultores especializados para identificar a extensão dos problemas e as causas.

O estudo foi concluído ? E qual foi o resultado ?

R : As construtoras insistiram, junto à ABCP, para estudar o problema, por ser a entidade
fomentadora do desenvolvimento das tecnologias de uso do cimento Portland. Solicitaram,
também, que não fossem produzidos concretos, com essas características, enquanto os estudos
não avançassem. Como a entidade não atendeu às solicitações, as empresas e consultores
decidiram continuar os estudos prospectivos. Numa segunda etapa, o objetivo é tentar identificar
quais variáveis, na produção do concreto, apresentam maior significância em termos de
deformações diferidas. Se for possível identificar algum fator de grande relevância, ele será
divulgado.

E qual a expectativa ?

R : Não devemos ter grandes expectativas, pois o assunto é complexo e apenas estudos
prospectivos não são suficientes para gerar conclusões. Entendemos que o mais produtivo seria
realizar uma pesquisa ampla, envolvendo diversas instituições, para podermos orientar todo o meio
técnico sobre como especificar o concreto e como dimensionar as estruturas, conhecendo esse
novo comportamento do material.
Há notícia desse problema em outros países ?

R : Em outros países o dimensionamento estrutural leva em conta a deformação lenta, com base em
parâmetros normativos. O conhecimento existe, mas talvez não seja aplicável, pois utilizamos um
concreto diferente.

Diferente e desconhecido ?

R : Não se pode condenar os estudos que levaram à utilização de agregados hiper-finos no


concreto, pois trouxeram benefícios e representam um evolução, significativa, na tecnologia de
dosagem de concretos estruturais. Nem o uso de cimentos com elevados teores de escória. São
conhecimentos importantes, que contribuem, positivamente, quando bem utilizados; mas também
podem causar sérios prejuízos.

Isso contraria o caráter científico da engenharia ?

R : Os profissionais que se obrigam a obedecer a um código de ética devem recusar ações que não
se fundamentam no conhecimento vigente. Quando a sociedade compra um produto, supõe que é o
resultado da melhor técnica e de conceitos cientificamente inquestionáveis. Mas nós sabemos que
isso não é verdade; nem possível. Falta conhecer muita coisa. Nos pareceres técnicos que fizemos,
conseguimos evitar que queixas se transformassem em demandas judiciais, mostrando que as
patologias não resultaram de ações tecnicamente questionáveis, mas eram resultado de fatores
imponderáveis, decorrentes da busca pela evolução construtiva.

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